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RESUMO: Desde o início dos anos 1990, o Bra- ABSTRACT: Since the early 90s, Brazil has
sil vem implementando novos modos de gestão been building a new water resource manage-
das águas, tendo como princípios básicos a des- ment system, based on the following principles:
centralização em nível de bacia hidrográfica, a the decentralization to the river basin level, the
participação dos envolvidos e/ou interessados participation of stakeholders within basin com-
na gestão das águas, no âmbito de colegiados mittees and water councils, and the concept of
de tomada de decisão, e a valorização da água water as an economic good. The water resourc-
como bem público de valor econômico. Esse es management can be very complex in the case
processo de descentralização pode assumir of national river basins, i.e. basins where feder-
grande complexidade, quando se trata de baci- al and state management agencies and basin in-
as nacionais, isto é, bacias que demandam a ação stitutions are to interact in integrated manner.
integrada e harmônica da União, dos estados e This article aims at analyzing the current de-
dos organismos de bacia. Este artigo tem por centralization process in national river basins
objetivo principal analisar o processo atual de in Brazil, following principles and concepts of
descentralização em bacias nacionais no Brasil, public policy literature and, particularly, those
a partir de conceitos e princípios que regem e of water resources policy and management. We
determinam a atuação do Estado nas políticas seek principally to address this issue to more
públicas, em geral, e na política de recursos in-depth studies to be carried out later, since
hídricos, em particular. Busca-se, sobretudo, en- national river basin management has revealed
dereçar esse tema para análises futuras mais the complexity and challenges in question, and
aprofundadas, tendo em vista a sua complexi- has been understood in a different way by sev-
dade, desafios e as profundas diferenças no seu eral stakeholders.
entendimento. KEY-WORDS: Water resources, management,
PALAVRAS-CHAVE: Recursos hídricos, gestão, decentralization, national basins, challenges,
descentralização, bacias nacionais, desafios, Brasil Brazil
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INTRODUÇÃO
Descentralização na política de recursos hí- nejamento e gestão – princípio estabelecido na
dricos significa a institucionalização, em nível lei federal 9.433/97 e leis dos estados da fede-
local, de condições institucionais, técnicas, fi- ração – em referência ao fenômeno geomorfo-
nanceiras e organizacionais para a implemen- lógico e geográfico de área de drenagem que
tação das tarefas de gestão, conforme atribui- forma uma bacia, e condiciona a sua gestão e
ções designadas na lei de recursos hídricos, ga- planejamento, seja no que concerne à quanti-
rantindo continuidade no fluxo da oferta dos dade ou à qualidade de suas águas.
bens e serviços. O conceito de local refere-se A descentralização de uma política públi-
aqui à bacia hidrográfica como unidade de pla- ca depende de diversos fatores, o principal
REGA – Vol. 2, no. 1, p. 53-72, jan./jun. 2005
Economia e Sociedade mediante novos acor- mentos para se auto-governar, enfrentar e re-
dos institucionais, requerendo a existência de solver os problemas agendados. Portanto, este
leis, normas e valores, bem como, de proces- sistema, mantendo e aprofundando a ordem
sos inovadores de inserção, integração, coor- democrática, não se restringe à simples capa-
denação e de gestão pública. Espera-se, desse cidade estatal de governar. Ele envolve, tam-
conjunto de processos, a organização das inte- bém, a capacidade do governo de articular e
rações coletivas que gere condições propícias institucionalizar a política pública e, nela, os
para uma ação corporativa entre os diferentes esforços de múltiplos atores que intervém, ou
atores e agentes sociais, de natureza pública e devem intervir, na gestão da água; atores estes 55
privada, para assegurar, em bases diferentes, que buscam conciliar seus interesses e orien-
os bens públicos demandados pela sociedade. tar suas ações em direção a objetivos socialmen-
Desta forma, as demandas democráticas cana- te aceitáveis.
