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Reformas nacionais, conflitos locais: aprendendo com a experiência

boliviana de reforma do setor de recursos hídricos∗


Matheus Valle de Carvalho∗∗

Resumo
“A crise dos RRHH é de governança” afirma o GWP depois da guerra da água em
Cochabamba. Conflitos de gestão deste bem se relacionam assim com questões técnicas,
sociais, políticas e culturais. A crescente intensificação do uso de RRHH aumenta a pressão
sobre os mesmos e salienta dessa forma a interdependência setorial. A análise de governança
mede a capacidade destes setores de promover um aproveitamento sustentável que permita
usos múltiplos e conservação dos ecossistemas. A Bolívia deu início recentemente a um
processo de reforma setorial paralelamente a uma ampla reforma institucional: a criação de
um novo estado plurinacional baseado na cosmologia indígena de mundo em suas dimensões
místicas, territoriais e sócio-culturais. A questão da governança da água adquire aí uma
complexidade especial pelos diferentes registros culturais em jogo. O presente artigo propõe
uma releitura crítica dos processos de reforma setorial através de uma análise legal e
institucional, e também política e sociológica, mostrando os impasses e perspectivas da
experiência boliviana.

Palavras-chave
Bolívia, reforma do setor de recursos hídricos, normatividade intercultural

Introdução
“A crise da água é de governança” assevera o Global Water Partnership pouco depois dos
eventos que ficaram conhecidos como a guerra da água de Cochabamba na virada do milênio.
A afirmação sugere que conflitos de gestão deste bem se relacionam tanto com questões
técnicas, como também culturais, sociais e políticas. Quando se fala em governança ou gestão
da água, parece importante separar conceitualmente dois níveis ou momentos distintos: água
como recurso hídrico (águas superficiais e subterrâneas) e como serviço (água e saneamento,
irrigação, etc.). A expressão governança da água tem em um e outro caso acepções distintas,
já que os processos de gestão, os atores, as normas, as questões técnicas e sociais, diferem em
um e outro. Nota-se ainda que o conteúdo da expressão governança da água mudou ao longo
dos anos. Enquanto nos anos 90 era usada como critério de valoração e avaliação, de cuja
aprovação dependiam empréstimos das agências internacionais de desenvolvimento, o termo é
utilizado atualmente cada vez mais por acadêmicos em um sentido científico, como conceito
ou método de análise de processos coletivos de tomada de decisão e até como teoria política1.

Depois do fracasso dos modelos privatistas de gestão dos serviços urbanos promovidos
durante os anos 90, princípios de gestão do recurso hídrico são retomados, apropriados e re-
introduzidos na gestão do serviço. Dessa maneira, passa-se a falar de participação e
coordenação também para a gestão do serviço. A essa mudança equivale uma mudança
fundamental no questionamento a respeito da governança. Com a ampliação dos interessados

* Texto publicado no III Encontro Internacional de Governança da Água. USP, 7-9 de novembro 2011.
** Bacharel em direito pela UFMG, mestre em sociologia urbana e doutor em geografia e planificação territorial
pela Universidade Sorbonne Nouvelle. E-mail: matheusvalle@hotmail.com
1
Cf. Baron, 2003; Gendron, 2003; Schneier-Madanes, 2010.
1
(stakeholders), com suas diferentes representações e sistemas de legitimidade, a constante
(re)negociação das regras do jogo aparece como instrumento central para implicar estes atores
em um diálogo capaz de fundar sobre novas bases as estratégias da prestação e ampliação dos
serviços a todos. Os arautos dos modelos normativos característicos da good governance dos
anos 90 pregavam exatamente o contrário: regras do jogo bem definidas, claras, estáveis e
intocáveis que definiam as condições de uma boa governança a ser aplicada e prescrita a todo
e qualquer contexto. Atualmente se trata menos de avaliar se há uma boa ou má governança,
mas de aplicar um questionamento em termos de governança a determinados processos para
esclarecer as características das dinâmicas de interação e relações de poder. De um critério
valorativo, a governança se torna um instrumento de análise.

O caso boliviano foi nesse contexto paradigmático. Na busca de mais eficiência e em


consonância com as receitas neoliberais então em voga, o Estado transfere a prestação do
serviço de água potável de Cochabamba, o terceiro maior centro urbano do país, a uma
empresa internacional. Saliente-se que se tratava de um consórcio com presença majoritária
de uma empresa francesa, país onde os serviços urbanos são privados e obedecem a uma
lógica especial, mescla de mercado e interesse geral. A idéia do full cost recovery significou
elevação imediata das tarifas já que prega a necessidade de recuperar junto a cada usuário a
totalidade do custo marginal em termos de consumo2. Somente assim se poderiam cumprir as
metas contratuais de qualidade do serviço e assegurar o lucro que esperava ter a empresa. A
reação dos usuários foi radical: suspensão do pagamento, ocupação de ruas e edifícios,
violência contra bens e agentes da polícia. Percebida por alguns como vitória popular, a
anulação do contrato de concessão consagra a contestação violenta como método de ação
coletiva e marca a ascensão e valorização de um novo paradigma de patrimonialização das
águas, mais tarde retomado por organizações sociais durante o processo constituinte e
aplicado indistintamente ao serviço e ao recurso. Toma-se o termo patrimonialização neste
texto justamente na acepção de processo sócio-político que tem como efeito jurídico a
transformação de um determinado bem ou serviço em patrimônio comum.

Uma certa confusão conceitual se nota claramente no que toca a aspectos financeiros da
gestão dos recursos hídricos. Conseqüência direta da guerra del agua, a Constituição proíbe o
que se interpretou falsamente como “privatização das águas”3, ressaltando as relações
ancestrais dos povos indígenas como justificativa principal: a água passa a ser vista como bem
comum, patrimônio de todos e dom da terra Pachamama. Se os eventos de Cochabamba
diziam respeito à gestão do serviço urbano de água e saneamento, a proibição constitucional
se estendeu à gestão do recurso hídrico: estão excluídas todas as formas de cobrança por uso e
aproveitamento. Como se verá adiante mais em detalhe, parece que houve uma mescla entre
os níveis ou momentos da gestão. Tal proibição talvez fizesse sentido para serviços urbanos,
mesmo sendo eles em sua maioria deficitários, ou para pequenos usuários irrigantes. A
introdução de mecanismos de mercado em sistemas de abastecimento urbano teve
conseqüências nefastas para populações marginalizadas espacial, social e economicamente
não só na Bolívia4 mas em vários países onde aconteceu5.

