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BENEDITO DUTRA

Depoimento concedido ao Centro de Memória da


Eletricidade no Brasil
1990
Centro da Memória da Eletricidade no Brasil

MEMÓRIA DA ELETRICIDADE

Depoimento de Benedito Dutra para o

Centro da Memória da Eletricidade no Brasil


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Centro da Memória da Eletricidade no Brasil
MEMÓRIA DA ELETRICIDADE

Programa de História Oral

Coordenação:
Coordenadoria de Pesquisa – COPQ

BENEDITO DUTRA
(depoimento)

Depoimentos concedidos por Benedito Dutra, em 11 de janeiro de 1990, 19 de julho


de 1990 e 24 de julho de 1990, para o âmbito do projeto “Benedito Dutra”, sob a
coordenação geral do Centro da Memória da Eletricidade no Brasil – MEMÓRIA
DA ELETRICIDADE.

De acordo com a Lei 9.160 dos Direitos Autorais


Proibida a publicação no todo ou em parte; permitida a citação.
A citação deve ser textual com indicação da fonte.

Rio de Janeiro
2017

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Edição
Centro da Memória da Eletricidade no Brasil - MEMÓRIA DA ELETRICIDADE
©2017

Presidente:
Augusto Rodrigues
Diretora-executiva:
Helena Guido de Araújo e Oliveira

Coordenadoria do Centro de Referência: Leila Lobo de Mendonça


Coordenadoria de Pesquisa: Ligia Maria Martins Cabral
Coordenadoria de Comunicação: Ivson Alves de Sá
Coordenadoria de Administração: Rosana Maria de Almeida Viana

Projeto gráfico e editoração eletrônica:


Leila Lobo de Mendonça e Vanessa Braga Baranda

O áudio deste depoimento pertence ao Centro da Memória da Eletricidade no


Brasil – MEMÓRIA DA ELETRICIDADE

* No acervo sonoro recebeu o nº de registro - Col. 01 Avulsos-0001 Benedito Dutra

* Na Biblioteca Léo Amaral Penna recebeu o nº de tombo - 5756

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FICHA TÉCNICA

Tipo de entrevista: Temática

Entrevista: Elisa Muller e Paulo Brandi de Barros Cachapuz

Digitação: Maria Izabel Cruz Bittar

Local: Rio de Janeiro - RJ

Data: 11 de janeiro de 1990, 19 de julho de 1990 e 24 de julho de 1990.

Duração: áudio indisponível

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SUMÁRIO
Dados sobre o núcleo familiar

Vinda para o Rio de Janeiro, após revolução ocorrida no Amazonas em 1909,


acompanhando o seu pai que era oficial do Exército, desincumbindo-se na prática
das funções de engenheiro.

Estudos iniciais na Escola Barth. Exala as aulas de Educação Moral e Cívica,


lamentando extinção da disciplina em 1931, por decreto do presidente Getúlio
Vargas. Elogia o presidente Castelo Branco pela sua iniciativa de reintroduzir o
ensino de Moral e Cívica.

Fim da carreira militar do pai. Trabalhos de seu pai como engenheiro militar:
construção da ponte sobre o rio Paraná; unificação das estradas de ferro Itapura-
Corumbá e Noroeste do Brasil.

Experiência como estagiário no Rio Grande do Sul.

Formação escolar no Rio de Janeiro (Colégio Santo Inácio e Colégio- Santo Antônio
Maria Zacarias).

Escolha da profissão de engenheiro.

Em 1925, novo estágio, desta vez, já como estudante de engenharia, na Construção


de Macaé. Destaca que a usina de Glicério foi a primeira do país a utilizar
equipamento Brown-Bowery.

Colegas de curso na Escola Politécnica: Leo Amaral Penna e Guilherme da Silveira


Filho.

Comentários sobre o curso de engenharia. Destaca que poucos estudantes optavam


pela especialização em algum ramo da engenharia, preferindo atuar como uma
espécie de clínico-geral.

Recorda os professores Dilcídio Pereira, que substituiu o prof. Henrique Morize na


cátedra de Física, e Tobias Moscoso, que ministrava a cadeira de Economia
Política.

Referência à influencia cultural francesa.

Menciona outras experiências de trabalho na época de estudante: macadamização


da cidade de Campo Grande e construção de Friburgo-Niterói.

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O fechamento da firma de seu pai e a fundação da B. Dutra. Concorrência para a
reforma da estação de Friburgo da Leopoldina Railway. Contato com o Almt.
Protógenes Guimarães.
A composição da B. Dutra.

Questionário.

1) Em 1956, o Sr. atuou em duas frentes de trabalho de suma importância no


conjunto de iniciativas do governo JK na área de energia elétrica: a preparação do
projeto de constituição da Central Elétrica de Furnas e na área de legislação, a
elaboração do projeto de nº 1898, enviado ao Congresso em setembro de 1956, e do
Decreto nº 41019 promulgado por JK em fevereiro de 1957. Como Sr. foi convidado
a participar desses trabalhos e de que forma conseguiu se desincumbir das tarefas.

2) Em seu depoimento, Cotrim afirma que Furnas foi a única empresa de capital
misto verdadeiramente misto que se fez no Brasil? O Sr. concorda com essa
afirmação? Como se desenvolveram as negociações com a Light, o governo de Minas
e o governo de São Paulo (Monteiro Filho, Bias Fortes e Jânio Quadros) para sua
participação em Furnas?

3) Como se desenvolveram as negociações com o Banco Mundial que resultaram na


concessão de financiamento de 73 milhões de dólares.

4) Em seu depoimento, Cotrim afirma que o Sr. tinha uma concepção mais rígida
de administração, enquanto o diretor técnico de Furnas, Flavio Lyra era mais
liberal, cabendo a ele, Cotrim, funcionar como árbitro. (p.219) Caso o Sr. concorde
com esse testemunho, o Sr. poderia citar elementos que teriam levado Cotrim a
qualifica-lo como um administrador rígido e o Flavio Lyra como mais liberal?

5) Cotrim afirma ainda que devido aos problemas com a George Wimpey, o Sr. em
dada altura criou um órgão de compras de materiais estrangeiros. Qiando e como
exatamente aconteceu esse episódio?

6) A Diretoria Financeira de Furmas foi desmembrada em três diretorias, segundo


Votrim, devido à impossibilidade de acumular os vários serviços de finanças,
administrativas de pessoal e compras. Pedir esclarecimentos.
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Questionário 2

1) Como o Sr. aceitou a crise do governo João Goulart que culminou com o
movimento político-militar de março de 1964?

