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Santo Tomás de Aquino

De Substantiis Separatis
SOBRE OS ANJOS

Tradução
Luiz Astorga
Apresentação:
Paulo Faitanin

SETTMO SEXO

i
í
o tempo de Tomás de Aqui-

S no, a maior parte dos teólo­


gos sustentava que os anjos
não são puros espíritos. A
composição de matéria e forma era a
única explicação plausível, até então,
para a finitude dos anjos e sua distinção
em relação a Deus. O escrito De Swbs-
tantiis Separatis (Sobre os Anjos) emer­
ge, nesse contexto, como a mais original
das “monografias” medievais sobre as
substâncias separadas, quer em razão da
novidade de seus princípios, quer pela
genialidade de suas resoluções teóricas.
Embora inacabada, trata-se de uma
das exposições mais amplas de Tomás
de Aquino a respeito das substâncias se­
paradas, sob o aspecto histórico-crítico
e doutrinal. De Platão e Aristóteles a
Avicebrão e Avicena, o Aquinate con­
duz-nos ao conhecimento das diversas
tentativas de explicação da existência e
da natureza das substâncias separadas.
O leitor notará o quanto Tomás soube
distinguir entre o neoplatonismo greco-
romano e o greco-árabe, ou seja, entre a
metafísica do L iber de Causis, a de Al-
farabi e Avicena e a do Pseudo Dionísio
Areopagita. Tal distinção histórico-dou­
trinal é decisiva para a crítica filosófica
de Avicena e de Avicebrão, apontados
como os que se desviaram do espírito
metafísico de Platão e de Aristóteles.
Essa singular atenção aos hábitos de
pensamento e de linguagem da tradição
filosófica tem como objetivo próximo elu­
cidar as clássicas doutrinas sobre as subs­
tâncias imateriais — e, como meta derra­
deira, o discernimento do que é conforme
ou não à doutrina católica sobre os anjos.
Para além do aspecto histórico-
crítico, Sobre os Anjos aprofunda os
princípios teóricos que guiam a espe­
culação metafísica do Aquinate desde
sua juventude. Dentre esses princípios,
dois são de suma importância: o de par­
ticipação e o princípio do ato e da po­
tência. Com efeito, Tomás de Aquino
realiza uma verdadeira síntese entre
Platão e Aristóteles, ao conceber a
complementaridade entre o princípio
platônico de participação e o aristoté-
lico do ato e da potência.
O sentido e o alcance dessa comple­
mentaridade são proporcionais à origina­
lidade da descoberta tomista do ser como
ato intensivo dos entes. Para o Doutor
Angélico, o ser é o ato de todos os atos e
a perfeição de todas as perfeições. Mes­
mo a forma e a essência em relação ao
ser são participantes do ser e se compor­
tam em relação ao ser como a potência
em relação ao ato. Ora, se a essência do
anjo não é o seu próprio ser (ipsum esse),
mas recebe do ato de ser (actus essendi)
toda a sua atualidade, então se deve pro­
curar na composição de essência e ser, e
não na composição de matéria e forma,
a explicação definitiva da finitude e da
pura espiritualidade das substâncias que
ocupam o cume da criação. E, portanto,
a emergência do actus essendi que faz
convergir, numa síntese original, o que
há de mais profundo na filosofia de Pla­
tão e Aristóteles com o que há de mais
autêntico na cultura cristã.
Sobre os Anjos, que a Sétimo Selo
apresenta em excelente tradução, diri­
ge-se, enfim, ao homem — cujo ser está
no limite entre o tempo e a eternidade.
Afinal, de acordo com a filosofia tomis­
ta, dentre todas as criaturas somente o
homem compartilha com os anjos o dom
da espiritualidade.
E somente ele retira da meditação
sobre os anjos o sentido transcendente
de seu próprio ser.

Sérgio de Souza Salles


Professor da Universidade Católica
de Petrópolis (UCP)
Professor da Faculdade Eclesiástica
de Filosofia João Paulo II
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SOBRE OS ANJOS

TRATACTUS DE
SUBSTANTIIS SEPARATIS
Santo Tomás de Aquino
SOBRE OS ANJOS

Tradução:
Luiz Astorga
Apresentação:
Paulo Faitanin

SÉTIMO SELO
© 2006, Sétimo Selo Editora Ltda,
www.edsetimoselo.com.br - (21) 2242 7634

Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19/02/1998.


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mecânicosfotográficos, gravação ou quaisquer outros.

Título original
Tratactus de Substantiis Separatis

Tradução
LuizAstorga

Apresentação
Paulo Faitanin

Revisão
Carlos Nougué

Imagem da Capa
“ L'ange apparaît à Balaam" (0 anjo aparece a Balaão)
Ilustração de Gustave Doré para a Bíblia

Capa
César Buscado

Coordenação editorial
Octacilio Freire e Sidney Silveira

ISBN 8 5-99255-05-3

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.

T611S

Tomás, de Aquino, Santo, 12257-1274


Sobre os anjos / Santo Tomás de A q u in o ; tradução, Luiz A storga;
apresentação, Paulo Faitanin. - Rio de Ja n e iro : Sétimo Selo, 2006
Tradução de: Tractatus De Substantiis Separtis
Conteúdo parcial: A metafísica tomista e o problema dos anjos /
Paulo Faitanin
ISBN 8 5 -9 9 25 5 -0 5 -3

1. Substância (Filosofia). 2. Anjos - Obras até 1 8 0 0 .1. Faitanin,


Paulo. II. Astorga, Luiz Augusto. III. Título.

06-4059. CDD 235.3 CDU 235.1


06.11.06 09.11.06 016893
Sumário

A presentação i

N ota prévia do tradutor xxiii

SO B R E OS A N JO S

C apítulo 1 Sobre os pareceres dos antigos e de Platão 3


C apítulo 2 Sobre o parecer de Aristóteles 19
C apítulo 3 Sobre a concordância entre as posições de
Aristóteles e de Platão 33
C apítulo 4 Sobre a diferença entre as mencionadas
posições de Aristóteles e Platão 41
C apítulo 5 Sobre o parecer de Avicebrão e seus
argumentos 47
C apítulo 6 No qual a posição de Avicebrão é refutada 57
C apítulo 7 Sobre não poder haver uma só matéria para as
substâncias espirituais e para as corpóreas 71
C apítulo 8 Sobre a refutação dos raciocínios de Avicebrão 79
C apítulo 9 Sobre o parecer dos que afirmam que as
substâncias espirituais não foram criadas 95
C apítulo 10 Contra os que afirmam que nem todas
as substâncias espirituais procedem
imediatamente de Deus 111
C apítulo 11 Contra platônicos que afirmam que certas
perfeições essenciais das substâncias espirituais
não procedem imediatamente de Deus 123
C apítulo 12 Contra Orígenes, que propôs terem sido
todas as substâncias espirituais criadas iguais
por Deus 129
Capítulo 13 Sobre o erro de alguns acerca da cognição e da
providência das substâncias espirituais 139
C apítulo 14 Sobre a Divina Providência se estender a
todas as coisas 157
C a p ít u l o 15 No qual se responde às objeções expostas
acima 163

C a p ít u l o 16 Sobre o erro dos maniqueus acerca das


substâncias espirituais 175

C a p ít u l o 17 Sobre a origem das substâncias espirituais


segundo a fé católica 183

C a p ít u l o 18 Sobre a condição das substâncias espirituais 197


C a p ít u l o 19 Sobre a distinção entre os espíritos angélicos 209
A presentação

A metafísica tomista e o
problema dos anjos
“Ser a form a de algo é ser seu ato.
Logo, nenhuma parte daquilo que é a form a
de algo pode ser matéria, que é potência pura”.

Santo Tomás de Aquino


(De Substantiis Separatis, VII, 36)

Paulo Faitanin

1 .I ntrodução

Para o leitor contemporâneo de filosofia, o problema da


existência de naturezas espirituais separadas da matéria, que
a tradição judaico-cristã popularizou com o nome de “anjos”,
palavra oriunda do grego a y y ^ o ç (que significa “mensageiro”),
pode sugerir algo como um diáfano despropósito. No entan­
to, tal questão é conseqüente e solidária com a perspectiva
das chamadas “metafísicas do ser”, cujas altas especulações
abarcam a totalidade das coisas no que con cerne ao ser, e
não se lim itam a vislumbrar algumas modalidades do ente
— aqui concebido com o tudo o que não seja plenitude
absoluta de ser, mas participe do ser de forma limitada,
específica, fragmentada.
O tema já tivera grande revelo na teoria das Idéias de
Platão (427 a.C .?-3 4 7 a.C ), que afirma haver um mundo
espiritual,1 e na análise m etafísica da substância supra-sen-

1- P latão, República, II, 379, a5.

Santo Tomás de Aquino ■Sobre os A njos •i


sfvel em A ristóteles (384 a .C .-3 2 2 a .C ),2 a qual teria pre­
sença m arcante nas disputas medievais entre as posições
doutrinais judaicas de Avicebrão (1021-1058),3 as cristãs do
neoplatônico Pseudo Dionísio Areopagita (entre os séculos
V e V I)4 e as islâmicas de A vicena (9 8 0 -1 0 3 7 ).5 É neste
quadro que se insere a visão de San to Tomás de Aquino
(1225-1274) sobre as substâncias separadas, que exerceram
profunda influência em sua época. Não obstante, por in­
compreensão da beleza e coerência da demonstração to-
mista da existência de tais substâncias, a sua doutrina foi
condenada em 1277 por Estêvão Tempier, então bispo de
Paris.6 Mas advirta-se ser impossível apreciar o alcance da

2- A ristóteles , M etafísica, XII, 8 , 1073a, 14-23. Cf. R eale, Giovanni. “A com ­


ponente teológica: existência e natureza da substância supra-sensível”,
in: Aristóteles, Metafísica. Vol. I Ensaio Introdutório. Tradução de M arcelo
Perine. São Paulo: Edições Loyola, 2001, pp. 111-122.
3 - A vicebrão , Fons Vitae, I, 8.
4- P seudo D ion Isio , Hierarchia Caelesti, I, 3.
5- A vicena , Metafísica, IX, c.3.
6- D enifle, Henry et C hatelain, Emile. Chartularium Universitatis Parisiensis.
Vol. I. 1889, pp. 543-555. Acerca da querela, posterior à morte de Tomás de
Aquino, entre franciscanos e dominicanos (uns contrários e outros favoráveis
à doutrina do Aquinate), vale registrar que, em janeiro de 1277, o bispo de
Paris, Estêvão Tempier, enviou ao papa João XXI — o qual estudara dialética
e lógica na Universidade de Paris, na cátedra de Alberto Magno, possivel­
mente junto com Santo Tomás — uma lista de 219 proposições consideradas
“ heterodoxas”, elaborada por 17 teólogos, da qual resultou a famosa conde­
nação formal a várias teses tomistas, em março de 1277. Os dominicanos e
os discípulos de Santo Tomás não tardaram a reagir. Um deles, Godofredo de
Fontaine, proclamou que o ato de Tempier deveria ser corrigido o quanto antes,
pois desaprovava proposições filosóficas acertadas do “ excelso frei Tomás"
(excelentissimi Doctoris, scilicet fratis Thomae). Mas o sucessor de Tempier no
bispado de Paris, o franciscano John Peckham, quis impor a qualquer preço
a censura consignada por seu antecessor. A disputa durou cerca de 50 anos
e, finalmente, em maio de 1324, outro bispo de Paris, Estêvão Bourret, anulou
a condenação de 1277 nos artigos que se referiam a teses de Santo Tomás,
após ter convocado toda a Faculdade de Teologia da Universidade de Paris
a dar um parecer. Cf. R amírez , Santiago, “ Introducción general", in Tomás de
A quino , Suma Teológica, Tomo I, De Dios Uno. Madrid: Biblioteca de Autores
Cristianos (BAC), 1947, pp. 88-145. Quanto ao papa João XXI, que recebera
as 219 proposições condenatórias, diga-se que morreu de forma trágica, em
maio de 1277 — apenas dois meses após a condenação proposta por Tempier
—, soterrado pelo teto do pequeno escritório que ele próprio mandara construir,
nos fundos do palácio pontifício de Viterbo. Embora os seus contemporâneos
o criticassem, por suposta instabilidade moral e por sua aversão às ordens
religiosas, o poeta Dante o põe, na Divina Comédia, entre os santos do céu

ii ■Sobre os Anjos •Santo Tomás de Aquino


metafísica totnista sem entender o lugar que, nela, ocupa o
estudo sobre os anjos.7
Santo Tomás (que, na segunda metade do século XV,
recebeu o título de D octor A ngelicus)8 buscou tornar com ­
preensível à razão esta questão de cunho propriamente teo­
lógico, por meio de um formidável esforço de especulação.
Com efeito, o Aquinate aprofunda o problema no âmbito da
verificação racional, a qual conduz a limites quase impen­
sáveis para um filosofar como o da atualidade — que, sem
o esteio de sólidos princípios metafísicos, se habitou a ava­
liar os temas de forma compartimentada, estanque. Sendo
assim, a abordagem do A ngélico deste problema teológico
pertence, antes de tudo, à filosofia.
E pertinente frisar que, na Escolástica, a teologia se
iniciava com os estudos filosóficos, e que já na época do
Aquinate, no século XIII, o Ocidente europeu fora palco de
uma verdadeira revolução neste campo.9 Vindas do Oriente,
as filosofias árabes e judaicas se haviam juntado à tradição
filosófica platônica e à lógica vetus aristotélica, a qual era
conhecida no com eço do século X II e compreendia os livros
Isagogé, de Porfírio (234?—305), as C ategorias e Sobre a In­
terpretação, do próprio Aristóteles, e os comentários a essas
obras feitos por Boécio (480-425?). Ampliara-se o legado
com a então chamada lógica n ov a, constituída pelos livros
Analíticos Anteriores e Analíticos Posteriores, do Estagirita,
assim como os seus tratados cosmológicos, de política, de
ética e, também, a M etafísica, em traduções para o latim de
textos gregos até então inéditos.10 O estudo da filosofia aris-

(Paraíso, 12, 134). Cf. M c B rien , Richard. Os Papas. Os Pontífices de Pedro a


João Paulo II. São Paulo: Edições Loyola, 2000, pp. 228-229.
7- Faitanin, Paulo. “A Filosofia segundo São Tomás de Aquino” , revista ele­
trónica Aquinate, n. 3 (2006), pp. 133-146, in www.aquinate.net.
8- M andonnet , Pierre. ‘‘Les titres doctoraux de saint Thomas d ’Aquin”, Revue
Thomiste, n.17 (1909), pp. 607-608.
9- K nowles, David. The Evolution o f Medieval Thought. London: Longmans
Green, 1962, pp. 221-234.
10- K retzmann , Norman, and S tump, Eleonore. The Cam bridge Companion to
Aquinas. New York: Cambridge University Press, 1994, pp. 20-24.

Santo Tomäs de Aquino ■Sobre os Anjos ■iii


totélica assumia, assim, lugar de destaque nas universidades
medievais. Na de Nápoles, por exemplo, estudavam-se até
seis anos de filosofia aristotélica, e Aristóteles passou a ser
então cognominado de “o Filósofo”, hábito que herdou o
próprio Tomás de Aquino, conforme se vê quando se refere
aos seus escritos. A famosa abertura do Livro I da M etafísica
de Aristóteles: “Todos os homens têm o desejo natural de
conhecer”,11 pusera na ordem do dia os estudos filosóficos.
Neste contexto cresceu e se desenvolveu a filosofia to-
mista; e, embora fosse acima de tudo teólogo, o Aquinate
foi verdadeiramente filósofo,12 sabedor que era do quanto a
razão poderia contrariar a fé, se falhasse no reto uso dos seus
recursos naturais e dos seus princípios. Mais ainda: conquanto
a autonomia da filosofia não o tenha conduzido a apoiar-se,
sem mais, na autoridade dos filósofos — donde ele dizer que
o argumento de autoridade fundado na razão humana é, de
todos, o mais fraco13 — , jamais Santo Tomás de Aquino des­
cuidou de considerar os mestres e as suas principais doutrinas,
e sempre tratou filosoficamente as questões teológicas, por
serem passíveis de passar pelo escrutínio da razão.
O Aquinate efetivamente marcou a filosofia com a sua
obra sistemática,14 mas não era seu intuito inovar nem, portan­
to, instituir um sistema original, criar uma filosofia sua. Estava
em busca do ser das coisas, e com isto, embora não o tenha
querido, revolucionou a investigação filosófica: de fato, a fina­
lidade da filosofia não é saber o que os homens pensaram (pois
este é o objetivo da história da filosofia), mas qual é a verdade
das coisas.15 E, se alguém já tinha dito, antes dele, o que as
coisas são na realidade, isso não era motivo para não o repetir;
se ninguém o tinha dito ainda, não era motivo para ele não o

11- A ristóteles, Metafísica, I, c 1, 980a 1-5.


12- D avies, Brian. The Thought o f Thomas Aquinas. New York: Oxford Univer­
sity Press, 1993, pp. 10-14.
13- T om As de A quino , Summa Theologiae, I, q. 1, a. 8, c. 2.
14- M artin , Christopher. The Philosophy o f Thomas Aquinas. Introductory
readings. New York: Routdlege, 1988, pp 5-7.
15- T omas de A quino , in I De caelo, lec. 22.

iv •Sobre os Anjos •Santo Tomás de Aquino


dizer: sua obra era objetiva e alicerçada no real.16 A filosofia é,
para o Aquinate, a ciência racional por excelência, estudo em
si mesmo lícito e louvável, por causa da verdade que os filósofos
buscam, a qual acabam por descobrir em Deus.17
Ao estudo do Aquinate não poderia faltar o conhecimen­
to global e preciso do status quaestiones e da verdade que se
alcançara no passado sobre determinado tema, a partir do
esforço de muitos filósofos. E, quanto a isso, destacava: “A
contribuição de um só homem, pelo seu trabalho e pelo seu
gênio para o progresso da verdade, é pouco se comparada com
o conjunto da ciência; no entanto, de todos esses elementos
coordenados, escolhidos e reunidos, alguma coisa de grande se
fez”.18 Assim, para Tomás era importantíssimo voltar às opini­
ões dos antigos, independentemente de quem fossem, porque
isso sempre nos é duplamente útil, seja para guardarmos para
o nosso uso o que disseram de bom, seja para nos defender­
mos do que disseram de mau.19 Mas não se trata simplesmente
de voltar no tempo; é preciso analisar, comparar e sintetizar,
propondo sempre uma solução para a questão de que nos ocu­
pamos. Nisto desempenham papel fundamental a analogia,20
os métodos indutivo21 e dedutivo22 e a aplicação dos primeiros
princípios do conhecimento e de demonstração da razão.23 Só
assim o filósofo se ordenará retamente ao conhecimento da
verdade e à solução de uma questão.
De fato, para o homem, a verdade que a razão perscruta lhe
é conatural, e a sua investigação convém à filosofia primeira: a
metafísica. As verdades relativas às realidades divinas que nos são

16- C obreia de B arros, Manuel. Filosofia Tomista. Porto: Livraria Figueiri-


nhas, 1966, p. 46.
17- T omás de A quino , Summa Theologiae, lla-lla, q. 167, a. 1, ad 3.
18- T omás de A quino , In Sententia libri Metaphysicae, II, lec. 1.
19- T omás de A quino , In De anima, leo. 2.
20- T omás de A quino , Summa Theologiae, I, q. 13, a 5, c.
21 - T omás de A quino , In I Anal. lec. 1, e Summa contra Gentiles, I, 13.
22- T omás de A quino , Summa Theologiae, II—II, q. 49, a2, c.
23- T omás de A quino,. In Scriptum Super Sententiiis, II, d. 3, q. 1, a. 6, ad
2; Summa Theologiae, I, q. 42, a 3, c.; Summa contra Gentiles, III,70; De
Viiritate, q. 14, a 2, c.

Santo Tomás de Aquino •Sobre os Anjos •v


inteligíveis são, portanto, passíveis de ser investigadas pela razão hu­
mana.24 Como o trabalho especulativo de toda a filosofia se dirige
ao conhecimento de Deus, a metafísica - também denominada
“filosofia primeira” e “sabedoria” - , que tem por objeto as verdades
divinas, deve ser a última parte da filosofia25 e abordar (também) a
origem e a existência das substâncias separadas. Nesta visão, a me­
tafísica é por excelência o epicentro da investigação racional, pois,
sendo filosofia primeira, investiga as primeiras causas das coisas.26
E a filosofia como um todo é, sem dúvida, a ciência do ser em si
mesmo e das primeiras causas,27 à luz da razão natural.28
Para Santo Tomás, tudo o que penetra no intelecto é
abstraído da matéria em suas dimensões quantitativas.29 Por
isso, tem lugar natural nas especulações metafísicas o estudo
das substâncias separadas. Com efeito, estudar a substância é
fundamental para a. metafísica, pois aquilo de que o intelecto
abstrai as suas espécies é a substância, ou seja, o ente concreto
que subsiste em si mesmo e é sujeito dos acidentes. Assim, con­
siderar a essência da substância é o que constitui o âmago do
conhecimento metafísico. Mas o seu papel não se restringe a
analisar os princípios constitutivos da substância, como a maté­
ria, a forma, os acidentes, as suas causas, mediante o processo de
abstração: é também o de indagar, segundo os princípios retos
da razão e de modo ascendente, a noção de ser, comum a todos
os entes, incluindo os que existam sem estar unidos à matéria
— como as denominadas substâncias separadas.
Neste ponto, convém registrar o seguinte: não há dúvida de
que a filosofia do Aquinate é cristã. Mas não no sentido de que
parta previamente da fé, do dogma, para explicar verdades da
razão. E cristã porque o que alcança a razão como verdade não
contraria o que a fé revela como dogma. Por isso, para o Aquinate
a razão pode, independentemente da fé, investigar muitos temas

24- Tomás de A quino , Summa contra Gentiles, I, c. 4.


25- Tomás de A quino , Summa contra Gentiles, I, c. 4.
26- T omás de A quino , In Sententia librí Metaphysicae, Proêmio.
27- T omás de A quino , In Sententia lib ri Metaphysicae, IV, lec. 1.
28- Tomás de A quino , Summa Theologiae, I, q. 1, a. 1, c.
29- Tomás de A quino , In Comentaria in Octo iibros Physicorum, II, lec. 3.

vi ■Sobre os Anjos •Santo Tomás de Aquino


que são próprios da fé, como por exemplo o da existência dos an­
jos. Desse modo, embora o filósofo considere as criaturas diferen­
temente do teólogo, pode-se dizer, por analogia, que a sabedoria
divina parte dos mesmos princípios da sabedoria humana:

“Entre os filósofos, a filosofia primeira usa de todas


as ciências para demonstrar as suas teses. Daí também se
explica por que as suas doutrinas não procedem segundo
a mesma ordenação. Com efeito, no ensino da filosofia,
que considera as criaturas em si mesmas, e partindo
delas chega ao conhecimento de Deus, consideram-se
primeiro as criaturas e depois a Deus. Mas na doutrina
da fé, que não considera as criaturas senão enquanto
ordenadas a Deus, primeiro se considera a Deus e depois
às criaturas. E assim ela é mais perfeita, justamente por
ser semelhante ao conhecimento de Deus, que, ao se
conhecer, vê as outras coisas em si mesmo”.30

Configura-se cristã a filosofia, portanto, porque serve de


instrumento — razão pela qual, na terminologia escolástica, foi
chamada de serva da teologia (ancilla teologiae). Em tal contex­
to, é a metafísica o instrumento básico, no uso da filosofia, para
as investigações teológicas. Contudo, o Doutor Angélico tam­
bém dá importância à dialética, ou seja, à filosofia racional ou
lógica, enquanto arte da argumentação no estudo da doutrina
sagrada ou de algum dos seus temas, como a angelologia:

“As outras ciências não argumentam visando a


demonstrar os seus princípios, mas para demonstrar
a partir deles outras verdades do seu campo. Desse
modo, também a doutrina sagrada não se vale da ar­
gumentação para provar os seus próprios princípios,
as verdades de fé,, mas parte deles para manifestar al­
guma outra verdade, assim como o Apóstolo, na Pri-

3 0 - T omás de A quino , Summa contra Gentiles, II, c, 4.

Santo Tomás de Aquino •Sobre os Anjos ■vii


meira C arta aos Coríntios, se apóia na Ressurreição
[do Cristo] para provar a ressurreição universal”.3132

E prossegue confirmando que a verdade revelada não se


opõe à verdade que a razão alcança:

“A doutrina sagrada utiliza também a razão huma­


na, não para provar a fé, o que lhe tiraria o mérito, mas
para iluminar alguns outros pontos que esta doutrina
ensina. Com o a graça não suprime a natureza, mas a
aperfeiçoa, convém que a razão natural sirva à fé”.*2

E nesse contexto que se insere a filosofia dos anjos do


Aquinate exposta neste De Substantiis Separatis — estudo
dedicado a Reginaldo de Piperno e que, segundo os catálo­
gos antigos, foi escrito provavelmente no segundo semestre
de 1271, sem que se possa especificar se o foi em Paris ou em
Nápoles. Aqui, o Aquinate trata da origem, natureza, exis­
tência e operações das substâncias supra-sensíveis, ou seja,
os anjos. Dividido em duas partes, a primeira, com 17 capí­
tulos, com eça por expor e analisar as opiniões dos antigos,
de Platão, Aristóteles, Pseudo Dionísio, Proclo (412-487),
Santo Agostinho (354-430), Avicebrão, Avicena e outros.
Esta parte é um estudo metafísico da natureza das substân­
cias separadas, e por isso podemos designá-la como filosofia
tomista dos anjos. A segunda parte, com três capítulos (18
ao 20), ficou inacabada, e considera a doutrina cristã e o
ensinamento da fé católica a respeito do tema, e por isso
podemos denominá-la, propriamente, de angelologia tomista.
Foi interrompida quando Santo Tomás tratava do pecado
do anjo. Mas, quanto a isto, o seu ensinamento não ficou
prejudicado, pois o Angélico abordou-o de forma suficiente
em outras obras, como por exemplo na Sum a Teológica.i3

31- T omás de A quino , Summa Theologiae, I, q. 1, a. 8.


32- T omás de A quino , Summa Theologiae, I, q. 1, a. 8.
33- T omás de A quino , Summa Theologiae, I, q. 64.

viii •Sobre os Anjos •Santo Tomás de Aquino


N esta breve apresentação, centraremo-nos na filosofia
tomista dos anjos,34 que, afinal, corresponde à maior parte
do conteúdo deste tratado.35

2 . P rolegômenos ao estudo filosófico das


SUBSTÂNCIAS SEPARADAS

2.1. Metafísica - a ciência das substâncias separadas

O desejo n atural de con h ecer, proclam ado por


A ristóteles em sua M eta física , não exclui a in clin ação
ao saber sobren atu ral,36 ou seja: a respeito de quaisquer
realidades que estejam a lém da natureza hum ana. Ao
con h ecim en to dos anjos podemos associar, por a n a lo ­
gia, as palavras do mesmo A ristóteles, o qual em Sobre a
A lm a afirm a que, en tre as coisas mais belas e dignas de
estudar, as investigações sobre a alm a ocupam lugar es­
pecial.37 E não há dúvida de que, en tre os estudos sobre a
su bstância,38 os que versam sobre os espíritos puros sepa-

34- C ollins , James. The Thom istic Philosophy o f the Angels. Washington,
D.C: The Catholic University of Am erica Press, Philosophical Studies, Vo­
lume 89. 1947.
35- Tratado que, para alguns tomistas, com o Cornelio Fabro, representa a
chave para a interpretação da metafísica do Aquinate, pois nele se encontra
uma sintese perfeita entre a metafísica do ato e da potência de Aristóteles e
a noção de participação em Platão, harmonizadas por Santo Tomás. O livro
De Substantiis Separatis, considerado por Fabro como a última explicitação
do Doutor Angélico acerca de sua metafísica, estabelece a emergência do ato
de ser (actus essendi) sobre todas as formas e sobre todos os atos — visão
metafísica que o Aquinate elaborou a partir da especulação neoplatônica de
Pseudo Dionísio Areopagita, e pode ser resumida da seguinte forma: o ato de
ser é a atualidade de todos os atos, e, em relação a ele, todas as formas se
comportam como potência. O momento crucial dessa dialética é que, para o
Aquinate, a noção intensiva de esse, na medida em que subordina as formas
e perfeições ao actus essendi, como participações suas, acaba por também
fazer da metafísica platônica da participação o cume (ou a abóbada) da meta­
física aristotélica do ato e da potência. Cf. Fabro, Cornelio. Drama dei Hombre
S Mistério de Dios. Madrid: Ediciones Rialp. 1977, pp; 373-390.
36- A ristóteles, Metafísica, 980a 21.
37- A ristóteles, Sobre a alma, 402a, T 5.
38- Vale lembrar que, para a Escolástica, a alma é forma substancial do
corpo, além de ser ato primeiro de um corpo natural organizado, de acordo
com a definição de Aristóteles em Sobre a Alma, 412b, 5.

Santo Tomás de Aquino ■Sobre os Anjos •ix


rados, ou seja, sobre os anjos, têm enorm e im portância.
E, por uma via de “ascensão”, poder-se-á tam bém dizer
que o estudo de Deus é o mais digno e nobre que pode
alca n ça r o co n h ecim en to hum ano.
Para o Aquinate, a investigação acerca dos anjos nos
aproxima do estudo de Deus porque, se à razão não repug­
na a busca deste conhecim ento, isto significa que natural­
mente ela está apta a possuí-lo, segundo a capacidade d a sua
própria natureza, e, também, na medida em que seja ilumi­
nada pela bondade e pelo amor divinos. Segue-se disso que
podemos alcançar certo entendim ento da origem, natureza
e missão desses entes puramente espirituais, porque, justa­
mente por serem objetos da revelação, no parecer de Santo
Tomás serão tam bém objetos de nossa intelecção.

2.2. A suposição de um composto material nas


substâncias separadas

O Aquinate expõe e analisa com precisão a raiz do


erro de pensar que substâncias separadas da matéria teriam
algum suposto material. E enumera cinco razões teológicas —
as quais fundamentaram a posição de autores da Patrística
grega que teriam incorrido em tal engano:

1. A narração do Gênesis (6, 2 e 4), onde se diz que os


filhos de Deus (em alguns códices da versão dos LXX,
“filhos de Deus” refere-se a angélous tous theous) tive­
ram relação carnal com mulheres e geraram gigantes.
Santo Tomás sustenta que parece mais crível tratar-se
das uniões conjugais entre os descendentes da raça
eleita, os filhos de Deus, e as mulheres da raça de
Caim, as filhas dos homens; uniões que os levaram à
mais profunda corrupção.39

39- T omás de A quino , Summa Theologiae, I, q. 51, a. 3, ad 6.

x •Sobre os Anjos ■Santo Tomás de Aquino


2. Também motivaria uma interpretação corpórea
do ser angélico uma passagem do texto do Após-
tolo Paulo (I Cor. 11, 10): “Por isso, a mulher deve
velar a cabeça convenientem ente, por causa dos
anjos”, com o se o fato de estarem despenteadas
constituísse uma tentação para os anjos. Aqui, os
anjos seriam ministros ou mensageiros de outras
comunidades, e ficariam escandalizados com um
penteado pouco feminino.

3. N o Salm o 103, 4, diz a Vulgata: “Fazei Espíritos


aos teus anjos e aos teus mensageiros, fogo abra­
sador”. Interpretando tal passagem, alguns padres
gregos concluíam que os anjos teriam natureza
ígnea e, portanto, corpórea. Mas a versão hebrai­
ca não m enciona as palavras “an jo” e “espírito”
— mas sim “v en to” para designar os mensageiros,
e “fogo”, para os m inistros.

4. N o Salm o 77, 25, diz a Vulgata, referindo-se ao


m aná: “O hom em com eu o pão dos an jos”. A l­
guns acreditaram que os anjos com iam pão, o
que os levaram a conclu ir que eles teriam corpo.
Mas aquela expressão alude ao modo com o os
hebreus recebiam o m aná descido do céu, onde
os anjos assistem a Deus.

5. Em I Cor. 15, 40, diz São Paulo: “Há corpos celestes


e corpos terrestres, mas o brilho dos corpos celestes
é diferente do brilho dos terrestres”. Interpretaram
corpos celestes como corpos dos anjos, e não como
astros. Mais adiante, em I Cor. 15, 41, o próprio
Apóstolo faz menção ao sol como corpo celeste.
Tratou-se, pois, de uma interpretação equivocada
da expressão “corpo celeste”.

Santo Tomás de Aquino ■Sobre os Anjos •xi


2.3. Prova da existência de Deus e das substâncias
separadas - a quarta via

O grande defensor da espiritualidade e, sobretudo, da


imaterialidade da natureza dos anjos foi, sem dúvida, Santo
Tomás. E a sua demonstração do ser dessas naturezas se­
paradas da matéria é, em certo sentido, correlata às provas
do ser (esse) e da existência de Deus, enumeradas na Suma
Teológica em cinco vias.
A quarta delas nos leva ao conhecim ento da existência
e perfeição da Causa primeira pela constatação e verifica­
ção das perfeições formais dos seus múltiplos efeitos. Pela
razão é possível chegar ao conhecim ento da existência de
Deus mediante a consideração destes efeitos. Tomás de
A quino parte deles para chegar a Deus, ascendendo na me­
dida em que vai da consideração do menos perfeito ao mais
perfeito na ordem do ser, mediante um método an alítico a
posteriori. Deste modo, entre o mais mísero ente, no qual se
percebem vestígios da deidade, e o mais nohre, de acordo
com Santo Tomás, não há no universo criado nada que
— por mais que careça, em sua natureza, de algum grau de
ser — não apresente e represente os atributos divinos.
Quanto maiores forem a complexidade e o modo como
se organiza a matéria, maior e mais perfeito deverá ser o prin­
cípio ordenador da mesma. Assim, pois, podemos dizer que o
grau de entidade e perfeição que a matéria demonstra em sua
natureza reflete o grau de perfeição do seu ser próprio. Desde
Aristóteles, atribui-se à forma esta capacidade de conferir o
grau de ser e perfeição à matéria. Se isto é assim, cada ente,
desde a mais simples célula até a mais complexa organização
pluricelular, deverá ser regido de acordo com o grau de ser e
a perfeição da sua forma, que é princípio de operação.
Para aclarar a idéia de que o tema das substâncias sepa­
radas é correlato ao da demonstração da existência de Deus
feita por Santo Tomás na Sum a Teológica (propriamente na
quarta via), é pertinente frisar que, nestes dois casos, se trata

xii •Sobre os Anjos •Santo Tomás de Aquino


de avaliar os graus de ser e de perfeição que o homem ob­
serva na natureza, os quais encontram explicação suficiente
apenas na aceitação de um m axim um ser do qual todos os
entes participam, em maior ou menor grau. A diferença está
em que, no caso das substâncias separadas da matéria, esta
dialética do mais e do menos (magis et minus) necessita de
um aprofundamento metafísico maior, pois, ao contrário do
que acontece em relação ao Sumo Ser Subsistente, não se
encontram na natureza vestígios da ação de entes imateriais
cuja perfeição seria intermediária entre o homem e Deus.
N a perspectiva de S a n to Tom ás, a perfeição do ser
divino é mais bem representada plural e d iv ersam en te do
que una e id en ticam en te — o que está de acordo com
a tese tom ista de que o co n ceito de ser é análogo, e
não unívoco. S e isto é certo, devemos supor que en tre
a representação, a modo de imagem, de perfeições dos
atributos divinos no ser do hom em e a deidade mesma
há muitos e diversos modos mais nobres de representa­
ção da in telig ên cia e da vontade divinas. Os anjos vêm
justam ente preencher essa lacuna de representação. A
revelação nas Escrituras e os ensinam entos dos Padres
tia Igreja con firm am a m ultiplicidade de an jos, diversos
entre si segundo essas mesmas representações. C ien te
disso, S a n to Tomás dedicou-se profundam ente a ordenar
e analisar o legado escriturário e p atrístico a respeito
do assunto, elaborando uma síntese sem precedentes na
h istória dos que se dedicaram a tra ta r dos anjos.

1 . E studo filosófico das substâncias separadas

h l. Origem

Com o já foi assinalado, de acordo com Tomás de Aqui-


no, se faltassem os anjos no universo, seria maior a distância
rnirc* o ser de Deus e o das criaturas corpóreas, além de ser
abissal o contraste entre as semelhanças e dissemelhanças do

Santo Tomás de Aquino ■Sobre os Anjos ■xiii


ser das criaturas meramente corporais e o ser de Deus. Neste
contexto, a aceitação da existência dos anjos corrobora a
doutrina da participação e representação das semelhanças
divinas nas criaturas.40
A o tratar da origem dos anjos, o Aquinate (referindo-se
ao De Civitate Dei de A gostinho) recorre ao ensinamento
do Gênesis para comprovar a criação dos anjos, a partir
da interpretação dos termos “céu” e “luz”, mencionados
no texto bíblico, com o sentido de “espíritos puros”,41 idéia
que o Angélico acolhe integralmente do Bispo de Hipona.
Admitindo-se, portanto, que foram criadas estas substâncias
incorpóreas, destaca Santo Tomás que o ser dos anjos, como
o das demais criaturas, não é como o de Deus, a saber, ser
por essência, porque eles têm o ser por participação.42 Noutra
formulação, Tomás dirá que o ser nas criaturas é o primeiro
efeito da onipotência divina,43 razão pela qual é necessário
que tudo o que existe sob algum modo receba o seu ser de
Deus.44 O u então: tudo o mais supõe o primeiro ser,45 e este
é o efeito do ato de Deus nas criaturas.46 Sendo assim, é
conveniente que o que é único e simples seja representado
diversamente,47 e, desta forma, aceitar-se-á a existência dos
anjos porque contribui para a perfeição do universo.48 Já a
pluralidade e diversidade de criaturas auxilia-nos a entender
a infinitude das perfeições divinas, enquanto estas são imita­
das na diversidade de coisas, segundo seus diversos modos49

40- Toda criatura é boa por natureza e se inclina naturalmente à Bondade d i­


vina (T omás de A quino , De Veritate, q. 21, a. 1, ad. 1). Podemos dizer que esta
capacidade de Deus está presente de diferentes modos nas essências das
criaturas, e o mesmo com relação ao m odo de representação da Bondade
divina nas essências criadas.
41- Tomás de A quino , Summa Theologiae, I, q. 61, a. 1, ad. 1.
42- Tomás de A quino , Summa Theologiae, I, q. 61, a. 1,
4 3 - Tomás de A quino , Summa Theologiae, I, c. 68, n. 116.
44 - Tomás de A quino , Compendium Theologiae, I, c. 68, n. 116.
45- Tomás de A quino , Compendium Theologiae, I, c. 68, n. 116
46 - Tomás de A quino , Compendium Theologiae, I, c. 72, n. 125.
47- T omás de A quino , Compendium Theologiae, I, c. 72, n. 125.
48- Tomás de A quino , Compendium Theologiae, I, q. 50, a. 1, con.
49 - T omás de A quino , Compendium Theologiae, I, c. 72, n. 125.

xiv ■Sobre os Anjos ■Santo Tomás de Aquino


c segundo múltiplos bens.50 Para explicar tal diversidade, a
razão precisa, em última instância, postular a existência de
substâncias que sejam puramente espirituais e que melhor
representem, nas suas essências distintas, similitudes das
perfeições divinas.
Neste horizonte de especulações, a diversidade e mui-
liplicidade de criaturas produzidas por Deus será um sinal
de Seu amor e bondade infinitos.51 Ora, para o Aquinate,
a diversidade de coisas consiste na diversidade das formas,
porque a forma é o princípio metafísico em que se funda­
menta a ordem da diversidade das coisas.52 Com o Deus
não tem matéria e como qualquer agente opera de modo
semelhante a si mesmo,53 segue-se que algo se assemelha a
Deus pelo grau de perfeição e atualidade que representa pela
forma, pois Deus é sumamente perfeito e A to Puro,54 porque
a forma d’Ele é o seu próprio ser subsistente (ipsus ens subsis-
(ens).55 Diferentemente, na essência de todas as criaturas h á ,
sem nenhuma exceção, composição de ato e potência, já que
nos entes a essência não é o seu ser, mas participa do ser,56 na
medida em que o recebe de outro (ab alio).
A composição de ato e potência determina ou qualifica a
natureza das essências criadas, segundo sua maior ou menor

50- Tomás de A quino , Compendium Theologiae, I, c. 72, n. 126.


51- Santo Tomás trata de refutar distintos argumentos que se opõem à tese
de que só Deus pôde ser causa da diversidade (Summa Theologiae, I, q. 47,
a. 1; e Summa contra Gentiles, 2, c. 40), seja porque Deus, criando as coisas,
não pressupôs a matéria (Com pendium Theologiae, 1, c. 69, n. 118-120), seja
porque tam pouco a matéria foi criada absolutamente informe (De Potentia
Dei, q. 4, a. 1 y 2; e Summa Theologiae, I, q. 66, a. 1) e tem o fundam ento do
seu ser segundo uma forma (Summa Theologiae, I, q. 47, a. 1). Santo Tomás
resume o problem a dizendo que a diversificação e a m ultiplicidade de coisas
provêm da intenção do primeiro agente, que é Deus, pois Ele produziu as
coisas e comunicou a Sua bondade, sendo esta representada nelas (Summa
Theologiae, I, q. 47, a. 1).
52- Tomás de A quino, Compendium Theologiae, I, c. 73, n. 127.
53- Tomás de A quino, Compendium Theologiae, I, c. 72, n. 125.
64- Tomás de A quino, Compendium Theologiae, I, c. 74, n. 128.
55- Tomás de A quino, De Natura Materiae, c. 3, n. 376.

66- Tomás de A quino, De Potentia Dei, q. 7, a. 2; Summa contra Gentiles, 1, c.


22; Com pendium Theologiae, 1, c. 73-74; Summa Theologiae, I, q. 61, a. 1.

Santo Tomás de Aquino ■Sobre os Anjos •xv


atualidade.57 Neste sentido, é segundo os diversos modos de
graus de atualidade das formas que se determina a diversidade
de criaturas. Algumas formas possuem menos potência porque
não são recebidas na matéria, mas ainda assim elas não são
plenitude absoluta de ser.58 Outras são as que, possuindo mais
potência que ato, são recebidas na matéria, porque elas mesmas
não são o suposto (ou sujeito) de sua natureza.59 Ainda assim,
há diferenças entre as próprias formas que são recebidas na
matéria, porque umas são formas de natureza corpórea e outras
de natureza espiritual. As de natureza corpórea possuem mais
potencialidade do que as que são de natureza espiritual. Neste
sentido, as corpóreas não subsistem a não ser em seus respec­
tivos supostos ou sujeitos materiais,60 enquanto as de natureza
espiritual, ainda que necessitem unir-se a um corpo, podem
subsistir, embora de modo imperfeito, quando separadas de seu
suposto, e este é o caso das almas humanas.61
Para Tomás, todas as criaturas — incluindo as substâncias
separadas — foram criadas do nada6263por Deus,61 mas não por
necessidade,64 porque todo o universo foi criado em razão de
Sua sabedoria e amor. E, de algum modo, as formas separadas da
matéria foram criadas simultaneamente às corporais,65 embora
por natureza sejam anteriores às criaturas corpóreas.66 E, se tais
substâncias são formas separadas, foram criadas em diversos graus
de ser.67 Neste sentido, umas participariam mais e outras menos
da perfeição do ser divino, por meio da forma que possuem,68*a

57- T omás de A quino , Compendium Theologiae, 1, c. 77.


5 8 - Tomás de A quino , De Nature Materiae, c. 3, n. 376.
5 9 - T omás de A quino , De Natura Materiae, c. 3, n. 376.
60- T omás de A quino , De Natura Materiae, c. 3, n. 377.
61- T omás de A quino , De Natura Materiae, c. 3, n. 376.
6 2 - T omás de A quino , De Potentia Dei, q. 3, a. 18, con.
6 3 - T omás de A quino , Compendium Theologiae, 1, c. 70, n. 121-122.
6 4 - T omás de A quino , Summa contra Gentiles, 2, c. 23.
6 5 - T omás de A quino , De Potentia Dei, q. 3, a.18, con.
6 6 - T omás de A quino , De Potentia Dei, q. 3, a.19, con.
67- Tomás de A quino , Compendium Theologiae, 1, c. 73, n. 127; 1, c. 77, n. 135.
6 8 - T omás de A quino , Compendium Theologiae, 1, c. 74, n. 128-129; Com pen­
dium Theologiae, 1, c. 109, n. 217-218.

xvi ■Sobre os Anjos ■Santo Tomás de Aquino


partir da qual representariam mais ou menos perfeitamente a
semelhança divina em suas respectivas essências,69 sendo pois a
distinção entre elas inteiramente formal, segundo a natureza.70

1.2. Natureza

O constitutivo da natureza das substâncias separadas é


a sua forma, porque, para Santo Tomás, pode subsistir inde­
pendentemente de unir-se à matéria.71 Mas o fato de ser a
!<irma o único elemento substancial que compõe a natureza
das substâncias separadas72 não significa que nela não haja
nenhuma composição, pois possui potência e ato.73 Ora, se é
admissível que Deus criou o intelecto humano, que perma­
nece subsistente depois de separar-se da matéria, também é
admissível que Deus quis criar uma substância que subsista
sem nunca ter-se unido à matéria.74
Pois bem, afirmar que tais substâncias são puras formas
significa dizer que as suas respectivas essências são só as
lormas,75 mas isso não implica que não haja composição
em suas respectivas formas, porque em toda e qualquer
criatura a forma é composta de ato e potência. Em outras
palavras, o ato é a perfeição e o ser da natureza. Mas tal
perfeição não existe de modo acabado na natureza: trata-se
de perfeição perfectível, ou seja, a que para ser atingida ne­
cessita do auxílio de algo. O ra, denomina-se potência esta
( apacidade que a substância possui em si mesma de tornar
perfeito o que é perfectível. A substância separada possui

ni) Tomás de A quino , Compendium Theologiae, 1, c. 75, n. 130-132.


A) Tomás de A quino , Compendium Theologiae, 1, c. 77, n. 135.
1 1 Tomás de A quino , De ente et essentia, c. 4.
V. ' Tomás de A quino , De ente et essentia, c. 4.
73 “Quando prescindimos do fundamento material, se permanece alguma
forma de uma natureza determinada subsistente por si, e não é na matéria, esta
|iniliirezasubsistente]se relacionará com oseu próprio ser como a potência [se
i aim tona] ao ato". T omás de A quino , De Spiritualibus Creaturis, a. 1, resp.
/■) Tomás de A ouino , Summa Theologiae, I, q. 25, a. 6, sed contra.
Iti Tomás de A ouino , De ente et essentia, c. 4.

Santo Tomás de Aquino •Sobre os Anjos •xvii


determinadas perfeições que nela existem em potência.
Estas perfeições potenciais podem ser atualizadas por ela
mesma ou por algum ato ulterior, com o o ato divino, mas é
a substância separada que possui a capacidade de atualizá-
las, ou seja: está em potência para atualizá-las. N enhum a
criatura atualiza as suas próprias perfeições.76
Neste sentido, embora a substância separada tenha a for­
ma como único elemento da sua essência, ela mesma, ou seja,
a forma, é composta77 de dois princípios: o de ato e potência,78
e o de ser e essência.79 Ora, se só a forma constitui a natureza
das substâncias separadas, ela mesma será o sujeito ou suposto
da sua natureza.8081Por isso, nestas substâncias, suposto e natu­
reza não se distinguem, como nas substâncias corporais, em
que a matéria é o suposto e a forma, a natureza.61
Na perspectiva do Aquinate, as substâncias separadas são
constituídas à imagem de Deus82 e são expressões de semelhan­
ças divinas,83 por participação e representação, segundo muitos
modos. A medida de duração da natureza destas substâncias
está entre entre o tempo e a eternidade,84 e foi denominada evo,
que significa eternidade participada.85 Contudo, as substâncias
separadas têm o poder de operar no tempo, que é sucessivo e
composto de antes e depois, diferentemente da duração que
mede a sua natureza, o evo, que é uno e não tem antes e de­
pois.86 Portanto, é preciso que a medida de duração das suas
operações seja segundo o antes e o depois, dado que elas são

76- Tomás de A quino , De ente et essentia, c. 4.


77- Tomás de A quino , De ente et essentia, c. 4.
78- Tomás de A quino , De ente e t essentia, o. 4.
79- Tomás de A quino , De ente e t essentia, c. 4.
80- Tomás de A quino ,., I, q. 3, a. 3; In I Sent., d. 25, q. 1, a. 3; In ill Sent., d.
5, q. 1, a. 3; Summa contra Gentiles, 4, c. 55; De Potentia Dei, q. 7, a. 4; De
Potentia Dei, q. 9, a. 1; De Spiritualibus Creaturis, a. 5, ad. 9; In VII Met., lec.
11 e In III De anima, lec. 8.
81- Tomás de A quino , Summa Theologiae, I, q. 3, a. 4.
82 - T omás de A quino , Compendium Theologiae, 1, c. 75, n. 132.
8 3 - Tomás de A quino , In I Sent., d. 3, q. 3, a. 1, con.
84- T omás de A quino , In II Sent., d. 2, q. 1, a.1, con.
8 5 - T omás de A quino , Quodlibet., 5, q. 4, a. 7, con.
8 6 - T omás de A quino , In II Sent., d. 2, q. 1, a.2, sed con.

xviii •Sobre os Anjos •Santo Tomás de Aquino


medidas pelo nosso tempo,87 apesar de que um instante88 da sua
operação possa corresponder a muito tempo nosso.89
O elo entre a medida de duração da natureza das subs­
tâncias separadas e a medida de duração das suas operações é
o instante, o agora.90 Cada substância separada é criada ime­
diatamente por Deus como uma forma espiritual. Deus, ao
criá-la, ilumina-a com sua Verdade, Amor, Bondade e Sabe­
doria. N o mesmo instante em que cria iluminando a forma,
ela se realiza individuando-se, ao receber tais iluminações.
Neste sentido, Deus, pela criação e iluminação, é a causa
eficiente da individuação de cada uma das substâncias sepa­
radas,91 mas não o princípio de tal individuação92, enquanto
a forma de cada substância separada, pelo modo de recepção
dela, é o seu próprio princípio de individuação.93 Assim, para
Santo Tomás cada substância separada será especificamente
única, ou seja: n ão há dois anjos d a m esm a espécie, pois cada
um esgota, em sua individualidade, a perfeição formal da
espécie como um todo. Daí dizer-se que o A njo Gabriel é
a própria gabrielidade,94 enquanto Sócrates, por exemplo,

87- Tomás de A quino (?), De Instantibus, c. 4, n. 332.


88- Tomás de A quino (?), De Instantibus, c. 4, n. 334.
89- Tomás de A quino (?), De Instantibus, c. 4, n. 334.
90 - Tomás de A quino (?), De Instantibus, c. 4, n. 333.
91- T omás de A quino , Com pendium Theologiae, 1, c. 75, n. 132.
92- Se Deus fosse tal princípio, deveria atuar intrinsecamente na coisa en­
quanto fosse o seu próprio princípio constitutivo. Mas sabemos que Deus
não é o ser formal das criaturas (T omás de A quino , Summa Theologiae, I,
q. 3, a. 8, con.), e por este motivo não pode ser o próprio princípio de in­
dividuação das coisas, a menos que O identificássem os como elemento
Intrínseco da constituição da coisa. Na verdade, o princípio que indivídua
ilove fazer parte intrinsecamente da substância, e isso não se opõe à noção
de princípio, dado que o podem os considerar como extrínseco ou intrínseco
fi substância. Cf. Tomás de A quino , In V Met., lec. 1, n. 762.
03- Tenham em conta os seguintes estudos para esta questão: C ollins,
.lumes. The Thomistic Philosophy o f the Angels. Washington, Phílosophical
(iliidies 89, 1947; V ernier, Joseph.-Marie. Les Anges chez Saint Thomas
d'Aquin: Fondements Historiques et Principes Philosophiques. Angeologia 3.
f'nris, Nouvelles séditions Latines, 1986; D ankl , Angel. Der B egriff “Geist" bei
1liomas von Aquin. Anápolis, Institutum Sapientiae, 1992, págs. 171-224.
U't “ (.■■) Un puro espírito o form a pura es infinita realmente, pues realmente
etm forma existe en si misma sin ser recibida ni limitada por un sujeto o
potência, cual séria la matéria; en una palabra, es una esencia plena e infi-

Santo Tomás de Aquino •Sobre os Anjos •xix


embora humano, não é a humanidade — pois a perfeição da
essência da espécie humana não se realiza num só indivíduo,
e sim na pluralidade de indivíduos que atualizam diferentes
possibilidades do ser essencial do homem.
Por isso, se admitimos que as substâncias separadas são
absolutamente sem matéria, teremos de conceber que as suas
formas serão os seus próprios princípios de individuação.95

T a u l o F a i t a n i n é professor de Filosofia
da Universidade Federal Fluminense (U FF)

nitamente realizada —v.g.: el ángel Gabriel es la Gabrielidad m ism a—, pues


esta esencia no es recibida en un sujeto material que la coarte y m ultiplique”.
D erisi, Octavio Nicolás. Tratado de Existencialismo y tomismo. Buenos A i­
res: Emecé Editores. 1956, p. 296. Acrescente-se a este texto de Derisi que,
embora não seja lim itado em sua própria essência, o anjo não é Ato Puro em
termos absolutos (simpliciter), porque neste caso ele seria Deus. Nos entes
corpóreos, com postos de matéria e forma, além da diversidade específica,
que provém da forma, há m ultiplicidade individual dentro da mesma espécie,
que provém da matéria — a qual neles é princípio de individuação. Já nos
entes incorpóreos, a diversidade específica não pode vir acompanhada pela
m ultiplicidade de indivíduos dentro de uma mesma espécie, por não terem o
princípio de individuação material. Neles, a forma espiritual (e conseguinte­
mente intelectual) é que delimita a espécie, mas esta não se identifica com o
seu ser em term os absolutos, pois está como em potência em relação ao ser
(Cf. T omás de A quino , Spirituaiibus Creaturis, a. 1, resp.), na m edida em que
o recebeu do Sumo Ser, que é absolutamente imutável.
95- Tomás de A quino , Summa contra Gentiles, 1, c. 21; De Ente et Essentia, c.
4, n. 24; De Spirituaiibus Creaturis, a. 8, ad. 13.

xx •Sobre os Anjos •Santo Tomás de Aquino


N o t a p r é v ia d o t r a d u t o r

Esta tradução do opúsculo de Santo Tomás de Aquino Tra-


tactus de Substantiis Separatis, a que demos o título em português
ile Sobre os Anjos, foi feita a partir de dois originais latinos:
Io — a edição do Padre Francis J. Lescoe, Ph. D., S.T.L.,
Connecticut, West Hartford, Saint Joseph College, Feast of
Assumption, August 15, 1959, baseada em 12 manuscritos me
dievais, com introdução e notas do mesmo editor;
2° — a edição do site “Corpus Thomisticum”, Subsidia
studii ab Enrique Alarcón collecta et edita Pampilonae ad
Universitatis Studiorum Navarrensis aedes A.D. M M V (em
hitp://www.corpusthomisticum.org/), edição esta que reprodu­
zimos espelhada, e cuja permissão de publicação agradecemos
penhoradamente ao Sr. Enrique Alarcón.
A maior parte das notas de rodapé desta tradução foi extra­
ída de Saint Thomas Aquinas, Treatise on Separate Substances,
Translation, Introduction and Notes by Reverend Francis J.
1.escoe, Ph. D., S.T.L., Connecticut, West Hartford, Saint Jose­
ph College, Feast of Assumption, August 15, 1959. As demais
notas são de autoria minha, do revisor Carlos Nougué e do
editor Sidney Silveira. Nestes casos, diferentemente do que se
i lá com as notas do Padre Lescoe (que aparecem sem nenhuma
indicação de autoria), estão indicadas por [n . do T.J, [n . do R.J e
| N. do E.], respectivamente.
Para as citações da Bíblia feitas por Santo Tomás, valemo-
nos sempre que possível da tradução excelente do Padre Matos
Soares (Bíblia Sagrada, São Paulo/Rio de Janeiro/Fortaleza,
Pia Sociedade de São Paulo para o Apostolado da Imprensa,
l'H9), feita da Vulgata. Por vezes recorremos a tradução nos-
ia, feita diretamente de citações do próprio Aquinate; isso
puicm só se deu quando deparamos com discrepâncias de
algum modo significativas entre estas citações do Santo e a
tradução do Padre Matos Soares.

Santo Tomás de Aquino •Sobre m Alljin “ Hl


Algumas das notas de rodapé extraídas da edição do Padre
Lescoe foram reduzidas, sem no entanto perder-se o seu conteú­
do explicativo. As reduções se limitaram a apontamentos acer­
ca da localização, de obras citadas pelo autor, em compilações
posteriores como a Patrologia Migne, ou a edição Dionysiaca;
tal informação se encontra disposta nos próprios índices das
referidas compilações.
Tudo quanto, no corpo do texto ou nas notas de rodapé, está
entre colchetes são inserções do tradutor, do revisor ou do editor.

Luiz A ugusto A storga

xxiv ■Sobre os Anjos ■Santo Tomás de Aquino


Tratado das
Substâncias Separadas
(SOBRE OS ANJOS)

TRATACTUS DE
SUBSTANTIIS SEPARATIS
Prooemium

1 - Quia sacris Angelorum solemniis interesse non


possumus, non debet nobis devotionis tempus transire
in vacuum; sed quod psallendi officio subtrahitur,
scribendi studio compensetur. Intendentes igitur
sanctorum Angelorum excellentiam utcumque depromere,
incipiendum videtur ab his quae de Angelis antiquitus
humana coniectura aestimavit: ut si quid invenerimus fidei
consonum, accipiamus; quae vero doctrinae repugnant
Catholicae, refutemus.

CAPUT I

De opinionibus antiquorum et Platonis

2 - Primi quidem igitur philosophantium de rerum


naturis sola corpora esse aestimaverunt, ponentes prima
rerum principia aliqua corporalia elementa, aut unum
aut plura. Et si unum, aut aquam, ut Thales Milesius; aut
aerem, ut Diogenes; aut ignem, ut Ephasius; aut vaporem,
ut Heraclitus. Et si plura; aut finita, sicut Empedocles
quatuor elementa, et cum his duo moventia, amicitiam
et litem; aut infinita, sicut Democritus et Anaxagoras:
quorum uterque posuit infinitas partes minimas esse
omnium rerum principia; nisi quod Democritus eas posuit
genere similes, differre autem eas solum figura et ordine et
positione; Anaxagoras autem diversarum rerum quae sunt
similium partium, infinitas partes minimas prima rerum
principia aestimavit.
Et quia omnibus inditum fuit in animo ut illud Deum
aestimarent quod esset primum rerum principium; prout

II ■De Substantiis Separates ■S. Thomas de Aquino


P roêmio

1 - Visto que não podemos estar presentes nas sagradas


cerimônias em louvor aos anjos, não nos deve o tempo desta
devoção esvair-se inutilmente; ao contrário, o que é subtraído
do ofício de seus cânticos, que o compensemos escrevendo.
Tendo por objetivo, portanto, externar de todas as maneiras a
excelência dos santos anjos, parece-me que devemos começar
pelo que antigamente considerava a seu respeito a conjectura
humana — para que então aceitemos o que seja conforme à fé,
e refutemos o que repugne à doutrina católica.

