Você está na página 1de 3

20/08/2019 resenhasonline 039.01: Crise das matrizes espaciais.

Reflexões a partir de um livro de Fábio Duarte | vitruvius

vitruvius | pt|es|en
receba o informativo | contato | facebook Curtir 39 mil busca em vitruvius ok

pesquisa revistas jornal


guia de livros arquitextos | arquiteturismo | drops | minha cidade | entrevista | projetos | resenhas online notícias
jornal agenda cultural
revistas resenhas online ISSN 2175-6694 rabiscos
em vitruvius eventos
buscar em resenhas online ok concursos
arquivo | expediente | normas seleção
039.01 ano 04, mar. 2005

Crise das matrizes espaciais. Reflexões a partir de um


livro de Fábio Duarte
Marcelo Corti

resenha do livro

Crise das matrizes


espaciais
D-Tower em Doetinchem, Holanda. Marcos Novak / NOX Arquitetura, cidades,
geopolítica,
tecnocultura
Fábio Duarte
(Num quarto gótico, com abóbadas altas e estreitas, Fausto, 2002
agitado, sentado à mesa de estudo)
039.01
FAUSTO
sinopses
Ai de mim! da filosofia,
como citar
Medicina, jurisprudência,
E, mísero eu! idiomas
Da teologia,
original: português
O estudo fiz, com máxima insistência.
Pobre simplório aqui estou compartilhe
E sábio como dantes sou!
De doutor tenho o nome e mestre em artes.
J.W. Goethe, Fausto (1)
039
A concepção da arquitetura como uma arte do espaço tem se alternado na 039.02
crítica moderna com outras vertentes interpretativas: as que privilegiam Olhar e viver São
critérios semióticos, as diversas genealogias, os dispositivos Cristóvão
sincrônicos e diacrônicos, o neopositivismo. De um lado, posturas tão Nireu Cavalcanti
diversas como as de Giedion e Zevi, que provavelmente só coincidem nessa
caracterização espacial; do outro, uma também uma variada plêiade que 039.03
inclui Venturi, Jencks ou Tafuri. Ainda não esgotado o ciclo histórico de Jardim e metáfora
pós-modernismos, regionalismos e deconstrutivismos, é estimulante a Sonia Berjman
leitura do livro de Duarte sobre a crise das matrizes espaciais
contemporâneas. Sobretudo se o leitor, mesmo sem compartilhar, ao menos
admitir uma concepção "espacialista" da disciplina, sente esse mesmo
"impulso fáustico" que parece animar Fábio Duarte a buscar nas distintas
correntes do conhecimento humano um sustento filosófico para a teorização
e para a práxis da arquitetura.

Espaço, território e lugar são três manifestações distintas dos fenômenos


espaciais. Duarte não admite uma relação hierárquica entre elas, nem
tampouco que alguma em particular se sobreponha a outra. O espaço,
tomando um conceito do grande Milton Santos, "é aquele cujos fixos e
fluxos compõem o ambiente vivido pelos seres humanos de forma coletiva";
segundo Henri Lefebvre, um espaço construído mais que postulado. O lugar
é uma porção de espaço significado que adquire sentido individual ou

www.vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/04.039/3166 1/3
20/08/2019 resenhasonline 039.01: Crise das matrizes espaciais. Reflexões a partir de um livro de Fábio Duarte | vitruvius
coletivo; o território, finalmente, é o espaço institucionalizado –
"legalizado".

As três instâncias se agrupam em matrizes de conhecimento, no sentido


proposto por Kuhn: uma organização de paradigmas que conformam uma
"predisposição" para a apreensão, compreensão e construção do mundo. Esta
matriz tem entrada a partir de distintas variáveis, das quais o autor
privilegia, por formação e interesse pessoal, a questão do espaço
arquitetônico. A desterritorialização geopolítica, a pretendida anulação
do espaço pelas tecnologias digitais, a globalização, a fragmentação,
questionam estas matrizes modernas e geram essa crise contemporânea.

Objeto de questionamentos em certos discursos dos anos 60, o espaço é sem


dúvida uma condição essencial da cidade, condicionada e condicionante de
qualquer outra categoria de análise que se procure. Para Duarte, o espaço
não tem uma lógica absoluta, "nem sequer a lógica de um espaço absoluto",
pois é construído na relação entre três partes: os objetos, as ações e os
seres humanos.