2) Por que o Sr. aceitou o convite para assumir o cargo de secretário-geral do


Ministério das Minas e Energia?

3) Como estava estruturado o Ministério em 1964?

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4) Quais as principais alterações da estrutura organizacional do Ministério na
gestão de Mauro Thibau?

5) A propósito da compra da Amforp como o Sr. avalia a tese defendida pelo


governador Leonel Brizola de que as subsidiárias da Amforp poderiam ser
encaminhadas sem indenização?

6) Como o Sr. avalia a tese do ministro San Tiago Dantas de que seria mais
interessante nacionalizar as subsidiárias estrangeiras do que conceder a essas
empresas as tarifas a que teriam supostamente direito?

7) Como foi construída e como funcionou a comissão interministerial nomeada pelo


presidente Castelo Branco em junho de 1964 para levar a cabo a compra das
subsidiárias da AMFORP?

8) Em agosto de 1964, o ministro Thibau levou a proposta da comissão ao Conselho


de Segurança nacional, ao Legislativo e aos governadores de estados interessados
na compra da AMFORP. Quais as resistências enfrentadas pelo ministro?

9) Como o Sr. avalia o contato firmado pela Eletrobras com a AMFORP para a
transferência dos bens e ações das empresas concessionárias de energia elétrica
que o grupo norte-americano possuía no Brasil?

10) Qual o papel desempenhado pela Eletrobras, em especial o seu presidente, nas
negociações para a compra da AMFORP?

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BENEDITO DUTRA

1ª Entrevista: 11/01/1990

Entrevistador – Sr. Benedito Dutra, nós gostaríamos de começar o seu depoimento


lhe perguntando o local e o ano de seu nascimento.

Benedito Dutra – Nasci no dia 23 de maio de 1906, na cidade de Manaus, estado do


Amazonas, filho de pai mato-grossense, engenheiro civil e militar, e de mãe
piauiense.

Entrevistador – O sr. viveu o tempo todo em Manaus ou se transferiu para outro


estado?

Benedito Dutra – Como militar, o meu pai era andejo. O meu segundo irmão é
cearense, o meu terceiro irmão é francês, nascido em Paris, a minha quarta irmã é
amazonense ainda, a quinta irmã já é carioca. Nós deixamos a cidade de Manaus
para a Guarnição do Rio de Janeiro, depois de ter participado de uma revolução no
Amazonas.

Entrevistador – O sr. poderia falar um pouco sobre essa revolução no Amazonas?

Benedito Dutra – Sobre a revolução no Amazonas, eu era muito criança para poder
ter memória, exceto do que ouvi posteriormente na família. O meu pai era oficial do
Exército, engenheiro-militar e participou da chamada Revolução do Pensador... o
governador, depois que ocorreram no Brasil, não foi a única nem a primeira, eram
todas fruto de desinteligências entre os grandes da política, que outra coisa não
faziam se não disputar o poder. Ao meu ver, no meu entendimento, ideologia era
muito pouca. Tudo se resumia em conquistar o poder para defender interesses
pessoais, de grupos ou da família.

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Entrevistador – O sr. seu pai, tendo se transferido para o Rio de Janeiro, o sr.
certamente ingressou numa formação escolar. Como é que foi essa formação
escolar?

Benedito Dutra – Quando meu pai foi transferido para o Rio de Janeiro, primeiro-
tenente do Corpo de Artilharia, porque naquele tempo ainda não havia Corpo de
Engenheiros, apesar dele ser engenheiro e, por ser engenheiro, ele pertencia à
arma de artilharia. Eu era menino quando vim para o Rio de Janeiro, como já
havia dito, em 1909. Em 1909, eu tinha três anos. Um pouco mais tarde, quando eu
tinha seis anos de idade, o meu pai sempre nas suas funções de militar, uma função
andeja, eu fui matriculado na Escola Barth, uma escola pública que até hoje existe,
na antiga avenida de Ligação, hoje avenida Oswaldo Cruz. Quando dessa época,
uma impressão que se tornou muito viva com o correr do tempo, porque por esse
tempo, a formação do indivíduo que começava nos bancos escolares, tinha por base
a educação que se chamava educação moral e cívica. Nós iniciávamos as aulas de
manhã, na escola, prestando a nossa homenagem à Bandeira Nacional, cantando o
Hino Nacional e a primeira aula era de educação moral e cívica, ou seja, no
comportamento do indivíduo como cidadão de uma nação. Com o correr do tempo,
tudo isso que tinha se cristalizado no espírito de uma criança, foi duramente
abalado quando, em 1931, o ditador Getúlio Vargas, por decreto, exigiu nas escolas
públicas e particulares o ensinamento da educação moral e cívica. Essa disciplina
só foi restituída em 1964, pelo presidente Humberto de Alencar Castelo que, por
decreto, restabeleceu o ensinamento nas escolas públicas e particulares e que
nunca foi cumprido.

Entrevistador – Dr. Benedito Dutra, sendo o seu pai um engenheiro-militar, por


que o senhor optou em fazer engenharia na Politécnica do Rio de Janeiro, não
tendo seguido a carreira do seu pai, de engenheiro-militar?

Benedito Dutra – Meu pai demitiu-se do Exército quando ainda era primeiro-
tenente, se não me engano em 1919 ou 1920, porque considerava que a carreira

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militar se constituía numa camisa-de-força para o cidadão. Isso é um pensamento
pessoal, que não representa o pensamento de meu pai, que foi um dos grandes
patriotas que eu conheci. Em 1921, meu pai construía quartéis para o exército
porque, tendo deixado a farda, ele, seguindo a carreira civil, teve várias funções,
inclusive de diretor da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, da Estrada de Ferro
Itapura-Corumbá, em 1915, e foi nessa função que ele promoveu a unificação das
duas estradas, que eram uma aberração, porque uma era continuação da outra,
separadas pelo rio Paraná e ele juntou, construindo a famosa ponte sobre o rio
Paraná e permitindo assim que os trens que saíram de São Paulo fossem até
Corumbá sem baldeação em Jupiá. Mas eu devo voltar um pouco atrás, para
continuar a história da minha vida. Eu tinha quinze anos de idade quando terminei
o curso ginasial. Nessa época, 1921, como disse mais atrás, o meu pai era
construtor de quartéis para o Exército brasileiro, depois remodelados não por um
militar, mas por um civil genial, chamado Pandiá Calógeras, que foi o primeiro e
único ministro civil do Exército desde o Brasil independentemente. Estava meu pai
nesta função, construtor de quartéis, como eu já disse, terminava eu o curso
ginasial e ele entendeu de me levar ao Rio Grande do Sul e de me fazer ajudante do
engenheiro (incompreensível), que era o engenheiro chefe das obras nos quartéis e
a quem eu me juntei e de quem me tornei um admirador pelas suas grandes
qualidades de profissional e de comandante. Durante um ano eu estive no Rio
Grande na função, trabalhando na sede da companhia, que eram em Santa Maria.
Essa posição me deu desejo de conhecer uma boa parte do Rio Grande do Sul.