C A PÍTU LO 1

S obre os pareceres dos antigos e de P latão

2 - Os primeiros dentre os que filosofavam sobre as natu­


rezas das coisas consideravam que houvesse apenas os corpos,
pondo como princípios primeiros das coisas certos elementos
corpóreos, quer um único, quer mais de um.1 E, se era conside-
i.ido único tal princípio, afirmava-se ser ele ou a água (como
o (azia Tales de Mileto), ou o ar (como Diógenes), ou o fogo
(i nino Heráclito). Se tal princípio era considerado plural, afir­
mava-se ser ele ou finito — como os quatro elementos de Em­
pedocles e, com eles, seus dois motores: amizade’ e discórdia’
ou infinito — como afirmavam Demócrito e Anaxágoras:
ambos estabeleceram partes infinitas mínimas como princípios
de iodas as coisas; mas Demócrito as considerava como seme-
Ihnntes em gênero e diferentes somente em figura, ordem e po-
«Içài ç 1 enquanto Anaxágoras estimava que, no caso de coisas
diversas com partes similares, seus princípios primeiros são as
|'Uiprias partes infinitas mínimas.
E, visto que, para todos esses filósofos, estava implícito no
nu locínio o considerar um princípio primeiro das coisas como

Santo Tomás de Aquino ■Sobre os Anjos •3


quisque eorum alicui corporum auctoritatem attribuebat
primi principii, eidem etiam divinitatis nomen et dignitatem
attribuendam censebat. Quae quidem ideo dicta sunt,
quia his omnibus et eorum sequacibus nullas substantias
incorporeas esse videbatur, quas Angelos nominamus. Sed
Epicurei ex Democriti doctrinis originem sumentes, deos
quosdam ponebant, corporeos quidem utpote humana
figura figuratos, quos dicebant esse penitus otiosos, nihil
curantes, ut sic perpetuis voluptatibus fruentes possent
esse beati. Unde haec opinio intantum invaluit ut usque
ad ludaeos Dei cultores perveniret, quorum Sadducaei
dicebant non esse Angelum neque spiritum.

3 - Huic autem opinioni triplici via antiqui philosophi


restiterunt. Primo namque Anaxagoras, etsi cum ceteris
philosophis naturalibus materialia principia corporalia
poneret, posuit tamen primus inter philosophos
quoddam incorporale principium, scilicet intellectum.
Cum enim, secundum suam positionem, omnia
corporalia in omnibus mixta essent, non videbatur quod
ab invicem corpora distingui potuissent, nisi fuisset
aliquod distinctionis principium, quod ipsum secundum
se penitus esset immixtum, et nihil cum natura corporali
habens commune.
Sed eius opinio etsi in veritate alios praecesserit
qui solum corporalem naturam ponebant, invenitur
tamen a veritate deficere in duobus. Primo quidem
quia, ut ex eius positione apparet, non posuit nisi unum
intellectum separatum, qui hunc mundum effecerat,
commixta distinguendo. Cum autem Deo attribuamus
mundi institutionem, secundum hoc etiam de substantiis
incorporalibus, quas Angelos dicimus, quae sunt infra
Deum et supra naturas corporeas, ex eius opinione nihil
habere poterimus. Secundo, quia etiam circa intellectum,
quern unum ponebat immixtum, in hoc videtur deficere,

IV ■De Substantiis Separatis S. Thomas de Aquino


Deus, na medida em que cada um deles atribuía a algum dos
corpos citados a autoridade de Princípio Primeiro, julgavam-no
também merecedor da dignidade e da denominação de divinda­
de. Isto foi dito pela seguinte razão: para todos eles e seus segui­
dores, não pareciam existir quaisquer substâncias incorpóreas,
substâncias estas que denominamos anjos. Mas os epicuristas,
cuja origem remonta à doutrina de Demócrito, afirmavam a
existência de certos deuses corpóreos, figurados com aparência
quase humana,5 que seriam completamente ociosos e sem preo­
cupações, para que, usufruindo de prazeres perpétuos, pudessem
ser felizes. Assim, esta crença prevaleceu de modo tal, que che­
gou a influenciar até judeus que criam em Deus, dentre os quais
os saduceus, que negavam a existência de anjos e espíritos.6

3 - Os antigos filósofos, porém, contestaram tal pare­


cer de três maneiras. Antes de tudo, ainda que Anaxágoras,
juntamente com os demais filósofos naturalistas, propusesse
princípios corpóreos ou materiais, foi ele o primeiro de todos
a propor um princípio incorpóreo: um intelecto.7 De fato, uma
vez que, segundo sua asserção, todas as coisas corpóreas es­
mo misturadas em tudo, não parecia que os corpos pudessem
ler-se distinguido uns dos outros, se não tivesse havido algum
princípio de distinção — o qual estaria, segundo sua própria
definição, totalmente alheio à mistura, e nada teria em comum
0 >m a natureza corpórea.
Não obstante, embora o parecer de Anaxágoras tenha supe­
rado em verdade aqueles que propunham uma natureza apenas
corpórea, vê-se que ela ainda é deficiente em dois aspectos.
1 Vimeiro, porque, como está patente em sua asserção, ele tão-
somente propôs um único intelecto separado, o qual criou este
inundo distinguindo as coisas, que estavam misturadas. Como,
In>rém, atribuímos a instituição do mundo a Deus, nada podemos
saber, por tal proposição, acerca de seu parecer sobre as substân-
■ias incorpóreas — que denominamos anjos, e que estão abaixo
de Deus e acima das naturezas corpóreas. Segundo, porque, no
i |iie tange a tal intelecto, que Anaxágoras dizia ser único e não-
tuN iirado, podemos ver-lhe outra falta, uma vez que não foram

Santo Tomás de Aquino ■Sobre os Anjos •5


quod eius virtutem et dignitatem non sufficienter expressit.
Non enim aestimavit intellectual, quern posuit separatum,
ut universale essendi principium, sed solum ut principium
distinctivum, non enim ponebat quod corpora invicem
commixta esse haberent ab intellectu separate, sed solum
quod ab eo distinctionem sortirentur.

4 - Unde Plato sufficientiori via processit ad opinionem


primorum naturalium evacuandam. Cum enim apud
antiquos naturales poneretur ab hominibus certam rerum
veritatem sciri non posse, turn propter rerum corporalium
continuum fluxum, turn propter deceptionem sensuum,
quibus corpora cognoscuntur; posuit naturas quasdam
a materia fluxibilium rerum separatas, in quibus esset
veritas fixa; et sic eis inhaerendo anima nostra veritatem
cognosceret. Unde secundum hoc quod intellectus
veritatem cognoscens aliqua seorsum apprehendit praeter
materiam sensibilium rerum, sic existimavit esse aliqua a
sensibilibus separata.
Intellectus autem noster duplici abstractione utitur
circa intelligentiam veritatis. Una quidem secundum quod
apprehendit numeros mathematicos et magnitudines et
figuras mathematicas sine materiae sensibilis intellectu:
non enim intelligendo binarium aut ternarium aut lineam et
superficiem, aut triangulum et quadratum, simul in nostra
apprehensione aliquid cadit quod pertineat ad calidum vel
frigidum, aut aliquid huiusmodi, quod sensu percipi possit.
Alia vero abstractione utitur intellectus noster intelligendo
aliquid universale absque considerationealicuiusparticularis;
puta, cum intelligimus hominem, nihil intelligentes de Socrate
vel Platone aut alio quocumque; et idem apparet in aliis.

5 - Unde Plato duo genera rerum a sensibilibus abstracta


ponebat: scilicet mathematica, et universaiia, quae species
sive ideas nominabat. Inter quae tarnen haec differentia

VI •De Substantiis Separatis •S. Thomas de Aquino


suficientemente expressos [na asserção do Grego] seu poder e
eminência. Ele não considerava tal intelecto, que dizia existir
em separado, como princípio do ser universal, mas apenas como
princípio distintivo — pois não julgava que os corpos misturados
uns aos outros adquirissem o seu ser daquele intelecto separado,
mas sim que dele não recebiam senão a sua distinção.

4 - Desse modo, foi Platão quem procedeu mais eficiente­


mente para refutar o parecer daqueles primeiros naturalistas.8
Como eles afirmavam não ser possível para o homem conhecer
a verdade exata das coisas — tanto por causa do fluxo contínuo
das coisas corpóreas, como por causa da ilusão dos sentidos,
pelos quais se conhecem [somente] os corpos — , Platão propôs
certas naturezas separadas da matéria das coisas que fluem,
nas quais haveria verdade fixa.9 E, assim, apegando-se a elas,
nossa alma conheceria a verdade.10 Logo, pelo fato de que o
intelecto, ao conhecer a verdade, apreende além da matéria das
coisas sensíveis, estimou Platão que existem coisas separadas
das sensíveis.
Nosso intelecto, pois, vale-se de uma dupla abstração no
que tange à compreensão da verdade. Uma tem lugar na apre­
ensão de números matemáticos, magnitudes e figuras mate­
máticas sem intelecção de matéria sensível: quando se dá a
apreensão do número “dois” ou “três”, ou de uma linha, de
uma superfície, de um triângulo ou de um quadrado, nada se
instala em nossa apreensão que seja pertinente ao calor ou ao
frio, ou a nada similar que possa ser percebido pelos sentidos.
A outra abstração, nosso intelecto utiliza-a para inteligir algo
universal sem nenhuma consideração de algo particular: por
exemplo, quando inteligimos “homem” sem a intelecção de
"Sócrates” ou “Platão” ou qualquer outro em particular. E o
mesmo sucede em outras situações."

5 - Logo, Platão propunha dois gêneros de coisas abs­


traídas das sensíveis: as matemáticas e as universais, sendo
estas últimas aquelas a que ele dava o nome já de espécies,12
jfá de idéias.13 E via-se entre elas a seguinte diferença: nas

Santo Tomás de Aquino ■Sobre os Anjos •7


videbatur: quod in mathematicis apprehendere possumus
plura unius speciei, puta duas lineas aequaies, vel duos
triângulos aequilateros et aequaies; quod in speciebus
omnino esse non potest, sed homo in universali acceptus,
secundum speciem est unus tantum. Sic igitur mathematica
ponebat media inter species seu ideas et sensibilia: quae
quidem cum sensibilibus conveniunt in hoc quod plura
sub eadem specie continentur; cum speciebus autem in
hoc quod sunt a materia sensibili separata. In ipsis etiam
speciebus ordinem quemdam ponebat: quia secundum
quod aliquid erat Simplicius in inteilectu, secundum hoc prius
erat in ordine rerum. Id autem quod primo est in inteilectu,
est unum et bonum: nihil enim intelligit qui non intelligit
unum; unum autem et bonum se consequuntur: unde ipsam
primam ideam unius, quod nominabat secundum se unum
et secundum se bonum, primum rerum principium esse
ponebat, et hune summum Deum esse dicebat. Sub hoc
autem uno diversos ordines participantium et participatorum
instituebat in substantiis a materia separatis: quos quidem
ordines deos secundos esse dicebat, quasi quasdam
unitates secundas post primam simplicem unitatem.

6 - Rursus, quia sicut omnes aliae species


participant uno, ita etiam oportet quod intellectus, ad
hoc quod intelligat, participet entium speciebus. Ideo
sicut sub summo Deo, qui est unitas prima, simplex et
imparticipata, sunt aliae rerum species quasi unitates
secundae et dii secundi; ita sub ordine harum specierum
sive unitatum ponebat ordinem intellectuum separatorum,
qui participant supradictas species ad hoc quod sint
intelligentes in actu: inter quos tanto unusquisque est
superior, quanto propinquior est primo intellects, qui
plenam habet participationem specierum, sicut et in
diis sive unitatibus tanto unusquisque est superior,
quanto perfectius participât unitate prima. Separando

VIII •De Substantiis Separatis •S. Thomas de Aquino


matemáticas, podemos apreender várias coisas de uma só
espécie,14 como duas linhas iguais ou dois triângulos eqüilá-
teros iguais, o que, no caso das espécies não poderia ocorrer,
porque “homem”, tomado universalmente, é somente um
segundo espécie. Ele, portanto, considerava as coisas mate-
máticas como intermediárias entre as formas ou idéias e as
coisas sensíveis: assim como se dá com as sensíveis, várias
delas podem estar contidas numa mesma espécie; e, assim
como se dá com as formas, elas existem separadamente da
matéria sensível.15 Também nas próprias formas dizia ele ha­
ver certa ordem, pois, na medida em que algo é mais simples
no intelecto, este algo é anterior na ordem das coisas. Mas
este algo que é primeiro no intelecto é o uno e o bem, uma
vez que aquele que não intelige o uno, este nada intelige,
pois o uno e o bem acompanham um ao outro. Daí a pri­
meira idéia do Uno, que Platão denominava o Uno em si e
0 Bem em si, considerando-o como princípio das coisas e
dizendo-o o Sumo Bem.11’ Abaixo deste Uno, ele estabelecia
nas substâncias separadas da m atéria17 diversas ordens de se­
res participantes e participados, ordens estas que considera­
va deuses secundários,18 como se fossem unidades segundas
abaixo de uma primeira e simples unidade.19

6 - Ademais, assim como todas as outras formas participam


do Uno, assim também é necessário que o intelecto, no ato de
apreender, participe das formas dos entes.20 Por conseguinte,
assim como abaixo do sumo Deus — que é a unidade primeira,
simples e não-participada — existem outras formas de coisas
consideradas como deuses e unidades secundárias, assim Platão
propunha que existem também, abaixo da ordem destas formas
1 ui unidades, uma ordem de intelectos separados, que participam
das formas supramencionadas com o fim de pôr em ato sua in-
Iclecção.21 Entre estes intelectos, um é tanto mais elevado que
outro quanto mais próximo esteja do intelecto primeiro, o qual
tem plena participação nas formas; e igualmente, entre os deu-
»es o u unidades, são mais elevados os que mais perfeitamente

participam da unidade primeira. Apesar de separar os deuses

Santo Tomás de Aquino •Sobre os Anjos ■9


matemáticas, podemos apreender várias coisas de uma só
espécie,14 como duas linhas iguais ou dois triângulos eqüilá-
leros iguais, o que, no caso das espécies não poderia ocorrer,
porque “homem”, tomado universalmente, é somente um
segundo espécie. Ele, portanto, considerava as coisas mate­
máticas como intermediárias entre as formas ou idéias e as
coisas sensíveis: assim como se dá com as sensíveis, várias
delas podem estar contidas numa mesma espécie; e, assim
como se dá com as formas, elas existem separadamente da
matéria sensível.15 Também nas próprias formas dizia ele ha­
ver certa ordem, pois, na medida em que algo é mais simples
no intelecto, este algo é anterior na ordem das coisas. Mas
este algo que é primeiro no intelecto é o uno e o bem, uma
vez que aquele que não intelige o uno, este nada intelige,
pois o uno e o bem acompanham um ao outro. Daí a pri­
meira idéia do Uno, que Platão denominava o Uno em si e
o Bem em si, considerando-o como princípio das coisas e
dizendo-o o Sumo Bem.16 A baixo deste Uno, ele estabelecia
nas substâncias separadas da matéria17 diversas ordens de se­
res participantes e participados, ordens estas que considera­
va deuses secundários,18 como se fossem unidades segundas
abaixo de uma primeira e simples unidade.19

6 - Ademais, assim como todas as outras formas participam


do Uno, assim também é necessário que o intelecto, no ato de
apreender, participe das formas dos entes.20 Por conseguinte,
assim como abaixo do sumo Deus — que é a unidade primeira,
simples e não-participada — existem outras formas de coisas
consideradas como deuses e unidades secundárias, assim Platão
propunha que existem também, abaixo da ordem destas formas
ou unidades, uma ordem de intelectos separados, que participam
tias formas supramencionadas com o fim de pôr em ato sua in-
iclecção.21 Entre estes intelectos, um é tanto mais elevado que
outro quanto mais próximo esteja do intelecto primeiro, o qual
icm plena participação nas formas; e igualmente, entre os deu­
ses ou unidades, são mais elevados os que mais perfeitamente
participam da unidade primeira. Apesar de separar os deuses

Santo Tomás de Aquino ■Sobre os Anjos •9


autem in te lle c ts a diis, non excludebat quin dii essent
intelligentes; sed volebat quod superintellectualiter
intelligerent, non quidem quasi participantes aliquas
species, sed per se ipsos; ita tamen quod nullus eorum
esset bonus et unum nisi per participationem primi unius
et boni. Rursus, quia animas quasdam intelligentes
videmus; non autem convenit hoc animae ex eo quod
est anima (alioquin sequeretur quod omnis anima esset
intelligens, et quod anima secundum totum id quod est,
esset intelligens) ponebat ulterius, quod sub ordine
intellectuum separatorum esset ordo animarum; quarum
quaedam, superiores videlicet, participant intellectuali
virtute, infimae vero ab hac virtute deficiunt.
Rursus, quia corpora videntur non per se moveri nisi
sint animata, hoc ipsum quod est per se moveri, ponebat
corporibusaccidere inquantum participabantanimarmnam
ilia corpora quae ab animae participatione deficiunt, non
moventur nisi ab alio. Unde ponebat animabus proprium
esse quod se ipsas moverent secundum se ipsas.

7 - Sic igitur sub ordine animarum ponebat ordinem


corporum; ita tamen quod supremum corporum, scilicet
primum caelum, quod primo motu movetur, participât
motum a suprema anima, et sic deinceps usque ad infimum
caelestium corporum. Sub his autem ponebant Platonici et
alia immortalia corpora, quae perpetuo animas participant,
scilicet aerea vel aetherea. Horum autem quaedam
ponebant a terrenis corporibus esse penitus absoluta, quae
dicebant esse corpora Daemonum; quaedam vero terrenis
corporibus indita, quod pertinet ad animas hominum. Non
enim ponebant, hoc corpus terrenum humanum, quod
palpamus et videmus, immediate participare animam;
sed esse aliud interius corpus animae incorruptibile et
perpetuum, sicut et ipsa anima incorruptibilis est; ita quod
anima cum suo perpetuo invisibilicorpore est in hoccorpore

X ■De Substantiis Separatis •S. Thomas do Aquino


dos intelectos, Platão não negava que aqueles fossem dotados
de intelecto, conquanto pretendesse, sim, que são inteligentes
de modo supra-intelectual, não formando o entendimento das
coisas mediante a participação em outras formas, mas em e por
si mesmos. Não obstante, afirmava também que nenhum deles
poderia ser bom e uno senão mediante a participação no Sumo
Bem e Sumo Uno. Por outro lado, se vemos que as almas são
inteligentes, tal característica não convém à alma pelo puro fato
de ser alma, porque, se assim fosse, sucederia que toda e qualquer
alma seria inteligente; que a alma seria inteligente por aquilo
mesmo por que ela é alma. Assim, afirmava Platão mais adiante
que, abaixo da ordem dos intelectos separados, há uma ordem de
almas — dentre as quais, algumas, superiores, participam da po-
tência intelectual, enquanto outras, inferiores, dela carecem.22
Ademais, visto que os corpos não se movem sem ser anima­
dos,23 dizia Platão que aquilo mesmo que é o “mover-se autônomo”
só acompanha o corpo na medida em que este participa de uma
alma: de fato, aqueles corpos que carecem da participação numa
alma não se movem, mas são movidos por outro. Por isto, afirmava
ele que é próprio das almas moverem-se por si mesmas.24

7 —Assim, pois, abaixo da ordem das almas, ele propunha


uma ordem dos corpos. Igualmente, porém, propunha que o
corpo supremo — que é o primeiro céu, e que se move a si
próprio — participa no movimento a partir da alma suprema
e assim sucessivamente, até o mais ínfimo dos corpos celes­
tes. Abaixo destes, ademais, os platônicos punham os corpos
imortais, chamados aéreos ou etéreos, e que participam perpe­
tuamente de almas. Dentre estes, alguns eram considerados de
todo alheios aos corpos terrenos, e eram chamados corpos de
demônios.25 Já outros, diziam eles, se encontravam postos em
corpos terrenos, o que é o caso das almas dos homens.26 Não
julgavam, pois, que este corpo terreno humano, que tocamos
e vemos, participasse de modo imediato da alma, mas sim que
houvesse outro corpo, interno, incorruptível e perpétuo, assim
como é incorruptível a própria alma;27 segundo este raciocí­
nio, a alma, com seu corpo perpétuo e invisível, estaria neste

Santo Tomás de Aquino •Sobre os Anjos ■11


grossiori non sicut forma in materia, sed sicut nauta in navi.
Et sicut hominum quosdam dicebant esse bonos, quosdam
autem malos, ita et Daemonum. Animas autem caelestes et
in te lle c ts separates et deos omnes dicebant esse bonos.
Sic igitur patet quod inter nos et summum Deum
quatuor ordines ponebant: scilicet deorum secundorum,
intellectuum separatorum, animarum caelestium, et
Daemonum bonorum seu malorum. Quae si vera essent,
omnes huiusmodimedii ordines apud nos Angelorum nomine
censerentur. Nam et Daemones in sacra Scriptura Angeli
nominantur, ipsae etiam animae caelestium corporum, si
tarnen sint animata, inter Angelos sunt connumerandae, ut
Augustinus definit in Enchiridion.

XII •De Substantiis Separatis ■S. Thomas de Aquino


i <>rpo mais denso não como uma forma na matéria, mas como
nm marinheiro num barco.28 E diziam que, assim como certos
Iii iinens são bons e outros maus, assim também se passa entre
cis demônios. Não obstante, as almas celestes, os intelectos se-
parados e todos os deuses eram ditos bons.29
Desse modo, é evidente que propunham haver, entre nós
c o sumo Deus, quatro ordens: a dos deuses secundários, a dos
intelectos secundários, a das almas celestes e a dos demônios,
bons ou maus. Se tal raciocínio fosse verdadeiro, então a todas
essas ordens lhes teríamos de dar o nome de anjos. De fato,
porém, na Sagrada Escritura também os demônios são chama-
dos anjos,30 e até as próprias almas dos corpos celestes, caso
sejam estes animados, devem ser contadas entre os anjos, como
define Agostinho no Enchridion?1

Santo Tomás de Aquino ■Sobre os Anjos • 13


N otas — Capítulo 1

1 - A ristóteles , M etafísica, I, 3 - 4 (983b 6 -9 8 5 b 22); III, 5 (1002a 8); Física,


IV, 6 (213a 29); S anto A gostinho , De Civitate Dei, VIII, 2. Para o uso que faz
Santo Tomás destes textos, cf. Sum ma Theologiae, I, 44, 2; De S p iritu a li-
bus Creaturis, a. 10 ad 8; Quaestiones D isputatae de Potentia, III, 5.
2 - Lat. “amicitiam et litem", binômio por vezes também traduzido como
“Am or e Discórdia”, ou “Atração e Repulsa”, [n . do t.]
3 - A ristóteles, Física, I, 5 (188b 34).
4 - A ristóteles, Metafísica, I, 4 (985b 3-20); L ucrécio , De Rerum Natura,
I, 421 ss.; cf. F reeman , Kathleen, Ancilla to the Pre-Socratic Philosophers,
Oxford: Blackwell, 1948, pp. 91-120; The Pre-Socratic Philosophers, Oxford:
Blackwell, 1946, pp. 289-326.
5 - Tomás de A quino , in De Spiritualibus Creaturis, a. 5, chama-os "anthropo-
morphitae"-, cf. S anto A gostinho , Epistuiae, 148, IV.
6 - At., XXIII, 8; cf. T omás de A quino , Summa Theologiae, I, 50, 1.
7 - A ristóteles, Metafísica, I , 3 (984a 15-22); I, 8 (989a 3 0 -9 8 9 b 21); Física,
VIII, 1 (250b 24); P latão, Fédon, 97A.
8 - A ristóteles, Metafísica, I, 6 -7 (987a 3 0 -9 8 8 b 16); I, 9 (992b 7); IV, 5
(1009a 38-1009b 33).
9 - P latão , Fédon, 96a, 100D; Teeteto, 156A; cf. A ristóteles, Metafísica, I, 9
(991b 3).
10 - Cf. S anto A gostinho , Liber LXXXIII Quaestionum, q. 46; A vicena , Meta-
physica, VII, 2 (foi. 96ra).
11 - T omás de A quino , Expositio super librum Boethii de Trinitate, q. 5, a. 1.
12 - Aqui, “ e sp é cie s” = “ fo rm a s” . A resp e ito de “ e sp é cie ”, cf. abaixo,
nota 14. [n . do r.]
13 - A ristóteles, Metafísica, VII, 2 (1028b 20); XIII, 1 (1076a 20).
14 - Em Santo Tomás, há diferentes sentidos para o termo “espécie” [lat.
species,ei], Um deles refere-se às imagens (phantásmata) apreendidas pe­
los sentidos. Neste caso, trata-se das qualidades sensíveis que, após serem
captadas pelos cinco sentidos externos (visão, audição, tato, olfato e pala­
dar) e pelos quatro sentidos internos (senso comum, memória, imaginação
e cogitativa), são iluminadas pelo intelecto agente (intellectus lumen agens)
e impressas no intelecto possível, que é pura potência intelectiva. Assim, as
imagens (ou seja, as species), cuja íntelegibilidade está em potência quando
são captadas pelos sentidos, se tornam inteligíveis em ato pela ação do in­
telecto agente, que, na term inologia tom ista, designa a conaturalidade entre
a razão especulativa e os primeiros princípios da demonstração. Cf. Tomás
de A quino , De Veritate, q. 11, a. 1. Eis, em resumo, o caminho cognoscitivo,
de acordo com a doutrina de Santo Tomás: das espécies sensíveis, o inte­
lecto agente abstrai as espécies inteligíveis, que, sendo impressas nessa
tabula rasa que é o intelecto possível, produzem o conhecimento. Contra
aqueles que propunham a existência separada de um só intelecto possível
para todos os homens, o Aquinate conclui serem ambos os intelectos fun­
ções distintas da mesma potência intelectiva da alma. Cf. Tomás de A quino ,
De Unitate Intellectus Contra Averroistas, IV-V. — Outra acepção que cabe
destacar é recorrente neste De Substantiis Separatis, e acontece quando a

XtV ■De Substantifs Senaratis ■S. Thomas dr Aquino


species latina traduz o grego eidos e se refere à “ form a”, que, no vocabulário
platônico, designa a determinação de uma essência pura (Idéia). Todas as
poucas vezes, no presente tratado, em que Santo Tomás se refere a “es­
pécie” no sentido platônico ora indicado, optam os (em concordância com
a tradução inglesa do Padre Lescoe) por verter o vocábulo latino species
por “ form a”, por fidelidade à intenção do Aquinate — e, também, em prol
de uma melhor inteligibilidade. Para outras acepções do vocábulo species
no glossário tom ista, ver Tomás de A quino , Sobre o M al (De Maio), Rio de
•laneiro: Sétim o Selo, 2005, p. 29. [n . do e. e do t.]
15 - A ristóteles, Metafísica, I, 6 (987b 14-18).
16 - P latão, República, VI, 508C; A ristóteles , Ética, I, 6 (1096a 22-23;
1096a 35-1096b 3); S anto A gostinho , De Civitate Dei, VIII, 8. Cf. P roclo ,
I lem entatio Theologica, Props. 12, 13, 20,119.
17 - P roclo, Elementatio Theologica, Props. 63,129,139.
18 - N emésio , De Natura Hom inis, 44; S anto A gostinho , De Civitate Dei,
XIII, 16.
I!) - P roclo, Elementatio Theologica, Props. 6,14, 21,116.
20 - Cf. acim a, cap. I, n° 4; P roclo , E le m e n tatio T he o lo g ica , Props.
114, 161.
21 - P latão, Timeu, 33A ss; A ristóteles , Sobre a Alm a, I, 3 (406b 2 5 -4 0 7 b
20); cf. P roclo , Elem entatio Theologica, Props. 129, 161 ; C ornford ,
I nineis M., Plato's Cosm ology, New York: H arcourt, Brace & Co., 1937,
pp. 117 ss.
22 - Esta divisão em deuses, intelectos e almas parece ter sido tomada dire-
Im nentede P roclo, Elementatio Theologica, Props. 12,13, 20,113, 116, 119,
121,184, 189, 190,196; Tom As de A quino , In Librum de Causis, Props. 2 ss.
23 - l.e., dotados de alma. [ n . do t.]
24 - P latão, Fedro, 246A; P roclo, Elementatio Theologica, Props. 20,188,201.
23 - Lat. “corpora daem onum ". A noção tem origem em Sócrates, o qual,
por falar de um daim ónion (ou gênio, ou a voz de um gênio) que não raro
o salvara de perigos ou experiências nefastas, foi acusado de introduzir
novos “dem ônios” (daímones) ou novas divindades na pólis. Depois de
f iócrates, e ainda no âm bito da filosofia grega, passou-se a cham ar dem ô­
nios às divindades inferiores ou subordinadas, adm itidas já pela religião
Imlrtnica tradicional. Platão (in Timeu, 41 a) iria dizer que tais divindades
fntmn criadas pelo próprio Demiurgo, noção que, mais tarde, abraçariam
ou ostóicos. Plotino (in Enéadas, VI, 7, 6) viria a alterar a noção, afirm an­
do que os demônios são “ imagens de Deus” , e que com o tais estão na
"Boqunda ordem ”, abaixo dos deuses e acima, pois, dos homens e dos
animais. O neoplatonism o siríaco, por seu turno, através de Plutarco e ou-
lioti, m ultiplicaria o número dos demônios, dizendo-os emanações mais ou
monos remotas da divindade superior. Todavia, já o Antigo Testamento e
n ( '.iistianismo chamavam anjos às criaturas incorpóreas que atuam como
uiI mimediários entre o Criador e as criaturas corpóreas, o que, no século V
d ( : ., seria teologicam ente sistem atizado por P seudo D ionísio , em De Cae-
ie - , h Hierarchia. [ n . do r .]

3i'i Cf. S anto A gostinho , De Civitate Dei, VIII, 13, 16; IX, 8; XIII, 16. Sobre
na dnmôníos na literatura neoplatônica, cf. P roclo, Elementatio Theologica,
pmps. 294-296; 313-321; T omás de A quino , In Librum de Causis, Prop. 19.
ít P roclo , Elementatio Theologica, P ro p . 1 9 6 .

Santo Tomás de Aquino •Sobre o Mal •15


28 - A ristóteles, Sobre a Alma, II, 1 (413a 8); T omás de A quino , In De Anima, II,
lect. 2; cf. N emésio , De Natura Hominis, I, III; P roclo , Elementatio Theologica,
Props. 186, 187.
29 - S anto A gostinho , De Civitate Dei, IX, 1, 2.
30 - Cf. Mat., XXII, 30; XXV, 41.
31 - S anto A gostinho , Enchridion de Fide, Spe et Caritate, 58 ; P egis, An­
ton C., Cosmogony and Knowledge, I, St. Thomas and Plato, in Thought,
XVIII, n° 71, 1943, pp. 643-664; The Dilemma o f Being and Unity, in Essays
in Thomism, New York: R.E. Brennan, 1942, pp. 179-183; Si. Thomas and the
Problem o f the Soul in the Thirteenth Century, Toronto: Pontifical Institute of
Medieval Studies, 1934, pp. 147 ss; St. Thomas and the Greeks, Milwaukee:
M arquette University Press, 1939, pp.9 ss.

XVI •De Substantiis Separatis ■S. Thomas de Aquino


Santo Tomás de Aquino ■Sobre os Anjos ■ 17
CAPUT II

De opinione Aristotilis

8 - Huius autem positionis radix invenitur efficaciam


non habere. Non enim necesse est ut ea quae in te lle c ts
separatim intelligit, separatim esse habeant in rerum
natura: unde nec universalia oportet separata ponere ut
subsistentia praeter singularia, neque etiam mathematics
praeter sensibilia: quia universalia sunt essentiae ipsorum
particularium, et mathematica sunt terminationes quaedam
sensibilium corporum. Et ideo Aristoteles manifestiori
et certiori via processit ad investigandum substantias a
materia separatas, scilicet per viam motus.
Primo quidem constituens et ratione et exemplis, omne
quod movetur ab alio moveri; et si aliquid a se ipso moveri
dicatur, hoc non est secundum idem, sed secundum diversas
sui partes, ita scilicet quod una pars eius sit movens, et alia
mota. Et cum non sit procedere in infinitum in moventibus et
motis, quia remoto primo movente, esset consequens etiam
alia removed; oportet devenire ad aliquod primum movens
immobile et ad aliquod primum mobile, quod movetur a se
ipso eo modo quo dictum est: semper enim quod per se
ipsum est, est prius et causa eius quod per aliud est.
Rursus constituere intendit motus aeternitatem et quod
nulla virtus movere potest tempore infinito, nisi infinita,
itemque quod nulla virtus magnitudinis sit virtus infinita.
Ex quibus concludit, quod virtus primi motoris non est
virtus corporis alicuius: unde oportet primum motorem
esse incorporeum, et absque magnitudine.

9 - Itemque cum in genere mobilium inveniatur appetibile,


sicut movens non motum; appetens autem sicut movens
motum; concludebat ulterius, quod primum movens immobile

XVIII •De Substantiis Separatis •S. Thomas de Aquino


CAPÍTULO 2
S obre o parecer de A ristóteles

8 - Vemos, porém, que a raiz do raciocínio [anterior] não


tem eficácia: não é necessário que aquilo que o intelecto inteli-
ge tenha ser separadamente nas coisas da natureza. Do mesmo
modo, tampouco é preciso propor a subsistência dos universais
fora dos singulares, nem a dos matemáticos fora das coisas sen­
síveis, uma vez que os universais são as essências dos próprios
particulares, e os matemáticos são as delimitações dos corpos
sensíveis.32 Por isso, Aristóteles tomou uma via mais certa e
manifesta, a do movimento,33 para investigar as substâncias
separadas da matéria.34
Primeiro, estabeleceu, através da razão e de exemplos, que
tudo o que se move é movido por outro; e que, se dizemos que
algo se move por si próprio, isto não ocorre segundo ele mes­
mo, mas segundo suas diversas partes, de modo que uma parte
dele é motora, e a outra, movida.35 E, como não existe uma
procedência ad infinitum na relação entre motores e movidos
— visto que, sendo removido o primeiro motor, se terá como
conseqüência a remoção de todos os demais — , é necessário
encontrar tanto um motor primeiro e imóvel, como um pri­
meiro móvel que se mova a si próprio do modo referido, uma
vez que aquilo que é por si mesmo é considerado anterior a — e
causa de — algo que não é senão por meio de outro.36
Ademais, Aristóteles buscou estabelecer a eternidade do
movimento e a condição de que apenas um poder infinito pode
mover por tempo infinito; e também que, desse modo, nenhum
poder que possua magnitude é um poder infinito.37 A partir
destas premissas, concluiu que o poder do primeiro motor não
pertence a nenhum corpo, e que, portanto, é necessário que o
primeiro motor seja incorpóreo e alheio à magnitude.38

9 - Desse modo, assim como, no gênero das coisas móveis,


aquilo que é apetecível se apresenta como motor não-movido
e aquilo que apetece se apresenta como motor movido, con­
cluía Aristóteles, mais adiante, que o Primeiro Motor imóvel

Santo Tomás de Aquino ■Sobre os Anjos • 19


est sicut bonum quoddam appetibile; et quod primum movens
se ipsum quod est primum mobile, movetur per appetitum
ipsius. Est autem considerandum ulterius, quod in ordine
appetituum et appetibilium primum est quod est secundum
intellectum: nam appetitus intellectivus appetit id quod est
secundum se bonum; appetitus autem sensitivus non potest
attingere ad appetendum quod est secundum se bonum, sed
solum ad appetendum id quod videtur bonum. Bonum enim
simpliciter et absolute non cadit sub apprehensione sensus,
sed solius intellects. Unde relinquitur quod primum mobile
appetit primum movens appetitu intellectuali. Ex quo potest
concludi, quod primum mobile sit appetens et intelligens. Et
cum nihil moveatur nisi corpus, potest concludi, quod primum
mobile sit corpus animatum anima intellectuali. Non autem
solum primum mobile, quod est primum caelum, movetur
motu aeterno, sed etiam omnes inferiores orbes caelestium
corporum: unde et unumquodque caelestium corporum
animatum est propria anima, et unumquodque habet suum
appetibile separatum, quod est proprius finis sui motus.

10 - Sic igitur sunt multae substantiae separatae nullis


penitus unitae corporlbus. Sunt etiam multae intellectuals
substantiae caelestibus corporibus unitae. Harum autem
numerum Aristoteles investigare conatur secundum numerum
motuum caelestium corporum. Quidam autem de eius
sectatoribus, scilicet Avicenna, numerum earum assignat
non quidem secundum numerum motuum, sed magis
secundum numerum planetarum, et aliorum superiorum
corporum, scilicet orbis stellati et orbis qui est sine stellis.
Multi enim motus ordinari videntur ad motum unius stellae;
et sicut omnia alia corpora caelestia sub uno supremo
caelo continentur, cuius motu omnia alia revolvuntur;
ita etiam sub prima substantia separata, quae est unus
Deus, omnes aliae substantiae separatae ordinantur, et
similiter sub anima primi caeli omnes caelorum animae.

XX •De Substantiis Separatis ■S. Thomas de Aquino


é como um bem apetecível, e que o primeiro móvel — o que
primeiro se move a si próprio — o faz mediante o apetite
de si mesmo.39 Deve-se considerar ainda, no entanto, que, na
ordem dos apetites e apetecíveis, é primeiro aquilo que é se­
gundo o intelecto: de fato, o apetite intelectivo busca o que é
bom em si, enquanto o apetite sensitivo não é capaz de buscar
o que é bom em si, mas somente o que parece bom. Sim,
porque o bem simplicitei40 não é passível de apreensão pelos
sentidos, mas somente pelo intelecto. Vê-se, por conseguinte,
que o primeiro móvel apetece o primeiro motor mediante um
apetite intelectual, donde se pode concluir que o primeiro
móvel seja apetente e inteligente. E, visto que não se move
senão o que é corpo, pode-se inferir que o primeiro corpo seja
animado por uma alma intelectual. Mas não só o primeiro
móvel, que é o primeiro céu, é movido por um movimento
eterno; também o são as esferas inferiores dos corpos celes­
tes.41 Assim, também cada um dos corpos celestes é animado
por uma alma própria, e cada um possui seu objeto apetecível
separado, que é o próprio fim de seu movimento.

10 - Assim, pois, há várias substâncias separadas não


unidas a corpos. Há também várias substâncias intelectuais
unidas a corpos celestes. Seu número, porém, Aristóteles
busca investigá-lo através do número de movimentos dos
corpos celestes.42 Por seu turno, um de seus seguidores, Avi-
cena,43 determina o número destas substâncias não através
do número de movimentos, mas do número de planetas e de
outros corpos superiores — ou seja, a esfera estrelada e a es-
lera sem estrelas — , uma vez que se veem muitos movimen­
tos ordenar-se pelo movimento de uma única estrela, e que,
assim como todos os outros corpos celestes estão contidos
num único céu supremo — através de cujo movimento todos
orbitam — , assim também todas as substâncias separadas se
ordenam abaixo de uma única substância separada primeira,
que é o Deus uno. E igualmente o fazem as almas de todos
os céus, abaixo da alma do primeiro céu. Mas abaixo dos
r orpos celestes, segundo Aristóteles, não seriam animados

Santo Tomás de Aquino ■Sobre os Anjos •21


Sub corporibus autem caelestibus secundum Aristotelem
ponuntur animata sola corpora animalium et plantarum.
Non enim posuit quod aliquod simplex elementare corpus
possit esse animatum, quia corpus simplex non potest
esse conveniens organum tactus, quod est de necessitate
cuiuslibet animalis: unde inter nos et corpora caelestia
nullum intermedium corpus animatum ponebat.
Sic igitur secundum Aristotelis positionem, inter nos et
summum Deum non ponitur nisi duplex ordo intellectualium
substantiarum: scilicet substantiae separatae, quae sunt
fines caelestium motuum; et animae orbium, quae sunt
moventes per appetitum et desiderium.

11 - Haec autem Aristotelis positio certior quidem


videtur, eo quod non multum recedit ab his quae sunt
manifesta secundum sensum; tamen minus sufficiens
videtur quam Platonis positio.
Primo quidem, quia multa secundum sensum apparent
quorum ratio reddi non potest secundum ea quae ab Aristotele
traduntur. Apparent enim in hominibus qui a Daemonibus
opprimuntur, et in magorum operibus, aliqua quae fieri non
posse videntur nisi per aliquam intellectualem substantiam.
Tentaverunt igitur quidam sectatorum Aristotelis, ut patet in
epistola Porphyrii ad Anebontem Aegyptium, horum causas
reducere in virtutem caelestium corporum, quasi sub
quibusdam certis constellationibus magorum opera effectus
quosdam insolitos et mirabiles assequantur, ex stellarum
etiam impressionibus esse dicunt; quod arreptitii interdum
aliqua futura praenuntiant, ad quorum eventum fit quaedam
dispositio in natura per caelestia corpora. Sed manifeste
sunt in talibus quaedam opera quae nullo modo possunt in
causam corporalem reduci: sicut quod arreptitii interdum
de scientiis loquuntur quas ignorant, litteraliter loquuntur,
cum sint simplices idiotae; et qui vix villam unde nati sunt,
exierunt, alienae gentis vulgare polite loquuntur. Dicuntur

XXII •De Substantiis Separatis •S. Thomas de Aquino


senão os corpos dos animais e os das plantas;44 ele não esti­
mava, de fato, que algum simples corpo elementar pudesse
ser animado, pois que um corpo simples não pode abrigar
um órgão de tato, necessário a qualquer animal.4’ Por isso,
entre nós e os corpos celestes, ele não encontrava nenhum
corpo animado intermediário.
Desse modo, portanto, segundo o parecer de Aristóteles,
nada se interpõe entre nós e o sumo Deus senão uma dupla
ordem de substâncias intelectuais: as substâncias separadas,
que são os fins dos movimentos celestes, e as almas das esferas,
que se movem mediante apetite e desejo.

11 - Pois bem, esta afirmação de Aristóteles parece mais


segura, por não se afastar demasiado daquilo que é evidente
para os sentidos. Não obstante, parece menos adequada que a
visão de Platão.
Primeiro, porque se dão a conhecer, segundo os sentidos,
muitas coisas cujas razões não podem ser explicadas pelo que
afirmou Aristóteles. De fato, em homens oprimidos por demô­
nios e nos trabalhos de magos, sucedem coisas que parece não
poder suceder senão mediante alguma substância intelectual.
Certos seguidores de Aristóteles, por conseguinte, tentaram
(como está evidente na Carta de Porfírio a Anebontes, o Egíjf>-
cio)46 remeter as causas [de tais fenômenos] ao poder dos cor­
pos celestes, como se as obras de certos magos alcançassem
efeitos insólitos e admiráveis sob a influência de determinadas
constelações. Dizem eles também que é sob a influência das es­
trelas que pessoas arrebatadas4' às vezes predizem fatos futuros
— para cuja realização se opera, através dos corpos celestes,
certa disposição na natureza. Evidentemente, porém, há casos
tais em que as obras não podem de modo algum remeter-se
a uma causa corpórea: por exemplo, pessoas arrebatadas que
discursam sobre ciências que ignoram; que falam de modo cul­
to e instruído, conquanto sejam simples e ignorantes; e que,
embora nunca tenham deixado a vila onde nasceram, falam
lluentemente o vernáculo de um povo estrangeiro. Refere-se
também que, em trabalhos de magos, surgem certas imagens

Santo Tomás de Aquino Sobre os Anjos •2 3


etiam in magorum operibus quaedam imagines fieri, responsa
dantes, et se moventes: quae nullo modo per aliquam causam
corporalem perfici possent. Huiusmodi autem effectuum
causam plane quis poterit secundum Platonicos assignare, si
dicantur haec per Daemones procreari.

12 - Secundo, quia inconveniens videtur immateriales


substantias ad numerum corporalium substantiarum
coarctari. Non enim ea quae sunt superiora in entibus, sunt
propterea quae in eis sunt inferiora, sed potiuse converso: id
enim propter quod aliquid est, nobilius est. Rationem autem
finis non sufficienter aliquis accipere potest ex his quae
sunt ad finem, sed potius e converso. Unde magnitudinem
et virtutem superiorum rerum non sufficienter aliquis
accipere potest ex inferiorum rerum consideratione: quod
manifeste apparet in corporalium ordine. Non enim posset
caelestium corporum magnitudo et numerus accipi ex
elementarium corporum dispositione, quae quasi nihil sunt
in comparatione ad ilia. Plus autem excedunt immateriales
substantiae substantias corporales, quam corpora
caelestia excedant elementaria corpora. Unde numerus et
virtus et dispositio immaterialium substantiarum ex numero
caelestium motuum sufficienter apprehendi non potest.

13 - Et ut hoc specialius manifestetur, ipse processus, ipsa


verba probationis Aristotilis assumantur. Assumit enim quod
nullus motus potest esse in caelo nisi ordinatus ad alicuius
delationem: quod satis probabilitatem habet. Omnes enim
substantiae orbium esse videntur propter astra, quae sunt
nobiliora inter caelestia corpora, et manifestiorem effectum
habentia. Ulterius autem assumit quod omnes substantiae
superiores, impassibiles et immateriales, sunt fines, cum sint
secundum se optima: et hoc quidem rationabiliter dicitur.
Nam bonum habet rationem finis: unde ilia quae sunt per se
optima in entibus, sunt fines aliorum. Sed quod concludit,

XXIV ■De Substantiis Separatis •S. Thomas de Aquino


que se movem e respondem a questões, coisas que não pode-
i iam suceder por uma causa corpórea. Mas podem-se designar
(1aramente as causas de tais efeitos através do que dizem os
platônicos, a saber, que são produzidos por demônios.

12 - Segundo, porque parece impróprio que as substâncias


imateriais estejam vinculadas ao número de substâncias cor-
póreas; nos entes, as coisas que são superiores não existem em
Iunção daquelas que neles são inferiores; dá-se antes o con-
i rário: aquilo por que algo existe é o que de mais elevado há
nele. E não se pode suficientemente definir a razão de um fim
por coisas que existem para este fim; dá-se antes o contrário.
Logo, a magnitude e o poder das coisas superiores não podem
ser suficientemente definidos mediante a consideração das
coisas inferiores. Isto se mostra claramente na ordem dos seres
corpóreos; não poderiam a magnitude e o número dos corpos
celestes ser definidos pela disposição dos corpos elementares
(que quase nada são em comparação a eles). E as substâncias
imateriais, por sua vez, excedem ainda mais às substâncias cor-
póreas do que os corpos celestes aos corpos elementares. Logo,
o número, o poder e a disposição das substâncias imateriais não
podem ser suficientemente compreendidos a partir do número
de movimentos celestes.

13 - E, para que isto se torne ainda mais evidente, tomemos


0 próprio procedimento e as próprias palavras da comprovação
de Aristóteles. Ele afirma que não pode haver nenhum movi­
mento no céu que não esteja ordenado para a realização de um
lim48 — o que é bastante provável. De fato, todas as substâncias
ilas esferas parecem existir em função dos astros, que são os mais
elevados dentre os corpos celestes e possuem efeito mais eviden-
le. Aristóteles, mais adiante, assume que todas as substâncias
superiores, impassíveis e imateriais, são fins, sendo nobilíssimas
em si mesmas — e isto é razoável.49 De fato, o bem tem razão
de fim, e, entre os entes, aquele que é elevadíssimo per se50 é
1ornado como fim para os demais. Não obstante, isto que Aristó-
leles conclui — a saber, que haveria um número de substâncias

Santo Tomás de Aquino ■Sobre os Anjos •2 5


hune esse numerum immaterialium substantiarum qui est
caelestium motuum, non sequitur ex necessitate. Est enim
finis et proximus et remotus. Non est autem necessarium
quod proximus finis supremi caeli sit suprema substantia
immaterialis, quae est summus Deus; sed magis probabile est
ut inter primam immaterialem substantiam et corpus caeleste
sint multi ordines immaterialium substantiarum, quarum
inferior ordinetur ad superiorem sicut ad finem, et ad infimam
earum ordinetur corpus caeleste sicut ad finem proximum.
Oportet enim unamquamque rem esse proportionatam
quodammodo suo proximo fini. Unde propter distantiam
maximam primae immaterialis substantiae ad substantiam
corpoream quameumque, non est probabile quod
corporalis substantia ordinetur ad supremam substantiam
sicut ad proximum finem.

14 - Unde etiam Avicenna posuit, causam primam non


esse immediatum finem alicuius caelestium motuum, sed
quamdam intelligentiam primam. Et idem etiam potest dici
de inferioribus motibus caelestium corporum. Et ideo non est
necessarium quod non sint plures immateriales substantiae
quam sit numerus caelestium motuum. Et hoc praesentiens
Aristoteles non induxit hoc quasi necessarium, sed quasi
probabiliter dictum. Sic enim dixit antequam praedictam
rationem assignet, enumeratis caelestibus motibus, quare
substantias et principia immobilia et sensibilia tôt rationabile
est suscipere: necessarium enim dimittatur fortioribus
dicere: non enim reputabat se sufficientem ad hoc quod in
talibus aliquid ex necessitate concluderet.
Potest etiam alicui videri praedictum Aristotilis
processum ad substantias immateriales ponendas
inconvenientem esse eo quod procedit ex sempiternitate
motus, quae fidei veritati répugnât. Sed si quis diligenter
attendat rationem eius processus, non tollitur etiam
aeternitate motus sublata. Nam sicut ex aeternitate

XXVI •De Substantiis Separatis •S. Thomas de Aquino


imateriais igual ao número dos movimentos celestes51 — não
iiccessariamente se dá. Sim, porque há um fim próximo e um fim
remoto. E não é necessário que o fim próximo do céu supremo
seja a substância imaterial suprema, que é o sumo Deus; é mais
provável que haja, entre a substância imaterial primeira e o cor­
po celeste, muitas ordens de substâncias imateriais, e que não só,
entre elas, as inferiores se subordinem às superiores como a um
fim próximo, mas também qualquer corpo celeste se subordine à
mais ínfima delas como a seu fim próximo.
Sim, porque é necessário que cada coisa esteja proporcio­
nada, de algum modo, a seu fim próximo. Assim, em razão da
distância — que é a máxima — entre a substância imaterial
primeira e uma substância corpórea qualquer, não é provável
que esta substância corpórea se subordine à suprema substância
como a seu fim próximo.

14 - Por conseguinte, o mesmo Avicena52 afirmou que o fim


imediato de qualquer dos movimentos celestes não é a causa
primeira, mas sim certa inteligência primeira. E o mesmo pode
dizer-se dos movimentos inferiores dos corpos celestes. Assim,
não é necessário que não haja um número maior de substâncias
imateriais que o número dos movimentos celestes. E o próprio
Aristóteles, pressentindo isto, não estabeleceu esta proposição
como necessária, mas como provável. Antes de concluir com o
raciocínio acima referido, disse ele, após ter enumerado os movi­
mentos celestes: “Sustentar que teriam este número as substân­
cias e os princípios imóveis e sensíveis é razoável. Mas afirmar
que tal seria necessário, isto o deixo para pessoas mais capazes”.52
Vê-se, pois, que ele não se julgava em condições de chegar a uma
conclusão necessária com respeito a esta matéria.
Pode, ainda, parecer a alguns que o modo de que se valeu
Aristóteles para tratar as substâncias imateriais tenha sido
inconveniente, uma vez que se baseia na eternidade do mo­
vimento, que contraria a verdade da fé. Mas, se observarmos
atentamente as suas razões, veremos que ele não se invalida,
ainda que neguemos a eternidade do movimento. Sim, porque,
assim como se pode concluir que uma potência é infinita a

Santo Tomás de Aquino •Sobre os Anjos •2 7


motus concluditur motoris infinita potentia, ita etiam
hoc idem concludi potest ex motus uniformitate, Motor
enim qui non semper movere potest, necesse est quod
quandoque citius, quandoque tardius moveat, secundum
quod paulatim virtus eius deficit in movendo. In motibus
autem caelestibus invenitur omnimoda uniformitas. Unde
concludi potest quod motori primi motus insit virtus ad
semper movendum; et sic idem sequitur.

XXVIII •De Substantiis Separatis •S. Thomas de Aquino


p;irtir da eternidade do movimento, também se pode fazê-lo a
partir da uniformidade deste. A um motor que não pode mover
et ornamente, é necessário que, em dado momento, se mova
mais rapidamente e que, noutro momento, se mova mais lenta-
mente, à medida que diminua o seu poder no movimento. Nos
movimentos celestes, ao contrário, encontra-se total uniformi­
dade, donde podermos concluir que no motor do movimento
primeiro reside o poder de mover eternamente, razão por que
aquele modo [de que se valeu Aristóteles] procede.54

Santo Tomás de Aquino •Sobre os Anjos •2 9


N otas — Capítulo 2

32 - A ristóteles, Metafísica, XIII, 1-5 (1076a 8-1080a 11); T omás de A quino ,


De Spiritualibus Creaturis, a. 3; a 9 ad 6; Summa Theologiae, I, 84,1 ; P egis,
Anton C., Introduction to Saint Thomas Aquinas, New York: Modern Library,
1948, pp. xiii-xxx.
33 - Lat. “m otus”. Se Platão distinguia [in Teeteto, 181 d) dois tipos de movi­
mentos, a saber, alteração e translação (deslocamento), Aristóteles (in Físi­
ca, III, 1, 210 a 10) distinguia seis, em quatro diferentes categorias: alteração
(com relação à qualidade), translação (com relação ao lugar), geração e
corrupção (com relação à substância), e aumento e dim inuição (com relação
à quantidade), [ n . do r .]
34 - A ristóteles, Física, VIII, 5-10 (256a 4-267b 26).
35 - A ristóteles, Física, III, 1 (201a 10); VIII, 1 (241b 24-242a 17).
36 - A ristóteles, Física, VII, 1 (241b 24); VIII, 5 (256a 13-21; 256b 3 -9 ); c f„
para esta discussão, T omás de A quino , Summa contra Gentiles, 1,13.
37 - A ristóteles, Física, VIII, 10 (266b 6-24).
38 - A ristóteles, Física, VIII, 10 (267b 17-26).
39 - A ristóteles, Metafísica, XII, 7 (1072a 19-1073a 12).
4 0 - 0 termo latino sim pliciter, tal como usado na Escolástica e especialmen­
te por Santo Tomás, corresponde em português a “em term os absolutos’’ ou
“absolutam ente falando”, noção que contrasta com a expressa por secun-
dum quid [cf. adiante, nota 115]. Difere do sim pliciter romano, que se pode
traduzir ou por “ simplesmente", [ n . do t.]
41 - A ristóteles, Física, VIII, 6 (259b 31-260a 10); Metafísica, XII, 8 (1073a
11-37).
42 - A ristóteles, Metafísica, XII, 8 (1073b 1-1074a 14).
43 - A vicena , Metaphysica, IX, 3 (foi. 104rb).
44 -A ristóteles, Metafísica, XII, 1 (1069a 30).
45 - A ristóteles, Sobre a Alma, II, 2 (413b 4); Tomás de A quino , In De Anima,
II, lect. 3.
46 - Com respeito ao Egípcio, cf. Rev. L escoe, Francis J., Ph. D., S.T.L., Con-
necticut, West Hartford, Saint Joseph College, Feast of Assumption, August
15, 1959, p. 47. [ n . do r .]
47 - Lat. “arreptitius” : arrebatado, em transe, tomado por inspiração proféti­
ca ou demoníaca, [ n . do t.]
48 - A ristóteles, Metafísica, XII, 8 (1074a 17-30).
49 - A ristóteles, Metafísica, XII, 8 (1073a 26).
50 - Per se poder-se-ia verter, dependendo do contexto, ou por essencial­
mente, p o r sua própria essência, ou por substancialmente, p o r sua própria
substância. Contrapõe-se, assim, a p e r accidens, que se poderia verter por
acidentalmente, p o r acidente, se se entende este “acidente” de acordo com
o sentido preciso que lhe atribui Santo Tomás. Aristóteles dera dois signifi­
cados a “acidente” : o primeiro é o de “ casual” [cf., por exemplo, M eteorolo­
gia, V, 30, 1025a 4]); pelo segundo, “ acidente é o que pode pertencer e não
pertencer a um só e mesmo objeto” (Tópicos, I, 5, 102b 3). Adota-os Santo

XXX •De Substantiis Separaüs •S. Thomas de Aquino


Tomás, anotando porém (in Metaphysicam, V, 1143) que, neste segundo
sentido, o acidente se contrapõe à substância, razão por que o acidente é
“o que está em outra coisa” (Summa Theologiae, III, q. 77, a. 2 ad 1), ou seja,
num substrato ou sujeito sem o qual ele não pode subsistir (cf. ibid., III, q.
76, a. 1 ad 1); e, em razão de que o seu modo de ser é inerir a um sujeito, em
contraposição ao subsistir da substância, a qual não tem necessidade de
fundar-se em outra coisa para existir, em razão disso, digo, “ acidente" torna-
se coextensivo a “qualidade” em geral. Pressuposto pois este entendimento,
vejam-se duas aplicações, claríssimas, que faz Santo Tomás da locução per
accidens. Em De M ixtione Elementorum, 9: ” ... é impossível que as formas
substanciais dos elementos sejam suscetíveis de mais e de menos. Pois
toda forma suscetível de mais e de menos é divisível p e r accidens, ou seja,
na medida em que o sujeito pode participar mais ou menos dela. Quando
porém algo é divisível, p e r se ou p e r accidens, pode acontecer o movimento
contínuo, com o fica claro no livro sexto da Física [de Aristóteles). Dá-se,
com efeito, mudança de lugar, [m udança] por crescimento e [mudança] por
decréscim o no aspecto de quantidade e lugar, que são p e r se divisíveis. Já a
alteração se dá no aspecto das qualidades que são suscetíveis de mais e de
menos, com o o quente e o branco”. E em Summa Theologiae, I, q. 49 a. 1 co:
“ ... assim com o quanto mais eficaz é o fogo tanto mais perfeitamente im pri­
me sua forma, assim também tanto mais completamente destrói o contrário.
Dessa maneira, o mal e a corrupção do ar e da água provêm da perfeição
do fogo; mas isto p e r accidens, porque o fogo não tende a destruir a forma
da água, mas a im por a sua própria forma; ainda que, ao fazer isto, ocasione
aquilo p e r accidens. Se porém o defeito está no efeito próprio do fogo, como
quando não esquenta, isto consiste ou em defeito da ação, que redunda em
defeito de algum princípio, como foi dito; ou na não-disposição da matéria,
que não recebe a ação própria do fogo. Mas ainda esse fato mesmo de ser
deficiente é acidental ao fogo, ao qual p e r se com pete produzir efeito. É pois
certo que o mal em nenhum m odo tem causa senão p e r accidens. Assim,
só o bem é causa do mal”. — Por fim , outro pressuposto: o p e r accidens
necessariamente im plica o p e r se. [n. do r.]
51 - A ristóteles, Metafísica, XII, 8 (1073a 36; 1074a 5-15).
52 - A vicena , Metaphysica, IX, 3 (foi. 104rb).
53 - A ristóteles, Metafísica, XII, 8 (1074a 15).
54 - Cf. Tomás de A quino , Summa contra Gentiles, I, 13.

Santo Tomás de Aquino ■Sobre os Anjos ■31


CAPUT III

De convenientia positionum
Aristotilis et Platonis

15 - His igitur visis, de facili accipere possumus in


quo conveniant et in quo différant positiones Aristotelis et
Platonis circa immateriales substantias.
Primo quidem conveniunt in modo existendi ipsarum.
Posuit enim Plato omnes inferiores substantias immateriales
esse unum et bonum per participationem primi, quod est
secundum se unum et bonum. Omne autem participans
aliquid, accipit id quod participai, ab eo a quo participai: et
quantum ad hoc, id a quo participai, est causa ipsius; sicut aer
habet lumen participatum a sole, quae est causa illuminationis
ipsius. Sic igitur secundum Platonem summus Deus causa est
omnibus immaterialibus substantiis, quod unaquaeque earum
et unum sit, et bonum. Et hoc etiam Aristoteles posuit: quia, ut
ipse dicit, necesse est ut id quod est maxime ens, et maxime
verum, sit causa essendi et veritatis omnibus aliis.

