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1 Sonho e Realidade

Todos nós sonhamos, quer nos recordemos disso ou não. Sonhamos quan-
do bebês e continuamos a sonhar até morrer. Toda noite entramos num
mundo desconhecido. Podemos nos apresentar com nossa identidade co-
mum ou a de alguém completamente diferente. Encontramos pessoas que
conhecemos ou que desconhecemos, que estão vivas ou mortas. Voamos,
encontramos seres não-humanos, temos experiências de êxtase, rimos,
choramos, ficamos aterrorizados, exaltados ou transformados. Contudo,
em geral, damos pouca atenção a essas experiências extraordinárias. Mui-
tos ocidentais, quando se aproximam do ensinamento, fazem-no com
ideias sobre os sonhos baseadas na teoria psicológica; mais tarde quando
se sentem mais interessados em usar o sonho na sua vida espiritual, eles
geralmente enfocam o conteúdo e o significado dos sonhos. Ràramente
a natureza do sonho em si mesma é investigada. Quando o é, a investi-
gação leva aos processos misteriosos que sustentam a totalidade da nossa
existência, não apenas o período da vida em que sonhamos.
O primeiro passo da prática do sonho é bem simples: devemos reco-
nhecer o grande potencial que o sonho representa para a jornada espiri-
tual. Normalmente o sonho é considerado "irreal", em oposição à vida
"real", quando estamos acordados. Mas não há nada mais real do que o
sonho. Esta afirmação só faz sentido quando se compreende que a vida
normal acordada é tão irreal quanto o sonho, e exatamente da mesma
maneira. Então é possível entender que o yoga do sonho se aplica a todas
as experiências, aos sonhos do dia e também aos sonhos da noite.

-31-
d~
.......,,111;1111111íi/lf

2 Como Surge a Experiência

IGNORÂNCIA
A totalidade da nossa experiência, inclusive o sonho, surge da ignorân-
cia. Essa é uma afirmação um tanto chocante quando feita no Ocidente
por isso, vamos primeiro entender o que se quer dizer com "ignorância':
(ma-rigpa*). A tradição tibetana distingue entre dois tipos de ignorância:
a ignorância inata e a ignorância cultural. A ignorância ina_ta é a base do
samsara, e a característica determinante dos seres comuns. E a ignorância
da nossa verdadeira natureza e da verdadeira natureza do mundo, e acaba
se emaranhando com as delusões da mente dualista.
O Dualismo concebe as polaridades e as dicotomias. Ele divide a uni-
dade indivisível da experiência em isto e aquilo, certo e errado, você e eu.
Com base nessas divisões conceituais, desenvolvemos preferências que se
manifestam como apego e aversão, as respostas habituais que formam a
maior parte daquilo que identificamos como nós mesmos (nossa identi-
dade). Queremos isto, não aquilo; acreditamos nisto, não naquilo; respei-
tamos isto e desdenhamos aquilo. Desejamos prazer, conforto, riqueza e
fama; e tentamos fugir da dor, da pobreza, da vergonha e do desconforto.
Desejamos essas coisas para nós mesmos e para aqueles que amamos e não
nos importamos com os demais. Desejamos uma experiência diferente
daquela que estamos te<ido, ou desejamos nos agarrar a uma experiência
e evitar as mudanças inevitáveis que levarão à sua cessação.
Existe um segundo tipo de ignorância, que é condicionada cultural-
mente. Ela surge à medida que os desejos e aversões tornam-se institu-
cionalizados em uma cultura e codificados em sistemas de valores. Por
exemplo, na Índia, os hindus acreditam que é errado comer vacas, mas
adequado comer porcos. Os muçulmanos acreditam que é apropriado
comer carne de vaca, mas são proibidos de comer carne de porco. Os

-32 -
A Natureza do Sonho

tibetanos comem ambas as carnes. Quem está certo:> O h. d h


_ certos, o muçulmano acha que os muçul
Os hindus estao · m u ac _a que
.
tos e Otibetano acha que os tibetanos manos estao cer-
estão certos As df
, · rerentes crenças
surgem das ~endê~cias e crenças que fazem parte da cultura _ não da
sabedoria pnmordial.
Outro exemplo pode ser encontrado nos conflitos internos da filoso-
fia. Existem muitos sistemas filosóficos que se definem por discordarem
uns dos outros em pontos sutis. Apesar de serem desenvolvidos com a
intenção de levar _os seres à sabedo~ia, os próprios sistemas produzem ig-
norância, na medida que seus seguidores se prendem a uma compreensão
dualista da realidade. Isso é inevitável em qualquer sistema conceituai
porque a mente conceituai é em si mesma uma manifestação da igno~
rância.
A ignorância cultural é desenvolvida e preservada nas tradições. Ela
permeia cada costume, opinião, conjunto de valores e corpo de conheci-
mentos. Tanto os indivíduos quanto as culturas aceitam essas preferên-
cias como sendo tão fundamentais que elas são consideradas bom-senso
ou leis divinas. Crescemos nos apegando a várias crenças, a um partido
político, um sistema médico, uma religião, uma opinião sobre a maneira
como as coisas deveriam ser. Passamos pela escola primária, primeiro grau,
colegial e talvez faculdade, e de certo modo, cada diploma é um prêmio
por desenvolvermos uma ignorância mais sofisticada. A educação reforça
0 hábito de ver o mundo através de determinada lente. Podemos nos

tornar especialistas em uma visão errónea, tornarmo-nos muito precisos


em nosso entendimento e até mesmo apresentá-la a outros experts. Isto
pode também acontecer na filosofia, onde se aprende sistemas intelectuais
detalhados e se transforma a mente num instrumento agudo de investiga-
ção. Mas até que a ignorância inata seja penetrada, estaremos meramente
desenvolvendo uma visão adquirida, não a sabedoria primordial.
Nós nos apegamos até às pequenas coisas: uma marca de sabão ou um
corte especial de cabelo. Em maior escala, desenvolvemos religiões, siste-
mas políticos, filosofias, psicologias e ciências. Mas ninguém nasce com
a crença de que é errado comer carne de vaca ou carne de porco, ou que
um sistema filosófico é correto e o outro é erróneo, ou que esta religião é
verdadeira e aquela é falsa. Essas coisas precisam ser aprendidas. A lealda-
de a certos valores é o resultado da ignorância cultural, mas a propensão
a aceitar visões limitadas se origina no dualismo que é a manifestação da
ignorância inata.