Entrevistador – O sr. sempre acompanhou o seu pai nessas viagens? O sr. conheceu
muito o Brasil nesse período? E a sua formação escolar? Depois da Escola Barth, o
sr. continuou a estudar aqui no Rio de Janeiro? O seu curso foi intercalado, foi
interrompido?

Benedito Dutra – A pergunta é muito pertinente porque eu fiz um salto no tempo.


Embora eu não acredite em um túnel do tempo, eu fiz um salto no tempo. Saindo
da Escola Barth, a família se transferiu para Petrópolis. Nós estivemos morando
em Petrópolis durante dois anos, até 1914. Durante esse tempo todo, tivemos

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professora particular, não estive em escola nenhuma. Ao voltar ao Rio de Janeiro,
em 1915, fui matriculado no Colégio Santo Inácio, onde fui colega de figuras que
hoje estão na história do Rio de Janeiro e de cujos nomes já me é difícil recordar.
Da escola, do colégio Santo Inácio, eu fui transferido, e esse é um ponto realmente
importante na minha vida. Em 1916, eu fui transferido para Colégio Militar. Como
neto de herói da Guerra do Paraguai e filho de militar, eu fui recebido muito bem
no Colégio Militar. E, como é de se imaginar, a ideia do meu pai era de que eu
seguisse a carreira que ele tinha abandonado. Eu estive no Colégio Militar durante
dois anos, onde tive colegas distintos, entre eles o ex-chefe de Junta Governativa do
Brasil, Aurélio (incompreensível) Tavares e outros nomes dos quais não me recordo
mais. Depois desses dois anos no Colégio Militar, tendo manifestado absoluta
ojeriza à farda e à disciplina militar, meu pai me matriculou no Colégio Santo
Antonio Maria Zacarias, grande instituição de ensino na rua do Catete, dirigida
pelos padres barnabetas, onde eu fiz todo o resto do meu curso, até concluir o curso
ginasial, ao qual me referi mais atrás. Do Colégio Barnabetas, fiz aquele estágio no
Rio Grande do Sul. Depois disso, um ano, em 1924, de curso anexo na Escola
Politécnica e, em 1925, ingressei na Escola Politécnica do Rio de Janeiro.

Entrevistador – Sr. Benedito Dutra, na década de 1920, mais precisamente em


1922, surge no Brasil o movimento tenentista. O sr. afirmou a pouco que seu pai
abandonou a carreira militar. Haveria alguma ligação entre os dois fatos? Entre o
movimento tenentista e o desligamento do seu pai do Exército?

Benedito Dutra – A pergunta é pertinente, mas difícil de responder. Como eu disse


a pouco, meu pai me levou para o Rio Grande do Sul em 1921. Nessa época, ele já
estava desligado a algum tempo do Exército... não acredito que ele tivesse qualquer
ligação, nem conexão com o movimento de 1922, que foi o primeiro movimento
militar contra o governo. Posteriormente, em 1924, quando eu fazia o curso anexo
para o vestibular de engenharia, houve nova revolta militar, a famosa Revolta dos
Dezoito do Forte de Copacabana que todo mundo conhece. Também não acredito
que o meu pai tivesse qualquer ligação oi conexão com o movimento, movimento
esse do qual fizeram parte militares que foram meus colegas no curso de

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engenharia, como o recém falecido Rafael Souza Aguiar, uma das inteligências
privilegiadas que eu conheci e que fez o curso de engenharia, formou-se engenheiro,
formou-se advogado e médico. Rafael Souza Aguiar, formosa inteligência, e que foi,
posteriormente, muitos anos depois, o homem que reestruturou e criou o novo
Corpo de Bombeiros da cidade do Rio de Janeiro. É obra de Rafael de Souza Aguiar,
a quem eu aproveito para prestar a minha homenagem de amigo e de cidadão pelo
muito que a sociedade deve a ele. O movimento de 1924 teve como consequência
futura o movimento de 1930. Não sei se é o momento de falar sobre isso.

Entrevistador – Gostaria de, antes de conversarmos sobre o episódio de 1930,


voltar um pouquinho à Escola Politécnica e lhe perguntar: o sr. já tendo uma
experiência profissional na construção de quartéis no Rio Grande do Sul, em 1921,
como era o seu contato com os colegas, como era o ambiente da Escola Politécnica?
A Escola Politécnica conseguiu efetivamente contribuir para a sua formação ou
essa experiência anterior teria feito o sr. um engenheiro ainda que não tivesse
diploma?

Benedito Dutra – A pergunta é muito inteligente, muito curiosa, porque,


efetivamente, quando eu fui estudar engenharia, não havia regulamentação de
profissão no Brasil nem, muito menos, limitação. Havia, praticamente, o que se
chamava a liberdade profissional. Isso eu vou mais adiante mostre a significação
que tinha e as consequências. Eu fui estudar engenharia porque o meu pai era
engenheiro. Eu tinha iniciado, eu tinha aberto os olhos para a vida em trabalhos de
engenharia, embora, no íntimo, o meu desejo fosse estudar medicina. Efetivamente,
durante um ano, eu estudei o vestibular de medicina. Mas cheguei a conclusão de
que não teria nenhum sentido estudar medicina quando o meu pai era engenheiro,
eu tinha um tio, irmão da minha mãe, que era engenheiro (incompreensível), o meu
pequeno mundo era um mundo de engenharia. Antes de me formar engenheiro, em
1930, eu estava trabalhando na firma de meu pai, que era uma firma de
engenharia e que me propiciou o meu primeiro contato com o setor elétrico, porque
em 1925 ou 1926, ainda estudante de engenharia, não me lembro bem, não posso
precisar o ano, eu fui designado a trabalhar como ajudante do engenheiro que

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construía uma usina hidrelétrica no rio São Pedro, usina essa que iria servir a
cidade de Macaé. E eu trabalhei nessa usina durante um ano. Dizem que o hábito
faz o monge ou que o cachimbo põe a boca torta e eu tinha quinze anos quando
comecei a viver o mundo da engenharia. Em 1925, eu tinha vinte anos. Era muito
moço, mas desde a minha pouca idade, uma boa parte dela tinha sido vivida na
engenharia. E não havia outra coisa a fazer se não continuar onde eu tinha
começado.

