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By Colin Wright| April 17th, 2019|LRO 145

Capturas do Ego Algorítmico - Colin Wright

Contra os engodos do imaginário, Jacques-Alain Miller definiu a psicanálise como “um convite
ao sujeito se abstrair da inevitável modalidade do visível e renunciar à imagem pelo
significante” [1]. Essa orientação clínica é crucial na nossa sociedade do espetáculo, e ela se
torna clara quando consideramos o recente fenômeno da “pornografia suicida” (suicide porn).

Essa expressão que faz uma justaposição de sexo e passagem ao ato é muito precisa ao evocar
a mediação digital da pulsão de morte hoje. De acordo com o Urban Dictionary, “suicide porn”
envolve usar a internet para ver “lugares ou objetos perigosos e imaginar-se usando-os para
causar a si mesmo ferimentos ou a morte”. “O sentimento caloroso que isso suscita”, diz o
dicionário, “é psicologicamente mais gratificante que sexual”. É claro, nosso foco no gozo
expõe a falsidade dessa última distinção: o significante “pornografia” está longe de ser uma
mera analogia aqui, ele classifica uma satisfação não psicologizada.

As questões levantadas pela “pornografia suicida” tiveram proeminência no Reino Unido


devido ao trágico caso de Molly Russel. Com apenas 14 anos, Molly tirou sua própria vida em
Novembro de 2014 após alguns meses de visualizações de “pornografia de auto-agressão” em
seu celular através da sua conta do Instagram. Infelizmente, o caso de Molly não é um caso
isolado. Em Janeiro de 2018, Ursula Harlow, com apenas 11 anos, também cometeu suicídio
após uma exposição prolongada a sites de pornografia suicida, levando sua mãe a dizer “se eu
pudesse voltar no tempo destruiria o celular dela”. Por trás de uma pretensa autoajuda mútua,
esses sites encorajam os usuários a trocar dicas dos melhores métodos para dar fim à vida.
Muitos sites também envolvem trocar fotos de auto-agressões : selfies chocantes de braços
com cortes pingando sangue recebem comentários apreciativos dos colegas “cortadores”,
juntamente com conselhos úteis sobre como e onde fazerem os cortes [2]. O pai de Molly
acusou o Instagram de “ajudá-la a morrer”, não apenas porque não fez nada para conter a
proliferação desse tipo de site na plataforma, mas também porque os seus algoritmos
garantiram que sua filha ficasse presa em uma armadilha, uma câmera de eco de vozes
sucidas. Ele tem razão! O perfilamento de dados recursivo significa que uma vez que você
procura por esse tipo de site (ou acaba se deparando com ele) o software do Instagram te
direciona pra mais conteúdo dessa mesma coisa, efetivamente interpelando você como um fã
de pornografia suicida. Usar as redes sociais, nesse caso, significa conectar-se em torno de
uma identificação comum com a morte, com cada voz que ecoa dentro de uma bolha fechada
do imaginário. Parece que a busca inicial de Molly por apoio à sua depressão sofreu uma
reviravolta trágica porque os algoritmos amplificaram exponencialmente o eco de sua própria
queixa (precisamente da maneira que Lacan argumentou contra).
Não seria isso uma nova mutação algorítmica do ego? O ego sempre foi um tipo de máquina
iterativa de uniformidade e, como advertiu a referência perspicaz de Freud ao mito de Narciso,
em seu âmago há um efeito mortal de captura pela imagem. Mas a redistribuição digital do
narcisismo parece ter desencadeado seu aspecto mortífero com uma nova ferocidade. Onde
antes o estádio do espelho exigia um Outro simbólico para fixar o eu a uma imagem em uma
imago, há agora pouca ou nenhuma mediação simbólica. Ao invés disso, o ego está delegado
ao Outro computacional cujos algoritmos são programados primariamente para fazer o gozo
circular como um excedente do qual o capital lucra. O resultado é não tanto sujeitos do
significante divididos por alienação, mas consumidores de um gozo ilimitado que os consome.

Nesse sentido deveríamos provavelmente ser céticos sobre as tentativas de fazer o Outro
existir que poderiam policiar o problema que a pornografia suicida traz. O Comitê de Ciência e
Tecnologia do governo do Reino Unido respondeu abrindo uma investigação sobre a ligação
entre o uso das redes sociais e a saúde mental dos jovens, algo sobre o qual o Instituto de
Política Educacional já tinha produzido um relatório em 2017. O secretário de saúde do Reino
Unido, Matt Hancock, se encontrou pessoalmente com o CEO do Instagram, Adam Mosseri, a
fim de assegurar respostas da plataforma ao caso de Molly. Enquanto Mosseri fez um número
de sinceros compromissos – por exemplo, as “Sensity Screens” que desfocam imagens de
autoagressão, bem como alertas automáticos das pessoas que procuram por essas imagens
para que os Samaritanos possam ser acionados – essas medidas parecem impotentes frente ao
que alguns teóricos das redes sociais chamam como “governamentalidade algorítmica” [3]. O
conceito foucaultiano de governamentalidade sempre teve o objetivo de ir além dos modelos
centralizados no Estado de poder de cima para baixo, em direção a uma microfísica de poder
disperso e produtivo. Quão mais pertinente isso se torna quando nós nos submetemos
voluntariamente à dataficação pelos likes do Google e do Facebook? Como é claro na área da
alta finança e nos mercados de ações, as transações computacionais têm uma agência
desumana que agora supera de longe a capacidade de qualquer indivíduo de conhecê-las e
controlá-las. O discurso universitário em última análise real-ça o S2 de um saber desacoplado
do S1 que o dominaria. Daí o novo ego algorítmico.

Para retornar à inestimável indicação clínica que o comentário de Miller nos dá, é sem dúvida
apenas o discurso do analista que pode apoiar as tentativas do sujeito de extrair-se da
“inelutável modalidade do visível” [4] a qual tem efeitos mortíferos hoje. Renunciar à imagem
em favor do significante significa arriscar um passo para fora das câmaras de eco algorítmicas
para melhor ouvir a fala do Outro.

[1] Miller, Jacques-Alain, “A imagem rainha”, Lacan Elucidado: palestras no Brasil, Zahar, p. 578

[2] Isso faz lembrar o comentário de Lacan no Seminário 17 sobre a “auto-flagelação”: “Falo da
marca sobre a pele, onde se inspira nessa fantasia, o que nada mais é que um sujeito que se
identifica como sendo objeto de gozo” (Zahar, p. 47)

[3] Ver também Galloway, Alexander e Thacker, Eugene, The exploit: a theory of networks
(Eletronic mediations), Minnesota: University Press, 2007

[4] Essa frase linda foi de fato cunhada por James Joyce em Ulisses.

Tradução: Arryson Zenith Jr.


Fonte: https://www.thelacanianreviews.com/captivations-of-the-algorithmic-ego/

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