16-Secundo autem conveniunt quantum ad conditionem


naturae ipsarum: quia uterque posuit omnes huiusmodi
substantias penitus esse a materia immunes, non tamen
esse eas immunes a compositione potentiae et actus; nam
omne participans oportet esse compositum ex potentia et
actu. Id enim quod recipitur ut participatum, oportet esse
actum ipsius substantiae participants ; et sic, cum omnes
substantiae praeter supremam, quae est per se unum et per
se bonum, sint participantes secundum Platonem, necesse
est quod omnes sint compositae ex potentia et actu; quod
etiam necesse est dicere secundum sententiam Aristotelis.
Ponit enim quod ratio veri et boni attribuitur actui: unde illud
quod est primum verum et primum bonum, oportet esse

XXXII •De Substantiis Separatis •S. Thomas de Aquino


C A PÍTU LO 3

S obre a concordância entre


as posições de A ristóteles e de P latão

15 - Vistos esses pontos, podemos facilmente observar em


que concordam e em que diferem as posições de Aristóteles e
de Platão acerca das substâncias imateriais.
Em primeiro lugar, ambas concordam quanto a seu modo
de existir. Platão55 propôs que todas as substâncias imate­
riais inferiores são unas e boas por participação no Uno e
Bem primeiro, que é bom e uno em si mesmo. E tudo o que
participa em algo, recebe sua participação daquilo mesmo
de que participa — quanto a isto, a coisa em que este algo
participa é considerada sua causa; assim como o ar tem luz
por participação do sol, que é a causa de sua iluminação.
Portanto, segundo Platão, o sumo Deus é a causa por que
todas as substâncias imateriais são tanto unas como boas.56
E também isto propôs Aristóteles, pois, como ele mesmo
disse: “E necessário que aquilo que é maximamente ente e
maximamente verdadeiro seja a causa do ser e da verdade
para todos os outros”.5'

16 - Em segundo lugar, Platão e A ristóteles concordam


quanto à condição da natureza em ambas [as propostas],
pois ambos afirmaram que todas as substâncias deste tipo
são isentas de matéria, mas não isentas de uma composição
de potência e ato.58 Tudo aquilo que participa necessita ser
um composto de potência e ato. Já aquilo que é recebido
como participado necessita ser o ato da própria substância
participante. Assim, como todas as substâncias — exceto
a suprema, que é em si o U no e o Bem — são, segundo Pla­
tão, participantes, é necessário que todas sejam compostas
de potência e ato.59 E isto deve ser dito também de acordo
com a declaração de A ristóteles, pois ele propunha que a
razão do verdadeiro e do bem se atribui ao ato;60 donde
aquilo que é a verdade primeira e o bem primeiro necessita

Santo Tomás de Aquino ■Sobre os Anjos •3 3


actum purum; quaecumque vero ab hoc deficiunt, oportet
aliquam permixtionem potentiae habere.

17 - Tertio vero conveniunt in ratione providentiae. Posu


enim Plato, quod summus Deus, qui hoc quod est ipsum unum,
est et ipsum bonum, ex primaeva ratione bonitatis proprium
habet ut inferioribus omnibus provideat: et unumquodque
inferiorum, inquantum participai bonitate primi boni, etiam
providet his quae post se sunt, non solum eiusdem ordinis,
sed etiam diversorum; et secundum hoc, primus intellects
separatus providet toti ordini separatorum intellectuum, et
quilibet superior suo inferiori, totusque ordo separatorum
intellectuum providet ordini animarum et inferioribus ordinibus.
Rursumque idem observari putat in ipsis animalibus, ut
supremae quidem caelorum animae provideant omnibus
inferioribus animabus, et toti generationi inferiorum
corporum: itemque superiores animae inferioribus, scilicet
animae Daemonum animabus hominum. Ponebant enim
Platonici, Daemones esse mediatores inter nos et superiores
substantias. Ab hac etiam providentiae ratione Aristoteles
non discordât. Ponit enim unum bonum separatum omnibus
providentem, sicut unum imperatorem vel dominum, sub
quo sunt diversi rerum ordines: ita scilicet quod superiores
ordines rerum perfecte providentiae ordinem consequuntur,
unde nullus d e fe c ts in eis invenitur. Inferiora vero entium,
quae minus perfecte providentiae ordinem recipere possunt,
multis defectibus subiacent; sicut etiam in domo, liberi,
qui perfecte participant regimen patrisfamilias, in paucis
vel nullis deficiunt: servorum autem actiones in pluribus
inveniuntur inordinatae, Unde in inferioribus corporibus
d e fe c ts proveniunt naturalis ordinis, qui in superioribus
corporibus nunquam deficere invenitur. Similiter etiam
humanae animae plerumque deficiunt ab in te llig e n t
veritatis et a recto appetitu veri boni: quod in superioribus
animabus vel intellectibus non invenitur. Propter quod etiam

XXXIV • De Substantiis Separatis S. Thomas de Aquino


ser ato puro. Já qualquer coisa que disso careça tem de
possuir alguma mistura de potência.

17 - Em terceiro lugar, Platão e Aristóteles concordam quan­


to à natureza da providência. Platão afirmava que o sumo Deus,
por ser o próprio Uno e o próprio Bem, tem como propriedade
— partindo da fundamental noção de bondade — ser providên­
cia para todos os inferiores; e cada um dos inferiores, enquanto
participa da bondade do Bem primeiro, também é providência
para aqueles que lhe são posteriores — não somente para os de
sua própria ordem, mas também para os de ordens diversas. Des­
se modo, o primeiro intelecto separado é providência para toda
a ordem dos intelectos separados, e todo superior [é providência]
para seu inferior, e toda ordem de intelectos separados é provi­
dência para a ordem das almas e para as ordens inferiores.61
Ademais, Platão pensou observar tal fato nos próprios animais,
isto é, que as almas supremas dos céus teriam providência sobre
todas as almas inferiores, e sobre a completa geração dos corpos
inferiores,62 ou seja: que as almas dos demônios seriam providên­
cia para as almas dos homens. De fato, diziam os platônicos que
os demônios são mediadores entre nós e as substâncias superiores.65
Desta característica da providência Aristóteles tampouco discorda.
Ele propunha o Uno e Bem separado, tendo providência sobre
todos, como um único imperador ou senhor, sob o qual existem
diversas ordens de coisas — de modo que as ordens de coisas supe­
riores adquirem a ordem da perfeita providência,64 e nenhum defeito
se encontra nelas. No entanto, as ordens inferiores de entes, que
menos perfeitamente podem receber a ordem da providência, estas
estão submetidas a vários defeitos — do mesmo modo que, numa
casa, os filhos (que participam perfeitamente do regime do chefe da
família) carecem de pouco ou quase nada; já as ações dos servos se
encontram, por vezes, desordenadas em vários aspectos.66 Portanto,
<xs defeitos nos corpos inferiores têm origem na ordem física, a qual
nos corpos superiores nunca se encontra deficiente.66 De modo se­
melhante, também as almas humanas são freqüentemente falhas
na compreensão da verdade e no correto apetite do bem verdadeiro,
fato que não se encontra nas almas ou intelectos superiores.67 Tam-

Santo Tomás de Aquino ■Sobre os Anjos - 35


Plato posuit, Daemonum esse quosdam bonos, quosdam
malos, sicut et homines; deos vero et in te lle cts et caelorum
animas omnino absque malitia esse.
Secundum igitur haec tria circa substantias separatas
invenitur opinio Aristotelis cum Platonis opinione concordare.

XXXVI •De Substantils Separatis ■S. Thomas de Aquino


bém por esta razão Platão afirmava que alguns demônios são bons e
outros maus, assim como os homens. Já os deuses, os intelectos e as
almas dos céus, estes são totalmente alheios à maldade.
Assim, são estes os três pontos em que vemos concordar as
posições de Aristóteles e Platão acerca das substâncias separadas.

Santo Tomás de Aquino ■Sobre os Anjos •3 7


N otas — Capítulo 3

55 -Cf. acima, cap. I, n° 5; cf. P roclo, Elementatio Theologica, Props. 12,13.


56 - A ristóteles, Ética, 1,6 (1096a 22-23; 1096a35-1096b3); S anto A gostinho,
De Civitate Dei, VIII, 6, 8; cf. Tomás de A quino , Summa Theologiae, 1,2,3 .
57 - A ristóteles, Metafísica, II, 1 (993b 24-31).
58 - Sobre ato e potência, cf. especialmente Tomás de A quino , In IX Meta-
physicorum , lect. 1-10; In I Physicorum, lect. 9; In III Physicorum, lect. 2;
Summa Theologiae, I, q. 2. a. 3, e I, q. 7, a. 1; Summa contra Gentiles, I, c.
16, e I, c. 43; De Ente et Essentia, c. 5; In I Sententiarum, d 43, q. 1, a. 1; De
Veritate, q. 2, a. 2, ad. 5; Quaestiones de Quolibet, III, q. 2, a. 1; Compendium
Theologiae, c. 18. [n . do r.J
59 - P roclo , Elementatio Theologica, Props. 3, 4, 8, 12 ,13; S anto A gostinho .
De Civitate Dei, VIII, 6, 8.
60 - A ristóteles, Metafísica, XII, 7 (1072a 24-28).
61 - P roclo, Elementatio Theologica, Props. 119, 120,122, 134,141, 145, 204.
62 - N emésio , De Natura Hominis, 44.
63 - S anto A gostinho , De Civitate Dei, VIII, 14.
64 - A ristóteles, Metafísica, XII, 10 (1075a 11-25); sobre a providência em
Aristóteles, cf. G ilson , Étienne, S pirit o f Mediaeval Philosophy, pp. 148-167,
457-458; G od and Philosophy, pp. 32 ss.
65 - A ristóteles , Política, I, 3 (1253b 1 ss).
66 - Cf, abaixo, nota 133.
67 - Cf. acima, cap. I, n° 7; S anto A gostinho , De Civitate Dei, VIII, 13, IX, 2.

XXXVIII •De Substantiis Separatis S. Thomas de Aquino


Santo Tomás de Aquino ■Sobre os Anjos • 39
CAPUT IV

De differentia dictarum
positionum Aristotilis et Platonis

18 - Sunt autem alia in quibus differunt. Primo quidem,


ut supra dictum est, Plato supra caelorum animas duplicem
ordinem immaterialium substantiarum posuit, scilicet
intellects et deos: quos deos dicebat esse species
intelligibiles separatas, quarum participations intellects
intelligunt. Aristoteles vero universalia separata non ponens,
unum solum ordinem rerum posuit supra caelorum animas,
in quorum etiam ordine primum esse posuit summum
Deum sicut et Plato summum Deum primum esse posuit in
ordine specierum, quasi summus Deus sit ipsa idea unius
et boni. Hunc autem ordinem Aristoteles posuit utrumque
habere: ut scilicet esset intelligens et intellectum; ita scilicet,
quod summus Deus intelligent non participations alicuius
superioris, quod esset eius perfectio, sed per essentiam
suam; et idem aestimavit esse dicendum in ceteris substantiis
separatis sub summo Deo ordinatis, nisi quod, inquantum
a simplicitate primi deficiunt et summa perfections ipsius,
eorum intelligere perfici potest persuperiorum substantiarum
participationem. Sic igitur secundum Aristotelem huiusmodi
substantiae quae sunt fines caelestium motuum, sunt et
intellects intelligentes et intelligibiles species: non autem
ita quod sint species vel naturae sensibilium substantiarum,
sicut Platonici posuerunt, sed omnino altiores.
Secundo vero, quia Plato non coarctavit numerum
intellectuum separatorum numero caelestium motuum: non
enim ex hac causa movebatur ad ponendum in tellects
separatos, sed ipsam naturam rerum secundum se
considerans. Aristoteles vero a sensibilibus recedere
nolens, ex sola consideratione motuum, ut supra dictum est,

XL •De Substantiis Separatis ■S. Thomas de Aquino


C A PÍTU LO 4

S o b r e a d if e r e n ç a e n t r e as m e n c io n a d a s
p o s iç õ e s d e A r is t ó t e l e s e P la tã o

18 - Há outros aspectos, porém, em que eles discordam.


Primeiro, como já foi dito acima,68 Platão dizia haver, acima
das almas dos céus, uma dupla ordem de substâncias ima­
teriais: os intelectos e os deuses, os quais afirmava serem
formas69 separadas inteligíveis, por cuja participação os in­
telectos têm intelecção.70 Aristóteles, no entanto, não pro­
pondo universais separados, disse que há uma só ordem de
coisas acima das almas dos céus, das quais a primeira seria o
sumo Deus — assim como Platão afirmou ser o sumo Deus
o primeiro na ordem das formas, por ser a própria idéia do
Uno e do Bem. Aristóteles, no entanto, afirmou que essa
ordem abarcava ambos, como se fosse tanto a intelecção
como o inteligido, de modo que o sumo Deus inteligiria
não através da participação em algo superior, que seria sua
perfeição, mas por sua própria essência.71 E o mesmo con­
siderou ocorrer nas outras substâncias separadas ordenadas
sob o sumo Deus,72 excetuado o fato de que — enquanto
carecem da simplicidade deste primeiro e de sua perfeição
— sua compreensão pode perfazer-se através da participa­
ção de substâncias superiores.73 Assim, segundo Aristóteles,
tais substâncias que são os fins dos movimentos celestes são
também intelectos inteligentes e formas inteligíveis,74 mas
não por serem formas ou naturezas de substâncias sensíveis,
como propuseram os platônicos,75 mas sim [por serem] to­
talmente superiores.
Segundo, eles diferem entre si porque Platão não restringia
o número de intelectos separados ao número dos movimentos
celestes. Decerto, não foi por basear-se nesta causa que ele foi
levado a propor intelectos separados, mas sim por considerar a
própria natureza das coisas em si próprias. Já Aristóteles, não
desejando afastar-se das coisas sensíveis — e a partir apenas da
consideração dos movimentos, como foi dito acima76 — , che-

Santo Tomás de Aquino •Sobre os Anjos ■41


pervenit ad ponendum intellectuals substantias separatas:
et ideo earum numerum coarctavit caelestibus motibus.
Tertio autem, quia Aristoteles non posuit aliquas animas
medias inter caelorum animas et animas hominum, sicut
posuit Plato: unde de Daemonibus nullam invenitur nec
ipse nec eius sequaces fecisse mentionem.
Haec igitur sunt quae de opinionibus Platonis et Aristotelis
circa substantias separatas ex diversis Scripturis collegimus.

XLII •De Substantiis Separatis ■S. Thomas de Aquino


gou à sua proposição das substâncias intelectuais separadas;
por isto, restringiu seu número ao dos movimentos celestes.77
Terceiro, diferem porque Aristóteles não afirmou a existên­
cia de outras almas intermediárias entre as dos céus e as dos
homens, como o fez Platão78 — motivo por que nem Aristóteles
nem seus seguidores fizeram menção a demônios.
Isso, portanto, é o que colhemos de diversos escritos no
que tange às posições de Platão e Aristóteles acerca das
substâncias separadas.79

Santo Tomás de Aquino •Sobre os Anjos •4 3


N otas — Capítulo 4

68 - Cf. acima, cap. I, n° 6.


69 - Cf. T omás de A quino , In Librum de Causis, Prop. 3: “Ideo omnes hujus-
m od i formas sic subsistentes ‘deos’ vocabat".
70 - P roclo, Elementatio Theologica, Props. 101, 161, 163.
71 - A ristóteles, Metafísica, XII, 9 (1074b 33-35).
72 - A ristóteles, Metafísica, XII, 9 (1074a 10-16).
73 - A ristóteles, Metafísica, XII, 9 (1074b 26).
74 - A ristóteles, Metafísica, XII, 9 (1074b 35-1075a 5).
75 - A ristóteles, Metafísica, I, 6 (987b 1-10).
76 - Cf. acima, cap. II, n° 8.
77 - Cf. acima, cap. II, nos 9-10.
78 - Cf. acima, cap. I, n° 7; cap. Ill, n° 17; S anto A gostinho , De Civitate Dei,
VIII, 13, 14, 16; IX, 2, 8, 12; X, 1.
79 - Esta doutrina com posta de Platão e Aristóteles, usada por Santo Tomás
em sua crítica a outras posições filosóficas nos Caps. V-XVI, nos 19-90,
remete à controversa questão da influência destes dois filósofos sobre o
pensamento do Aquinate, acerca da qual fazemos nossas as seguintes
palavras de J ougnet, Louis (La pensée de Saint Thomas d ’A quin, Paris,
NEL, 1964, pp. 113-115): “ Deve-se dizer que Santo Tomás é, no fundo, um
agostiniano ou um platônico que deve pouco a Aristóteles (Romeyer), ou
que, ao contrário, se [por exemplo] ele aceita a palavra participação, é para
dar-lhe significado muitíssimo oposto à perspectiva platônica (Geiger)?
Julgamos nós inaceitáveis essas duas posições, a primeira porque tenta
construir um Santo Tomás segundo o seu coração, mas am putado de tudo
o que, nele, é tão autenticamente aristotélico que os adversários medievais
de Aristóteles se esforçaram por obter a sua condenação de mistura com
interpretações árabes e averroístas do filósofo grego; a segunda porque, na
sua preocupação de aristotelizar Santo Tomás, termina por fazê-lo retornar,
para além das influências platônicas e neoplatônicas incontestáveis (e que
consideram os sobretudo felizes e benéficas), a um aristotelism o demasiado
estreito. Sem dúvida, Santo Tomás acentua a causalidade eficiente contra o
m onoideísmo [estado de alma em que esta se acha dominada por uma idéia
central] da causalidade exemplar, que se encontra tanto em Platão com o
nos agostinianos medievais, e até nos soi-disant aristotélicos árabes, talvez
mais platônicos do que se pensa. Sem dúvida, ele não aceita a tendência
platônica a realizar abstrações e a confundir a com posição do real com a
dos nossos conceitos. Adm itido isto, porém, parece-nos absolutamente
infeliz insistir nos aspectos por vezes estreitam ente empíricos do aristote­
lismo (que se atribuem ao próprio Santo Tomás), lançar o descrédito, sem
fazer as necessárias distinções, sobre a idéia de sistema (indispensável a
qualquer pensamento coerente), e pretender o p o r [por exemplo] a teoria
tom ista da participação à teoria platônico-agostiniana, sob pretexto de
que esta é sobretudo um ‘essencialismo’, ao passo que Santo Tomás se­
ria um pensador ‘existencial’. Nós [...] pensamos, ao contrário, [...], que a
[noção da] participação do Ser divino, do Esse, pelas criaturas se deve à
convergência da revelação judaico-cristã e da filosofia platônica, e que ela
não deve grande coisa a Aristóteles. Sem dúvida, ela absolutam ente não

XLIV •De Substantiis Separatis •S. Thomas de Aquino


se opõe aos princípios fundamentais do aristotelismo. Ao contrário, na for­
ma de distinção real entre essência e existência, consideramos que ela se
infere de todo naturalmente da teoria aristotélica do ato e da potência. Mas
sem o catalisador platônico jamais Santo Tomás teria podido elaborar a sua
Metafísica. Pode-se pois dizerem certo sentido [grifo nosso] que o tomism o
é, segundo a palavra de Cornelio Fabro, 'um platonismo especificado pelo
aristotelism o’”. [n . do r.]

Santo Tomás de Aquino •Sobre os Anjos •4 5


CAPUT V

De opinione Avicebron et rationibus eius

19 - Eorum vero qui post secuti sunt, aliqui ab eorum


positionibus recedentes, in deterius erraverunt. Primo namque
Avicebron in libro fontis vitae, alterius conditionis substantias
separatas posuit esse. Aestimavit enim omnes substantias
sub Deo constitutas ex materia et forma compositas esse:
quod tarn ab opinione Platonis quam Aristotelis discordat:
qui quidem dupliciter deceptus fuisse videtur. Primo quidem,
quiaaestimavitquod secundum intelligibilemcompositionem,
quae in rerum generibus invenitur, prout scilicet ex genere
et differentia constituitur species, esset etiam in rebus ipsis
compositio realis intelligenda: ut scilicet uniuscuiusque
rei in genere exsistentis genus sit materia, differentia vero
forma. Secundo, quia aestimavit quod esse in potentia et
esse subiectum et esse recipiens secundum unam rationem
in omnibus diceretur. Quibus duabus positionibus innixus,
quadam resolutoria via processit investigando compositiones
rerum usque ad intellectuals substantias.

20 - Primo enim inspexit in artificialibus, quod


componuntur ex forma artificiali et materia, quae est aliqua res
naturalis, puta ferrum aut lignum, quae se habet ad formam
artificialem ut potentia ad actum. Rursus consideravit quod
huiusmodi naturalia corpora particularia composita erant ex
elementis. Unde posuit quod quatuor elementa comparantur
ad formas particulares naturales, puta lapidis aut ferri, sicut
materia ad formam et potentia ad actum. Iterum consideravit
quod quatuor elementa conveniunt in hoc quod quodlibet
eorum est corpus, differunt autem secundum contrarias
qualitates. Unde tertio posuit quod ipsum corpus est materia
elementorum, quam vocavit naturalem materiam universalem,

XLVI ■De Substantiis Separatis S. Thomas de Aquino


C A PÍTU LO 5

Sobre o parecer de A vicebrão e seus argumentos

19 - Dentre os que se seguiram [a Platão e Aristóteles],


alguns que se afastaram de suas proposições terminaram por
cair em erro. O primeiro [destes], Avicebrão, no livro A Fonte
da Vida,80 afirmou que as substâncias separadas seriam de uma
condição diferente. Ele considerava que todas as substâncias
constituídas sob Deus são compostas de matéria e forma,81 o
que está em desacordo tanto com o parecer de Platão como
com o de Aristóteles;82 de modo que parece ter-se enganado
duplamente. Primeiro, por julgar que, de acordo com uma com­
posição inteligível que se encontra nos gêneros das coisas, e
assim como se estabelece uma espécie a partir do gênero e da
diferença, também se deveria ver uma real composição dentro
das coisas mesmas, de maneira que, em cada coisa existente
em determinado gênero, o gênero seria a matéria, e a diferença
seria a forma.81 Segundo, por julgar que ser em potência, ser su­
jeito e ser recipiente deveriam ser todos expressos segundo uma
mesma razão. Firmando-se nestas duas premissas, procede por
uma via resolutiva,84 investigando as composições das coisas
até [alcançar] as substâncias separadas.

20 - Em primeiro lugar, ele observou que as coisas ar­


tificiais são compostas de forma artificial e matéria, a qual
matéria é algo natural, como o ferro ou a madeira, e está dis­
posta a uma forma artificial tal como uma potência ao ato.85
Em seguida, considerou que tais corpos naturais particulares
são compostos de elementos.86 Assim, afirmou que os quatro
elementos estão para as formas particulares naturais, como
as da pedra ou do ferro, assim como a matéria está para a
forma, e a potência para o ato. Mais adiante, considerou que
os quatro elementos3' têm em comum o fato de que cada um
deles é um corpo, e que diferem segundo qualidades contrá­
rias.88 Donde propôs, em terceiro lugar, que o próprio corpo
é a matéria dos elementos, a qual ele denominou m atéria

Santo Tomás de Aquino ■Sobre os Anjos •4 7


et quod formae huius materiae sunt qualitates elementorum.
Sed quia videbat quod corpus caeleste convenit cum
elementis in corporeitate, differt vero ab eis in hoc quod
non est susceptivum contrariarum qualitatum, posuit quarto
ordine materiam corporis caelestis, quae etiam comparatur
ad formam caelestis corporis sicut potentia ad actum. Et sic
posuit quatuor ordines materiae corporalis.

21 - Rursus, quia vidit quod omne corpus significat


substantiam quamdam longam, latam et spissam, aestimavit
quod corporis, inquantum est corpus huiusmodi, tres
dimensiones sunt sicut forma, et substantia, quae subiicitur
quantitati et aliis generibus accidentium, est materia corporis
inquantum est corpus. Sic igitur substantia quae sustinet
novem praedicamenta, ut ipse dicit, est prima spiritualis
materia. Et sicut posuit in materia universali corporali, quam
dixit esse corpus, quiddam superius quod non est susceptivum
contrariarum qualitatum, scilicet materiam caelestis corporis, et
aliquid inferius, quod est susceptivum contrariarum qualitatum,
quam credidit esse materiam quatuor elementorum; ita etiam
in ipsa substantia posuit quiddam superius, quod non est
susceptivum quantitatis, et hoc posuit substantiam separatam,
et quiddam inferius quod est susceptivum quantitatis, quod
posuit esse materiam incorpoream corporum.

22 - Rursus ipsas substantias separatas vel spirituales


componi posuit ex materia et forma; et hoc probavit pluribus
rationibus. Primo quidem, quia existimavit quod nisi substantiae
spirituales essent compositae ex materia et forma, nulla posset
inter eas esse diversitas. Si enim non sunt compositae ex materia
et forma: aut sunt materia tantum, aut sunt forma tantum. Si sunt
materia tantum, non potest esse quod sint multae substantiae
spirituales, quia materia est una de se et diversificatur per
formas. Similiter etiam si substantia spiritualis sit forma tantum,
non poterit assignari unde substantiae spirituales sunt diversae.

XLVIII •De Substantiis Separatis ■S. Thomas de Aquino


natural universal, e que as formas desta matéria são as qua-
lidades dos elementos. Contudo, como ele via que o corpo
celeste tem em comum com os elementos a corporeidade,
mas não a suscetibilidade a qualidades contrárias,89 pôs a
matéria dos corpos celestes em uma quarta ordem — maté­
ria esta que também está para a forma dos corpos celestes
como a potência está para o ato. E assim Avicebrão propôs
quatro ordens de matéria corpórea.90

21 — Em seguida, observou que qualquer corpo signifi­


ca uma substância dotada de certo comprimento, largura e
espessura. Por isto, julgou que as três dimensões do corpo,
enquanto é tal corpo, são como a forma; e a substância, que é
o sujeito de quantidade e de outros gêneros de acidentes, é a
matéria do corpo enquanto corpo.91 Assim, portanto, a subs­
tância que suporta os nove predicamentos é, como disse ele
mesmo, a matéria prima espiritual.92 E, assim como propôs, na
matéria universal corporal, que ele afirmou ser um corpo, algo
superior e não-suscetível de qualidades contrárias — ou seja,
a matéria dos corpos celestes — e algo inferior e susceptível
de qualidades contrárias, que julgou ser a matéria dos qua­
tro elementos,93 propôs também, na própria substância, algo
superior e não-sujeito de quantidade, que afirmou ser uma
substância separada, e algo inferior e sujeito de quantidade,
que afirmou ser a matéria incorpórea dos corpos.94

22 - Mais adiante, disse que as substâncias separadas ou


espirituais se compõem de matéria e forma; e isto ele demons­
trou por meio de vários argumentos.95 Primeiro, afirmando que
não poderia haver nenhuma diversidade entre as substâncias
espirituais se não fossem compostas de matéria e forma.96 Se
tal composição não se dá, ou são elas tão-somente matéria, ou
tão-somente forma. E, se são unicamente matéria, então não
pode haver várias substâncias espirituais, pois a matéria é una
em si e se diversifica por meio das formas. Igualmente, se são
unicamente forma, então não se pode afirmar por que [princí­
pio] elas seriam diversas. Pois, se se dissesse que elas se torna-

Santo Tomás de Aquino •Sobre os Anjos •4 9


Quia si dicas quod sint diversae secundum perfectionem
et imperfectionem, sequetur quod substantia spiritualis sit
subiectum perfectionis et imperfectionis. Sed esse subiectum
pertinet ad rationem materiae, non autem ad rationem formae
Unde relinquitur quod vel non sunt plures substantiae spirituals,
vel sunt compositae ex materia et forma.
Secunda ratio eius est, quia intellects spiritualitatis est
praeter intellectum corporeitatis; et ita substantia corporalis et
spiritualis habent aliquid in quo differunt, habent etiam aliquid
in quo conveniunt, quia utrumque est substantia. Ergo sicut in
substantia corporali, substantia est tanquam materia sustentans
corporeitatem, ita in substantia spiritual^ substantia est quasi
materia sustentans spiritualitatem; et secundum quod materia
plus vel minus participât de forma spiritualitatis, secundum hoc
substantiae spirituals sunt superiores vel inferiores: sicut etiam
aer quanto est subtilior, tanto plus participai de claritate.

23-Tertia ratio eius est, quia esse communiterinveniturin


substantiis spiritualibus quasi superioribus et corporalibus
quasi inferioribus. Illud ergo quod est consequens ad esse
in substantiis corporalibus, erit consequens ad esse in
substantiis spiritualibus. Sed in substantiis corporalibus
invenitur triplex ordo: scilicet corpus spissum, quod est
corpus elementorum; et corpus subtile, quod est corpus
caeleste; et iterum materia et forma corporis. Ergo etiam in
substantia spirituali invenitur substantia spiritualis inferior,
puta quae coniungitur corpori; et superior, quae non est
coniuncta corpori; et iterum materia et forma, ex quibus
substantia spiritualis componitur.
Quarta ratio eius est, quia omnis substantia creata
oportet quod distinguatur a creatore. Sed creator est unum
tantum. Oportet igitur quod omnis substantia creata non sit
unum tantum, sed composita ex duobus: quorum necesse
est ut unum sit forma, et aliud materia; quia ex duabus
materiis non potest aliquid fieri, nec ex duabus formis.

L ■De Substantiis Separatis ■S. Thomas de Aquino


riam diversas segundo perfeição e imperfeição, ocorreria que
a substância espiritual seria sujeito de perfeição e imperfeição.
Mas ser sujeito é capacidade que pertence à razão da matéria,
não da forma. Donde resta que ou não há várias substâncias
espirituais, ou são elas compostas de matéria e forma.97
Seu segundo argumento é que a razão da espiritualidade
está além da razão da corporeidade, e, deste modo, assim como
as substâncias corporais e espirituais têm algo em que diferem,
têm também algo em que se igualam: o fato de ambas serem
substâncias. Portanto, assim como na substância corporal a
substância é como a matéria que sustenta a corporeidade, na
substância espiritual ela é, igualmente, como a matéria que
sustenta a espiritualidade. E, conforme a matéria participa
mais ou menos da forma da espiritualidade, as substâncias
espirituais são, correspondentemente, superiores ou inferiores
— do mesmo modo que, quanto mais fino é o ar, mais ele
participa da claridade.98

23 - Seu terceiro argumento é que o ser é encontrado


tanto nas substâncias espirituais — ou seja, como em coisas
superiores — quanto nas corporais — ou seja, como em coisas
inferiores. Logo, aquilo que é conseqüência do ser nas subs­
tâncias corporais será conseqüência do ser nas substâncias
espirituais. Mas, nas substâncias corporais, encontramos uma
tripla ordem: o corpo denso, que é o dos elementos, o corpo
sutil, que é o corpo celeste, e, novamente, matéria e forma
do corpo. Assim, também numa substância espiritual encon­
tramos uma substância espiritual inferior (que, por exemplo,
se junta a um corpo), uma superior (que não se junta a um
corpo) e, outra vez, matéria e forma (de que se compõe a
substância espiritual).99
O quarto argumento é que toda e qualquer substância cria­
da necessita distinguir-se do criador. Mas o criador é somente
um. Logo, é preciso que toda e qualquer substância criada seja
somente uma, mas composta de duas partes, das quais uma se­
ria a forma e a outra, a matéria, pois algo não pode compor-se
de duas matérias, nem de duas formas.100

Santo Tomás de Aquino •Sobre os Anjos •51


Quinta ratio eius est quia omnis substantia spiritualis
creata est finita. Res autem non est finita nisi per suam
formam, quia res quae non habet formam per quam fiat
unum, est infinita. Omnis igitur substantia spiritualis creata
est composita ex materia et forma.

LII •De Substantiis Separates ■S. Thomas de Aquino


O quinto argumento é que toda e qualquer substância es­
piritual criada é finita. E uma coisa não é finita senão por sua
forma — visto que uma coisa que não possui forma por que se
torne una é infinita. Portanto, toda substância criada é com­
posta de matéria e forma.101

Santo Tomás de Aquino •Sobre os Anjos ■5 3


N otas — Capítulo 5

80 - A vicebrão (Salomon ibn Gabirol), Fons Vitae, I, 2 -4 ; cf. G ilson , Étien-


ne, Pourquoi Saint Thomas a Critiqué Saint Augustin, in Archives d ’histoire
doctrinale et littéraire du moyen âge, I, 1926-1927, pp. 25-35, 108-116,
217-219; G ilson , Étienne, History o f Christian Philosophy in the M iddle Ages,
New York: Random House, 1955, pp. 226-229 e notas 27-35 (pp. 647-649);
C ollins , James D., The Thomistic Philosophy o f the Angels, Washington: Ca-
tholic University of America, 1947, pp. 44-74; K leineidam , Erich, Das Problem
der hylomorphen Zusammensetzung geistiger Substanzen, Breslau, 1930,
pp. 9-15. — Avicebrão (Málaga, c. 1020-Valência, c. 1058) foi o primeiro
filósofo judeu nascido na Espanha, e sua principal obra filosófica é precisa­
mente esta Fons Vitae. Era, ademais, poeta. [ n . do r.]
81 - A vicebrão , op. c/f., I, 8; IV, 7.
82 - A ristóteles, Metafísica, I, 6 (987b 1-18).
83 - A vicebrão, op. cit., IV, 6.
84 - Lat. resolutoria via. Há, em diferentes textos de Tomás de Aquino,
referência à via resolutiva (ou, propriamente, à resolutio), que se refere à
operação intelectual da análise, e à via com positiva (compositio), referente à
síntese. Os termos resolutio e reductio, na term inologia escolástica, quando
designam “ análise”, indicam a operação intelectual de fazer algo voltar à
sua origem, princípio ou fundamento. “ Se é verdade que a análise conduz
(ductio) às premissas e à forma lógica a partir das conclusões, não é menos
verdade que as premissas na ordem do ser são anteriores às conclusões (or­
dem sintética de demonstração). Neste sentido, a análise conduz o posterior
(a conclusão) ao anterior (as premissas), o que é o mesmo que re-conduzir
(re-ductio). Na ordem de investigação analítica, (...) a conclusão é anterior
porque é dada com o ponto de partida da busca, enquanto as premissas são
posteriores porque são descobertas por últim o na ordem analítica, graças
ao conhecimento da form a inteligível do argum ento”. Ver S alles, Sérgio, “ Os
significados de áváAuoiç em Aristóteles”. In. Synesis - Revista do Instituto de
Teologia, Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Católica de Petró-
polis (UCP), Rio de Janeiro: Letra Capital, 2005, p.90. [ n . do e .]
85 - A vicebrão, op. cit., I, 14.
86 - Ibid.
87 - Nas ciências naturais, definiam-se então os quatro elementos funda­
mentais da matéria com o água, fogo, terra e ar. E era esta estritam ente a
denominação que Santo Tomás (e muitos outros) adotava, ao tratar filo ­
soficamente das combinações entre elementos num com posto — como,
por exemplo, em De M ixtione Elementorum. Evidentemente, os esforços
posteriores dos físicos os fizeram chegar aos átomos, e depois (em notável
contradição etimológica, uma vez que átomos significa “ indivisível” ) à par­
tição de tais indivisíveis em prótons, nêutrons e elétrons. Continuamente,
estes vêm sendo subdivididos em elementos ainda menores. Mas tal fato
em nada invalida as considerações outrora tecidas acerca dos entes co rp ó ­
reos e de seus elementos fundamentais, enquanto elementos fundamentais,
sejam eles quais forem. Evidência disso é que, tratando pelos nomes acima
m encionados os blocos fundam entais da matéria — quaisquer que sejam
—, as explicações centrais do De M ixtione Elementorum mantêm até hoje
sua validade, [n . do t.]

LIV •De Substantiis Separatis ■S. Thomas de Aquino


88 - Ibid., I, 15.
89 - Ibid., I, 17.
90 -Ib id ., I, 16-17.
91 - Ibid., IV, 6.
92 - Ibid., II, 6; IV, 34.
93 - Ibid., V, 42.
94 - Ibid., II, 22.
95 -Ib id ., II, 24; IV, 1; IV, 2.
96 - Ibid., IV, 2-3.
97 - Ibid., IV, 2.
98 - Ibid., IV, 2. — Aqui Avicebrão, seguindo um raciocínio platônico, ar­
gumenta sobre a participação maior ou menor da matéria num “eidos de
espiritualidade’’, o que explicaria a gradação de inferiores e superiores na
ordem das substâncias angélicas; e busca um exemplo na analogia entre
esta participação (em si de natureza metafísica) e uma m aior ou menor par­
ticipação do ar na luz. No entanto: atente-se que, quanto mais fino (subtilior)
ou rarefeito se disponha o ar, em verdade menos ele “ participará” dos raios
de luz que estejam num meio, por manter menos contato com eles na dada
área. Ao contrário, quanto mais espesso, mais ele “ participa” na luz, e é esta
mesma a razão pela qual a água e a pedra nos são normalmente visíveis, e
o ar não. É evidente, porém, que o argumento de Avicebrão não se invalida
pela refutação (fruto de posteriores refinamentos da Física) de uma analogia
que buscava esclarecê-lo; apenas a própria analogia é contestada. Assim,
continuam fundamentais as observações que Santo Tomás fará, nos nos
25-28, e que contrariarão a tese mesma de Avicebrão. [n. do t.]
99 - Ibid., IV, 4.
100 - Ibid., IV, 6.
101 - Ibid., IV, 6.

Santo Tomás de Aquino •Sobre os Anjos •55


CAPUT VI

In quo positio Avicebron reprobatur

2 4 - Haec autem quae dicta sunt, in pluribus manifestam


improbabilitatem continent.
Primo namque, quia ab inferioribus ad suprema
entium ascendit resolvendo in principia materialia; quod
omnino rationi repugnat. Comparatur enim materia
ad formam sicut potentia ad actum. Manifestum est
autem quod potentia est minus ens quam actus: non
enim dicitur potentia ens nisi secundum ordinem ad
actum: unde neque sim pliciter dicimus esse quae sunt
in potentia, sed solum quae sunt in actu. Quanto igitur
magis resolvendo descenditur ad principia materialia,
tanto minus invenitur de ratione entis. Suprema autem
in entibus oportet esse maxime entia: nam et in
unoquoque genere suprema quae sunt aliorum principia,
esse maxime dicuntur, sicut ignis est calidus maxime.
Unde et Plato investigando suprema entium, processit
resolvendo in principia formalia, sicut supra dictum
est. Inconvenientissime igitur hie per contrariam viam
processit in principia materialia resolvendo.

25 - Secundo, quia, quantum ex suis dictis apparet, in


antiquam quodammodo naturalium opinionem rediit, qui
posuerunt omnia esse unum ens, dum ponebant substantiam
rerum omnium non esse aliud quam materiam: quam non
ponebant esse aliquid in potentia tantum, sicut Plato et
Aristoteles, sed esse aliquid ens actu. Nisi quod antiqui
naturales, nihil aliud praeter corpora esse aestimantes, hanc
materiam communem et substantiam omnium aliquod corpus
esse dicebant; puta aut ignem, aut aerem, aut aquam aut
aliquid medium. Sed iste non solum in corporibus naturam

LVI •De Substantiis Separatis •S. Thomas de Aquino


C A PÍTU LO 6

NO QUAL A POSIÇÃO DE AviCEBRÃO É REFUTADA

2 4 - Esses argumentos que foram apresentados,102 no entan­


to, contêm evidente improbabilidade em diversos aspectos.
O primeiro, porque Avicebrão parte dos entes inferiores
para os mais elevados mediante uma redução a princípios
materiais, o que é totalmente contrário à razão. A matéria
é comparada à forma como uma potência ao ato. Mas é evi­
dente que a potência é menos ente que o ato: de fato, não
se fala de um ente em potência senão segundo sua ordem ao
ato — motivo pelo qual tampouco dizemos que é simpliciter
aquilo que está em potência; dizemo-lo somente daquilo que
está em ato. Portanto, quanto mais se desce na redução a
princípios materiais, menos se encontra a natureza do ente.
Ademais, é necessário aos mais elevados dentre os entes que
eles sejam maximamente entes: em cada gênero, dizemos que
os entes mais elevados — que são o princípio dos restantes
— o são maximamente, assim como o fogo é maximamente
quente.101 Por isto, Platão, investigando os mais elevados
dentre os entes, optou pela redução a princípios formais,
como foi referido acima.I<M Logo, Avicebrão agiu de modo
extremamente impróprio ao tomar o cam inho contrário: a
redução [de tudo] a princípios materiais.

2 5 - 0 segundo, porque, ao menos pelo que transparece


de suas palavras, Avicebrão de certo modo retornou ao antigo
parecer dos naturalistas, que afirmavam que todas as coisas são
um só ente, propondo que a substância de todas as coisas não é
nada além de matéria105 — matéria esta que não diziam ser algo
apenas em potência, como o faziam Platão e Aristóteles, mas
certo ente em ato. Com a diferença de que os antigos natura­
listas, julgando não existir nada além de corpos, diziam que
tal matéria comum — e substância de tudo — era um corpo,
como, por exemplo, o fogo, o ar, a água ou algo entre eles.106
Mas Avicebrão, julgando que a natureza das coisas não está

Santo Tomás de Aquino •Sobre os Anjos •5 7


rerum existimans comprehendi, illud unum quod posuit
esse primam materiam communem substantiam omnium,
dixit esse substantiam non corpoream. Et quod simili
modo posuerit hanc universalem materiam, ut dicit, esse
substantiam omnium, sicut naturales hoc ponebant de aliquo
uno corporum, manifestum est ex hoc quod eorum quae
conveniunt in genere, ponit genus esse materiam; differentias
vero, quibus species differunt, ponit esse formas.

26 - Dicit enim, quod omnium corporalium est


materia communis ipsum corpus: rursumque omnium
substantiarum tarn corporalium quam spiritualium est
communis materia ipsa substantia. Unde apparet quod
est similis habitudo generis ad differentias, sicut subiecti
ad proprias passiones; ut scilicet substantia hoc modo
dividatur per spiritualem et corporalem, et corpus per
caeleste et elementare, sicut numerus per par et impar,
aut animal per sanum et aegrum: quorum numerus est
subiectum paris et imparis sicut propriarum passionum,
et animal sani et aegri, tarn subiecto quam passionibus
de speciebus omnibus praedicatis. Sic igitursi substantia
quae praedicatur de omnibus, compararetur ad spirituale
et corporale sicut materia et subiectum eorum, sequetur
quod haec duo adveniant substantiae per modum
accidentalium passionum; et similiter in omnibus aliis
consequentibus: quod ipse expresse concedit ponens
omnes formas secundum se consideratas accidentia
esse; dicuntur tamen substantiales per comparationem
ad aliquas res in quarum definitionibus cadunt, sicut
albedo est de ratione hominis albi.

27 - Sic haec positio tollit quidem veritatem materiae


primae. Quia si de ratione materiae est quod sit in potentia,
oportet quod prima materia sit omnino in potentia: unde
nec de aliquo exsistentium actu praedicatur, sicut nec

LVIII ■De Substantiis Separates ■S. Thomas de Aquino


compreendida somente nos corpos, afirmou que aquilo único
— o qual disse ser a matéria prima comum e a substância de
tudo — era uma substância não-corpórea.107 E que tenha pro­
posto a existência dessa matéria universal, que ele dizia ser a
substância de tudo, do mesmo modo como o faziam os natura­
listas — isto é, como um “corpo único” — torna-se evidente
pelo fato de que, dentre as coisas que concordam em gênero,
afirmou ser o gênero a matéria, e as diferenças pelas quais as
espécies se distinguem, a forma.108

2 6 - Pois diz ele que a matéria comum de todas as coi­


sas corpóreas é o próprio corpo.109 E, ademais, que a matéria
comum de todas as substâncias, tanto as corpóreas como as
espirituais, é a própria substância.110 Assim, evidencia-se que
há um comportamento similar dos gêneros com relação às
diferenças, assim como do sujeito com relação a suas próprias
paixões111 — de modo que a substância se dividiria em espiri-
tual e corporal, e o corpo em celeste e elementar, assim como o
número [se divide] em par e ímpar, ou um animal em saudável
e doente. Destes, o número é sujeito de par e ímpar como o
é de suas próprias paixões; e o animal é sujeito de saudável
e doente — sendo tanto o sujeito como as paixões predica­
dos de todas as espécies. Portanto, se uma substância que se
predica de todas as coisas fosse comparada a “espiritual” e
“corporal” enquanto a matéria que é sujeito dessas coisas,
ocorreria que ambas [essas qualidades] chegariam à substân­
cia ao modo de paixões acidentais; e igualmente em todos os
outros casos subseqüentes, como o próprio Avicebrão expres­
samente assume, dizendo que todas as formas consideradas
em si mesmas são acidentes. Tais acidentes, no entanto, são
ditos “substanciais” por comparação a certas coisas em cujas
definições eles se enquadram, assim como a brancura é [algo
próprio] da definição de um homem branco.

27 - Tal parecer, porém, elimina a verdade [do conceito de]


matéria prima. Pois, se pertence à definição de “matéria” que ela
existe em potência, é necessário então que a matéria prima exis-

Santo Tomás de Aquino •Sobre os Anjos •59


pars de toto. Tollit etiam logicae principia, auferens veram
rationem generis et speciei et substantialis differentiae,
dum omnia in modum accidentalis praedicationis
convertit. Tollit etiam naturalis philosophiae fundamenta,
auferens veram generationem et corruptionem a rebus,
sicut et antiqui naturales ponentes unum materiale
principium. Neque enim simpliciter aliquid generari
dicitur, nisi quia simpliciter fit ens. Nihil autem fit quod
prius erat. Si igitur aliquid prius erat in actu, quod est
simpliciter esse; sequetur, quod non simpliciter fiat ens
sed fiat ens hoc quod prius non erat: unde secundum
quid generabitur, et non simpliciter.

28 - Tollit demum, et ut finaliter concludam,


praedicta positio etiam philosophiae primae principia,
auferens unitatem a singulis rebus, et per consequens
veram entitatem simul et rerum diversitatem . Si enim
alicui existenti in actu superveniat alius actus, non
erit totum unum per se, sed solum per accidens; eo
quod duo actus vel formae secundum se diversae sunt,
conveniunt autem solum in subiecto. Esse autem unum
per unitatem subiecti, est esse unum per accidens: sive
duae formae sint non ordinatae ad invicem, ut album
et musicum, dicim us enim quod album et musicum
sunt unum per accidens, quia insunt uni subiecto;
sive etiam formae vel actus sint ad invicem ordinatae,
sicut color et superficies. Non enim est sim pliciter
unum superficiatum et coloratum , etsi quodam m odo
coloratum per se de s u p e r fic ia l praedicetur: non
quia superficiatum significet essentiam colorati, sicut
genus significat essentiam speciei, sed ea ratione qua
subiectum ponitur in definitione accidentis; alioquin
non praedicaretur coloratum de superficiato per se,
sed hoc de illo. Solo autem hoc modo species est unum
sim pliciter, inquantum vere id quod est homo, animal

LX ■De Substantiis Separatis •S. Thomas de Aquino


ta absolutamente em potência.112 Por isto, ela não se predica de
nenhuma coisa existente em ato, assim como nenhuma parte se
predica de um todo. [Tal parecer] elimina também os princípios
da lógica, suprimindo a verdadeira definição de “gênero”, “espé­
cie” e “diferença substancial” ao reduzir todas as coisas ao modo
de predicação acidental.113 E elimina também os fundamentos
da filosofia natural, suprimindo das coisas as verdadeiras geração
e corrupção, assim como [o fizeram] os naturalistas ao propor
um princípio material único. Pois só se diz que algo é gerado
simpliciter porque este algo se torna um ente simpliciterd14 E nada
que já era se torna. Assim, se algo já existia anteriormente em
ato — o que é ser simpliciter — , ocorrerá que este ente não se
tornará simpliciter, mas apenas se tornará algo que não era antes
— donde se gerará secundum quid,ÜS e não simpliciter.

28 - A opinião apresentada ainda elimina, por último, e para


finalmente concluir, os princípios da filosofia primeira, supri­
mindo de cada coisa a unidade e, por conseguinte, a verdadeira
entidade e, ao mesmo tempo, a diversidade das coisas. Se a algo
já existente em ato sobrevier outro ato, então [esse algo] não será
totalmente uno per se, mas apenas per accidens, visto que dois atos
ou formas são em si diversos, e concordam apenas em sujeito.116
Mas ser uno pela unidade do sujeito é ser uno per accidens, quer as
duas formas não sejam ordenadas uma à outra — como “branco”
e “músico”, pois dizemos que “branco” e “músico” são um só per
accidens, uma vez que se encontram em um único sujeito — , quer
as formas ou atos sejam, de fato, ordenados um ao outro — como
“cor” e “superfície”. Pois algo colorido e dotado de superfície não
é uno simpliciter, ainda que, de certo modo, “colorido” seja per se
predicado de “dotado de superfície” — não porque “dotado de
superfície” signifique a essência de “colorido”, do mesmo modo
como o gênero significa a essência da espécie, mas porque o sujei­
to se inclui na definição do accidens. De outro modo, “colorido”
não seria per se predicado de “dotado de superfície”, mas se daria
o contrário.117 De fato, de um só modo uma espécie é algo uno
simpliciter: enquanto [por exemplo] aquilo que é um “homem”
é “animal”. E isto não porque “animal” seja o sujeito da forma

Santo Tomás de Aquino •Sobre os Anjos •61


est: non quia animal subiiciatur formae, sed quia ipsa
form a animalis est form a hominis, non differens nisi
sicut determinatum ab indeterminato. Si enim aliud
sit animal et aliud bipes, non erit per se unum animal
bipes quod est homo, unde nec erit per se ens; et per
consequens sequetur quod quaecumque in genere
conveniunt, non different nisi accidentali differentia;
et omnia erunt unum secundum substantiam, quae est
genus et subiectum omnium substantiarum ; sicut si
superficiei una pars sit alba et alia nigra, totum est una
superficies. Propter quod et antiqui ponentes unam
materiam, quae erat substantia omnium, de omnibus
praedicata, ponebant omnia esse unum. Et haec etiam
inconvenientia sequuntur ponentes ordinem diversarum
formarum substantialium in uno et eodem.

29 - Tertio, secundum praedictae positionis


processum, necesse est procedere in causis
m aterialibus in infinitum , ita quod nunquam sit devenire
ad primam materiam. In omnibus enim quae in aliquo
conveniunt et in aliquo differunt, id in quo conveniunt
accipit ut materiam; id vero in quo differunt a ccipit ut
formam, ut ex praemissis patet. Si ergo sit una materia
com m unis omnium, ad hoc quod diversas formas
recipiat, oportet quod nobiliorem formam in subtiliori
et altiori materia recipiat, ignobiliorem vero in inferiori
materia et grossiori: puta formam spiritualitatis in
subtiliori materia, formam vero corporeitatis in inferiori,
ut ipse dicit. Praeexistit ergo in materia differentia
su btilitatis et grossitiei ante formam spiritualitatis
et corporeitatis. O portet igitur quod iterum ante
grossitiem et subtilitatem praeexistat in materia aliqua
alia differentia, per quam una materia sit receptiva
unius, et alia alterius: et eadem quaestio redibit de illis
aliis praeexistentibus, et sic in infinitum.

LXII •De Substantiis Separatis •S. Thomas de Aquino


“homem”, mas porque a própria forma do animal é a forma do
homem, diferindo tão-somente como um “determinado” difere de
um “indeterminado”. Pois, se “animal” fosse uma coisa e “bípe­
de” outra, não seria uno per se o animal bípede que é o homem
— donde não seria ele um ente per se.118 Conseqüentemente,
aconteceria que quaisquer coisas que concordam em gênero não
difeririam senão por diferenças acidentais — e todas as coisas
seriam uma segundo a substância, que é gênero e sujeito de todas
as substâncias, como se, numa superfície, uma parte fosse branca
e outra negra, mas o todo fosse uma única superfície. Por causa
disto, também os antigos que afirmavam haver uma só matéria,
a qual seria a substância de todas as coisas, e delas predicada,
diziam que todas as coisas eram uma só. E esses inconvenientes
acompanham também aqueles que propõem uma ordem de di­
versas formas substanciais em algo uno e uno apenas.

29 - Quanto ao terceiro, de acordo com o método da posi­


ção supra-referida,lw é necessário, com respeito às causas mate­
riais, proceder ao infinito, visto que nunca se chegaria à matéria
prima. Pois, em todas as coisas que concordam em um aspecto e
diferem em outro, aquilo em que concordam é tido como a ma­
téria; já aquilo em que diferem é tido como a forma, como está
evidente pelas premissas apresentadas.120 Se, portanto, houvesse
uma única matéria comum a tudo, seria então necessário, para
que esta recebesse diversas formas, que uma forma mais elevada
fosse recebida por uma matéria mais refinada e elevada, e que
uma menos elevada fosse recebida por uma matéria mais tosca e
inferior. Por exemplo, a forma da espiritualidade seria recebida
pela matéria mais refinada, enquanto a da corporeidade, pela
matéria inferior — como ele próprio afirmou.121 Portanto, uma
diferença, na matéria, entre refinamento e inferioridade é pre­
existente à espiritualidade e corporeidade. Assim, é novamente
necessário que, anteriormente à inferioridade e ao refinamento,
exista na matéria alguma outra diferença pela qual uma matéria
seria receptiva da primeira, e outra matéria, do segundo. E a
mesma questão retornará no tocante àquelas outras [diferenças]
preexistentes, e assim in infinitum.

Santo Tomás de Aquino ■Sobre os Anjos ■63


Quandocumque enim devenireturad materiam totaliter
informem, secundum principia positionis praedictae
oporteret quod non reciperet nisi unam formam, et
aequaliter per totum: et iterum materia illi formae
substrata, non reciperet consequenter nisi unam formam,
et uniformiter per totum; et ita descendendo usque ad
infima, nulla diversitas in rebus inveniri posset.

30 - Quarto, quia antiquis naturalibus ponentibus


primam materiam communem substantiam omnium,
possibile erat ex ea diversas res instituere, attribuendo
diversis partibus eius formas diversas. Poterat enim in
ilia communi materia, cum corporalis esset, intelligi
divisio secundum quantitatem. Remota autem divisione
quae est secundum quantitatem, non remanet nisi divisio
secundum formam vel secundum materiam. Si igitur
ponatur universalis materia, quae est communis omnium
substantia, non habens in sui ratione quantitatem, eius
divisio non potest intelligi nisi vel secundum formam,
vel secundum materiam ipsam. Cum autem dicitur
quod materia incorporea communis partim recipit
formam hanc, et partim recipit formam illam, divisio
materiae praesupponitur diversitati formarum in materia
receptarum. Non ergo ilia divisio potest secundum has
formas intelligi. Si ergo intelligatur secundum formas
aliquas, oportet quod intelligatur secundum formas
priores; quarum neutram materia per totum recipit. Unde
oportet iterum in materia praeintelligere divisionem vel
distinctionem quamcumque. Erit igitur et haec secundum
alias formas in infinitum, vel oportet devenire ad hoc quod
prima divisio sit secundum ipsam materiam.

31 - Non est autem divisio secundum materiam nisi


quia materia secundum se ipsam distinguitur, non propter
diversam dispositionem vel formam aut quantitatem, quia

LXIV ■De Substantiis Separatis ■S. Thomas de Aquino


Pois, sempre que se atingisse a matéria totalmente infor­
me, seria necessário, segundo os princípios do parecer exposto
acima, que nada recebesse senão uma só forma, e isto unifor­
memente pelo todo. E, novamente, a matéria situada abaixo
daquela forma, conseqüentemente, não receberia senão uma
só forma, e isto uniformemente pelo todo; e, deste modo, des­
cendo até os [entes] mais ínfimos, não se poderia encontrar
nenhuma diversidade nas coisas.

3 0 - Quanto ao quarto, porque, tendo os antigos natura­


listas afirmado que a matéria prima seria a substância comum
a tudo, era possível estabelecer, a partir dela, coisas diversas,
atribuindo às suas diversas partes formas diversas.122 Pois, visto
que aquela matéria comum era corpórea, podia compreender-se
nela uma divisão segundo a quantidade. Todavia, retirada tal
divisão segundo a quantidade, não permanece senão uma divi­
são segundo a forma ou segundo a matéria. Se, portanto, se dis­
ser que existe uma matéria universal comum a toda e qualquer
substância, e não-possuidora de quantidade em sua definição,
sua divisão não pode ser compreendida senão através da forma,
ou através da própria matéria. Contudo, quando se diz que a
matéria incorpórea comum recebe em parte uma forma, e em
parte outra, pressupõe-se uma divisão de matéria à divisão das
formas nela recebidas. Logo, não pode aquela divisão ser inte-
ligida através dessas formas. Se, portanto, fosse ela inteligida
segundo outras formas, seria necessário que isto ocorresse se­
gundo formas anteriores, nenhuma das quais a matéria recebe
pelo todo — donde se faz necessário, novamente, pré-inteligir
na matéria uma divisão ou distinção qualquer. E também esta,
portanto, será segundo outras formas, in infinitum — ou isto, ou
é preciso chegar ao seguinte raciocínio: a primeira divisão seria
segundo a própria matéria.

31 - Não há, porém, nenhuma divisão segundo a matéria, a


não ser que ela se distinga segundo ela mesma, e não segundo
uma disposição, forma ou quantidade diversa — o que seria uma
distinção da matéria segundo a quantidade, a forma ou a dispo-

Santo Tomás de Aquino ■Sobre os Anjos •6 5


hoc esset distingui materiam secundum quantitatem aut
formam seu dispositionem. Oportet igitur quod finaliter
deveniatur ad hoc quod non sit una omnium materia, sed
quod materiae sint multae et distinctae secundum se ipsas.
Materiae autem proprium est in potentia esse. Hanc igitur
materiae distinctionem accipere oportet, non secundum
quod est vestita diversis formis aut dispositionibus (hoc
enim est praeter essentiam materiae), sed secundum
distinctionem potentiae respectu diversitatis formarum.
Cum enim potentia id quod est ad actum dicatur, necesse
est ut potentia distinguatur secundum id ad quod primo
potentia dicitur. Dico autem ad aliquid primo potentiam dici,
sicut potentiam visivam ad colorem, non autem ad album
aut nigrum, quia eadem est susceptiva utriusque; et similiter
superficies est susceptiva albi et nigri secundum unam
potentiam, quae primo dicitur respectu coloris. Unde patet
falsum esse principium quod supponebat, dicens potentiam
et receptionem in omnibus eodem modo inveniri.

LXVI - De Substantiis Separatis •S. Thomas de Aquino


sição. É necessário, portanto, que finalmente se chegue ao fato
de que não haveria uma única matéria [comum a] todos, mas
que as matérias seriam várias e distintas segundo elas mesmas. E
próprio da matéria, porém, que ela exista em potência. Assim, é
preciso que se adote tal distinção de matéria não segundo o fato
de ela estar coberta por diversas formas ou disposições, pois isto
é alheio à essência da matéria, mas segundo a distinção da po­
tência com respeito à diversidade de formas. Porque, visto que se
diz ser a potência aquilo que “está para o ato”, é necessário que a
potência se distinga segundo aquilo para o qual primeiramente
ela seja dita uma potência.123 Digo, pois, que se fala de potência
primariamente com relação a algo assim como a potência de
ver [está] para a cor, e não para o branco ou o negro, uma vez
que a mesma potência é suscetível de ambos; igualmente, tam­
bém uma superfície é suscetível do branco ou do negro segundo
uma só potência, que é dita primeiramente com respeito à cor.
Por isto, está claro ser falso o princípio que Avicebrão supunha
ao afirmar que potência e recepção se encontram em todas as
coisas do mesmo modo.