Duarte desenvolve assim um completo percurso pelo espaço contemporâneo,


que incita a uma reflexão pessoal: por exemplo, sobre a dualidade entre o
espaço arquitetônico de Le Corbusier presente em suas propostas ou
realizações urbanísticas. A arquitetura corbusiana apresenta uma
riquíssima concepção do espaço, aonde a fluidez se articula a um sentido
rigoroso do interior, do exterior e das transições; a idéia da Promenade
Architecturale realiza o conceito de Giedion do espaço-tempo, enquanto
que a planta livre e o terraço-jardim ampliam e multiplicam a experiência
do espaço arquitetônico. Ao contrário, seu espaço urbano se perde na
abstração, na homogeneidade e na desqualificação (sem dúvida, as
implantações urbanas de sua arquitetura podem ser exemplares e, na
prática, não existem talvez edifícios corbusianos que se relacionem mal
com sua cidade).

Mas esta ambigüidade é essencial a toda essa arquitetura moderna: basta


comparar os espaços de Wright com o âmbito de seus projetos de Broadacre
City. Ou a escassa definição dos espaços cívicos de Alvar Aalto,
magníficos no contexto de sua arquitetura. Nos trabalhos do Team X,
primeira crítica pós-bélica à ortodoxia arquitetônica do século XX, se
falava do não-lugar como um resultado da indeterminação abstrata do
espaço moderno, particularmente na arquitetura do Bauhaus e na cidade
corbusiana. Era uma crítica que questionava a idéia de continuidade
espacial, de fluidez e de transparência, de homogeneidade do espaço. Em
palavras de T. S. Elliot, citado por Duarte, há uma ligação entre a
anomia (ausência de normas o valores sociais) e a atopia, ausência de
lugar.

Estas críticas estiveram na base de posteriores desenvolvimentos neo-


racionalistas e neo-realistas que propuseram distintas formas de
articulação com a história da cidade.

Ao contrário, os não-lugares antropológicos de Marc Augé se definem mais


por sua indiferença territorial do que por sua indeterminação
constitutiva: de fato, muitos destes não-lugares são projetados com
referências historicistas e com um preciso sentido de composição de seus
limites e articulações. Contra o que se deixa entrever em uma leitura
apressada, não são tão anônimos nem tão lúgubres: Augé descreve com
maestria essa espécie de felicidade sentida por quem os percorre, a
segurança que dão em qualquer parte do mundo aos usuários da hiper-
modernidade.

O junk space descrito por Rem Koolhas é outra forma de entender o não-
lugar: "a modernização tinha um programa racional: compartilhar
universalmente as bênçãos da ciência. O espaço-lixo é sua apoteose, ou
seu derretimento. O espaço-lixo é o fruto do encontro entre a escada-
rolante e o ar-condicionado, concebido em uma incubadora de Pladur".
Segundo Daniel Parrochia, as sociedades chamadas móveis e flexíveis
conduzem de fato a um espaço completamente totalitário: "a noção de rede
encontra ali seu sentido original de instrumento de aprisionamento, cada
vez mais presente e ameaçador".

Nesse sentido, temos como resultado um paradoxo da urbanização


contemporânea: a coexistência de uma marcada fragmentação e
heterogeneidade espacial na organização metropolitana, com a extrema
homogeneidade das partes individuais. O que define a "maldição" espacial
contemporânea é, sem dúvida, a extrema fragmentação entre as partes
urbanas e, inclusive, entre as partes dos grandes objetos urbanos: a
indefinição dos grandes estacionamentos diante da simulada hiper-
definição dos espaços interiores. Com paradoxos impensados: em alguns
shoppings, são arquitetonicamente mais interessantes alguns de seus
espaços exteriores e suas transições com a cidade, do que os pátios e
galerias internas. Aqui, novamente Milton Santos: assim como não há um
tempo global, senão um relógio global, também não há um espaço global,
mas apenas alguns espaços globalizados.