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Os Yogas Tibetanos do Sonho e do Sono

Isto não é ruim. É simplesmente assim. Nossos apegos podem levar à


m também se manifestar como tecnologias úteis e ar
guerra, mas pode . d tcs
. - de grande benefic10 para o mun o. Enquanto não est·
d1versas .1que •saodos participaremos do dualismo
. ,
e esta tudo bem. Há u
1-

vermos 1 umma , m
ditado em tibetano, que diz: "Quando no corpo de ~m burro, aprecie 0
im" Em outras palavras, devemos apreciar e aproveitar esta
gosto do cap · . . . . ,
vida, porque ela é sign1ficauva e preciosa em s1 mesma, e porque e a vida
que estamos vivendo. .
Se não tomarmos cuidado, os ensmamentos podem ser usados para
manter a nossa ignorância. Pode-se dizer que é ruim para uma determi-
nada pessoa obter um grau elevado, ou errado ter restrições dietéticas,
mas esta não é a questão. Ou poderíamos dizer que a ignorância é ruim
ou que a vida normal não passa de estupidez samsárica. Mas a ignorân-
cia é simplesmente um obscurecimento da consciência. Estar apegado a
ela ou rejeitá-la é apenas o mesmo velho jogo do dualismo, jogado no
reino da ignorância. Podemos ver quão penetrante ele é. Até mesmo os
ensinamentos têm de trabalhar com o dualismo - encorajando o apego
à virtude, por exemplo, e a aversão à não-virtude - paradoxalmente uti-
lizando o dualismo da ignorância para superar a ignorância. Quão sutil
a nossa compreensão tem de se tornar e quão facilmente podemos nos
perder. É por isso que a prática é necessária, a fim de obter a experiência
direta, em vez de apenas desenvolver outro sistema conceituai para deta-
lhar e defender. Quando são vistas de uma perspectiva mais elevada, as
coisas tendem a se nivelar. Da perspectiva da sabedoria não-dual, não há
importante e não-importante.

AÇÕES E RESULTADOS: KARMA E TRAÇOS


KÁRMICOS
A cultura em que vivemos nos condiciona, mas levamos conosco as se-
mentes do condicionamento onde quer que a gente vá. Tudo que nos
incomoda está, na verdade, em nossa mente. Culpamos o meio em que
vivemos e a nossa situação pela nossa infelicidade e acreditamos que, se
pudéssemos mudar nossas condições, seríamos felizes. Mas a situação em
que nos encontramos é apenas a causa secundária de nosso sofrimento. A
causa principal é a ignorância inata e o desejo que resulta dela de que as
coisas sejam diferentes do que realmente são.
Talvez nós resolvamos escapar do estresse da cidade mudando-nos
para o litoral ou para as montanhas. Ou podemos deixa; o isolamento e

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A Natureza do Sonho

as dificuldades do campo pela agitação da cidade A m d d


. _ , · u ança po e ser
boa, porque as cond1çoes secundarias são alteradas e
0 contentamento
Pode ser encontrado. Mas somente por pouco tempo A · d
• raiz o nosso
descontentamento mu~a-se_con~sco para nossa nova casa, e a partir dela
desenvolvem-se novas msat1sfaçoes. Logo somos pegos novamente pelo
turbilhão da esperança e do medo.
Ou podemos pensar que, se tivéssemos mais dinheiro, ou um sócio
melhor, ou um corpo, um emprego, ou uma educação melhores, seríamos
felizes. Mas sabemos que isto não é verdade. Os ricos não estão livres do
sofrimento, um novo sócio vai nos deixar insatisfeitos por alguma razão,
o corpo vai envelhecer, o novo emprego vai se tornar menos interessante,
e assim por diante. Quando achamos que a solução para a nossa infelici-
dade pode ser encontrada no mundo exterior, nossos desejos só poderão
ser saciados temporariamente. Por não compreendermos este fato, somos
arremessados ora numa direção ora noutra pelos ventos do desejo, sempre
inquietos e insatisfeitos. Somos governados pelo nosso karma e estamos o
tempo todo plantando as sementes de uma futura colheita kármica. Esta
maneira de agir não somente nos distrai do caminho espiritual, como
também nos impede de encontrar satisfação e felicidade na nossa vida
diária.
Enquanto nos identificarmos com o apego e a aversão da mente em
movimento, produziremos as emoções negativas que nascem da discre-
pância entre o que é e o que nós queremos que seja. As ações geradas a
partir destas emoções - o que inclui quase todas as ações das nossas vidas
comuns - deixam traços kármicos.
Karma* significa ação. Traços kdrmicos* são os resultados das ações,
que permanecem na consciência mental e influenciam o nosso futuro. Po-
demos entender parcialmente traços kármicos, se pensarmos neles como
sendo o que no Ocidente costuma-se chamar tendências do inconsciente.
São inclinações, padrões de comportamento interno e externo, reações
profundamente arraigadas, conceitualizações habituais. Eles ditam nossas
reações emocionais diante das situações e o nosso entendimento intelec-
tual, bem como nossos hábitos emocionais característicos e nossa rigidez
intelectual. Eles criam e condicionam cada resposta que temos normal-
mente pàra cada elemento da nossa experiência.
Vejamos um exemplo de traços kármicos num nível grosseiro, embora
a mesma dinâmica funcione até mesmo nos níveis mais sutis e domi-
nantes de experiência: um homem cresce em um lar em meio a muitas
discussões. Então, talvez trinta ou quarenta anos depois de ter saído de

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01 Y<Jga, Ttbf11tno, do Sonho f do Sono

casa, ele está descendo uma rua e passa por uma casa onde
discutindo entre s1.· Naque1a noite, · e1e tem um sonho n as pcs% Cl~ ··
. El qual
brigando com a esposa ou compan heira. e acorda de 01 1.. ~ e se vc,
o cl
· an,""' scn ·
se ofendido e retraído. Sua compan heira nota e reage ao seu tind0-
0 que O deixa ·
am da ·
mais ·
1rn·tac1 o. mau hum
· or,
Esca sequência de experiências nos diz alguma coisa sobr
. h . , b e traços 1.,
micos. Quan do era iovem, o omem reagia as rigas em 5 Qr.
. - bº
medo raiva e dor. Sentta aversao por nga, urna resposta n uacasaco ' rn
' . ormal e
aversão deixou um traço em sua mente. Décadas mais tar:de 1 ' C&ta
, . , ,Cep,tssa
uma casa e ouve uma bnga; esta é a condiçao secundária que . . P<>r
• ·e <:sc1rnula
antigo traço kárm1co, que se man1resta em um sonho naquela noite 0
No sonho, o homem reage à provocação da companheira do ·
·
com sennmentos de raiva
· ed or.Esra resposta e, controlada pelos sonho
kármicos que foram reunidos em sua consciência mental quando t~aços
e . criança
e que, provavelmente, foram rerorçados mmcas vezes desde então. Qi
do a companheira do sonho, que é uma projeção da mente do homuan.
_ ,d _ em,
provoca-o, sua reaçao e e aversao, exatamente como acontecia
·
do e1e era cnança. • que e1e sente no sonh o e' a nova açãoquan-
A aversao
cria uma nova semente. Quando acorda, ele está tomado pelas em ~ue
negativas que são o fruto de karmas anteriores; ele se sente mal a::S
0
e discante de sua companheira. Para complicar ainda mais as coi ...
=,a
companheira reage de acordo com suas tendências habituais karmica-
mente determinadas, calvez ficando irritadiça, retraída, arrependida ou
subserviente e o homem novamente reage negativamente, semeando mais
uma semente kármica.
Qualquer reação a qualquer situação - externa ou interna, acordados
ou sonhando - baseada no apego ou aversão, deixa um traço na mente.
Da mesma maneira que o karma dita reações, as reações semeiam mais
sementes kármicas que ditarão futuras reações, e assim por diante. É dessa
maneira que o karma conduz a mais karma. É a Roda do Samsara, 0 ciclo
interminável de ação e reação.
Apesar desse exemplo enfocar o karma no nível psicológico, o karma
determina todas dimensões da existência. Ele molda os fenômenos men-
tais e emocionais da vida de um indivíduo, bem como a percepção e a
interpretação da existência, o funcionamento do corpo e o dinamismo
de causa e efeito do mundo exterior. Cada aspecto da existência, seja ele
pequeno ou grande, é governado pelo karma.
Os traços kármicos deixados na mente são como sementes. E como
sementes, precisam de certas condições para se manifestarem. Exacamen-

