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com/2019/
Contra os engodos do imaginário, Jacques-Alain Miller definiu a psicanálise como “um convite
ao sujeito se abstrair da inevitável modalidade do visível e renunciar à imagem pelo
significante” [1]. Essa orientação clínica é crucial na nossa sociedade do espetáculo, e ela se
torna clara quando consideramos o recente fenômeno da “pornografia suicida” (suicide porn).
Essa expressão que faz uma justaposição de sexo e passagem ao ato é muito precisa ao evocar
a mediação digital da pulsão de morte hoje. De acordo com o Urban Dictionary, “suicide porn”
envolve usar a internet para ver “lugares ou objetos perigosos e imaginar-se usando-os para
causar a si mesmo ferimentos ou a morte”. “O sentimento caloroso que isso suscita”, diz o
dicionário, “é psicologicamente mais gratificante que sexual”. É claro, nosso foco no gozo
expõe a falsidade dessa última distinção: o significante “pornografia” está longe de ser uma
mera analogia aqui, ele classifica uma satisfação não psicologizada.
Nesse sentido deveríamos provavelmente ser céticos sobre as tentativas de fazer o Outro
existir que poderiam policiar o problema que a pornografia suicida traz. O Comitê de Ciência e
Tecnologia do governo do Reino Unido respondeu abrindo uma investigação sobre a ligação
entre o uso das redes sociais e a saúde mental dos jovens, algo sobre o qual o Instituto de
Política Educacional já tinha produzido um relatório em 2017. O secretário de saúde do Reino
Unido, Matt Hancock, se encontrou pessoalmente com o CEO do Instagram, Adam Mosseri, a
fim de assegurar respostas da plataforma ao caso de Molly. Enquanto Mosseri fez um número
de sinceros compromissos – por exemplo, as “Sensity Screens” que desfocam imagens de
autoagressão, bem como alertas automáticos das pessoas que procuram por essas imagens
para que os Samaritanos possam ser acionados – essas medidas parecem impotentes frente ao
que alguns teóricos das redes sociais chamam como “governamentalidade algorítmica” [3]. O
conceito foucaultiano de governamentalidade sempre teve o objetivo de ir além dos modelos
centralizados no Estado de poder de cima para baixo, em direção a uma microfísica de poder
disperso e produtivo. Quão mais pertinente isso se torna quando nós nos submetemos
voluntariamente à dataficação pelos likes do Google e do Facebook? Como é claro na área da
alta finança e nos mercados de ações, as transações computacionais têm uma agência
desumana que agora supera de longe a capacidade de qualquer indivíduo de conhecê-las e
controlá-las. O discurso universitário em última análise real-ça o S2 de um saber desacoplado
do S1 que o dominaria. Daí o novo ego algorítmico.
Para retornar à inestimável indicação clínica que o comentário de Miller nos dá, é sem dúvida
apenas o discurso do analista que pode apoiar as tentativas do sujeito de extrair-se da
“inelutável modalidade do visível” [4] a qual tem efeitos mortíferos hoje. Renunciar à imagem
em favor do significante significa arriscar um passo para fora das câmaras de eco algorítmicas
para melhor ouvir a fala do Outro.
[1] Miller, Jacques-Alain, “A imagem rainha”, Lacan Elucidado: palestras no Brasil, Zahar, p. 578
[2] Isso faz lembrar o comentário de Lacan no Seminário 17 sobre a “auto-flagelação”: “Falo da
marca sobre a pele, onde se inspira nessa fantasia, o que nada mais é que um sujeito que se
identifica como sendo objeto de gozo” (Zahar, p. 47)
[3] Ver também Galloway, Alexander e Thacker, Eugene, The exploit: a theory of networks
(Eletronic mediations), Minnesota: University Press, 2007
[4] Essa frase linda foi de fato cunhada por James Joyce em Ulisses.