Entrevistador – Dr. Benedito Dutra, na formação Politécnica, já havia divisão entre


engenharia civil e engenharia elétrica? A eletricidade já era uma área de formação
do engenheiro?

Benedito Dutra – Como eu disse a pouco, entrei para a Escola Politécnica em 1925.
Foram meus colegas de curso o dr. Leo Amaral Penna, o dr. Guilherme Silveira
Filho, e uma porção de outros nomes que no momento não me ocorrem, mas todos
eles vieram a brilhar na profissão. Naquela época, o engenheiro civil correspondia à
área de atividades a que corresponde o clínico geral na medicina. O engenheiro civil
era obrigado a conhecer de tudo um pouco. Ele tinha que conhecer hidráulica,
conhecer eletricidade, mecânica, conhecer metalurgia, conhecer geologia, conhecer
astronomia. O engenheiro civil era o clínico geral da engenharia. Havia as
especializações que eram escolhidas depois do segundo ano de engenharia civil. O
estudante fazia os dois primeiros anos de engenharia e depois ele decidia se queria
ser engenheiro eletricista, se queria ser engenheiro rodoviário, engenheiro
ferroviário, engenheiro estrutural, e por aí afora. Muito poucos escolhiam
especialização, porque a especialização é fruto de uma evolução da sociedade,
particularmente da economia da sociedade. Não havia campo para muitos
especialistas na engenharia nacional e para sobreviver, como meio de vida, tinha
que ser engenheiro civil. Engenheiro ferroviário para um país que, nessa época,
tinha 18.000 quilômetros de estradas de ferro, não tinha vez, era um ou outro,
como, por exemplo, o meu querido amigo e que mais tarde foi considerado o maior
engenheiro ferroviário do Brasil, Renato de Azevedo Feio, filho de um chefe de
oficina, das oficinas de Engenho de Dentro na Central do Brasil e que chegou,

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depois de 12 anos de estudo de engenharia, chegou a ser presidente ou diretor-geral
da Estrada de Ferro Central do Brasil e que foi considerado, pelo Banco
Internacional, o maior engenheiro ferroviário que o Brasil já produziu. Mas era um.
Ah, o dr. Eugênio Gudin foi um engenheiro, entre mil, e de fato o que ele era mais,
era economista, do que engenheiro.

Entrevistador – Dr. Benedito Dutra, o se. Já falou da forte influência do seu pai na
escolha da sua profissão. Na Escola Politécnica e, mesmo fora da escola, que
professor teve uma influência marcante?

Benedito Dutra – A pergunta é de difícil resposta, porque é uma pergunta que


individualiza a resposta. E efetivamente, marcante mesmo, eu não posso dizer que
tenha havido nenhum professor. Alguns professores ficaram gravados, talvez
menos pelo seu valor profissional, seu valor funcional, do que por outras
circunstâncias, como, por exemplo, o professor Henrique Morize, que era o
catedrático de Física na Escola Politécnica, do curso de engenharia. Em junho de
1925, o professor Henrique Morize se aposentou e o assistente dele, professor
Dulcídio conhecia muito pouco de Física. Mas acontece que o professor Dulcídio era
um homem de caráter e um homem de vontade. No fim de dois anos, o professor
Dulcídio era, efetivamente, um professor de Física. Tinha passado a conhecer
Física, coisa que ele conhecia muito pouco em 1925, quando substituiu o titular da
cadeira.

Entrevistador – Nós gostaríamos de saber como surgiu a oportunidade do sr.


trabalhar na usina de Macaé e saber também se, durante o curso, o sr. teve
oportunidade de fazer outros trabalhos do gênero?

Benedito Dutra – Como eu disse a pouco, eu entrei para a escola em 1925 e, em


1925 ou 1926, não me lembro mais, eu trabalhava na firma de mau pai, como
empregado, e fui designado para aquela função de ajudante do engenheiro
construtor da usina de Glicério. Mas eu quero fazer um parênteses, quero voltar
atrás, e retomar o curso da resposta à pergunta que me foi feita sobre a impressão,

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ou coisa que o valha, que houvessem feito os professores da Escola Politécnica. Eu
mencionei o professor Dulcídio Pereira porque foi a primeira emoção que eu
experimentei na escola. Mas, efetivamente, outros professores, sem dúvida
nenhuma, foram marcantes. O professor de cálculo, o professor de mineralogia e
entre esses todos, há um a que eu quero fazer uma menção especial, o professor
Tobias Moscoso, professor de economia política. O segundo ano de engenharia
compreendia no seu currículo a cadeira de economia política. Essa cadeira era
desconsiderada na escola. Como o curso era livre, ninguém ia às aulas de economia
política. Por razões que não vem ao caso, eu me interessei muito pelas aulas do
professor Tobias Moscoso, que ensinava economia política. Curiosamente, na
cadeira de engenharia, se houvesse só a disciplina de economia, ela não faria
sentido.
A cadeira de economia política, para o engenheiro, é de uma importância que tem
sido relegada a segundo plano, quando devia estar no (incompreensível). O
verdadeiro engenheiro, não o engenheiro que vive apenas no mundo da matemática
superior, eu estou falando do engenheiro mais materialista, que é o engenheiro que
concebe, que pensa, que executa... A cadeira de economia política é aquela que
estabelece para o engenheiro o parâmetro fundamental que é aquele do custo-
benefício de qualquer projeto, coisa que, pelo menos até recentemente, tem sido
completamente ignorada na engenharia brasileira. O custo-benefício não faz
sentido para o engenheiro, nem para o que projeta, nem para o que executa, porque
ambos estão sempre deslumbrados com a possibilidade de fazer o maior projeto, a
maior obra do mundo. Ninguém está interessado em saber se o projeto é econômico
ou não é econômico, ou melhor, ninguém examina o aspecto de custo-benefício não
faz sentido para o engenheiro, nem para o que projeta, nem para o que executa,
porque ambos estão sempre deslumbrados com a possibilidade de fazer o maior
projeto, a maior obra do mundo. Ninguém está interessado em saber se o projeto é
econômico ou não é econômico, ou melhor ninguém examina o aspecto de custo-
benefício do projeto. E, entretanto, a cadeira de economia política no curso de
engenharia, cadeira essa que já foi extinta, mas que existia no meu tempo, tinha
exatamente por objetivo dar ao engenheiro essa visão que é fundamental. Não
basta que o projeto seja tecnicamente perfeito, não basta que o projeto seja