lizaram as reivindicações em direção à cons- O desafio sobre qual temos que refletir é
trução de um novo padrão de políticas públi- quanto ao papel e capacidade do Estado e de
cas, com participação, transparência e descen- suas políticas públicas de gerar, implementar
tralização, para conformar um novo Estado. e manter mecanismos institucionais capazes de
No Brasil, essas demandas resultaram na Re- assegurar a governabilidade e a governança
forma Constitucional de 1988, e como decor- adequadas, uma vez incorporado o conjunto
rência, entre outros acordos institucionais de variado de entidades e atores, no seio das ins-
política pública, na institucionalização de Po- tituições de gestão pública, de maneira efetiva
lítica Nacional de Recursos Hídricos, por meio e com poderes específicos. Os principais re-
da Lei Federal nº 9.433, de Janeiro de 1997. quisitos da governabilidade e governança são
Essa política reflete e sintetiza, de maneira os seguintes:
significativa, o conceito e princípios que pre- capacidade técnica e administrativa das
sidiram a reconstrução das políticas públicas, entidades/ atores do sistema (governo,
como parte dos processos de democratização usuários e organizações civis);
da articulação política e econômica da socie-
dade. E nela ficou instituído que a política bra- capacidade econômica, financeira e téc-
nica para conceber, construir, manter e
sileira de recursos hídricos é descentralizada,
administrar a infra-estrutura hídrica e,
pela amplitude e relevância que organizações
governamentais, empresariais (usuários) e or- principalmente, os serviços de abasteci-
mento de água, esgotamento sanitário e
ganizações sociais de uma bacia hidrográfica,
saneamento ambiental. Não há possibi-
unidade de planejamento e gestão, assumem
na definição e implantação de políticas e na lidade de uma política de recursos hídri-
cos ser eficiente e eficaz, quando as polí-
articulação de ações públicas.
ticas públicas dos setores usuários são
Fica evidenciada a evolução da relação Esta- ineficientes e não respondem às deman-
do/Sociedade, revelada pela política pública de das econômicas e sociais;
recursos hídricos, de estruturas de representa-
capacidade política (gestão) para coor-
ção centralizadas e monopólicas de governo,
para sistemas policêntricos, nos quais os pro- denar ações e concertar interesses.
cessos decisórios de concepção e de implanta- O conceito de governabilidade das políti-
ção da ação pública em recursos hídricos apre- cas públicas, no novo formato, deixa então de
sentam dispersão espacial e setorial de poder, ser um monopólio exclusivo de governos, para
para incorporar interesses diferenciados. incorporar atores/entidades da sociedade di-
retamente envolvidos e/ou interessados nos
resultados e na condução dessas políticas. O
Governabilidade em recursos hídricos exercício efetivo do papel de cada um desses
A Governabilidade do Sistema Político e do atores, governamentais e não-governamentais,
Sistema de Gerenciamento de Recursos Hídri- requer a cooperação e participação, bem como
cos, naquele inserido, se constitui em um sis- a definição clara do papel dos atores no siste-
tema de leis, normas, regulamentos e instru- ma de gestão. E é nesse processo de dedicar
REGA – Vol. 2, no. 1, p. 53-72, jan./jun. 2005
conservação dos recursos hídricos e do ecos- vez, além dos seus objetivos de racionalização
sistema da bacia. do uso da água e de estímulo a não poluir, é o
O enquadramento visa determinar níveis instrumento de gestão que permite o aporte
de qualidade ao longo do tempo nos diversos de recursos para financiar o programa de in-
trechos da malha hidrográfica, em função dos vestimentos da bacia.
usos e dos programas e metas para a consecu-
ção destes objetivos. As definições nele pre- Estrutura Político-Institucional do SINGREH
vistas afetam diretamente a outorga, que se
dará pelas vazões de diluição, as quais são, por
Um aspecto fundamental da legislação bra-
sileira de recursos hídricos foi a criação de um
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sua vez, é função dos níveis de qualidade es- sistema institucional que possibilita à União,
tabelecidos. aos estados, aos municípios, aos usuários de
A outorga é um instrumento que tem como recursos hídricos e à sociedade civil de atuar,
objetivo assegurar o controle quantitativo e de forma harmônica e integrada, na resolução
qualitativo dos usos da água; é o direito de aces- dos conflito, e na definição das regras para o
so à água, ou a habilitação para o seu uso. A uso da água em nível de bacia hidrográfica.. O
garantia do uso ou da disponibilidade da água Sistema Nacional de Gerenciamento de Recur-
se efetiva através do exercício da gestão inte- sos Hídricos (SINGREH) é, portanto, o arca-
grada dos recursos hídricos em nível de bacia bouço institucional para a gestão descentrali-
hidrográfica. Para sua implementação, a ou- zada e compartilhada do uso da água no Bra-
torga demanda do sistema de informações sil, do qual fazem parte o Conselho Nacional
dados relativos à disponibilidade hídrica e de de Recursos Hídricos (CNRH), a Secretaria de
qualidade, os quais, juntamente com o cadas- Recursos Hídricos (SRH/MMA), a Agência
tro de usuários, constituem insumos funda- Nacional de Águas (ANA), os Conselhos de
mentais para o seu exame e concessão. Recursos Hídricos dos Estados (CERHs), os
Sobre o conjunto de usuários submetidos à órgãos gestores federais e estaduais, os muni-
exigência da outorga é estabelecida a cobran- cípios, os Comitês de Bacia e as Agências de
ça pelo uso dos recursos hídricos. Esta por sua Água (Figura 1).
