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Alextimia: a cegueira dos sentimentos

Há pessoas que não identificam suas emoções e reagem com sintomas físicos,
como dores e taquicardia. Na infância, não aprenderam a expressar alegria, raiva ou
tristeza.

Revista Scientific American - por Sylvie Berthoz

Quando o engenheiro civil Pedro S., de 29 anos busca descrever, durante uma sessão de
terapia, como se sentiu ao discutir de forma violenta com seu pai, é difícil encontrar as
palavras "Parece que tenho uma pedra no estômago. No momento da briga, sentia um nó
na garganta e a cabeça doía", tenta explicar. "Você acha que ele queria machucá-"o de
propósito? Está com raiva dele?", perguntou-lhe a terapeuta. O paciente enrugou a testa:
"Não sei. O que você quer dizer exatamente com raiva?".

Pedro freqüenta de forma regular as sessões de psicoterapia há algumas semanas. Ele


precisa aprender algo que para a maioria das pessoas é trivial: saber o que sente. Quando
Pedro fala sobre a morte de sua mãe, que ocorreu quando ele era criança, palavras como
"tristeza" e "dor" não saem de sua boca. Mesmo assim, não é indiferente a situações que
provocam algum tipo de emoção: quando perde a linha de pensamento durante uma
apresentação numa reunião de trabalho, por exemplo, deixa transparecer sinais evidentes
de constrangimento: enrubesce, gagueja, transpira. Porém, se alguém lhe pergunta o que
sente nessa circunstância, o engenheiro não consegue explicar. Ele simplesmente não é
capaz de exprimir suas emoções em palavras.

De acordo com estimativas americanas recentes, a cada sete pessoas pelo menos uma
preenche os critérios de um transtorno chamado "alexitimia". O termo vem do grego: a =
não, lexis = a leitura, thymos = ânimo ou disposição. Os homens são os que mais
manifestam o distúrbio. Muitos são tidos como racionais, fechados ou espertos. Mas seus
amigos mais próximos sabem que atrás dessa carapaça se esconde um coração mole.
Não raro, esses indivíduos temem por sua saúde de um modo quase doentio. Se seu
coração de repente dispara de forma violenta e o estômago dói, perguntam-se,
transtornados, o que há de errado com eles. Não é se espantar que não consigam lidar
bem com as reações físicas e se sintam tão ameaçados por elas - afinal, é o sentimento
que as provoca.

 Lágrimas em vez de palavras


O que mais incomoda Pedro é sua inabilidade para se relacionar com as pessoas. Ele
tem pavor de eventos sociais e muita dificuldade para fazer novos amigos. Quando a
conversa gira em torno de temas como afeto, ciúme ou desconfiança, fica desconcertado
e não consegue emitir nenhuma opinião. Se começa uma briga na família, prefere mudar
de assunto ou retirar-se para seu escritório. Apenas nas raras ocasiões em que a tensão
interna se toma insuportável Pedro se derrama em lágrimas ou tem um ataque de raiva.
Muitas vezes, é só nesses momentos que fica claro para aqueles com quem convive que
algo o incomoda. Há poucos anos, pesquisadores do cérebro começaram a estudar as
emoções formadas no órgão do pensamento, mais precisamente no sistema límbico.
Para um sentimento ser percebido de forma consciente, primeiro é preciso que o córtex
frontal (lobo frontal) analise as informações enviadas pelo sistema límbico. Nosso grupo
de trabalho do Instituto Mutualiste Montsouris de Paris descobriu indícios de que, em
indivíduos com alexitimia, os dois hemisférios cerebrais se comunicam de forma
precária. Talvez, por isso, esses pacientes não consigam relacionar as sensações físicas
com os respectivos estados mentais.

A alexitimia não representa a única forma de transtorno no qual indivíduos, apesar de


sentirem algo, não conseguem se conscientizar dessas sensações. Outro exemplo é a
"visão cega", que se manifesta em pacientes com lesões do córtex visual primário. Por
causa de um trauma, por exemplo, essas pessoas deixam de enxergar. De modo
surpreendente, no entanto, reagem de forma inconsciente a estímulos de movimento,
pois o nervo óptico transmite suas informações a outras regiões visuais que, por rotas
alternativas, respondem a movimentos de forma seletiva. Fenômeno semelhante ocorre
no campo do olfato: pacientes que dizem não sentir cheiro conseguem escolher sua
comida preferida com os olhos vendados - logo, pelo odor. Outros pacientes que não
têm sensibilidade nas pontas dos dedos podem segurar um objeto nas mãos e, de forma
inconsciente, fazer a pressão correta. Por analogia à visão cega, os psiquiatras Richard
Lane e Gary Schwartz, da Universidade do Arizona, Estados Unidos, instituíram a
expressão "sentimento cego" para descrever a alexitimia.