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A Natureuz do Sonho

te como a semente precisa da combinação certa de umidade, luz, nutrien-


tes e temperatura para germinar e crescer, o traço kármico se manifesta
quando a situação certa surge. Os elementos da situação que dão suporte
à manifestação do karma são conhecidos como causas e condições secun-
dárias.
É útil pensar no karma como o processo de causa e efeito, porque isto
leva ao reconhecimento de que as escolhas feitas em resposta a qualquer
situação, interna ou externa, geram consequências. Quando realmente
entendermos que cada traço kármico é uma semente para futuras ações
governadas pelo karma, poderemos usar esta compreensão para evitarmos
a criação de negatividades em nossa vida e, em vez disso, criar condições
que influenciarão nossas vidas em uma direção positiva. Ou, se souber-
mos como, poderemos permitir que a emoção se autolibere tão logo ela
surja, neste caso nenhum karma novo é criado.

KARMA NEGATIVO
Se reagirmos a uma situação com emoção negativa, o traço deixado na
mente um dia amadurecerá e influenciará negativamente uma situação na
vida. Por exemplo, se alguém está zangado conosco e nós, em resposta,
reagimos com raiva, deixamos um traço que torna mais provável que a
raiva surja em nós novamente e, além disso, torna-se mais provável para
nós encontrarmos as situações secundárias que permitem que a nossa
raiva habitual se manifeste. Isto é fácil de perceber, se sentimos muita
raiva em nossas vidas ou se conhecemos alguém que o faça. Pessoas iradas
encontram o tempo todo situações que parecem justificar sua raiva, en-
quanto que pessoas com menos raiva, não. As situações externas podem
ser semelhantes, mas as inclinações kármicas diferentes criam mundos
subjetivos diferentes.
Se uma emoção é expressa impulsivamente, ela pode gerar resultados
e reações fortes. A raiva pode levar a uma briga ou a algum outro tipo de
destruição. As pessoas podem ser prejudicadas física ou emocionalmen-
te. Isto não é verdade apenas para a raiva; se o medo é manifestado, ele
também pode criar grande estresse para a pessoa que o sente, pode alienar
aquela pessoa das demais, etc. Não é difícil demais perceber como isto
leva a traços negativos que influenciam o futuro negativamente.
Se suprimirmos a emoção, mesmo assim haverá um traço negati-
vo. A supressão é uma manifestação de aversão. Ela ocorre pelo fato de

-37-
Os Ycigas Tibetanos do Sonho e do Sono

·mirmos algo dentro de nós mesmos, pondo algo atrás deu


reprl ., . ma porta e
tran
cando-a, forçando parte da.
nossa
,
expenenc1a à obscuridade on de ela
uarda aparentemente hostil, ate que a causa secundária apro . da
ag ' . . pna a
ue Isco pode vir a se manifestar de muitas maneiras Por
cOnvoq • . . . · exemplo,
e suprimimos nossa mveJa dos outros, ela pode um dia se man·c 1restar na
S
forma de uma explosão emocional, ou pode estar .presente . no -ui
1 gamento
cruel que fazemos de outras pessoas
. de
. quem sentimos
, mve ·
1a secr ecamen-
te, mesmo que neguemos esta mveJa para nos mesmos. O julgamento
mental cambém é uma ação, baseada na aversão, que gera sementes kár-
micas negativas.

KARMA POSITIVO
Ao invés destas duas respostas negativas - sermos levados em nosso com-
portamento pela tendência kármica, ou suprimi-la - podemos parar um
momento, nos comunicarmos conosco mesmos e optarmos por produzir
0
antídoto para a emoção negativa. Se alguém está zangado conosco e
nossa própria raiva surge, o antídoto é a compaixão. Induzi-la pode pare-
cer forçado ou simulado no início, mas, se percebermos que a pessoa que
está nos irritando está sendo conduzida por seu próprio condicionamen-
to e mais adiante percebermos que ela está sofrendo um estreitamento
de consciência, por estar presa no seu próprio karma negativo, sentire-
mos compaixão e poderemos começar a liberar nossas reações negativas.
Quando fazemos isco, começamos a construir nosso futuro de maneira
positiva.
Esta nova resposta, que ainda está baseada no desejo - neste caso,
por virtude, paz ou crescimento espiritual - produz um traço kármi-
co que é positivo, nós plantamos a semente da compaixão. A próxima
vez que nos depararmos com a raiva, estaremos um pouco mais pro-
pensos a responder com compaixão, o que é muito mais confortável e
espaçoso que a estreiteza da raiva autoprotetora. Deste modo, a prática
da virtude retreina cada vez mais nossa resposta ao mundo e nos vemos,
por exemplo, nos deparando cada vez menos com a raiva, tanto interna
quanto externamente. Se continuarmos com esta prática, mais cedo ou
mais carde a compaixão surgirá espontaneamente e sem esforço. Usando
o conhecimento do karma, podemos retreinar nossas mentes para usar
toda experiência, até os devaneios mais íntimos e fugazes para sustentar
nossa prática espiritual.