Esta fragmentação, além disso, define melhor o espaço contemporâneo do


que os jogos biomorfológicos sobre a indeterminação e a fluidez, como no
caso do Estúdio NOX, ou as postulações de espaços a partir de modelos
informáticos, à maneira de Winka Dubbeldam. É algo que o videoclip, com
sua anulação da perspectiva e dos códigos narrativos convencionais,
explica com mais precisão. E nem sempre esta estética do videoclip está
baseada na rapidez do corte e da montagem de imagens: é só prestar
atenção nas distorções espaciais presentes em clips como Love is strong,
dos Rolling Stones, as hipnóticas seqüências por autopistas que

www.vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/04.039/3166 2/3
20/08/2019 resenhasonline 039.01: Crise das matrizes espaciais. Reflexões a partir de um livro de Fábio Duarte | vitruvius
caracterizam a os vídeos de música eletrônica, os planos seqüências de
notável interesse, como em Bitter Sweet Simphony de The Verve, alguns
vídeos do grupo U2, o Wanna Be das Spice Girls ou Come into my world, de
Kylie Minogue.

Com diz o mestre chileno Juan Borchers, não estamos diante de uma
anulação do espaço, mas diante de sua ampliação quase infinita: "com a
exploração do "espaço" incorremos em um novo pleonasmo. O planeta nos
aparece como algo inteiro. A circulação global, se diz, reduziu sua
extensão. Penso o inverso. Que se tornou na verdade muito mais vasto, ao
abarcar cronologicamente territórios outrora distantes, dos quais se
possuía uma idéia superficial" (Meta-arquitetura, Mathesis Edições,
Santiago de Chile, 1975).

Com muita clareza conceitual e descritiva, e com uma erudição que é


equiparada pela qualidade didática do texto, o autor consegue esboçar um
tipo de "teoria unificada" do espaço contemporâneo ou, melhor, de sua
crise. O resultado permite associar a queda do Muro, a cidade global e a
ameaça ambiental a um sistema que inclui a realização do espaço
arquitetônico: no processo, se enlaçam a proxemia de Edward Hall (2), a
leitura da "imagem da cidade" por Kevin Lynch, a reivindicação da rua por
Jane Jacobs, a qualidade rizomática que enuncia Deleuze, a economia
mundialmente integrada mas espacialmente dispersa descrita por Saskia
Sassen. A arquitetura, a globalização econômica, as reacomodações
políticas internacionais, a ciência física, as tecnologias informatizadas
e os efeitos de cada uma destas sobre nossa concepção do espaço, são
assim reelaboradas por Duarte em uma fascinante operação interpretativa,
que se beneficia da modéstia do autor em não propor nem prognosticar uma
solução para a crise. Afinal, esta crise das matrizes nos acompanhará,
seguramente, durante nossas vidas e será o contexto teórico no qual
deveremos pensar o espaço em nossas respectivas disciplinas.

[resenha publicada originalmente em espanhol no website "Café de las Ciudades"


<http://www.cafedelasciudades.com.ar/arquitetura_28.htm>.]

notas

GOETHE, Johann Wolfgang. Fausto. Tradução de Jenny Segall Klabin. São Paulo,
Edusp, 1981, p. 41.

Nota do editor – Na comunicação existem paralinguagens não codificadas nas


linguagens oral/escrita que contribuem para o entendimento. Entre elas estão,
por exemplo, a cinestesia (movimentos e posturas corporais, incluídos o olhar e
o contato corporal) e a proxemia (concepção, estruturação e uso do espaço).

leia também

"As propostas das vanguardas modernas", de Renato Luiz Sobral Anelli, sobre o
livro de Ozenfant e Jeanneret e o livro Arquitetura do século XX e outros
escritos de Gregori Warchavchik

sobre o autor

Marcelo Corti é editor do website argentino especializado em urbanismo "Café de


las Ciudades"

comentários

1 comentário Classificar por Mais antigos

Adicione um comentário...

Rafael Milani Medeiros


crise das matrizes espaciais
Curtir · Responder · 1·7a

Plugin de comentários do Facebook

© 2000–2019 Vitruvius As informações são sempre responsabilidade da fonte citada


Todos os direitos reservados

www.vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/04.039/3166 3/3

Você também pode gostar