Ora, tal proibição aplicada ao uso e aproveitamento de recursos hídricos gera graves
contradições e dificulta a aplicação de uma política ambiental para as águas. Por um lado,
confundem-se grandes e pequenos usuários (mineiros, petróleo e gás, irrigantes, famílias

2
Solaes et al., 2007.
3
De Gouvello e Fournier, 2002.
4
Fuenzalida e Orellana, 2007.
5
Brun e Lasserre, 2006.
2
produtoras) que estão não só utilizando recursos naturais públicos para fins privados, mas
também os estão contaminando. Os princípios do usuário-pagador e do contaminador-pagador
não foram ainda implementados na Bolívia e não parece haver possibilidade legal para fazê-
lo. Por outro lado, tal proibição leva a que projetos de descontaminação e reabilitação não
tenham financiamento garantido, ao contrário do que vem acontecendo em países que
aplicaram os princípios mencionados6. O presente trabalho mostrará que a questão reside
menos em uma suposta manifestação cultural autêntica de povos indígenas que em uma má
interpretação da proibição do uso de instrumentos econômicos na gestão da água recurso,
oriunda de uma confusão conceitual entre os dois níveis de gestão.

Se certamente muito já se analisou a guerra del agua, o artigo que segue discute a incipiente
experiência boliviana de gestão dos recursos hídricos, suas características, seu estado atual e
suas perspectivas, cujos elementos remontam aos eventos de Cochabamba e aos processos
políticos e sociais atuais. O objetivo é renovar o olhar sobre o tema da governança no meio
brasileiro. Através de uma leitura dos processos em curso no país andino, espera-se contribuir
para a consolidação de um enfoque interdisciplinar na análise de governança da água
colocando em evidência a maneira como um contexto cultural particular determina os
processos de gestão, sua avaliação pelos atores e as condições de êxito das reformas do setor.

Objetivos do trabalho
• Dar a conhecer ao público brasileiro detalhes da atualidade política e social da Bolívia
e da experiência de reforma institucional para uma gestão mais integrada dos recursos
hídricos no país vizinho;
• Ampliar a discussão teórica, os conceitos e instrumentos metodológicos a respeito da
governança da água através de um diálogo com o complexo processo de reforma
boliviano;
• Contribuir para a consolidação de uma metodologia interdisciplinar de análise de
governança da água através da conjugação de aspectos legais, institucionais, políticos,
sociais e culturais.

Metodologia
Sem buscar conceituar cabalmente o termo, há que partir de uma definição básica. Considera-
se que há governança da água quando entidades públicas e outros atores privados aplicam
conjuntamente uma política legítima dentro de um marco legal e institucional efetivo para
distribuir, manejar e administrar os recursos hídricos de maneira a responder às necessidades
sociais, econômicas e ambientais a curto, médio e longo prazo. Alguns elementos saltam à
vista: (i) reformas necessárias: considerando que se trata de um conceito que serve para
analisar a situação presente e projetar alternativas de melhorar para o futuro, o resultado da
análise pode levar ao reconhecimento de que reformas são necessárias; (ii) atores legítimos:
ao contrário do termo governabilidade, que supõe uma hierarquia entre entidades públicas e
atores privados, toma-se como dada no marco da governança uma certa horizontalidade e
portanto uma igualdade entre diferentes atores interessados unidos por algum tipo de
pertencimento territorial ou outros interesses comuns; (iii) processos de interação: tais atores
dos recursos hídricos confundidos, não importando sua origem mas somente sua legitimidade,
interagem em um espaço criado com o objetivo de permitir a negociação de acordos e, se
possível, a aprovação de normas que melhorem o uso dos recursos hídricos; (iv) acesso à
água: a finalidade dos processos de interação é garantir que todos tenham acesso à água em

6
Gentes, 2006.
3
quantidade e qualidade adequadas, evitando disputas e conflitos, e, sustentabilidade obriga,
assegurando a conservação do meio ambiente para as gerações futuras.

A questão da lógica setorial na exploração e aproveitamento dos recursos hídricos e o fato de


que estes não necessariamente respeitam as fronteiras administrativas fazem da dimensão
institucional da governança um tema complexo de tratar mas ainda assim indispensável. Esta
dimensão institucional deve examinar as características da situação legal e administrativa e a
maneira como esta facilita ou dificulta os processos de interação necessários à definição das
regras de aproveitamento de recursos hídricos compartidos. Certamente não deve escapar da
análise a capacidade objetiva de cada um dos atores de intervir e contribuir nos processos
coletivos de discussão e decisão, que se pode medir através dos recursos de que dispõem tais
atores, sejam eles recursos materiais, financeiros, institucionais, humanos, informação ou
simbólicos como legitimidade, influência política, etc. Portanto, em um sentido mais
operativo, o maior ou menor grau de articulação e coordenação – entendidas como
intercâmbio de informações e agendas, negociação técnica e política, capacidade de influência
mútua – entre atores ou instâncias setoriais de decisão, tendo em conta a participação da
sociedade e a implicação do setor privado, determina a qualidade da governança. Examinar os
modos de gestão e o processo de reforma do Estado boliviano em termos de governança
ajudará a compreender melhor os traços culturais específicos e a maneira como estes
condicionam os termos dos debates e disputas, mas além dos discursos e das aparências.

A análise que segue se apóia em conceitos e teorias da ciência política e da sociologia das
organizações através de uma abordagem construtivista e necessariamente multidisciplinar.
Para mostrar as características dos modos de gestão em vigor, se utilizam instrumentos
próprios às ciências políticas, principalmente a análise seqüencial de políticas públicas7 e as
redes de políticas públicas8. Com o auxílio da sociologia das organizações, das mudanças
institucionais e de teorias emprestadas também da economia, mostra-se através do conceito de
path dependency os limites das inovações no processo de reforma boliviano, apontando para
as continuidades históricas muito mais freqüentes que as rupturas com o passado. Queda
também patente a dificuldade de construção de um setor mais processual que substancial9, o
setor dos recursos hídricos como parte integrante do meio ambiente. Discutindo os limites da
descentralização boliviana10, evidencia-se a precária situação das entidades públicas no que
diz respeito aos recursos disponíveis para executar uma política de gestão dos recursos
naturais. Incorpora-se ao longo de todo o raciocínio a questão da governança da água como
recurso hídrico e suas interfaces com a água serviço, mostrando também como as
peculiaridades culturais, sociais e políticas do contexto boliviano determinam o percurso
seguido pelos atores da reforma do Estado.