-38-
A Natuma do Sonho

COMO LIBERAR AS EMOÇÕES


A melhor resposta para a emoção negativa é permitir que ela se autolibere,
permanecendo na consciência não-dual, livre do apego e da aversão. Se
conseguirmos fazer isto, a emoção passará através de nós, como um pássa-
ro voando através do espaço; sem deixar nenhum sinal de sua passagem. A
emoção surge e então se dissolve espontaneamente na vacuidade.
Neste caso, a semente kármica está se manifestando - como emoção,
pensamento, sensação corporal ou um impulso na direção de determi-
nados comportamentos - mas como nós não respondemos com apego
ou aversão, nenhuma semente de karma futuro é gerada. Toda v~ que
permitimos que a inveja, por exemplo, surja e se dissolva na vacuidade,
sem ficarmos aprisionados por ela, nem tentarmos reprimi-la, a força da
nossa tendência kármica para a inveja diminui. Não há novas ações para
fortalecê-la. Liberar a emoção desta maneira corta o karma pela raiz. É
como se queimássemos as sementes kármicas, antes de elas terem oportu-
nidade de se transformarem num problema em nossa vida.
Vocês podem me perguntar por que é melhor liberar emoções em v~
de gerar karma positivo. A resposta é que todos os traços kármicos atuam
no sentido de nos aprisionar, nos restringir a determinadas identidades.
O objetivo do caminho é a liberação completa de todo condicionamen-
to. Isto não significa que, quando estivermos liberados, traços positivos
como a compaixão, não estarão presentes. Eles estarão. Mas, quando não
formos mais compelidos pelas tendências kármicas, seremos capazes de
ver nossa situação claramente e responder a ela de maneira espontânea
e apropriada, em vez de sermos empurrados numa direção ou puxados
numa outra. A compaixão relativa que surge das tendências kármicas po-
sitivas é muito boa, mas melhor é a compaixão absoluta que surge sem
esforço e de maneira perfeita no indivíduo liberado do condicionamento
kármico. Ela é mais espaçosa e mais inclusiva, mais eficaz e livre das de-
lusões do dualismo.
Embora permitir que a emoção se autolibere seja a melhor resposta, é
difícil fazer isso, antes de nossa prática estar avançada e estável. Mas, por
outro lado, nossa prática é agora, todos nós podemos decidir parar por
um momento quando a emoção surge, nos examinarmos interiormente
e optarmos por agir tão habilmente quanto possível. Todos nós podemos
aprender a diminuir a força do impulso dos hábitos kármicos. Podemos
usar um processo conceituai, lembrando-nos que a emoção que estamos
experimentando é simplesmente a maturação de traços kármicos anterio-
res. Então, é possível que sejamos capazes de diminuir a intensidade de

-39-
Os }0gas Tibetanos tÚJ Sonho e tÚJ Sono

nossa identificação com aquela emoção ou pomo de vista b


e . Q d ,d e a and
nossa posição derens1va. uan o o no a emoção se solta . onar a
' a 1den ·,L ,
relaxa e fica mais espaçosa. Po demos esco1her uma resposta . t1'-1<1Qe
.. M . mais pos· .
plantando sementes de karma posmvo. ais uma vez, é irn it,va,
· · - D 1 ,
zer isto sem repnm1r a emoçao. evemos re axar a medida portante e
ra-
. 'd . . . que gera"'
compaixão não ng1 amente supnmu a raiva em nosso co .. ,os
' rpo,enq
tentamos ter bons pensamentos. Uanto
A jornada espiritual não visa beneficiar apenas O futur d'
• • • A' med'd o istante o
nossa próxima existenc1a. 1 a que praticamos, trein d u
. .. ' . - d an o-nos
reagir mais posmvamente as s1tuaçoes, mu amos nossos tra ,.L.
ços .l\éll'O}i
a
e desenvolvemos qualidades que produzem mudanças positi ~s
. d
que estamos vivendo agora. Quan o percebemos mais claram ª
.• . . . . 'fi , . ente que
roda expenenc1a, por mais ms1gm cante ou mt1ma que ela seJ·
a, tem um
resultado, podemos usar este conhecimento para mudar noss
as v1 e
'das
nossos sonhos.

OBSCURECIMENTOS DA CONSCIÊNCIA
Os traços "kármicos permanecem conosco como resíduos psíquicos
de ações realizadas com apego ou aversão. São obscurecimentos da
consciência armazenados na consciência-base do indivíduo, no kunzhi
namsh?. Embora se fale dele como um recipiente, o kunzhi namshe, na
verdade, é equivalente ao obscurecimento da consciência: quando não há
obscurecimentos da mente, não há kunzhi namshe. Não se trata de uma
coisa ou de um lugar; é a d~nârnica que serve de base para a organização
da experiência dualística. E tão insubstancial quanto um conjunto de
hábitos, e tão poderoso quanto os hábitos que permitem que a linguagem
faça sentido, que as formas sejam reduzidas a objetos, e a existência nos
pareça algo significativo que somos capazes de dirigir e compreender.
A metáfora comum para kunzhi namshe é a de um armazém ou um re-
positório que não pode ser destruído. Podemos pensar no kunzhi namshe
armazenando um conjunto de padrões e modelos. É uma gramática da
experiência que é afetada mais ou menos intensamente por cada ação que
realizamos externa e internamente, física ou cognitivamente. Enquanto
existirem tendências habituais na mente do indivíduo, o kunzhi namshe
existirá. Quando morremos, o corpo deteriora, mas o kunzhi namshe não.
Os traços kármicos continuam na consciência mental até serem purifica-
dos. Quando eles são completamente purificados, não há mais um kunzhi
namshe e o indivíduo é um Buda.

- 40 -
A Natureza do Sonho

TRAÇOS KÁRMICOS E SONHO


Toda experiência samsárica é moldada por traços kármicos. Estados men-
tais, pensamentos, emoções, imagens mentais, percepções, reações ins-
tintivas, "bom-senso" e até mesmo nosso senso de identidade, são todos
governados pelos mecanismos do karma. Por exemplo, você pode acordar
sentindo-se deprimido. Você toma o café da manhã e tudo parece ficar
bem, mas há um senso de depressão para o qual não existe explicação.
Dizemos, neste caso, que algum karma está amadurecendo. As causas e
condições se reuniram de tal modo que a depressão se manifesta. Pode
haver uma centena de razões para que esta depressão ocorra nesta manhã
em particular, e ela pode se manifestar de inúmeras maneiras. Ela também
pode se manifestar durante a noite, como um sonho.
No sonho, os traços kármicos manifestam-se na consciência liberada
das restrições da mente racional com a qual racionalizamos e afastamos
com tanta frequência um sentimento ou uma imagem mental efêmera.
Podemos pensar no processo desta maneira: durante o dia, a consciência
ilumina os sentidos e nós experimentamos o mundo, entremeando as ex-
periências sensoriais e psíquicas de modo a criar a totalidade significativa
de nossa vida. À noite, a consciência se retira dos sentidos e repousa na
base. Se tivermos desenvolvido uma prática forte de presença com muita
experiência da natureza vazia e luminosa da mente, então estaremos cons-
cientes desta presença pura e lúcida e inseridos nela. Mas para a maioria
de nós a consciência ilumina os obscurecimentos, os traços kármicos e
estes se manifestam como um sonho.
Os traços kármicos são como fotografias que tiramos de cada expe-
riência. Qualquer reação de apego ou aversão em relação a qualquer
experiência - lembranças, sentimentos, percepções sensoriais, ou pensa-
mentos - é como tirar uma foto instancnea. No quarto escuro de nosso
sono, revelamos o filme. As condições secundárias encontradas recente-
mente determinarão as imagens a serem reveladas em uma determinada
noite. Algumas imagens ou traços são gravados profundamente dentro de
nós por reações fortíssimas, enquanto que outras deixam somente uma
marca indelével. Nossa consciência, como a luz de um projetor, ilumina
os traços que foram estimulados e eles se manifestam como imagens e
experiências do sonho. Nós as colocamos em sequência como num filme,
porque esta é a maneira como a nossa psique funciona para fabricar o
sentido, o que resulta em uma narrativa construída a partir de tendências
condicionadas e identidades habituais: o sonho.