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tecnicamente viável. O projeto tem que ser também economicamente viável. Isso foi
completamente ignorado há muito tempo. Hoje, o engenheiro brasileiro apenas
quer saber se há possibilidade dele fazer, pelo menos para aquela situação, aquele
local ou aquelas condições, o melhor e maior projeto do mundo. Essa é a razão
porque, não na época em que eu era estudante, mas depois que eu me formei, que
fundei minha própria firma de projetos de engenharia e de construção, é que me fez
avaliar o quanto... que valor tinha, a disciplina de economia política no curso de
engenharia e quanto se devia ao professor Tobias Moscoso que, sem dúvida
nenhuma, além de grande professor, era um grande profissional. Morreu naquele
desastre do Dox, aquele avião alemão que veio ao Brasil, caiu aí na Baía de
Guanabara, em frente à Praça XV de Novembro. Ele morreu nesse desastre e, com
a morte dele, morreu também a economia política na engenharia.

Entrevistador – Dr. Benedito Dutra, na época não havia a profissão do economista.


Nessa época, o sr. acha que o engenheiro substituía o economista ou seria o
advogado?

Benedito Dutra – Nessa época, 1925,1926, eu ia me formar em 1930, não havia o


curso de economista, não havia economista no Brasil que, infelizmente, se tornou
uma praga como o advogado no princípio do século. No princípio do século, o Brasil
foi invadido pelo bacharel em direito. Havia até gari de limpeza pública que era
bacharel, e todo mundo se formava em direito. Hoje todo mundo se forma em
economista. Em primeiro lugar, não se sabe nem o que é economia. Vai conversar
com um economista, pede a ele para definir economia, ele vai gaguejar durante
muito tempo, vai mastigar muita coisa, mas cuspir a definição de economia duvido
que consiga. É como os democratas também do nosso tempo, falam em democracia,
mas não sabem o que é. Democracia é uma palavra muito bonita, anda aí pelos
jornais, pelos países mais desenvolvidos, mas o sujeito enche a boca de democracia,
que ele não sabe o que é. Vai ver é pastel de vento pra ele.

Entrevistador – Eu queria voltar um pouquinho à Politécnica e lhe fazer mais uma


pergunta. Nessa época, quando o sr. era estudante, havia algum problema em

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relação à escassez de livro didático? Como é que isso era resolvido?

Benedito Dutra – Não havia problema de livro didático porque o professor dava
aula e apenas mencionava os tratadistas a quem a gente devia recorrer para
complementar a aula. Em geral, os livros todos de curso de engenharia, com
raríssimas exceções, eram franceses, porque nessa época a formação cultural, para
não dizer também na espiritual e artística, no brasileiro, era, sem dúvida
nenhuma, oriunda da França. Quando se fala de alguma coisa de muito
importante, tinha que se falar da Sorbonne. O brasileiro vivia de olhos postos na
Europa e de costas para o Brasil. Basta lhe dizer que a família da minha mãe, que
era uma família muito grande, em Manaus, na sua grande maioria, conhecia a
Europa, Paris, Londres, Lisboa, Madri, mas não conhecia o Rio de Janeiro. Uma
das minhas tias mais chegadas, viveu, teve filhos e os criou em Paris. Só veio ao
Rio de Janeiro para morrer. Não havia livro didático oficial, o professor é que
designava para seus alunos os livros, os compêndios, as obras que eles deviam
consultar para acompanhar o curso, a disciplina que eles estavam ministrando,
matemática, estradas de ferro, hidráulica, física, química, qualquer das disciplinas,
o livro era sempre francês.

Entrevistador – O sr. poderia falar um pouco sobre o ano de 1931, que é o ano no
qual o sr. cria a sua firma de construção e também é um ano de forte crise
econômica no Brasil e o primeiro ano de governo revolucionário de Getúlio Vargas?
O sr. poderia falar alguma coisa dessa época?

Benedito Dutra – Bom, como esse negócio, mais elegantemente, como esta nossa
entrevista vai ser depois revista e podada, eu posso me alongar à vontade, porque
depois cortem o que quiserem, para mim não faz diferença, nem eu fico melindrado
por isso não. Mas eu devia voltar um pouco atrás e contar um pouco daquilo que se
sucedeu à minha primeira atividade ligada ao setor elétrico, que como eu disse foi a
minha primeira tarefa de ajudante de um construtor de uma usina hidrelétrica
que, entre parênteses, foi a primeira instalação Brown Boveri que se fez no Brasil.
O primeiro equipamento Brown Boveri que veio para o Brasil foi para essa pequena

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usina de Glicério, no rio São Pedro, afluente do Macaé. Se me perguntarem a
potência da usina, eu vou ficar em dificuldades. Eu não sei se eram 250 ou 300 kW.
Era uma usininha para uma cidadezinha do tamanho de Macaé daquela época.
Hoje não serve nem para iluminar o Teatro Municipal. Depois disso, eu fui dirigir a
pavimentação da cidade de Campo Grande, em Mato Grosso, que foi a primeira
cidade do interior do Brasil que se pavimentou com macadã betuminoso, que eles
chamavam de asfalto. Não tinha asfalto nenhum. Era macadã betuminoso.
Macadã, que é pedra britada comprimida, pó de pedra, para passar o rolo
compressor em cima e dar aquele aspecto de asfalto, mas que não era asfalto. Isso
foi em 1928, por aí. Em 1929, fui convocado para dirigir, durante seis meses, a
construção da adutora que trazia água da Serra de Friburgo para Niterói. Em
1930, veio a Revolução e a firma de meu pai, que tinha contratos com o governo que
tinha acabado de ser deposto, acabou por encerrar as suas atividades. Nessa
ocasião, nós estávamos fazendo águas e esgoto de Miracema, de Pádua, de
Cambuci, cidades aí do noroeste do estado do Rio, além de outras atividades, das
quais eu participava, como sócio que já era da firma. Firmo Dutra & Cia. Ltda. Era
o nome da firma de meu pai da qual eu me tornei sócio, depois dessas peripécias
todas. Em 1930, tivemos um ano inteiro de perplexidade e acomodação a uma nova
ordem e, em 1931, eu fundei a minha própria firma de engenharia e construções –
B. Dutra & Cia. Ltda..