Análise
A difícil posição em que se encontram as entidades públicas na Bolívia no que diz respeito à
gestão dos recursos hídricos se deve à conjugação de uma série de fatores, todos relacionados
com o funcionamento do Estado e suas relações com outros atores chave.
Há primeiramente uma histórica falta de Estado no que diz respeito à gestão dos recursos
naturais em geral e, paralelamente, um processo de legitimação da comunidade local, com
uma série de conseqüências que serão explicadas ao longo do texto. Conteúdo da primeira
parte da análise, um primeiro projeto do Governo Central, talvez o mais importante e que
7
Jones, 1970.
8
Muller e Surrel, 1998.
9
Lascoumes, 1995.
10
Gonzales-Aramayo, 1989.
4
fundamenta toda sua ação, trata da criação de uma nova ordem que respeite a cosmologia
indígena e camponesa, em suas dimensões mística, sócio-cultural e territorial. A segunda
parte examina o quadro legal e institucional do setor de recursos hídricos para delimitar os
contornos da reforma objeto do segundo projeto do Governo, isto é, passar de uma gestão
setorial à integralidade na bacia hidrográfica para garantir os usos múltiplos e o direito
humano à água. Há contradições entre estes dois projetos, ambos inscritos na agenda política
do país, que se manifestam claramente na gestão dos recursos hídricos.
A terceira parte da análise descreve o funcionamento do aparato estatal e demonstra como o
modus operandi da administração pública significa a privatização de fato da execução de
programas de aproveitamento de recursos hídricos através do apelo necessário (pela falta de
recursos humanos e institucionais) e imposto pelas leis a empresas consultoras, que não só
elaboram como executam e fiscalizam os projetos públicos. A quarta parte mostra como se
construiu ao largo dos anos a legitimidade da comunidade local em contraposição ao Estado,
fazendo com que esta se torne um ator muitas vezes mais importante que o próprio poder
público por ostentar uma propriedade de fato dos recursos naturais. Aqui se discute o que
aparece como elemento fundamental para compreender os impasses vividos pelo Estado: a
aplicação de normas de direito privado como se fossem de direito público.
Todas estas características do funcionamento do Estado dão o tom do modo de gestão dos
recursos hídricos na Bolívia. A análise da governança da água que segue propõe uma releitura
mais completa dos processos de reforma em curso no país.

1. Novo paradigma constitucional e reforma do Estado: direitos


indígenas e autonomia
Marco dos processos sociais, políticos e institucionais da atualidade do país, uma nova
Constituição Política do Estado (CPE), promulgada em 2009, declara os fundamentos das
reformas consideradas necessárias em diferentes campos. A criação de um Estado
Plurinacional baseado na cosmologia e defensor de livre determinação dos povos e nações
indígenas (Art. 1°) representa uma mudança paradigmática mais profunda, já que deve
garantir seu direito ao auto-governo, ao reconhecimento de suas culturas e instituições e à
consolidação de suas entidades territoriais (Art. 2). Parte do programa do Movimento Ao
Socialismo, MAS, partido do presidente Evo Morales, a nova CPE reconhece assim extensos
direitos aos povos indígenas em contraposição à antiga ordem tida como colonialista.
Muito se discute atualmente sobre as conseqüências do indigenismo voluntarista do governo.
Fato é que a questão indígena nunca esteve tão à tona. Talvez o mais importante desses
direitos, e que tem conseqüências importantes para a gestão dos recursos hídricos, diz respeito
à possibilidade de administrar seus territórios ancestrais de acordo com suas instituições
jurídicas, políticas, sociais, culturais e econômicas próprias. Esse direito se exerce através do
instituto da autonomia. O processo autonômico representa a chave para a compreensão das
mudanças em curso no país executadas pelo MAS, e os elementos do debate se relacionam
diretamente com os modos de gestão dos recursos naturais e das águas.
Se por um lado a CPE avança no sentido da autonomia indígena sobre seus territórios, o
processo autonômico tem origem anterior e se relaciona com a questão do acesso à terra e da
estrutura fundiária na Bolívia. Trata-se aqui não de esgotar mas de situar a problemática no
tema mais amplo da questão da autonomia indígena. A reforma agrária de 1953 teve várias
conseqüências sobre o padrão de ocupação da terra. Por um lado, devolvera aos povos
indígenas do altiplano terras usurpadas ao longo da colônia. Novas comunidades rurais
surgiram assim de mão dada com um sindicalismo rural bastante hierarquizado. Contudo, a
limitação do tamanho das propriedades rurais significou, passadas algumas gerações,
fragmentação excessiva e levou à escassez de terras. A conseqüência foi um êxodo do campo
5
para a cidade e das terras altas para os vales e terras baixas. A subseqüente criação do
Instituto Nacional de Colonização institucionalizou a ocupação do oriente boliviano, através
de doações de terras de grandes dimensões, atraindo populações que perderam suas terras no
ocidente, mas gerando concentração de terras.
Durante os sucessivos regimes militares dos anos 70 e 80, essa política foi corrompida e
substituída por relações de clientelismo. Nesse contexto, os povos indígenas das terras baixas
se tornaram invisíveis ao olhar estatal, culminando com uma grave crise política no início dos
anos 90. Para sanear as terras, o Estado criou o Instituto Nacional de Reforma Agrária com a
perspectiva de modificar a estrutura fundiária do país, caracterizada por minifúndios no
ocidente e latifúndios no oriente. Estima-se que em 2010 50% das terras haviam sido
saneadas. Os logros na titulação de territórios indígenas são patentes, principalmente no
governo do MAS: cerca de 25 títulos de propriedade coletiva para quase vinte milhões de
hectares nos 190 Territórios Indígena Originário Camponeses, TIOC.
Nos anos 90, se consolida a base legal da autonomia: o país ratifica o Convênio 169 da OIT e
mais tarde a declaração da ONU sobre direitos dos povos indígenas; em 1994 é publicada a
Lei de Municipalidades como um primeiro esforço de transferência de competências e
recursos do Estado central a entidades públicas locais, autonomia entendida aqui como
descentralização. Mais adiante se verá que essa transferência se deu dentro de certos limites.
Uma lei de participação popular da mesma época fala de autonomia municipal e reconhece
direitos aos povos indígenas, em seus territórios e no interior de municípios. Considerando
que a pobreza na Bolívia é principalmente rural e que os povos indígenas estão instalados em
sua maioria no campo, a campanha do MAS se baseou na inclusão social da maioria indígena,
obtendo apoio dos mais diversos setores da sociedade. Aproveitando a legislação já aprovada
e o clima social favorável, a vitória de Evo Morales introduziu a autonomia indígena na
agenda política do país com muita legitimidade.
A CPE reconhece quatro tipos de autonomia: departamental, regional, municipal e indígena.
Operativamente é possível chegar à autonomia indígena de duas maneiras: através dos TIOC
ou de municípios que se declarem indígenas. Por causa do título de propriedade obtido, a
autonomia TIOC permite uma gestão territorial e dos recursos naturais que não é possível
com a via municipal. Aqui o marco legal e institucional continua sendo o da normativa
ambiental setorial, que inclusive confere muitas competências aos governos locais. Contudo,
se por um lado o balanço da política de titulação de terras pode ser considerado como
positivo, muitos obstáculo existem para que os povos indígenas formalizem a autonomia por
qualquer uma das vias11, tanto no oriente como no ocidente. Esta contradição entre um
discurso pró-autonomia e uma práxis que introduz obstáculos está também presente no que
tocante à reforma do setor de recursos hídricos, também inscrita na agenda política do país.
Importante é ressaltar que, no momento político atual, os impasses relativos à autonomia
indígena são elemento fundamental para a compreensão dos processos de gestão de recursos
hídricos projetados para o futuro, como se verá mais em detalhe abaixo.