-41-
Os l'ógas Tibetanos do Sonho e do Sono

O mesmo processo ocorre continuamente enquanto e


" stamos a da
dos constituindo o que chamamos de nossa experiência" A d' cor •
' . Inâ .
mais fácil de entender no sonho, porque eles podem ser observad rnica . é
O 1
· d · • ·
das limitações do mundo s1co e a consc1enc1a racional D
fí s 1vrcs
. . · urante O d'
embora ainda esteJamos envolvidos no mesmo processo de rod _ ia,
·
sonho, nós proJetamos · 'dade mtenor
esta at1v1 · · da mente sobre
p UÇao do
·• . • " . " 0
inundo
e achamos que nossas expenenc1as sao reais e externas a n ,
ossa propria
mente.
No yoga do sonho, este conhecimento sobre o karma é usad
. d . d·c '
treinar a mente a reagir e maneira 1rerente a experiência 0
o para
. . d ' que re-
sulta em novos traços kárm1cos a partir os quais são gerados sonh
mais favoráveis à prática espiritual. Não é uma questão de for os
.• . . d d . . . ça, nem.
de a consc1enc1a agir e mo o 1mpenoso para opnmir O inconsc1ente .
Ao contrário, o yoga do sonho crê que uma maior presença e ins1g · • h.t
nos permitam fazer escolhas positivas na vida. Compreender a estrutura
dinâmica da experiência e as consequências das ações leva à percep -0
de que toda experiência de qualquer espécie é uma oportunidade p: a
prática espiritual.
A prática do sonho também nos oferece um método para dissipar
as sementes do karma futuro durante o sonho. Se permanecermos cons-
cientes durante um sonho, poderemos permitir que os traços kármicos
libertem a si mesmos à medida que surgem e eles não continuarão mais a
se manifestar em nossas vidas como estados negativos. Do mesmo modo
que no estado acordado, isto só acontecerá se conseguirmos permanecer
na consciência não-dual de rigpd', a clara luz da mente. Se isso não for
possível para nós, poderemos ainda desenvolver tendências para optar-
mos por um comportamento espiritualmente positivo mesmo nos nossos
sonhos, até sermos capazes de transcender inteiramente as preferências e
o dualismo.
Por último, quando tivermos purificado os obscurecimentos até não
restar nenhum, não haverá mais filme, nenhuma influência kármica ocul-
ta que dê cor e forma à luz de nossa consciência. Uma vez que os traços
kármicos são as raízes dos sonhos, quando eles se esgotam totalmente ape-
nas a clara luz da consciência permanece: nenhum filme, nehuma histó-
ria, nenhum sonhador e nenhum sonho, apenas a natureza fundamental
luminosa que é a realidade absoluta. É por isso que a iluminação é o fim
dos sonhos e é conhecida como "despertar".

-42-
A Natureza do Sonho

OS SEIS REINOS DA EXISTÊNCIA CÍCLICA


De acordo com os ensinamentos, há seis reinos (lokas*) de existência*
nos quais todos os seres ilusionados existem. São os reinos dos deuses,
semideuses, humanos, animais, fantasmas famintos e seres infernais. Basi-
camente, os reinos são as seis dimensões da consciência, seis dimensões de
experiência possível. Eles se manifestam em nós individualmente, como
as seis emoções negativas: raiva, cobiça, ignorância, inveja, orgulho e dis-
tração prazerosa (distração prazerosa é o estados emocional no qual as
outras cinco emoções estão presentes em quantidades iguais, harmonio-
samente equilibradas). Os seis reinos, porém, não são apenas categorias
de experiência emocional, mas também mundos reais nos quais os seres
nascem exatamente como nós nascemos no reino humano ou um leão
nasce no reino dos animais.
Cada reino pode ser considerado como um continuum de experiência.
O reino do inferno, por exemplo, engloba desde a experiência emocional
interna de raiva e ódio, até comportamentos baseados na raiva - como
os conflitos e as guerras - e instituições, preconceitos e parcialidades
construídas sobre o ódio - como os exércitos, o ódio e a intolerância
racial - até o mundo real no qual os seres existem. Um nome para a
totalidade dessa dimensão de experiência, da emoção individual até o
mundo real, é "inferno".
Da mesma maneira que os sonhos, os reinos são manifestações de
traços kármicos, mas, no exemplo dos reinos, os traços kármicos são co-
letivos em vez de individuais. Como o karma é coletivo, os seres de cada
reino partilham experiências similares em um mundo consensual, como
nós partilhamos experiências com os outros humanos. O karma coletivo
cria corpos, sentidos e capacidades mentais que permitem aos indivíduos
partilharem os mesmos potenciais e categorias de experiência ao mesmo
tempo que tornam outros tipos de experiência impossíveis. Os cães, por
exemplo, coletivamente conseguem ouvir sons inaudíveis aos humanos,
e os humanos experimentam a linguagem de uma maneira que os cães
não são capazes.
Embora os reinos pareçam ser distintos e sólidos, como o nosso mun-
do nos parece, na verdade eles são oníricos e insubstanciais. Eles inter-
penetram uns aos outros e estamos conectados a todos eles. Temos em
nós, as sementes do renascimento nos outros reinos e, quando experi-
mentamos emoções diferences, participamos de algumas das qualidades
características e do sofrimento predominante nos outros reinos. Quando