Santo Tomás de Aquino Sobre os Anjos ■6 7


N o t a s — C a p ít u l o 6

102 - Cf. acima, cap. V, n°s 19-23; para outras refutações de Avicebrão, vide
Tomás de A quino , De Ente et Essentia, V; De Spirítualibus Creaturis, a. 1, a. 3;
Summa Theologiae, I, 50, 2; In II Sententiarum, d. 3, q. 1, a. 1.
103 - A ristóteles, Metafísica, II, 1 (993b 24-31); T omás de A quino , Summa
contra Gentiles, I, 13.
104 - Cf. acima, cap. I, nos 4-7; A ristóteles, Metafísica, I, 7 (988a 34-988b 6);
P roclo, Elementatio Theologica, Prop. 18.
105 - Cf. acima, cap. I, n° 2.
106 - Ibid.
107 - Cf. acima, cap. V, n0! 20, 21.
108 - Cf. acima, cap. V, n° 19.
109 - Cf. acima, cap. V, n° 20.
110 - Cf. acima, cap. V, n° 21; A vicebrão, Fons Vitae, IV, 2 ss; cf. G undissali-
nus ,Dominicus, De Anima, VII.
111 - Lat. passiones. Trata-se da tradução, para o latim, do grego filosófico
páthos (“ afecção” ), uma das dez categorias de Aristóteles. Santo Tomás vai
além da concepção aristotélica e aceita a definição de “ paixão da alma”
dada por São João Damasceno: “ Movimento do apetite sensitivo pela imagi­
nação de um bem ou de um mal” (Tomás de A quino , Summa Theologiae, lalla,
q. 22, a.3.). Antes, porém, nesta mesma questão da Summa, quando analisa
as paixões em geral, o Aquinate pré -id e n tifica trê s sentidos para a passio: a)
com o simples recepção (receptio) da ação de outrem; b) com o movimento
(in viam motus); c) como transm utação corporal (transmutationem corpora-
lem), que ocorre quando a receptio, em um homem, resulta na alteração do
seu estado psicofísico. Esta perspectiva é m uito mais abrangente do que
a da psicologia moderna, habituada a conceber as paixões da alma como
existentes apenas na instância dos afetos psíquicos, não relacionados com
o âm bito corporal. Na m agistral síntese de Santo Tomás, a paixão será o
m ovimento em um sujeito corporal, que passa de uma qualidade a outra
contrária, como efeito da ação de um agente (T omás de A quino , Scriptum
su p e r Sententiis, III, d istin ctio 15). Neste horizonte, a paixão é mais
com plexa do que a sim ples afecção aristotélica e, tam bém , do que os
c o n ce itos de paixão para a psicologia posterior a Santo Tomás, desde o
século XIII até hoje. Conforme salienta Manuel Llbeda P urkiss (in T omás de
A quino , Suma Teológica, Tomo IV, Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos,
1954, pp. 577-585), para o Aquinate, a alma é apenas sujeito acidental (per
accidens) do movimento das paixões; ademais, de um ser incorpóreo não se
pode dizer, em sentido próprio, que tenha paixões. Assim, a paixão se atribui
à alma humana acidentalm ente de duas maneiras: primeira, quando se inicia
no corpo e termina na alma, no caso específico de uma lesão fisica, quando
se dá a paixão corporal; segunda, quando a paixão se inicia na alma, como
princípio de movimento do corpo, e se consuma conjuntam ente nela e no
corpo, e então temos a paixão animal. Este último tipo de paixão tem lugar na
apreensão de algo pela alma com a consequente alteração corporal, como,
por exemplo, nos movimentos de ira ou cólera. (Ver T omás de A quino , De
Veritate, q. 26, a.2). Este preâm bulo da definição das paixões em sentido
geral perm itirá a Santo Tomás aprofundá-las como próprias do apetite sen­

LXVII1 ■De Substantiis Separatis ■S. Thomas de Aquino


sitivo, em um duplo viés: na potência concupiscível da anima, que contém os
im pulsos aos bens apetecíveis (e na qual se encontram as paixões do amor,
do desejo, do prazer, etc.); e também na irascível, que contém as reações a
males difíceis de vencer (e na qual estão enumeradas as paixões da espe­
rança, da audácia, do medo, do desespero, etc.). Para outras acepções de
passio em Santo Tomás, ver M ondin , Battista, Dizionario Enciclopédico dei
Pensiero d i San Tommaso D Aquino, Bologna, Edizioni Studio Domenicano,
2000, pp. 489-491. [ n . do E.]
112 - A ristóteles, Metafísica, VII, 3 (1029a 20).
113 - A ristóteles, Metafísica, VII, 12 (1038a 9).
114 - A ristóteles, Física, V, 1 (225a 12-20); Sobre a Geração e a Corrupção,
I, 2 (317a 17-31); Metafísica, XI, 11 (1067b 22).
115 - “A noção de secundum quid, que se contrapõe à de sim pliciter (Cf.
acima, nota 40), corresponde em português a “ sob certa relação”. Assim,
enquanto em Deus a Verdade, a Bondade e a Unidade não só são simpliciter,
mas se identificam sim pliciter entre si segundo sua razão form al - e são,
pois, Ele mesmo - , nos entes criados a verdade, a bondade e a unidade são
aspectos do ser diversos segundo sua razão formal: neles, por exemplo,
aquilo que é verdadeiro sim pliciter pode ser bom somente secundum quid,
e tc”. Cf. Tomás de A quino , Sobre o Mal. Rio de Janeiro: Sétimo Selo, 2005,
p. XXVIII. [N.doT.]
116 - A ristóteles, Metafísica, VII, 12 (1037b 12).
117 - A ristóteles, Metafísica, VII, 4 (1029b 16).
118 - A ristóteles, Metafísica, III, 4 (999b 25); VIII, 6 (1045b 16); cf. Tomás de
A quino , De Spiritualibus Creaturis, a. 3.
119 - Cf. acima, cap. V, nos 19-23.
120 - Cf. acima, cap. V, n° 19.
121 - Cf. acima, cap. V, n° 21.
122 - Cf. acima, cap. I, n° 2.
123 - A ristóteles, Metafísica, IX, 4 -6 (1047b 2-1048b 34); 8 (1049b 14).

Santo Tomás de Aquino •Sobre os Anjos ■6 9


CAPUT VII

Quod spiritualis et corporalis


substantiae non potest esse una materia

32 - Ex hac autem ratione ulterius concludi potest, quod


spiritualis et corporalis substantiae non potest esse una
materia. Nam si est materia una et communis utrorumque,
oportet in ipsa distinctionem praeintelligi ante differentiam
formarum, scilicet spiritualitatis et corporeitatis: quae
quidem non potest esse secundum quantitatis divisionem
quia in substantiis spiritualibus quantitatis dimensiones
non inveniuntur. Unde relinquitur quod ista distinctio sit vel
secundum formas seu dispositiones, vel secundum ipsam
materiam: et cum non possit esse secundum formas et
dispositiones in infinitum, oportet tandem redire ad hoc quod
sit distinctio in materia secundum se ipsam. Erit igitur omnino
alia materia spiritualium et corporalium substantiarum.

33 - Item cum recipere sit proprium materiae inquantum


huiusmodi, si sit eadem materia spiritualium et corporalium
substantiarum, oportet quod in utrisque sit idem receptionis
modus. Materia autem corporalium rerum suscipit formam
particulariter, idest non secundum communem rationem
formae. Nec hoc habet materia corporalis inquantum
dimensionibus subiicitur aut formae corporali, quia etiam
ipsam formam corporalem individualiter materia corporalis
recipit. Unde manifestum fit quod hoc convenit tali materiae,
ex ipsa natura materiae, quae quia est infima, debilissimo
modo recipit formam: fit enim receptio secundum modum
recipientis. Et per hoc maxime deficit a completa receptione
formae, quae est secundum totalitatem ipsius particulariter
ipsam recipiens. Manifestum est autem quod omnis
substantia intellectualis recipit formam intellectam secundum

LXX •De Substantiis Separatis •S. Thomas de Aquino


C A PÍTU LO 7

S o b r e n ão p o d e r h a v e r u m a s ó m a t é r ia
PARA AS SUBSTÂNCIAS ESPIRITUAIS E PARA AS CORPÓREAS

32 - Por tal argumento pode-se concluir, ademais, que


não pode haver uma só matéria para as substâncias corpóre-
as e para as espirituais. Porque, se há uma só matéria comum
a ambas, é necessário compreender-se nela, anteriormente à
diferença das formas, uma distinção (entre espiritualidade e
corporeidade); distinção esta que não se pode dar segundo
uma divisão de quantidade, visto que nas substâncias es­
pirituais não encontramos dimensões.124 Assim, resta que
tal distinção se dá ou segundo as formas (ou disposições),
ou segundo a própria matéria. E, como ela não se pode dar
segundo as formas e disposições in infinitum, é preciso que
ela exista na matéria segundo esta mesma matéria. Portan­
to, seriam absolutamente diversas a matéria das substâncias
espirituais e a das corpóreas.

33 - Igualmente, como “receber” é próprio da matéria,


enquanto matéria, se houvesse uma mesma matéria para as
substâncias corpóreas e para as espirituais, seria necessário que
em ambos os casos seu modo de recepção fosse o mesmo. Mas
a matéria das coisas corpóreas assume uma forma de modo
particular, isto é, não segundo a natureza comum da forma.125
Tampouco o faz a matéria enquanto é sujeito de dimensões ou
de uma forma corpórea, pois também a própria forma corpo-
rea é recebida pela matéria corporal individualmente. Donde
é evidente que isto convém a tal matéria devido à própria
natureza desta, a qual, visto que é a inferior, recebe a forma
do modo mais fraco — pois uma recepção se faz segundo o
modo do recipiente. Por isto, a matéria carece maximamente
da recepção completa da forma — esta que existe segundo a
sua própria totalidade — ao recebê-la particularmente. Mas é
claro que toda e qualquer substância intelectual recebe a for­
ma inteligida segundo a totalidade desta; de outro modo, não

Santo Tomás de Aquino •Sobre os Anjos ■71


suam totalitatem; alioquin earn in sua totalitate intelligere non
valeret. Sic enim intellects intelligit rem secundum quod
forma eius in ipso existit. Relinquitur igitur quod materia,
si qua sit in spiritualibus substantiis, non est eadem cum
materia corporalium rerum, sed multo altior et sublimior,
utpote recipiens formam secundum eius totalitatem.

3 4 - Adhuc ultra procedentibus manifestum fit quod tanto


aliquid in entibus est altius, quanto magis habet de ratione
essendi. Manifestum est autem quod cum ens per potentiam
et actum dividatur, quod actus est potentia perfection
et magis habet de ratione essendi: non enim simpliciter
esse dicimus quod est in potentia, sed solum quod est
actu. Oportet igitur id quod est superius in entibus, magis
accedere ad actum; quod autem est in entibus infimum,
propinquius esse potentiae. Quia igitur materia spiritualium
substantiarum non potest esse eadem cum corporalium
materia, sed longe altior, ut ostensum est; necesse est ut
longe distet a corporalium materia, secundum differentiam
potentiae et actus. Corporalium autem materia est potentia
pura, secundum sententiam Aristotelis et Platonis. Relinquitur
igitur quod materia substantiarum spiritualium non sit potentia
pura, sed sit aliquid ens actu, in potentia existens. Non autem
sic dico ens actu, quasi ex potentia et actu compositum; quia
vel esset procedere in infinitum, vel oporteret venire ad aliquid
quod esset ens in potentia tantum: quod cum sit ultimum in
entibus, et per consequens non potens recipere nisi debiliter
et particulariter, non potest esse prima materia spiritualis et
intellectual substantiae. Relinquitur ergo quod spiritualis
substantiae materia ita sit ens actu, quod sit actus vel forma
subsistens; sicut et materia corporalium rerum ita dicitur ens
in potentia, quia est ipsa potentia formis subiecta.

35 - Ubicumque autem ponitur materia ens actu, nihil


differt dicere materiam et substantiam rei. Sic enim antiqui

LXXII •De Substantiis Separatis ■S. Thomas de Aquino


tem a capacidade de compreendê-la em sua totalidade. Assim,
pois, o intelecto intelige uma coisa segundo existe nele a forma
desta coisa.126 Resta portanto que, se houvesse alguma matéria
nas substâncias espirituais, não seria ela a mesma das coisas
corpóreas, mas seria muito superior e muito mais sublime, por
receber uma forma segundo a sua totalidade.

34 - Indo além, é ainda evidente que, quanto mais algo é


elevado dentre os entes, tanto mais este algo possui da razão de
ser. E claro porém que, como um ente se divide em potência e
ato, o ato é mais perfeito que a potência e possui mais da razão
de ser.127 Assim, não dizemos simplesmente que algo [que está]
em potência é, mas o dizemos somente de algo que está em ato.
É necessário, portanto, que algo mais elevado dentre os entes
alcance mais o ato, ao passo que algo menos elevado dentre os
entes esteja mais próximo da potência. Logo, como a matéria
das substâncias espirituais não pode ser a mesma da matéria
corpórea, sendo antes muito superior, como foi demonstrado,128
é preciso que diste da matéria corpórea segundo a diferença
entre potência e ato. Mas a matéria corpórea é, segundo a afir­
mação de Aristóteles e Platão, potência pura.129 Resta-nos, por­
tanto, que a matéria das substâncias espirituais não é potência
pura, e sim algum ente em ato existente em potência. Mas não
digo “ente em ato existente em potência” como se ele fosse um
composto de potência e ato, pois assim ou se teria de proceder
ao infinito, ou seria preciso chegar a algo que seria um ente
somente em potência — o qual, como seria o último dentre
os entes e, por conseguinte, nada poderia receber senão de­
bilmente e particularmente, não poderia ser, então, a matéria
prima de ambas as substâncias espiritual e corporal. Resta, as­
sim, que a matéria da substância espiritual seja um ente em ato,
porque seria um ato ou forma que subsiste — assim como resta
que a matéria das coisas corpóreas seja considerada “ente em
potência”, porque seria a própria potência sujeito de formas.

35 - No entanto, sempre que se fala da matéria como um


ente em ato, isso em nada difere de dizermos “matéria” ou

Santo Tomás de Aquino ■Sobre os Anjos •7 3


naturales, qui ponebant primam materiam corporalium
rerum esse aliquid ens actu, dicebant materiam esse
omnium rerum substantiam, per modum quo artificialium
substantia nihil est aliud quam eorum materia. Sic igitur
si materia spiritualium substantiarum non potest esse
aliquid ens in potentia tantum, sed est aliquid ens actu,
ipsa spiritualium rerum materia est eorum substantia. Et
secundum hoc nihil differt ponere materiam in substantiis
spiritualibus, et ponere substantias spirituales simplices,
non compositas ex materia et forma.
Amplius, cum actus naturaliter sit prior potentia et forma
quam materia, potentia quidem dependet in suo esse ab actu,
et materia a forma; forma autem in suo esse non dependet a
materia secundum propriam rationem vel actus (a potentia);
non enim priora naturaliter a posterioribus dependent. Si igitur
aliquae formae sint quae sine materia esse non possunt, hoc
non convenit eis ex hoc quod sunt formae, sed ex hoc quod
sunt tales formae, scilicet imperfectae, quae per se sustentari
non possunt, sed indigent materiae fundamento.

36 - Sed ante omne imperfectum invenitur aliquid


perfectum in omnibus generibus; puta, si est ignis in materia
aliena, a qua ignis secundum suam rationem non dependet,
necesse est esse ignem non sustentatum in materia aliena.
Sunt igitur supra formas in materiisreceptas, aliquae formae
per se subsistentes, quae sunt spirituales substantiae ex
materia et forma non compositae. Hoc etiam apparet in
infimis substantiarum spiritualium, scilicet animabus, si
quis eas ponat corporibus uniri ut formas. Impossibile est
enim id quod est ex materia et forma compositum esse
alicuius corporis formam. Nam esse formam alicuius est
esse actum eiusdem. Nulla igitur pars eius quod est alicuius
forma, potest esse materia, quae est potentia pura.

LXXIV •De Substantiis Separatis •S. Thomas de Aquino


“substância” de uma coisa. Assim, pois, os antigos naturalistas
— que afirmavam que a matéria prima das coisas corpóreas é
um ente em ato — diziam ser a matéria a substância de todas as
coisas, do mesmo modo que a substância das coisas artificiais
não é senão sua matéria.130 Assim, portanto, se a matéria das
substâncias espirituais não pode ser um ente somente em po­
tência, mas é, sim, um ente em ato, então a própria matéria das
coisas espirituais é sua substância. E, segundo este raciocínio,
não há diferença entre propor [a existência de] matéria nas
substâncias espirituais e propor [a existência de] substâncias
espirituais simples, não compostas de matéria e forma.
Ademais, visto que naturalmente o ato é anterior à potência
e a forma à matéria, a potência, em seu ser, depende do ato, e a
matéria, por sua vez, da forma. Mas a forma, em seu ser, não de­
pende da matéria, segundo sua própria natureza; e tampouco o ato
[depende da potência]. De fato, as coisas naturalmente anteriores
não dependem das posteriores. Se, portanto, há certas formas que
não podem existir sem matéria, isto não se dá porque elas sejam
formas, e sim porque são formas tais que, imperfeitas, não podem
sustentar-se a si mesmas, carecendo de fundamento na matéria.

36 - Em todos os gêneros, antes de tudo o que é imper­


feito encontra-se algo que é perfeito. Por exemplo: se há
fogo em uma matéria alheia, da qual tal fogo, segundo sua
própria natureza, não depende, é necessário que o fogo não
esteja sustentado por esta matéria alheia. Logo, acima das
formas recebidas na matéria, há certas formas subsistentes
per se, as quais são substâncias espirituais não-compostas
de matéria e forma. E é isto o que se vê também nas mais
inferiores das substâncias espirituais — as almas — , se
assumimos que elas se unem aos corpos como formas. De­
certo, é impossível que algo que é um composto de matéria
e forma seja a forma de algum corpo. Ser a forma de algo é
ser seu ato. Logo, nenhuma parte daquilo que é a forma de
algo pode ser matéria, que é potência pura.

Santo Tomás de Aquino Sobre os Anjos •7 5


N o t a s — C a p ít u l o 7

124 - T omás de A quino , Summa Theologiae, I, 50, 2.


125 - A ristóteles, Metafísica, VII, 9 (1034b 7-19).
126 - Cf. T omás de A quino , Summa Theologiae, I, 84, 1.
127 - A ristóteles, Metafísica, IX, 8 (1049b 3).
128 - Cf. acima, cap. V, n° 21; cap. VI, n° 29.
129 - A ristóteles, Metafísica, VII, 3 (1029a 20); P latão, Timeu, 49A, 52D.
130 - Cf. acima, cap. I, n° 2.

LXXVI •De Substantiis Separatis ■S. Thomas de Aquino


Santo Tomás de Aquino ■Sobre os Anjos • 77
CAPUT VIII

De solutione
rationum Avicebron

37 - His igitur visis, facile est rationes dissolvere in


contrarium adductas. Prima enim ratio concludere videbatur
quod non posset esse diversitas in spiritualibus substantiis,
si non essent ex materia et forma compositae. Quae quidem
ratio in utraque parte suae deductionis deficiebat. Neque
enim oportet quod ea quae sunt materiae tantum, sint absque
diversitate; neque etiam hoc oportet de substantiis quae
sunt formae tantum. Dictum est enim, quod quia materia
secundum id quod est, est in potentia ens, necesse est ut
secundum potentiae diversitatem sint diversae materiae. Nec
aliud dicimus materiae substantiam quam ipsam potentiam
quae est in genere substantiae. Nam genus substantiae, sicut
et alia genera, dividitur per potentiam et actum: et secundum
hoc nihil prohibet aliquas substantias quae sunt in potentia
tantum, esse diversas, secundum quod ad diversa genera
actuum ordinantur: per quern modum caelestium corporum
materia a materia elementorum distinguitur. Nam materia
caelestium corporum est in potentia ad actum perfectum,
idestadformam quaecomplettotam potentialitatem materiae,
ut iam non remaneat potentia ad alias formas. Materia autem
elementorum est in potentia ad formam incompletam, quae
totam potentiam materiae terminare non potest. Sed supra
has materias, est spiritualis materia, idest ipsa substantia
spiritualis, quae recipit formam secundum suam totalitatem,
inferioribus materiis formam particulariter recipientibus.

38 - Similiter etiam non tenet deductio ex parte


formarum. Manifestum est enim quod si res compositae ex
materia et forma secundum formas differunt, quod ipsae

LXXVIII ■De Substantiis Separatis ■S. Thomas de Aquino


C A PÍTU LO 8

S o br e a refu ta çã o d o s
RACIOCÍNIOS DE AviCEBRÃO

37 - Vistos estes fatos, é fácil refutar os argumentos


aduzidos em contrário. O primeiro argumento parecia
concluir que não poderia haver diversidade entre as subs-
tâncias espirituais se não fossem elas compostas de maté-
ria e form a.1,1 Tal argumento era deficiente em ambas as
suas partes. Pois não é necessário que sejam privadas de
diversidade as coisas que são apenas matéria, e tampouco
que o sejam aquelas que são apenas forma. Foi dito132 que,
como a matéria, segundo sua própria natureza, é um ente
em potência, é preciso que haja diversas matérias segundo
a diversidade de potências. E não dizemos que a substância
da matéria seja nada mais do que a própria potência que
há no gênero da substância. O gênero da substância, por
sua vez, divide-se em potência e ato, e, assim, nada proíbe
às substâncias que existem somente em potência ser dis­
tintas entre si, segundo são ordenadas a diversos gêneros
de atos — modo pelo qual a matéria dos corpos celestes
se distingue da matéria [comum].133 De fato, a matéria dos
corpos celestes está em potência para o ato perfeito, isto
é, para uma forma que completa toda a potencialidade da
matéria, de modo que já não restaria potência para outras
formas. Já a matéria dos elementos está em potência para
formas incompletas, que não podem esgotar toda a potên­
cia da matéria. Mas acima destas matérias está a matéria
espiritual, isto é, a substância espiritual que recebe a forma
segundo a sua totalidade — ao passo que as matérias infe­
riores recebem forma de modo particular.

38 - De maneira semelhante, tampouco se sustenta a de­


dução a partir das formas.134 E evidente que, se as coisas com­
postas de matéria e forma diferem segundo as formas, então as
próprias formas são diversas segundo elas mesmas. Contudo,

Santo Tomás de Aquino •Sobre os Anjos •7 9


formae secundum se ipsas diversae sunt. Sed si dicatur
quod diversarum rerum formae non sunt diversae nisi
propter materiae diversitatem, sicut diversi colores ex una
solis illustratione causantur in aere secundum differentiam
spissitudinis et diversitatis illius, necesse est quod ante
colorum diversitatem praeintelligatur in aere diversitas
puritatis et spissitudinis: et sic etiam necesse erit quod
in materia ante unam formam intelligatur alia forma, sicut
etiam in corporibus ante colorem intelligitur superficies.
Invenitur igitur in formis diversitas secundum quemdam
ordinem perfectionis et imperfectionis, nam quae materiae
est propinquior, imperfectior est, et quasi in potentia
respectu supervenientis formae. Sic igitur nihil prohibet in
spiritualibus substantiis ponere multitudinem, quamvis sint
formae tantum, ex hoc quod una earum est alia perfectior;
ita quod imperfectior est in potentia respectu perfections,
usque ad primam earum, quae est actu tantum, quae Deus
est; ut sic omnes inferiores spirituales substantiae, et
materiae possint dici secundum hoc quod sunt in potentia,
et formae secundum hoc quod sunt actu.

39 - Unde patet frivolum esse quod contra hoc obiicit


concludens, si spiritualis substantia secundum perfectionem
etimperfectionemdiffert,quodoportetipsamesseperfectionis
et imperfectionis subiectum: et sic, cum subiectum pertineat
ad rationem materiae, oportebit substantiam spiritualem
habere materiam. In quo quidem dupliciter fallitur. Primo
quidem, quia aestimat perfectionem et imperfectionem
esse quasdam formas supervenientes, vel accidentia quae
subiecto indigeant: quod quidem manifeste falsum est. Est
enim quaedam rei perfectio secundum suam speciem et
substantiam, quae non comparatur ad rem sicut accidens ad
subiectum, vel sicut forma ad materiam, sed ipsam propriam
speciem rei designat. Sicut enim in numeris unus est maior
alio secundum propriam speciem, unde inaequales numeri

LXXX ■De Substantiis Separatis S. Thomas de Aquino


caso se diga que as formas de coisas diversas não são diver­
sas senão por causa da diversidade da matéria — assim como
cores diversas são causadas por uma só iluminação do sol no
ar e de acordo com a densidade ou rarefação deste — , faz-se
então necessário que, anteriormente à diversidade das cores,
se compreenda no ar uma diferença de pureza e densidade.
Logo, igualmente, também na matéria é preciso, anteriormente
a certa forma, que outra forma já esteja compreendida, assim
como, nos corpos, antes de uma cor, se intelige uma superfície.
Encontra-se nas formas, portanto, uma diversidade segundo
certa ordem de perfeição e imperfeição. Pois aquela [forma]
que é mais próxima da matéria é mais imperfeita e quase uma
potência com respeito à forma superveniente. Assim, ainda
que sejam somente formas, nada impede que se afirme existir
multiplicidade entre as substâncias espirituais, visto que uma
delas é mais imperfeita que outra — considerando-se que o
mais imperfeito está em potência com respeito ao mais perfeito,
e assim até a primeira das formas, que é ato puro, e que é Deus;
de modo que, assim, todas as substâncias espirituais inferiores
podem chamar-se matérias, segundo existam em potência; e
formas, segundo existam em ato.

39 - Donde se vê ser frágil o que ele objeta ao raciocínio


exposto, concluindo que, se a substância espiritual difere se­
gundo perfeição e imperfeição, seria então necessário que ela
fosse sujeito de perfeição e de imperfeição; e, assim, visto que
sujeito pertence à natureza da matéria, seria necessário à subs­
tância espiritual possuir matéria. Nesta conclusão, engana-se
de duas maneiras. Primeiro, porque estima que a perfeição e
a imperfeição são formas supervenientes ou acidentes de que
o sujeito carece, o que é claramente falso. Pois certa perfei­
ção que uma coisa possui existe segundo sua espécie e sua
substância, que não se compara à coisa como um acidente a
um sujeito, ou como uma forma à matéria, mas sim designa a
espécie própria da coisa. Assim como um número é maior que
outro de acordo com sua própria espécie (razão por que nú­
meros diversos diferem em espécie), também entre as formas

Santo Tomás de Aquino ■Sobre os Anjos •81


specie differunt, ita in formis tarn materialibus quam a materia
separatis una est perfectior alia secundum rationem propriae
naturae, inquantum scilicet propria ratio speciei in tali gradu
perfectionis consistit. Secundo, quia esse subiectum non
consequitur solum materiam quae est pars substantiae, sed
universaliter consequitur omnem potentiam. Omne enim
quod se habet ad alterum ut potentia ad actum, ei natum
est subiici. Et per hunc etiam modum spiritualis substantia,
quamvis non habeat materiam partem sui, ipsa tamen
prout est ens secundum aliquid in potentia, potest subiici
intelligibilibus speciebus.

40 - Ex hoc etiam solutio secundae rationis apparet.


Cum enim dicimus aliquam substantiam corporalem esse vel
spiritualem.noncomparamusspiritualitatemvelcorporeitatem
ad substantiam sicut formas ad materiam, vel accidentia
ad subiectum, sed sicut differentias ad genus: ita quod
substantia spiritualis non propter aliquid additum substantiae
est spiritualis sed secundum suam substantiam, sicut et
substantia corporalis non per aliquid additum substantiae
est corporalis, sed per suam substantiam. Non enim est alia
forma per quam species differentiae praedicationem suscipit,
ab ea per quam suscipit praedicationem generis, ut supra
dictum est. Unde non oportet quod spiritualitati spiritualis
substantiae subiiciatur aliquid sicut materia vel subiectum.

41 - Tertia vero ratio efficaciam non habet. Cum


enim ens non univoce de omnibus praedicetur, non est
requirendus idem modus essendi in omnibus quae esse
dicuntur; sed quaedam perfectius, quaedam imperfectius
esse participant. Accidentia enim entia dicuntur, non quia
in se ipsis esse habeant, sed quia esse eorum est in hoc
quod insunt substantiae. Rursumque in substantiis omnibus
non est idem modus essendi. Illae enim substantiae quae
perfectissime esse participant, non habent in se ipsis aliquid

LXXXII •De Substantiis Separatis S. Thomas de Aquino


— tanto as materiais como as separadas da matéria — uma
é superior a outra conforme a razão da sua própria natureza,
enquanto o caráter próprio de uma espécie consiste em tal
grau de perfeição. Segundo, porque “ser sujeito” não recai
apenas sobre a matéria que é parte da substância, mas recai
universalmente sobre toda e qualquer potência. Pois ser sujei'
to é natural a tudo o que se relaciona com outra coisa como
a potência se relaciona com o ato; e, também desta maneira,
a substância espiritual, ainda que não possua matéria como
parte de si, é ela própria um ente — ao modo como algo em
potência pode ser sujeito de formas inteligíveis.

40 - A partir disto, surge também a contestação do segun-


do argumento.1’5 Pois, quando dizemos que certa substância
é corpórea ou espiritual, não comparamos a espiritualidade
ou a corporeidade à substância como formas à matéria ou
como acidentes a um sujeito, mas sim como diferenças a um
gênero; e isto porque a substância espiritual não é espiritual
por causa de algo adicionado à substância, mas sim segundo
sua própria substância — assim como a substância corpórea
não é corpórea por causa de algo adicionado à substância,
mas sim segundo a sua própria substância. Pois a forma pela
qual a espécie adquire a predicação da diferença é a mesma
pela qual tal espécie adquire predicação de gênero, como foi
dito acima.156 Assim, não é necessário que algo se submeta à
espiritualidade da substância como matéria ou sujeito.

4 1 - 0 terceiro argumento,137 por sua vez, não tem validade.


Visto que um ente não se predica de todas as coisas univoca­
mente, não é requerido o mesmo modo de ser de todas as coisas
que são ditas ser: algumas participam do ser mais perfeitamente,
outras menos perfeitamente.138 Os acidentes são chamados entes
não porque possuam ser dentro de si próprios, mas porque seu
ser jaz no fato de que eles estão na substância.1517 Mais ainda,
não é o mesmo o modo de ser em todas as substâncias. Aquelas
que mais perfeitamente participam do ser não possuem em si
próprias algo que seria um ente somente em potência, motivo

Santo Tomás de Aquino •Sobre os Anjos •8 3


quod sit ens in potentiasolum: unde immateriales substantiae
dicuntur. Sub his vero sunt substantiae quae etsi in se ipsis
huiusmodi materiam habeant, quae secundum sui essentiam
est ens in potentia tantum; tota tamen earum potentialitas
completur per formam, ut in eis non remaneat potentia ad
aliam formam, unde et incorruptibiles sunt, sicut caelestia
corpora, quae necesse est ex materia et forma composita
esse. Manifestum est enim ea actu existere; alioquin
motus subiecta esse non possent, aut sensui subiacere,
aut alicuius actionis esse principium. Nullum autem eorum
est forma tantum: quia si essent formae absque materia,
essent substantiae intelligibiles actu simul et intelligentes
secundum se ipsas: quod esse non potest, cum intelligere
actus corporis esse non possit, ut probatur in libro de anima.
Relinquitur ergo quod sunt quidem ex materia et forma
composita: sed sicut illud corpus ita est huic magnitudini
et figurae determinatae subiectum, quod tamen non est in
potentia ad aliam magnitudinem vel figuram: ita caelestium
corporum materia ita est huic formae subiecta, quod non est in
potentia ad aliam formam. Sub his vero substantiis est tertius
substantiarum gradus, scilicet corruptibilium corporum,
quae in se ipsis huiusmodi materiam habent, quae est ens
in potentia tantum; nec tamen tota potentialitas huiusmodi
materiae completur per formam unam cui subiicitur, quin
remanet adhuc in potentia ad alias formas. Et secundum
hanc diversitatem materiae invenitur in corporibus subtilius
et grossius prout caelestia corpora sunt subtiliora et magis
formalia quam elementaria. Et quia forma proportionatur
materiae, consequens est quod etiam caelestia corpora
habeant nobiliorem formam et magis perfectam, utpote totam
potentialitatem materiae adimplentem. In substantiis igitur
superioribus, a quibus est omnino potentia materiae aliena,
invenitur quidem differentia maioris et minoris subtilitatis
secundum differentiam perfectionis formarum, non tamen in
eis est compositio materiae et formae.

LXXXIV ■De Substantiis Separatis •S. Thomas de Aquino


pelo qual são chamadas substâncias imateriais. Já abaixo destas
estão as substâncias que, embora possuam em si próprias uma
matéria que, segundo sua própria essência, é um ente somente
em potência, têm toda a sua potencialidade completada pela
forma, de modo que nelas não permanece potência para outra
forma. Por isto, são elas incorruptíveis, como o são os corpos
celestes (aos quais é necessário serem compostos de matéria e
forma). Decerto, é necessário que existam em ato, pois de outro
modo não poderiam suportar nenhum movimento, nem estar
sujeitos aos sentidos, nem ser o princípio de nenhuma ação. Ne­
nhum deles é apenas forma, porque, se fossem formas privadas
de matéria, seriam substâncias inteligíveis em ato e inteligentes
segundo elas próprias — o que não pode ocorrer, visto que o
inteligir não pode ser o ato de um corpo, como está provado no
livro Sobre a Alma.1*0 Resta, portanto, que elas sejam compostas
de matéria e forma. Mas, assim como determinado corpo é su­
jeito de determinadas magnitude e figura de tal modo que não
está em potência para outras magnitude e figura, igualmente a
matéria dos corpos celestes é de tal modo sujeito de determinada
forma, que não está em potência para outra forma.
Abaixo destas substâncias, há um terceiro grau de substân­
cias: o dos corpos corruptíveis, que possuem em si a matéria de
tal modo, que ela é um ente somente em potência. Mas toda
a potencialidade de tal matéria não é preenchida, pela forma
única de que esta é sujeito, de tal modo que ela não permaneça
em potência para outras formas. E, de acordo com esta diver­
sidade de matéria, [tal potencialidade] encontra-se nos corpos
mais refinadamente ou mais grosseiramente — conforme os
corpos celestes são mais refinados e mais formais que os ele­
mentares. E, como a forma é proporcionada à matéria, tem-se
como conseqüência que também os corpos celestes possuem
uma forma mais elevada e mais perfeita, visto que ela preen­
che toda a potencialidade da matéria. Logo, nas substâncias
superiores, às quais a potência da matéria é totalmente alheia,
encontra-se uma diferença de maior ou menor refinamento de
acordo com a diferença de perfeição das formas; ainda que não
haja nelas uma composição de matéria e forma.

Santo Tomás de Aquino •Sobre os Anjos •8 5


42 - Quarta vero ratio efficaciam non habet. Non enim
oportet ut si substantiae spirituales materia careant, quod a
Deo non distinguantur; sublata enim potentialitate materiae,
remanet in eis potentia quaedam, inquantum non sunt ipsum
esse, sed esse participant. Nihil autem per se subsistens,
quod sit ipsum esse, potest inveniri nisi unum solum; sicut
nec aliqua forma, si separata consideretur, potest esse nisi
una. Inde est enim quod ea quae sunt diversa numéro, sunt
unum specie, quia natura speciei secundum se considerata
est una. Sicut igitur est una secundum considerationem,
dum per se consideratur, ita esset una secundum esse,
si per se existeret. Eademque ratio est de genere per
comparationem ad species, quousque perveniatur ad
ipsum esse quod est communissimum. Ipsum igitur esse
per se subsistens est unum tantum. Impossibile est igitur
quod praeter ipsum sit aliquid subsistens quod sit esse
tantum. Omne autem quod est, esse habet. Est igitur in
quocumque, praeter primum, et ipsum esse, tanquam
actus; et substantia rei habens esse, tanquam potentia
receptiva huius actus quod est esse.

43 - Potest autem quis dicere: quod id quod participât


(aliquid) est secundum secarens illo; sicut superficies, quae
nata est participare colorem, secundum se considerata, est
non color et non colorata. Similiter igitur id quod participai
esse, oportet esse non ens. Quod autem est in potentia
ens et participativum ipsius, non autem secundum se
est ens, materia est, ut supra dictum est. Sic igitur omne
quod est post primum ens, quod est ipsum esse, cum sit
participative ens, habet materiam.
Sed considerandum est, quod ea quae a primo ente esse
participant, non participant esse secundum universalem
modum essendi, secundum quod est in primo principio,
sed particulariter secundum quemdam determinatum
essendi modum qui convenit vel huic generi vel huic speciei.

LXXXVI •De Substantiis Separatis •S. Thomas de Aquino


4 2 - O quarto argumento141 tampouco tem validade. Não
é necessário que, se as substâncias espirituais carecem de
matéria, não se distingam de Deus. Suprimida a potência-
Iidade da matéria, ainda permanece nelas certa potência,
enquanto não são o próprio ser, mas participam do ser.142 O
que subsiste per se, e que é o próprio ser, não pode ser en­
contrado senão como um só — assim como nenhuma forma,
se considerada em separado, pode ser mais que uma só. E é
por isso que as coisas que são diversas em número são unas
em espécie; porque a natureza da espécie, se considerada em
si, é uma apenas. Logo, assim como ela é una por conside­
ração — enquanto considerada per se — , também seria ela
una segundo o ser, se existisse per se. O mesmo argumento
vale para o gênero, em comparação com a espécie; e assim
até que se alcance o próprio ser mais comum. Portanto, o
próprio ser subsistente per se é apenas um.141 Assim, é impos­
sível que outro além dele seja algo subsistente que seja tão-
somente ser. Contudo, tudo que é possui ser. Logo, em todo
e qualquer ser — exceto o primeiro — há tanto o próprio
ser como ato, quanto a substância que possui o ser da coisa
como potência receptiva deste ato que é o ser.144

43 - Mas pode alguém dizer que aquilo que participa de


algo é, segundo ele próprio, carente deste algo; assim como
uma superfície, à qual é inato participar da cor, se considerada
em si própria, não é cor nem colorida. Igualmente, portanto,
aquilo que participa do ser necessita ser um não-ente. Mas
algo que é ente em potência e é dele participante — mas
não-ente segundo si próprio — , este algo é a matéria, como
dito acima.145 Assim, portanto, tudo o que existe após o Ente
Primeiro — Ente este que é o próprio ser — é ente por parti­
cipação, e pois possui matéria.
Mas deve-se considerar que as coisas que participam do
ser a partir do Ente Primeiro não o fazem segundo o modo de
ser universal — o modo que se dá no Princípio Primeiro — ,
mas o fazem particularmente, segundo determinado modo de
ser que é próprio de tal gênero ou de tal espécie. Cada coisa,

Santo Tomás de Aquino ■Sobre os Anjos •8 7


Unaquaeque autem res adaptatur ad unum determinatum
modum essendi secundum modum suae substantiae.
Modus autem uniuscuiusque substantiae compositae ex
materia et forma, est secundum formam, per quam pertinet
ad determinatam speciem. Sic igitur res composita ex
materia et forma, per suam formam fit participativa ipsius
esse a Deo secundum quemdam proprium modum.

44 - Invenitur igitur in substantia composita ex materia et


forma duplex ordo: unus quidem ipsius materiae ad formam;
alius autem ipsius rei iam compositae ad esse participatum.
Non enim est esse rei neque forma eius neque materia ipsius,
sed aliquid adveniens rei per formam. Sic igitur in rebus ex
materia et forma compositis, materia quidem secundum se
considerata, secundum modum suae essentiae habet esse
in potentia, et hoc ipsum est ei ex aliqua participatione primi
entis; caret vero, secundum se considerata, forma, per quam
participat esse in actu secundum proprium modum.
Ipsa vero res composita in sui essentia considerata, iam
habet formam, sed participat esse proprium sibi per formam
suam. Quia igitur materia recipit esse determinatum actuale per
formam, et non e converso, nihil prohibet esse aliquam formam
quae recipiat esse in se ipsa, non in aliquo subiecto: non enim
causa dependet ab effectu, sed potius e converso. Ipsa igitur
forma sic per se subsistens, esse participat in se ipsa, sicut
forma materialis in subiecto. Si igitur per hoc quod dico: non
ens, removeatur solum esse in actu, ipsa forma secundum se
considerata, est non ens, sed esse participans. Si autem non
ens removeat non solum ipsum esse in actu, sed etiam actum
seu formam, per quam aliquid participat esse; sic materia est
non ens, forma vero subsistens non est non ens, sed est actus,
qui est forma participativus ultimi actus, qui est esse.
Patet igitur in quo differt potentia quae est in substantiis
spiritualibus, a potentia quae est in materia. Nam potentia
substantiae spiritualis attenditur solum secundum ordinem

LXXXVIII •De Substantiis Separatis ■S. Thomas de Aquino


porém, se adapta a determinado modo de ser segundo o modo
de sua substância. E o modo de cada substância composta de
matéria e forma é segundo a forma, pela qual ela pertence a
determinada espécie. Assim, uma coisa composta de matéria
e forma faz-se, por sua forma, participante do próprio ser — a
partir de Deus — segundo certo modo próprio.

44 - Encontra-se, portanto, nas substâncias compostas de


matéria e forma, uma dupla ordem. Uma é a ordem da própria
matéria à forma; a outra é a ordem da própria coisa já composta
ao ser participado.146 Pois o ser da coisa não é sua forma nem
sua matéria, mas algo que sobrevém à coisa através da forma.147
Assim, portanto, em coisas compostas de matéria e forma,
a matéria — considerada em si mesma — possui, segundo o
modo de sua essência, ser em potência, fato que lhe sucede a
partir de uma participação do Ente Primeiro. Porém, conside­
rada em si mesma, carece da forma pela qual participa em ato
do ser segundo seu modo próprio.148
A coisa composta mesma, considerada em sua essência, já
possui forma, mas participa de seu próprio ser através de sua
forma. Logo, como a matéria recebe determinado ser atual149
através da forma e não o contrário, nada impede que exista
certa forma que receba o ser nela mesma e não em algum su­
jeito. Isto porque uma causa não depende do efeito, mas ao
contrário. Assim, a própria forma subsistente per se participa
do ser dentro de si mesma, como a forma material em um sujei­
to. Se, portanto, ao dizer “não-ente” eu removesse apenas o ser
em ato, então a própria forma considerada em si mesma seria
um não-ente, embora participante do ser. Se, no entanto, “não-
ente” remove não apenas o próprio ser em ato, mas também o
ato ou forma pela qual algo participa do ser, então [neste sen­
tido] a matéria é um não-ente, enquanto a forma subsistente
não é um não-ente, mas um ato que é forma participante do
ato último que é ser.
Torna-se evidente, assim, em que difere a potência que está
nas substâncias espirituais da potência que está na matéria.
A potência da substância espiritual é considerada apenas se-

Santo Tomás de Aquino •Sobre os Anjos •8 9


ipsius ad esse; potentia vero materiae secundum ordinem
et ad formam et ad esse. Si quis autem utramque potentiam
materiam esse dicat, manifestum est quod aequivoce
materiam nominabit.

45 - Quintae vero rationis solutio iam ex dictis apparet.


Quia enim substantia spiritualis esse participât non
secundum suae communitatis infinitatem, sicut est in
primo principio, sed secundum proprium modum suae
essentiae, manifestum est quod esse eius non est infinitum,
sed finitum. Quia tamen ipsa forma non est participata in
materia, ex hac parte non finitur per modum quo finiuntur
formae in materia existentes.
Sic igitur apparet gradus quidam infinitatis in rebus.
Nam materiales substantiae finitae quidem sunt dupliciter:
scilicet ex parte formae, quae in materia recipitur, et ex parte
ipsius esse, quod participai secundum proprium modum,
quasi superius et inferius finita existens. Substantia vero
spiritualis est quidem finita superius, inquantum a primo
principio participât esse secundum proprium modum;
est autem infinita inferius, inquantum non participatur
in subiecto. Primum vero principium, quod Deus est, est
modis omnibus infinitum.

XC •De Substantiis Separatis ■S. Thomas de Aquino


gundo sua própria ordem [em relação] ao ser; já a potência da
matéria é considerada segundo tanto a ordem [em relação] à
forma quanto a ordem [em relação] ao ser. Se alguém dissesse
que ambas as potências são matéria, é claro que estaria usando
o termo “matéria” em sentido equívoco.

45 - A refutação do quinto argumento150 já é patente pelo


que foi dito.151 Como a substância espiritual participa do ser
não segundo a infinidade de sua comunidade,152 como ocorre
no Princípio Primeiro, mas segundo o modo próprio de sua es­
sência, é evidente que seu ser não é infinito, mas finito. Visto,
porém, que a própria forma não é participada na matéria, ela
não está então limitada, nesse respeito, pelo modo através do
qual as formas existentes na matéria se limitam.
Assim, portanto, vê-se que há certo grau de infinidade nas
coisas. As substâncias materiais são finitas de duas maneiras:
por parte da forma, que é recebida na matéria, e por parte de
seu próprio ser, do qual participa segundo um modo próprio,
sendo finitas tanto inferiormente quanto superiormente. Já a
substância espiritual é finita superiormente enquanto, a par­
tir do Princípio Primeiro, participa do ser segundo um modo
próprio; e é infinita inferiormente enquanto não-participada
num sujeito. Já o Princípio Primeiro, que é Deus, é em todos os
modos infinito.

Santo Tomás de Aquino •Sobre os Anjos •91


N o ta s — C a p ít u l o 8

131 - Cf. acima, cap. V, n° 22.


132 - Cf. acima, cap. VI, n° 27.
133 - Naturalmente, este parecer sobre a matéria dos corpos celestes, o qual
permaneceu inconteste desde a filosofia helénica até a escolástica, é atual­
mente questionável. Sublinhe-se, porém, que a sua invalidação não afeta a
tese central deste opúsculo, uma vez que, com o se pode ler por todo o texto,
Santo Tomás não faz derivar dos corpos celestes ou de seus movimentos
(como o fazia, por exemplo, Aristóteles) as substâncias separadas ou anjos,
reconhecendo-os, ao contrário, como criados direta e imediatamente por
Deus, sem intervenção alguma de causas segundas, [n . do r .]
134 - Cf. acima, cap. V, n° 22.
135 - Cf. acima, cap. V, n° 22.
136 - Cf. acima, cap. VI, n° 28.
137 - Cf. acima, cap. V. n° 23.
138 - A ristóteles, Metafísica, IV, 1 (1003a 20-1003b 18); XI, 3 (1060b 3 0 -
1061a 10).
139 - A ristóteles, Metafísica, VII, 1 (1028a 18); XII, 1 (1069a 21).
140 - A ristóteles, Sobre a Aima, III, 4 (429b 5); T omás de A quino , In De Anima,
III, lect. 7.
141 - Ver acima, cap. V, n° 23.
142 - Tomás de A quino , Summa Theologiae, I, 5 0 ,1 -2 ; Expositio super Librum
Boethii de Trínitate, q. 5, a. 4, ad 4.
143 - Tomás de A quino , Summa Theologiae, I, 3, 4; 7, 1 ad 3.
144 - Tomás de A quino , Summa contra Gentiles, II, 52.
145 - Cf. acima, cap. VI, n° 27.
146 - Tomás de A quino , De Ente et Essentia, IV, V; cf. G ilson, Étienne, Being
and Some Philosophers, Toronto: Pontifical Institute of Mediaeval Studies,
1949, pp. 173 ss.
147 - Tomás de A quino , In Metaphysicam, VII, lect. 7.
148 - Tomás de A quino , In Metaphysicam, VII, lect. 2.
149 - Lat. actuate = em ato. [n . do r.]
150 Cf. acima, cap. V, n° 23.
151 Cf. acima, cap. VIII, n° 43.
152 l.e., qualidade daquilo que é comum. [n . do t .J

XCII •De Substantiis Separatis •S. Thomas de Aquino


S a n to T o m á s d e A q u in o • Sobre os Anjos • 93
CAPUT IX

De opinione eorum qui dicunt


substantias spirituales non esse creatas

46 - Sicut autem praedicta positio circa conditionem


spiritualium substantiarum a sententia Platonis et Aristotelis
deviavit, eis immaterialitatis simplicitatem auferens; ita et
circa modum existendi ipsarum aliqui a veritate deviasse
inveniuntur, auferentes earum originem a primo et summo
auctore. In quo inveniuntur diversi homines tripliciter
errasse. Quidam enim posuerunt praedictas substantias
omnino causam sui esse non habere. Quidam autem
posuerunt eas quidem essendi causam habere, non
tarnen immediate eas omnes procedere a summo et primo
principio, sed quadam serie ordinis inferiores earum a
superioribus essendi originem habere. Alii vero confitentur
omnes quidem huiusmodi substantias immediate essendi
habere originem a primo principio, sed in ceteris quae de
eis dicuntur, puta quod sunt viventes, intelligentes et alia
huiusmodi, superiores inferioribus causas existere.

47 - Primi quidem igitur spirituales substantias omnino


increatas esse existimant, huiusmodi opinionem sumentes
ex hisquae secundum materiam causantur, utentes communi
suppositions naturali philosophorum pro principio: ex nihilo
nihil fieri. Hoc autem videtur fieri quod habet causam sui
esse. Quidquid igitur sui esse causam habet, oportet illud ex
alio fieri. Hoc autem ex quo aliquid fit, est materia. Si igitur
spirituales substantiae materiam non habent, consequens
videtur eas omnino causam sui esse non habere.
Rursus. Fieri, moveri quoddam est, vel mutari. Mutationis
autem omnis et motus subiectum aliquod esse oportet; est
enim motus actus existentis in potentia. Oportet igitur omni

XCIV •De Substantiis Separatis ■S. Thomas de Aquino


CA PÍTU LO 9

S o b r e o p a r e c e r d o s q u e a f ir m a m q u e
AS SUBSTÂNCIAS ESPIRITUAIS NÃO FORAM CRIADAS

4 6 - Assim como a opinião supra-referida151 acerca da con­


dição das substâncias espirituais se desviou do ponto de vista
de Platão e Aristóteles154 por negar àquelas a simplicidade de
sua imaterialidade, também encontramos aqueles que, quanto
ao modo de ser de tais substâncias, se desviaram da verdade
negando-lhes sua origem no primeiro e sumo Autor. Em tal
questão, vemos que estes diversos homens erraram de três
maneiras. Primeiro, alguns afirmaram que as substâncias antes
mencionadas não tinham absolutamente nenhuma causa para
seu ser. Já outros afirmaram que elas possuíam causa de ser, mas
que não procediam imediatamente do Sumo e Primeiro Princí­
pio: as inferiores dentre elas possuíam a origem de seu ser nas
superiores, através de uma sucessão de ordem.155 Outros, por
sua vez, admitem que todas essas substâncias possuem a origem
de seu ser imediatamente a partir do Princípio Primeiro, mas
que, no caso dos outros aspectos que delas se citam (como se­
rem viventes, inteligentes, etc.), as [substâncias] superiores são
como causas para as inferiores.156

47 - Em primeiro lugar, portanto, estimam que as substân­


cias espirituais são absolutamente incriadas, erigindo tal opi­
nião a partir das coisas que são causadas de acordo com a ma­
téria, e utilizando como princípio o comum pressuposto físico
dos filósofos: do nada, nada se faz.157 Como aquilo que vemos
fazer-se possui uma causa para seu próprio ser, então qualquer
coisa que tenha causa para seu ser se faz obrigatoriamente a
partir de outro. Mas aquilo pelo qual algo se faz é a matéria.
Se, portanto, as substâncias espirituais não têm matéria, con-
seqüentemente parece que não possuem causa para seu ser.158
Ademais, “fazer-se” é um tipo de “mover-se” ou “mudar”. E
em qualquer mutação e em qualquer movimento é necessário
haver algum sujeito, pois o movimento é o ato do existente em

Santo Tomás de Aquino ■Sobre os Anjos •9 5


ei quod fit subiectum, aliquod praeexistere. Spirituales igitur
substantiae, si immateriales sunt, factae esse non possunt.
Item. In qualibet factione cum pervenitur ad factum
esse ultimum, non remanet aliquid fieri: sicut nec post
ultimum motum esse, remanet moveri. Videmus autem
in his quae generantur, quod unumquodque eorum tunc
factum esse dicitur quasi terminata factione, quando
accipit formam: est enim forma generationis terminus.
Adepta igitur forma, nihil restat fiendum. Habens igitur
formam non fit ens sed est ens secundum suam formam.
Si igitur aliquid sit secundum se forma, hoc non fit ens.
Spirituales autem substantiae sunt quaedam formae
subsistentes, ut ex praemissis manifestum est. Non
igitur spirituales substantiae sui esse causam habent,
quasi ab alio factae.
Posset etiam aliquis ad hoc argumentari ex opinionibus
Aristotelis et Platonis, qui huiusmodi substantias ponunt
esse sempiternas. Nullum autem sempiternum videtur
esse factum, quia ens fit ex non ente, sicut album ex
non albo; unde videtur consequens ut quod fit, prius non
fuerit. Sic igitur consequens est, si spirituales substantiae
sunt sempiternae, quod non sint factae, nec habeant sui
esse principium et causam.

48 - Sed si quis diligenter consideret, ab eadem radice


inveniet hanc opinionem procedere, et praedictam, quae
materiam spiritualibus substantiis adhibet. Processit enim
supradicta opinio ex hoc quod spirituales substantias
eiusdem rationis esse existimavit cum materialibus
substantiis, quae sensu percipiuntur: imaginationem
transcendere non valens. Sic et ista opinio ex hoc videtur
procedere quod elevari non potest intellectus ad intuendum
alium modum causandi quam iste qui convenit materialibus
rebus. Paulatim enim humana ingenia processisse videntur
ad investigandam rerum originem. Primo namque in sola

XCVI ■De Substantiis Separatis •S. Thomas de Aquino


potência.159 Logo, para tudo aquilo que “é feito” é necessário
que preexista algum sujeito. Assim, se as substâncias espirituais
são imateriais, não podem ser feitas.160
Do mesmo modo, em qualquer ato de feitura, quando se chega
ao último “ter sido feito”, já não resta nenhum “fazer-se”; nem res­
ta, após o último “ter sido movido”, nenhum “mover-se”. Contudo,
vemos, com respeito às coisas que são geradas, que de cada uma
delas se diz então que foi feita — como tendo sido terminada sua
feitura — no momento em que recebe sua form a; pois a forma é o
término da geração. Adotada a forma, portanto, nada resta por ser
feito. Algo que tem forma, portanto, não se faz ente [em termos
absolutos], mas ente segundo sua forma [a qual lhe sobreveio]. E,
se algo é uma forma, este algo não se faz ente [não lhe sobrevém
a forma por outro]. As substâncias espirituais, por sua vez, são
formas subsistentes, como está claro pelo que já foi dito. Assim, as
substâncias espirituais não possuem causa para seu ser no sentido
de terem sido feitas [geradas] por outro.
Neste caso, poder-se-ia ainda argumentar a partir da opinião de
Aristóteles e Platão, que afirmam serem eternas tais substâncias.161
Nada eterno parece ser algo feito, porque o ente se faz a partir do
não-ente, assim como o branco se faz do não-branco. Donde pa­
rece resultar que o que se faz não teria sido anteriormente. Assim,
conseqüentemente, se as substâncias espirituais são eternas, então
não são feitas nem possuem princípio e causa de ser.162

48 - Contudo, se alguém ponderar corretamente, per­


ceberá que tanto esta última opinião quanto a anterior, que
atribui matéria às substâncias espirituais, procedem da mesma
raiz. Pois a opinião anterior decorre do fato de Avicebrão, sem
conseguir transcender à imagem, considerar que as substân­
cias espirituais são da mesma natureza que as materiais, sendo
estas percebidas pelos sentidos.163 Assim, também esta última
opinião parece proceder do conceito de que o intelecto não
poderia elevar-se à intuição de outro modo de causação além
deste que convém às coisas materiais. De fato, as habilidades
humanas parecem ter progredido lentamente na investigação
da origem das coisas. Primeiramente, os homens julgaram que

Santo Tomás de Aquino •Sobre os Anjos •9 7


exteriori mutatione, rerum originem consistere homines
aestimaverunt. Dico autem exteriorem originem, quae fit
secundum accidentales transmutationes.
Primi enim philosophantes de naturis rerum fieri
statuerunt nihil esse aliud quam alterari; ita quod id
quod est rerum substantia, quam materiam nominabant,
sit principium primum penitus non causatum. Non
enim distinctionem substantiae et accidentis intellectu
transcendere poterant. Alii vero aliquantulum ulterius
procedentes, etiam ipsarum substantiarum originem
investigaverunt, ponentes aliquas substantias causam sui
esse habere. Sed quia nihil praeter corpora mente percipere
poterant, resolvebant quidem corporales substantias in
aliqua principia, sed corporalia, ponentes ex quibusdam
corporibus congregatis alia fieri, ac si rerum origo in sola
congregatione et segregatione consisteret.
Posteriores vero philosophi ulterius processerunt,
resolventes sensibiles substantias in partes essentiae,
quae sunt materia et forma: et sic fieri rerum naturalium
in quadam transmutatione posuerunt, secundum quod
materia alternatim diversis formis subiicitur.
Sed ultra hunc modum fiendi necesse est, secundum
sententiam Platonis et Aristotelis, ponerealium altiorem. Cum
enim necesse sit primum principium simplicissimum esse,
necesse est quod non hoc modo esse ponatur quasi esse
participans, sed quasi ipsum esse existens. Quia vero esse
subsistens non potest esse nisi unum, sicut supra habitum
est, necesse est omnia alia quae sub ipso sunt, sic esse quasi
esse participantia. Oportet igitur communem quamdam
resolutionem in omnibus huiusmodi fieri, secundum quod
unumquodque eorum intellectu resolvitur in id quod est, et
in suum esse. Oportet igitur supra modum fiendi quo aliquid
fit, forma materiae adveniente, praeintelligere aliam rerum
originem, secundum quod esse attribuitur toti universitati
rerum a primo ente, quod est suum esse.

XCVIII •De Substantiis Separatis ■S. Thomas de Aquino


a origem das coisas consistia somente numa mutação externa;
a qual, todavia, digo ser [somente] a origem exterior que ocorre
segundo mudanças acidentais.164
Isso porque os primeiros a filosofar sobre a natureza das
coisas postularam que o “criar-se” nada era senão o “alterar-
se”, de modo que aquilo que é a substância das coisas, a qual
denominavam “matéria”, seria o absoluto e incausado Princípio
Primeiro.165 Não podiam, através do intelecto, transcender à
distinção entre substância e acidente. Já outros, indo um pouco
além, investigaram também a origem das próprias substâncias,
propondo que certas substâncias possuíam uma causa para seu
ser. Mas, como nenhum deles podia, por meio da mente, per­
ceber além dos corpos, reduziram as substâncias corporais a
certos princípios, sendo estes mesmos corpóreos; e afirmaram
que outras substâncias se geravam a partir de certos corpos
combinados, como se a origem das coisas consistisse apenas
em combinação e separação.166
Filósofos posteriores, por sua vez, procederam reduzindo as
substâncias sensíveis às partes da essência que são a matéria e
a forma. E, deste modo, propuseram que o “fazer-se” das coisas
naturais167 seria uma transmutação, conforme a matéria é alter­
nadamente sujeito de diversas formas.168
Mas, para além desse modo de geração, um [outro modo]
mais elevado que este tem necessariamente de ser proposto de
acordo com o pensamento de Platão e Aristóteles.169 Pois, visto
que é obrigatório que o Princípio Primeiro seja o mais simples,
é necessário que ele seja considerado ser não como um partici­
pante do ser, mas como o próprio ser existente. Mas, como o ser
subsistente, como foi visto acima,170 é apenas um, é preciso que
todas as outras coisas que estão abaixo dele existam como seres
participantes. Logo, é necessário fazer uma redução comum
a todas as coisas desta natureza, conforme cada uma delas é
reduzida pelo intelecto àquilo que ela é e em seu ser. É preciso,
portanto, pressupor, acima do modo de geração pelo qual algo
se faz quando a forma sobrevém à matéria, outra origem das
coisas, conforme o ser é conferido a todo o universo por um
Ente Primeiro que é o seu próprio ser.

Santo Tomás de Aquino ■Sobre os Anjos ■9 9


49 - Rursus. In omni causarum ordine necesse est
universalem causam particular! praeexistere. Nam causae
particulares non agunt nisi in universalium causarum
virtute. Manifestum est autem quod omnis causa per
motum aliquid faciens, particularis causa est, habet enim
particularem effectum; est enim omnis motus ex hoc
determinate in illud determinatum, omnisque mutatio motus
cuiusdam terminus est. Oportet igitur supra modum fiendi
quo aliquid fit per mutationem vel motum, esse aliquem
modum fiendi sive originis rerum absque omni mutatione
vel motu per influentiam essendi.
Item. Necesse est quod per accidens est, in id reduci
quod per se est. In omni autem quod fit per mutationem
vel motum, fit quidem hoc vel illud ens per se, ens autem
communiter sumptum per accidens fit; non enim fit ex
non ente sed ex non ente hoc; ut si canis ex equo fiat, ut
Aristotelis exemplo utamur, fit quidem canis per se, non
autem fit animal per se, sed per accidens, quia animal
erat prius. Oportet igitur originem quamdam in rebus
considerari, secundum quam ipsum esse communiter
sumptum per se attribuitur rebus, quod omnem
mutationem et motum transcendat.
Adhuc. Si quis ordinem rerum consideret, semper
inveniet id quod est maximum causam esse eorum quae
sunt post ipsum; sicut ignis, qui est calidissimus, causa est
caliditatis in ceteris elementatis corporibus. Primum autem
principium, quod Deum dicimus, est maxime ens. Non enim
est in infinitum procedere in rerum ordine, sed ad aliquid
summum devenire, quod melius est esse unum quam plura.
Quod autem in universo melius est, necesse est esse, quia
universum dependet ex essentia bonitatis; necesse est
igitur primum ens esse causam essendi omnibus.