com os estados para o gerenciamento dos re- à resolução, à negociação e à superação dos
cursos hídricos de interesse comum; da mes- problemas e das lacunas existentes nos arca-
ma forma, as leis estaduais estabelecem que os bouços jurídico-legais. Esses ambientes são for-
estados deverão se articular com a União, ou- mados pela trama de múltiplos fatores, dentre
tros estados e municípios para o aproveitamen- os quais são decisórios:
to, controle e monitoramento dos recursos a convergência de objetivos;
hídricos de interesse comum.
o entendimento por todos os atores das
Porém, nenhum texto legal delineia ou de-
talha a forma como deve se dar essa articula-
questões e desafios envolvidos; 61
ção em bacias hidrográficas nacionais, seja no a criação de laços de confiança através
de um processo de gestão ético, transpa-
tocante aos instrumentos de gestão (outorga,
rente e democrático, que conduza à equi-
fiscalização e cobrança) ou aos organismos de
bacia (relação entre o comitê do rio principal dade, racionalidade e eficiência na toma-
da de decisões; e
e os comitês de rios afluentes, sob jurisdição
federal ou estadual). a construção de um sentido de identida-
Ou seja, a implantação e operacionalização de da bacia, um sentido de unidade de
atuação harmônica, de co-responsabili-
do sistema de gestão e seus instrumentos em
dade e co-dependência.
bacias nacionais – com vistas à recuperação,
proteção, conservação e uso racional dos re- A criação desse ambiente de confiança e con-
cursos hídricos – não é uma tarefa fácil. Faz-se senso pode ser abordada por intermédio de um
necessário a concepção de estratégias opera- processo de construção de um “pacto” entre
cionais para tornar possível a aplicação dos todos os atores sociais relevantes da bacia, que
princípios, conceitos e instrumentos instituí- consiste no compromisso de tornar realidade
dos nas leis das águas vigentes, federal e esta- os princípios e objetivos previstos na legislação.
duais, superando as incompatibilidades jurídi- Tal iniciativa, em bacias nacionais, requer a exis-
co-administrativas e suprindo as omissões le- tência do comitê do rio principal (sob jurisdi-
gais, mediante processos de negociação entre ção federal) enquanto instância principal de
as partes envolvidas e preservando e aperfei- integração do planejamento e da gestão da ba-
çoamento ao fundamentos da Política. cia hidrográfica na sua totalidade.
estaduais no exercício de seus poderes de po- tadual (órgãos estaduais de recursos hídricos)
lícia das águas, sobretudo, quanto à harmoni- e o comitê da bacia hidrográfica (comitê da
zação de critérios e procedimentos para a im- bacia do rio principal e, eventualmente, comi-
plantação dos sistemas de outorga, fiscalização tês dos afluentes).
e cobrança pelo uso de recursos hídricos. Por- Como representado na figura 2, abaixo, o
tanto, ele requer dos Estados a criação de ca- Convênio de Integração constitui importante
pacidade operacional de seus sistemas de ges- ferramenta de construção do pacto federativo
tão, ou seja, é necessário conferir prioridade, para a gestão integrada de bacias compartilha-
62 disposição e decisão política quanto à implan- das, pois articula tanto os entes federados e
tação, fortalecimento e/ou reestruturação dos seus órgãos técnicos responsáveis pela gestão
Sistemas Estaduais de Gerenciamento de Re- de recursos hídricos quanto os comitês de ba-
cursos Hídricos, em especial no que concerne cia que, por sua vez, são constituídos pelas es-
aos órgãos gestores de recursos hídricos. feras governamentais (União, Estados e Muni-
O pacto de gestão envolve, ainda, o comitê cípios) e não-governamentais (usuários e or-
da bacia do rio principal por constituir-se am- ganizações da sociedade civil).
