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Todos nós sonhamos, quer nos recordemos disso ou não. Sonhamos quan-
do bebês e continuamos a sonhar até morrer. Toda noite entramos num
mundo desconhecido. Podemos nos apresentar com nossa identidade co-
mum ou a de alguém completamente diferente. Encontramos pessoas que
conhecemos ou que desconhecemos, que estão vivas ou mortas. Voamos,
encontramos seres não-humanos, temos experiências de êxtase, rimos,
choramos, ficamos aterrorizados, exaltados ou transformados. Contudo,
em geral, damos pouca atenção a essas experiências extraordinárias. Mui-
tos ocidentais, quando se aproximam do ensinamento, fazem-no com
ideias sobre os sonhos baseadas na teoria psicológica; mais tarde quando
se sentem mais interessados em usar o sonho na sua vida espiritual, eles
geralmente enfocam o conteúdo e o significado dos sonhos. Ràramente
a natureza do sonho em si mesma é investigada. Quando o é, a investi-
gação leva aos processos misteriosos que sustentam a totalidade da nossa
existência, não apenas o período da vida em que sonhamos.
O primeiro passo da prática do sonho é bem simples: devemos reco-
nhecer o grande potencial que o sonho representa para a jornada espiri-
tual. Normalmente o sonho é considerado "irreal", em oposição à vida
"real", quando estamos acordados. Mas não há nada mais real do que o
sonho. Esta afirmação só faz sentido quando se compreende que a vida
normal acordada é tão irreal quanto o sonho, e exatamente da mesma
maneira. Então é possível entender que o yoga do sonho se aplica a todas
as experiências, aos sonhos do dia e também aos sonhos da noite.
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IGNORÂNCIA
A totalidade da nossa experiência, inclusive o sonho, surge da ignorân-
cia. Essa é uma afirmação um tanto chocante quando feita no Ocidente
por isso, vamos primeiro entender o que se quer dizer com "ignorância':
(ma-rigpa*). A tradição tibetana distingue entre dois tipos de ignorância:
a ignorância inata e a ignorância cultural. A ignorância ina_ta é a base do
samsara, e a característica determinante dos seres comuns. E a ignorância
da nossa verdadeira natureza e da verdadeira natureza do mundo, e acaba
se emaranhando com as delusões da mente dualista.
O Dualismo concebe as polaridades e as dicotomias. Ele divide a uni-
dade indivisível da experiência em isto e aquilo, certo e errado, você e eu.
Com base nessas divisões conceituais, desenvolvemos preferências que se
manifestam como apego e aversão, as respostas habituais que formam a
maior parte daquilo que identificamos como nós mesmos (nossa identi-
dade). Queremos isto, não aquilo; acreditamos nisto, não naquilo; respei-
tamos isto e desdenhamos aquilo. Desejamos prazer, conforto, riqueza e
fama; e tentamos fugir da dor, da pobreza, da vergonha e do desconforto.
Desejamos essas coisas para nós mesmos e para aqueles que amamos e não
nos importamos com os demais. Desejamos uma experiência diferente
daquela que estamos te<ido, ou desejamos nos agarrar a uma experiência
e evitar as mudanças inevitáveis que levarão à sua cessação.
Existe um segundo tipo de ignorância, que é condicionada cultural-
mente. Ela surge à medida que os desejos e aversões tornam-se institu-
cionalizados em uma cultura e codificados em sistemas de valores. Por
exemplo, na Índia, os hindus acreditam que é errado comer vacas, mas
adequado comer porcos. Os muçulmanos acreditam que é apropriado
comer carne de vaca, mas são proibidos de comer carne de porco. Os
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A Natureza do Sonho
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Os Yogas Tibetanos do Sonho e do Sono
vermos 1 umma , m
ditado em tibetano, que diz: "Quando no corpo de ~m burro, aprecie 0
im" Em outras palavras, devemos apreciar e aproveitar esta
gosto do cap · . . . . ,
vida, porque ela é sign1ficauva e preciosa em s1 mesma, e porque e a vida
que estamos vivendo. .