50 - His autem visis, facile est solvere rationes


inductas. Quod enim antiqui naturales quasi principium

C ■De Substantiis Separatis S. Thomas de Aquino


4 9 - Novamente, em qualquer ordem de causas, é preciso que
preexista à causa particular uma causa universal, pois as causas
particulares não atuam senão sob o poder das universais. E é evi­
dente que qualquer causa que faz algo através de um movimento
é uma causa particular, visto que possui um efeito particular. Pois
qualquer movimento existe a partir de determinado ponto e para
determinado ponto, e qualquer mutação é o término de algum
movimento. Portanto, é necessário que haja, acima do modo de
geração pelo qual algo se faz através de mutação ou movimento,
um modo de fazer-se (ou origem das coisas) isento de qualquer
mutação ou movimento, o qual se dê mediante o influxo do ser.
Mais ainda, é necessário que aquilo que existe per accidens
seja reduzido àquilo que existe per se. E, em tudo que se faz por
meio de mutação ou movimento, o que se faz é este ou aquele
ente per se. O ente, no entanto, tomado em sua comunidade,
faz-se per accidens, pois não se cria a partir de um não-ente, e sim
de algo que não é isto; utilizando-nos do exemplo de Aristóteles,
é como se um cão se fizesse a partir de um cavalo: aquilo que é
cão se cria per se, mas aquilo que é animal não se cria per se, e sim
per accidens, visto que animal ele já era anteriormente.171 Logo,
é preciso que se considere uma origem nas coisas segundo a qual
o próprio ser, tomado em sua comunidade per se, é conferido às
coisas — o que transcende a qualquer mutação e movimento.
Ademais, se alguém considerar a ordem existente nas coisas,
sempre encontrará que aquilo que é maximamente é sempre
causa das coisas que lhe são posteriores. Por exemplo: o fogo,
que é o [elemento] mais quente, é causa do calor nos demais
corpos elementares.172 O Princípio Primeiro, a que chamamos
Deus, é maximamente ente. Não é possível, pois, proceder in
infinitum na ordem das coisas; é preciso chegar a algo supre­
mo, uma vez que é melhor ser um só que ser vários. Decerto,
aquilo que é melhor no universo necessariamente é o ser, pois
o universo depende da essência de Sua bondade. E necessário,
portanto, que o Ente Primeiro seja a causa de ser para todos.

5 0 - Tendo visto estes pontos,173 é fácil analisar os argu­


mentos apresentados. O que os antigos naturalistas propuseram

Santo Tomás de Aquino ■Sobre os Anjos - 1 0 1


supposuerunt, ex nihilo nihil fieri, ex hoc processif quia
solum fiendi modum pervenire potuerunt, qui est per
mutationem vel motum.
De quo etiam fiendi modo secunda ratio procedebat. In
his enim quae fiunt per mutationem vel motum, subiectum
factioni praesupponitur; sed in supremo modo fiendi,
qui est per essendi influxum, nullum subiectum factioni
praesupponitur, quia hoc ipsum est subiectum fieri
secundum hunc factionis modum, quod est subiectum
esse participare per influentiam superioris entis.
Similiter etiam tertia ratio de hoc modo fiendi procedit
qui est per mutationem et motum. Cum enim ad formam
perventum fuerit, nihil de motu restabit. Oportet tarnen
intelligere quod per formam res generata esse participet ab
universali essendi principio. Non enim causae agentes ad
determinatas formas sunt causae essendi nisi inquantum
agunt in virtute primi et universalis principii essendi.

51 - Quarta etiam ratio eodem modo procedit de his


quae fiunt per motum vel mutationem, in quibus necesse
est ut non esse praecedat esse eorum quae fiunt, quia
eorum esse est terminus mutationis vel motus. In his
autem quae fiunt absque mutatione vel motu per simplicem
emanationem sive influxum, potest intelligi aliquid esse
factum praeter hoc quod quandoque non fuerit. Sublata
enim mutatione vel motu non invenitur in actione influentis
principii, prioris et posterions successio. Unde necesse
est ut sic se habeat effectus per influxum causatus ad
causam influentem quamdiu agit, sicut in rebus quae per
motum fiunt, se habet ad causam agentem in termino
actionis cum motu existentis. Tunc autem effectus iam
est. Necesse est igitur ut in his quae absque motu fiunt,
simul cum agentis influxu sit ipse effectus productus.
Si autem actio influentis sine motu extiterit, non accedit
agenti dispositio ut postmodum possit agere, cum prius

CII •De Substantiis Separatis ■S. Thomas de Aquino


como princípio, “do nada, nada se faz”, se devia ao fato de eles
não poderem alcançar senão um modo de feitura particular:
aquele [que se dá] mediante mutação ou movimento.
O segundo argumento baseava-se também no mesmo modo
de feitura. Nas coisas que se fazem a partir da mutação ou
movimento, pressupõe-se um sujeito desta feitura. Já no modo
supremo, que se dá pelo influxo do ser, nenhum sujeito é pres­
suposto, pois isto mesmo que é “o sujeito ser feito”, segundo tal
modo de feitura, é “o sujeito participar do ser através do influxo
de um ente superior”.
De modo semelhante, também o terceiro argumento proce­
de do modo que se dá através de mutação ou movimento. Pois,
uma vez que se tenha atingido a forma, nada de movimento
restará. Contudo, deve-se ter em mente que, através da forma,
a coisa gerada participa do ser a partir do princípio universal
do ser — pois as causas agentes [na produção de] determinadas
formas não são causas de ser senão enquanto agem em virtude
do primeiro e universal princípio do ser.

5 1 - 0 quarto argumento, do mesmo modo, também se baseia


nas coisas que se fazem através de mutação ou movimento, nas
quais é necessário que um não-ser preceda o ser das coisas que
são feitas, uma vez que seu ser é o término de uma mutação ou
movimento. Mas em tais coisas que são feitas, sem mutação ou
movimento, através de uma simples emanação ou influxo, pode-
se inteligir que algo “foi feito” independentemente do fato de que,
em dado tempo, este algo “não tenha sido”. Pois, estando supressa
a mutação ou o movimento, não se encontra na ação do princí­
pio influente uma sucessão de “anterior” e “posterior”. Donde é
necessário que o efeito causado pelo influxo [do ser], enquanto
age a causa influente, esteja relacionado a ela da mesma maneira
como as coisas que se fazem por movimento estão relacionadas
à sua causa agente quando do término da ação que se dá através
do movimento; neste momento, o efeito já é. Assim, no caso das
coisas que são feitas sem movimento, é necessário que o próprio
efeito produzido seja simultâneo ao influxo da causa agente. Se
porém a ação da [causa] influente ocorreu sem movimento, então

Santo Tomás de Aquino ■Sobre os Anjos ■ 103


non potuerit, quia iam haec mutatio quaedam esset.
Potuit igitur semper agere influendo; unde et effectus
productus intelligi potest semper fuisse. Et hoc quidem
aliqualiter apparet in corporalibus rebus. Ad praesentiam
enim corporis illuminantis producitur lumen in aere
absque aliqua aeris transmutatione praecedente: unde si
semper corpus illuminans aeri praesens fuisset, semper
ab ipso aer lumen haberet.

52 - Sed expressius hoc videtur in intellectualibus rebus,


quae sunt magis remotae a motu. Est enim principiorum
veritas causa veritatis in conclusionibus semper veris. Sunt
enim quaedam necessaria quae suae necessitatis causam
habent, ut etiam Aristoteles dicit in quinto metaphysicae,
et in octavo physicorum. Non ergo aestimandum est
quod Plato et Aristoteles, propter hoc quod posuerunt
substantias immateriales seu etiam caelestia corpora
semper fuisse, eis subtraxerunt causam essendi. Non
enim in hoc a sententia Catholicae fidei deviarunt, quod
huiusmodi posuerunt increata, sed quia posuerunt ea
semper fuisse, cuius contrarium fides Catholica tenet.
Non enim est necessarium, quamvis origo sit ab
immobili principio absque motu, quod eorum esse sit
sempiternum. A quolibet enim agente procedit effectus
secundum modum sui esse. Esse autem primi principii est
eius intelligere et velle. Procedit igitur universitas rerum a
primo principio sicut ab intelligente et volente. Intelligentis
autem et volentis est producere aliquid non quidem ex
necessitate, sicut ipsum est, sed sicut vult et intelligit. In
intellectu autem primi intelligentis comprehenditur omnis
modus essendi, et omnis mensura quantitatis et durationis.
Sicut igitur non eumdem modum essendi rebus indidit quo
ipsum existit, corporumque quantitatem sub determinata
mensura conclusit, cum in eius potestate, sicut et in

CIV •De Substantiis Separatis - S. Thomas de Aquino


não chega ao agente nenhuma disposição que o permita agir em
seguida, visto que antes não poderia [fazê-lo], pois tal disposição
já seria uma mutação. Pôde ele, portanto, agir sempre por influ­
xo; donde se pode compreender que o efeito produzido sempre
existiu. E tal fato mesmo aparece, de certa maneira, nas coisas
corpóreas: à presença de um corpo iluminador, a luz é produzida
no ar independentemente de qualquer precedente transmutação
deste. Assim, se o corpo iluminador presente no ar tivesse sempre
existido, teria sido sempre a partir dele que este possuiria luz.

52 - Mas isso se observa mais claramente nas coisas inte­


lectuais, que são mais distantes do movimento. A verdade dos
princípios é causa da verdade nas conclusões [que são] sempre
verdadeiras. Pois há certas coisas necessárias que têm causa
para sua necessidade, como diz também Aristóteles no livro
quinto da Metafísica™ e no livro oitavo da Física.175 Logo, não
se deve considerar que Platão e Aristóteles, por haverem pro­
posto que as substâncias imateriais ou ainda os corpos celestes
sempre existiram, lhes negaram sua causa de ser.176 Eles não
se desviaram do ângulo da fé católica por terem dito que tais
[substâncias] não foram criadas,177 mas porque afirmaram que
elas sempre existiram — o que é contrário à fé católica.
Pois, embora a origem de certas coisas se dê a partir de um
princípio isento de movimento, não é necessário que seu ser
seja eterno. Sim, porque um efeito procede de qualquer agente
segundo o modo de ser deste agente. E o ser do Princípio Pri­
meiro é seu inteligir e seu querer. Logo, o universo das coisas,
ao proceder do Princípio Primeiro, procede de algo que intelige
e quer. E é próprio daquele que intelige e quer, que ele produza
algo não por necessidade — tal como ele próprio é [necessaria­
mente] — , mas como ele deseja e intelige. Pois bem, no intelec­
to do primeiro ente inteligente estão compreendidos todos os
modos de ser e todas as medidas de quantidade e duração. Por­
tanto, assim como ele não infundiu nas coisas o mesmo modo
de ser pelo qual ele próprio existe e encerrou a quantidade dos
corpos sob determinada medida, visto que todas as medidas
estão contidas em seu poder e em seu intelecto, assim também

Santo Tomás de Aquino •Sobre os Anjos ■ 1 05


intellects omnes mensurae contineantur; ita etiam dedit
rebus talem durationis mensuram qualem voluit, non qualem
habet. Sicut igitur corporum quantitas sub tali determinata
mensura concluditur, non quia actio primi principii ad hanc
mensuram quantitatis determinetur, sed quia talis mensura
quantitatis sequitur in effectu, qualem in te lle c ts causae
praescripsit: ita etiam ex actione primi agentis consequitur
determinata durationis mensura ex in te lle c t divino earn
praescribente: non quasi ipse subiaceat successivae
durationi, ut nunc velit aut agat aliquid quod prius noluerit,
sed quia tota rerum duratio sub eius in te lle c t et virtute
concluditur, ut determinet rebus ab aeterno mensuram
durationis quam velit.

CVI •De Substantiis Separatis •S. Thomas de Aquino


deu às coisas uma medida de duração que ele quis, e não que
ele possui. Logo, assim como a quantidade dos corpos se encer­
ra sob determinada medida — não porque a ação do Princípio
Primeiro esteja determinada para tal medida de quantidade,
mas porque se segue em efeito uma medida de quantidade tal
qual o intelecto da causa prescreveu — , assim também se se­
gue, a partir da ação do agente primeiro, determinada medida
de duração que resulta do intelecto divino que a prescreveu;
não como se este próprio fosse sujeito de duração sucessiva, de
modo que agora quisesse ou fizesse algo que anteriormente não
queria, mas porque toda a duração das coisas se encerra sob seu
intelecto, de modo que ele determine para as coisas, desde toda
a eternidade, a medida de duração que queira.

Santo Tomás de Aquino •Sobre os Anjos • 107


N otas — Capítulo 9

153 - Cf. acima, caps. V—VIII, nos 19-45.


154 - A ristóteles, Metafísica, I, 6 (987b 1-18).
155 - No primeiro caso, trata-se certamente dos Averroístas de Paris; cf. D e -
nifle ,Henri, et C hâtelain, Émile, Chartularium Universitatis Parísiensis, 4 v.,
Paris, 1889 -1 8 9 7 ,1, Props 46, 47; também impresso em M andonnet, Pierre,
Siger de Brabant et FAverroisme Latin au Xlllm e siècle, 2 v., Louvain: Institut
Supérieur de Philosophie de l’Université, 1911, II, pp.179, 184. No segundo
caso, cf. A vicena , Metaphysica, IX, 4 (fol. 104va); ver também Forest, Aimé,
La Structure Métaphysique du Concret selon Saint Thomas d'Aquin, Paris:
Vrin, 1931, pp. 331-360, para uma lista de referências a Avicena nas obras
de Santo Tomás. Siger de Brabant ensina, de m odo semelhante, a doutrina
da criação em sequência; cf. De Necessitate et Contingentia Causarum, Il
in M andonnet, Pierre, op. cit., p. 112; D enifle - C hâtelain , Chartularium, I,
Props. 55, 64.
156 - Isto provém certam ente do Liber de Causis. Cf. P roclo , Elementatio
Theoiogica, Props. 55, 56, 70.
157 - A ristóteles, Física, I, 4 (187a 28).
158 - Cf. acima, cap. 9, n° 46.
159 - A ristóteles, Física, III, 1 (201a 15).
160 - Condenação de 1277, cf. Chartularium, I, Prop. 70, M andonnet , Pierre,
op. cit., Il, p.179; cf. T omás de A quino , Summa Theologiae, I, 6 1 , 1.
161 - Cf. S anto A gostinho, De Civitate Dei, IX, 8; P roclo , Elementatio Theo­
iogica, Prop. 169.
162 - Cf. Chartularium, I, Prop. 70. Siger de Brabant cita Aristóteles em apoio
à opinião de que nada im pede um ser eterno e necessário de ter uma causa
para sua eternidade e sua necessidade. Cf. Quaestiones de Anima Intellecti-
va, q. 5, in M andonnet, Pierre, op. cit., Il, p. 159.
163 - Cf. acima, caps. V—VIII, nos 19-45; A ristóteles, Sobre a Alma, III, 3 (427a
21); T omás de A quino , In De Anima, III, lect. 4. A teoria da conversio ad phan-
tasma propõe que o conhecimento intelectivo é, necessariamente, abstraído
das imagens captadas pelos sentidos. Trata-se da mesma imagem, com a
diferença de que, ao ser captada pelos sentidos, ela é inteligível apenas em
potência — e passa a ser inteligida em ato a partir da iluminação do intelecto
agente. Neste ponto do tratado, a critica do Aquinate a Avicebrão decorre de
que este confunde conhecimento intelectual com apreensão pelos sentidos,
por não conseguir transcender à im agem sensitiva, que capta apenas os
dados materiais. Para detalhes sobre a teoria da conversão à imagem, ver
nota 14, acima. [ n. do e.)
164 - A ristóteles, Metafísica, I, 3, 4 (983b 6 -9 8 5 b 22); Física, I, 4 (187a 30);
Sobre a Geração e a Corrupção, II, 9 (335b 24); Tomás de A quino , Summa
Theologiae, 1,4 4 ,2 ; P egis, Anton C., A Note on St Thom as'Summa Theoiogi­
ca, in Mediaeval Studies, VIII, Toronto, 1 9 3 4,1, 44, 1-2, pp. 159-168.
165 - A ristóteles, Física, IV, 6 (213a 29); Metafísica, III, 5 (1002a 8); S anto
A gostinho , De Civitate Dei, VIII, 2.
166 - Empédocles, segundo A ristóteles, Metafísica, I, 4 (985a 8); Física, I,
5 (188b 34).

CVIII •De Substantiis Separatis S. Thomas de Aquino


167 - Ou seja, as coisas físicas, [ n . do r.]
168 - Cf. A ristóteles, Metafísica, XII, 2 (1069b 5 ss).
169 - P roclo, Elementatio Theologica, Prop. 26.
170 - Cf. acima, cap. VIII, n° 42.
171 - A ristóteles, Física, I, 8 (191b 16-23).
172 - Ou seja, como denom inador comum e propriedade básica para os
elementos; cf. A ristóteles, Metafísica, II, 1 (993b 23).
173 - Cf. acima, cap. IX, n° 47.
174 - A ristóteles, Metafísica, V, 5 (1015b 9).
175 - A ristóteles, Física, VIII, 1 (252b 3).
176 - Cf. S anto A gostinho , De Civitate Dei, X, 31.
177 - O que nunca fizeram, [ n . do r.]

Santo Tomás de Aquino •Sobre os Anjos •1 09


CAPUT X

Contra illos qui ponunt quod non omnes


substantiae spirituales sunt immediate a Deo

53 - Haec igitur et huiusmodi alii considérantes


asserunt quidem omnia essendi originem trahere a primo
et summo rerum principio, quem dicimus Deum; non tamen
immediate, sed ordine quodam. Cum enim primum rerum
principium sit penitus unum et simplex, non aestimaverunt
quod ab eo procederet nisi unum. Quod quidem etsi ceteris
rebus inferioribus simplicius sit et magis unum, deficit
tamen a primi simplicitate, inquantum ipsum non est suum
esse, sed est substantia habens esse: et hanc nominant
intelligentiam primam, a qua quidem iam dicunt plura
posse procedere. Nam secundum quod convertitur ad
intelligendum suum simplex et primum principium, dicunt
quod ab ea procedit intelligentia secunda. Prout vero se
ipsam intelligit, secundum id quod est intellectualitatis in
ea, producit animam primi orbis. Prout vero intelligit se
ipsam quantum ad id quod est in ea de potentia, procedit
ab ea corpus primum: et sic per ordinem usque ad ultima
corporum rerum processum a primo principio determinant.
Et haec est positio Avicennae, quae etiam videtur supponi
in libro de causis.

54 - Haec autem positio etiam in primo aspectu


reprobabilis videtur. Bonum enim universi potius quam
bonum cuiuscumque particularis naturae invenitur. Destruit
autem rationem boni in particularibus effectibus naturae vel
artis, si quis perfectionem effectus non attribuât intentioni
agentis, cum eadem sit ratio boni et finis: et ideo Aristoteles
reprobavit antiquorum naturalium opinionem, qui posuerunt
formas rerum quae naturaliter generantur et alia naturalia

CX •De Substantiis Separatis ■S. Thomas de Aquino


C A PÍTU LO 10

C o n t r a o s q u e a f ir m a m q u e n e m to d a s a s su bstâ n c ia s
ESPIRITUAIS PROCEDEM IMEDIATAMENTE DE ÜEUS

53 - Assim, outros que consideraram tais pontos e similares


defendem que a origem do ser de tudo reside no primeiro e
supremo Princípio de todas as coisas, ao qual chamamos Deus,
mas não imediatamente, e sim através de certa ordem. Como
o Princípio Primeiro é [absolutamente] uno e simples, julgaram
que dele não procederia nada que não fosse uno. E isto [que
dele procede], embora seja mais uno e simples que as demais
coisas inferiores, carece da simplicidade do primeiro, pois que
isto mesmo que procede não é seu próprio ser, mas sim uma
substância possuidora de ser, a qual eles chamam “inteligên­
cia primeira”, e a partir da qual eles dizem já poder proceder
a pluralidade. Conforme [esta inteligência primeira] se volta
para a compreensão do seu simples e primeiro princípio, dizem
que dela procede uma inteligência segunda. Então, conforme
esta intelige a si própria com relação à intelectualidade nela
contida, produz a alma da primeira esfera; e, conforme intelige
a si própria com relação à potência nela contida, dela procede
o primeiro corpo.178 E assim determinam, de acordo com essa
ordem e até os últimos corpos das coisas, o processo que parte
do Princípio Primeiro. Esta é a posição de Aviccna,179 que ve­
mos estar pressuposta no Livro sobre as Causas.180

5 4 - A o primeiro relance, porém, vê-se que esta opinião


é reprovável. O bem do universo é mais poderoso que o bem
de qualquer natureza particular. Se alguém não atribui um
efeito à intenção do agente, destrói então a razão do bem
nos efeitos particulares da natureza ou da arte, uma vez que
a razão do bem e do fim é a mesma. E por isso Aristóteles re­
provava a opinião dos antigos naturalistas, que tinham pro­
posto que as formas das coisas que se geram naturalmente,
e de outros bens naturais, não são intentadas pela natureza,

Santo Tomás de Aquino Sobre os Anjos - 1 1 1


bona non esse intenta a natura, sed provenire ex necessitate
materiae. Multo igitur magis inconveniens est ut bonum
universi non proveniat ex intentione universalis agentis,
sed quadam necessitate ordinis rerum. Si autem bonum
universi, quod in distinctione et ordine consistit partium, ex
intentione primi et universalis agentis procedit, necesse est
quod ipsa distinctio et ordo partium universi in intellectu
primi principii praeexistat. Et quia res procedunt ab eo
sicut ab intellectivo principio quod agit secundum formas
conceptas, non oportet ponere quod a primo principio, etsi
in essentia sua sit simplex, procédât unum tantum: et quod
ab illo secundum modum suae compositionis et virtutis
procédant plura, et sic inde. Hoc enim esset distinctionem
et ordinem talem in rebus esse, non ex intentione primi
agentis, sed ex quadam rerum necessitate.

55 - Potest tamen dici, quod rerum distinctio et ordo


procedit quidem ex intentione primi principii, cuius intentio
est non solum ad producendum primum causatum, sed
ad producendum totum universum: hoc tamen ordine, ut
ipse immediate producat primum causatum, quo mediante
alia per ordinem producat in esse. Sed cum sit duplex
modus productionis rerum: unus quidem secundum
mutationem et motum; alius autem absque mutatione et
motu, ut supra iam diximus: in eo quidem productionis
modo qui per motum est, hoc manifeste videmus accidere
quod a primo principio alia procedunt mediantibus causis
secundis: videmus enim et plantas et animalia produci in
esse per motum secundum virtutes superiorum causarum
ordinate usque ad primum principium. Sed in eo modo
producendi qui est absque motu, per simplicem influxum
ipsius esse, hoc accidere impossibile est. Secundum
enim hunc productionis modum, quod in esse producitur,
non solum fit per se hoc ens, sed etiam per se fit ens
simpliciter, ut dictum est.

CXII •De Substantiis Separatis - S. Thomas de Aquino


mas provêm da necessidade da matéria. Decerto, é muito
mais inapropriado que o bem do universo não provenha da
intenção do agente universal, mas de uma necessidade da
ordem das coisas. Se o bem do universo, que consiste na dis­
tinção e ordem de suas partes, procede da intenção de um
agente primeiro e universal, é preciso que a própria distinção
e ordem das partes do universo preexistam no intelecto do
Princípio Primeiro. E, como as coisas procedem dele como de
um princípio intelectivo que age segundo formas concebidas,
não é obrigatório afirmar que a partir deste Princípio Primei­
ro, sendo ele simples em sua essência, procederia apenas um
[efeito]; nem que a partir de outro, segundo o modo de sua
composição e poder, procederia a pluralidade — e assim por
diante. Isto seria [dizer que] tal distinção e ordem nas coisas
existe não a partir da intenção de um agente primeiro, mas a
partir de uma necessidade dessas coisas.

55 - Mas pode-se [responder a isso] dizendo que a distin­


ção e a ordem das coisas procedem efetivamente da intenção
do Princípio Primeiro, a qual é não somente produzir um
primeiro efeito, mas também todo o universo; isto, porém,
[ocorre] sob certa ordem, de modo que tal princípio produz
imediatamente o primeiro efeito e, mediante este, produz
as outras coisas através da ordem. Contudo, porque existe,
como já dissemos,181 um duplo modo de produção das coisas
— um segundo mutação e movimento, e outro isento de
mutação e movimento — , vemos claramente, no modo de
produção que ocorre por movimento, que certas coisas pro­
cedem do Princípio Primeiro mediante causas segundas. De
fato, vemos plantas e animais ser trazidos à existência por
meio de movimento e segundo forças de causas superiores,
numa ordem que ascende até o Princípio Primeiro. No en­
tanto, no modo de produção que ocorre isento de movimento
e através do simples influxo do próprio ser, é impossível que
tal fato ocorra. Pois, de acordo com este modo de produção,
o que é trazido ao ser não só se faz [como] este ente, mas se
faz per se ente simpliciter, corno foi dito.182

Santo Tomás de Aquino •Sobre os Anjos 1 13


56 - Oportet autem effectus proportionaliter causis
respondere: ut scilicet effectus particulars causae particular
respondeat, effectus autem universalis universal!' causae.
Sicut igitur cum per motum aliquid fit per se hoc ens,
effectus huiusmodi in particularem causam reducitur, quae
ad determinatam formam movet; ita etiam cum simpliciter
fit ens, per se et non per accidens, oportet hunc effectum
reduci in universalem essendi causam. Hoc autem est primum
principium, quod Deus est. Possunt igitur per mutationem vel
motum aliqua produci in esse a primo principio mediantibus
causis secundis; sed eo productionis modo qui fit absque
motu, qui creatio nominatur, in solum Deum refertur auctorem.
Solo autem hoc modo produci possunt in esse immateriales
substantiae, et quorumcumque corporum materia ante
formam esse non potuit, sicut dictum est de materia caelestium
corporum, quae non est in potentia ad aliam formam.
Relinquitur igitur quod omnes immateriales substantiae et
caelestia corpora, quae per motum produci non possunt in
esse, solum Deum sui esse habent auctorem. Non ergo id
quod est prius in eis est posterioribus causa essendi.

57 - Adhuc. Quanto aliqua causa est superior, tanto


est universalior, et virtus eius ad plura se extendit. Sed
id quod primum invenitur in unoquoque ente, maxime
commune est omnibus. Quaecumque enim superadduntur,
contrahunt id quod prius inveniunt. Nam quod posterius in
re intelligitur, comparatur ad prius ut actus ad potentiam.
Per actum autem potentia determinatur. Sic igitur oportet
ut id quod primum subsistit in unoquoque, sit effectus
supremae virtutis: quanto autem aliquid est posterius,
tanto reducatur ad inferioris causae virtutem. Oportet
igitur quod id quod primum subsistit in unoquoque, sicut
in corporibus materia et in immaterialibus substantiis
quod proportionale est, sit proprius effectus primae
virtutis universalis agentis. Impossibile est igitur quod ab

CXIV •De Substantiis Separatis S. Thomas de Aquino


5 6 - Mas, de fato, é preciso que os efeitos correspondam
proporcionalmente às causas, de maneira que um efeito par­
ticular responda a uma causa particular, ao passo que um
efeito universal responda a uma causa universal. Logo, assim
como, quando algo se faz este ente através de movimento,
remete-se tal efeito a uma causa particular que se move para
determinada forma, assim também, quando um ente se faz
simpliciter per se e não per accidens, é preciso remeter este
efeito à causa de ser universal. Esta, porém, é o Princípio
Primeiro, que é Deus. Podem certas coisas, através de muta­
ção ou movimento, ser trazidas ao ser pelo Princípio Primei­
ro mediante causas segundas; mas, no modo de produção
que ocorre sem movimento, o qual denominamos criação,
um efeito se remete unicamente a Deus como autor. Só deste
modo se podem trazer ao ser as substâncias imateriais e a
matéria dos corpos que não pôde ser anterior à forma, como
foi dito sobre a matéria dos corpos celestes, a qual não está
em potência para outras formas.183 Resta, portanto, que todas
as substâncias imateriais e corpos celestes, que não podem
ser trazidos ao ser por movimento, têm unicamente em Deus
o autor de seu ser. Logo, aquilo que é anterior dentre eles
não é a causa de ser para as coisas posteriores.

57 - Ademais, quanto mais elevada é uma causa, tanto mais


é universal e mais seu poder se estende às demais coisas. Mas
aquilo que se encontra como primeiro em cada um dos entes é
maximamente comum a todos, pois quaisquer coisas adicionadas
restringem aquilo que está dado como anterior. E, conquanto
tudo que é compreendido numa coisa como posterior seja rela­
cionado ao anterior como um ato a uma potência, é porém a po­
tência que é determinada pelo ato. Assim, é necessário que o que
primeiramente subsiste em cada coisa seja o efeito do poder su­
premo. E, quanto mais [o efeito] é posterior, tanto mais se remete
ao poder de uma causa inferior. É necessário, assim, que aquilo
que primeiramente subsiste em cada coisa — como a matéria nos
corpos e o que é proporcionado às substâncias imateriais — seja
o próprio efeito do poder primeiro do agente universal. Logo,

Santo Tomás de Aquino ■Sobre os Anjos - 1 1 5


aliquibus causis secundis aliqua producantur in esse non
praesupposito aliquo effectu superioris agentis. Et sic
nullum agens post primum totam rem in esse producit,
quasi producens ens simpliciter per se, et non per
accidens, quod est creare, ut dictum est.

58 - Item. Alicuius naturae vel formae duplex causa


invenitur: una quidem quae est per se et simpliciter causa
talis naturae vel formae; alia vero quae est causa huius
naturae vel formae in hoc. Cuius quidem distinctionis
necessitas apparet, si quis causas consideret eorum quae
generantur. Cum enim equus generatur, equus generans
est quidem causa quod natura equi in hoc esse incipiat,
non tamen est per se causa naturae equinae. Quod enim
per se est causa alicuius naturae secundum speciem,
oportet quod sit eius causa in omnibus habentibus
speciem illam. Cum igitur equus generans habeat eamdem
naturam secundum speciem, oporteret quod esset sui
ipsius causa; quod esse non potest. Relinquitur igitur quod
oportet super omnes participantes naturam equinam esse
aliquam universalem causam totius speciei: quam quidem
causam Platonici posuerunt speciem separatam a materia,
ad modum quo omnium artificialium principium est forma
artis, non in materia existens. Secundum Aristotilis autem
sententiam hanc universalem causam oportet ponere
in aliquo caelestium corporum: unde et ipse has duas
causas distinguens, dixit, quod homo generat hominem,
et sol. Cum autem aliquid per motum causatur, natura
communis alicui praeexistenti advenit performam materiae
advenientem vel subiecto. Potest igitur sic per motum esse
alicuius causa id quod particulariter naturam illam habet,
ut homo hominis, aut equus equi; cum vero non per motum
causatur, talis productio est ipsius naturae secundum se
ipsam. Oportet igitur quod reducatur in id quod est per se
causa illius naturae, non autem in aliquid quod particulariter

CXVI ■De Substantiis Separatis S. Thomas de Aquino


é impossível que as coisas sejam trazidas ao ser por quaisquer
causas segundas sem que esteja pressuposto um efeito do agente
superior; e, assim, nenhum agente após o primeiro traz ao ser a
coisa completa, no sentido de produzir um ente simpliciter per se e
não per accidens — o qual ato [de trazer ao ser a coisa completa]
é [propriamente] criar, como foi dito.184

58 - Mais ainda, há duas causas para determinada natureza


ou forma: uma, que é causa per se e simpliciter de tal natureza ou
forma; e outra, que é causa da natureza ou forma neste [ente]. A
necessidade de distinguir entre as duas é evidente para alguém
que considere as causas das coisas que são geradas. Quando,
pois, um cavalo é gerado, o cavalo que o gera c a causa pela
qual a natureza de cavalo comece a existir neste [ente], mas não
é causa per se da natureza eqiiina. Pois aquilo que é causa per
se de determinada natureza segundo a sua espécie é necessaria­
mente sua causa em todos os que possuem tal espécie. Como,
portanto, o cavalo que gera possui a mesma natureza específica,
seria preciso que ele fosse a sua própria causa, o que é impos­
sível. Resta, portanto, que acima de todos os participantes da
natureza eqüina existe necessariamente uma causa universal
de toda a espécie. Tal causa os platônicos propuseram que fosse
uma forma separada da matéria, do mesmo modo como o prin­
cípio de todas as coisas artificiais é a forma artística não-exis­
tente na matéria. Já segundo o ponto de vista de Aristóteles,185
deve-se pôr esta causa universal em algum dos corpos celestes;
razão por que, distinguindo estas duas causas, ele mesmo disse
que o sol e o homem geram o homem.186 Porém, quando algo
é causado por movimento, a natureza comum sobrevém a algo
preexistente através da forma que alcança a matéria ou a subs­
tância. Assim, aquilo que possui particularmente tal natureza
pode, por movimento, ser causa de algo, assim como o homem
é causa do homem e o cavalo, do cavalo. Quando, no entanto,
algo não é causado por movimento, tal produção é da [sua]
própria natureza segundo ela mesma. Portanto, é preciso que se
remeta àquilo que é per se a causa dessa natureza, e não àquilo
que participe particularmente dessa natureza. Pois tal produ-

Santo Tomás de Aquino ■Sobre os Anjos - 1 1 7


illam naturam participei. Assimilatur enim talis productio
processui vel causalitati qui in intelligibilibus invenitur, in
quibus natura rei secundum se ipsam non dependet nisi
a primo, sicut natura senarii et eius ratio non dependet
a ternario vel binário, sed ab ipsa unitate. Non enim sex
secundum primam rationem speciei sunt bis tria, sed sex
solum. Alioquin oporteret unius rei multas substantias esse.
Sic igitur cum esse alicuius causatur absque motu, eius
causalitas attribui non potest alicui particularium entium,
quod participai esse, sed oportet quod reducatur in ipsam
universalem et primam causam essendi, scilicet in Deum,
qui est ipsum esse.

5 9 - Amplius. Quanto aliqua potentia magis distat ab actu,


tanto maiori virtute indiget ad hoc quod in actum reducatur;
maiori enim virtute ignis opus est ad resolvendum lapidem
quam ceram. Sed nullius potentiae ad aliquam potentiam
quantumcumque indispositam et remotam est comparatio
absque proportione: non entis enim ad ens nulla est
proportio. Virtus igitur quae ex nulla potentia praeexistente
aliquem effectum producit, in infinitum excedit virtutem
quae producit effectum ex aliqua potentia quantumcumque
remota. Infinita autem virtus aliorum quidem potest esse
secundum quid, sed simpliciter respectu totius esse infinita
virtus non est nisi primi agentis, quod est suum esse et
per hoc est modis omnibus infinitum, ut supra dictum est.
Sola igitur virtus primi agentis potest effectum producere
nulla potentia praesupposita. Talem autem oportet esse
productionem omnium ingenerabilium et incorruptibilium,
quae absque motu producuntur. Oportet igitur omnia
huiusmodi a solo Deo esse producta. Sic igitur impossibile
est ut immateriales substantiae a Deo procedant in esse
secundum ordinem quern dicta positio assignabat.

CXVIII ■De Substantiis Separates •S. Thomas de Aquino


ção se assimila à processão ou causalidade que encontramos
nas coisas inteligíveis, nas quais a natureza da coisa segundo
ela mesma depende somente do [princípio] primeiro — assim
como a natureza do “seis” e sua razão não dependem do “três”
ou do “dois”, mas da própria unidade. Pois, conforme à própria
natureza de [sua] espécie, “seis” não são “duas vezes três”, mas
“uma vez seis”. De outro modo, seria necessário haver várias
substâncias de uma só coisa. Logo, quando o ser de algo é cau­
sado sem movimento, sua causalidade não pode ser atribuída a
nenhum dos entes particulares que participam do ser; é neces­
sário, isto sim, que ela seja reduzida à própria causa universal e
primeira do ser, isto é, a Deus, que é o próprio ser.

59 - Ademais, quanto mais uma potência dista do ato,


tanto maior é o poder de que carece para ser conduzida ao
ato; é necessário um maior poder no fogo para derreter uma
pedra do que para derreter cera. Porém, entre “nenhuma po­
tência” e “alguma potência”, não importa quão não-dispos-
ta187 ou remota,188 tem-se uma comparação sem proporção;
entre um não-ente e um ente não existe proporção. Assim,
aquele poder, não havendo nenhuma potência precedente,
produz algum efeito que excede infinitam ente ao poder que
produz algum efeito a partir de uma potência, não importa
quão remota ela seja. Outras coisas podem possuir um poder
infinito secundum quid, mas simpliciter, com respeito a todo
o ser, não há poder senão o do agente primeiro, que é o pró­
prio ser e, por isto, é em todos os modos infinito, como foi
dito.189 Portanto, só o poder do agente primeiro pode produ­
zir um efeito sem que nenhuma potência esteja pressuposta.
E assim deve ser a produção de todas as coisas não-geráveis
e incorruptíveis, as quais são produzidas sem movimento.
Assim sendo, todas as coisas deste tipo têm de haver sido
produzidas somente por Deus. Por conseguinte, é impossível
que as substâncias imateriais procedam de Deus para o ser
segundo a ordem que a referida opinião propunha.

Santo Tomás de Aquino •Sobre os Anjos - 1 1 9


N otas — Capítulo 1 0

178 - Para a referência, Cf. acima, cap. IX, n° 46; vide também A lgazel , Me-
taphysica, V.
179 - A vicena , Metaphysica, IX, 4 (fol. 104va); cf. P lotino , Enéadas, V, 2, 4;
G ilson , Étienne, H istory o f Christian Philosophy in the M iddle Ages, pp. 187-
216; G oichon , Amelie-Marie, La Distinction de l'Essence et de l'Existence
d'après Ibn Sina (Avicenne), Paris: Desclée de Brouwer, 1937, II, Cap. Il, A,
B (pp. 201-243); Lexique de la Langue Philosophique d'Ibn Sina (Avicenne),
Paris: Desclée de Brouwer, 1938, p. 421, par. 754; p. 20, par. 45; p. 327, par.
604; pp. 228-231, par. 439, nos. 3, 8; p. 239, par. 450; p. 41, par. 91.
180 - Escrito provavelmente por um autor árabe, entre os séculos IX e X,
o Livro sobre as Causas, que recebeu substancioso com entário de Santo
Tomás, é uma reelaboração — com m arcantes diferenças metafísicas e de
estrutura do texto — dos Elementos de Teologia (Elementatio Theologica),
de Proclo, e, de acordo com a crítica recente, recebeu o influxo de diversos
escritos neoplatônicos também lidos pelo Aquinate, como por exemplo o
livro Sobre os Nomes Divinos (De Divinis Nominibus), do Pseudo Dionísio
Areopagita — este último, comentado por Santo Tomás em sua juventude.
De acordo com o espanhol Juan Cruz Cruz, ao fazer a sua exposição sobre
o Liber de Causis, já em plena maturidade filosófica e num momento de febril
produção intelectual, no ano de 1272, o Aquinate tinha consigo três obras:
o próprio De Causis, de autor desconhecido; a Elementatio Theologica, esta
sim, de Proclo; e todo o corpus doutrinal do Pseudo Dionísio, além de textos
de Plotino. Cf. C ruz C ruz , Juan, “ Fuentes Neoplatónicas de la Metafísica
de la Causalidad en Super Librum de Causis Expositio", in T omás de A quino ,
Exposición sobre el Libro de las Causas, Navarra; Ediciones Universidad de
Navarra (EUNSA), 2000, pp. 7-16. Para outras informações sobre a autoria
do De Causis, ver J oseph ter R eegen, Jan Gérard, tradução, introdução e no­
tas a O Livro das Causas (Liber de Causis). Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000,
pp. 17-30. [n . do e.]
181 - Cf. acima, cap. IX, n° 49.
182 - Ibid.
183 - Cf. acima, cap. VIII, n°s37, 41. — Nos entes gerados por movimento, a
matéria é sempre anterior à forma, a qual lhe sobrevém apenas no término
do processo gerativo. Em contrapartida, nos caso de entes materiais incor­
ruptíveis (os corpos celestes, na doutrina aristotélico-tom ista), a matéria, tal
como neles disposta, não lhes pôde ser anterior, segundo Santo Tomás, por
não terem eles sido gerados por movimento, [ n . do t.)
184 - Cf. acima, cap. IX, nos 49, 50.
185 - A ristóteles, Metafísica, I, 6; 9 (987b 1-14; 991a 20-991 b 1); III, 2 (997b
8); VII, 8 (1033b 19-1034a 8); XII, 5 (1071a 17-30).
186 - A ristóteles, Física, II, 2 (194b 13).
187 - Ou seja, carente de forma.
188 - Ou seja, distante do ato.
189 - Cf. acima, cap. IX, n°s 49, 50; cap. X, n° 56. Cf. S weeney, C.L., Divine
Infinity in the Writings o f St. Thomas Aquinas (Dissertação de Doutorado
não-publicada), University of Toronto, 1954, II, Caps. 2, 3 (pp. 283-300).

CXX •De Substantiis Separatis •S. Thomas de Aquino


S a n to T o m á s d e A q u in o ■ Sobre os Anjos -121
CAPUT XI

Contra Platonicos qui ponunt quasdam


perfectiones essentiales substantiarum
spiritualium non esse immediate a Deo

60 - His autem rationibus moti Platonici posuerunt quidem


omnium immaterialium substantiarum et universaliter omnium
existentium Deum esse immediate causam essendi secundum
praedictum productionis modum, qui est absque mutatione vel
motu; posuerunt tamen secundum alias participationes bonitatis
divinae ordinem quemdam causalitatis in praedictis substantiis.
Lit enim supra dictum est, posuerunt abstracta principia
secundum ordinem intelligibilium conceptionum: ut scilicet sicut
unum et ens sunt communissima, et primo cadunt in intellects
sub hoc autem est vita, sub qua iterum est intellects, et sic inde;
ita etiam primum et supremum inter separata est id quod est
ipsum ens et ipsum unum, et hoc est primum principium, quod
est Deus, de quo iam dictum est, quod est suum esse. Sub hoc
autem posuerunt aliud principium separatum, quod est vita; et
iterum aliud, quod est intellects. Si igitursit aliqua immaterialis
substantia quae sit intelligens, vivens et ens, erit quidem ens per
participationem primi principii, quod est ipsum esse; erit autem
vivens per participationem alterius principii separati, quod est
vita; erit autem intelligens per participationem alterius separati
principii, quod est ipse intellects: sicut si ponatur quod homo
sit animal per participationem huius principii separati quod
est animal, sit autem bipes per participationem secundi
principii, quod est bipes.

61 - Haec autem positio quantum ad aliquid quidem


veritatem habere potest; simpliciter autem vera esse non
potest. Eorum enim quae accidentaliter alicui adveniunt, nihil

CXXII •De Substantiis Separatis S. Thomas de Aquino


C A PÍTU LO 11

C o n t r a p l a t ô n ic o s q u e a f i r m a m q u e c e r t a s
PERFEIÇÕES ESSENCIAIS DAS SUBSTÂNCIAS ESPIRITUAIS
NÃO PROCEDEM IMEDIATAMENTE DE ÜEUS

6 0 - Movidos por estes argumentos, os platônicos afirma­


ram que Deus é a causa de ser imediata de todas as substâncias
imateriais — e, universalmente, de todas as coisas existentes
— segundo o referido modo de produção isento de mutação
ou movimento.190 Propuseram, porém, segundo outras parti­
cipações na bondade divina, uma ordem de causalidade nas
mencionadas substâncias; pois, como foi dito anteriormen­
te,191 os platônicos estabeleceram os princípios abstratos se­
gundo a ordem das concepções inteligíveis, de maneira que,
assim como o uno e o ente são mais comuns e se apresentam
primeiramente ao intelecto, e como em seguida a estes dois se
apresenta a vida, e após esta o intelecto, e assim por diante,
assim também o que é primeiro e supremo dentre as coisas se­
paradas é aquilo que é o próprio ente e o próprio uno, ou seja,
o Princípio Primeiro, Deus, o qual já se disse que é o próprio
ser.192 Abaixo deste, estabeleceram outro princípio separado,
a vida, e ainda outro, o intelecto. Caso haja, portanto, uma
substância separada que seja inteligente, vivente e ente, esta
será então ente por participação no Princípio Primeiro, que é
o próprio ser; será então vivente por participação no segundo
princípio separado, que é a vida; será então inteligente por
participação em outro princípio separado, que é o próprio
intelecto.193 E ter-se-iam as coisas do mesmo modo ao afir-
mar-se que o homem seria um animal por participação neste
princípio separado que é o “animal”; e que seria bípede por
participação num segundo princípio, que é o “bípede”.194

61 - Tal posição, contudo, se pode ser verdadeira em


certo sentido, não o pode ser simpliciter. Dentre as coi­
sas que sobrevêm a algo acidentalm ente, nada impede
que aquilo que é anterior proceda de alguma causa mais

Santo Tomás de Aquino •Sobre os Anjos •1 2 3


prohibet id quidem quod est prius, ab aliqua universaliori
causa procedere; quod vero est posterius ab aliquo
posteriori principio; sicut animalia et plantae calidum quidem
et frigidum ab elementis participant, sed determinatum
complexionis modum ad speciem propriam pertinentem
obtinent ex virtute seminali per quam generantur. Nec est
inconveniens quod ab alio principio aliquid sit quantum
et album seu calidum. Sed in his quae substantialiter
praedicantur, hoc contingere penitus impossibile est. Nam
omnia quae substantialiter de aliquo praedicantur sunt per
se et simpliciter unum. Unus autem effectus non reducitur in
plura prima principia secundum eamdem rationem principii,
quia effectus non potest esse causa simplicior. Unde et
Aristoteles hac ratione utitur contra Platonicos: quod si esset
aliud animal, et aliud bipes in principiis separatis, non esset
simpliciter unum animal bipes. Si igitur in immaterialibus
substantiis aliud esset id quod est esse et aliud quod est
vivere, et aliud quod est intellectivum esse, ita quod vivens
adveniret enti, vel intelligens viventi, sicut accidens subiecto,
vel forma materiae, haberet rationem quod dicitur. Videmus
enim aliquid esse causam accidentis quod non est causa
subiecti, et aliquid esse causam substantialis formae quod
non est causa materiae. Sed in immaterialibus substantiis id
ipsum esse eorum est ipsum vivere eorum. Nec est in eis
aliud vivere quam intellectivum esse: unde a nullo alio habent
quod vivant et intellectiva sint, quam a quo habent quod
sint. Si igitur omnes immateriales substantiae a Deo habent
immediate quod sint, ab eo immediate habent quod vivant
et intellectivae sint. Si quid autem advenit eis supra eorum
essentiam, puta intelligibiles species, vel aliquid huiusmodi,
quantum ad talia potest Platonicorum opinio procedere: ut
scilicet huiusmodi in inferioribus immaterialium substantiarum
inveniantur ordine quodam a superioribus derivata.

CXXIV •De Substantiis Separatis •S. Thomas de Aquino


universal, ou que aquilo que é posterior proceda de um
princípio posterior, assim como os animais e as plantas
participam do calor e do frio por meio dos elementos, mas
só obtêm o modo determinado de compleição pertencente
à sua própria espécie a partir do poder seminal pelo qual
são gerados. Tampouco discrepa disso que algo seja grande,
branco ou quente a partir de diferentes princípios, mas,
naquelas coisas que se predicam substancialm ente, tal
é completamente impossível. Pois todas as coisas que se
predicam substancialm ente de algo são unas p er se e sim­
pliciter. Um efeito singular não se remete a vários primeiros
princípios segundo uma mesma noção de princípio, porque
um efeito não pode ser mais simples que a causa. Por isso,
também Aristóteles se utiliza deste raciocínio contra os
platônicos: se, pois, “anim al” fosse uma coisa e “bípede”
outra em princípios separados, não haveria sim pliciter “um
anim al bípede”.195 Se, portanto, nas substâncias imateriais,
“ser” fosse uma coisa, “viver” fosse outra e “ser intelectivo”
outra, de maneira que “vivo” sobreviesse ao ente e “inteli-
gente” ao vivente como um acidente a um sujeito ou uma
forma à matéria, [só] assim o raciocínio exposto seria válido,
pois já vimos algo ser causa de um acidente sem ser causa
do sujeito, ou algo ser causa da forma substancial sem ser
causa da matéria. Contudo, nas substâncias imateriais, isto
mesmo que é seu ser é seu “viver” e não é outro senão seu
“ser intelectivo”. Isto porque elas não obtêm seu “viver” e
“ser intelectivo" de nenhum outro [princípio] além daquele
pelo qual são. Portanto, se todas as substâncias imateriais
recebem imediatamente de Deus o seu “ser”, d’Ele também
recebem imediatamente seu “viver” e seu “ser intelectivo”.
E, se algo lhes advém por sobre a sua essência, como espé­
cies inteligíveis ou algo similar, pode-se sustentar quanto a
isto a opinião dos platônicos, a saber, que tais qualidades
se encontram nas substâncias imateriais inferiores segundo
certa ordem derivada das superiores.

Santo Tomás de Aquino ■Sobre os Anjos ■ 125


N otas — Capítulo 11

190 - P roclo , Elementatio Theologica, Prop. 26.


191 - Cf. acima, cap. I, n°s 4 e 7.
192 - Cf. acima, cap. IX, n°s 49, 50, 56, 58.
193 - Cf. acima, cap. IX, n° 46, nota 155.
194 - A ristóteles, Metafísica, VII, 14; 15 (1039a 3 0-32; 1040b 32-34); Ética,
I, 6 (1096a 35-1096b 3).
195 - A ristóteles, Metafísica, VII, 12; 15 (1037b 21-24; 1040a 8-29).

CXXVI •De Substantiis Separatis S. Thomas de Aquino


S a n to T o m á s d e A q u in o • Sobre os Anjos • 127
CAPUT XII

Contra Origenem qui posuit omnes substantias


spirituales esse aequales productas a Deo

62 - Sicut autem praedictae positiones, immaterialium


substantiarum ordinem considerantes, non immediate,
sed ordine quodam earum processum a primo principio
tradiderunt; itaaliqui e converso, volentessalvare immediatum
earum processum a primo principio, totaliter ab eis naturae
ordinem sustulerunt; cuius positionis auctor invenitur
Origenes fuisse. Consideravit enim quod ab uno iusto auctore
res diversae et inaequales non possent procedere nisi aliqua
diversitate praecedente.
Nulla autem diversitas praecedere potuit primam
productionem rerum a Deo, quae nihil praesupponit: unde
ponebat omnes res a Deo primo productas esse aequales.
Unde, quia corpora incorporalibus substantiis aequari non
possunt, posuit in prima rerum productione corpora non fuisse,
sed postmodum rebus a Deo productis diversitas intervenit ex
diversitate motuum voluntatis immaterialium substantiarum,
quae ex sua natura habent arbitrii libertatem.
Quaedam igitur earum in suum principium ordinato
motu voluntatis conversae, in melius profecerunt, et hoc
diversimode secundum voluntarii motus diversitatem.
Unde et inter eas quaedam sunt aliis superiores effectae.
Aliae vero inordinato motu voluntatis a suo principio
sunt aversae: et haec in deterius defecerunt, quaedam
plus, quaedam minus; ita ut haec fuerit corporum
producendorum occasio, ut eis immateriales substantiae
ab ordine boni aversae alligarentur quasi usque ad
inferiorem naturam prolapsae. Unde et totam diversitatem
corporum dicebat procedere ex diversitate inordinationis
voluntarii motus immaterialis substantiae; ut quae minus a

CXXVIII •De Substantiis Separatis S. Thomas de Aquino


CAPÍTULO 12

C o n t r a O r íg e n e s , q u e p r o p ô s t e r e m s id o t o d a s
AS SUBSTÂNCIAS ESPIRITUAIS CRIADAS IGUAIS POR DEUS

62 - Assim como as posições referidas acima,196 conside­


rando a ordem das substâncias imateriais, ensinavam que elas
procedem do Princípio Primeiro não imediatamente, mas de
acordo com certa ordem, assim alguns, contrariamente, de­
sejando salvar tal processão imediata do Princípio Primeiro,
lhes retiraram toda e qualquer ordem da natureza. Sabe-se que
o autor de tal opinião foi Orígenes.197 Ele considerou que de
um autor único e justo não podem proceder coisas diversas e
desiguais sem que haja alguma diversidade precedente.
Nenhuma diversidade, porém, pôde preceder a primeira
produção das coisas por Deus, a qual nada pressupõe. Donde
propõe ele que todas as coisas produzidas primeiramente por
Deus foram iguais. Logo, como os corpos não podem igualar-se
às substâncias incorpóreas, afirmou que na primeira produção
das coisas não havia corpos; posteriormente, estando produ­
zidas por Deus as coisas, uma diversidade interveio através da
própria diversidade nos movimentos da vontade das substân­
cias imateriais, as quais possuem, por sua própria natureza,
liberdade de escolha.
Assim, algumas delas, voltadas para seu princípio198 atra­
vés do movimento ordenado de sua vontade, progrediram em
sua bondade; e isto de maneiras diversas, segundo a diversi­
dade de seu modo voluntário, razão por que também entre
elas algumas se fizeram superiores a outras. Já outras, através
de um movimento desordenado de sua vontade, se desviaram
de seu princípio e se deterioraram, umas mais, outras menos,
dando ocasião à produção dos corpos: a eles se uniriam as
substâncias imateriais desviadas da ordem do bem, como
que relegadas a uma natureza inferior. Donde também dizia
Orígenes que toda a diversidade dos corpos procede de uma
diversidade na desordem do movimento voluntário das subs­
tâncias imateriais, de maneira que aquelas menos desviadas

Santo Tomás de Aquino •Sobre os Anjos • 129


Deo aversae fuerant, nobilioribus corporibus alligarentur,
quae autem magis, ignobilioribus.

63 - Huius autem positionis ratio vana est, et ipsa positio


impossibilis: cuius quidem impossibilitatis ratio accipi potest
ex his quae supra iam diximus. Dictum enim est supra,
spirituales substantias immateriales esse. Si igitur in eis sit
aliqua diversitas, oportet quod hoc sit secundum formalem
differentiam. In his autem quae formali differentia differunt,
aequalitas inveniri non potest. Oportet enim omnem
formalem differentiam ad primam oppositionem reduci,
quae est privationis ad formam. Unde omnium formaliter
differentium natura unius imperfecta existens respectu
alterius, se habet ad ipsam habitudine privationis ad formam.
Hoc autem in diversitate specierum nobis notarum apparet.
Sic enim specierum differentiam in animalibus et plantis et
metallis et elementis invenimus secundum ordinem naturae
procedere, ut paulatim ab imperfection ad perfectissimum
natura consurgat: quod etiam apparet in speciebus colorum
et saporum et aliarum sensibilium qualitatum. In his vero
quae materialiter differunt, eamdem formam habentibus, nihil
prohibet aequalitatem inveniri. Possunt enim subiecta diversa
eamdem formam participare aut secundum aequalitatem,
aut secundum excessum et defectum. Sic igitur possibile
esset spirituales substantias omnes aequales esse, si solum
secundum materiam differrent, eamdem formam specie
habentes. Et forte tales eas esse Origenes opinabatur, non
multum discernens naturas spirituales et corporales. Quia
vero spirituales substantiae immateriales sunt, necesse est
in eis ordinem naturae esse.

64 - Adhuc. Secundum hanc positionem necesse est


spirituales substantias aut imperfectas aut superfluas
esse. Non enim inveniuntur multa aequalia in uno gradu
naturae nisi propter imperfectionem cuiuslibet eorum, vel

CXXX •De Substantiis Separatis ■S. Thomas de Aquino


de Deus se teriam unido aos corpos mais elevados, e as mais
desviadas, aos menos elevados.

63 - Contudo, o princípio de sua posição é vazio, e sua


própria posição, impossível — impossibilidade que se pode
provar com argumentos colhidos do que já dissemos acima.
Pois foi dito que as substâncias espirituais são imateriais.199
Se, portanto, há nelas qualquer diversidade, é preciso que ela
exista segundo uma diferença formal. Porém, entre as coisas
que diferem formalmente entre si, não se pode encontrar
igualdade, pois qualquer diferença formal tem de remeter-
se à primeira oposição, que é entre privação e forma.200 Por
isto, dentre todas as coisas que diferem formalmente [entre
si], a natureza imperfeita de uma delas com respeito a outra
se relaciona a esta outra com o caráter de uma privação na
forma. E isto se evidencia para nós na diversidade das espé­
cies que conhecemos. Assim como vemos que a diferença de
espécies nos animais, nas plantas, nos metais e nos elementos
procede segundo a ordem da natureza — de modo que esta
se eleve, gradualmente, do mais inferior ao mais perfeito — ,
assim também o vemos nas espécies de cores, sabores e outras
qualidades sensíveis. Nas coisas que diferem materialmente
mas possuem a mesma forma, nada impede que a igualdade
seja adquirida, pois sujeitos diversos podem participar de uma
mesma forma em igualdade, excesso ou falha. Assim, portan­
to, seria possível que todas as substâncias espirituais fossem
iguais se elas diferissem somente segundo a matéria, possuin­
do a mesma forma específica. E talvez pensasse Orígenes que
assim é, sem discernir muito entre as naturezas espirituais e
as corpóreas. Mas, como as substâncias espirituais são imate­
riais, é preciso que haja nelas uma ordem de natureza.

6 4 - Ademais, segundo tal posição, seria necessário que as


substâncias espirituais fossem imperfeitas ou supérfluas. Pois
não se encontram vários [entes] iguais no mesmo grau de natu­
reza senão por causa de uma imperfeição em qualquer um de­
les, ou por causa da necessidade de permanência [no ser] — de

Santo Tomás de Aquino ■Sobre os Anjos - 1 3 1


propter permanendi necessitatem, ut quae eadem numero
permanere non possunt, multiplicata permaneant; sicut
inveniuntur in corruptibilibus rebus multa individua et aequalia
secundum naturam speciei: aut propter necessitatem alicuius
operationis, ad quam virtus unius non sufficit, sed oportet
aggregari virtutem multorum quasi ad unam perfectam
virtutem constituendam, ut patet in multitudine bellatorum
et in multitudine trahentium navim. Ilia vero quorum est
virtus perfects et permanentia in ordine suae naturae, non
multiplicantur secundum numerum in aequalitate eiusdem
speciei. Est enim unus sol tantum, qui sufficit ad semper
permanendum et ad omnes effectus producendos qui sibi
conveniunt secundum gradum suae naturae: et idem apparetin
ceteris caelestibus corporibus. Substantiae autem spirituals
sunt multo perfectiores corporibus etiam caelestibus. Non
igitur in eis inveniuntur multae in eodem gradu naturae: una
enim sufficients, aliae superfluerent.

65 - Item. Praedicta positio universitati rerum productarum a


Deo subtrahit boni perfectionem. Uniuscuiusque enim effectus
perfectio in hoc consistit quod suae causae assimiletur. Quod
enim secundum naturam generatur, tunc perfectum est quando
pertingit ad similitudinem generantis. Artificialia etiam per hoc
perfects redduntur quod artis formam consequuntur. In primo
autem principio non solum consideratur quod ipsum est bonum
et ens et unum, sed quod hoc eminentius prae ceteris habet,
et alia ad sui bonitatem participandam adducit. Requirit igitur
assimilatio perfects universitatis a Deo productae ut non solum
unumquodque sit bonum et ens, sed quod unum superemineat
alteri, et unum moveat alterum ad suum finem: unde et bonum
universi est bonum ordinis, sicut bonum exercitus. Hoc
igitur bonum universitati rerum subtraxit praedicta positio,
omnimodam aequalitatem in rerum productions constituens.
Amplius. Inconveniens est id quod est optimum in universo,
attribuere casui. Nam id quod est optimum, maxime habet

CXXXn •De Substantiis Separates S. Thomas de Aquino


modo que aquelas coisas incapazes de seguir [existindo] num
mesmo contingente numérico possam fazê-lo multiplicando-
se, assim como encontramos, nas coisas corruptíveis, diversos
indivíduos iguais segundo a natureza da espécie — , ou, ainda,
por causa da necessidade de alguma operação para a qual o
poder de um só não é suficiente e se necessita agregar o poder
de vários, como para constituir um só poder perfeito, como se
vê num número de guerreiros ou numa multidão de pessoas que
puxam um barco. Já aquelas coisas cujo poder é perfeito e que
são permanentes na ordem de sua natureza não se multiplicam
em número dentro da igualdade de uma mesma espécie. Assim,
há um sol apenas, que é suficiente para permanecer para sem­
pre e produzir todos os efeitos que lhe convêm segundo o grau
de sua natureza; e assim também nos corpos celestes restantes.
Mas substâncias espirituais são muito mais perfeitas que até
os mesmos corpos celestes. Logo, nelas não encontramos plu­
ralidade num mesmo grau de natureza: sendo uma suficiente,
outras seriam supérfluas.