É provável que a causa do transtorno se encontre na primeira infância. Um bebê, assim


como o alexitímico, ainda não associa suas emoções a conceitos como medo ou alegria:
eles as percebem apenas de forma física - por exemplo, quando por causa do medo
sentem um nó na garganta ou surgem lágrimas em seus olhos. Só mais tarde as crianças
aprendem a organizar as próprias reações corporais em contextos mais amplos e
reconhecem que outras pessoas têm experiências semelhantes. É nesse momento que
adquire condições para se tornar um indivíduo social e consciente.

Nessa fase, as pessoas de referência (pais ou aqueles que cuidam da criança)


desempenham papel decisivo no processo de desenvolvimento. Ao interrogar, consolar
ou repreender o filho, a mãe costuma utilizar expressões como "você está feliz!", "não
fique triste ..." ou "não seja tão impaciente!". Com essas frases ela dá nome às emoções
e assim, mais tarde, a criança poderá, por si só, identificar seus sentimentos e
compartilhá-los com os outros mais facilmente. As informações migram do sistema
límbico para o córtex frontal, responsável pela organização dos dados em "categorias",
pelo raciocínio e pela linguagem.

O psiquiatra Maurice Corcos, do nosso instituto em Paris, ressalta que as primeiras


trocas entre a mãe e a criança são decisivas para a criação de uma espécie de "banco de
dados dos sentimentos". Se os próprios pais sofrem de alexitimia ou depressão ou têm
personalidade instável, há o risco de proporcionarem associações insuficientes a seus
filhos. Mais tarde, faltarão os vocábulos - e principalmente os sentidos - necessários
para que essas crianças designem emoções para si mesmas e para os outros. Mesmo
quando adultos esses indivíduos controlam suas sensações físicas ainda como uma
criança pequena - incapazes de processá -las e de articulá-as mentalmente.

Pacientes com alexitimia costumam descrever as casas onde moravam na infância como
um local onde os sentimentos desempenharam papel pouco importante. Pesquisas
revelaram que eles, mais do que outros indivíduos, costumam ter um "vínculo inseguro"
com suas mães. Esse termo surge da teoria do vínculo, proposta pelo psicanalista
londrino John Bowlby (1907- 1990) . Já em crianças de 1 ano é possível descobrir
diferenças na relação com a mãe: em um relacionamento seguro, o pequeno reage com
tristeza quando sua mãe sai da sala, mas logo se acalma, como se soubesse que ela
voltará logo. Já a criança com vínculo frágil quase não mostra sinais de dor na hora da
separação. Quando a mãe retoma, cumprimenta-a de passagem, como se a evitasse.
Outra resposta comum é o sentimento de abandono e o protesto veemente. Ao retomo
da mãe, comporta-se de fonna contraditória: busca contato e, em seguida, afasta-se de
novo.

Nos últimos anos, nosso grupo de trabalho analisou, com base em exame de ressonância
magnética funcional, as particularidades do processamento das emoções no cérebro de
pessoas com alexitimia. Para examinar um número suficiente de indivíduos com esse
distúrbio, apresentamos a mais de 400 estudantes universitários homens, questionários
especiais (escala de alexitimia de Toronto) que deveriam ser respondidos por eles. Com
base nos resultados, escolhemos 16 voluntários - oito pessoas de controle e outros oito
participantes que preenchiam os critérios de uma alexitimia. Durante o exame de
ressonância foram apresentadas, a cada paciente, diferentes fotos em seqüência:
imagens neutras, belas paisagens, cenas eróticas, bebês sorridentes e também crianças
chorando, acidentes ou animais perigosos, como cobras.

A atividade cerebral dos participantes evidenciou uma clara diferença entre os dois
grupos: ao contemplar imagens com mensagens positivas, uma região específica do
cérebro de indivíduos com alexitimia - o giro do cíngulo annterior, que faz parte do
sistema límbico - trabalhava mais intensamente do que a mesma área em indivíduos
saudáveis. Diante das imagens negativas, essa região do cérebro de indivíduos com
alexitimia permaneceu calma.

 Emoção compartimentada
O giro do cíngulo anterior está ligado tanto ao sistema límbico (ao qual pertence) quanto
a cada área do córtex frontal que analisa as emoções. Em geral, quanto mais ativo o giro
do cíngulo anteerior estiver, mais intensamente sentimos emoções positivas ou
negativas. Nos pacientes com alexitimia, porém, parece que essa atividade se regula de
forma diferente: eles reagem a estímulos emocionais de fonna muito fraca ou excessiva.