2. Normas e instituições para a gestão de recursos hídricos:


ineficácia e ineficiência
Um breve exame das principais normas e instituições envolvidas nos processos de tomada de
decisão sobre o aproveitamento de recursos hídricos mostra uma primeira característica dos
modos de gestão deste bem: a não aplicação das leis e a distância entre estas e a realidade
quotidiana da gestão. No que diz respeito à água, o preâmbulo da CPE já faz referência às
guerras del agua de Cochabamba e reafirma o direito gratuito à água em contraposição a toda

11
Cf. Fundación Tierra, 2011.
6
forma de privatização deste dom da terra Pachamama. No capítulo sobre os direitos
fundamentais, declara o direito humano à água (Art. 16), insiste sobre os direitos aos serviços
de água e saneamento e a obrigação do estado de provê-los (Art. 20). O objeto do dispositivo
aqui é claramente o serviço de água e saneamento, ainda que a redação deixe margem para
dúvida. A força e o caráter inovador do artigo deram à cancelaria boliviana a legitimidade de
liderar um recente movimento internacional de declaração de um direito humano à água12.
No capítulo dedicado ao tema, a CPE define os recursos hídricos como bem público de caráter
social e estratégico, o que implica a impossibilidade de apropriação privada e o cuidado de
todos com sua conservação (Art. 373, II). Significa também que seu uso e aproveitamento
depende de outorga da autoridade competente (Art. 373, I). Contudo, o caput do Art. 373
repete o enunciado do Art. 16, declarando a água direito fundamental para a vida e para a
soberania dos povos, mesclando dois níveis distintos de gestão deste bem e reiterando uma
confusão conceitual cheia de conseqüências. A CPE inova ao declarar a bacia hidrográfica
como unidade territorial de planificação do uso de recursos naturais e execução de projetos.
Aqui se devem separar conceitualmente dois níveis da gestão das águas: água como serviço e
água como recurso13. A água serviço tem como atores principais uma entidade prestadora de
serviço, normalmente uma empresa de água e saneamento nos centros urbanos, um comitê de
água que administra a infra-estrutura no meio rural ou uma associação de produtores que
administra a infra-estrutura de irrigação, e o usuário, que pode ser um lar com ou sem um
medidor ou um agricultor irrigante. Por sua importância cultural e econômica, ênfase será
dada ao serviço de irrigação. Normas que se referem à gestão do serviço se encontram nos
estatutos das associações de irrigantes excluídos alguns detalhes relacionados por exemplo à
qualidade da água, inscritos na normativa setorial. Estas normas se referem às atividades
quotidianas de operação dos sistemas de irrigação: abertura das comportas e válvulas, monto e
forma de pagamento das tarifas, penalidades por atraso, duração dos turnos, direitos e
obrigações dos membros da associação, aportes individuais para obras de manutenção da
infra-estrutura, etc. Mesmo que tais normas sejam importantes para a efetivação dos direitos
dos usuários, se considera, para os fins do presente trabalho, que elas se encontram em um
nível distinto daquelas relacionadas ao recurso hídrico, e por isso diferente tratamento será
dada a elas.
Vale a pena retomar o conteúdo do Art. 8 da Lei de Serviços de Água Potável n° 2066:
recurso hídrico é a água no estado em que se encontra na natureza. Distingue-se por isso da
água fruto de um serviço (água potável na torneira ou água para irrigação no canal terciário)
na medida em que a esta última tem de ser mobilizada na natureza, transportada, às vezes
tratada e finalmente distribuída ao usuário final, sendo estas justamente as tarefas do prestador
do serviço. A água serviço é praticamente um produto industrial. Os artigos 16 e 20 da CPE
declaram então o direito humano a serviços de água, priorizando ao mesmo tempo os usos de
água para a vida. Saliente-se que tal separação conceitual tem finalidade sobretudo didática e
as relações entre ambos níveis são óbvias. A utilidade da distinção aparece quando se torna
evidente a mescla e a confusão no momento de aplicar normas e princípios próprios de um
nível ao outro, levando a contradições e conflitos, e colocando em risco a possibilidade de
administrar os recursos hídricos de maneira equânime. Os territórios do serviço e do recurso
são distintos e as lógicas de pertencimento e uso também.
Do mesmo modo que em outros países, o setor de recursos hídricos na Bolívia é
extremamente complexo, porque é uma colagem de outros setores, uma construção ainda por
fazer. A CPE define como temas de competência compartida entre o governo nacional e as