Entrevistador – Desses trabalhos que o sr. realizou ainda na época de estudante,


qual que o sr. considera o mais importante, se é que houve um mais importante? A
construção da usina, o trabalho de macadamização de Campo Grande?

Benedito Dutra – Para mim, todos os trabalhos eram importantes, porque para
mim é importante o trabalho que a gente faz com entusiasmo, com amor e brio para
fazer o melhor possível. E quando a gente termina bem um trabalho, ele passa a
ser o mais importante. Não tem mais importante, nem menos importante. Todos
são importantes quando eles chegam ao fim dentro dessa mesma filosofia de fazer o
melhor. E o melhor não tem comparação. Em 1931, voltando, eu fundei a minha
firma, tinha quatro sócios, entre eles o meu irmão, e começamos a enfrentar as

19
agruras de uma crise que se tinha deflagrado em 1929 nos Estados Unidos, o
famoso crack da bolsa de Nova York de 1929. Mas, quando a gente é moço, tem
cara e coragem e resolvi enfrentar e fazer alguma coisa. E a primeira coisa que me
apareceu foi saber que a Leopoldina Railway, que continuava inglesa, tinha
convocado concorrência para reforma da Estação de Friburgo. Me armei de
coragem, cara não faltava e fui à diretoria da Leopoldina, na Estação Barão de
Mauá, pedir para também ser consultado para os trabalhos de reforma da Estação
de Friburgo. Eu fui recebido pelo engenheiro chefe e diretor de linhas, de obras, da
Leopoldina, o engenheiro Hutchison, que era um inglês mais alto que eu, duas
vezes a minha largura e eu disse a ele, expliquei a ele que eu era chefe de uma
firma de engenharia e queria ser ouvido para a reforma da estação de Friburgo.
Mr. Hutchison olhou para mim, deu uma risada e disse:
— O sr. é muito moço e muito corajoso.
— Mas por que, Mr. Hutchison?
— A firma é nova, não tem tradição e o senhor quer concorrer com firmas antigas,
de tradição.
Naquele tempo, existia uma firma fabulosa, uma firma alemã que trabalhava no
Brasil e depois gerou a Construtora Nacional. Chamava-se Weiss & Weitagh. Uma
segunda firma, fabulosa também, era uma firma inglesa, era a firma... agora me
escapa o nome dela. A outra era uma firma também estrangeira, Christian &
Nielsen, todas firmas tradicionais e aparecia lá um brasileirinho, chefe de uma
firma que tinha um ano de idade para concorrer com firmas que tinham 30 anos, 50
anos. Scott & Hurner era a firma inglesa. Eu disse para Mr. Hutchison:
— O velho já foi moço, as firmas velhas já foram novas. Se a gente excluir a nova,
ela nunca vai ser velha.
— Isto é uma questão de opinião.
Sai dali e fui ao interventor do estado do Rio, que era o Almte. Protógenes
Guimarães. Fui lá ao almirante e expliquei a ele:
— Ô almirante, dá uma palavrinha com esses ingleses. Eu não estou pedindo para
eles me darem o serviço, mas para me deixar concorrer.
O almirante achou aquilo tudo muito engraçado, muito divertido. O fato é que eu
voltei novamente à Leopoldina e eles me convidaram para a concorrência da

20
Estação de Friburgo. Acontece que novos como nós éramos, nossos custos eram
muito baixos, porque as nossas despesas gerais eram baixíssimas. Nós éramos
tudo: eu era advogado, datilógrafo, era mensageiro, os meus sócios também, cada
um era mestre-de-obras e ganhamos a concorrência para a reforma da Estação de
Friburgo. Acontece que, logo depois de ganhar a concorrência, eu fui examinar o
projeto de reforma e cheguei à conclusão que era possível construir uma estação
nova pelo preço da reforma. Voltei à Leopoldina e disse a eles:
— Escuta, o que vocês querem? Um prédio velho, um negócio horroroso, que tinha
sido uma antiga senzala. Reformar isso? Vamos fazer uma estação nova. Eu faço
essa belezinha para vocês pelo mesmo preço.
Isso demorou um pouco, foi consulta para Londres. Está lá construída a Estação de
Friburgo pelo preço da reforma da estação velha. Quem dirigiu a construção da
nova estação de Friburgo, foi o meu sócio e meu irmão, Agesal Dutra. Quem
projetou a estação nova de Friburgo foi o meu sócio e arquiteto, já falecido,
Ruderico Pimentel e eram meus sócios também nessa época, Tibério Vasconcelos
Amorim, meu colega de turma na Escola de Engenharia, e Silvio Miranda Freitas,
engenheiro mais velho e éramos companheiros nessa aventura que era a B. Dutra e
Cia. Ltda.. A B. Dutra e Cia. Ltda., de saudosa memória, que construiu as duas
primeiras barragens do Plano de Eletrificação do Rio Grande do Sul, que foi o
primeiro plano de eletrificação concebido no Brasil e que se deve ao nunca
esquecido engenheiro Nóe de Mello Freitas. Agora vocês tenham paciência, mas eu
estou cansado.

21
2ª Entrevista: 19/07/1990

Entrevistador – Sr. Benedito Dutra, ao final da primeira entrevista o sr. referiu à


participação da firma B. Dutra & Cia. Ltda. na construção de barragens de
hidrelétricas no Rio Grande do Sul, integrantes do Plano Estadual de Eletrificação,
concebidos pelo engenheiro Noé de Freitas. Justamente a esse propósito,
gostaríamos que o sr. rememorasse esse episódio e traçasse um perfil de Noé de
Freitas.