Mas como se chegou a esse mau funncionamento? Em crianças pequenas ainda existe
no cérebro um excesso de sinapses (contatos que possibilitam a troca de informações
entre as células nervosas). Quando aprendemos nos primeiros anos devida a criar
"gavetas", ou seja, a associar sensações físicas a conceitos específicos, as respectivas
sinapses do giro do cíngulo se fortalecem. Já as conexões não utilizadas serão pouco a
pouco eliminadas. Ao fim do processo, restam apenas aquelas que são constantemente
ativadas na associação de uma emoção com sua descrição verbal- por exemplo, "estou
furioso".

Todas as pesquisas até hoje indicam que o giro de cíngulo funciona como uma ponte
entre o sistema límbico e o córtex frontal para a conscientização de emoções. Se sua
atividade não for modulada de forma correta, haverá conseqüências - e não apenas para
o convívio social. Psiquiatras supõem que algumas queixas psicossomáticas também são
provocaadas pela incapacidade de aprender a identificar as próprias emoções e lidar
mentalmente com elas.

Além disso, a alexitimia provavelmente também faz com que esses pacientes sejam
propensos ao uso de drogas. Em termos percentuais, entre os dependentes há mais
indivíduos com o transtorno do que na população em geral. Algumas drogas, como a
cocaína, produzem sentimentos intensos e, talvez, fortaleçam a comunicação entre o
sistema límbico e o córtex frontal de forma tão extrema que até mesmo pessoas com o
distúrbio experimentam emoções mais intensas.

Psicoterapia clássica, utilizada de forma isolada, não costuma ter sucesso, pois seu
objetivo é a troca verbal sobre pensamentos e sentimentos. Como o paciente não
entende seu próprio estado afetivo, falta à relação terapêutica, em geral, profundidade
emocional. Por isso, durante muito tempo a alexitimia foi considerada transtorno
incurável. Hoje, diferentes formas de terapia em grupo têm se mostrado eficazes. O
paciente pode praticar, por exemplo, a representaação teatral de uma emoção com
gestos.

Também válida é a formação de grupos mistos, nos quais pessoas saudáveis descrevem
seus sentimentos em situações típicas. Com eles, os indivíduos com alexitimia
aprendem o que se esconde por trás de combinações de sensações corporais específicas.
A conexão de sensações com cores ou paisagens também ajuda a pessoa a expressar
seus sentimentos.

A pesquisa da alexetimia mostrou que a experiência consciente de sentimentos deve ser


aprendida na primeira idade. O exemplo do enólogo pode ilustrar a intensidade com que
a linguagem exerce influência sobre nossa capacidade de sensação. Para o leigo, as
expressões utilizadas para descrever um bom vinho talvez pareçam, à primeira vista,
sem sentido. Mas se o apreciador da bebida passa a conectar palavras ou noções às
diferentes características de um vinho, descobre, aos poucos, novas sutilezas.

De forma análoga, isso ocorre na criança quando ela aprende a reconhecer seus
múltiplos estados emocionais. É justamente esse processo de aprendizagem que o
paciente alexitímico deve recuperar na terapia. Aos poucos, o espectro das
possibilidades de expressão se amplia, em especial entre aqueles com quem se pode
compartilhar sensações - e, assim, desabrocha a riqueza pessoal de sentimentos vividos
de forma consciente.

Para conhecer mais

Impaired recognition and expression of one's own emotions engages


frontocingulate cortices. S. Berthoz et al. Am J Psych, pág. 961, (159), 2002.
Alextimia

Trata-se da dificuldade para expressar sentimentos.


| Colaboradores | Temas Livres |

Juliana P. Meneguette

Alexithymia é uma palavra com raízes gregas: a partícula a tem um sentido de negação, de
“falta ou ausência”; lex, significa “palavra”; e thymos é “emoção ou sentimento”. Literalmente,
alexitimia pode ser traduzida como sem palavras para sentimento. 

 Na década de 60, os psiquiatras John Nemiah e Peter Sifneos perceberam que alguns
pacientes psicossomáticos mostravam grande dificuldade para falar sobre suas emoções e
sentimentos, dando a impressão de não compreenderem o significado dessas palavras. Sifneos
(1972) criou então a palavra alexitimia para explicar esse comportamento

Esta é uma perturbação que afeta o processamento emocional, da qual resulta a incapacidade
de exprimir as emoções, sob a forma de sentimentos, por intermédio da linguagem. 

Suas características mais salientes são:

(a) dificuldade em identificar e descrever sentimentos; 

(b) dificuldade em distinguir os sentimentos de sensações corporais decorrentes da atividade


emocional;

(c) processos imaginativos limitados e 

(d) estilo cognitivo utilitário, baseado no concreto e orientado para o exterior, também
conhecido como pensamento operacional. 