- 43 -

0
Os }ógas Tibetanos do Sonho e do Sono

coroados pelo orgulho egoísta ou pela inveja raivosa po


somos d , ' r ex.ernpl
.unentamos algo da qualida e caractenstica da experiênci d . 0 ,
ex.per a o re1n
dos semi·deuses. o
Às vezes os indivíduos têm predominância de uma dimensã0
. • al · e e . em sua
stituiça-o· mais amm , ou mais rantasma rammto, ou mais
con · . . . natureza
de deus ' ou mais semideus. .Ela sobressai como traço dominante deseu
caráter e pode ser reconhecida no modo como estes indivíduos fal
andam e nos seus relacionamentos. Pode ser que conheçamos pesso arn,
. d as que
parecem estar sempr: presas no ~e~no os fant~smas f~intos, elas nunca
têm O suficiente, estao sempre
. avidas por mais - mais de seus am·igos,
de seu ambiente, de sua vida - mas nunca se sentem satisfeitas. Ou tal-
vez conheçamos alguém que se pareça com um ser dos infernos, raivoso
violento, furioso, perturbado. E mais comum as pessoas apresentare~
aspectos de todas as dimensões na sua constituição individual.
Como estas dimensões da consciência se manifestam na forma de
emoções, torna-se visível o quanto elas são universais. Por exemplo, toda
cultura conhece a inveja. A aparência da inveja pode variar, porque a ex-
pressão da emoção é um meio de comunicação, uma linguagem de gestos,
determinada tanto pela biologia quanto pela cultura, e a cultura fornece a
variável. Mas o sentimento de inveja é o mesmo em todos os lugares. No
Bõn-Budismo, esta universalidade é explicada pela realidade dos reinos e
correlacionada a ela.
As seis emoções negativas não constituem uma lista exaustiva de
emoções. Não faz sentido discutir em que reino a tristeza ou o medo
se encaixam. O medo pode ocorrer em qualquer um dos reinos, assim
como a tristeza, ou a raiva, ou a inveja, ou o amor. Embora as emoções
negativas sejam experiências afetivas que vivemos, e sejam experiências
afetivas características dos reinos, elas também são palavras-chaves que
representam a totalidade das dimensões da experiência, o continuum que
vai desde a experiência emocional individual até os reinos propriamente
ditos. E estas dimensões, cada uma delas engloba amplas possibilidades
de experiência, inclusive experiências emocionais diversas.
As seis qualidades da consciência são chamadas de caminhos, porque
elas conduzem a algum lugar: elas nos levam aos lugares de nosso renas-
cimento e também a diferentes reinos de experiência nesta vida. Quando
um ser se identifica com, ou é iludido por uma das emoções negativas,
certos resultados ocorrem. É assim que o karma realmente atua. Por
exemplo, a fim de nascer como humano, temos de ter estado fortemente
envolvidos em disciplinas morais em nossas existências anteriores. Mes-

- 44 -

L_ _
A Natureza do Sonho

mo na cultura popular, isso é expresso pela observação de que uma pessoa


não é considerada "totalmente humana" até que o amor e a consideração
pelos demais se desenvolvam plenamente nela.
Se vivermos uma vida caracterizada pelas emoções negativas de ódio
ou raiva, nós experimentaremos um resultado diferente: renasceremos
no inferno. Acontece de um ser poder nascer realmente no mundo dos
infernos, tanto quanto psicologicamente. Conectar-se com a dimensão
de ódio, produz experiências que, até mesmo nesta vida, chamamos de
infernais.
Evidentemente, isto não significa que todos os seres humanos tentam
evitar essas experiências. O karma pode conduzir uma pessoa a uma di-
mensão tão fortemente, que a emoção negativa torna-se atraente. Pensem
em todas as formas de "divertimento" cheias de ódio, matanças e guerra.
Podemos desenvolver um gosto por essas coisas. Dizemos ''A Guerra é um
inferno", contudo muitos de nós se sentem atraídos para a guerra.
Nossa predisposição na direção de uma ou outra dessas dimensões
pode também ser construída pela cultura. Por exemplo, em uma socieda-
de em que o guerreiro violento é considerado heróico, podemos ser con-
duzidos nessa direção. Esse é um exemplo da ignorância cultural descrita
anteriormente.
Embora os reinos possam parecer fantasiosos para os ocidentais, a
manifestação dos seis reinos pode ser observada em nossa própria expe-
riência, em nossos sonhos e quando estamos acordados, e na vida das
pessoas que nos cercam. Às vezes, por exemplo, podemos nos sentir per-
didos. Sabemos como conduzir a nossa rotina diária, mas o significado
nos escapa. O sentido se foi, não através da liberação, e sim pela falta de
compreensão. Temos sonhos em que estamos atolados na lama, ou em
um quarto escuro, ou em uma rua na qual não há sinalização. Chegamos
a um cômodo sem saída ou nos sentimos confusos sobre que direção to-
mar. Isso pode ser uma manifestação da ignorância, do reino dos animais.
(Esta ignorância não é a ignorância inata. Pelo contrário, é uma insensi-
bilidade, uma falta de inteligência). -
Experimentamos um pouco do reino dos deuses, quando nos perde-
mos em distração prazerosa, desfrutando períodos indistintos de prazer
e felicidade. Mas esses períodos um dia chegam ao fim. E enquanto eles
duram, nossa consciência tem de ser limitada. Temos de permanecer em
uma espécie de superficialidade, evitando olhar profundamente demais
para a situação ao nosso redor, e nos tornarmos conscientes do sofrimen-
to que existe ao nosso redor. É bom desfrutar de períodos agradáveis

- 45-
Os Yogas Tibetanos do Sonho e do Sono

em nossas vidas, mas, se não praticarmos, nós não continuar


libertar das 1·dent1"dades 1·1m1ta· doras e erroneas,
• e mais cedo O emos• a n0 s
, . d u mais tard
0 período de prazer aca bara e cairemos espreparados em um d e
, , 1 fi esta o Ola"
difícil, no qual e provave que quemos perdidos em algum t· d JS
e d ipo e sofr·
menta. No final de uma resta ou e um dia muito agradável h' . i-
, a muitas
vezes algum tipo de desapontamento ou depressão, ao retorn
armos par
casa. Ou então depois de um fim de semana feliz, podemos .ª
nos sentir
desapontados ao retornarmos ao trabalho.
Todos nós temos períodos em que experimentamos diferentes remos· .
a felicidade do reino dos deuses, talvez quando estamos de férias ou num·
pass~io com amigos, a dor d~ ganância, quando vemos alguma coisa que
sennmos que temos de possmr, a vergonha do orgulho ferido, as pontadas
da inveja, o inferno da amargura e do ódio, a insensibilidade e a confusão
da ignorância. Nós mudamos frequentemente, e com facilidade, da expe-
riência de um reino para a de outro. Todos nós já vivemos a experiência de
estarmos num estado feliz, conectado ao reino dos deuses; o sol brilha, as
pessoas nos parecem bonitas, nos sentimos bem em relação a nós mesmos.
Então recebemos uma má notícia, ou um amigo diz algo que nos magoa.
Repentinamente, o próprio mundo parece ter mudado. Os risos soam
vazios, o céu está frio e indiferente, não achamos mais os outros atraentes,
nem apreciamos mais a nós mesmos. Mudamos as dimensões de experi-
ência e o mundo parece ter mudado conosco. Da mesma maneira, os seres
dos outros reinos permanecem conectados com todos os outros reinos;
tanto um gato quanto um semideus podem experimentar raiva, ciúmes,
carência emocional e assim por diante.
Durante o tempo de nossas vidas que sonhamos, experimentamos,
também, os seis reinos. Do mesmo modo que determinam a qualida-
de da experiência durante o dia, as seis emoções negativas moldam o
sentimento e o conteúdo dos sonhos. Os sonhos são de uma variedade
infinita, mas todos os sonhos kármicos estão ligados a uma ou mais das
seis dimensões.
A seguir, veremos uma breve descrição dos seis reinos. Tradicional-
mente os reinos são apresentados como descrições de lugares e dos seres ·
que os habitam. Os infernos, por exemplo, são em número de dezoito,
nove quentes e nove gelados. Todos os detalhes existentes nas descrições
tradicionais têm um significado, mas aqui nosso foco são as experiências
dos reinos agora, nesta vida. Estamos ligados energeticamente a cada uma
das dimensões de experiência, através de um centro de energia (chakra*)
do corpo. Suas localizações estão relacionadas a seguir. Os chakras são