biente de negociação e consensos, de impor- O apoio aos Estados deve ser objeto de con-
tantes questões relativas à operacionalização vênios específicos de cooperação a serem fir-
da gestão em nível de bacia hidrográfica, so- mados entre a ANA e cada um dos Estados in-
bretudo aquelas que demandam atuação con- tegrantes da bacia. Prevê-se ainda, no escopo
junta com os órgãos gestores tais como a co- desses convênios de cooperação, o estabeleci-
brança pelo uso da água e a criação da agên- mento e integração de normas, critérios e pro-
cia de bacia. É por essa razão que o Convênio cedimentos que permitam o uso adequado e
de Integração, instrumento de operacionali- eficaz do instrumento de delegação de com-
zação do pacto de gestão, é firmado entre os petências da ANA para os órgãos gestores es-
gestores do poder público federal (ANA), es- taduais.
O Convênio de Integração para a gestão
integrada de uma bacia nacional deve assim
ser estabelecido caso a caso, de modo a se ade-
quar à diversidade regional brasileira, às capa-
Figura 2 - Interação de atores no cidades técnicas e institucionais dos sistemas
processo de gestão da bacia: o estaduais envolvidos e à dinâmica sócio-políti-
pacto de gestão pela água. ca da bacia hidrográfica em questão. Por essa
Fonte: Agência Nacional de Águas,
2001.
Pereira, D. S. P.; Formiga-Johnsson, R. M. Descentralização da gestão dos recursos hídricos em bacias nacionais no Brasil
QUADRO 1
Descentralização estratégica em bacias nacionais:
comitês de bacia e estágio de implementação do Sistema de Gestão de Recursos Hídricos
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gestão. A ampliação do seu processo organi- atores da bacia, condição indispensável para
zativo no âmbito do sistema nacional de ges- assegurar eficácia na representação, e na re-
tão – incluindo, portanto, a União (ANA, Se- presentatividade.
cretaria Nacional de Recursos Hídricos) e o E assim, sucessivamente, foram iniciados
Estado de Minas Gerais – segue os mesmo outros processos de descentralização estraté-
objetivos de implementação dos instrumen- gica da gestão de bacias nacionais considera-
tos de gestão em bacias nacionais. O princi- das prioritárias, indicadas no quadro 1, apre-
pal resultado desse processo até agora con- sentado anteriormente. Esses processos pionei-
66 cerne à delegação da função exclusiva da ros permitiram também a identificação de al-
União – a outorga em rio de domínio da guns desafios, discutidos ao longo das próxi-
União – aos Estados de São Paulo e Minas mas seções, que deverão ser superados para
Gerais, reconhecendo assim a capacidade tornar efetiva a gestão integrada e descentrali-
operacional e técnica dos seus órgãos gesto- zada de bacias nacionais.
res (Departamento de Águas e Energia Elé-
trica-DAEE e Instituto Mineiro de Gestão de
Águas-IGAM, respectivamente). Formação e capacitação dos atores:
órgãos gestores
A implementação dos novos modos de ges-
tão na Bacia do rio São Francisco, situada em O sucesso da descentralização da gestão de
grande parte no semi-árido brasileiro, tem sido bacias nacionais, no âmbito da implantação do
bastante diferenciada das experiências indica- Sistema Nacional de Gerenciamento de Recur-
das acima, de bacias nacionais ricas, úmidas, sos Hídricos (Figura 1), exige das instituições
urbanizadas e industrializadas da região sudes- integrantes o compromisso e a responsabiliza-
te (Christofidis, 2001).6 De fato, o essencial do ção pelo desempenho de seus papéis em suas
esforço para aquela bacia concerne à criação respectivas esferas de atuação (AGÊNCIA NA-
e instalação do comitê de bacia, um gigantes- CIONAL DE AGUAS, 2003). Nesse processo,
co processo de mobilização de atores locais ao cabe destacar o papel dos órgãos gestores, fe-
longo dos anos 2001 e 2002, envolvendo sete deral e estaduais, porque cabe a eles apoiar a
unidades da federação (AGÊNCIA NACIO- implantação do sistema como um todo, além
NAL DE AGUAS, 2002b, 2003 e 2004).7 Foi no de implementar os instrumentos de gestão em
decorrer dessa experiência que uma importan- nível de bacia hidrográfica, sobretudo a outor-
te lição foi aprendida: a criação de comitê deve ga de direitos de uso e sua fiscalização. Pela
ser precedida do conhecimento prévio das con- vinculação, no Brasil, da cobrança pelo uso da
dições da bacia e de seus principais usos e usu- água com a outorga, cabem também aos ór-
ários das águas, mediante processo de regula- gãos gestores, competências compartilhadas
rização de usos dos recursos hídricos. Um dos com os comitês de bacia para a implantação
problemas encontrados quando da criação do de sistemas de cobrança e para a criação de
comitê de São Francisco foi justamente a insu- agências de bacia.