Estas duas ultimas características são consideradas elementos básicos que evidenciam a
pobreza ou a ausência de fantasias e a preocupação com detalhes pontuais de acontecimentos
externos.

Esses comportamentos vêm sendo descritos na literatura especializada já há algum tempo. Em


1948, Jürgen Ruesch citou pacientes sem imaginação, que usavam ações e canais corporais
para expressar suas emoções, eram falhos na comunicação afetiva e mostravam excessivo
nível de conformidade social. Paul MacLean (1949) escreveu: “deve ser considerado que uma
das notáveis observações sobre o paciente psicossomático é sua aparente inabilidade
intelectual para verbalizar seus sentimentos”. Os alexitímicos são descritos como “robôs
humanos”, portadores de uma espécie de analfabetismo emocional. 
Sua incidência é estimada em 10% na população em geral (Aleman, 2005). Contudo, no Brasil a
alexitimia ainda é relativamente desconhecida, mas no mundo ocidental ela vem sendo
constantemente estudada, existindo diversos instrumentos de medição já traduzidos e
adaptados para vários países com o intuito de facilitar seu diagnóstico.

Embora a alexitimia seja um construto clínico já testado, ela não constitui uma doença
diagnosticada, mas sim um aspecto clínico associado a algum outro problema médico, tal
como Desordem de Stress Pós Traumático, Anorexia Nervosa ou outra desordem psiquiátrico.
Estudos realizados com indivíduos portadores de anorexia nervosa têm encontrado uma
elevada prevalência de alexitimia nos trabalhos publicados, com resultados superiores a 50%
dessa comorbidade. Tais valores são considerados elevados quando consideramos a
prevalência da alexitimia na população geral varia de 10 a 20%, ou menos. Alguns estudos
atuais mostram evidências que possibilitam considerar a alexitimia como uma condição
independente pelo seu caráter de disfunção afetivo-cognitiva, duplamente associada a alguma
condição física-patológica e por danos à vida relacional do indivíduo. 

Ainda não há consenso sobre a etiologia da alexitimia. Existem teorias que a associam a algum
trauma cerebral, a defeitos na formação neurológica, a influências socioculturais e outras que
acreditam numa origem psicológica, como por exemplo, traumas na formação infanto-juvenil,
ou mesmo mais tarde.

Contudo, as teorias e pesquisas mais atuais sobre alexitimia, lançam uma proposta segundo a
qual nos alexítimicos existiria um rompimento na comunicação entre os dois hemisférios
cerebrais: ou seja, uma “comissurotomia funcional”, refletindo uma limitada capacidade de
coordenar e integrar atividades inter-hemisféricas. 

Mesmo que alguma causa orgânica possa contribuir para a alexitimia, a perspectiva da maioria
dos autores dessa área é a de que esse transtorno seja desenvolvido; isto é, ele surge a partir e
durante as interações da pessoa com o ambiente, principalmente no seu período de formação.
Segundo essa proposta, o alexitímico não tem um problema anatômico ou de arquitetura
cerebral, mas sim uma disfunção cerebral aprendida, como acontece, por exemplo, com outras
desordens afetivas. Ao nascimento nosso cérebro não está desenvolvido por igual, sendo
necessários muitos anos de desenvolvimento pós-natal até que o indivíduo se forme
psiquicamente. Esses anos exigem a participação de outras pessoas para a formação do futuro
adulto, as quais ajudam a criança a aprender a identificar e regular suas emoções. Isso é
primariamente executado pela mãe ou por quem que desempenhe esse papel, sendo
necessário estar “sintonizado” com as necessidades da criança. Percebe-se, então, que a
maturação cerebral e a formação individual relacionam-se a processos orgânicos e
biopsicossociais podendo ser alteradas caso haja desarranjos em algum deles.

As emoções necessitam de uma sequência para se tornarem processos de sentimentos e esta


sequência não ocorre no alexitímico. Não é possível afirmar que ele não tenha emoções, mas
sim que não é viável realizar a passagem emoção – sentimento. Nele, o circuito neural que
permite a autoconsciência emocional (percepção consciente das sensações subjetivas que
acompanham as emoções) não é completado de forma satisfatória, resultando num circuito
que não permite a regulação (experienciação e expressão) emocional adequada. Essa
deficiência impede a geração do sentimento consciente e de um processo cognitivo-
experiencial. Não havendo geração de sentimento, não há também a possibilidade de seu
cultivo. Instala-se então o círculo vicioso que pode trazer prejuízos psíquicos a esses pacientes
e levá-los a procurar ajuda.

Juliana P. Meneguette

Para referir:

Meneguete J - Alexitimia in. PsiqWeb, Internet - disponível em http://www.psiqweb.med.br/,


2012.

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