Benedito Dutra – Antes de falar do engenheiro Nóe de Freitas, uma das figuras
mais singulares que tiveram atuação no setor elétrico brasileiro, é preciso fazer um
retrospecto das circunstâncias em que me aproximei daquela figura e,
consequentemente, do que veio, em consequência, resultar na construção das duas
primeiras barragens do Plano de Eletrificação do Rio Grande do Sul, primeiro
plano de eletrificação concebido no Brasil. Em 1931, quando constitui a firma B.
Dutra & Cia. Ltda., da qual também fui sócio... Nessa época, 1931, vivia o país uma
crise tão grave quanto a que assolou os Estados Unidos da América do Norte em
consequência do sempre lembrado crack da Bolsa de Nova Iorque, de 1929. O
trabalho no ramo da engenharia era escasso. Pouco se fazia, tanto pelo governo
federal, como pela iniciativa privada, e o trabalho do engenheiro que não fosse
funcionário público era um trabalho penoso e de muito pouco resultado. Apesar
dessas circunstâncias adversas, eu persisti em continuar naquela atividade em que
eu tinha iniciado a minha vida prática, ou seja, a engenharia de projeto e
construção. A firma B. Dutra & Cia. Era constituída, além de mim, que
praticamente tinha realizado o capital da empresa, por mais três sócios, um deles o
meu irmão, meu companheiro de todos os momentos e de todos os tempos e mais
um colega do curso de engenharia, o engenheiro Tibério Vasconcelos Amorim, e o
engenheiro Silvio Miranda Freitas. Em 1932, a Leopoldina Railway era
concessionária das estradas de ferro Rio de Janeiro-Vitória, Rio de Janeiro-Juiz-de-
Fora, Rio de Janeiro-Petrópolis, Rio de Janeiro-Friburgo, tinha essa malha de
linhas nessa região do estado do Rio, sul de Minas e Espírito Santo, e abriu
concorrência privada para reforma da Estação de Friburgo. Nessa época, o estado

22
do Rio estava sob intervenção e a Leopoldina era, naturalmente, uma empresa
subordinada à autoridade do estado do Rio. Não fomos convidados para essa
concorrência. Me insurgi contra essa circunstância porque apenas duas empresas
trabalhavam para a Leopoldina nessa época. A Scott & Hurner era uma empresa
inglesa e a Christian & Nielsen que era uma empresa dinamarquesa trabalhando
aqui no Brasil. Procurei as autoridades do estado do Rio e não paga a pena
comentar a via crucis que eu vivi, mas, afinal de contas, eu consegui que também
nos aceitassem como concorrentes. Tratava-se de uma reforma de estação de
estrada de ferro, a estação de Friburgo, uma estação muito antiga, muito velha e,
como resultado do nosso trabalho, ganhamos a concorrência. Depois de ganhar a
concorrência, fiz um exame mais cuidadoso do projeto de reforma e cheguei à
conclusão de que não se sabia quanto iria custar a reforma. Havia um preço básico,
que era aquele com o qual nós havíamos ganhado a concorrência, mas quando se
começa a mexer num prédio velho, não se sabe o que vai aparecer. Eu fiz um estudo
mais aprofundado e um dos meus sócios, que era responsável pelo setor de
arquitetura da minha firma e que eu não mencionei no princípio, o arquiteto
Ruderico Pimentel, me fez um lindo projeto em estilo colonial para substituir a
velha estação que não tinha arquitetura nenhuma e eu fui à Leopoldina e propus
fornecer à Leopoldina uma estação nova, em estilo colonial, em substituição à
estação velha, pelo preço da reforma. Depois de consultas a Londres e discussões
internas, a Leopoldina aceitou a minha proposta. Hoje essa estação é a Prefeitura
Municipal de Friburgo. Isso foi em 1932. A estação, terminamos a construção em
1934. Por essa época, tínhamos também entrado na concorrência para a construção
de uma ponte sobre o alto rio Uruguai, denominado rio Pelotas, ligando Santa
Catarina ao Rio Grande do Sul, para o Departamento Nacional de Estradas de
Ferro. Ganhamos essa concorrência para projeto e construção da ponte, projeto esse
que era... que nós, a minha firma, entregou ao Escritório Emílio Baungarte, que na
época era a maior autoridade em concreto armado no Brasil e talvez uma das
maiores autoridades em concreto armado no mundo. O engenheiro Baungarte
deixou um nome inesquecível e respeitado no mundo do concreto armado. Era filho
de alemães, tinha vindo para o Brasil moço e aqui tinha conquistado essa posição
de destaque nessa atividade particular da engenharia. Em consequência de ter

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ganho a concorrência, em 1935, iniciamos a construção dessa ponte e, nessa época,
eu comecei a viajar novamente para o Rio Grande do Sul, onde eu tinha iniciado a
minha vida prática, a qual eu já me referi, quando fui trabalhar, em 1921, como
ajudante do engenheiro chefe da construção de quartéis na fronteira com a
Argentina. Foi nessa época, 1935, nessas seguidas viagens ao Rio Grande do Sul,
que entrei em contato com o engenheiro Noé de Freitas que, nessa época, chefiava o
Serviço de Eletricidade da Prefeitura de São Leopoldo. São Leopoldo, próximo de
Porto Alegre, era um município de vocação industrial que desenvolvia rapidamente
as suas pequenas indústrias e, como tudo quanto é atividade econômica nesse país,
carente de energia elétrica. Aliás, deve-se fazer aqui um parênteses: quando se fala
de carência de energia elétrica, é necessário frisar que essa situação era, e eu diria
que ainda é, fruto de jamais se ter disciplinado o setor elétrico brasileiro. O setor
elétrico brasileiro sempre viveu vida tumultuada e nem mesmo o Código de Águas
veio disciplinar coisa nenhuma, mas isso é assunto que fica para mais tarde. Tendo
entrado em contato com o engenheiro Noé de Freitas, naturalmente não poderia
deixar de participar do entusiasmo com que ele, já nessa ocasião, 1935, preconizava
a necessidade da intervenção do Estado no setor elétrico, uma vez que não havia
possibilidade de despertar maior interesse da iniciativa privada nessa área da
economia do país. E, de fato, era muito mais difícil o país, que estava
desabrochando para a área industrial e, de fato, só depois da Revolução de 30 o
Brasil começou a despertar na área industrial, isso em consequência das mutações
que o mundo sofreu depois da Primeira Guerra. Nessa época, para uma atividade
de remuneração muito reduzida e de alta capitalização, não havia nenhum atrativo
para a economia privada. A poupança brasileira encontrava melhor remuneração
em outros campos de atividade da economia, e o engenheiro Noé de Freitas sentia
que para desenvolver mais ainda estes outros campos da economia, era necessário
oferecer energia elétrica. Seria uma obrigação dos poderes públicos, assim como a
educação primária, a saúde pública, e outras atividades elementares da vida social.
Mantivemos essa nossa amizade por muito tempo e assisti ao desenvolvimento dos
planos do engenheiro Noé de Freitas até que, em 1941, Porto Alegre foi assolada
por uma das maiores enchentes já conhecidas na vida da cidade. Basta dizer que,
na zona do porto, eu lá estive com água com mais de um metro de altura. Nessa