65 - Mais ainda, o referido parecer subtrai ao universo das


coisas produzidas por Deus a perfeição do bem. A perfeição de
qualquer efeito consiste em que ele se assemelhe à sua causa,201
pois o que é gerado segundo uma natureza é perfeito quando
atinge a semelhança de seu gerador; também as coisas artificiais
são ditas perfeitas por alcançar a forma da arte. Mas, quanto ao
Princípio Primeiro, não só se considera que ele é o próprio bem,
o próprio ser e o próprio uno, mas também que ele os possui
proeminentemente acima de todas as outras coisas, e as guia à
participação em sua bondade. Assim, a assimilação perfeita do
universo produzido por Deus não só requer que cada coisa seja
boa e ente, mas que uma sobreleve a outra e que uma mova a
outra a seu fim; donde também o bem do universo é o bem de
uma ordem, assim como o é o bem de um exército.202 A referida
opinião, portanto, subtrai tal bem ao universo das coisas, ao
constituir uma igualdade absoluta na produção destas.203
Ademais, é inapropriado atribuir ao acaso aquilo que é
mais elevado no universo. Pois aquilo que é mais elevado

Santo Tomás de Aquino Sobre os Anjos • 133


rationem finis intenti. Optimum autem in rerum universitate
est bonum ordinis: hoc enim est bonum commune, cetera
vero sunt singularia bona. Hunc autem ordinem qui in rebus
nunc invenitur, praedicta positio attribuit casui, secundum
scilicet quod accidit unam spiritualium substantiarum sic
moveri secundum voluntatem, et aliam aliter. Est igitur
praedicta positio omnino abiicienda.

66 - Ratio etiam positionis manifeste continet vanitatem.


Non enim est eadem ratio iustitiae in constitutione alicuius
totius ex pluribus partibus et diversis, et in distributione
alicuius communis per singula. Qui enim aliquod totum
constituere intendit, ad hoc respicit quod totum perfectum
sit et secundum hoc diversas partes et inaequales ad eius
compositionem conducit. Si enim omnes essent aequales, iam
non esset totum perfectum: quod patet tarn in toto naturali,
quam in toto civili. Non enim esset corpus hominis perfectum
nisi membra diversa et inaequalis dignitatis haberet; neque
esset civitas perfecta nisi inaequales conditiones et officia
diversa in civitate existèrent. In distributione vero attenditur
bonum uniuscuiusque, et ideo diversis diversa assignantur
secundum diversitatem in eis praecedentem, secundum
quam competunt eis diversa. In prima igitur rerum productione
Deus diversa et inaequalia in esse produxit, attendens ad id
quod requirit perfectio universi, non ad aliquam diversitatem
in rebus praeexistentem; sed hoc attendit in remuneratione
finalis iudicii, unicuique retribuens secundum quod meruit.

CXXXIV •De Substantiis Separatis S. Thomas de Aquino


possui maximamente a razão do fim intencionado. E o mais
elevado no universo das coisas é a ordem do bem; é este o
bem comum, enquanto os outros são bens singulares. E esta
(adem, que agora encontramos nas coisas, a referida posição a
atribui ao acaso, ao afirmar que sucede a uma das substâncias
espirituais mover-se de acordo com sua vontade, e a outra
delas [mover-se] de outra maneira.

66 - Além disso, o argumento dessa posição contém cla­


ramente uma falsidade. Pois na constituição de algo inteiro
a partir de várias e diversas partes não há a mesma noção de
justiça que na distribuição de algo comum entre singulares.
Quem tem a intenção de constituir um todo visa a que este
todo seja perfeito e, atendendo a isso, perfaz a sua consti­
tuição com partes diversas e desiguais. Se todas as partes
fossem iguais, já não haveria um todo perfeito, o que é evi­
dente tanto num todo físico como num civil:204 não seria
perfeito o corpo do homem se seus membros não possuíssem
importância diversa e desigual; tampouco seria perfeita uma
cidade se nela não houvesse condições desiguais e ofícios di­
versos. Já numa distribuição, atende-se ao bem de cada um,
e por isso coisas diversas são designadas a diversos, segundo
elas lhes compitam. Assim, na primeira produção das coisas,
Deus trouxe ao ser coisas diversas e desiguais, atendendo
àquilo que a perfeição do universo requer e não a alguma
diversidade preexistente nas coisas; mas ele atentará para
isto na recompensa do Juízo Final, retribuindo a cada um
segundo seu mérito.

Santo Tomás de Aquino Sobre os Anjos ■ 135


N otas — Capítulo 12

196 - Cf. acima, cap. 9, nos 46 ss.


197 - O rígenes, Periarchon, I, c. 8.
198 - Ou seja, sua causa originária. Cf. T omás de A quino , Super Evangelii
Sancti loannis Lectura, I.
199 - Cf. acima, cap. VII, nos 3 4 -3 6 ; cap. VIII, n05 41, 44.
200 - Tomás de Aquino, Expositio super Librum Boethii de Trinitate, q. 4, a.
201 - Cf. Tomás de Aquino, Summa contra Gentiles, I, 29.
202 - Cf. ibid., I, 1 (p. 59).
203 - Tudo isto que concerne à ordem é discutido em O rIgenes, Periarcht
I, c. 8.
204 - A ristóteles, Política, II, 2 (1061a 2 0 -b 15).

CXXXVI ■De Substantiis Separatis ■S. Thomas de Aquino


S a n to T o m á s d e A q u in o • Sobre os Anjos • 137
CAPUT XIII

De errore quorundam circa cognitionem


et providentiam substantiarum spiritualium

67 - Non solum autem in substantia et ordine spiritualium


substantiarum aliqui erraverunt, ad modum inferiorum rerum
de eis existimantes, sed hoc etiam quibusdam accidit
circa signationem et providentiam earumdem. Dum enim
spiritualium substantiarum intelligentem et operationem
ad modum humanae intelligentiae et operationis diiudicare
voluerunt, posuerunt Deum et alias substantias immateriales
singularium cognitionem non habere, nec inferiorum et
praecipue humanorum actuum providentiam gerere. Quia
enim in nobis singularium quidem sensus est, intellectus
autem propter sui immaterialitatem non singularium sed
universalem est; consequens esse existimaverunt ut intellectus
substantiarum spiritualium, qui sunt multo simpliciores nostro
intellectu, singularia cognoscere non possint. Non est autem in
substantiis spiritualibus, cum sint omnino incorporeae, aliquis
sensus, cuius operatio sine corpore esse non potest: unde
videtur eis impossibile quod spirituales substantiae aliquam
de singularibus notitiam habeant.

68 - Adhuc. In maiorem insaniam procedentes, aestimant


Deum nihil nisi se ipsum intellectu cognoscere. Sic enim
videmus in nobis quod intellectum est intelligente perfectio et
actus: per hoc enim intellectus fit actu intelligens. Nihil autem
aliud a Deo est eo nobilius quod possit esse eius perfectio.
Unde ex necessitate consequi arbitrantur quod nihil aliud
sit a Deo intellectual nisi eius essentia. Amplius. Ea quae ex
alicuius providentia procedunt, casualia esse non possunt. Si
igitur omnia quae in hoc mundo accidunt ex divina providentia
procedunt, nihil in rebus erit fortuitum et casuale.

CXXXVIII ■De Substantiis Separatis •S. Thomas de Aquino


C A P ÍT U L O 13

S o b r e o e r r o d e a l g u n s a c e r c a d a c o g n iç ã o
E DA PROVIDÊNCIA DAS SUBSTÂNCIAS ESPIRITUAIS

6 7 - N ão só alguns erraram quanto à própria substân­


cia e ordem das substâncias espirituais considerando-as
pelo modo das coisas inferiores, mas isso tam bém ocor­
reu a outros no to ca n te à sua cogn ição e providência.
Pois, ao quererem avaliar a in telig ên cia e a operação das
substâncias espirituais segundo o modo da in teligên cia
e operação hum anas, propuseram que Deus e as demais
substâncias im ateriais não possuem a cog n ição dos sin ­
gulares nem exercem providência com respeito aos atos
das inferiores, especialm ente os dos hum anos.205 Com o
em nós são os sentidos que se ocupam dos singulares,
enquanto o in telecto , por sua im aterialidade, se ocupa
dos universais, consideraram eles que os in telecto s das
substâncias in telectu ais, que são muito mais simples que
o nosso, não poderiam in telig ir os singulares. Não há,
nas substâncias espirituais — visto serem incorpóreas
— , sentidos, cuja operação não pode dar-se sem um
corpo; donde lhes pareceu impossível que as substân­
cias espirituais possuíssem qualquer co n h ecim en to dos
singulares.206

6 8 - Ademais, procedendo a insanidade ainda maior,


julgaram que Deus não conhece por seu intelecto senão a
Si próprio. Pois em nós vemos que compreender é a perfei­
ção e o ato da inteligência, porque assim o intelecto se faz
inteligente em ato. E nada é mais elevado que Deus para
poder ser sua perfeição. Assim, julgam seguir-se, necessa­
riam ente, que nada é inteligido por Deus senão Sua essên­
cia.207 A lém disso, as coisas que procedem da providência
de alguém não podem ser casuais; e se, portanto, tudo o
que ocorre neste mundo procede da providência divina,
nada será fortuito e casual.208

Santo Tomás de Aquino ■Sobre os Anjos ■1 39


Item. Utuntur ratione Aristotelis in sexto metaphysicae
probantis, quod si omnem effectum ponamus habere causam
per se, et quod qualibet causa posita necesse sit effectum
poni, sequetur quod omnia futura ex necessitate contingent:
quia erit reducere quemlibet futurum effectum in aliquam
praecedentem causam, et illam in aliam, et sic inde quousque
veniatur ad causam quae iam est vel quae fuit. Haec autem
iam posita est ex quo in praesenti est vel in praeterito fuit. Si
igitur posita causa necesse est effectum poni, ex necessitate
consequuntur omnes futuri effectus. Sed si omnia quae in
mundo sunt divinae providentiae subduntur, omnium causa non
solum est praesens vel praeterita, sed ab aeterno praecessit.
Non est autem possibile quin ea posita effectus sequantur:
non enim cassatur divina providentia neque per ignorantiam
neque per impotentiam providentis, in quern nullus cadit
defectus. Sequetur igitur omnia ex necessitate procedere.

6 9 - Adhuc. Si Deus est ipsum bonum, oportet quod ordo


providentiae eius secundum rationem boni procedat. Aut
igitur inefficax est divina providentia, aut universaliter malum
a rebus excludit. Videmus autem in singularibus generabilium
et corruptibilium multa mala contingere; et praecipue inter
homines, in quibus praeter naturalia mala, quae sunt naturales
defectus et corruptiones communes eis et aliis corruptibilibus
rebus, superadduntur insuper mala vitiorum et inordinatorum
eventuum: puta, cum iustis multotiens mala eveniunt,
iniustis autem bona. Propter hoc igitur aliqui aestimaverunt
divinam providentiam se extendere usque ad substantias
immateriales et incorruptibilia, et caelestia corpora, in quibus
nullum malum videbant: inferiora vero providentiae subdi
dicebant vel divinae vel aliarum spiritualium substantiarum
quantum ad genera, non autem quantum ad individua.

70 - Et quia ea quae praedicta sunt, communi opinioni


hominumrepugnant,nonsolumplurium,sedetiamsapientum;

CXL ■De Substantiis Separates ■S. Thomas de Aquino


Utilizam-se, ainda, do argumento de Aristóteles no livro
sexto da M etafísica209 que prova que, se afirmamos que todo
e qualquer efeito tem uma causa per se e que, tendo sido esta­
belecida uma causa qualquer, será preciso dar-se o seu efeito,
sucederá que todas as coisas futuras ocorrerão por necessidade,
pois todo e qualquer efeito futuro será remetido a uma causa
precedente, e esta a outra, e assim até que se chegue a uma
causa que já existe ou que existiu; e uma causa já estabelecida é
aquilo por que algo existe no presente ou existiu no passado. Se,
portanto, estabelecida uma causa, é preciso que seu efeito se dê,
seguem-se então, necessariamente, todos os efeitos futuros. E,
se todas as coisas que há no mundo estão, por sua vez, subme-
i idas à divina providência, a causa de todas elas não é apenas
presente ou passada, mas as precedeu desde toda a eternidade.
E não é possível que, estabelecida tal causa, seu efeito não se
dê, pois a providência divina — na qual não incide nenhum
defeito — não é anulada nem por ignorância nem por impo­
tência. Assim, sucede que tudo procede por necessidade.210

69 - Mais ainda, se Deus é o próprio bem, é necessário que a


ordem da providência proceda d’Ele segundo a natureza do bem.
Logo, ou é ineficaz a providência divina, ou ela exclui universal­
mente todo o mal das coisas. Mas vemos [haver], entre os sin­
gulares geráveis e corruptíveis, diversos males; e principalmente
entre os homens, nos quais incidem, além dos diversos males
naturais, que são defeitos comuns a eles e às demais coisas cor­
ruptíveis, os males dos vícios e dos eventos desordenados, como
quando, várias vezes, muitos males acontecem aos justos e mui­
tos bens aos injustos. Por causa disso, alguns consideraram que a
providência divina se estende [somente] às substâncias imateriais
e aos incorruptíveis corpos celestes, nos quais não viam nenhum
mal; já as [coisas] inferiores eles diziam estar submetidas à pro­
vidência divina (ou de outras substâncias espirituais) somente
quanto aos gêneros, mas não quanto aos indivíduos.

70 - E, como as coisas que foram mencionadas contrariam


a comum opinião dos homens e não só de muitos, mas também

Santo Tomás de Aquino ■Sobre os Anjos - 1 4 1


certis rationibus ostendendum est praedicta veritatem non
habere, et rationes praemissas non hoc concludere quod
intendunt. Et primo quidem quantum ad divinam cognitionem;
secundo quantum ad eius providentiam.
Oportet autem ex necessitate hoc firmiter tenere quod
Deus omnium cognoscibilium quocumque tempore vel a
quocumque cognoscente, certissimam cognitionem habeat.
Ut enim supra habitum est, Dei substantia est ipsum eius esse.
Non est autem in eo aliud esse, atque aliud intelligere: sic enim
non esset perfecte simplex, unde nec simpliciter primum.
Oportet igitur quod sicut eius substantia est suum esse, ita
etiam eius substantia sit suum intelligere, sive intelligent, ut
etiam philosophus concludit in decimosecundo metaphysicae.
Sicut igitur eius substantia est ipsum esse separatum, ita etiam
eius substantia est ipsum intelligere separatum. Si autem sit
aliqua forma separata, nihil quod ad rationem illius formae
pertinere posset, ei deesset; sicut si albedo separata esset,
nihil quod sub ratione albedinis comprehenditur, ei deficeret.
Cuiuslibet autem cognoscibilis cognitio sub universali ratione
cognitionis continetur. Oportet igitur Deo nullius cognoscibilis
cognitionem deesse. Cognitio autem cuiuslibet cognoscentis
est secundum modum substantiae eius, sicut et quaelibet
operatio est secundum modum operantis. Multo igitur magis
divina cognitio, quae est eius substantia, est secundum
modum esse ipsius. Esse autem eius est unum, simplex, fixum
et aeternum. Sequitur ergo quod Deus uno simplici intuitu
aeternam et fixam de omnibus notitiam habeat.

71 - Adhuc, id quod abstractum est, non potest esse


nisi unum in unaquaque natura. Si enim albedo posset esse
abstracts, sola una esset albedo, quae abstracts esset;
omnes autem albedines aliae essent participatae. Sic igitur
sicut sola Dei substantia est ipsum esse abstractum, ita sola
eius substantia est ipsum intelligere omnino abstractum.
Omnia igitur alia sicut habent esse participatum, ita

CXLII •De Substantiis Separatis •S. Thomas de Aquino


dos sábios, deve-se explicitar, por certos argumentos, que elas
não são verdadeiras. Primeiro, quanto à cognição divina. Se­
gundo, quanto à sua providência.
E deve-se, pois, manter necessária e firmemente que Deus
possui certíssima cognição de todas as coisas cognoscíveis
a qualquer momento por qualquer cognoscente. Como foi
sustentado acima,211 a substância de Deus é seu próprio ser.
N ’Ele, pois, não é uma coisa o ser e outra o inteligir; se as­
sim fosse, não poderia Ele ser perfeitamente simples, donde
tampouco simplesmente uno. Portanto, assim como sua subs­
tância é seu próprio ser, assim também sua substância será
seu próprio inteligir ou sua inteligência, como igualmente
conclui o Filósofo no livro décimo segundo da M etafísica.212
Logo, assim como sua substância é seu próprio “ser” sepa­
rado, assim também sua substância é seu próprio “inteligir”
separado. Mas, se há uma forma separada, nada que possa
pertencer à natureza de tal forma lhe faltará; assim como, se
houvesse uma “brancura” separada, nada que estivesse com­
preendido na natureza da brancura lhe faltaria. E a cognição
de qualquer coisa cognoscível está, por sua vez, contida sob
uma natureza universal da cognição. Logo, nada pode faltar a
Deus na cognição das coisas cognoscíveis. Todavia, em quem
quer que conheça, esta cognição ocorre segundo o modo de
sua própria substância, assim como qualquer operação se dá
segundo o modo do operante. Portanto, muito mais a divina
cognição, que é a substância d’Elc, se dá segundo seu próprio
modo de ser. Mas seu ser é uno, simples, fixo e eterno. Segue-
se, portanto, que Deus, em uma única e simples intuição,213
tem conhecim ento fixo e eterno de tudo.

71 - Ademais, aquilo que é abstrato não pode ser senão


um só em cada natureza. Pois, se a brancura pudesse existir
em abstrato, seria apenas uma esta brancura abstrata; todas as
outras brancuras seriam nela participantes. Logo, assim como
a substância única de Deus é seu próprio ser abstrato, também
sua substância única é seu inteligir totalmentc abstrato. Todas
as outras coisas, portanto, assim como possuem seu ser de modo

Santo Tomás de Aquino •Sobre os Anjos ■ 143


participative intelligunt sive qualitercumque cognoscunt.
Omne autem quod convertit alicui per participationem,
perfectius invenitur in eo quod per essentiam est, a quo
in alia derivatur. Oportet igitur Deum omnium, quae a
quibuscumque cognoscuntur, cognitionem habere. Unde
et philosophus pro inconvenienti habet ut aliquid a nobis
cognitum sit Deo ignotum; ut patet in primo de anima et in
tertio metaphysicae.

72 - Item. Si Deus se ipsum cognoscit, oportet


quod perfecte se cognoscat: praesertim quia si eius
intelligere est eius substantia, necesse est ut quidquid
est in eius substantia ipsius cognitione comprehendatur.
Cuiuscumque autem rei substantia perfecte cognoscitur,
necesse est ut etiam virtus perfecte cognoscatur.
Cognoscit igitur Deus perfecte suam virtutem. Oportet
igitur quod cognoscat omnia ad quae sua virtus extenditur.
Sua autem virtus extenditur ad omne quod est quocumque
modo in rebus vel esse potest, sive sit proprium, sive
commune, sive immediate ab eo productum, sive
mediantibus causis secundis: quia causae primae virtus
magis imprimit in effectum quam virtus causae secundae.
Oportet igitur Deum cognitionem habere de omnibus
quae sunt quocumque modo in rebus.
Amplius. Sicut causa est quodammodo in effectu per
sui similitudinem participatam, ita omnis effectus est in
sua causa excellentiori modo secundum virtutem ipsius. In
causa igitur prima omnium, quae Deus est, oportet omnia
eminentius existere quam etiam in seipsis. Quod autem est in
aliquo, oportet quod in eo sit secundum modum substantiae
eius. Substantia autem Dei est ipsum eius intelligere. Oportet
igitur omnia quae quocumque modo sunt in rebus, in Deo
intelligibiliter existere secundum eminentiam substantiae eius.
Necesse est igitur Deum perfectissime omnia cognoscere.

CXLIV •De Substantiis Separatis S. Thomas de Aquino


participativo, também compreendem ou conhecem, como quer
que seja, de modo participativo. Mas o que convém a algo por
participação é mais perfeitamente encontrado naquilo que o é
por essência, e a partir do qual deriva para os demais.214 Logo,
Deus necessariamente possui cognição de todas as coisas co­
nhecidas por quem quer que seja. Por isso, também o Filósofo
considera inapropriado que algo conhecido por nós seja des­
conhecido por Deus, como se vê em Sobre a Alma215 e no livro
terceiro da M etafísica.216

72 - Igualmente, se Deus con h ece a Si próprio, é neces­


sário que ele o faça perfeitamente, porque, se seu inteligir
é sua substância, é necessário que tudo em sua substância
esteja compreendido por sua cognição. E, quando a subs­
tância de toda e qualquer coisa é perfeitam ente conhecida,
é necessário que também seu poder seja perfeitamente
conhecido. Assim, Deus conhece perfeitamente seu poder
e, necessariam ente, conhece todas as coisas sobre as quais
seu poder se estende. Mas seu poder se estende a tudo o
que de qualquer modo existe nas coisas ou pode existir,
seja próprio ou comum, seja imediatamente produzido por
Ele ou m ediante causas segundas, pois o poder da causa
primeira mais imprime efeito que o da causa segunda.217
Logo, Deus tem cognição de tudo o que existe de qualquer
modo nas coisas.
Mais ainda, assim como a causa está de certo modo pre­
sente em seu efeito através de sua semelhança participada,
também todo e qualquer efeito está em sua causa de modo
mais elevado segundo o poder da causa. Logo, é necessário
que, na causa primeira de todas, que é Deus, tudo exista
mais eminentemente que nelas próprias. E, necessariamen­
te, tudo o que está em alguma coisa o faz segundo o modo da
substância desta coisa. Mas a substância de Deus é o próprio
inteligir; donde tudo o que de qualquer modo exista nas coi­
sas existe inteligivelmente em Deus segundo a eminência da
substância d’Este. Portanto, é necessário que Deus conheça
tudo de modo perfeitíssimo.

Santo Tomás de Aquino ■Sobre os Anjos • 14 5


73 - Sed quia occasionem errandi sumpserunt ex
demonstratione Aristotelis in decimosecundo metaphysicae,
oportet ostendere quod philosophi intentionem non
assequuntur. Sciendum est igitur quod secundum Platonicos
ordo intelligibilium praeexistebat ordini intellectuum, ita quod
intellectus participando intelligibile fieret intelligens actu, ut
supra iam diximus. Et per hunc modum etiam Aristoteles
ostendit prius in eodem libro quod supra intellectual et
appetitum intellectualem quo caelum movetur est quoddam
intelligibile participatum ab ipso intellectu caelum movente,
sic dicens: susceptivum intelligibilis et substantiae intellectus
agit autem habens; id est: actu intelligit secundum quod
habet iam participatum suum intelligibile superius; et ex hoc
ulterius concludit, quod illud intelligibile sit magis divinum.
Et interpositis quibusdam, movet quaestionem de intellectu
huius divinissimi, cuius participatione motor caeli est
intelligens actu.
Quia si istud divinissimum non intelligit, non erit insigne
aliquid, sed se habebit ut dormiens. Si autem intelligit, erit primo
dubitatio quomodo intelligat. Quia si intelligit participando
aliquid aliud superius, sicut per participationem eius inferior
intellectus intelligit, sequetur quod erit aliquid aliud principale
respectu ipsius: quia ex quo per participationem alterius
intelligit, non est intelligens per suam essentiam, ita quod sua
substantia sit suum intelligere, sed magis sua substantia erit in
potentia respectu intelligentiae: sic enim se habet substantia
cuiuslibet participantis ad id quod per participationem obtinet:
et ita ulterius sequetur quod illud divinissimum non erit optima
substantia; quod est contra positum.

74 - Movet etiam consequenter aliam dubitationem de eo


quod intelligitur ab optima substantia. Sive enim detur quod
substantia primi sit ipsum eius intelligere, sive substantia eius
sit intellectus qui comparatur ad intelligere ut potentia, dubium
erit quid sit illud quod intelligit prima substantia. Aut enim

CXLVI ■De Substantiis Separatis •S. Thomas de Aquino


73 - Mas, como se deu a ocasião de errarem218 a partir da
demonstração de Aristóteles no livro décimo segundo da Me-
íafísica,219 deve-se dar a conhecer que a intenção do Filósofo
não foi por eles seguida. Deve-se, pois, considerar que, segundo
os platônicos, uma ordem de inteligíveis existia antes da or­
dem dos intelectos, de maneira que um intelecto, participando
de um inteligível, se faria inteligente em ato, como já foi dito
anteriormente.220 E, do mesmo modo, Aristóteles demonstrou
antes, no mesmo livro, que, acima do intelecto e do apetite
intelectual pelo qual os céus se movem, há algum inteligível
participado pelo próprio intelecto que move os céus; di-lo ele:
“O que é suscetível da substância inteligível e do intelecto age,
pois, como possuidor [de ambos]”,221 como se dissesse: “Ele in-
telige atualmente enquanto já possui seu inteligível superior
participado”. E, a partir disto, conclui mais adiante que aquilo
inteligível seria mais divino. E, interpostos certos [assuntos],
levanta a questão sobre tal [ser] mais divino, por cuja partici­
pação o motor celeste é inteligente em ato.222
Pois, se este mais divino não intelige, não será ele insigne,
mas se portará como adormecido. Mas, se intelige, a primeira
dúvida será sobre com o ele o faz; porque, se intelige participan­
do em outro algo superior (assim como o faz, por participação
nele, um intelecto inferior), ocorrerá que haverá outro algo
principal com respeito a ele. Pois, pelo fato de que ele intelige
através da participação em outro, não é inteligente por sua
própria essência de modo que sua substância seja seu próprio
inteligir.221 Estará ela, isto sim, em potência com relação à in­
teligência, assim como a substância de qualquer participante se
encontra em relação àquilo obtido por participação. E, assim,
segue-se que aquilo divino não será a mais elevada substância,
o que é contrário à referida posição.

74 - Conseqüentemente, levanta [Aristóteles] outra dú­


vida, acerca daquilo que é inteligido pela mais elevada subs­
tância. Se se aceitar que a substância primeira é seu próprio
inteligir, ou se for sua substância o intelecto que se compara
ao inteligir como potência, dar-se-á então a questão sobre o

Santo Tomás de Aquino •Sobre os Anjos ■1 47


intelligit se ipsam, aut aliquid diversum a se. Et si detur quod
aliquid diversum a se intelligat, erit ulterius dubitabile utrum
semper idem intelligat, aut quandoque unum, quandoque
aliud. Et quia posset aliquis dicere quod nihil differt quid
intelligat, movet super hoc dubitationem utrum aliquid différât
vel nihil, in quocumque intelligente, intelligere aliquid bonum vel
intelligere quodcumque contingens. Et respondet satisfaciens
huic dubitationi, quod de quibusdam absurdum est intelligi:
cuius sensus potest esse duplex. Vel quia absurdum est
dubitare de quibusdam, utrum ea intelligere sit ita bonum sicut
quaedam alia, vel multo minora, vel multo meliora. Alius autem
sensus est, quia videmus quod intelligere quaedam in actu,
apud nos videtur esse absurdum: unde et alia littera habet: aut
inconveniens meditari de quibusdam.
Habito igitur quod melius est intelligere aliquod bonum
quam intelligere minus bonum, concludit quod id quod
intelligit prima substantia est optimum, et quod intelligendo
non mutatur, ut nunc intelligat unum nunc aliud. Et hoc probat
dupliciter. Primo quidem, quia cum intelligat id quod est
nobilissimum, ut dictum est, sequeretur, si mutaretur ad aliud
intelligibile, quod mutatio esset in aliquid indignius. Secundo,
quia talis vicissitudo intelligibilium iam est motus quidam.
Primum autem oportet esse omnibus modis immobile.

75 - Deinde redit ad determinandum primam


quaestionem, an scilicet sua substantia sit suum
intelligere, quod sic dupliciter probat. Primo quidem
quia, si sua substantia non est suum intelligere, sed
est sicut potentia ad hoc, probabile est quod continue
intelligere esset ei laboriosum. Hoc autem dicit esse
probabile ex eo quod in nobis sic accidit. Sed quia in
nobis potest accidere non ex natura intellectus sed ex
viribus inferioribus quibus utimur in intelligendo, ideo non
dixit hoc esse necessarium in omnibus. Si tarnen hoc
probabile accipiatur ut verum, sequetur quod continue

CXLVIII •De Substantiis Separatis •S. Thomas de Aquino


que seria aquilo que a primeira substância intelige.224 Pois, ou
ela intelige a si própria, ou a algo diferente dela. Se aceitarmos
que ela intelige algo diferente dela, dar-se-á então a dúvida de
se ela intelige sempre a mesma coisa ou se ora intelige uma,
ora outra. E, como alguém poderia dizer que nada importa
o que ela intelige, [Aristóteles] suscita sobre este ponto a
pergunta de se diferem ou não, em quem quer que seja, in-
teligir algo bom e inteligir algo contingente.225 E responde,
satisfazendo a esta questão, que inteligir sobre certas coisas
é absurdo; [resposta] cujo sentido pode ser duplo: ou porque
é absurdo inteligir - com respeito a certas coisas - sobre se
inteligi-las seria tão bom quanto inteligir outras muito me­
nores ou muito maiores; ou porque vemos que inteligir certas
coisas, no nosso caso, se revela absurdo; donde também diz:
“É inconveniente meditar sobre certas coisas”.
Tendo estabelecido que é melhor inteligir algo bom que in­
teligir algo menos bom, conclui que o que a primeira substância
intelige é o mais elevado, e que, inteligindo, isto não é mudado
de maneira que passasse a inteligir ora uma coisa, ora outra. E
isto ele o prova de dois modos. Primeiro, pois, como ela intelige
aquilo que é o mais elevado, sucederia, como foi dito,226 que, se
mudasse para [outro] algo inteligível, tal mudança seria para
algo menos elevado. Segundo, porque tal mudança de inteli­
gíveis já é certo movimento;227 e é necessário que o primeiro
[motor] seja de todos os modos imóvel.

75 - Volta ele, em seguida, à solução da primeira questão


— de que sua substância é seu próprio inteligir — , e o faz de
duas maneiras. Primeiro, porque, se sua substância não fosse
seu próprio inteligir, mas uma potência, é provável que inteli­
gir continuamente lhe fosse trabalhoso.228 Mas ele diz que isso
é provável a partir do que sucede a nós. E, como isto pode
suceder a nós não pela natureza do intelecto, mas pelas forças
inferiores de que nos utilizamos para inteligir, diz não ser isto
necessário em todos os casos. Se, no entanto, aceitarmos [esta
última necessidade] como provavelmente verdadeira, seguir-
se-á que inteligir continuamente poderia ser trabalhoso para

Santo Tomás de Aquino Sobre os Anjos •1 4 9


intelligere sit laboriosum primae substantiae, et ita non
poterit semper intelligere; quod est contra praemissa.
Secundo probat per hoc quod, si substantia sua non
esset suum intelligere, sequetur quod aliquid aliud erit
dignius quam intellectus, scilicet res intellecta, per cuius
participationem fit intelligens. Quandocumque enim
substantia intelligentis non est suum intelligere, oportet
quod substantia intellectus nobilitetur et perficiatur per
hoc quod actu intelligit aliquod intelligibile, etiam si illud sit
indignissimum. Omne autem quo aliquid fit actu, nobilius
est. Unde sequetur quod aliquod indignissimum intelligibile
sit dignius quam intellectus qui non est intelligens per suam
essentiam. Quare fugiendum est hoc, scilicet quod aliquid
intellectum aliud ab ipso sit perfectio intellectus divini, quia
ad perfectionem ipsius intelligere pertinet nobilitas ipsius
intellects quod patet ex hoc quod in nobis, in quibus differt
substantia cognoscentis a cognitione actuali, dignius est
quaedam non videre quam videre. Et ita, si sit sic in Deo
quod suus intellectus non sit sua intelligentia, et aliquid
aliud intelligat; non erit sua intelligentia optima, quia non
erit optimi intelligibilis. Relinquitur ergo quod se ipsum
intelligat, cum ipse sit nobilissimum entium.

76 - Patet igitur praedicta verba philosophi diligenter


consideranti, quod non est intentio eius excludere a
Deo simpliciter aliarum rerum cognitionem, sed quod
non intelligit alia a se quasi participando ea, ut per ea
fiat intelligens, sicut fit in quocumque intellectu cuius
substantia non est suum intelligere. Intelligit autem omnia
alia a se intelligendo se ipsum, inquantum ipsius esse
est universale et fontale principium omnis esse, et suum
intelligere quaedam universalis radix intelligendi, omnem
intelligentiam comprehendens.
lnferioresverointeilectusseparati,quosAngelosdicimus,
intelliguntquidem se ipsos singuli per suam essentiam, alia

CL •De Substantiis Separatis ■S. Thomas de Aquino


;i primeira substância, e, desse modo, ela poderia não fazê-lo
d ornamente, o que é contra a premissa.
Segundo, ele prova que, se sua substância não fosse seu
próprio inteligir, sucederia que outro algo seria mais elevado
que seu intelecto: a coisa inteligida por cuja participação se
faria inteligente.229 Pois, quando uma substância não é seu
próprio inteligir, é necessário que a substância do intelecto
se torne completa e elevada mediante a intelecção em ato de
um inteligível, ainda que seja este muito menos elevado. E é
mais elevado tudo aquilo que se faz em ato; donde sucederá que
algo inteligível muito menos elevado será mais elevado que um
intelecto que não é inteligente por sua própria essência, razão
por que se deve negar que outro algo inteligido por Ele seria
o que aperfeiçoa o intelecto divino, uma vez que a elevação
da própria coisa inteligida seria a perfeição do inteligir d’Ele;
o que é evidente pelo fato de que no nosso caso, no qual a
substância de quem conhece difere da cognição atual, é mais
elevado não ver certas coisas do que vê-las. E, se tal fosse o
caso em Deus, isto é, que seu próprio intelecto não fosse sua
suprema inteligência e que ele inteligisse outra coisa, então não
seria suprema a sua inteligência, visto que ela mesma não seria
o próprio [objeto] inteligível supremo.2’0 Portanto, resta que Ele
intelige a si próprio, pois é Ele o mais elevado dos entes.

76 - Torna-se evidente, assim, a quem considere diligente­


mente as palavras do Filósofo, que não era sua intenção negar a
Deus simpliciter a cognição das outras coisas, mas [afirmar] que
Ele não as intelige per se como quem delas participa, de manei­
ra que se tornasse, por meio delas, inteligente, tal qual sucede
a qualquer intelecto cuja substância não é seu próprio inteligir.
Em vez disso, Ele intelige todas as outras coisas mediante a
intelecção de Si próprio, visto que seu próprio ser é princípio
universal e fonte de todo o ser, e que seu próprio inteligir é a
raiz universal que compreende toda e qualquer inteligência.231
Já os intelectos separados inferiores, a que chamamos anjos,
individualmente inteligem a si mesmos através de sua própria
essência; quanto às demais coisas, segundo os platônicos, eles

Santo Tomás de Aquino •Sobre os Anjos - 1 5 1


vero intelligunt secundum quidem Platônicas positiones per
participationemformarum intelligibilium separatarum, quas
deos vocabant, ut supra dictum est; secundum Aristotilis
vero principia partim quidem per suam essentiam, partim
vero per participationem ipsius primi intelligibilis, quod est
Deus, a quo et esse et intelligere participant.

CLII •De Substantiis Separatis S. Thomas de Aquino


as inteligem através da participação em formas inteligíveis se­
paradas denominadas deuses, como já foi referido.232 Segundo
os princípios de Aristóteles, porém, eles inteligem em parte
através de sua essência, em parte através da participação no
próprio princípio inteligível primeiro, que é Deus, a partir do
qual participam tanto no ser quanto no inteligir.

Santo Tomás de Aquíno •Sobre os Anjos • 153


N o t a s — C a p ít u l o 13

205 - Trata-se quase certam ente dos averroístas de Paris, cujas doutrinas
foram atingidas pelas condenações de 1270 e 1277. Santo Tomás observa a
mesma ordem e c ita quase literalmente as Props. 10,11 e 12 da Condenação
de 1270. Vide a respeito Chartularium, I, p. 487; M andonnet , Pierre, op. e it, I,
p. 111; II, p. 175. Com relação à doutrina averroísta sobre os anjos, cf. V acant,
Alfred, “Angélologie parmi les averroistes latins” in Dictionnaire de Théologie
Catholique, vol. I, coll. 1260-1264, especialmente col. 1262.
206 - Cf. Chartularium, I, Props. 76 e 85; M andonnet, Pierre, op. c it. Il, p. 180.
207 - Cf. Chartularium, I, Prop. 3; M andonnet , Pierre, op. cit., Il, p. 177.
208 - Cf. Chartularium, I, Props. 21 e 42; M andonnet , Pierre, op. cit., Il, pp.
177-178, 183.
209 - A ristóteles, Metafísica, VI, 3 (1027a 29-1027b 16); cf. S iger de B ra­
bant, De Necessitate et Contingentia Causarum, in M andonnet , Pierre, op.
cit., Il, pp. 111-114; M aurer , Armand, Siger o f B rabant’s De Necessitate et
Contingentia Causarum and MS Peterhouse 752, in Mediaeval Studies 14,
1952, pp. 4 8 -6 0 ; V an S teenberghen , Fernand, Siger de Brabant d'après ses
oeuvres inédites (Les Philosophes Belges, XIII), Louvain: Institut Supérieur
de Philosophie de l’Université , 1942, II, pp. 606-607.
210 - Cf. Chartularium, I, Prop. 21; M andonnet, Pierre, op. c it , II, p. 183.
211 - Cf. acima, cap. VIII, n° 43; cap. IX, nos 48 e 49; cap. X, n° 58.
212 - A ristóteles, Metafísica, XII, 7 (1072b 26-30).
213 - Intuição: apreensão e conhecimento imediatos da essência de algo
em sua plenitude. E dizia Santo Tomás de Aquino a respeito de Deus: ‘‘Sua
intuição versa sobre todas as coisas, as quais estão diante dele em sua
presencíalídade” (Summa Theologiae, I, q. 14, a. 13; cf. também q. 14, a. 9).
[n . do r.]
214 - Cf. acima, cap. VI, n° 24; cap. VIII, n°s 41 e 42.
215 - A ristóteles, Sobre a Aima, I, 5 (410b 4-7); T omás de A quino , In De A n i­
ma, I, lect. 12.
216 - A ristóteles, Metafísica, III, 4 (1000b 4-6).
217 - T omás de A ouino , In Librum de Causis, Prop. I.
218 - Ou seja, os averroístas.
219 -A ristóteles, Metafísica, XII, 7 (1072b 23-23); 9 (1074b 15-1075a 10).
220 - Cf. acima, cap. I, n°s 4 -6 .
221 - A ristóteles, Metafísica, XII, 7 (1072b 22).
222 - A ristóteles, Metafísica, XII, 9 (1074b 15).
223 -Ib id . (1074b 18).
224 - A ristóteles, Metafísica, XII, 9 (1074b 20).
225 - Ibid. (1074b 25).
226 - Cf. acima, cap. XIII, n° 73.
227 - A ristóteles, Metafísica, XII, 9 (1074b 28-30).
228 - A ristóteles, Metafísica, XII, 9 (1074b 28).

CLIV ■De Substantiis Separates •S. Thomas de Aquino


229 -Ib id . (1074b 30).
230 - Ibid. (1074b 30); cf. T omás de A quino , Summa contra Gentiles, I, 45.
231 - Cf. Tomás oe A quino , Summa Theologiae, I, 14, 6, 8.
232 - Cf. acima, cap. I, nos 4 -6 ; P roclo, Elementatio Theologica, Prop. 117.

Santo Tomás de Aquino ■Sobre os Anjos • 155


CAPUT XIV

Quod cura divinae


providentiae ad omnia se extendit

77- Sicutautemdivinamcognitionemnecesseest secundum


praemissa usque ad minima rerum extendere, ita necesse est
divinae providentiae curam universa concludere. Invenitur enim
in rebus omnibus bonum esse in ordine quodam, secundum
quod res sibi invicem subserviunt et ordinantur ad finem.
Necesse est autem, sicut omne esse derivatur a primo ente,
quod est ipsum esse, ita omne bonum derivari a primo quod
est ipsa bonitas. Oportet igitur singulorum ordinem a prima et
pura veritate derivari: a qua quidem aliquid derivatur secundum
quod in eo est, per intelligibilem scilicet modum. In hoc autem
ratio providentiae consistit quod ab aliquo intelligence statuatur
ordo in rebus quae eius providentiae subsunt. Necesse est
igitur omnia divinae providentiae subiacere.
Adhuc. Primum movens immobile, quod Deus est,
omnium motionum principium est, sicut et primum ens est
omnis esse principium. In causis autem per se ordinatis tanto
aliquid magis est causa, quanto in ordine causarum prior est,
cum ipsa aliis conferat quod causae sint. Deus igitur omnium
motionum vehementius causa est quam etiam singulares
causae moventes. Non est autem alicuius causa Deus nisi
sicut intelligens, cum sua substantia sit suum intelligere,
ut per supra posita Aristotelis verba patet. Unumquodque
autem agit per modum suae substantiae. Deus igitur per
suum intellectual omnia movet ad proprios fines. Hoc autem
est providere. Omnia igitur divinae providentiae subsunt.

78- Amplius. Sic sunt res in universodispositae sicut optimum


est eas esse, eo quod omnia ex summa bonitate dependent.
Melius est autem aliqua esse ordinata per se quam quod

CLVI ■De Substantiis Separatis •S. Thomas de Aquino


C A PÍTU LO 14

S o b r e a D iv in a P r o v id ê n c ia
SE ESTENDER A TODAS AS COISAS

77 - Assim como, segundo a premissa,233 é necessário que a


cognição divina se estenda até as menores coisas, assim também
é necessário que o governo da providência divina abranja tudo.
Em tudo vemos, pois, que o bem existe em certa ordem, conforme
as coisas servem umas às outras e estão ordenadas a um fim.234 E,
assim como todo e qualquer ente é derivado de um primeiro ente
que é o próprio ser, assim também é necessário que todo e qual-
quer bem seja derivado de um primeiro que é a própria bondade.
Dessa maneira, é necessário que a ordem dos singulares derive de
uma primeira e pura verdade, da qual algo deriva conforme é nela,
ou seja, por um modo inteligível. E esta natureza de providência
consiste que se estabeleça, a partir de algo inteligente, uma ordem
naquelas coisas submetidas à sua providência. Portanto, é necessá­
rio que todas as coisas estejam sujeitas à providência divina.
Ademais, o Primeiro Motor Imóvel, que é Deus, é princí­
pio de todos os movimentos, assim como o Primeiro Ente é
princípio de todo o ser. E, pois, nas causas ordenadas per se,
quanto mais algo é causa, tanto mais é anterior na ordem das
causas, visto que confere a outras que sejam causas. Deus,
portanto, de acordo com isto, é mais fortemente causa de
todos os movimentos que as próprias causas que movem os
singulares. Mas Deus não é causa de algo senão como inteli­
gente, visto que sua substância é seu próprio inteligir, como
é evidente pelas citadas palavras de Aristóteles.235 E o que
quer que seja age segundo o modo de sua própria substância.
Assim, Deus, por meio de seu intelecto, move todas as coisas
a seus fins próprios — isto é a providência. Tudo, portanto,
está submetido à providência divina.

78 - Além disso, as coisas estão dispostas no universo como


lhes é melhor estar, pelo fato de que tudo depende da Suma Bon­
dade. E é melhor para as coisas que elas estejam ordenadas per se

Santo Tomás de Aquino •Sobre os Anjos 1 57


per accidens ordinentur: est igitur totius universi ordo non per
accidens, sed per se. Hoc autem requiritur ad hoc quod aliqua
per se ordinentur, quod primi intentio feratur usque ad ultimum. Si
enim primum intendat secundum movere et eius intentio ulterius
non feratur, secundum vero moveat tertium, hoc erit praeter
intentionem primi moventis. Erit igitur talis ordo per accidens.
Oportet igitur quod primi moventis et ordinantis intentio, scilicet
Dei, non solum usque ad quaedam entium procedat, sed usque
ad ultima. Omnia igitur eius providentiae subsunt.
Item. Quod causae et effectui convenit, eminentius
invenitur in causa quam in effectu; a causa enim in effectum
derivatur. Quidquid igitur in inferioribus causis existens,
primae omnium causae attribuitur, excellentissime convenit
ei. Oportet autem aliquam providentiam Deo attribuere;
alioquin Universum casu ageretur. Oportet igitur divinam
providentiam perfectissimam esse.

79 - Sunt autem in providentia duo consideranda:


scilicet dispositio, et dispositorum executio: in quibus
quodammodo diversa ratio perfectionis invenitur. Nam
in dispositione tanto perfectior est providentia, quanto
providens magis singula mente considerare et ordinäre
potest: unde et omnes operativae artes tanto perfectius
habentur, quanto quisque singula potest magis coniectare.
Circa executionem vero tanto videtur esse providentia
perfectior, quanto providens per plura media et instrumenta
agens universalius movet. Divina igitur providentia habet
dispositionem intelligibilem omnium et singulorum;
exequitur vero disposita per plurimas et varias causas: inter
quas spirituales substantiae, quas Angelos dicimus, primae
causae propinquiores existentes, universalius divinam
providentiam exequuntur. Sunt igitur Angeli universales
executores providentiae divinae: unde signanter Angeli,
idest nuntii, nominantur. Nuntiorum enim est (exequi) quae
a domino disponuntur.

CLVIII ■De Substantiis Separatis ■S. Thomas de Aquino


do que per acàdens. Portanto, a ordem de todo o universo não
c per accidens, mas per se. Mas é requerido, para que tais coisas
estejam ordenadas per se, que a intenção do primeiro [motor] seja
levada até o último. Caso, pois, um primeiro motor tenha a inten­
ção de mover um segundo e sua intenção não seja levada adiante,
e o segundo mova um terceiro, isso terá então acontecido de modo
alheio à intenção daquele primeiro; e tal ordem será, por tanto, per
accidens. E necessário, portanto, que a intenção do primeiro mo­
tor, isto é, Deus, se estenda não apenas a alguns dos entes, mas até
os últimos. Logo, todas as coisas se submetem à sua providência.
Igualmente, o que convém à causa e ao efeito é encontrado mais
eminentemente na causa que no efeito, pois a derivação se dá da
causa para o efeito. Portanto, tudo o que existe nas causas inferiores
é atribuído à primeira causa de todas, e a ela convém da maneira
mais excelente. É necessário, portanto, atribuir toda a providência
a Deus; de outro modo, o universo seria movido pelo acaso. Logo, a
divina Providência c necessária e absolutamente perfeita.

79 - É necessário, porém, considerar duas coisas sobre a pro­


vidência, a saber, a disposição e a execução do que foi disposto,
nas quais de certo modo se encontra uma natureza diversa de
perfeição. Pois na disposição é tanto mais perfeita a providên­
cia quanto mais pode o providente considerar e ordenar com
a mente as coisas singulares; do mesmo modo, todas as artes
operativas são consideradas tanto mais perfeitas quanto mais
cada qual possa concatenar os singulares. No entanto, quanto
à execução, tanto mais perfeita parece ser a providência quanto
mais o providente, atuando por vários meios e instrumentos,
move universalmente. Portanto, a providência divina possui
uma disposição inteligível de tudo e de cada coisa; mas executa
o que foi disposto por meio de várias causas. Dentre elas, as
substâncias espirituais que, por estarem mais próximas da Causa
Primeira, denominamos anjos executam mais universalmente a
providência divina. Assim, são os anjos os executores universais
da providência divina; donde, assinalando-o, são chamados an­
jos, isto é, mensageiros, pois é próprio de mensageiros que eles
executem as coisas dispostas por Deus.236

Santo Tomás de Aquino •Sobre os Anjos •159


N o t a s — C a p ít u l o 1 4

233 - Cf. acima, cap. XIII, nos 70-76.


234 - A ristóteles, Metafísica, XII, 10 (1075a 11-23).
235 - Cf. acima, cap. XIII, n° 70, nota 212.
236 - “A njo” deriva do latim tardio angSlus.i, que por sua vez deriva do grego
ángelos,ou, precisamente "o que leva uma mensagem", “ mensageiro” e, no
grego tardio, “ mensageiro de Deus", [ n . do r .]

CLX ■De Substantiis Separatis •S. Thomas de Aquino


S a n to T o m á s d e A q u in o ■ Sobre os Anjos -161
CAPUT XV

In quo ad obiectiones superius positas respondetur

80 - His igitur visis, facile est iam ad obiectiones supra


positas respondere. Non est enim necessarium quod prima
ratio praetendebat, intellectual Dei et Angelorum singularia
non posse cognoscere, si intellectus humanus ea cognoscere
non potest. Et ut huius differentiae evidentius appareat ratio,
considerandum est quod cognitionis ordo est secundum
proportionem ordinis qui invenitur in rebus secundum esse
ipsarum. In hoc enim perfectio et veritas cognitionis consistit,
quod rerum cognitarum similitudinem habeat. In rebus autem
talis ordo invenitur quod superiora in entibus universalius
esse et bonitatem habent: non quidem ita quod obtineant
esse et bonitatem solum secundum rationem communem,
prout universale dicitur quod de pluribus praedicatur, sed quia
quicquid in inferioribus invenitur, in superioribus eminentius
existit. Et hoc ex virtute operativa quae est in rebus, apparet.
Nam inferiora in entibus habent virtutes contractas
ad determinates effectus; superiora vero habent virtutes
universaliter ad multos effectus se extendentes; et tamen virtus
superior etiam in particularibus effectibus plus operatur quam
inferior: et hoc maxime in corporibus apparet. Nam in inferioribus
corporibus ignis quidem per suum calorem calefacit, et semen
huius animalis vel plantae ita determinate producit individuum
huius speciei, quod non producit alterius speciei individuum -
—. Ex quo patet quod virtus universalis in superioribus entibus
dicitur non ex hoc quod non se extendat ad particulares effectus,
sed quia se extendit ad plures effectus, quam virtus inferior, et
in singulis eorum vehementius operatur.

81 - Per hunc igitur modum quanto virtus cognoscitiva est


altior, tanto est universalior: non quidem sic quod cognoscat

CLXII •De Substantiis Separatis S. Thomas de Aquino


C A PÍTU LO 15

NO QUAL SE RESPONDE ÀS OBJEÇÕES EXPOSTAS ACIMA

8 0 - Tendo visto estes pontos, já é fácil responder às


objeções feitas acima. Não é, pois, necessário o que ale­
gava o primeiro argum ento:237 que, se o intelecto humano
não pode conhecer singulares, tampouco poderiam fazê-lo
o intelecto de Deus e o dos anjos. E, para que a nature­
za dessa diferença apareça mais evidentemente, devemos
considerar que a ordem da cognição se dá de acordo com a
proporção da ordem que encontram os nas coisas segundo
seu próprio ser. Pois a perfeição e a verdade da cognição
consistem em que ela possua a semelhança das coisas co ­
nhecidas. Mas encontra-se nas coisas uma ordem sob a qual
os mais elevados dentre os entes possuem o ser e a bondade
mais universalm ente; não de modo tal que obtenham o ser
e a bondade somente segundo sua natureza comum — con­
forme um universal é considerado predicar-se de vários — ,
mas porque tudo aquilo que é encontrado em inferiores
existe mais em inentem ente nos superiores; e isto se vê por
causa do poder operativo que há nas coisas.
Pois os inferiores dentre os entes possuem poderes restri­
tos a determinados efeitos; já os superiores possuem poderes
que se estendem a muitos efeitos. E, ainda assim, um poder
superior também opera mais em efeitos particulares que um
poder inferior; fato que aparece maximamente nos corpos.
Nos corpos inferiores, o fogo aquece por seu próprio calor, e a
semente de tal animal ou planta não produz um indivíduo de
outra espécie; donde é evidente que um poder é considerado
universal não porque não se estenda a efeitos particulares,
mas porque se estende a mais efeitos do que o faz um poder
inferior e opera mais fortemente em cada um dos singulares.

81 - Por este modo, portanto, quanto mais elevado é um


poder cognitivo, tanto mais é universal, mas não de manei­
ra que conheça somente uma natureza universal — dessa

Santo Tomás de Aquino ■Sobre os Anjos • l 6 3


solum universalem naturam: sic enim quanto esset superior,
tanto esset imperfectior. Cognoscere enim aliquid solum
in universali est cognoscere imperfecte, et medio modo
inter potentiam et actum. Sed ob hoc superior cognitio
universalior dicitur quia ad plura se extendit et singula
magis cognoscit. In ordine autem cognoscitivarum virtutum
est virtus sensitiva inferior, et ideo non potest cognoscere
singula nisi per species próprias singulorum. Et quia
individuationis principium est materia in rebus materialibus,
inde est quod per species individuates in organis corporeis
receptas vis sensitiva singularia cognoscit. Inter cognitiones
autem intellectuals cognitio intellects humani est infima:
unde species intelligibiles in in tellect humano recipiuntur
secundum debilissimum modum intellectualis cognitionis,
ita quod earum virtute intellects humanus cognoscere non
potest res nisi secundum universalem naturam generis vel
speciei: ad quam repraesentandam in sola sui universalitate
sunt determinatae et quodammodo contractae ex hoc ipso
quod a singularium phantasmatibus abstrahuntur; et sic homo
singularia quidem cognoscit per sensum, universalia vero
per intellectum. Sed superiores intellects sunt universalioris
virtutis in cognoscendo, ut scilicet per intelligibilem speciem
utrumque cognoscant, et universale et singulare.

82 - Secunda etiam ratio efficaciam non habet. Cum enim


dicitur quod intellectual est perfectio intelligent, hoc quidem
veritatem habet secundum speciem intelligibilem, quae est
forma intellects inquantum est actu intelligens. Non enim
natura lapidis, quae est in materia, est perfectio intellects
humani, sed species intelligibilis abstracta a phantasmatibus,
per quam intellects intelligit lapidis naturam. Unde oportet
quod cum omnis forma derivata ab aliquo agente procedat,
agens autem sit honorabilius patiente, seu recipiente, quod
illud agens a quo intellects speciem intelligibilem habet, sit
perfectius in tellect: sicut in in tellect humano apparet, quod

CLXIV •De Substantiis Separatis ■S. Thomas de Aquino


maneira, quanto mais elevado fosse, tanto mais imperfeito
seria. C onhecer algo somente pelo universal é conhecer im­
perfeitamente, num modo intermédio entre potência e ato.
Considera-se tal cognição superior como universal porque
se estende a vários singulares e mais os conhece. Mas, na
ordem dos poderes cognitivos, o poder sensitivo é inferior e,
por isso, não pode conhecer singulares senão pelas espécies
próprias destes. E, como o princípio da individuação é, nas
coisas materiais, a matéria, sucede que a força sensitiva co­
nhece singulares pelas espécies individuais recebidas pelos
órgãos corpóreos. Entre as cognições intelectuais, porém, a
do intelecto humano é ínfima; donde as espécies inteligíveis
serem recebidas pelo intelecto humano segundo o modo mais
fraco de cognição intelectual, de maneira que não pode o
intelecto humano, por meio delas, conhecer as coisas senão
segundo a natureza universal do gênero ou da espécie, na­
tureza esta para cuja representação, em sua universalidade
única, as espécies são determinadas e de certa maneira con ­
traídas, por serem abstraídas a partir dos fantasmas238 dos
[entes] singulares. E, assim, o homem conhece os singulares
pelo sentidos, e os universais pelo intelecto. Mas os intelec­
tos superiores são de poder mais universal no conhecer, de
modo que, através da espécie inteligível, conhecem tanto os
universais como os singulares.

8 2 - 0 segundo argumento não tem eficácia.239 Pois, quan­


do se diz que a coisa inteligida é a perfeição do que intelige,
isto é de fato verdadeiro segundo a espécie inteligível, que é a
forma do intelecto enquanto inteligente em ato. Pois, de fato,
não é a natureza da pedra, que está na matéria, a perfeição
do intelecto humano, mas sim a espécie inteligível abstraída
através dos fantasmas, por meio dos quais o intelecto intelige
a natureza da pedra. Por isso, visto que, em algo, qualquer for­
ma derivada procede de um agente, e o agente é mais elevado
que o paciente ou recipiente, é necessário que aquele agente
a partir do qual o intelecto possui a espécie seja mais perfeito
que o intelecto, assim como, no intelecto humano, se vê que

Santo Tomás de Aquino ■Sobre os Anjos •1 6 5


intellectus agens est nobilior intellectu possibili, qui recipit
species intelligibiles actu ab intellectu agente factas, non autem
ipsae res naturales cognitae sunt intellectu possibili nobiliores.
Superiores autem intellectus Angelorum, species intelligibiles
participant vel ab ideis secundum Platonicos, vel a prima
substantia, quae Deus est, secundum quod est consequens ad
positiones Aristotelis, et sicut se rei veritas habet.
Species autem intelligibilis intellectus divini, per quam
omnia cognoscit, non est aliud quam eius substantia, quae
est etiam suum intelligere, ut supra probatum est per verba
philosophi. Unde relinquitur quod intellectu divino nihil
aliud sit altius, per quod perficiatur; sed ab ipso intellectu
divino tanquam ab altiori proveniunt species intelligibiles
ad intellectus Angelorum; ad intellectum autem humanum
a sensibilibus rebus per actionem intellectus agentis.

83 - Tertiam vero rationem solvere facile est. Nihil enim


prohibet aliquid esse fortuitum et casuale dum refertur
ad inferioris agentis intentionem, quod tarnen secundum
superioris agentis intentionem est ordinatum: sicut patet
si aliquis insidiose aliquem mittat ad locum ubi sciat esse
latrones vel hostes, quorum occursus est casualis ei qui
mittitur, utpote praeter intentionem eius existens, non est
autem casualis mittenti qui hoc praecogitavit. Sic igitur
nihil prohibet aliqua fortuito vel casualiter agi secundum
ea quae pertinent ad humanam cognitionem, quae tarnen
sunt secundum divinam providentiam ordinata.

84 - Quartae vero rationis solutionem ex hoc accipere


possumus quod necessarius consecutionis ordo effectus
ad causam accipiendus est secundum rationem causae.
Non enim omnis causa eadem ratione producit effectum;
sed causa naturalis per formam naturalem, per quam est
actu: unde oportet quod agens naturale, quale ipsum est,
tale producat et alterum. Causa autem rationalis producit

CLXVI •De Substantiis Separatis •S. Thomas de Aquino


o intelecto agente é mais elevado que o intelecto possível, que
recebe espécies inteligíveis postas em ato pelo intelecto agente.
As próprias coisas naturais conhecidas, porém, não são mais
elevadas que o intelecto possível. Os superiores intelectos dos
anjos participam nas espécies inteligíveis ou a partir das idéias,
segundo os platônicos,240 ou a partir da Substância Primeira,
que é Deus, de acordo com a posição de Aristóteles241 e com a
verdade das coisas.
A espécie inteligível do intelecto divino, pela qual Ele tudo
conhece, não é senão sua substância, que é também seu inteli-
gir, como foi provado acima pelas palavras do Filósofo.242 Logo,
resta que, no intelecto divino, não há nada mais elevado que
aquilo pelo qual ele se faz perfeito; mas dele próprio provêm, ao
modo de algo mais elevado, as espécies inteligíveis para os in­
telectos dos anjos. Já para o intelecto dos homens, elas provêm
das coisas sensíveis através da ação do intelecto agente.

