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Em Beirute, uma noite, estava eu terminando um artigo para O Jornal do Líbano, na confortável biblioteca do Clube
Achar, em Sahet el-Burge, quando de mim se aproximou um cavalheiro desconhecido, de aparência distinta, que, depois
de proferir uma delicada saudação em puríssimo árabe, me perguntou no admirável idioma de Racine:
Respondi-lhe que sim. Era realmente, de minha autoria, esse livro violento mas sincero, de protesto e de revolta
contra os impiedosos perseguidores dos muçulmanos da Ásia.
A meu convite, o desconhecido sentou-se em uma poltrona junto de mim. Depois de pequena pausa, continuou:
— Na minha opinião, El-Kiamat é o estudo mais perfeito e completo já feito sobre a situação atual dos muçulmanos na
Índia e na Rússia. O livro recente de Khuda Bakhsh — Indian and Islamic — é incompleto; Lothorp Stoddard, no seu
Nouveau monde de l’Islã —, não tratou com sinceridade do problema oriental; A. Métin, ao escrever L’Inde
d’aujourdhui, deixou quase esquecida a questão maometana. Meyerhof, Vanbery, Vitor Berard, H. Wiliams, Bevan,
Hyndman, Morrison, Blunt (The future of Islan), Huart e muitos outros são injustos nas suas apreciações sobre a
civilização islâmica na Ásia. O único estudo moderno e perfeito sobre a situação dos crentes é, sem dúvida, El-Kiamat.
Foi exatamente o que eu disse no artigo “O Islã do século XX”, que escrevi para o Journal de l’Université des Anales!
Essa declaração levou-me imediatamente a descobrir que o meu erudito interlocutor era o professor Mustafá Keram,
o sábio admirável, autor de um magnífico livro intitulado Inquietude muçulmana.
— Professor! — exclamei, levantando-me respeitosamente —, permiti que vos felicite, agora que tenho a honra de
vos conhecer pessoalmente. Acompanho, há muito tempo, com o máximo interesse, os vossos estudos sobre o
problema muçulmano. Li o vosso artigo “O futuro do Islã”, publicado em árabe no El-Mahruza, e o meu entusiasmo
pelas vossas ideias é tal, que tomei a liberdade de traduzi-lo para o francês e para o inglês!
— Ignorava — ajuntou o professor Keram — que eram de sua lavra essas traduções admiráveis que excedem em
beleza de estilo, clareza e concisão o meu modesto artiguete. Já tive conhecimento delas, mas não as li...
E, como se assentisse em revelar o fato mais simples e mais natural de sua vida, ajuntou:
— Não as li, meu amigo, porque não sei ler! Sou analfabeto!
A caaba voando para o céu, transformado em condor, não me causaria espanto maior do que me causou aquela
inesperada declaração do grande sábio libanês:
— Sou analfabeto!
Ninguém poderia, realmente, admitir que fosse analfabeto o erudito autor da Inquietude muçulmana!
— Professor!— exclamei. — Estou certo de que um homem do vosso valor moral e intelectual é incapaz de faltar à
verdade ou de chasquear com quem quer que seja! Não posso, porém, acreditar que seja analfabeto um homem que já
leu tantos livros franceses e ingleses!
— Confesso que já li — continuou o professor — muitos livros em francês e em inglês. Sou, porém, incapaz de ler uma
palavra escrita em qualquer um desses idiomas! Sou analfabeto! Nem ao menos sei distinguir o A do B!
Aquela afirmação parecia exprimir um dos maiores absurdos que já me haviam entrado pelo ouvido.
— Sou analfabeto!