12
Ver Observación general n. 15.
13
Não se trata aqui do rigoroso conceito de serviço público, mas do sentido mais amplo de utilidade pública.
7
entidades territoriais autônomas a proteção das bacias, os projetos de irrigação e água potável,
a proteção e conservação do meio ambiente. A CPE mantém assim a histórica divisão dos
usos da água e o país continua carecendo de uma lei geral de águas14. Enquanto diferentes
políticas setoriais ou regionais são criadas (irrigação, agricultura familiar, desenvolvimento
rural, água e saneamento, saúde, habitação, meio ambiente, energia, etc.), leis setoriais que
criam entidades setoriais são promulgadas. Nessas condições, não existe uma autoridade
competente senão várias autoridades com competências limitadas ao setor respectivo. Assim,
a setorialidade no aproveitamento dos recursos hídricos se manifesta por um lado na histórica
proliferação de instâncias de elaboração e execução de políticas setoriais nos diferentes níveis
político-administrativos, que consolidam enfoques fragmentados: águas superficiais x águas
subterrâneas; gestão da água x gestão da terra; gestão da quantidade x gestão da qualidade;
governo central x autonomias.
Por outro lado, a setorialidade se confirma na evidente dificuldade de promover uma
coordenação ou articulação entre os setores. Há por exemplo um organismo setorial sob
responsabilidade do Ministério de Meio Ambiente e Água que outorga direitos de uso para
irrigação, enquanto uma entidade descentralizada sob responsabilidade do Ministério de
Serviços Básicos emite autorizações e controla as atividades do setor de água e saneamento.
Por falta de um espaço de coordenação ou de uma norma que imponha o dever de tomar em
conta os diferentes tipos usos entre si, nada impede que estas instituições outorguem direito
de uso a atores diferentes em um mesmo ponto. O risco de conflitos se torna evidente pois os
recursos hídricos podem não já estar disponíveis na quantidade e/ou qualidade necessárias. Da
mesma maneira, uma intervenção técnica adequada, como por exemplo a construção de uma
pequena represa para usos múltiplos, poderia solucionar situações de penúria hídrica como
produto de uma intervenção mais concertada entre os setores.
Um primeiro esforço normativo de criação de um guarda-chuvas intersetorial teve lugar com
o Plano Nacional de Cuencas ou Bacias, PNC. O documento retoma a bacia como unidade de
planificação e gestão porque fixa de maneira mais adequada o ciclo hidrológico. Define
também a integralidade como princípio da execução de intervenções no setor e estabelece
uma guia para elaboração de projetos integrais. Através de um fundo para projetos locais
piloto, o PNC aposta em medidas técnicas de manejo nas micro-bacias formuladas dentro de
um Plano de Manejo de Cuenca ou PMIC. A inovação institucional do PNC é a criação de
Organismos de Gestão de Cuencas, OGC, como espaços onde os atores locais da água
estabelecidos em uma micro-bacia interagem para a elaboração e execução do PMIC. Ou seja,
nas micro-bacias que estão recebendo financiamento do fundo do PNC, se criou um OGC
com poderes de gestão. A limitante desse organismo tem relação direta com a forma de
execução do PMIC. Sua sustentabilidade no tempo, assim como a do OGC, inexiste porque o
PMIC é um projeto com princípio, meio e fim. Ademais, salvo raríssimas exceções, somente
nos casos em que se obteve um financiamento foi criado um OGC.

3. Governo central, entidades públicas locais e empresas


consultoras: descentralização e execução privada de políticas
Enquanto os atores do setor de recursos hídricos definiam suas formas de aproveitamento a
nível local e por debaixo dos radares estatais, as transformações políticas e institucionais dos
anos 90 buscavam descentralizar um país comandado por um Estado frágil desde La Paz.
Muitas leis foram promulgadas no contexto de um processo de modernização do aparelho
estatal com tendências marcadamente neoliberais: leis de serviços básicos, meio ambiente,
participação popular, municipalidades, algumas delas impulsionadas pelas agências da

14
Existe uma lei de águas de 1897, da qual muitos dos seus artigos já não são aplicáveis. Uma nova proposta de
lei de águas está em discussão no parlamento.
8
cooperação internacional. O alcance do processo de descentralização iniciado então não foi
capaz de responder até agora às necessidades e expectativas dos diferentes atores. A
descentralização nem sempre veio acompanhada da necessária transferência de recursos
humanos e financeiros e dos instrumentos de gestão adequados.
Uma segunda etapa no processo de transformações institucionais foi iniciada com a eleição de
Evo Morales e a ascensão do MAS como força política hegemônica. Está em curso um
processo de readequação do regime de competências através da recém aprovada lei marco de
autonomias, processo este que não se baseou numa discussão sobre o papel do Estado e uma
análise de seu funcionamento, suas capacidades e condições. Ainda assim, a maioria das
competências relacionadas com a gestão dos recursos hídricos continua com o governo
central. Dessa maneira, a demanda por autonomia continua na ordem do dia e se alimenta
tanto de uma dinâmica local (sobretudo dos governos locais e regionais) quanto do projeto
autonômico do governo nacional (sobretudo aquele relacionado à autonomia indígena).
No caso do Chaco, por exemplo, rico em gás e petróleo, a autonomia se traduziu na demanda
pela transferência e auto-gestão dos recursos financeiros gerados pela exploração das jazidas,
através dos pagamentos de royalties e regalias, e se concretizou com o referendo para a
autonomia da Região Gran Chaco no Departamento de Tarija. Considerando que a região não
só aporta muito menos ao PIB boliviano como tem menor população, fica claro que a
distribuição desigual dos recursos corrobora uma desigualdade regional já bastante marcada.
As finanças do gás são tema de alta complexidade e que ultrapassam os objetivos do presente
artigo. Pode-se afirmar contudo que os cofres nacionais arrecadam o produto da exploração e
venda do gás e transferem às contas dos governos municipais e departamentais produtores.
Parte do montante transferido cobre gastos correntes das respectivas administrações, parte já
está vinculada por lei a determinadas matérias, como as porcentagens destinados à saúde e
educação. Mas a transferência da maioria dos recursos não é automática e se dá (1) no
contexto da elaboração de estudos de viabilidade e execução de projetos, (2) que devem estar
inscritos em um plano operativo anual aprovado pelo poder legislativo correspondente, (3)
projetos estes que se condicionam ao cumprimento de requisitos definidos pela norma de
contratação de bens e serviços15, cumprimento este que é por sua vez avaliado pelo Ministério
de Investimento Público e seus correlatos a nível departamental.
A norma de contratação de bens e serviços (Lei 1178) impõe condições de validade e
admissibilidade a um projeto que são difíceis de cumprir para muitos dos governos locais, que
se encontram além do mais limitados pela questão das competências não muito claras, quadro
piorado com o advento das autonomias. Quando não se cumprem estas condições, não se
aprova o projeto na instância superior e não se faz a transferência dos recursos financeiros
previstos. Se o governo local não executa os recursos que teoricamente lhe corresponderiam
por royalties, regalias ou qualquer outra figura orçamentária, o tesouro nacional pode, passado
determinado prazo, reverter tais recursos para outras finalidades e outros municípios. A
questão da execução do orçamento adquire por isso importância significativa: o êxito político
de um governo local é medido em função da quantidade de recursos executados, o que deixa
menos espaço para uma avaliação em termos de qualidade dos projetos.
Tal realidade tem conseqüências importantes. Na rotina da administração local, os técnicos
dedicam parte significativa de seu tempo para a adequação dos projetos às observações feitas
pelas autoridades administrativas departamentais ou nacionais. Os freqüentes momentos
dedicados à reformulação dos planos operativos são também a ocasião de inserir e fazer
aprovar mais projetos, permitindo a execução de mais recursos. Neste processo, a estrutura
formal do projeto tem mais importância que seu conteúdo, já que a autoridade administrativa