ficiência do conhecimento e identificação dos O sucesso do novo sistema de gestão requer,
portanto, estruturas gestoras de recursos hídri-
cos implantadas, fortes e em funcionamento,
com competência técnica e gerencial compatí-
6
Com uma superfície de 631mil km², a Bacia do São Francis-
vel com as suas novas responsabilidades de ges-
co compreende o Distrito federal e seis unidades da federa- tão. Um exemplo particularmente ilustrativo
ção: Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Sergipe, Alagoas e concerne à criação da ANA, em nível federal,
Goiás, 503 municípios e 12,5 milhões de pessoas. que deu um grande impulso no movimento de
7
Na Bacia do Paraíba do Sul, o CEIVAP precedeu a criação implantação da política nacional de gestão das
da ANA. Nas Bacias Piracicaba-Capivari-Jundiaí, a criação águas e representa uma mudança significativa
do comitê sob jurisdição federal não demandou grandes es- no equacionamento dos problemas hídricos
forços por parte da ANA, diante do importante capital social brasileiros. Em nível estadual, a criação da agên-
da bacia, traduzido institucionalmente pelo Consórcio Inter- cia de águas do Estado do Ceará (COGERH),
municipal (1991) e o Comitê Paulista (1994). em 1994, é simbólica da criação e desenvolvi-
Pereira, D. S. P.; Formiga-Johnsson, R. M. Descentralização da gestão dos recursos hídricos em bacias nacionais no Brasil
mitês aprovar o plano da bacia, todavia trata- dição indispensável à participação qualificada
se de um instrumento técnico de grande com- e à democratização do processo decisório
plexidade. No caso em tela, a discussão apai-
xonada do plano, motivada por posições po- O saber técnico a serviço
líticas contrárias ao projeto de transposição da gestão descentralizada
de águas para outras bacias do semi-árido
nordestino, e da desinformação de grande A informação e capacitação dos atores dire-
parte de seus membros quanto aos conceitos tamente envolvidos no processo decisório re-
68 básicos que regem o planejamento e a gestão querem, dentre muitas questões, a existência
do conhecimento técnico sobre o objeto de
dos recursos hídricos, redundou em altera-
ções técnicas da proposta original, compro- decisão e, sobretudo, sua disponibilização em
metendo o produto final. A principal polê- conteúdo e forma adequados aos diferentes
mica sobre o projeto da transposição reside atores do processo. O saber técnico e sua apro-
na decisão política sobre a alocação do volu- priação por parte dos decisores – sobretudo
me dos recursos públicos disponível para a no âmbito dos colegiados – são, portanto, con-
implantação do projeto, francamente escas- dicionantes de processos decisórios democrá-
so, face à necessidade global de investimen- ticos, eficazes e tecnicamente qualificados.
tos, para o financiamento do projeto da revi- Muitas bacias brasileiras dispõem, hoje, de
talização da bacia, por exemplo. É sabido que considerável conhecimento sobre seus proble-
a disponibilidade hídrica, como é de conhe- mas e propostas de solução. Contudo, rara-
cimento de muitos, não representa um impe- mente esse saber técnico é plenamente utili-
dimento ou problema para a execução da zado nos processos decisórios, mesmo porque
transposição, como demonstrado no Plano de é ainda costume não tratá-lo de forma ade-
Recursos Hídricos da Bacia do São Francisco quada ao processo de tomada de decisão en-
(AGÊNCIA NACIONAL DE AGUAS, 2004). volvendo atores não-técnicos. Este é, sem dú-
Mesmo em comitês de bacia mais ativos, vida, um dos grandes desafios enfrentados
observa-se significativa assimetria no processo atualmente na gestão das águas no Brasil, pois
decisório entre os diferentes setores ali repre- superá-lo implica inclusive em mudanças na
sentados. Um bom exemplo foi o processo de cultura ainda predominante de produzir in-
implementação da cobrança na Bacia do rio formações qualificadas para ambientes pre-
Paraíba do Sul, ao longo dos anos 2001 e 2002. dominante técnicos.