- 46 -
A Naturtu lkJ Sonho

importantes em muitas práticas distintas e desempenham um papel im-


portante no yoga do sonho.

Reino Emoção Básica Chakra


Deuses (Devas) Distração agradável Coroa
Semideuses (Asuras) Inveja Garganta
Humanos Ciúmes Coração
Animais Ignorância Umbigo
Fantasmas famintos (Pretas) Avidez Órgãos Sexuais
Infernos Ódio Sola dos Pés

Reino dos Infernos


A raiva é a emoção-germe do reino dos infernos. Quando os traços kár-
micos da raiva se manifestam, há muitas expressões possíveis, tais como
aversão, tensão, ressentimento, crítica, discussão e violência. Grande
parte da destruição das guerras é causada pelo ódio, e muitas pessoas
morrem todos os dias em consequência do ódio, Contudo a raiva nunca
resolve nenhum problema. Quando a raiva nos domina, perdemos o
controle e a autoconsciência. Quando caímos na armadilha ou somos
ludibriados pelo ódio, a violência e a raiva, estamos participando do
reino dos infernos.
O centro energético da raiva fica na sola dos pés. O antídoto para a
raiva é o amor puro e não-condicionado que surge do ser não-condicio-
nado.
Tradicionalmente, diz-se que os infernos são compostos de nove in-
fernos quentes e de nove infernos gelados. Os seres que vivem lá sofrem
imensamente, sendo torturados até a morte e retornando instantanea-
mente à vida repetidas vezes.

Reino dos Fantasmas Famintos


A avidez é a emoção-germe do reino dos fantasmas famintos (preta). A
avidez surge como um sentimento de extrema necessidade que não pode
ser preenchido. A tentativa de satisfazer a avidez é como beber água sal-
gada, quando se está com sede. Quando somos consumidos pela avidez,
procuramos a satisfação externamente e não internamente, mas nunca
encontramos o suficiente para preencher o vazio do qual desejamos es-
capar. A fome real que sentimos é de conhecimento da nossa verdadeira
natureza.

- 47 -
Os lógas Tibetanos do Sonho e do Sono

A avidez está associada ao desejo sex al


corpo e' o chakra atras' dos genitais A gen u ' 'dseud cent ro energé •
. · eros1 a e, 0 d t1co
o que os outros necessitam, desata O difícil , d . 0 ar abert no
,, no a avidez ªtnentc
Os pretas sao representados tradicionalm ente como ·
enormes
, . e famintas ,, e bocas e gargantas mi· nuscu
, 1as. Al seres com barrigas
.
ras andas onde nao se ouve nem falar de águ a durante guns habitai-n ter.
"l
·
Outros podem encontrar comida e O que beb , centenas de an
'nh . er, porem se 1 os.
um pouqm o que sep através de suas bocas . , e es engolire
mmusculas 0 rn
exp1ode em chamas dentro do estômago , caus an do- lhes ' d alirnento
muitos tipos de sofrimento para os pretas mas t d l ~ran e dor. Há
. ,, ' , o os e es sao r l
avareza e da opos1çao a generosidade dos outros. esu tado da

Reino dos Animais


A ignorância
. é o germe do reino dos animais . Ela é expenmentad

um sentimento de estar perdido, embotado indecis0
. . '
. ª corno
, ou mconsci
Mmtas pessoas expenmentam uma tristeza e um obs . ente.
,. d . " . curectmento ori .
nar1os esta 1gnoranc1a; elas sentem uma necessidade ' mas nem mesrngt-
0
sabem o que querem ou o que fazer para se satisfazerem. No 0cid
,, . 'd d e l ente, as
pessoas sao multas vezes cons1 era .as 1e izes. se estiverem
" sem pre ocupa-
das, no entanto podemos estar perdidos na 1gnorancia em me1•0 ao nosso
trabalho, quando não conhecemos nossa verdadeira natureza.
O chakra associado com a ignorância fica no centro do corpo, na altu-
ra do umbigo. A sab~doria encontrada quando nos voltamos para dentro
e conhecemos nossa verdadeira natureza é o antídoto da ignorância.
Os seres no reino dos animais são dominados pelo obscurecimento da
ignorância. Os animais vivem com medo, por causa da constante ameaça
de outros animais e dos seres humanos. Mesmo os animais grandes são
atormentados por insetos que entram em sua pele e se alimentam de sua
carne. Os animais domésticos são ordenhados, transportam cargas, sáo
castrados, têm os narizes perfurados e são montados sem serem capazes
de escapar. Os animais sentem dor e prazer, mas são dominados _Pela
ignorância que os impede de olhar além das circunstâncias de suas vidas,
para encontrar sua verdadeira natureza.

Reino dos Humanos


. d • h Q do tomados pelo ciú-
O ciúme é a emoção-raiz o remo umano. uan e temos· uma i'deia, .
O
me queremos prender a nós e arrastar conosco qu · al _
' d fi 1· idade como go ex
um bem um relacionamento. Vemos a fonte ª e ic d eJ·o
' . obJ' eto de nosso es .
cerno a nós, o que conduz a um mator apego ao

-48-
A NatureUJ. do Sonho

O ciúme está relacionado ao chakra do coração. O antídoto do ciúme


é uma grande abertura do coração, a abertura que surge quando nos co-
nectamos com nossa verdadeira natureza.
É fácil para nós observarmos o sofrimento do nosso próprio reino.
Experimentamos o nascimento, a doença, a velhice e a morte. Somos
afligidos pela perda devido à constante impermanência. Quando alcan-
çamos o objeto de nosso desejo, lutamos para mantê-lo, mas sua perda
cedo ou tarde é certa. Em vez de nos regozijarmos com a felicidade dos
outros, somos com frequência vítimas da inveja e do ciúme. Apesar de
o nascimento humano ser considerado a maior ventura, porque os hu-
manos têm a chance de ouvir e praticar os ensinamentos, somente uma
ínfima minoria dentre nós encontra o caminho e se dispõe a aproveitar
esta grande oportunidade.