Se não tomarmos cuidado, os ensmamentos podem ser usados para
manter a nossa ignorância. Pode-se dizer que é ruim para uma determi-
nada pessoa obter um grau elevado, ou errado ter restrições dietéticas,
mas esta não é a questão. Ou poderíamos dizer que a ignorância é ruim
ou que a vida normal não passa de estupidez samsárica. Mas a ignorân-
cia é simplesmente um obscurecimento da consciência. Estar apegado a
ela ou rejeitá-la é apenas o mesmo velho jogo do dualismo, jogado no
reino da ignorância. Podemos ver quão penetrante ele é. Até mesmo os
ensinamentos têm de trabalhar com o dualismo - encorajando o apego
à virtude, por exemplo, e a aversão à não-virtude - paradoxalmente uti-
lizando o dualismo da ignorância para superar a ignorância. Quão sutil
a nossa compreensão tem de se tornar e quão facilmente podemos nos
perder. É por isso que a prática é necessária, a fim de obter a experiência
direta, em vez de apenas desenvolver outro sistema conceituai para deta-
lhar e defender. Quando são vistas de uma perspectiva mais elevada, as
coisas tendem a se nivelar. Da perspectiva da sabedoria não-dual, não há
importante e não-importante.
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A Natureza do Sonho
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01 Y<Jga, Ttbf11tno, do Sonho f do Sono
casa, ele está descendo uma rua e passa por uma casa onde
discutindo entre s1.· Naque1a noite, · e1e tem um sonho n as pcs% Cl~ ··
. El qual
brigando com a esposa ou compan heira. e acorda de 01 1.. ~ e se vc,
o cl
· an,""' scn ·
se ofendido e retraído. Sua compan heira nota e reage ao seu tind0-
0 que O deixa ·
am da ·
mais ·
1rn·tac1 o. mau hum
· or,
Esca sequência de experiências nos diz alguma coisa sobr
. h . , b e traços 1.,
micos. Quan do era iovem, o omem reagia as rigas em 5 Qr.
. - bº
medo raiva e dor. Sentta aversao por nga, urna resposta n uacasaco ' rn
' . ormal e
aversão deixou um traço em sua mente. Décadas mais tar:de 1 ' C&ta
, . , ,Cep,tssa
uma casa e ouve uma bnga; esta é a condiçao secundária que . . P<>r
• ·e <:sc1rnula
antigo traço kárm1co, que se man1resta em um sonho naquela noite 0
No sonho, o homem reage à provocação da companheira do ·
·
com sennmentos de raiva
· ed or.Esra resposta e, controlada pelos sonho
kármicos que foram reunidos em sua consciência mental quando t~aços
e . criança
e que, provavelmente, foram rerorçados mmcas vezes desde então. Qi
do a companheira do sonho, que é uma projeção da mente do homuan.
_ ,d _ em,
provoca-o, sua reaçao e e aversao, exatamente como acontecia
·
do e1e era cnança. • que e1e sente no sonh o e' a nova açãoquan-
A aversao
cria uma nova semente. Quando acorda, ele está tomado pelas em ~ue
negativas que são o fruto de karmas anteriores; ele se sente mal a::S
0
e discante de sua companheira. Para complicar ainda mais as coi ...
=,a
companheira reage de acordo com suas tendências habituais karmica-
mente determinadas, calvez ficando irritadiça, retraída, arrependida ou
subserviente e o homem novamente reage negativamente, semeando mais
uma semente kármica.
Qualquer reação a qualquer situação - externa ou interna, acordados
ou sonhando - baseada no apego ou aversão, deixa um traço na mente.
Da mesma maneira que o karma dita reações, as reações semeiam mais
sementes kármicas que ditarão futuras reações, e assim por diante. É dessa
maneira que o karma conduz a mais karma. É a Roda do Samsara, 0 ciclo
interminável de ação e reação.
Apesar desse exemplo enfocar o karma no nível psicológico, o karma
determina todas dimensões da existência. Ele molda os fenômenos men-
tais e emocionais da vida de um indivíduo, bem como a percepção e a
interpretação da existência, o funcionamento do corpo e o dinamismo
de causa e efeito do mundo exterior. Cada aspecto da existência, seja ele
pequeno ou grande, é governado pelo karma.
Os traços kármicos deixados na mente são como sementes. E como
sementes, precisam de certas condições para se manifestarem. Exacamen-
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A Natureuz do Sonho
KARMA NEGATIVO
Se reagirmos a uma situação com emoção negativa, o traço deixado na
mente um dia amadurecerá e influenciará negativamente uma situação na
vida. Por exemplo, se alguém está zangado conosco e nós, em resposta,
reagimos com raiva, deixamos um traço que torna mais provável que a
raiva surja em nós novamente e, além disso, torna-se mais provável para
nós encontrarmos as situações secundárias que permitem que a nossa
raiva habitual se manifeste. Isto é fácil de perceber, se sentimos muita
raiva em nossas vidas ou se conhecemos alguém que o faça. Pessoas iradas
encontram o tempo todo situações que parecem justificar sua raiva, en-
quanto que pessoas com menos raiva, não. As situações externas podem
ser semelhantes, mas as inclinações kármicas diferentes criam mundos
subjetivos diferentes.