83 - E fácil responder ao terceiro argumento.241 Nada


impede que algo seja fortuito e casual enquanto se refere à
intenção de um agente inferior, o qual, no entanto, está or­
denado segundo a intenção de um agente superior. Se, por
exemplo, alguém insidiosamente envia uma pessoa a um lugar
onde saiba haver ladrões ou inimigos, o encontro entre eles
será fortuito para aquele que foi enviado, por ocorrer de modo
alheio à sua intenção; não será fortuito, porém, para quem
sabia antecipadamente da situação e o enviou. Assim, nada
impede que certas coisas ocorram fortuita ou casualmente se­
gundo o que compete à cognição humana, tendo sido, porém,
ordenadas segundo a providência divina.

8 4 - A solução do quarto argumento244 podemos obtê-la a


partir do fato de que a ordem de consecução de um efeito para
sua causa deve ser mais necessariamente adquirida segundo a
natureza da causa. Pois nem toda e qualquer causa produz um
efeito da mesma maneira. Uma causa física o faz por uma for­
ma física, pela qual se põe em ato. Logo, é necessário que um
agente físico — que é físico — produza um segundo [efeito]

Santo Tomás de Aquino •Sobre os Anjos • 167


effectum secundum rationem formae intellectae, quam
intendit in esse deducere: et ideo agens per intellectual
tale aliquid producit, quale intelligit esse producendum,
nisi virtus activa deficiat.
Necesse est autem ut cuiuscumque virtuti subiicitur
productio generis alicuius, ad illius etiam virtutem
pertineat producere illius generis differentias proprias;
sicut si ad aliquem pertineat constituere triangulum, ad
eum etiam pertinet constituere triangulum aequilaterum
vel isoscelem. Necessarium autem et possibile sunt
propriae differentiae entis. Unde ad Deum, cuius virtus
est proprie productiva entis, pertinet secundum suam
praecognitionem attribuere rebus a se productis vel
necessitatem vel possibilitatem essendi. Concedendum
est igitur quod divina providentia, ab aeterno praeexistens,
causa est omnium effectuum qui secundum ipsam fiunt,
qui immutabili dispositione ab ipsa procedunt. Nec
tamen sic omnes procedunt ut necessarii sint, sed sicut
eius providentia disponit ut tales effectus fiant, ita etiam
disponit ut horum effectus quidam sint necessarii, ad
quos causas proprias ex necessitate agentes ordinavit,
quidam vero contingentes, ad quos causas proprias
contingentes ordinavit.

85 - Ex his autem apparet quintae rationis solutio. Sicut


enim a Deo, cuius esse est per se et summe necessarium,
procedunt contingentes effectus propter propriarum
causarum conditionem, ita etiam ab eo qui est summum
bonum procedunt aliqui effectus qui quidem in eo quod sunt
et a Deo sunt, boni sunt, incidunt tamen in eis aliqui defectus
propter conditionem secundarum causarum, propter quos
mali dicuntur. Sed et hoc ipsum bonum est quod a Deo taies
defectus permittantur evenire in rebus: turn quia hoc est
conveniens rerum ordini, in quo bonum universi consistit, ut
effectus sequantur secundum conditionem causarum, turn

CLXVIII •De Substantiis Separatis S. Thomas de Aquino


tal qual ele. Já uma causa racional produz um efeito segundo
a natureza da forma inteligida, a qual ela tem a intenção de
levar ao ser; e, assim, aquilo que age pelo intelecto produz
algo tal qual ele intelige que deve ser produzido, excetuado o
caso de que careça de poder ativo.
Mas a qualquer poder a que esteja submetida a produção
de determinado gênero é necessariamente pertinente que
ele produza também as diferenças próprias de tal gênero,
assim como, se cabe a alguém fazer um triângulo, a ele
também cabe fazer um triângulo eqüilátero ou isósceles. E
“necessário” e “possível” são diferenças próprias do ente;
donde cabe a Deus, que é propriamente o poder produtor
do ente, segundo sua pré-cognição, atribuir “necessidade de
ser” ou “possibilidade de ser” às coisas por Ele produzidas.
Logo, deve-se conceder que a providência divina (preexis­
tente desde toda a eternidade) é causa de todos os efeitos, os
quais ocorrem segundo ela e, por uma disposição imutável,
dela procedem. Mas nem todos os efeitos procedem de modo
tal que ocorram necessariamente: assim como a providência
[divina] dispõe que tais efeitos ocorram, assim também ela
dispõe que sejam necessários alguns desses efeitos, para os
quais ordenou causas próprias que atuam por necessidade, e
que sejam contingentes outros, para os quais ordenou causas
próprias contingentes.

85 - Desses pontos surge a solução do quinto argumen­


to.245 Assim como de Deus, cujo ser é per se e sumamente
necessário, procedem efeitos contingentes devidos à condi­
ção de suas causas próprias, assim também procedem d’Ele,
que é o Sumo Bem, alguns efeitos que, pelo fato de que são
e de que são vindos de Deus, são bons; contudo, sobre eles
incidem certos defeitos de causas secundárias pelos quais
eles passam a ser considerados maus. Mas isto mesmo é bom,
a saber, que seja permitido por Deus sucederem nas coisas
tais efeitos, tanto porque é conveniente à ordem das coisas,
na qual consiste o bem do universo, que os efeitos sucedam
segundo a condição de suas causas, como porque do mal de

Santo Tomás de Aquino •Sobre os Anjos ■1 69


etiam quia ex malo unius provenit bonum alterius, sicut in
rebus naturalibus corruptio unius est alterius generatio, et
in moralibus ex persecutione tyranni consequitur patientia
iusti; unde per divinam providentiam non decuit totaliter
mala impediri.

CLXX •De Substantiis Separatis •S. Thomas de Aquino


um provém o bem de outro, assim como, nas coisas naturais,
a corrupção de um é a geração de outro, e como, nas mo­
rais, resulta da perseguição do tirano a paciência246 do justo.
Donde não convém serem os males totalm ente impedidos
pela providência divina.

Santo Tomás de Aquino •Sobre os Anjos - 1 7 1


N o t a s — C a p ít u l o 1 5

237 - Cf. acima, cap. XIII, n° 67.


238 - A ristóteles, Sobre a Alma, II, 4 (415a 27); T omás de A quino , In De Anima,
II, lect. 7. Considerado em si mesmo, o ato próprio do conhecimento inte­
lectual não requer nada de órgão corporal algum; é, stricto sensu, um ato
da alma sem o corpo. Mas, no com posto de alma espiritual e corpo que é o
homem, a potência intelectiva não exerce seu ato sem o fantasma, ou seja,
a espécie sensível enquanto preparada pela cogitativa ou ratio particularis
para que sobre ela o intelecto agente possa operar, form ando a espécie
inteligível e concebendo enfim o universal (cf. acima, nota 14). E diz Santo
Tomás: “ O corpo é requerido para a ação do intelecto, mas não o é com o um
órgão pelo qual tal ação se realize, e sim em razão do objeto, cujo fantasma
é para o intelecto o que a co r é para a visão. Mas depender assim do cor­
po não elimina o fato de que o intelecto seja subsistente, pois do contrário
tam pouco seria subsistente o animal, que para sentir necessita dos objetos
sensíveis exteriores” (Summa Theologiae, I, q.75, a.2 ad 3). (Sobre os senti­
dos internos, e especialmente a cogitativa, cf. T omás de A quino , Summa The­
ologiae, I, q. 78, a. 4; In III De Anima, lect. 3; In de Sensu et Sensato, lect. 19;
In I Metaphysicam, lect. 1, n° 15; e também H ayen , André, L’Intentionnel selon
Saint Thomas, Paris, Desclée De Brower, pp 176-181 ; e de C orte , Marcel, De
la Prudence, Paris, D.M.M. Edit., pp 29-31.) — A noção de fantasm a vem de
Aristóteles, que dizia que os fantasmas são com o as coisas sensíveis, sem
todavia possuírem matéria (Sobre a Alma, III, 8, 432a 9). [ n . do r .)
239 - Cf. acima, cap. XIII, n° 68.
240 - Cf. acima, cap. I, n°54 -6 ; P roclo, Elementatio Theologica, Prop. 117.
241 - Cf. acima, cap. I, n° 9 ss.
242 - Cf. acima, cap. XIII, n° 70.
243 - Cf. acima, cap. XIII, n° 68.
244 - Cf. acima, cap. XIII, n° 68.
245 - Cf. acima, cap. XIII, n° 69.
246 - Paciência como qualidade de paciente ou padecente, [ n . do r .J

CLXXII •De Substantiis Separatis ■S. Thomas de Aquino


S a n to T o m á s de A q u i n o • Sobre os Anjos • 173
CAPUT XVI

De errore Manichaeorum
circa substantias spirituales

86 - Omnes autem praedictos errores Manichaeorum


error transcendit, qui in omnibus praedictis articulis graviter
erraverunt.
Primo namque rerum originem non in unum, sed in duo
creationis principia reduxerunt: quorum unum dicebant
esse auctorem bonorum, aliud vero auctorem malorum.
Secundo erraverunt circa conditionem naturae ipsorum.
Posuerunt enim utrumque principium corporale: auctorem
quidem bonorum dicentes esse quamdam lucem corpoream
infinitam vim intelligendi habentem; auctorem vero malorum
dixerunt esse quasdam corporales tenebras infinitas.
Tertio vero erraverant per consequens in rerum gubernatione,
non constituentes omnia sub uno principatu, sed sub contrariis.
Haec autem quae praedicta sunt expressam continent
falsitatem, ut potest videri per singula.

87 - Primo namque penitus irrationale est ut malorum


ponatur esse aliquod primum principium, quasi contrarium
summo bono. Nihil enim potest esse activum nisi inquantum
est ens actu, quia unumquodque tale alterum agit, quale
ipsum est: rursumque ex hoc aliquid agitur quod actu fit.
Unumquodque autem ex hoc bonum dicimus quod actum
et perfectionem propriam consequitur; malum autem ex
hoc quod debito actu et perfectione privatur. Sicut vita
est corporis bonum: vivit enim corpus secundum animam,
quae est perfectio et actus ipsius; unde et mors malum
corporis dicitur, per quam corpus anima privatur.
Nihil igitur agit neque agitur nisi inquantum bonum est.
Inquantum vero unumquodque malum est, intantum deficit

CLXXIV •De Substantiis Separatis •S. Thomas de Aquino


C A PÍTU LO 16

S o b r e o e r r o d o s m a n iq u e u s
ACERCA DAS SUBSTÂNCIAS ESPIRITUAIS

8 6 - Todos os erros acima referidos foram superados pelo


dos maniqueus,247 que se equivocaram gravemente em todos os
artigos anteriores.
Primeiro, reduziram a origem das coisas não a um, mas a
dois princípios de criação,248 dos quais um diziam ser o autor
dos bens, e o outro o dos males.
Segundo, erraram com respeito à condição da natureza de
ambos.249 Propuseram princípios corpóreos, afirmando que o
autor dos bens é certa luz corpórea infinita e possuidora de po­
der intelectivo; já o autor dos males disseram ser certas trevas
corpóreas infinitas.
Terceiro, e por conseguinte, erraram quanto ao governo das
coisas, estabelecendo tudo não sob um único principado, mas
sob contrários.250
As opiniões acima referidas contêm evidente falsidade,
como pode ser visto de uma em uma.

87 - Em primeiro lugar, é absolutamente irracional propor


que algo seja o princípio primeiro dos males, como o contrário
do Sumo Bem. Nada pode ser ativo senão corno ente em ato,
porque cada ente põe em ato outro tal qual ele próprio é; e,
igualmente, para que algo esteja em ato, tem de ser posto nesta
condição por outro. Mas cada coisa é considerada boa pelo fato
de que consegue ato e perfeição próprios; e é considerada má
pelo fato de que está privada dos devidos ato e perfeição. Assim
como a vida é o bem de um corpo, porque este vive conforme à
alma, que é sua perfeição e seu ato, assim também se diz que o
mal do corpo é a morte, pela qual ele é privado da alma.
Nada, portanto, atua ou é atuado senão enquanto é bom.
Mas, enquanto é mau, é-o porque carece de ser atuado ou
de atuar, assim como dizemos que uma casa é mal-feita se
não foi construída com a devida perfeição, e que é um mau

Santo Tomás de Aquino ■Sobre os Anjos - 1 7 5


in hoc quod perfecte agatur vel agat; sicut domum malam
fieri dicimus, si ad debitam perfectionem non perducatur; et
aedificatorem malum dicimus, si in arte aedificandi deficiat.
Neque igitur malum, inquantum huiusmodi, principium
activum habet, neque principium activum esse potest, sed
consequitur ex defectu alicuius agentis.

88 - Secundo vero impossibile est corpus aliquod


intellectum esse, aut vim intellectivam habere. Intellects enim
neque corpus est neque corporis actus, alioquin non esset
omnium cognoscitivus, ut probat philosophus in tertio de
anima. Si igitur primum principium confitenturvim intellectivam
habere, quod sentiunt omnes qui de Deo loquuntur, impossibile
est primum principium esse aliquid corporale.

89 - Tertio vero manifestum est quod bonum habet finis


rationem: hoc enim bonum dicimus in quod appetitus tendit.
Omnis autem gubernatio est secundum ordinem in aliquem
finem, secundum cuius rationem eaquaesuntadfinemordinantur
in ipsum. Omnis igitur gubernatio est secundum rationem boni.
Non potest igitur esse nec gubernatio nec principatus aliquis seu
regnum mali inquantum est malum. Frustra igitur ponunt duo
régna vel principatus, unum bonorum, aliud autem malorum.
Videtur autem hic error provenisse, sicut et alii supradicti,
ex eo quod ea quae circa particulares causas consideraverunt,
conati sunt in universalem rerum causam transferre.
Viderunt enim particulares effectus contrarios ex contrariis
particularibus causis procedere, sicut quod ignis calefacit,
aqua vero infrigidat: unde crediderunt quod hic processus
a contrariis effectibus in contrarias causas non deficiat
usque ad prima rerum principia. Et quia omnia contraria
contineri videntur sub bono et malo, inquantum contrariorum
semper unum est deficiens, ut nigrum et amarum; aliud vero
perfectum, ut dulce et album: ideo aestimaverunt quod prima
omnium activa principia sint bonum et malum.

CLXXVI ■De Substantiis Separatis S. Thomas de Aquino


construtor alguém deficiente na arte de edificar. Logo, o
mal, enquanto tal, não possui princípio ativo e tampouco
pode ser um princípio ativo; ele é conseqüência do defeito
de algum agente.

8 8 - Em segundo lugar, é impossível que um corpo seja


intelectivo ou possua força intelectiva. Pois o intelecto não
é um corpo, nem o é o ato de um corpo -— de outro modo,
não seria conhecedor de todas as coisas, como prova o
Filósofo no livro terceiro de Sobre a alma.251 Portanto, se
admitem que o Princípio Primeiro possui força intelectiva,
o que consentem todos os que falam de Deus, é impossível
que Ele seja algo corpóreo.

8 9 - Em terceiro lugar, é evidente que o bem tem razão


de fim; pois dizemos que é bom aquilo para o qual tende o
apetite. Mas todo e qualquer governo existe de acordo com
uma ordem voltada para um fim; e, segundo a natureza
desta, as coisas destinadas a tal fim são ordenadas a ele.
Mas todo e qualquer governo existe segundo a natureza do
bem. Não pode haver, portanto, nem governo, nem prin­
cipado, nem regime do mal enquanto é mal. Propõem em
vão, portanto, dois reinos ou principados, um dos bens e o
outro dos males.
E parece que este erro, bem como os outros supracita­
dos,252 proveio do fato de que tentaram transferir para a
causa universal das coisas aquilo que se considera acerca
das causas particulares. Os maniqueus viram que efeitos
particulares contrários procedem de causas particulares
contrárias, assim como o fogo aquece e a água esfria. Por
isso, acreditaram que este processo que parte de causas con­
trárias para efeitos contrários se estendesse até os primeiros
princípios das coisas. E, como todos os contrários parecem
estar contidos sob o bem e o mal — enquanto um dos con­
trários sempre é deficiente, como o preto ou o amargo, e o
outro é perfeito, como o branco ou o doce — , estimaram
que os princípios ativos de tudo seriam o bem e o mal.

Santo Tomás de Aquino •Sobre os Anjos • 177


90 - Sed manifeste defecerunt in considerando
contrariorum naturam. Non enim contraria omnino diversa
sunt, sed secundum aliquid quidem conveniunt, secundum
aliquid autem differunt. Conveniunt enim in genere, differunt
autem secundum specificas differentias. Sicut igitur
contrariorum sunt contrariae causae propriae, secundum
quod specificis differentiis differunt, ita eorum oportet
esse unam causam communem totius generis in quo
conveniunt. Causa autem communis prior est et superior
propriis causis, quanto enim est aliqua causa superior,
tanto virtus eius maior et ad plura se extendens. Relinquitur
igitur contraria non esse prima rerum activa principia, sed
omnium esse unam primam causam activam.

CLXXVIII ■De Substantiis Separatis ■S. Thomas de Aquino


90 - Mas claram ente falharam ao considerar a natu­
reza dos contrários. Pois os contrários não são totalm ente
distintos; em um ponto eles concordam, e em outro dife­
rem. Concordam , pois, em gênero, enquanto diferem por
diferenças específicas. Assim como há, nos contrários,
causas próximas contrárias (conform e diferem entre si por
diferenças específicas), assim também é necessário haver
uma só causa comum dentro de todo e cada um dos gêneros
em que estes contrários concordam. E uma causa comum
é superior às causas próprias. E, quanto mais uma causa é
superior, tanto maior é seu poder e mais abrange vários
(efeitos]. Assim, resta que contrários não são os primeiros
princípios ativos das coisas, mas que há uma única causa
ativa e primeira de tudo.

Santo Tomás de Aquino ■Sobre os Anjos • 179


N o t a s — C a p ít u l o 1 6

247 - Aqui, a fonte de Santo Tomás é mais comumente S anto A gostinho , De


Natura Boni contra Manichaeos. — Vide o mesmo livro em língua portuguesa
(A Natureza do Bem, trad. Carlos Ancêde Nougué, ed. Sétimo Selo, Rio de
Janeiro, 2005). [ n . do r.]
248 - Cf. S anto A gostinho , De Natura Boni contra Manichaeos, 41; Confes­
siones, V, 10, 20.
249 - S anto A gostinho , De Natura Boni contra Manichaeos, 42.
250 - Ibid.
251 - A ristóteles, Sobre a Alma, III, 4 (429a 18-25); T omás de A quino , In De
Anima, III, lect. 7.
252 - Cf. acima, cap. XVI, n° 86.

CLXXX •De Substantiis Separatis •S. Thomas de Aquino


Santo Tomás de Aquino • Sobre os Anjos 181
CAPUT XVII

De origine substantiarum
spiritualium secundum Catholicam fidem

91 - Quia igitur ostensum est quid de substantiis


spiritualibus praecipui philosophi Plato et Aristoteles
senserunt quantum ad earum originem, conditionem naturae,
distinctionem et gubernationis ordinem, et in quo ab eis alii
errantes dissenserunt; restat ostendere quid de singulis
habeat Christianae religionis assertio. Ad quod utemur
praecipue Dionysii documentis, qui super alios ea quae ad
spirituales substantias pertinent excellentius tradidit.
Primum quidem igitur circa spiritualium substantiarum
originem firmissime docet Christiana traditio omnes spirituales
substantias, sicut et ceteras creaturas, a Deo esse productas.
Et hoc quidem canonicae Scripturae auctoritate probatur.
In Psalmo enim dicitur: laudate eum omnes Angeli eius,
laudate eum omnes virtutes eius; et enumeratis aliis creaturis
subditur: quia ipse dixit, et facta sunt: mandavit, et creata
sunt. Sed et Dionysius, quarto capitulo caelestis hierarchiae,
hanc originem subtiliter explicat, dicens: primum illud dicere
verum est, quod bonitate universali superessentialis divinitas
eorum quae sunt essentias substituens, ad esse adduxit; et
post pauca subdit, quod ipsae caelestes substantiae sunt
primo et multipliciter in participatione Dei factae; et in quarto
capitulo de divinis nominibus dicit, quod propter divinae
bonitatis radios substiterunt intelligibiles et intellectuales
omnes et substantiae et virtutes et operationes. Propter istos
sunt et vivunt et vitam habent indeficientem.

92 - Quod autem a Deo immediate productae sint omnes


spirituales substantiae, et non solum supremae, expresse in
quinto capitulo de divinis nominibus, sanctissimae, inquit,

CLXXXII •De Substantiis Separatis •S. Thomas de Aquino


C A PÍTU LO 17

S o b r e a o r ig e m das su b s tâ n c ia s
ESPIRITUAIS SEGUNDO A FÉ CATÓLICA

91 - Como já se expôs aquilo que os principais filósofos,


Platão2"’ e Aristóteles,254 julgaram sobre as substâncias mate­
riais no tocante às suas origem, condição de natureza, distinção
e ordem de governo, e aquilo em que os outros,255 em erro, deles
discordaram, resta por expor o que afirma a religião cristã acer­
ca de cada ponto. Para este fim, utilizaremos principalmente os
escritos de Dionísio,256 que excedeu todos os demais no ensino
do que tange às substâncias espirituais.
Primeiro, quanto à origem das substâncias espirituais,
a tradição cristã257 ensina firmemente que todas elas, bem
como as demais criaturas, são feitas por Deus, o que é com­
provado pela autoridade das Escrituras canônicas. No Sal­
mo258 está dito: “Louvai-o, vós todos os seus anjos, louvai-o,
vós todos os seus exércitos”. E, tendo sido enumeradas todas
as outras criaturas, acrescenta-se: “Porque ele ordenou e fo­
ram criadas”. Mas também Dionísio, no capítulo quarto de
Sobre a H ierarquia C eleste,259 explica esta origem, dizendo:
“Primeiramente, é verdadeiro dizer tal coisa, pois a digni­
dade sobre-essencial, por meio de sua bondade universal,
estabelecendo as essências de tudo o que existe, as uniu ao
ser”; e, após poucas palavras, acrescenta260 que “as próprias
substâncias são feitas primeiro e de várias maneiras na par­
ticipação de Deus”; e, no capítulo quarto de Sobre os N om es
Divinos,261 diz que: “Por causa dos raios da bondade divina
estabeleceram-se todas as substâncias, poderes e operações,
intelectuais e inteligíveis. Graças àqueles, estes são, vivem e
possuem vida inesgotável”.

92 - E expressa ele, no capítulo quinto de Sobre os Nomes


Divinos,262 que todas as substâncias espirituais, e não só as su­
premas, são produzidas imediatamente por Deus: “Os poderes
existentes mais sagrados, elevados e dispostos como no limiar

Santo Tomás de Aquino •Sobre os Anjos •1 8 3


et provectissimae virtutes existentes, et sicut in vestibulis
supersubstantialis Trinitatis collocatae, ab ipsa et in ipsa et
esse et deiformiter esse habent, et post illas subiectae, idest
inferiores supremis, subiecte, idest inferiori modo esse habent
a Deo et extremae, idest infimae, extreme, idest infimo modo,
sicut ad Angelos, sicut ad nos autem supermundane. Per
quod dat intelligere quod omnes spiritualium substantiarum
ordines ex divina dispositione instituuntur, non ex hoc quod
una earum causetur ab alia. Et hoc expressius dicitur in
quarto capitulo caelestis hierarchiae: est, inquit, omnium
causae et super omnia bonitatis proprium ad communionem
suam ea quae sunt vocare, ut unicuique eorum quae sunt, ex
propria definitur analogia; unamquamque enim rem constituit
in ordine qui competit suae naturae.

93 - Similiter etiam Christianae doctrinae repugnat quod


spirituales substantiae ab alioetalio principio habeant bonitatem
et esse et vitam et alia huiusmodi quae pertinent ad earum
perfectionem. Nam in canonica Scriptura uni et eidem Deo
attribuitur quod sit ipsa essentia bonitatis, unde dicitur Matthaei
XIX, 17: unus est bonus, Deus; et quod sit ipsum esse, unde
Exodi III, 14, Moysi quaerenti quod esset nomen Dei, respondit
dominus: ego sum qui sum. Et quod sit ipsa viventium vita:
unde dicitur Deut. XXX, 20: ipse est viventium vita.
Et hanc quidem veritatem expressissime Dionysius tradit
quinto capitulo de divinis nominibus, dicens quod sacra
doctrina non aliud dicit esse bonum, et aliud existens, et
aliud vitam aut sapientiam; neque multas causas et aliorum
alias productivas deitates excedentes subiectas. In quo
removet opinionem Platonicorum, qui ponebant quod ipsa
essentia bonitatis erat summus Deus, sub quo erat alius
Deus, qui est ipsum esse, et sic de aliis, ut supra dictum est.
Subdit autem: sed unius, scilicet deitatis, dicit esse omnes
bonos processus, quia scilicet et esse et vivere et omnia alia
huiusmodi a summa deitate procedunt in res.

CLXXXIV •De Substantiis Separatis ■S. Thomas de Aquino


Ja Trindade supra-substancial, possuem por ela e nela tanto o
ser como o ser de maneira divina-, e, após elas, as demais estão
subpostas...”, isto é, as inferiores às superiores, "... subpostamen'
te...”, isto é, recebem de Deus o ser em modo inferior, "... e [são]
últimas...”, isto é, ínfimas, "... ultimamente...”, isto é, [recebem o
ser] em modo ínfimo, “... com relação aos anjos, mas de modo
sobremundano com relação a nós”, com o que dá a conhecer que
todas as ordens de substâncias espirituais são instituídas pela dis-
posição divina, e não porque uma delas seja causada por outra.
E isto é dito ainda mais expressamente no quarto capítulo de
Sobre a Hierarquia Celeste:263 “E próprio daquilo que é causa de
tudo e bondade acima de tudo convocar à sua comunhão todas
as coisas que existem para que cada uma delas seja definida a
partir de uma analogia própria”; pois ela estabelece cada coisa
na ordem que compete à sua própria natureza.

9 3 - 0 que também é contrário à doutrina cristã é [dizer]


que as substâncias espirituais tenham bondade, ser, vida e ou­
tras similares características pertinentes à sua perfeição a partir
de princípios diversos. Pois nas Escrituras canônicas se atribui
a um mesmo Deus que Ele seja a própria essência da bondade
(em Mateus X IX :264 “Um só é bom, Deus”); que Ele seja o pró­
prio ser (em Êxodo III,265 tendo Moisés perguntado qual seria o
nome de Deus, responde o Senhor: “Eu sou o que sou”); e que
Ele seja a própria vida dos viventes (em Deuteronômio X X X :266
Ele é a vida dos viventes”)267.
E esta verdade Dionísio muito claramente a ensina no capítulo
quinto de Sobre os Nomes Divinos,168 dizendo que a Sagrada Escri­
tura “não afirma ser uma coisa o bem, outra o ente, outra a vida
ou a sapiência, e tampouco [afirma haver] várias causas ou outras
divindades produtivas sucessivamente subpostas”, com o que re­
jeita a opinião dos platônicos, que afirmavam que a essência da
bondade era um sumo Deus,269 sob o qual porém havia outro deus
que seria o próprio ser, e assim por diante, como foi dito acima.270
E acrescenta: “Mas de uma só”, isto é, de uma só bondade, “diz
serem todos os bons processos”, porque o ser, o viver, tudo desta
natureza procede, nas coisas, da suma divindade.

Santo Tomás de Aquino ■Sobre os Anjos ■ 185


Hoc etiam diffusius explicat in XI capitulo de divinis
nominibus, dicens: non enim substantiam quamdam divinam
aut angelicam esse dicimus per se esse quod est causa quod
sint omnia. Solum enim quod sint existentia omnia ipsum
esse supersubstantiale, scilicet summi Dei, est principium et
substantia et causa. Principium quidemeffectivum, substantia
autem quasi forma exemplaris, causa autem finalis. Subdit
autem: neque vitae generativam aliam deitatem dicimus
praeter superdeam vitam, causam omnium quaecumque
vivunt et ipsius per se vitae, quae scilicet formaliter viventibus
inhaeret: neque, ut colligendo dicamus, dicimus principales
existentium et creativas substantias et personas quas et
deos existentium et creatores per se facientes dixerunt. Ad
hanc etiam positionem excludendam signanter Dionysius:
ab essentiali bonitate, quam Platonici summum Deum esse
ponebant, dicit in substantiis spiritualibus procedere quod
sunt et vivunt et intelligunt: et omnia alia huiusmodi ad earum
perfectionem pertinentia sortiuntur. Et idem etiam replicat in
singulis capitulis, ostendens quod ab esse divino habent quod
sint, et a vita divina habent quod vivunt, et sic de ceteris.

94 - Est autem Christianae doctrinae contrarium ut


sic dicantur spirituales substantiae a summa deitate
originem trahere, quod fuerint ab aeterno, sicut Platonici
et Peripatetici posuerunt; sed hoc habet assertio
Catholicae fidei quod coeperunt esse postquam prius
nonfuerant. U ndedicitur IsaiaeXL, 26: levate inexcelsum
oculos vestros, et videte quis creavit haec, scilicet
superiora omnia; et ne intelligeretur de corporalibus
solum, subdit: qui educit in numero militiam eorum.
Solet autem sacra Scriptura nominare militiam caeli
spiritualium substantiarum caelestem exercitum propter
earum ordinem et virtutem in exequendo voluntatem
divinam: unde dicitur Lucae II, 13, quod facta est cum
Angelo m ultitudo caelestis militiae. Datur igitur intelligi,

CLXXXVI •De Substantiis Separatis •S. Thomas de Aquino


Mas isto ele o explica mais extensamente no capítulo
décimo primeiro de Sobre os Nomes Divinos,271 dizendo: “Pois
não afirmamos que certa substância divina ou angélica é o ser
per se que é causa para o ser de tudo; pois, para que todas as
coisas existam por natureza, somente o próprio ser sobre-subs-
rancial”, isto é, o do sumo Deus, “é princípio e substância e
causa” — um princípio efetivo, uma substância na condição de
forma exemplar, e uma causa final. E acrescenta: “Tampouco
afirmamos haver nenhuma outra divindade geradora de vida
além daquela vida sobredivina que é causa de tudo o que vive
e da própria vida per se”, que formalmente inere aos viventes,
“e, para encerrar, tampouco dizemos [serem esta causa] certos
princípios das coisas existentes, substâncias criadoras ou pesso­
as, aos quais chamaram ‘deuses dos existentes’ e ‘criadores que
produzem per se”’. Também para excluir tal opinião, assinala-
se: “Sob a bondade essencial, que os platônicos afirmavam ser
o sumo Deus”, diz Dionísio, “dá-se, nas substâncias espirituais,
que elas sejam, vivam, intelijam, e que lhes caibam todas as
características deste tipo pertinentes à sua perfeição”. E isso ele
o repete a cada capítulo, demonstrando que é a partir do divino
ser que elas são, que é a partir da divina vida que elas vivem, e
assim por diante.

94 - É também contrário à doutrina cristã afirmar que as subs­


tâncias espirituais derivam, em sua origem, da suma divindade, de
maneira tal que teriam existido desde toda a eternidade,272 como
propuseram os platônicos e os peripatéticos;273 a afirmação da fé
católica é que elas adquiriram ser depois de, anteriormente, não
ter sido. Donde é dito em lsaías XL:274 “Levantai os vossos olhos
para o alto, e considerai quem criou todas essas coisas”, ou seja,
“todas as coisas superiores”; e, para que não se entenda tratarem-se
apenas das corpóreas,275 acrescenta: “que faz marchar em ordem a
sua milícia” — é comum na Sagrada Escritura chamar de “milícia
celeste” este exército celeste composto por substâncias espirituais,
devido à sua ordem e ao seu poder para executar a vontade divina;
donde consta em Lucas II276 que: “E subitamente apareceu com
o Anjo uma multidão da milícia celeste”. Dá-se pois a conhecer

Santo Tomás de Aquino Sobre os Anjos ■ 1 87


non solum corpora, sed etiam spirituales substantias
per creationem de non esse in esse fuisse eductas,
secundum illud Rom. IV, 17: qui vocat ea quae non sunt
tanquam ea quae sunt. Unde et Dionysius d icit decimo
capitulo de divinis nominibus, quod non omnino et
absolute ingenita et vere aeterna ubique sacra Scriptura
nominat aeterna; sed incorruptibilia et immortalia et
invariabilia et existentia eodem modo, scilicet nominat
aeterna, sicut quando dicit: elevamini portae aeternales,
et similia, quod maxime videtur de spiritualibus
substantiis dictum; et postea subdit: oportet igitur non
sim pliciter coaeterna Deo, qui est ante aevum, arbitrari
aeterna dicta.

95 - Sed quia sacra Scriptura in Genesi I in serie


creationis rerum, de spiritualium substantiarum productione
expressam mentionem non facit, ne populo rudi, quibus lex
proponebatur, idolatriae daretur occasio si plures spirituales
substantias super omnes corporeas creaturas introduceret
sermo divinus, non potest ex Scripturis canonicis expresse
haberi quando creati fuerunt Angeli. Quod enim post
corporalia creati non fuerint, et ratio manifestât, quia non
fuit decens ut perfectiora posterius crearentur, et etiam ex
auctoritate sacrae Scripturae expresse colligitur. Dicitur
enim lob XXXVIII, 7: cum me laudarent simul astra matutina
et iubilarent omnes filii Dei; per quos spirituales substantiae
intelliguntur.
Arguit autem Augustinus in undecimo de civitate Dei:
iam ergo erant Angeli quando facta sunt sidera; facta sunt
autem quarto die. Numquid nam ergo die tertio factos esse
dicimus? Absit. In promptu est enim quid illo die factum sit,
ab aquis utique terra discreta. Numquid nam secundo? Ne
hoc quidem: tunc enim firmamentum factum est. Et postea
subicit: nimirum ergo si ad istorum opera Dei pertinent
Angeli, ipsi sunt ilia lux quae diei nomen accepit.

CLXXXVIII •De Substantiis Separates • S. Thomas de Aquino


i |ue não somente os corpos mas também as substâncias espirituais
l>iram trazidas do não-ser ao ser pela criação. Donde também se
diz em Romanos IV:277 “O qual chama tanto as coisas que não
são como as que são”; razão por que Dionísio diz, no capítulo
quarto de Sobre os Nomes Divinos,278 que “em nenhuma parte sua
a Sagrada Escritura chama alguma coisa de ‘eterna’ no sentido
île ‘total e absolutamente não-gerada e verdadeiramente eterna’,
mas no sentido de ‘incorruptível, imortal, invariável e existente
sempre de um mesmo modo”’, ou seja, chama algo de “eterno”
como quando diz: “Levantai-vos, portas eternas”279 ou similares, o
que claramente vemos que se disse acerca das substâncias espiri­
tuais. E, adiante, acrescenta ele: “Portanto, é necessário não julgar
simpliciter co-eternas com Deus aquelas coisas ditas eternas, pois
Ele é anterior ao tempo”.

95 - Mas, como a Sagrada Escritura não faz, no Gênesis I, na


seqüência da criação das coisas, menção expressa à produção das
substâncias espirituais — para que não se desse uma oportunida­
de de idolatria ao povo inculto a que a lei era proposta, quando,
pelo discurso divino, se introduzissem várias substâncias espiri­
tuais superiores a todas as criaturas corpóreas — , não se pode
saber explicitamente, a partir das Escrituras, quando teriam sido
criados os anjos. Que não foram criados após as coisas corpóre­
as, isto tanto a razão esclarece, pois não seria conveniente que
as coisas perfeitas se criassem depois, como [também] se colhe
expressamente da autoridade da Sagrada Escritura. Diz-se em Jó
XX X V III:280 “Quando os astros da manhã me louvaram juntos, e
quando todos os filhos de Deus jubilaram”; os quais se entendem
como sendo as substâncias espirituais.
Agostinho, por sua vez, argúi no livro XI d’A Cidade de Deus:281
“Logo, já havia anjos quando os céus foram feitos. E estes o foram
no quarto dia. E acaso dizemos que os anjos foram feitos no tercei­
ro dia? Longe disso. Pois é evidente o que foi feito naquele dia: a
terra foi separada das águas. Acaso no segundo? Decerto que não;
foi feito, então, o firmamento”. E depois acrescenta: “Portanto,
não é de admirar que os próprios anjos estejam entre estas obras
de Deus, como aquela luz que recebe o nome de dia”.

Santo Tomás de Aquino Sobre os Anjos •1 89


Sic igitur secundum sententiam Augustini simul
cum corporalibus creata est spiritualis creatura, quae
significatur nomine caeli, cum in Gen. I, I d'citur: in
principio fecit Deus caelum et terram. Formatio autem eius
et perfectio significatur in lucis productione, ut multipliciter
prosequitur in II Lib. super Genesim ad litteram.

96 - Sed, ut Damascenus dicit in secundo libro, quidam aiunt


quod ante omnem creationem, scilicet corporalis creaturae,
geniti sunt Angeli: ut Gregorius theologus dicit, primum quidem
excogitavit angelicas virtutes et caelestes, et excogitatio eius
opus fuit. Et huic sententiae ipse Damascenus consentit. Sed et
Hieronymus, praedicti Gregorii Nazianzeni discipulus, eamdem
sententiam sequitur; dicit enim super epistolam ad Titum: sex
millia necdum nostri temporis implentur annorum; et quantas
priusaeternitates, quanta tempora, quantas saeculorum origines
fuisse arbitrandum est, in quibus Angeli, throni et dominationes
ceterique ordines servierunt Deo absque temporum vicibus
atque mensuris, et Deo iubente substiterunt?
Neutrum autem horum aestimo esse sanae doctrinae
contrarium: quia nimis praesumptuosum videretur asserere
tantos Ecclesiae doctores a sana doctrina pietatis deviasse.
Sententia tarnen Augustini magis videtur competere suae
positioni qua ponit in rerum productione non fuisse temporis
ordinem secundum dierum senarium quern Scriptura
commémorât; sed illos sex dies refert ad intelligentem
angelicam sex rerum generibus praesentatam. Sententia vero
Gregorii Nazianzeni, Hieronymi et Damasceni convenientiorest
secundum eorum positionem qui ponunt in rerum productione
successionemtemporissecundumsexdiespraedictos.Si enim
creaturae non fuerunt omnes simul productae, satis probabile
est creaturas spirituales omnia corpora praecessisse.

97 - Si vero quaeratur ubi creati sunt Angeli, manifestum


est quod quaestio ista locum non habet si sunt creati ante

CXC ■De Substantiis Separatis •S. Thomas de Aquino


Assim, segundo a opinião de Agostinho, a criatura espiritual
representada pelo nome de céu foi criada juntamente com as cria-
turas corpóreas, como se vê pelo que é dito no início do Gênesis:281
“No princípio Deus criou o céu e a terra”. Mas a formação e per­
feição deste céu é significada pela produção da luz, como muitas
vezes ele descreve no livro segundo de Sobre o Gênesis à Letra.283

9 6 - Mas, como diz Damasceno no livro segundo [de Sobre


a Fé O rtodoxa]m , alguns afirmam que os anjos foram gerados
anteriormente a toda a criação das coisas corpóreas; como afir­
ma Gregório, o Teólogo: “Primeiro [Ele] pensou os poderes an­
gélicos e celestes, e seu pensamento se fez obra”. E Damasceno
concorda com esta opinião. E também Jerônimo,285 discípulo
do citado Gregório Nazianzeno, segue o mesmo parecer, pois
diz, comentando a Epístola a Tito: “Seis mil anos de nosso tem­
po ainda não se completaram; e, antes, quantas eternidades,
quantas épocas, quantas origens dos séculos se deve pensar que
existiram, nas quais os Anjos, Tronos, Dominações e demais
ordens serviram a Deus sem as sucessões e medidas do tempo
e, tendo Ele mandado, O obedeceram?”
E nenhum destes [pareceres] estimo ser contrário à sã dou­
trina, pois seria demasiado presunçoso declarar que tamanhos
doutores da Igreja se desviaram da sã doutrina da piedade. O
parecer de Agostinho, porém, parece condizer mais com sua
posição de que, com respeito às coisas, a produção não ocor­
reu segundo a ordem de tempo de seis dias que relata a Escri­
tura; ele refere aqueles seis dias à inteligência angélica posta
em face dos seis gêneros de coisas. Já o parecer de Gregório
Nanzianzeno, Jerônimo e Damasceno é mais concordante
com a posição dos que propõem, na produção das coisas, uma
sucessão de tempo segundo os mencionados seis dias. Pois, se
as criaturas não foram todas produzidas simultaneamente, é
bastante provável que as criaturas espirituais tenham prece­
dido todos os corpos.

97 - Se, porém, fosse perguntado onde foram criados os anjos,


é evidente que esta questão não teria lugar, visto que eles foram

Santo Tomás de Aquino ■Sobre os Anjos - 1 9 1


omnem corpoream creaturam, cum locussitaliquid corporale,
nisi forte pro loco accipiamus spiritualem claritatem qua
illustranturaDeo. Unde Basilius dicit insecundo Hexaemeron:
arbitramur quia si fuit quidpiam ante institutionem sensibilis
huius et corruptibilis mundi, profecto in luce fuit. Neque enim
dignitas Angelorum nec omnium caelestium militiae, vel si quid
est nominatum aut inappellabile aut aliqua rationalis virtus vel
ministrator spiritus degere posset in tenebris; sed in luce et
laetitia decentem sibi habitum possidebat: de qua re neminem
puto contradicturum. Si vero simul cum corporali creatura
creati fuerint Angeli, quaestio locum potest habere, eo tarnen
modo quo Angelis competit esse in loco, de quo infra dicetur.
Et secundum hoc quidam dixerunt in quodam supremo
caelo splendido Angelos esse creatos, quod Empyreum
nominant, idest igneum, non ab ardore sed a splendore;
et de hoc caelo Strabus et Beda exponunt quod dicitur in
principio Gen.: creavit Deus caelum et terram; quamvis
haec expositio ab Augustino et aliis antiquioribus Ecclesiae
doctoribus non tangatur.

CXCII ■De Substantiis Separatis •S. Thomas de Aquino


criados antes de toda e qualquer criatura corpórea, e que um lu­
gar é algo corpóreo; a não ser que tomemos por lugar a claridade
espiritual com que são iluminados por Deus. Donde diz Basílio,
no segundo livro de Os Seis Dias:286 “Julgamos que, se houve algo
antes da instituição deste mundo sensível e corruptível, foi todo
feito em luz. Nem a dignidade dos anjos, nem as milícias de todos
os [entes] celestes, sejam nomeados ou inomináveis, tampouco
nenhum poder ou governo do espírito poderia perdurar em trevas;
ao contrário, possuíam para si uma veste majestosa de luz e ale­
gria; afirmação que, penso eu, ninguém há de contradizer”. Caso,
porém, os anjos tenham sido de fato criados simultaneamente às
criaturas corpóreas, tal questão pode ter lugar, de modo que aos
anjos compita estar num lugar — sobre o que falaremos abaixo.287
Conforme a este [parecer], alguns disseram que os anjos
foram criados num esplêndido céu supremo, a que chamam
empíreo, isto é, de fogo, não pelo calor, mas pelo brilho; e é
falando deste céu que Estrabão288 e Beda explicam as palavras
“No princípio Deus criou o céu e a terra”, conquanto tal expli­
cação não tenha sido tratada por Agostinho nem por outros e
mais antigos doutores da Igreja.

Santo Tomás de Aquino ■Sobre os Anjos • 193


N o t a s — C a p ít u l o 1 7

253 - Cf. acima, cap. I, nos 4-7; cap. III, nos 15-18; cap. XI, nM 60-61.
254 - Cf. acima, cap. II, n° 8; cap. IV, n° 18.
255 - Cf. acima, cap. V, n° 19; cap. X, n° 59; cap. XII. N° 62; cap. XVI, n° 90.
256 - Pseudo Dionísio Areopagita, grego em verdade anônimo (séculos V e
VI) cujos escritos muitos creditaram a Dionísio Areopagita, ou seja, o santo
e m ártir ateniense convertido ao Cristianismo por São Paulo (cf. At., XVII,
34) e primeiro bispo de sua cidade. Por essa razão, aquele foi por muito
tem po (até o século XIX) confundido com este, o que certam ente lhe valeu
enorme prestígio. Contra, porém, os que vêem no Pseudo Dionísio um mero
neoplatônico em vestes cristãs, escreve S tiglmayr, Joseph (apud B oehner ,
Philotheus, e G ilson, Étienne, História da Filosofia Cristã, Petrópolis: Vozes,
1985, p. 124): “ Mais acertado seria ver nele um cristão revestido de man­
to filosófico neoplatônico”. Ademais, como se vê especialmente neste De
Substantiis Separatis e na Suma Teológica (I, q. 108, a. 2), Santo Tomás de
Aquino aceitou a sistematização de De Caelesti Hierarchia proposta pelo
Pseudo Dionísio, segundo o qual ela é constituída por nove ordens angéli­
cas, distribuídas em três grupos; o primeiro é o dos Serafins, dos Querubins
e dos Tronos; o segundo é o das Dominações, das Virtudes e das Potes­
tades; e o terceiro é o dos Principados, dos Arcanjos e, stricto sensu, dos
Anjos. [n. do T.]
257 - Cf. IV Concílio de Latrão, ano 1215 (D enzinger , Henrique, 428). — As
teses a respeito dos Anjos contidas no decreto Firmiter, do IV Concílio de
Latrão (1215), foram essencialmente reafirmadas pela constituição Dei Filius,
do Concílio Vaticano I (1870). [n . do r.]
258 - Sal. CXLVIII, 2, 5.
259 - P seudo D ion Isio , De Caelesti Hierarchia, IV, 1 .
260 - Ibid., IV, 2.
261 - P seudo D ion Isio , De Divinis Nominibus, IV, 1.
262 - Ibid., V, 8.
263 - P seudo D ion Isio , De Caelesti Hierarchia, IV, 1.
264 - Mat., XIX, 17.
265 - Ex., III, 14.
266 - Deut., XXX, 20.
267 - P seudo D ion Isio , De Divinis Nominibus, V, 2.
268 - P roclo, Eiementatio Theologica, Props. 8, 13.
269 - Ibid., Prop. 138.
270 - Cf. acima, cap. XI, nos 60-61.
271 - P seudo D ion Isio , De Divinis Nominibus, XI, 6.
272 - Cf. T omás de A quino , De Aeternitate M undi contra Murmurantes, [ n. do t.]
273 - Cf. acima, cap. IX, nos 46-52; S anto A gostinho , De Civitate Dei, IX, 8,
12, 13, 23; X, 31.
2 7 4 -Is ., XL, 26.
275 - l.e., os corpos celestes, [n. do t.]

CXCIV •De Substantiis Separatis •S. Thomas de Aquino


2 7 6 - Luc., II, 13.
277 - Rom., IV, 17.
278 - P seudo D ion Isio , De Divinis Nominibus, X, 3.
279- Cf. Sal. XXIII, 7. [ n . dOT.]
2 8 0 - Jó, XXXVIII, 7.
281 - S anto A gostinho , De Civitate Dei, XI, 9.
282 - Gên., I, 1.
283 - S anto A gostinho , De Genesi ad Litteram, II, 8.
284 - S ão J oão D amasceno , De Fide Orthodoxa, II, 3.
285 - S ão J erõnimo , Commentarium in Epistola ad Titum, I.
286 - S ão B asílio , In Hexaemeron, hom. II, 5.
287 - Cf. abaixo, cap. XVIII, nos 102 e 103.
288 - Exegeta e poeta (Suábia, c. 809-849), Valafrido Estrabão foi discípulo
de Rabano Mauro, que por sua vez o foi de Alcuíno. [n . do t.]

Santo Tomás de Aquino ■Sobre os Anjos • 195


CAPUT XVIII

Oe conditione spiritualium substantiarum

98 - Deinde considerare oportet quid de conditione


spiritualium substantiarum secundum Catholicae doctrinae
sententiam sit tenendum.
Fuerunt igitur quidam qui Angelos putaverunt corporeos
esse vel ex materia et forma esse compositos; quod quidem
sensisse videtur Origenes in primo periarchon, ubi dicit: solius
Dei, idest patris etfilii et spiritus sancti, naturae id proprium est
ut sine materiali substantia et absque ulla corporeae adiectionis
societate intelligatur existere, Et ad hoc quidem quod Angelos
corporeos ponerent, movere potuerunt eos verba Scripturae
quae quaedam corporalia Angelis attribuere videtur, cum eos
et in loco corporali esse pronuntiet: secundum illud Matthaei
XVIII, 10:Angelieorum in caelis semper vident faciem patris mei
qui in caelis est; et eos moveri asserat, secundum illud Isaiae
VI, 6: volavit ad me unus de Seraphim; et quod est amplius,
eos figura corporali describat, sicut ibidem de Seraphim
dicitur: sex alae uni et sex alae alteri; et de Gabriele dicitur
Dan. VI, ecce vir unus vestitus lineis, et renes eius accincti
aura obrizo, et corpus eius quasi chrysolitus, et cetera quae
ad haec pertinente ibidem subduntur.

99 - Quod autem in Angelis etsi non sint corporei, sit


tarnen in eis compositio formae et materiae: ex quibus
rationibus accipere volunt, supra iam diximus.
Sed quod Angeli incorporei sint, canonicae Scripturae
auctoritate probatur, quae eos spiritus nominat. Dicitur
enim in Psalmo CHI, 4: qui facit Angelos suos spiritus; et
apostolus dicit ad Hebraeos I, 14, de Angelis loquens:
omnes sunt administratorii spiritus, in ministerium missi
propter eos qui hereditatem capiunt salutis. Consuevit

CXCVI ■De Substantiis Separatis •S. Thomas de Aquino


C A PÍTU LO 18

S o b r e a c o n d iç ã o d a s s u b s t â n c i a s e s p i r i t u a i s

9 8 - Ademais, é necessário considerar o que deveria ser


aceito, segundo o parecer da doutrina católica, com respeito à
condição das substâncias espirituais.
Houve alguns que julgaram que os anjos são corpóreos,
ou compostos de matéria e forma; Orígenes parece haver
pensado isso em Sobre os Princípios,289 onde diz: “Somente
da natureza de Deus, isto é, do Pai, do Filho e do Espírito
Santo, é próprio compreender o existir sem substância ma­
terial nem nenhuma associação de uma união corpórea”. E,
quanto a que propusessem os anjos como corpóreos, podem
tê-los movido a isso as palavras da Sagrada Escritura que pa­
recem atribuir certas [características] corpóreas aos anjos,
visto que os situam também num lugar corpóreo (M ateus
X V III)290: “Os seus anjos nos céus vêem incessantemente a
face de meu Pai, que está nos céus”; e que dizem que eles se
movem (Isaías V I)291: “E voou para mim um dos serafins”;
e que, mais importante, os descrevem em figura, como as
ditas naquele mesmo momento acerca do serafim: “Cada um
deles tinha seis asas”. E diz-se de Gabriel, em D aniel X :292 “E
eis que vi um homem vestido de roupas de linho, e cingido
pelos rins com um cinto de puríssimo ouro; o seu corpo era
[brilhante] como o crisólito”. Outras coisas atinentes a isso
também são descritas no mesmo momento.

9 9 - Eles desejariam provar, a partir dos argumentos que


expusemos acima,293 que, ainda que os anjos não fossem corpó­
reos, haveria neles uma composição de forma e matéria.
Todavia, é provado pela autoridade da Sagrada Escritura
que os anjos são incorpóreos, pois ela os denomina “espíritos”.
Diz-se no Salm o:294 “[Ele, que] de espíritos faz seus mensagei­
ros”; e diz o Apóstolo aos Hebreus,295 falando dos anjos: “Todos
esses espíritos são ministros [de Deus], enviados para exercer o
seu ministério a favor daqueles que hão de receber a herança da

Santo Tomás de Aquino ■Sobre os Anjos • 197


autem Scriptura nomine spiritus aliquid incorporeum
designare, secundum illud loan. IV, 24: spiritus est Deus, et
eos qui adorant eum, in spiritu et veritate adorare oportet;
et Isaiae XXXI, 3: Aegyptus, homo, et non Deus; et equi
eorum caro, et non spiritus.
Sic igitur consequens est, secundum sacrae Scripturae
sententiam, Angelos incorporeos esse. Si quis autem diligenter
velit verba sacrae Scripturae inspicere, ex eisdem accipere
poterit eos immateriales esse: nominat enim eos sacra Scriptura
quasdam virtutes. Dicitur enim in Psalmo CM, 20-21: benedicite
domino omnes Angeli, et postea subditur: benedicite domino
omnes virtutes eius; et Luc. XXI, 26, dicitur: virtutes caelorum
movebuntur, quod de sanctis Angelis omnes doctores exponunt.
Quod autem materiale est, non est virtus, sed habet virtutem;
sicut non est essentia, sed habens essentiam; sequitur enim
virtus essentiam. Non est autem homo sua humanitas, neque
sua virtus. Similiter autem neque aliquid aliud ex materia et
forma compositum. Relinquitur igitur secundum intentionem
Scripturae Angelos immateriales esse.

100 - Utrumque autem horum expresse Dionysii verbis


astruitur, qui in quarto capite de divinis nominibus de Angelis
loquens dicit quod intellectuales substantiae ab universis
corruptione et morte et materia et generatione mundae existunt,
et sicut incorporates et immateriales intelliguntur. In primo
etiam capitulo caelestis hierarchiae dicit quod divina dispositio
immateriales Angelorum hierarchias materialibus figuris varias
tradidit; et in secundo capitulo eiusdem libri quaerit, quare sacri
doctores ad corporalem formationem incorporalium scilicet
Angelorum, venientes, non figuraveruntea pretiosissimisfiguris,
sed immaterialibus substantiis et deiformibus simplicitatibus
terrenas figuras circumposuerunt.
Ex quibus omnibus patet hanc fuisse Dionysii sententiam
quod Angeli sunt immateriales et simplices substantiae. Quod
etiam ex hoc patet quod frequenter eos nominat caelestes

CXCVIII •De Substantiis Separatis S. Thomas de Aquino


salvação”. É comum na Sagrada Escritura designar pelo nome
de espírito algo incorpóreo; segundo João IV:296 “Deus é espí­
rito, e em espírito e verdade é que O devem adorar os que O
adoram”, e Isaías X X X I:297 “O Egito é um homem, e não Deus;
e os seus cavalos são carne, e não espírito”.
Portanto, tem-se, segundo o parecer da Sagrada Escritura,
que os anjos sejam incorpóreos. De fato, se alguém quiser
analisar cuidadosamente as palavras da Sagrada Escritura,
nelas poderá perceber que eles são imateriais; pois a Sagrada
Escritura os denomina virtudes.298 É dito, pois, no Salm o:299
“Bendizei o Senhor, vós todos os seus anjos” e, depois, “Ben­
dizei o Senhor, vós todas as suas virtudes”; e também é dito
em Lucas X X I:300 “As virtudes do céu se abalarão”, o que todos
os doutores interpretam como referido aos santos anjos. Já o
que é material não é virtude, mas tem virtude, assim como
não é essência, mas tem essência, pois a virtude se segue à
essência. O homem, pois, não é nem sua humanidade nem
sua virtude; e o mesmo vale para todo e qualquer composto
de matéria e forma. Resta, portanto, que, segundo o parecer
da Sagrada Escritura, os anjos são imateriais.

100 - E ambos estes pontos são expressamente estabele­


cidos pelas palavras de Dionísio, o qual, no capítulo quarto
de Sobre os Nomes Divinos,301 falando dos anjos, diz que “as
substâncias intelectuais existem intocadas pela corrupção,
morte, matéria e geração, e entendem-se como incorpóreas
e imateriais”. Também no primeiro capítulo de Sobre a Hie­
rarquia C eleste,202 diz que a divina disposição apresentou as
várias hierarquias imateriais por meio de figuras materiais;
e, no capítulo segundo do mesmo livro,303 pergunta por que
os Doutores Sacros, concluindo por uma formação corporal
das coisas incorpóreas, isto é, dos anjos, não as figuraram por
meio de virtuosíssimas imagens, mas preferiram dar figuras
terrenas a imateriais e deiformes simplicidades.
Por tudo o que foi dito, fica claro que o parecer de D io­
nísio era que os anjos são substâncias simples e imateriais;
e isto também fica claro porque ele os denom ina intelectos

Santo Tomás de Aquino •Sobre os Anjos •1 9 9


intellectus, seu divinas mentes. Intellectus autem et mens
aliquid incorporeum et immateriale est, ut philosophus
probat in tertio de anima. Augustinus etiam dicit in secundo
super Genesim ad litteram quod primo die quo lux facta est,
conditio spiritualis et intellectualis creaturae lucis appellatione
intimatur, in qua natura intelliguntur omnes sancti Angeli
atque virtutes. Damascenus etiam dicit quod Angelus est
substantia intellectualis et incorporea. Sed dubitationem tacit
quod postea subdit: incorporeus autem et immaterialis dicitur
quantum ad nos: omne enim comparatum ad Deum, grossum
et materiale invenitur. Quod ad hoc inducitur ne aestimetur
Angelus propter suam incorporeitatem et immaterialitatem
divinam simplicitatem aequare.

101 - Corporales vero figurae seu formae quae


in Scriptura sacra interdum Angelis attribuuntur, per
quamdam similitudinem sunt intelligenda: quia, sicut
dicit Dionysius primo capitulo caelestis hierarchiae:
non est possibile nostrae menti ad immaterialem illam
sursum excitari caelestium hierarchiarum et imitationem
et contemplationem, nisi secundum se materiali
manuductione utatur; sicut et de ipso Deo multa corporalia
in Scripturis per quamdam similitudinem dicuntur; unde
in decimoquinto capite caelestis hierarchiae Dionysius
exponit quid spirituale significetur in Angelis per omnes
huiusmodi corporales figuras. Nec solum huiusmodi
formas corporeas per similitudinem de Angelis asserit
dici, sed etiam ea quae pertinent ad affectionem sensitivi
appetitus, ut per hoc detur intelligi quod non solum Angeli
non sunt corpora, sed etiam non sunt spiritus corporibus
uniti, quae sensificando perficiant, ut sic in eis inveniantur
operationes animae sensitivae. Dicit enim in secundo
capitulo caelestis hierarchiae, quod furor irrationabilibus
ex passibili motu ingignitur; sed in Angelis furibundum
demonstrat virilem ipsorum rationabilitatem. Et similiter

CC •De Substantiis Separatis ■S. Thomas de Aquino


celestes ou mentes divinas. E intelectos ou mentes são algo
incorpóreo e imaterial, como o prova o Filósofo no livro
terceiro de Sobre a Alma.304 Também Agostinho diz, no
livro segundo de Sobre o G ênesis à L etra ,305 que “no pri­
meiro dia, no qual a luz foi feita, a condição da criatura
espiritual e intelectual foi introduzida pelo nome de luz,
natureza esta em que se compreendem todos os santos
anjos e virtudes”. E também Dam asceno306 diz que o anjo
é “substância intelectual e incorpórea”, mas gera dúvida
ao acrescentar, depois: “Diz-se ser de natureza incorpórea
com relação a nós; pois tudo, comparado a Deus, se vê
grosseiro e m aterial”, o que é aduzido, no entanto, para que
não se julgue que o anjo se iguala, por sua incorporeidade e
imaterialidade, à simplicidade da substância divina.