15
Esta norma não tem caráter setorial, equivale no direito brasileiro à lei de licitações.
9
avalia os aspectos formais e somente em algumas situações remete o projeto à autoridade
setorial competente, que na maioria das vezes é a autoridade ambiental. A avaliação da
qualidade do projeto está sob responsabilidade do município. Os projetos de aproveitamento
de recursos hídricos são às vezes submetidos ao apreço da autoridade ambiental e não há
claridade a respeito dos procedimentos para o registro, autorização e licença junto às
autoridades setoriais (de irrigação, água potável, etc.): na maioria dos casos, são as
populações beneficiárias que fazem por sua conta e risco os trâmites formais.
Nesse contexto, os técnicos das administrações locais não podem dedicar-se com a
profundidade necessária à parte técnica dos projetos. Seu papel é na maioria das vezes
elaborar termos de referência para licitação e, às vezes, fiscalizar e supervisar a execução de
um projeto licitado, já que a normativa administrativa de contratação de bens e serviços impõe
a realização de um processo licitatório para todo gasto superior a 20 mil bolivianos
(equivalente a 5 mil reais). Isso faz com que as entidades públicas locais tenham sempre de
apelar a empresas privadas para a execução de seus projetos. Assim está limitada pelo
montante e pela burocracia qualquer investimento direto de recursos públicos, incluída a
capacitação dos técnicos. Tais limitações impostas aos governos locais fazem mais difícil a
sustentabilidade da administração pública local em geral: os projetos executados, inclusive os
projetos PMIC, repita-se, têm princípio, meio e fim.
As entidades públicas locais tampouco dispõem dos meios adequados para controlar e
fiscalizar de forma adequada o trabalho executado pelas empresas consultoras em tema água,
seja a elaboração de estudos ou a execução de obras de aproveitamento, comprometendo a
sustentabilidade do gasto público em geral. Tal situação reitera sua dependência frente às
consultoras, também contratadas para fiscalizar e supervisar a execução de uma obra, que se
convertem finalmente em atores chave das políticas de água tão importantes quanto as
próprias entidades públicas. Por outro lado, a contratação reiterada de empresas em
detrimento de um – necessário – investimento mais consistente no desenvolvimento das
capacidades instaladas nas entidades públicas implica no longo prazo uma privatização de
fato dos recursos financeiros e técnicos, com graves conseqüências para a capacidade gestora
do Estado. As entidade públicas acumulam uma série de dados esparsos oriundos de
diferentes projetos elaborados e executados por distintas empresas, impossibilitando que se
gere uma informação útil à planificação e que se faça uma gestão do conhecimento. Às vezes,
até mesmo mudanças nas autoridades políticas, a falta de continuidade implica a realização do
mesmo trabalho mais de uma vez.
Não menos importante, deve-se ainda considerar a complexa questão da corrupção. No setor
de recursos hídricos, este mal tão freqüente em todos os níveis quanto difícil de combater se
manifesta sobretudo na construção de grandes obras, beneficia a agentes do poder público e
empresas privadas e provoca danos principalmente junto a populações desfavorecidas. A
imposição legal das licitações para todo gasto superior a 20 mil bolivianos gera oportunidade
quase diária para atos ilícitos de favorecimento, subornos e fraudes de todo tipo. As causas de
estruturas de corrupção e suas conseqüências sobre o funcionamento da administração pública
a curto, médio e longo prazo já foram evidenciadas em vários estudos16. Claro é que elas
reforçam a ineficiência do Estado, já que os critérios de eleição dos executores de projetos
públicos não sempre são técnicos, mas sim marcados por acordos entre servidores públicos e
empresas consultoras, degradando a própria imagem das entidades públicas e aumentando sua
falta de legitimidade frente às comunidades locais.

16
Veja-se, por exemplo, o estudo que a ONG Transparency Internacional fez sobre corrupção e água disponível
em sua página internet www.transparency.org.
10
4. Lógicas territoriais locais e gestão de recursos hídricos: a
comunidade legítima e seus usos e costumes
Ante a histórica falta de Estado – hegueliano – garantidor do interesse público, provedor de
serviços e gestor dos recursos naturais, as comunidades locais na Bolívia tiveram de inventar
formas próprias de aproveitamento das fontes de água para atender a suas necessidades
básicas. Em um país marcadamente rural, o setor de irrigação teve e continua tendo
importância econômica, social e cultural. Mas soluções locais também foram a opção de
muitas comunidades para o estabelecimento de seus sistemas – precários – de água para
consumo humano. A consolidação dessas formas comunais de aproveitamento se deu ao redor
de uma nebulosa normativa dotada de relativa legitimidade chamada “usos e costumes”.
Enquanto populações não muito numerosas viviam isoladas umas das outras e a pressão sobre
os recursos naturais não era ainda significativa, tanto as formas de aproveitamento quanto os
sistemas culturais e normativos que lhe davam suporte não obstruíam os usos múltiplos nem
representavam risco de diminuir a capacidade gestora dos atores da água.
Como em vários outros países, Bolívia destina a maior parte dos seus recursos hídricos
utilizados para atividades agropecuárias, mais ou menos 80%. Contudo as técnicas e
tecnologias de irrigação podem ser consideradas pouco eficientes e de baixa produtividade:
irrigação por gravidade e inundação com perdas de mais 50% é a mais freqüente. Ademais os
níveis de aproveitamento do potencial de irrigação são baixos e o país segue dependente da
importação de alimentos e sementes, problema agravado pela tendente passagem ao cultivo da
coca nos vales meso-térmicos. No campo os níveis de pobreza são mais elevados que nas
cidades, sendo que as populações rurais se consideram principalmente indígenas. Isto é, há
uma coincidência entre pobreza, população rural e povos indígenas, principal argumento da
agressiva política indigenista do Governo do MAS. Cabe lembrar a importância política do
setor de irrigação, que coincide ainda com a centralidade do uso de água para a produção
dentro das estratégias comunais de aproveitamento dos recursos hídricos.
Os sucessivos processos migratórios do campo para a cidade e do altiplano para os vales e
terras baixas provocaram aumento da pressão sobre os recursos hídricos nestas regiões. A
competência entre territórios e usos da água se intensificou e a insuficiente capacidade gestora
do Estado quedou evidente, como mostrou de maneira clara a guerra da água em
Cochabamba. Buscando mais eficiência e em consonância com a receita neoliberal vigente
então, o Estado delega a uma empresa privada internacional a prestação do serviço de água e
saneamento. Diante da elevação das tarifas, necessária não somente para cumprir as metas
contratuais de qualidade do serviço mas também garantir os lucros que a empresa queria ter, a
sublevação dos usuários foi radical. Percebida por muitos como vitória popular, a anulação da
concessão reafirma a importância cultural do conflito, consagra a contestação violenta como
instrumento de ação e marca a ascensão de um novo paradigma de patrimonialização das
águas, que passou a integrar as demandas sociais durante o processo constituinte e foi
finalmente reconhecido na nova Constituição, como visto acima.
As organizações sociais lograram interceder em favor dos povos indígenas inserindo o
respeito a seus usos e costumes na CPE e também na normativa setorial de irrigação. Estes
dizem respeito a sua autodeterminação, ao acesso a fontes de água e aproveitamento de
recursos naturais, aí incluídas as jazidas de petróleo e gás. Se a intenção era certamente evitar
abusos por parte de grandes usuários (indústrias, mineração, empresas de prestação de
serviços urbanos de água, etc.) depois da lição de Cochabamba que significou para alguns
uma privatização de fato da água, a constitucionalização dos usos e costumes pode tornar-se
contraproducente e gerar mais conflitos se for aplicada indiscriminadamente, como parece ser
o caso. Isso terá conseqüências importantes sobre a capacidade de gestão dos recursos