Se uma emoção é expressa impulsivamente, ela pode gerar resultados
e reações fortes. A raiva pode levar a uma briga ou a algum outro tipo de
destruição. As pessoas podem ser prejudicadas física ou emocionalmen-
te. Isto não é verdade apenas para a raiva; se o medo é manifestado, ele
também pode criar grande estresse para a pessoa que o sente, pode alienar
aquela pessoa das demais, etc. Não é difícil demais perceber como isto
leva a traços negativos que influenciam o futuro negativamente.
Se suprimirmos a emoção, mesmo assim haverá um traço negati-
vo. A supressão é uma manifestação de aversão. Ela ocorre pelo fato de
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Os Ycigas Tibetanos do Sonho e do Sono
KARMA POSITIVO
Ao invés destas duas respostas negativas - sermos levados em nosso com-
portamento pela tendência kármica, ou suprimi-la - podemos parar um
momento, nos comunicarmos conosco mesmos e optarmos por produzir
0
antídoto para a emoção negativa. Se alguém está zangado conosco e
nossa própria raiva surge, o antídoto é a compaixão. Induzi-la pode pare-
cer forçado ou simulado no início, mas, se percebermos que a pessoa que
está nos irritando está sendo conduzida por seu próprio condicionamen-
to e mais adiante percebermos que ela está sofrendo um estreitamento
de consciência, por estar presa no seu próprio karma negativo, sentire-
mos compaixão e poderemos começar a liberar nossas reações negativas.
Quando fazemos isco, começamos a construir nosso futuro de maneira
positiva.
Esta nova resposta, que ainda está baseada no desejo - neste caso,
por virtude, paz ou crescimento espiritual - produz um traço kármi-
co que é positivo, nós plantamos a semente da compaixão. A próxima
vez que nos depararmos com a raiva, estaremos um pouco mais pro-
pensos a responder com compaixão, o que é muito mais confortável e
espaçoso que a estreiteza da raiva autoprotetora. Deste modo, a prática
da virtude retreina cada vez mais nossa resposta ao mundo e nos vemos,
por exemplo, nos deparando cada vez menos com a raiva, tanto interna
quanto externamente. Se continuarmos com esta prática, mais cedo ou
mais carde a compaixão surgirá espontaneamente e sem esforço. Usando
o conhecimento do karma, podemos retreinar nossas mentes para usar
toda experiência, até os devaneios mais íntimos e fugazes para sustentar
nossa prática espiritual.
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A Natuma do Sonho
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Os }0gas Tibetanos tÚJ Sonho e tÚJ Sono
OBSCURECIMENTOS DA CONSCIÊNCIA
Os traços "kármicos permanecem conosco como resíduos psíquicos
de ações realizadas com apego ou aversão. São obscurecimentos da
consciência armazenados na consciência-base do indivíduo, no kunzhi
namsh?. Embora se fale dele como um recipiente, o kunzhi namshe, na
verdade, é equivalente ao obscurecimento da consciência: quando não há
obscurecimentos da mente, não há kunzhi namshe. Não se trata de uma
coisa ou de um lugar; é a d~nârnica que serve de base para a organização
da experiência dualística. E tão insubstancial quanto um conjunto de
hábitos, e tão poderoso quanto os hábitos que permitem que a linguagem
faça sentido, que as formas sejam reduzidas a objetos, e a existência nos
pareça algo significativo que somos capazes de dirigir e compreender.
A metáfora comum para kunzhi namshe é a de um armazém ou um re-
positório que não pode ser destruído. Podemos pensar no kunzhi namshe
armazenando um conjunto de padrões e modelos. É uma gramática da
experiência que é afetada mais ou menos intensamente por cada ação que
realizamos externa e internamente, física ou cognitivamente. Enquanto
existirem tendências habituais na mente do indivíduo, o kunzhi namshe
existirá. Quando morremos, o corpo deteriora, mas o kunzhi namshe não.
Os traços kármicos continuam na consciência mental até serem purifica-
dos. Quando eles são completamente purificados, não há mais um kunzhi
namshe e o indivíduo é um Buda.
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A Natureza do Sonho
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Os l'ógas Tibetanos do Sonho e do Sono
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A Natureza do Sonho
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Os }ógas Tibetanos do Sonho e do Sono
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A Natureza do Sonho
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Os Yogas Tibetanos do Sonho e do Sono
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A Naturtu lkJ Sonho
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Os lógas Tibetanos do Sonho e do Sono
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A NatureUJ. do Sonho
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Os l'ógas Tibetanos do Sonho e do Sono
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A Natureza do Sonho
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