101 - Mas as figuras ou formas corporais que são por vezes


atribuídas aos anjos na Sagrada Escritura devem ser entendidas
ao modo de semelhança, porque, assim como Dionísio diz, no
capítulo primeiro de Sobre a Hierarquia Celeste,301 que “não é
possível estimular nossa mente a atingir a contemplação e imi­
tação imateriais das hierarquias celestes sem que, segundo [sua
natureza], se utilize uma orientação material”, assim também,
na Sagrada Escritura, muitas coisas corpóreas são ditas de Deus
ao modo de semelhança. Donde Dionísio mesmo, no capítulo
décimo quinto de Sobre a Hierarquia Celeste,308 interpreta o que
de espiritual seria significado pelas figuras corporais. Sustenta
que não apenas as formas corpóreas são ditas ao modo de seme­
lhança com os anjos, mas também todas as coisas pertinentes
à afecção do apetite sensitivo, de maneira que por tais palavras
não se deve entender não só que eles sejam corpos, mas tampou­
co que sejam espíritos unidos a corpos que eles aperfeiçoariam
“sensificando-os”, de maneira que neles se encontrassem opera­
ções de uma alma sensitiva. Diz ele, pois, no capítulo segundo
de Sobre a Hierarquia Celeste,309 que “nos irracionais a fúria é
gerada por um movimento passivo, mas nos anjos deve-se en­
tender o irascível de outro modo, isto é, como sinal, julgo eu,
de sua racionalidade viril”. Outra versão assim o diz: “Mas, nos

Santo Tomás de Aquino - Sobre os Anjos ■201


dicit quod concupiscentia in eis significat amorem divinum.
Cui convenienter Augustinus dicit in nono de Civ. Dei,
quod sancti Angeli sine ira puniunt quos accipiunt aeterna
Dei lege puniendos; et miseris sine miseriae compassione
subveniunt; et periclitantibus eis quos diligunt, sine
timore opitulantur; et tarnen istarum nomina passionum
consuetudine locutionis humanae etiam in eos usurpantur
propter quamdam operum similitudinem, non propter
affectionum infirmitatem.

102 - Quod autem Angeli dicuntur esse in caelis aut


in aliquibus aliis corporalibus locis, non est intelligendum
quod sint in eis corporali modo, scilicet per contactum
dimensivae quantitatis, sed modo spirituali per quemdam
contactum virtutis. Proprius autem locus Angelorum
est spiritualis, secundum quod Dionysius dicit, quinto
capite de divinis nominibus, quod supremae spirituales
substantiae sunt in vestibulis Trinitatis collocatae; et
Basilius dicit in secundo Hexaemeron, quod sunt in luce,
et laetitia spirituali. Et Gregorius Nyssenus dicit in libro
de homine quod intelligibilia existentia in intelligibilibus
locis sunt, aut enim in se ipsis sunt aut in superiacentibus
intelligibilibus. Cum igitur in corpore dicatur intellectuale
aliquid localiter esse, non ut in loco in corpore dicitur esse
sed ut in habitudine et in eo quod adest, ut dicimus Deum
esse in nobis; et post pauca subdit: cum igitur in habitudine
fuerit intelligibile aliquod vel loci alicuius vel rei ut in loco
existentis, abusivius dicimus illic id esse propter actum
eius qui est illic, locum pro habitudine suscipientes. Cum
enim deberemus dicere: illic agit, dicimus: illic est. Et hoc
sequens Damascenus dixit quod Angelus ubi operatur ibi
est. Augustinus etiam octavo super Gen. ad litteram dicit,
quod spiritus creator movet conditum spiritum pertempus
sine loco; movet autem corpus pertempus et locum.

CCII ■De Substantiis Separatis ■S. Thomas de Aquino


anjos, ‘furioso’ demonstra propriamente sua racionalidade viril”,
e diz ainda que neles a concupiscência significa amor divino.
Agostinho, em concordância com isto, afirma no livro nono d’A
C idade de Deus310 que “os santos anjos punem sem ira aqueles
que a eterna lei de Deus considera disto merecedores; socorrem
os miseráveis sem compaixão por sua miséria; estando em perigo
aqueles a quem honram, auxiliam-nos sem medo; e, no entanto,
os nomes destas paixões são empregados com relação a eles pelo
costume do falar humano em razão de uma semelhança em seus
trabalhos, [mas] não em razão de uma fraqueza de afecções”.

102 - Ademais, dizer que os anjos estão nos céus ou em


outros locais corpóreos não se deve entender como se eles
lá estivessem de modo corpóreo, isto é, por um contato de
quantidade mensurável, mas sim de modo espiritual, por cer­
to contato de poder. O lugar próprio dos anjos é espiritual,
segundo o que diz Dionísio no capítulo quinto de Sobre os N o­
mes Divinos:3“ “As substâncias espirituais supremas estão dis­
postas no limiar da Trindade”. E diz Basílio, no livro segundo
de Os Seis D ias,312 que elas estão “em luz e alegria espirituais”.
Diz também Gregório de Nissa, no livro Sobre o Homem,315
que “as coisas inteligíveis existentes em lugares inteligíveis
estão ou nelas mesmas ou em inteligíveis sobrejacentes. Logo,
quando se diz que algo intelectual está localmente num cor­
po, não é no sentido de estar no corpo como num lugar, mas
no de condição e no de que lhe está presente, como quando
dizemos que Deus está em nós”. E pouco depois acrescenta:
“Logo, como foi inteligível, na dita condição, algo de algum
lugar ou de uma coisa existente em tal lugar, dizemos erra­
damente que ‘aquilo está ali’, pelo fato de que o ato dele está
ali, e tomamos, assim, o lugar pela condição; quando, pois,
deveríamos dizer ‘ele opera lá’, dizemos que ‘ele está lá’”. E,
seguindo este raciocínio, Damasceno314 diz que, “onde opera
o anjo, ali está ele”. Também Agostinho, no livro oitavo de
Sobre o Gênesis à Letra,315 diz que “o Espírito Criador move
um espírito criado através do tempo, sem espaço; mas move
um corpo através do tempo e do espaço”.

Santo Tomás de Aquino •Sobre os Anjos •2 0 3


103 - Ex quibus omnibus datur intelligi quod Angeli non
sunt in loco corporali modo sed quodam modo spirituali. Et
quia eodem modo competit alicui moveri in loco et esse in
loco, perconsequens neque corporali modo Angeli moventur
in loco, sed motus eorum qui exprimitur in Scripturis, si
referatur ad locum corporalem, est accipiendus secundum
successionem virtualis contactus ad loca diversa; vel est
accipiendus secundum mysticam intelligentiam, sicut
Dionysius, quarto capite de divinis nominibus dicit, quod
moveri dicuntur divinae mentes circulariter quidem unitae
illuminationibus pulchri et boni; in directum autem quando
procedunt ad subiectorum providentiam; oblique autem
quando providentes minus habentibus inegressibiliter
manent circa Deum.
Ex his igitur manifestum est quid circa conditionem
spiritualium substantiarum, idest Angelorum, sacri
doctores tradiderint, asserentes eos incorporeos et
immateriales esse.

CCIV •De Substantiis Separates S. Thomas de Aquino


103 - Por todos estes raciocínios, pode-se compreender que
os anjos não estão num lugar de modo corpóreo, mas espiri­
tual. E, como compete a algo mover-se e estar num lugar se­
gundo o mesmo modo, conseqüentemente tampouco os anjos
se movem de modo corpóreo num lugar. Seu movimento, que
está expresso na Sagrada Escritura, quando se refere a um lugar
corpóreo, deve ser entendido como uma sucessão de contatos
de poder em diferentes lugares; ou deve ser compreendido con­
forme a uma interpretação mística, como escreve Dionísio no
capítulo quarto de Sobre os Nomes Divinos:316 “Diz-se que as
mentes divinas se movem circularmente quando estão unidas à
iluminação do belo e do bem; em linha reta quando procedem
à providência daqueles que lhe estão sujeitos; e obliquamente
quando, previdentes embora para os inferiores, permanecem
fixos ao redor de Deus”.317
Assim, portanto, está claro o que os Doutores Sacros afir­
maram acerca da condição das substâncias espirituais, isto é,
dos anjos, sustentando que estes são incorpóreos e imateriais.

Santo Tomás de Aquino ■Sobre os Anjos •2 0 5


N o t a s — C a p ít u l o 1 8

289 - O rígenes , Periarchon, 1,1.


290 - Mat., XVIII, 10.
291 - Is., VI, 6, 2.
292 - Dan., X, 5 -6 .
293 - Cf. acima, cap. V, n° 19; cap. VIII, n° 45.
2 9 4 - S a l„ CHI, 4.
295- Heb., I, 14.
296 - Jo., IV, 24.
297 - Is-, XXXI, 3.
298 - Lat. virtutes. A palavra latina virtus.utis (derivada de vir, viri = “ homem,
varão”, e de que deriva a nossa “ virtude") tem muitos significados, e é usa­
da neste opúsculo com o de “ poder, potestade, força”. Se aqui é vertida
por “ virtude” , é porque também é assim vertida em muitas passagens das
melhores traduções da Bíblia para o português. Ademais, lembre-se que no
segundo grupo de De Caelesti Hierarchia se encontram, em palavras latinas,
as seguintes três ordens angélicas; Dominationes, Virtutes, Potestates, que
tradicionalm ente vertemos por “ Dominações, Virtudes, Potestades” (Cf.
acima, nota 256). [ n. do r.]
299 -S a l., C ll,2 0 e 2 1 .
300 - Luc., XXI, 26.
301 - P seudo D ion Isio , De Divinis Nominibus, IV, 1.
302 - P seudo D ion Isio , De Caeiesti Hierarchia, I, 3.
303 - Ibid., I em sua totalidade.
304 - A ristóteles, Sobre a Alma, III, 4 (429a 10-b 5); T omás de A quino , In De
Anima, III, lect. 7.
305 - S anto A gostinho , De Genesi ad Litteram, II, 8.
306 - S ão J oão D amasceno , De Fide Orthodoxa, II, 3.
307 - P seudo D ion Isio , De Caelesti Hierarchia, I, 3.
308 - Ibid., XV em sua totalidade.
309 - Ibid., II, 4.
310 - S anto A gostinho , De Civitate Dei, IX, 5.
311 - P seudo D ionIsio , De Divinis Nominibus, V, 8; cf. T omás de A quino , In
Librum de Causis, Prop. 19.
312 - S ão B asIlio , In Hexaemeron, hom. II, c. 5.
313 - N emésio , De Natura Hominis, 3. — Santo Tomás atribui equivocada­
mente, o que era comum em sua época, o De Natura Hominis a São Gregório
de Nissa, também estudioso do tema. [ n . do t .]
314 - S ão J oão D amasceno , De Fide Orthodoxa, II, 3.
315 - S anto A gostinho , De Genesi ad Litteram, VIII, 20.
316 - P seudo D ion Isio , De Divinis Nominibus, IV, 8.
317 - Cf. Tomás de A quino , Summa Theologiae, ll-llae, 180, 6.

CCV1 •De Substantiis Separatis ■S. Thomas de Aquino


S a n to T o m á s d e A q u in o • Sobre os Anjos ■ 207
CAPUT XIX

De distinctione angelicorum spirituum

104 - Oportet autem consequenter considerare quid


secundum sacram doctrinam de distinctione spirituum sit
tenendum: ubi et primum considerationi occurrit differentia
boni et mali. Est enim apud multos receptum, esse
quosdam spiritus bonos, quosdam vero malos: quod et
auctoritate sacrae Scripturae comprobatur. De bonis enim
spiritibus dicitur Hebr. I, 14: omnes sunt administratorii
spiritus, in ministerium missi, propter eos qui hereditatem
capiunt salutis. De malis autem spiritibus dicitur, Matthaei
XII, 43, 45: cum immundus spiritus exierit ab homine,
ambulat per loca arida quaerens requiem, et non invenit;
et postea subditur: tune vadit, et assumit septem alios
spiritus nequiores se. Et quamvis, ut Augustinus narrat in
nono de Civ. Dei, quidam posuerunt et bonos et malos
spiritus deos esse, et similiter bonos et malos Daemones
nominari, quidam tarnen melius deos non nisi bonos
asserunt, quos nos Angelos dicimus, Daemones autem
secundum communem usum loquendi non nisi in malo
accipitur: quod, ut dicit, rationabiliter accidit. Daemones
enim in Graeco a scientia nominantur quae sine caritate,
secundum sententiam apostoli, per superbiam inflat.

105 - Sed causa malitiae Daemonum non eadem ab


omnibus assignatur. Quidam enim eos asserunt naturaliter
malos tanquam a malo productos principio, sic etiam ut
ipsorum natura sit mala: quod ad Manichaeorum errorem
pertinet, ut patet ex dictis. Sed hunc errorem efficacissime
Dionysius improbat, quarto capite de divinis nominibus,
dicens: sed neque Daemones natura mali sunt. Quod
probat, primo quidem, quia si naturaliter mali essent,

CCVIII •De Substantiis Separatis ■S. Thomas de Aquino


C A PÍTU LO 19

S o b r e a d is t in ç ã o e n t r e o s e s p í r i t o s a n g é l ic o s

104 - Consequentemente, é preciso considerar o que deve


ser aceito, segundo a sacra doutrina, sobre a distinção entre os
espíritos, e quanto a isto o que primeiro vem ao pensamento é
a diferença entre “bom” e “mau”. Pois muitos consideram que
há espíritos bons e espíritos maus; o que também é compro-
vado pela autoridade da Sagrada Escritura. Sobre os espíritos
bons, diz-se em Hebreus IP18 “Todos esses espíritos são minis­
tros [de Deus], enviados para exercer o seu ministério a favor
daqueles que hão de receber a herança da salvação”. Sobre os
espíritos maus, consta em Mateus X II:319 “Quando o espírito
imundo sai de um homem, anda por lugares secos, buscan­
do repouso, e não o encontra”; e depois: “Então vai, e toma
consigo outros sete espíritos piores do que ele”. E, como relata
Agostinho no livro nono de A C idade de Deus,320 conquanto
alguns tenham afirmado que tanto os espíritos bons como
os maus são deuses e, também, que bons e maus espíritos são
[igualmente] denominados demônios,321 outros mais correta­
mente afirmaram que apenas os bons são deuses — aos quais
chamamos “anjos”. Já “demônios”, segundo o uso da lingua­
gem corrente, são apenas aqueles considerados maus, o que,
como diz ele, acontece com razão: os demônios recebem este
nome do termo grego para “ciência”,322 a qual, sem caridade,
segundo as palavras do Apóstolo,323 infla de soberba.

105 - Mas a causa da maldade dos demônios não é conside­


rada igualmente por todos. Alguns afirmam que eles são natu­
ralmente maus, porque assim foram produzidos por um princípio
mau, de modo que sua natureza também o é — o que se relaciona
com o erro dos maniqueus, como está claro pelo que já foi dito.324
E esse erro Dionísio o refuta muito claramente no capítulo quar­
to de Sobre os nomes divinos,325 dizendo: “Mas tampouco os de­
mônios são maus por natureza”. Em primeiro lugar, comprova-o
mostrando que, se fossem naturalmente maus, seria necessário

Santo Tomás de Aquino - Sobre os Anjos ■2 0 9


simul oporteret dicere quod neque essent producti ex
bono principio neque inter existentia computarentur, quia
malum non est aliquid existens: nec si esset natura aliqua,
causaretur a bono principio.
Secundo, quia si sunt naturaliter mali: aut sibi ipsis,
aut aliis: si sibi ipsis, se ipsos corrumperent, quod est
impossibile; malum enim rationem corruptivi habet. Si
vero sunt mali aliis, oporteret quod ea quibus sunt mali,
corrumperent. Quod autem est naturaliter tale, est omnibus
tale, et omnino tale. Sequeretur ergo quod omnia, et omnino
corrumperent; quod est impossibile, turn quia quaedam
sunt incorruptibilia, quae corrumpi non possunt, turn quia
ea etiam quae corrumpuntur, non totaliter corrumpuntur.
Non igitur ipsa natura Daemonum est mala.
Tertio, quia si essent naturaliter mali, non essent a Deo
facti, quia bonum bona producit et subsistere tacit; et hoc
est impossibile, secundum id quod supra probatum est,
quod oportet omnium Deum esse principium.
Quarto, quia si Daemones semper eodem modo se
habent, non sunt mali: quod enim est semper idem, boni
est proprium. Si autem non semper mali, non natura mali.
Quinto, quia non sunt omnino expertes boni, secundum
quod sunt, et vivunt, et intelligunt, et aliquod bonum
desiderant.

106 - Fuerunt autem alii ponentes Daemones naturalite


malos, non quia eorum natura sit mala, sed quia habent
quamdam inclinationem naturalem ad malum, sicut
Augustinus, decimo de civitate Dei introducit Porphyrium
dicentem in epistola ad Anebontem quosdam opinari esse
quoddam spirituum genus, cui exaudire sit proprium, natura
fallax, omniforme, multimodum, simulansdeos et Daemones,
et ipsas animas defunctorum. Quae quidem opinio veritatem
habere non potest, si ponatur Daemones incorporeos
esse, et intellectus quosdam separates. Cum enim omnis

CCX ■De Substantiis Separatis •S Thomas de Aquino


dizer que não teriam sido produzidos a partir de um princípio
bom, e que tampouco se contariam entre as coisas existentes,
visto que o mal não é algo existente e que, se houvesse uma
natureza má, não seria causada por um princípio bom.
Em segundo lugar: se fossem naturalmente maus, ou o se-
riam para consigo mesmos, ou para com outros. Se o fossem
para consigo mesmos, corromperiam a si próprios — o que é
impossível — , pois o mal é por definição corruptor. Se o fos­
sem para com outros, necessariamente corromperiam aqueles
para com os quais são maus, e, visto que tudo o que o é natu­
ralmente de dado modo o é total e completamente, seguir-se-ia
que corromperiam tudo e por completo — o que é impossível,
tanto porque certas coisas são incorruptíveis como porque as
que são corruptíveis não se corromperiam completamente.
Portanto, a natureza dos demônios não é má em si mesma.
Em terceiro lugar, se fossem naturalmente maus, não teriam
sido feitos por Deus, pois o que é bom produz coisas boas e as
faz subsistir. Assim, isso é impossível pelo fato de que, como foi
provado acima,326 Deus é o princípio de tudo.
Em quarto lugar, como os demônios se encontram sempre
no mesmo modo, não são maus; pois aquilo que é sempre ele
mesmo é próprio do bem. E, se não são sempre maus, não são
maus por natureza.
Em quinto lugar, porque não são completamente privados
do bem, uma vez que são, e vivem, e inteligem, e desejam al­
gum bem.327

106 - Alguns, porém, propuseram que os demônios são


naturalmente maus não porque a natureza deles fosse má, mas
porque teriam certa inclinação natural para o mal, como o
mostra Agostinho, no livro décimo ’A Cidade de Deus,m atra­
vés de Porfírio e sua Carta a Anebontes: “Alguns opinam que
há certo gênero de espíritos do qual é próprio o aperceber-se
claramentc, c que por natureza são enganadores em todas as
formas e de muitas maneiras, simulando ser deuses e demônios
e até mesmo as almas dos mortos”. Vemos que tal opinião não
pode conter nenhuma verdade, se afirmamos que os demônios

Santo Tomás de Aquino ■Sobre os Anjos - 2 1 1


natura bona sit, impossibile est quod natura aliqua habeat
inclinationem ad malum nisi sub ratione particulars boni.
Nihil enim prohibet aliquid quod est particulariter bonum
alicui naturae, intantum dici malum inquantum repugnat
perfectioni nobilioris naturae, sicut furiosum esse, quoddam
bonum est cani, quod tarnen malum est homini rationem
habenti. Possibile tarnen est in homine secundum sensibilem
et corporalem naturam, in qua cum brutis communicat, esse
quamdam inclinationem ad furorem, qui est homini malum.
Sed hoc de intellectuali natura dici non potest, quia intellects
ordinem habet ad bonum commune. Unde impossibile est
in Daemonibus inveniri naturalem inclinationem ad malum,
si essent pure intellectuals non habentes admixtionem
naturae corporeae.

107-Sciendumest ergoquod Platonici posuerunt, utetiam


supra dictum est, Daemones esse animalia quaedam corporea,
habentia intellectum; et inquantum habent corpoream et
sensitivam naturam, sunt variis animae passionibus subiecti,
sicut et homines, ex quibus inclinantur ad malum. Unde
Apuleius in libro de Deo Socratis definiens Daemones, dixit
eos esse genere animalia, animo passiva, mente rationalia,
corpore aerea, tempore aeterna, et sicut ipse dicit, subiecta
est mens Daemonum passionibus libidinum, formidinum,
irarum, atque huiusmodi ceteris. Sic ergo Daemones etiam
loco discernunt a diis, quos Angelos dicimus, aerea loca
Daemonibus attribuentes, aetherea vero Angelis, sive diis.
Hane autem positionem quantum ad aliquid aliqui
Ecclesiae doctores sequuntur. Augustinus enim III
super Genes, ad litteram videtur dicere, vel sub dubio
relinquere, quod Daemones aerea sunt animalia quoniam
corporum aereorum natura vigent, et propterea morte non
dissolvuntur, quia praevalet in eis elementum quod ad
faciendum quam ad patiendum est aptius, scilicet aer. Et
hoc idem in pluribus aliis locis dicit. Sed et Dionysius videtur

CCXII •De Substantiis Separatis ■S. Thomas de Aquino


são incorpóreos e intelectos separados. Como toda e qualquer
natureza é boa, é impossível que determinada natureza tenha
uma inclinação para o mal senão sob a razão de um bem par­
ticular, pois nada impede que algo que é particularmente bom
para dada natureza seja considerado mau para outra, por con­
trário à perfeição mais elevada desta: “furioso”, por exemplo, é
bom para o cão, mas mau para o homem, que é possuidor de
razão. Mas é possível haver no homem, segundo sua natureza
sensível e corpórea, que ele tem em comum com os animais,
certa inclinação para a fúria, que lhe é algo mau; fato que não
se diz ocorrer na natureza intelectual, pois o intelecto possui
uma ordem comumente inclinada para o bem. Donde é impos­
sível encontrar-se nos demônios uma inclinação natural para o
mal, se são puramente intelectuais e não-possuidores de mescla
com natureza corpórea.

107 - Assim, deve-se ter em mente que os platônicos


propuseram, como já foi dito acim a,329 que os demônios são
animais corpóreos, possuidores de intelecto; e que, enquan­
to possuem natureza corpórea e sensitiva, estão sujeitos às
várias paixões da alma — assim como os homens — , pelas
quais se inclinam ao mal. Donde Apuleio, no livro O Deus
de Sócrates,330 definir os demônios como “animais em gêne­
ro, passíveis no ânimo, aéreos de corpo, eternos no tempo”,
e dizer que “a mente dos demônios é sujeita a paixões de
libido, medo, ira e similares. Logo, os demônios também são
discernidos dos deuses”, a que chamamos anjos, “por sua
localização, ao se atribuírem àqueles os lugares aéreos e a
estes os lugares etéreos”.
E, em certos pontos, esta opinião é seguida por alguns
doutores da Igreja. Agostinho, no livro terceiro de Sobre o
Gênesis à L etra,331 parece dizer, ou deixar dúbio, que os de­
mônios são animais aéreos porque perduram pela natureza
de seus corpos aéreos; e que, ademais, não são destruídos
pela morte porque neles prevalece um elemento, o ar, bas­
tante apto tanto para o permanecer como para o suportar.
E afirma o mesmo em diversos outros pontos. Mas também

Santo Tomás de Aquino •Sobre os Anjos - 2 1 3


in Daemonibus ponere ea quae ad sensibilem animam
pertinent: dicit enim quarto capite de divinis nominibus,
quod est in Daemonibus malum, furor irrationabilis,
demens concupiscentia et phantasia proterva. Manifestum
est autem phantasiam et concupiscentiam et iram sive
furorem, non ad intellectum, sed ad sensitivae partem
animae pertinere. Sed et quantum ad locum quidam cum
eis consenserunt, putantes Daemones non caelestes vel
supercaelestes Angelos fuisse, ut Augustinus narrat in
tertio super Gen. ad litteram. Sed et Damascenus dicit in
secundo libro Daemones ex his angelicis virtutibus fuisse
qui terrestri ordini praeerant. Sed et apostolus ad Ephes. II,
2, nominat: Diabolum principem potestatis aeris huius.

108 - Sed occurrit hie aliud consideratione dignum.


Cum enim unicuique speciei sit attributa materia secundum
convenientiam suae formae, non videtur esse possibile
quod in tota aliqua specie sit naturalis inclinatio ad id quod
est malum illi speciei secundum rationem propriae formae;
sicut non omnibus hominibus inest naturalis inclinatio
ad immoderantiam concupiscentiae sive irae. Sic igitur
non est possibile omnes Daemones habere naturalem
inclinationem ad fallaciam et ad alia mala, etiam si omnes
essent unius speciei. Multo minus ergo si singuli essent in
singulis speciebus; quamvis, si sint corporei, nihil impedire
videatur plures sub una specie contineri: poterit enim
secundum diversitatem materiae diversitas individuorum
unius speciei causari. Oportebit igitur dicere quod non
omnes nec semper fuerunt mali, sed aliqui eorum mali
esse inceperunt proprio arbitrio, passionum inclinationem
sequentes. Unde et Dionysius dicit quod aversio, scilicet a
Deo, est ipsis Daemonibus malum, et convenientius ipsis
excessus, quia per superbiam ultra se ipsos sunt elati; et
postea subdit quaedam ad poenam pertinentia, sicut non
consecutio finis ultimi, et imperfectio per carentiam debitae

CCXIV •De Substantiis Separatis S. Thomas de Aquino


Dionísio parece conferir aos demônios atributos correspon­
dentes a uma alma sensível, pois diz, no capítulo quarto
de Sobre os N om es D ivinos,m que em seu mal há “um furor
irracional, uma concupiscência demente e um imaginação
destemperada”. E é evidente que a imaginação, a concupis­
cência e a ira não são correspondentes ao intelecto, mas à
parte sensitiva da alma do animal. E, quanto a seu lugar,
alguns concordaram com os que afirmaram não terem eles
sido anjos celestes ou supracelestes, como relata Agostinho
no livro terceiro de Sobre o G ênesis à Letra.’51 E diz Damas-
ceno, no livro segundo [de Sobre a Fé O rtodoxa]w , que os
demônios foram, dentre os poderes angélicos, os que guia­
vam a ordem terrestre. E o Apóstolo, em Efésios II, chamava
o diabo de “príncipe da potestade de seu ar”.” ’

108 - Mas aqui ocorre algo digno de consideração. Como


a cada espécie lhe é atribuída matéria segundo convém à sua
forma, não parece possível que em toda uma espécie haja uma
natural inclinação para aquilo que é mau para esta espécie
segundo a natureza de sua forma própria; assim como não há
em todos os homens inclinação para o descontrole da concu­
piscência ou da ira. Assim, pois, não é possível que todos os
demônios possuam uma inclinação natural para a falácia ou
para outros males, ainda que fossem todos de uma só espécie.
Logo, isso muito menos ocorreria se cada um deles constituís­
se uma espécie diferente; conquanto, caso fossem corpóreos,
nada pareceria impedir que vários deles estivessem contidos
sob uma só espécie, pois, segundo a diversidade da matéria, se
teria podido criar uma diversidade de indivíduos a partir de
uma só espécie. Será necessário dizer, portanto, que nem todos
são maus e que [os que o são] não o foram sempre, mas que
alguns deles iniciaram seu mal por arbítrio próprio, seguindo
a inclinação para as paixões. Donde também diz Dionísio, no
capítulo quarto de Sobre os Nomes Divinos,556 que “a aversão”,
ou seja, a Deus, “é para os próprios demônios um mal e um
afastamento do que lhes convém, pois pela soberba quiseram
elevar-se acima de si mesmos”; e acrescenta, com respeito à sua

Santo Tomás de Aquino •Sobre os Anjos - 2 1 5


perfectionis, et impotentia consequendi quod naturaliter
desiderant, et infirmitas virtutis conservantis naturalem in
eis ordinem revocantem a malo.

109 - Augustinus etiam dicit in tertio super Genes, ad


litteram, quod transgressores Angeli ante transgressionem
suam fuerunt in superiori parte aeris propinqua caelo cum
principe suo nunc Diabolo, tunc Archangelo, manifeste
exprimens per transgressionem quamdam eos esse malos
factos. Sed et Damascenus dicit in secundo libro, quod
Diabolus non natura malus factus est, sed bonus existens
et in bono genitus, liberi sui arbitrii electione versus est.
Hoc insuper et Origenes in primo periarchon, et Augustinus
in XI de civitate Dei, auctoritatibus sacrae Scripturae
confirmant, inducentes id quod habetur Isaiae XIV, 12,
dictum Diabolo sub similitudine régis Babylonis: quomodo
cecidisti, Lucifer, qui mane oriebaris?; Et Ezechielis XXVIII,
12 ss., ad eum dicitur in persona regis Tyri: tu signaculum
similitudinis, plenus sapientia, perfectus decore, in deliciis
Paradisi Dei fuisti; et postea subditur: perfectus in viis
tuis a die conditionis tuae, donee inventa est iniquitas
in te. Solvit Augustinus ibidem quod dicitur loannis VIII,
44: ille homicida erat ab initio, et in veritate non stetit; et
quod in canonica loannis dicitur, quod Diabolus ab initio
peccat, referens hoc ad initium quo incepit peccare, vel
ad initium conditionis humanae, quod deceptum hominem
spiritualiter occidit.

110 - Huic autem sententiae consonare videtur


Platonicorum opinio, qui Daemonum quosdam bonos
quosdam malos dicunt, quasi eos proprio arbitrio bonos
vel malos factos. Unde et Plotinus ulterius procedens dixit
animas hominum Daemones esse et ex hominibus fieri
Lares, si meriti boni sunt, Lemures autem si mali, seu Larvas;
Manes autem deos dici, si incertum est bonorum eos seu

CCXVI •De Substantiis Separatis ■S. Thomas de Aquino


pena, “o não-cumprimento”, do fim último, “e a imperfeição”,
por carência da devida perfeição, “a impotência”, de alcançar o
que naturalmente desejam, “e a debilidade”, do poder que con­
serva neles a ordem natural, chamando-os de volta do mal.

109 - Diz igualmente Agostinho, também no livro terceiro


de Sobre o Gênesis à Letra, 337 que os anjos transgressores foram,
anteriormente à sua transgressão, na parte superior do ar, junto
ao céu, com seu príncipe, agora diabo e então arcanjo; e afirma
que, por transgressão, alguns deles se fizeram maus. Também
Damasceno afirma, no livro segundo [de Sobre a Fé Ortodoxa],338
que “o diabo não foi feito mau por natureza, mas, existente no
bem e gerado no bem, valeu-se da escolha de seu livre-arbítrio”.
Ademais, tanto Orígenes, em I Sobre os Princípios,359 como
Agostinho, no [livro] décimo primeiro d’A Cidade de Deus,340
o confirmam pela autoridade da Sagrada Escritura, mostrando
o que consta em Isaías XIV341 acerca do diabo sob a semelhan­
ça do rei da Babilônia: “Como caíste do céu, ó Lúcifer, tu, que
na manhã tanto brilhavas?”; e, em Ezequiel XXVIII,342 o que se
diz a ele na pessoa do rei de Tiro: “Tu, milagre de semelhança
[de Deus], pleno de sabedoria, perfeito de beleza, tu vivias nas
delícias do paraíso”; ao que se acrescenta: “Tu eras perfeito nos
teus caminhos desde o dia da tua criação, até que a iniqüidade
se achou em ti”. Agostinho343 explica, quanto ao mesmo ponto,
o que é dito em João VIII:344 “Ele foi homicida desde o início, e
não permaneceu na verdade”, e ainda o que consta na [primeira
epístola] canônica de João:345 “O diabo peca desde o início”, di­
zendo que “início” se refere ou a “quando ele começou a pecar”
ou ao “início da condição humana”, quando ele pôs a perder
espiritualmente o homem, por ele enganado.

110 - Ademais, parece consoante com este parecer a opi­


nião dos platônicos, que dizem que alguns demônios são maus
e outros bons, como se se tivessem tornado bons ou maus por
arbítrio próprio.346 Donde, indo mais longe, afirmar Plotino que
as almas dos homens se tornam demônios, e que os Lares,347
quando merecedores de bem, se tornam homens e, quando me-

Santo Tomás de Aquino •Sobre os Anjos - 2 1 7


malorum esse meritorum, sicut Augustinus introducit nono
de civitate Dei. Quod quidem quantum ad hoc praemissae
sanctorum assertioni concordat, quod pro meritis bonis vel
malis aliquos Daemones bonos vel malos esse asserunt;
quamvis non sit nostrae consuetudinis quod bonos spiritus
Daemones, sed Angelos nominemus.
Quantum vero ad hoc quod dixit animas hominum
mortuorum fieri Daemones, est erronea eius positio. Unde
Chrysostomus dicit exponens id quod habetur Matthaei VIII,
28 quod duo habentes Daemonia exibant de monumentis: per
hoc (inquit) quod de monumentis exibant perniciosum dogma
imponere volebant, quod animae morientium Daemones
fiunt. Unde et multi aruspicum occiderunt pueros ut animam
eorum cooperantem haberent. Propter quod et daemoniaci
clamant: quoniam anima illius ego sum. Non est autem
anima defuncti quae clamat, sed Daemon effingit ut decipiat
audientes: si enim in alterius corpus animam mortui possibile
esset intrare, multo magis in corpus suum. Sed neque habet
rationeminiquapassam animam cooperariiniquasibifacienti;
neque etiam rationabile est animam a corpore separatam
hie iam oberrare. lustorum enim animae in manu Dei sunt:
sed et quae peccatorum sunt, confestim hinc abducuntur,
ut manifestum est ex Lazaro et divite. Nec tamen putandum
est Plotinum in hoc a Platonicorum opinione deviasse,
ponentium Daemones esse aerea corpora, quod animas
hominum post mortem fieri Daemones aestimabat; quia
etiam animae hominum secundum Platonicorum opinionem
praeter ista corpora corruptibilia habent quaedam aetherea
corpora, quibus semper etiam post horum sensibilium
corporum dissolutionem quasi incorruptibilibus uniuntur.
Unde Proclus dicit in libro divinarum coelementationum:
omnis anima participabilis corpore utitur primo perpetuo
et habente hypostasim ingenerabilem et incorruptibilem.
Et sic animae a corporibus separatae secundum eos aerea
animalia esse non desinunt.

CCXVIII •De Substantiis Separatis •S. Thomas de Aquino


recedores de mal, Lêmures348 ou Larvas,549 sendo ditos Manes350
quando é incerto se são merecedores de bem ou de mal, como o
mostra Agostinho no livro nono d’A Cidade de Deus;351 posição
que concorda com o supra-referido parecer332 daqueles santos
no afirmar que, por bons ou maus méritos, uns demônios são
ditos bons e os outros maus, embora não seja costume nosso
chamar os espíritos bons de demônios, mas sim de anjos.
Mas, quanto a dizer que as almas dos homens mortos se tor­
nam demônios, é errônea esta posição. Donde, expondo o que
consta em Mateus VIII,355 em que dois homens possuídos por
demônios saíam dos túmulos, explica Crisóstomo:354 “Por meio
disto”, isto é, por saírem dos túmulos, “eles queriam impor o dog­
ma pernicioso de que as almas dos mortos se tornam demônios.
Razão por que também muitos adivinhos mataram crianças, para
terem suas almas como ajudantes. Por causa disso, muitos demo­
níacos clamam: ‘Eu sou a alma daquele’. Não é a alma do defunto
que clama, mas um demônio que a imita para enganar os que o
ouvem; pois, se fosse possível que a alma de um morto entrasse
no corpo de outro, muito mais seria que entrasse no seu próprio.
Tampouco tem uma alma que sofre adversidades razão para coo­
perar com aquele que lhas cria, nem é razoável que uma alma se­
parada de um corpo vague por aqui: ‘Mas as almas dos justos estão
na mão de Deus’,555 enquanto as que pertencem a pecadores são
imediatamente daqui levadas, como é evidente [respectivamente]
por Lázaro e Dives”. Mas tampouco se deve julgar, no tocante
a isto, que Plotino se tenha desviado da opinião dos platônicos
— que propunham que os demônios são corpos aéreos — por
considerar que as almas dos homens se tornam demônios após
a morte, pois, segundo a visão dos platônicos, também as almas
dos homens possuem, além deste corpo corruptível, certo corpo
etéreo, ao qual sempre estão unidas como a algo incorruptível, até
depois da mesma dissolução de seu corpo sensível. Donde Proclo
afirmar, no Libro Divinarum Coelementationum,356 que “toda e
qualquer alma capaz de participação utiliza, além de um primeiro
e perpétuo corpo, outro, que é possuidor de hipóstase não-gerável
e incorruptível”. E, assim, segundo eles, as almas separadas dos
corpos não deixam de ser animais aéreos.

Santo Tomás de Aquino •Sobre os Anjos - 2 1 9


111 - Sed secundum aliorum sanctorum sententiam,
Daemones quos malos Angelos dicimus non solum
fuerunt de inferiori Angelorum ordine sed etiam de
superioribus ordinibus, quos incorporeos et immateriales
esse ostendimus, ita quod inter eos unus est qui summus
omnium fuit. Unde Gregorius in quadam homilia, exponens
illud Ezech. XXVIII, 13: omnis lapis pretiosus operimentum
eius, dicit quod princeps malorum Angelorum in aliorum
Angelorum comparatione ceteris clarior fuit. Et in hoc
consentire videtur illis qui deorum quosdam bonos
quosdam malos esse asserebant, secundum quod dii Angeli
nominantur. Unde et lob IV, 18, dicitur: ecce qui serviunt ei
non sunt stabiles, et in Angelis suis reperit pravitatem.
Sed hoc multas difficultates habet. In substantia enim
incorporea et intellectuali nullus appetitus esse videtur
nisi intellectivus, qui quidem est simpliciter boni, ut per
philosophum patet in decimosecundo metaphysicae. Nullus
autem efficitur malus ex hoc quod eius intellectus tendit in
hoc quod est simpliciter bonum, sed ex hoc quod tendit in
aliquid quod est secundum quid bonum, ac si esset simpliciter
bonum. Non ergo videtur esse possibile quod proprio appetitu
aliqua incorporea et intellectualis substantia mala efficiatur.

112 - Rursus. Appetitus esse non potest nisi boni, vel


apparentis boni; bonum enim est quod omnia appetunt.
Ex hoc autem quod aliquis verum bonum appétit, non
efficitur malus. Oportet igitur in omni eo qui per proprium
appetitum malus efficitur, quod appetat apparens bonum
tanquam vere bonum. Hoc autem non potest esse nisi in
suo iudicio fallatur: quod non videtur posse contingere
in substantia incorporea intellectuali, quae falsae
apprehensionis capax, ut videtur, esse non potest. Nam
et in nobis quando intelligimus aliquid, falsitas esse non
potest. Unde Augustinus dicit in Lib. 83 quaestionum, quod
omnis qui fallitur, id in quo fallitur, non intelligit. Unde et

CCXX •De Substantiis Separatis •S. Thomas de Aquino


111 - No entanto, de acordo com a opinião de outros
santos, os demônios, a que chamamos anjos maus, não vêm
apenas de uma ordem inferior, mas também das ordens su­
periores, as quais demonstramos serem incorpóreas e imate­
riais’57 — tanto que, entre eles, houve um que pertencia à
mais alta de todas. Donde dizer Gregório,358 ao expor numa
homilia o que consta em Ezequiel X X V III359 — “ornado de
toda a casta de pedras preciosas”— , que o príncipe dos anjos
maus foi, em comparação com todos os demais, o mais bri­
lhante. E nisto parece concordar com os que afirmavam que
alguns dentre os demônios são bons e outros maus, razão por
que são denominados ou não anjos. Assim, também é dito em
Jó IV:360 “Ainda os mesmos que o servem não são estáveis, e
até nos seus anjos encontrou defeito”.
Isso, porém, traz muitas dificuldades. Pois, numa subs­
tância incorpórea e intelectual, não parece haver nenhum
apetite além do intelectivo, próprio do que é bom simpliciter,
como se tornou evidente pelo Filósofo no livro décimo se­
gundo da M etafísica ,M E ninguém se torna mau pelo fato de
que seu intelecto tende a algo que é o bem simpliciter, mas
sim pelo fato de que seu intelecto tende a um bem que o é
secundum quid como se este fosse o bem simpliciter. Logo,
não parece possível que, por apetite próprio, nenhuma subs­
tância incorpórea e intelectual se torne má.

112 - Por outro lado, um apetite não pode existir senão pelo
que é bom ou pelo que parece bom; pois é o bem o que apetece a
todos. E não é pelo fato de desejar o bem verdadeiro que alguém
se torna mau. É necessário, portanto, em todo aquele que se
torna mau por apetite próprio, que ele deseje um bem aparente
como se este fosse um bem verdadeiro. E isto não pode ocorrer
a não ser que esteja enganado em seu julgamento, o que não
parece poder acontecer a uma substância incorpórea intelectual,
a qual, como é patente, não pode ser capaz de falsa apreensão;
pois até em nós mesmos, no momento em que compreendemos
um fato, já não podemos deixar de compreendê-lo. Donde dizer
Agostinho, no Livro das 83 Questões,362 que “todo aquele que

Santo Tomás de Aquino •Sobre os Anjos - 221


circa ea quae proprie intellects capimus, sicut circa prima
principia, nullus decipi potest. Impossibile igitur videtur
quod aliqua incorporea et intellectualis substantia per
proprium appetitum mala fiat.

1 1 3 - Adhuc. Substantia quae est intellectualis naturae,


a corpore separata, necesse est quod sit omnino a
tempore absoluta. Natura enim uniuscuiusque rei ex
eius operatione deprehenditur: operationis vero ratio
cognoscitur ex obiecto. Intelligibile autem, inquantum
huiusmodi, neque est hic, neque nunc sed abstractum sicut
a loci dimensionibus ita et a temporum successione. Ipsa
igitur intellectualis operatio, si per se consideretur, oportet
quod sicut est abstracts ab omni corporali dimensione
ita etiam excedat omnem successionem temporalem.
Et si alicui intellectuali operationi continuum vel tempus
adiungatur, hoc non est nisi per accidens, sicut in nobis
accidit, inquantum intellectus noster a phantasmatibus
abstrahit intelligibiles species quas etiam in eis considerat.
Quod in substantia incorporea et intellectuali locum habere
non potest. Relinquitur igitur quod huiusmodi substantiae
operatio, et per consequens substantia, omnino sit extra
omnem temporalem successionem. Unde et Proclus dicit,
quod omnis intellectus in aeternitate substantiam habet,
et potentiam et operationem; et in Lib. de causis dicitur,
quod in te llig e n t parificatur aeternitati. Quidquid igitur
substantiis illis incorporeis et intellectualibus convenit,
semper et absque successione convenit illis. Aut igitur
semper fuerunt malae, quod est contra praemissa aut
nequaquam malae fieri potuerunt.

114 - Amplius. Cum Deus sit ipsa essentia bonitatis, ut


Dionysius dicit in primo capitulo de Div. Nom., necesse est
quod tanto aliqua sint perfectius in participatione bonitatis
firmata, quanto sunt Deo propinquiora. Manifestum est

CCXXII ■De Substantiis Separatis •S. Thomas de Aquino


se engana não compreende aquilo em que se enganou”. Logo,
ninguém pode enganar-se após propriamente apreender algo
com seu intelecto, como o que apreende princípios primeiros.
Assim, vê-se ser impossível que alguma substância incorpórea e
intelectual se torne má por apetite próprio.

113 - Ademais, a substância que é de natureza intelectual,


separada de um corpo, está necessária e absolutamente fora
do tempo. Pois a natureza de qualquer coisa é depreendida de
sua operação, enquanto a razão de uma operação é conhecida
a partir de seu objeto. Já o inteligível, enquanto ele próprio,
não está aqui nem agora, mas é algo separado das dimensões
do espaço e da sucessão dos tempos. Logo, é necessário que
a própria operação intelectual, se considerada per se, assim
como é separada de toda e qualquer dimensão corporal, as­
sim também esteja além de toda a sucessão temporal. E, se
algo contínuo ou alguma medida de tempo se une a qualquer
operação intelectual, isto ocorrerá apenas per accidens, assim
como ocorre em nós quando nosso intelecto extrai dos fan­
tasmas as espécies inteligíveis; o que não pode ocorrer numa
substâircia incorpórea e intelectual. Resta, portanto, que a
operação de tais substâncias — e, por conseguinte, a [pró­
pria] substância — está totalmente fora de toda a sucessão
temporal. Donde também dizer Proclo,6i que “todo e qual­
quer intelecto possui na eternidade tanto substância como
potência e operação”. E no Livro sobre as C au sas564 consta
que “a inteligência faz par com a eternidade”. Logo, tudo o
que é próprio daquelas substâncias incorpóreas e intelectuais
lhes é próprio sempre e sem sucessão. Portanto, ou elas sempre
foram más — o que é contra a premissa — , ou de maneira
nenhuma puderam tornar-se más.

114 - Mais ainda, visto que Deus é a própria essência da


bondade, como o diz Dionísio no capítulo primeiro de Sobre os
N om es Divinos,365 é necessário que, quanto mais alguma coisa
seja próxima de Deus, mais perfeitamente seja confirmada na
participação da bondade. E é manifesto que as substâncias

Santo Tomás de Aquino ■Sobre os Anjos •2 2 3


autem substantias intellectuals incorporeas supra omnia
corpora esse. Si igitur suprema corpora, scilicet caelestia,
non sunt susceptiva alicuius inordinationis vel mali, multo
minus illae supercaelestes substantiae inordinationis et mali
capaces esse non potuerunt. Unde et Dionysius dicit, quarto
capite Cael. Hierar., quod sancti caelestium substantiarum
ornatus super solum existentia, et irrationabiliter viventia,
et ea quae secundum nos sunt rationalia, in participatione
divinae traditionis sunt facti, et copiosiores habent ad
Deum communiones, attenti manentes et semper ad
superius, sicut est fas, in fortitudine divini et indeclinabilis
amoris extenti. Hoc igitur videtur ordo rerum habere ut
sicut inferiora corpora inordinationi et malo possunt esse
subiecta, non autem caelestia corpora; ita etiam intellectus
corporibus inferioribus uniti possunt subiici malo, non
autem illae supercaelestes substantiae. Et hoc secuti esse
videntur qui posuerunt Daemones quos malos Angelos
dicimus, ex inferiori ordine et corporeos esse.

CCXXIV •De Substantiis Separatis •S. Thomas de Aquino


incorpóreas estão acima de todos os corpos. Se os supremos
corpos, ou seja, os celestes, não são suscetíveis de nenhuma
desordem ou mal,366 muito menos aquelas substâncias super-
celestes serão capazes de estar sujeitas a desordens ou males.
Donde afirmar Dionísio, no capítulo quarto de Sobre a Hie­
rarquia C eleste,367 que “os ornamentos sagrados das substân­
cias celestes foram feitos por uma participação na transmissão
divina que está acima da de todos os seres apenas existentes,
dos irracionalmente viventes e dos que, como nós, são ra­
cionais; também, possuem elas comunhões mais abundantes
com Deus, permanecendo voltadas e tendentes sempre ao que
é superior, como tem de ser, na força do divino e indeclinável
amor”. E vemos que isto se dá na ordem das coisas, de manei­
ra que, assim como os corpos inferiores podem estar sujeitos
à desordem e ao mal, assim também o podem os intelectos
unidos aos corpos inferiores; mas não as substâncias superce-
lestes separadas. E por isso [estes] parecem seguir aqueles que
propuseram que os demônios, a que chamamos anjos maus,
são corpóreos e de ordem inferior.368

Santo Tomás de Aquino •Sobre os Anjos ■2 2 5


N o tas — C a p ít u l o 19

3 1 8 - Heb., I, 14.
319 - Mat., XII, 43, 45.
320 - S anto A gostinho , De Civitate Dei, IX, 1 ss.
321 - Cf. acima, nota 25. [ n. do r .]
322 - S anto A gostinho , De Civitate Dei, IX, 20. Neste capítulo, Santo Agos­
tinho parece adotar a etimologia proposta por Platão (in Crátilo, 398), pela
qual daímon teria origem no termo daémon, “aquele que sabe”, “conhece­
d o r”. Enquanto os bons demônios receberam a denominação de anjos (isto
é, “ m ensageiros” ) por se terem m antido na função de transm itir a ordem
divina, Santo Tomás observa, aqui, por que os maus demônios continua­
ram a ser representados adequadamente apenas pelo term o “demônios".
E, citando o Bispo de Hipona, e utilizando a referência deste a São Paulo,
o Aquinate aponta o aspecto corruptor da ciência sem caridade. Assim, um
“ dem ônio”, ao ser tão-som ente um “ conhecedor” desprovido de bondade,
é im ediatamente um "mau dem ônio” — o que dispensa outra nomenclatura.
Aos que acusam o Cristianismo de haver usurpado a term inologia grega
clássica e ter, por assim dizer, “demonizado" os daímones, atribuindo-lhes
um sentido negativo, eis, neste ponto do De Substantiis Separatis, a respos­
ta do Aquinate. [n. do t.]
3 2 3 - I Cor., VIII, 1.
324 - Cf. acima, cap. XVI, nos 86-90.
325 - P seudo D ion Isio , De Dívinis Nominibus, IV, 23.
326 - Cf. acima, cap. IX, nos 4 9 -5 0 ; cap. X, nos 56, 58, 59.
327 - No referido trecho da versão latina da obra de Pseudo DionIsio (cf.
nota 325), tem-se et sunt, et vivunt, e t intelligunt, et omnino est quidam
in eis concupiscentiae m otus”. Entenda-se como o “m otus da concupiscên­
cia” em Pseudo Dionísio o desejo de algum bem que, a p riori, poderia ser
verdadeiro ou aparente. Esta, pelo menos, foi a interpretação do Angélico
ao texto do Pseudo Areopagita, conform e pode ver-se na citação que faz
no escrito In De Divinis Nom inibus Expositio, IV, lectio 19: “ ...inquantum sunt
et vivunt et intelligunt et inquantum est in eis aliquis motus desiderii, qui non
tendit nisi in bonum verum vel apparens". Tal “ correção” ao texto do autor
neoplatônico tem uma razão de ser: para Santo Tomás, há concupiscência
nas criaturas espirituais apenas em sentido m etafórico. Cf. Tomás de A quino ,
Summa Theologiae, I, 59, a.4., ad.2. Na referida exposição do Aquinate, a
troca da expressão “m odo de concupiscência" (concupiscentiae motus) por
“ modo de desejo” (motus desiderii) é coerente com a doutrina segundo a
qual os apetites irascível e concupiscível pertencem exclusivamente à par­
te sensitiva da alma humana (a sensualitas), que os anjos não possuem;
por isto, dada a sua natureza puramente espiritual, neles não poderá haver
propriamente concupiscência. Partindo da premissa de que os sentidos
não apontam para a razão de bem, mas impulsionam o apetite aos bens
deleitáveis para o corpo, Santo Tomás define a sensualidade como potência
apetitiva da parte sensitiva, e a divide em irascível e concupiscível. Cf. Tomás
de A quino , De Veritate, 25, a.2. Resp. Por não possuírem o impulso sensitivo,
por meio do qual se manifestam as paixões (que, na obra do Aquinate, são
paixões do corpo e da alma, e não só da alma), nos anjos o apetite do bem

CCXXVI •De Substantiis Separatis ■S. Thomas de Aquino


ocorre de form a puramente intelectual, não apaixonada. Sendo assim, não
há na teologia católica a atenuante da paixão para o pecado dos demônios,
que é irremissível. O Aquinate sublinha o seguinte: como o poder apetitivo é
proporcional ao cognoscitivo, e este último é perfeito nas criaturas espiritu­
ais, daí seguir-se-á que a vontade dos anjos caídos se obstinou no mal. (cf.
T omás de A quino , Summa Theologiae, I, 64). Ou seja: eles escolhem o mal
com plena ciência — sem ignorância nem paixão. Quando, neste ponto do
De Substantiis Separatis, Santo Tomás diz que os demónios desejam algum
bem, podem os encontrar na Suma Teológica, (I, q. 64 a. 2, ad. 5) a referên­
cia: “ Deve-se dizer que dois são os atos dos demônios. Alguns provêm da
vontade deliberada, e estes podem ser ditos, com propriedade, atos deles.
Tais atos nos demônios são sempre maus, porque, ainda que façam coisas
boas, não as fazem bem. Assim, quando dizem a verdade é para enganar;
e, quando crêem e confessam, não o fazem voluntariam ente, mas forçados
pelas evidências. Outros atos dem oníacos lhes são naturais, e estes p o ­
dem ser bons. Por eles m anifestam a bondade da sua natureza [angélica].
Não obstante, também abusam desses atos bons e os encaminham ao
m al”.[u. do t. e do e.]
328 - S anto A gostinho , De Civitate Dei, X, 11.
329 - Cf. acima, cap. I, n° 7.
330 - Cf. S anto A gostinho , De Civitate Dei, IX, 8.
331 - S anto A gostinho , De Genesi ad Litteram, 11,10.
332 - P seudo D ionísio , De Divinis Nominibus, IV, 23.
333 - S anto A gostinho , De Genesi ad Litteram, III, 10.
334 - S ão J oão D amasceno , De Fide Orthodoxa, II, 4.
335 - Ef., II, 2. — A natureza “ aérea” dos anjos foi tema de longa discussão,
inclusive porque alguns tratavam -nos como animais aéreos, isto é, de corpo
aéreo, enquanto outros explicavam que deveriam ser chamados de ‘aéreos’
porque suas operações de materialização, assim como de produção de
luzes e sons, envolviam a condensação ou a movimentação do ar — isto
pelas referências que há na Escritura, e por ser este elemento o mais ma­
leável dos quatro clássicos —, mas sem que se devesse dizer, no entanto,
que assumiam corpos. Santo Tomás atribuía a coloração e a figuração das
nuvens a uma variação de densidade ocorrida no ar, que então gerava tais
efeitos. Na Suma Teológica, o Aquinate aponta que, mediante um fenômeno
natural num meio aéreo, podem -se obter novas imagens ou corpos, e expli­
ca por este mecanismo de variação a possibilidade de, em última instância,
transformar-se uma quantidade (gasosa) de ar em um corpo sólido — o que
é especialmente importante no tratamento de certas passagens da Bíblia.
Dito isto, pode-se melhor com preender a interferência dos anjos no meio
físico mediante um raciocínio analógico. A queda ao chão de um objeto,
m ediante um sopro de vento ou um terremoto, é um processo físico per­
feitamente natural, que tem como causa próxima um agente desprovido de
vontade (concedido, evidentemente, que a Causa Primeira de tudo é Deus),
com o são o vento e o terremoto. Em outro caso, a queda ao chão de um
objeto, mediante um braço que o empurra, tem como causa próxima a von­
tade intelectual do agente, esta imaterial, sem que no entanto esta operação
adquira assim qualquer caráter sobrenatural. Ora, pela analogia com o ato
voluntário humano, tem-se a compreensão acerca das operações do anjo
no meio físico: ele, por meio de sua vontade intelectual, move elementos, os
rarefaz ou os condensa, sem que necessite, como nós, de causas interme­

Santo Tomás de Aquino Sobre os Anjos ■2 2 7


diárias como um braço, pois não tem domínio apenas sobre este com posto
individual (a saber, o corpo). Dá Santo Tomás a entender que o anjo opera
com o nós, mas no âmbito próprio sobre o qual lhe dão domínio as virtudes
da sua forma: o homem, ente voluntário, tem tal forma que guarda dire­
tamente a capacidade de controlar um com posto específ co (ordenando,
por exemplo, ao braço que naturalmente mova outros objetos); já os anjos
guardam a característica de que a sua vontade, imaterial como a nossa, não
opere sobre um único composto, mas sobre algo mais abrangente, isto é,
sobre qualquer parte do meio físico que a Providência lhes ordene alterar. E
é deste mesmo expediente que os anjos caídos se utilizariam para perturbar
fisicam ente um corpo que não lhes pertence. Sobre a relação entre a vonta­
de das substâncias separadas e o meio físico, ver T omás de A quino , Summa
Theologiae, I, 51, a. 2. [n. do t.]
336 - P seudo D ionísio , De Divinis Nominibus, IV, 23.
337 - S anto A gostinho , De Genesi ad Litteram, III, 10.
338 - S ão J oão D amasceno , De Fide Orthodoxa, II, 4.
339 - O r Igenes, Períarchon, i, 5.
340 - S anto A gostinho, De Civitate Dei, XI, 15.
341 - Is., XIV, 12.
342 - Ez„ XXVIII, 12, 13, 15.
343- S anto A gostinho, De Civitate Dei, XI, 14-15.
344 - J o „ VIII, 44.
3 4 5 - IJ o ., III, 8.
346 - S anto A gostinho, De Civitate Dei, IX, 1-2.
347 - Entre os antigos romanos, os deuses domésticos, do lar. [n. do r.]
348 - Entre os antigos romanos, espectros, fantasmas, [ n. do r.]
349 - Entre os antigos romanos, almas dos m ortos que perseguiam os vivos.
[ n. do R.]
350 - Entre os antigos romanos, almas dos m ortos ou dos ancestrais que
eram consideradas e invocadas como divindades, [ n . do r.]
351 - S anto A gostinho , De Civitate Dei, IX, 11.
352 - Cf. acima, cap. XIX, nos 104 ss; cap. I, n° 7.
353 - Mat., VIII, 28.
354 - S ão J oão C risóstomo , Homilia in Mat., XXVIII.
355 -S a b ., III, 1.
356 - P roclo, Elementatio Theologica, Prop. 196. Percebe-se que Santo
Tomás, aqui, tratava o texto mencionado por uma variante de seu título mais
comum. [n . do e.]
357 - Cf. acima, cap. VII, nos 32-36.
358 - S ão G regório M agno , Moralia in Job, XXXII, 23.
359- Ez„ XXVIII, 13.
3 6 0 - Jó, IV, 18.
361 - A ristóteles, Metafísica, XII, 7 (1072b 18-19); 9 (1074b 23-24).
362 - Santo A gostinho , L iber LXXXIII Quaestionum, q. 32.
363 - P roclo , Elementatio Theologica, Prop. 169.

CCXXVIII ■De Substantiis Separatis •S. Thomas de Aquino


3 6 4 - L ib e rd e Causis, II, 25.
365 - P seudo D ionísio , De Divinis Nominibus, I, 5.
3 6 6 - Cf. nota 133. [ n . do r.]
367 - P seudo D ionísio , De Caelesti Hierarchia, IV, 2.
3 6 8 - Como se sabe, Santo Tomás não concluiu a redação do opúsculo, uma
vez que este se interrompe sem refutar a posição — que obviamente não é
a do Aquinate — de que “os demônios são corpóreos". Mas registre-se que,
no extenso corpus thomisticum, o tema não ficou inconcluso, pois o Angéli­
co lhe deu total acabamento em diferentes tratados. Na Suma Teológica, por
exemplo, ele adverte que os anjos são substâncias puramente intelectuais,
e, sendo o inteligir um ato independente do corpo, não será possível que os
anjos estejam unidos essencialmente a nenhum corpo, ainda que o possam
fazê-lo acidentalmente. Cf., T omás de A quino , Summa Theologiae, I, q. 51,
a.2. [n . do t.]

Santo Tomás de Aquino •Sobre os Anjos •2 2 9


Impresso na primavera de 2006,
nas oficinas da Grafitto Gráfica (21) 2568 6597,
no dia dos Santos Isabel e Zacarias
Santo Tomás de Aquino
t

De Substantiis Separatis

SOBRE OS ANJOS
“ (...) Tomás de Aquino soube distinguir entre o neoplatonismo
greco-romano e o greco-árabe, ou seja, entre a metafísica do Líber de
C au sis, a de Alfarabi e Avicena e a do Pseudo Dionísio Areopagita.
Tal distinção histórico-doutrinal é decisiva para a crítica filosófica
de Avicena e de Avicebrão, apontados como os que se desviaram do
espírito metafísico de Platão e de Aristóteles.
“ (...) Com efeito, Tomás de Aquino realiza uma verdadeira síntese
entre Platão e Aristóteles, ao conceber a complementaridade entre o
princípio platônico de participação e o aristotélico do ato e da potência.
O sentido e o alcance dessa complementaridade são proporcionais à
originalidade da descoberta tomista do ser como ato intensivo dos entes.
Para o Doutor Angélico, o ser é o ato de todos os atos e a perfeição de
todas as perfeições.
“ ( ...) Sobre os A njos, que a Sétimo Selo apresenta em excelente
tradução, dirige-se, enfim, ao homem — cujo ser está no limite entre o
tempo e a eternidade. Afinal, de acordo com a filosofia tomista, dentre
todas as criaturas, somente o homem compartilha com os anjos o dom
da espiritualidade. E somente ele retira da meditação sobre os anjos o
sentido transcendente de seu próprio ser.”

Sérgio de Souza Salles


Professor da Universidade Católica de Petrópolis (UCP)
Professor da Faculdade Eclesiástica de Filosofia João Paulo II

S É T IM O S E IO

w w w .e d setim ose lo .co m .b r

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