Pela importância dos interesses em jogo, esse Um exemplo positivo do saber técnico à
processo permitiu identificar os atores mais serviço da gestão descentralizada foi a renova-
atuantes na bacia, sua postura em relação à ção da outorga do Sistema Cantareira, no Es-
cobrança, sua organização e liderança bem tado de São Paulo, que transpõe águas da Ba-
como suas capacidades propositivas (UFRJ, cia do rio Piracicaba, para o abastecimento
2002a e 2002b; Formiga-Johnsson e al., 2003). público de parte da Região Metropolitana de
São os agentes privados, usuários das águas – São Paulo-RMSP, executado pela empresa es-
em particular os usuários industriais e as em- tadual de águas e esgotos (SABESP). Foi um
presas do setor elétrico – que demonstraram processo decisório complexo, devido aos inte-
maior capacidade organizativa imediata para resses conflitantes em jogo entre a região be-
a questão, inclusive para a defesa dos seus in- neficiada (RMSP) e a bacia doadora (Piracica-
teresses no processo de negociação. Pode-se ba), que desde os anos 1980 tem se mobiliza-
afirmar que foram eles os mais mobilizados e do em torno dessa questão. A precisão das in-
os mais propositivos durante todo o processo formações técnicas foi de suma importância
de discussão e negociação. para a solução de compromisso encontrada
A capacitação dos membros dos comitês de entre as partes, que parece ter sido positiva
bacia, sobretudo dos setores tradicionalmen- para ambos os lados do processo de negocia-
te mais periféricos no processo decisório, cons- ção. É o saber técnico e a negociação política
titui, portanto, o maior desafio da gestão par- a serviço da resolução de conflitos em ambi-
ticipativa em bacias nacionais. Trata-se de con- ente complexo.
Pereira, D. S. P.; Formiga-Johnsson, R. M. Descentralização da gestão dos recursos hídricos em bacias nacionais no Brasil
do acesso de todos à água, para o consumo Podemos, portanto, afirmar que, em que
humano e o desenvolvimento de atividades pesem os princípios, fundamentos e instru-
produtivas, bem como a sua utilização racio- mentos previstos na Lei 9.433 e a própria cria-
nal e integrada com vistas ao desenvolvimento ção da Secretaria de Recursos Hídricos e da
sustentável. Ele deve ser capaz de identificar e Agência Nacional de Águas, a política pública
orientar, com parcimônia e eficácia, os dife- de recursos hídricos no Brasil carece ainda de
rentes atores e interesses em torno do uso e um referencial que lhe garanta rationale e con-
da gestão da água. Esse referencial deve ainda duza ao entendimento consensual de que esta
70 constituir-se em ferramenta para a conscienti- política é um processo complexo e que englo-
zação e exercício técnico-político dos atores ba ao mesmo tempo caráter racional, ambien-
nos aspectos ligados ao seu comprometimen- tal, ético e cívico (Pereira, 2000).
to ético com a causa da justiça no acesso à água, A racionalidade da política de recursos hí-
tanto na sua alocação para o desenvolvimento dricos determina que a base de suas decisões
sustentável e sustentado, quanto na recupera- deve estar assentada em estudos e pesquisas
ção e preservação hidro-ambiental dos ecos- científicas, bem como em processos contínu-
sistemas das bacias hidrográficas. os de monitoramento e avaliação, especialmen-
Portanto, um referencial teórico coerente te no que concerne às condições da disponibi-
e consistente deve possibilitar a compreensão lidade do recurso hídrico e aos resultados e
adequada acerca dos aspectos políticos, soci- impactos dos programas, projetos e atos regu-
ais, econômicos e ambientais em torno dos latórios oriundos da Política de Recursos Hí-
objetivos principais da política de gestão dos dricos. Baseando-se em indicadores científicos,
recursos hídricos e de como alcançá-los de for- as decisões são, ou devem ser, tomadas e pac-
ma democrática, descentralizada e justa. Isso tuadas no âmbito do Sistema Nacional de Ge-
significa que esse referencial deve ser capaz de renciamento de Recursos Hídricos-SINGREH.