11
naturais de parte dos atores da água de acordo a princípios laicos e universais de direito
público.
Os usos e costumes aplicados à água são definidos como regras e práticas ancestrais de uma
comunidade ou grupo étnico, informais, não explicitadas e às vezes ambíguas, que justificam
o acesso preferencial a uma fonte de água através de direitos, privilégios, técnicas e sistemas
de aproveitamento e distribuição de água que não foram atualizados e não necessariamente
são sustentáveis. Ainda assim, podem adquirir uma base legal, graças ao instituto do registro,
previsto na legislação de irrigação e reconhecido na CPE. O registro reconhece e garante a
uma comunidade o acesso ilimitado e perene a uma fonte de água. Pelo privilégio que
concede àquele que o detém, o registro é utilizado por comunidades assentadas nas partes
altas das micro-bacias como forma de impedir o acesso às mesmas a outros usuários
assentados nas partes baixas. Já que o registro como legitimação legal se faz junto à
autoridade do setor de irrigação, o Estado pode corroborar e legalizar abusos de uma
comunidade em relação a outra. Uma análise mais detida deveria ser feita para determinar
com precisão a natureza jurídica do registro e definir em que casos este instrumento próprio
do setor de irrigação pode ser oponível a outros setores sem prejuízo de outros princípios
constitucionais, como o direito humano à água.
Em mais de um documento legal aplicável ao setor de recursos hídricos (por exemplo a Lei de
meio ambiente e a Lei base de contratação de bens e serviços) impõe-se no caso de um projeto
que afete a uma comunidade sua consulta prévia ou até mesmo que o projeto seja
explicitamente requerido, sob pena de sua nulidade17. No nível local da administração se
consolidou uma interpretação distinta deste dispositivo graças a uma práxis que não encontra
fundamento na legislação: por respeito aos usos e costumes, a administração local pede
autorização à comunidade assentada mais próximo da fonte de água e se considera por isso
dona dos recursos naturais aí. Com o argumento do respeito às normas relativas aos usos e
costumes, discurso que no contexto político atual do país encontra respaldo nos setores
políticos hegemônicos, comunidades podem negar a outras comunidades acesso a “suas”
fontes de água, ou dito de outra maneira, comunidades mais próximas das fontes indeferem ao
poder público seu “pedido” de executar projeto de aproveitamento de “seus” recursos
naturais. Episódios assim acontecem com muita freqüência em todas as partes do país.
Uma comunidade, com seus diferentes representantes, cuida de seus interesses privados. A
função primeira do Estado é garantir o interesse público. Quando o Estado pede autorização a
uma comunidade e deixa de aplicar suas normas para reconhecer a validade dos usos e
costumes, o que se tem finalmente é a submissão do Estado à comunidade, ou seja, do público
ao privado. Há assim uma inversão de papéis: ao contrário do que declara a própria CPE, o
Estado passa a depender de autorização da comunidade para aproveitar recursos naturais que
de fato são privatizados, mesmo que o projeto sirva a outros grupos desfavorecidos. Duas
conseqüências relacionadas: o Estado perde e a comunidade ganha legitimidade. A isso se
soma o fato de que as entidades públicas locais sempre executam seus projetos através de
empresas consultoras. O poder público delega e terceiriza sua responsabilidade, fazendo com
que as comunidades e seus líderes tornem-se atores fundamentais dos recursos hídricos.
*
Considerando a análise da governança feita acima, pode-se dizer que as principais
características da gestão da água na Bolívia são as seguintes:

17
Tema bastante atual, o projeto de construção do tramo 2 de uma estrada que ligaria Cochabamba a Trinidad e
cortaria o Território Indígena e Parque Nacional Isiboro Secure, TIPNIS, desobedeceu esse princípio, motivo
avançado pelas comunidades locais para sua ferrenha oposição à execução da obra.
12
1. Gestão privada: feita sobretudo por organizações de produtores no caso da irrigação e
por pequenos comitês para os sistemas de água potável no meio rural, somada ao papel
crucial que têm as empresas consultoras na elaboração e execução de projetos
públicos;
2. Gestão local: feita dentro de uma comunidade, pela comunidade e para a comunidade,
desconsiderando a dimensão da bacia, montante e jusante, e do desenvolvimento como
processo territorial em geral;
3. Gestão pré-setorial: apesar de ser feita sempre em nome de um setor – principalmente
irrigação ou água potável – a visão que sustenta as estratégias dos atores é comunitária
e local e não setorial: um outro comitê de irrigação a jusante é visto como concorrente
e não como um par com interesses comuns.