Reino dos Semideuses


O orgulho é a principal aflição dos semideuses (asuras). O orgulho é um
sentimento ligado à realização e é com frequência territorial. Uma das
causas da guerra é o orgulho de indivíduos e nações que acreditam ter
a solução para os problemas de outro povo. Há um aspecto velado do
orgulho que se manifesta, quando acreditamos ser piores que outros em
uma determinada característica ou aptidão, um egocentrismo às avessas
que nos separa dos demais.
O orgulho está associado com o chakra da garganta. Ele se manifesta
muitas vezes em ações iradas e seu antídoto é a grande paz e humildade
que surgem, quando descansamos na nossa verdadeira natureza.
Os asuras desfrutam de prazer e abundância, mas têm uma inclinação
para a ira e a inveja. Lutam continuamente uns com os outros, mas seu
maior sofrimento ocorre quando declaram guerra aos deuses que desfru-
tam de ainda mais abundância que os semideuses. Os deuses são mais
poderosos que os asuras e muito difíceis de matar. Eles sempre vencem as
guerras e os asuras sentem a devastação emocional do orgulho ferido e da
inveja por se sentirem diminuídos - o que, por sua vez, leva-os o tempo
todo a guerras fúteis.

Reino dos Deuses


A distração agradável é a semente do reino dos deuses. Neste reino, as
cinco emoções negativas estão igualmente presentes, equilibradas como
cinco vozes harmoniosas num coro. Os deuses se perdem num estado
inebriante de alegria preguiçosa e de prazer egocêntrico. Eles desfrutam

-49-
Os l'ógas Tibetanos do Sonho e do Sono

de grande riqueza e conforto em suas vidas que duram até u é


• e . d m on. To-1- .
as necessidades parecem ser sat1sre1tas e to os os deseJ· 05 saCla
. dOS L "élS •
· d' 'd
como acontece com alguns m ivi uos e socie · dad es, os deuses fi · .cusun
redados no prazer e ~a ~usca de!e. Eles n~o tê1?1 nenhum semid:: rcn-
lidade sob sua expenencia. Perdidos em diversoes e prazeres sem . ea-
. 'd ' 1 · h
eles ficam distrat os e nao se vo tam para o camm o da liberaçao. - sentido '
Mas, mais cedo ou mais tarde, esta situação acaba mudando
, . . ,. . , quan-
do se esgotam as causas karmicas para. a extstencia no reino dos deuses
Quando a morte fi n al mente se aproxima, o deus agonizante é ab d ·
nado ~el~s amigos_ e companheiros, in~apazes de enfrentar a pro: :
sua propna mortalidade. O corpo antenormente perfeito envelhece
deteriora. O período de felicidade acabou. Com olhos divinos de se
. , d . d fi . ' o eus
po d e ver as cond 1çoes o remo e so nmentos em que ele ou ela está d _
tinado a renascer, e o sofrimento da próxima vida começa antes mes:o
da morte.
O reino dos deuses está associado ao chakra da coroa na cabeça. O
antídoto para a alegria egocêntrica dos deuses é a compaixão abrangente
que surge espontaneamente através da consciência da realidade que se
encontra por trás do ser e do mundo.

POR QUE EMOÇÃO "NEGATIVA"?


Muitas pessoas no Ocidente se sentem incomodadas quando ouvem as
emoções serem rotuladas como "negativas", mas não são as emoções em si
mesmas que são negativas. Todas as emoções ajudam na nossa sobrevivên-
cia e são necessárias para a totalidade da experiência humana, inclusive
as emoções de apego, raiva, orgulho, ciúmes, etc. Sem as emoções não
viveríamos plenamente.
No entanto, as emoções tornam-se negativas, quando somos iludidos
por elas e perdemos contato com aspectos mais profundos de nós mes-
mos. Elas são negativas, quando reagimos com apego ou aversão, porque,
quando isso acontece, sofremos uma limitação de consciência e de iden-
tidade. Nesse caso, então, semeamos as sementes das futuras condições
negativas que nos aprisionam nos reinos de sofrimento, tanto nesta vida,
como nas vidas subsequentes, nas quais pode se tornar difícil empreender
a jornada espiritual. E este resultado é negativo, quando comparado a
uma identidade mais expansiva e, particularmente, quando comparado à
liberação de todas as identidades projetadas e limitadas. É por isso que é
importante pensarmos nos reinos não apenas como emoções, mas tam-
bém como seis dimensões de consciência e experiência.

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A Natureza do Sonho

Existem diferenças culturais no que toca à emoção. Por exemplo, 0 medo


e a tristeza não são mencionados frequentemente nos ensinamentos, não
obstante grande parte do samsara esteja impregnado de ambos. E O con-
ceito de autodestruição é estranho para os tibetanos, que não possuem
palavras para descrevê-lo. Quando fui à Finlândia muitas pessoas con-
versaram comigo sobre depressão. Foi um contraste enorme com a Itália
que eu acabara de visitar, onde as pessoas pareciam falar muito pouco de
depressão. O clima, a religião, as tradições e os sistemas de crenças espi-
rituais nos condicionam e afetam a nossa experiência. Mas o mecanismo
subjacente pelo qual ficamos presos - o apego e a aversão, a projeção e
a interação dualista com a qual projetamos - é a mesma em todo lugar.
E é isso que é negativo na experiência emocional.
Se nós realmente compreendêssemos e experimentássemos a natureza
vazia da realidade, não haveria nenhum apego e logo, nenhuma forma
mais grosseira de emoção; mas, ignorantes da verdadeira natureza dos
fenômenos, nos apegamos às projeções da mente, como se elas fossem
reais. Desenvolvemos uma relação dualística com as ilusões, sentindo rai-
va ou cobiça, ou alguma outra reação emocional. Na realidade absoluta,
não existe nenhuma entidade independente que seja o alvo da nossa raiva,
ou o objeto de qualquer emoção. Não há absolutamente nenhuma razão
para se ficar zangado. Nós criamos a história, as projeções e a raiva ao
mesmo tempo.
No Ocidente, muitas vezes o conhecimento das emoções é usado na
Psicologia, para tentar melhorar as vidas das pessoas no Samsara. Isso é
bom. O sistema tibetano tem, porém, um objetivo diferente e está mais
voltado a conhecer as emoções, para podermos nos livrar das constrições
e visões errôneas às quais nos prendemos através das ligações emocionais.
Novamente, isso não significa que as emoções são negativas por si só, e
sim que elas se tornam negativas, na medida em que nos apegamos a elas,
ou fugimos delas.

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