articular o conhecimento científico próprio do Por ter caráter policêntrico, descentralizado e
setor de recursos hídricos com os conhecimen- heterogêneo, conforme analisado ao longo
tos de outras ciências, tais como a economia, a deste artigo, o SINGREH confere à política de
ciência política, a sociologia e a administração recursos hídricos particularidades e densida-
pública. Trata-se inclusive de condição para des que requerem processos sofisticados de
amenizar a intransigência do cientificismo que coordenação e gestão, nem sempre assimila-
domina a política de recursos hídricos no Bra- dos adequadamente no setor de recursos hí-
sil, o qual constitui condição necessária, mas dricos. Esta questão nos remete a outra com-
não é suficiente para a efetividade e integrida- plexidade e especificidade do setor que é cru-
de desta política (Formiga-Johnsson, R.M. e cial mas extrapolam os seus limites de atuação,
P.D. Lopes (org.), 2003).8 isoladamente: embora seja o objeto principal
da política, a alocação dos recursos hídricos e
a resolução de conflitos, suas ações, bem como
seus resultados refletem-se, também, nas polí-
8
Essa constatação já vem inclusive despertando interes- ticas setoriais, relativas aos setores usuários do
ses de acadêmicos e profissionais oriundos ou interessa- recurso hídrico como as políticas de saneamen-
dos por abordagens próprias das ciências sociais e huma- to, irrigação, hidroeletricidade, navegação, etc.
nas. Dentre desse universo, destaca-se o Projeto Marca Portanto, a integração e a complementarida-
d’Água (www.marcadagua.org.br), criado em 2001 com o de entre estas políticas é, ou deve ser, uma pau-
objetivo de acompanhar e analisar o desenvolvimento do ta de trabalho constante, e a racionalidade téc-
novo sistema de gestão das águas no Brasil, sobretudo os nica um pressuposto.
organismos de bacia. Trata-se de um projeto multidiscipli-
nar, comparativo (entre cerca de 20 bacias hidrográficas) e O caráter ético da política tem o endereça-
de médio prazo (de 5 a 10 anos). Ele tem como premissa a mento geral e comum de todas as políticas
crença de que outros fatores, além daqueles estritamente públicas do Estado moderno, que consiste no
técnicos, têm um impacto decisivo nesse processo de trans- compromisso e responsabilidade moral com a
formação político-institucional e podem variar tanto regio- justiça social no ato administrativo que os ato-
nalmente quanto temporalmente. res assumem, cotidianamente, em nome das
Pereira, D. S. P.; Formiga-Johnsson, R. M. Descentralização da gestão dos recursos hídricos em bacias nacionais no Brasil
entidades que representam. Toda política pode cia e a eficácia no uso deste recurso ambiental
e deve ser melhorada, a partir de avaliações. encerra moralidade, justiça social, preservação,
Contudo, ainda que a política de recursos hí- conhecimento científico e participação social,
dricos seja considerada eficiente e eficaz, ha- como condições de continuidade da vida.
verá sempre um descontentamento amplo, O caráter cívico da política de recursos hí-
principalmente da sociedade, enquanto hou- dricos está intimamente integrado tanto à sua
ver poluição dos cursos de água e população forma de implementação (sistêmica, participa-
sem acesso à água potável. tiva e descentralizada), quanto ao seu objeto
O caráter ambiental da política de recursos (a água, direito de todos), ou ainda à sua polí- 71
hídricos é a dimensão que a diferencia das tica (obrigação exclusiva do Estado). Portan-
demais políticas. Parte do princípio de que a to, a eficácia da política deve ser medida, tam-
água disponível no planeta terra é constante bém, pela sua capacidade de concretizar os
em quantidade. Todavia, o consumo e a polui- direitos sociais básicos. Como garantidora de
ção crescem, exponencialmente, devido ao direitos sociais e ambientais essenciais, a polí-
crescimento da população e às mudanças cul- tica de Estado de recursos hídricos apresenta-
turais e tecnológicas. Por outro lado, recursos se, ao mesmo tempo, como uma ação regula-
financeiros não são aportados com o mesmo tória e de disponibilização de bem essencial
ritmo e intensidade para a recuperação e pre- para garantir qualidade de vida, saúde, desen-
servação dos mananciais. Portanto, a eficiên- volvimento e o pleno exercício da cidadania.
Referencias
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MMA:ANA. 99p.
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Dilma Seli Pena Pereira
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