Nessas circunstâncias, não foi ainda possível implementar a integralidade no aproveitamento


dos recursos hídricos na bacia e o balanço de vários anos de reformas do setor é negativo. Por
um lado, a falta de legitimidade do Estado ante o poder fático das comunidades dificulta a
construção do interesse comum em uma arena pública. Por outro lado, a dimensão territorial
da integralidade, a bacia, é desconhecida de todos os atores, técnicos e sociais, públicos e
privados, e contradiz a visão extremamente localizada que têm os atores sociais de seu
território. Este parece ser um cenário possível das amplas reformas do Estado boliviano com
as autonomias indígenas: a transferência a grupos – de certa maneira – privados de poderes de
gestão de recursos naturais em base a normas de usos e costumes que muitas vezes
contradizem a legislação aplicável ao setor.
De um ponto de vista jurídico, tal contradição, que é um elemento chave da reduzida
capacidade das entidades públicas no país de gerir os recursos hídricos em base a princípios
de ordem pública, se traduz em um conflito entre normas distintas e remete ao equívoco
conceitual mencionado acima. O primeiro grupo de normas vem dos usos e costumes, normas
estas que são aceitas e aplicadas a nível local de maneira ancestral geralmente a um uso
específico da água ou a uma fonte e têm por isso caráter privado. Por sua natureza jurídica, as
normas locais são aptas para tratar temas de gestão de um serviço (irrigação ou água potável)
dentro de uma mesma comunidade. O segundo grupo de normas é o da legislação
constitucional e setorial, portanto normas de direito público, aplicáveis à totalidade dos
cidadãos, independente de sua origem étnica. Quando se trata de tema ligado à água como
recurso hídrico, a aplicação dos usos e costumes deveria ser subsidiária, se e somente se a
legislação laica pública não contempla o caso em tela. Isso porque por definição os usos e
costumes de uma comunidade não necessariamente se aplicam a outras comunidades.
As formas de apropriação e controle das águas reproduzem relações de poder, determinam as
condições sociais e econômicas de produção, implicam uma série de decisões relacionadas.
Planificar e executar um aproveitamento integrado e gerir os recursos hídricos superando as
visões locais, parciais e setoriais constitui um desafio complexo e ao mesmo tempo uma
necessidade crescente, tendo em vista a interdependência dos usos da água. Não existem
respostas universais e simples aos impasses e conflitos vividos pelos atores da água na
Bolívia. O que sim é válido para todos é a centralidade da água para a vida e a complexidade
dos problemas de gestão.

Conclusão
Está em curso em vários países do mundo uma fricção entre condicionantes econômicas e
financeiras de gestão (no caso do recurso hídrico, gestão da qualidade sobretudo; e no caso do
serviço, acesso à água potável para todos) e um processo paralelo de patrimonialização das
águas (que passam a ser consideradas como bem comum). Muitos ordenamentos jurídicos
13
reconhecem inclusive este status duplo à água, bem econômico e bem comum. As lógicas
conceptuais e de gestão por detrás dessas diferentes acepções são distintas: um bem
econômico se gere como um capital, ou seja, para seu crescimento, enquanto um bem
patrimonial se gere para sua transferência ao próximo; no primeiro caso, a gestão tem de ser
eficiente e no segundo tem de ser concertada e compartida entre os diferentes atores
implicados. Enquanto um bem econômico tem vocação universalista própria da economia
neoclássica, um bem patrimonial tem uma localização espacial e geográfica especifica, seja a
comunidade, a bacia, o município ou o país. Essas lógicas opostas – talvez contraditórias – se
confrontaram na Bolívia dos anos 90 de maneira dramática e os desdobramentos dessa
confrontação se fazem presentes nas normas, instituições, nas formas de gestão da água e nos
processos atuais de reforma do país.
Sabe-se que quanto mais se intensificam os usos do recurso hídrico, mais evidentes ficam as
interdependências entre setores, atores e territórios. Os atores interessados nos processos de
gestão das águas na Bolívia são bastante heterogêneos: entidades públicas locais, regionais e
nacionais; grandes usuários do setor privado; empresas de prestação de serviços urbanos;
pequenas associações de produtores ou de serviços de água no meio rural. Eles têm distintos
recursos (financeiros, técnicos, sociais), diferentes capacidades, competências, alcance e
instrumentos de ação. Mas no marco da governança do bem patrimonial “água”, são
considerados como iguais ainda que não tenham a mesma capacidade de influência mútua.
Uma debilidade na abordagem patrimonial é justamente a falsa suposição de que tudo pode
ser tratado através de procedimentos de busca do consenso sem assimetrias de poder. A
experiência boliviana mostra como as relações de força são determinantes e os compromissos
às vezes impossíveis. Ainda não está claro como será possível chegar a um diagnóstico
comum dos diferentes problemas de gestão se os atores partem de registros culturais e
situações sócio-econômicas e geográficas tão distintas e desiguais. A proposta do governo de
criação de arenas participativas civis – e não necessariamente públicas – como são os
organismos de bacia faz prevalecer a defesa do bem comum em detrimento de uma necessária
divisão das responsabilidades de maneira equânime, entre atores públicos e privados. Da
mesma maneira, não se estabeleceram ainda processos de deliberação: as arenas participativas
servem principalmente à contestação e a questão da regulação da participação continua sem
resposta.
Todas as sociedades humanas se desenvolveram em estreita relação com a água, seja
aproveitando ou consumindo, contaminando ou venerando esse elemento vital. Ao longo
dessa convivência, criaram formas de manejo e gestão, construíram aquedutos, canais de
irrigação, represas, hidroelétricas, eclusas, redes complexas de adução e distribuição para
serviços urbanos, inventaram formas de planificar suas atividades agrícolas de acordo às
estações úmidas, aprenderam a conviver com a seca e as inundações. Os rios serviram à
comunicação entre os povos e constituíram fronteiras às vezes meramente simbólicas às vezes
intransponíveis. As águas intervêm decisivamente em uma série de setores e atividades
humanas (água e saneamento, produção agropecuária, indústrias, transporte, geração de
energia, lazer, etc.) e até mesmo em nossa visão mística do mundo. Além de sua utilidade, são
ademais um elemento chave para a manutenção de vários ecossistemas.
Na Bolívia, país mega-diverso étnica e ambientalmente, os mais importantes atores políticos e
sociais se estão dando paulatinamente conta dos limites dos modos de gestão da água
existentes. O Estado boliviano sempre executou diferentes políticas setoriais desde há muitas
décadas, mas atualmente está ensaiando uma mudança paradigmática em seu enfoque. A
passagem de uma visão setorial dos usos de água a um conceito mais inter-setorial até chegar
à integralidade na bacia é um longo caminho a percorrer, que requer vontade política e muito
investimento em termos de recursos financeiros e humanos. Trata-se de processos sociais,
técnicos, políticos e econômicos estreitamente ligados ao contexto cultural e histórico do país,
14
processos estes que se integram no outro ambicioso projeto de reforma do Estado
plurinacional respeitoso da cosmologia indígena. O sucesso da reforma na gestão dos recursos
hídricos depende de uma melhora na capacidade gestora do Estado, que por sua vez remete ao
respeito da diversidade cultural e dos povos e nações indígenas, dívida histórica com a
maioria da população do país. Até que ponto estes dois projetos, da maneira como estão
atualmente pensados, são conciliáveis, só o tempo dirá.

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