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ocasião, conversando com o engenheiro Noé, ele me dizia que um dos grandes
problemas de Porto-Alegre – que era a defesa contra as enchentes – poderia ser
muito amenizado com a construção de barragens no alto curso dos rios formadores
do Guaíba. O Guaíba nada mais é do que um estuário semelhante ao Prata, com a
convergência de vários rios, o Jacuí, rio dos Sinos, (incompreensível), todos eles
convergem para formar o Guaíba, que se chama Guaíba, mas não é o rio coisíssima
nenhuma, é um estuário.
— Se é assim, vamos ao Rio e eu vou te apresentar ao dr. Hildebrando de Araújo
Góes, que é o diretor, o engenheiro chefe do Departamento Nacional de Obras de
Saneamento para o qual nós trabalhamos, já tínhamos trabalhado, no Saneamento,
e você veja se consegue que o Saneamento assuma a construção dessas barragens
que são barragens de seu plano de eletrificação.
Nessa época, já tinha concluído o Plano de Eletrificação do Estado do Rio Grande
do Sul e tinha saído da Prefeitura de São Leopoldo e estava na Secretaria, se não
me engano era a Secretaria de Obras do estado, chefiando uma comissão estadual
de energia elétrica, do estado do Rio Grande do Sul. Ele veio aqui ao Rio, eu o
apresenteo ao engenheiro Hildebrando, que era um homem de visão. O dr.
Hildebrando levou o plano do Noé ao dr. Getúlio, o presidente Getúlio Vargas, que,
como é natural, aprovou o plano. Porque Noé era gaúcho, o plano era gaúcho e o
Getúlio também era gaúcho. E foi assim que o Departamento Nacional de
Saneamento assumiu a construção das duas barragens, uma no rio Capingui, perto
de passo fundo, e a outra no rio São Pedro, que seria desviado para o Santa Maria,
para a construção de uma usina no rio Santa Maria. Não houve nenhum tipo de
apadrinhamento ou de filhotismo no contrato para a construção dessas barragens
por ter me cabido a iniciativa de fazer esta aproximação entre o chefe de Obras de
Saneamento fez uma concorrência e eu ganhei a concorrência contra mais cinco
concorrentes. Não houve, por conseguinte, nenhuma espécie de favorecimento.
Aliás, estas duas barragens constituíram para a minha firma um trabalho
gigantesco, porque eu tibe que refazer os projetos e as barragens não foram
construídas segundo o projeto original, mas sim conforme o projeto da minha firma,
projeto esse que saiu das mãos do meu velho e querido amigo, Félix von Hacnken,
que era o chefe do escritório técnico da minha firma. Von Hanken era um russo que

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tinha saído da Rússia com a revolução comunista e foi para a China, da China para
a Alemanha. Na Alemanha, ele foi engenheiro chefe de uma das maiores firmas de
engenharia da Alemanha da época – Philip Hoffmann. Da Alemanha ele transferiu-
se para a Holanda, tornou-se cidadão de açudes na Indonésia. Von Hanken era um
gênio em engenharia, construiu açudes até com bambu. O Von Hanken, depois da
Indonésia, veio para o Brasil. Chefiava o Escritório Técnico Baungarten, tinha
trabalhado para mim e com a redução das atividades do Baungarten, então o levei
para minha firma e foi ele que projetou as duas barragens do Plano de Eletrificação
do Rio Grande do Sul. Eu lembro com saudade e emoção do trabalho do engenheiro
Noé de Freitas, em que pesem eventuais discordâncias de ordem filosófica, eu o
admirava pela sinceridade, pela devoção com que Noé de Freitas se entregou ao
Plano de Eletrificação do Rio Grande do Sul. Muitos anos depois, muitos e muitos
anos depois, Noé veio a morrer muito discretamente, muito quase que
anonimamente, de Mal de Parkinson, lá em Porto Alegre, onde eu o visitei seis
meses antes da morte dele, em 1976 ou 1978, não me lembro mais. Esta é a história
do meu entrosamento mais profundo com o setor elétrico brasileiro e, como eu
disse, vinha dos idos de mil novecentos e vinte e tantos, quando fui ajudante do
engenheiro construtor da usina de Glicério, no rio São Pedro, município de Macaé.

Entrevistador – (incompreensível).

Benedito Dutra – Esta minha vinculação ao Rio Grande do Sul, que como já disse,
vinha desde os idos de 1921, quando estive lá pela primeira vez, continuou ao longo
de toda a minha vida. Nessa época, fiz uma porção de amigos e relações que me
acompanharam por todo o tempo.

Entrevistador – (incompreensível).

Benedito Dutra – Eu conheci o dr. Walter Jobim porque trabalhava lá nessa época
e ele era um homem de extraordinária dedicação à causa pública no Rio Grande do
Sul. Conheci Walter Jobim e alguns outros mais. Mas em 1935, depois de contar
esta longa história que se prolongou até 1941, eu continuei a trabalhar no Rio

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Grande do Sul. Construímos o frigorífico de pesca na cidade do Rio Grande,
concluímos a conclusão da ponte ferroviária, como já me referi, ligando Santa
Catarina ao Rio Grande do Sul, construímos uma ponte na cidade de Pelotas, na
zona rural da cidade, uma ponte que era muito importante porque, no local, já
tinham sido destruídas pelas enchentes três pontes e, então, nós tínhamos esse
desafio, construir mais uma, que não devia ser destruída. Até hoje ela está lá, sobre
o arroio Pelotas. É na entrada da cidade de Pelotas. Nessa época, me tornei muito
amigo de um engenheiro – Jaires Grilo – que tinha uma firma, (inaudível) Araújo
& Cia Ltda., que eram os representantes da minha firma no Rio Grande do Sul. O
Jaires Grilo tinha organizado uma empresa industrial denominada Companhia de
Indústrias Eletroquímicas. Essa Companhia de Indústrias Eletroquímicas era
produtora de sulfato de cobre. Com sulfato de cobre, se produz a chamada calda
bordalesa, que é um produto químico destinado a proteger as parreiras, a uva, da
filoxera, uma praga. E no Rio Grande do Sul tinha um grande consumo da calda
bordalesa nos vinhedos rio-grandenses. E esse meu amigo, Jaires Grilo, produzia
sulfato de cobre nessa usina, no Esteio, na Companhia de Indústrias
Eletroquímicas. A matéria-prima fundamental para o sulfato de cobre é o cobre
que, naquela ocasião, para nós, vinha como matéria-prima sob a forma de
sucata de cobre, coisa que é incontrolável. Algumas vezes, você tem muita sucata
de cobre, outras vezes não tem nenhuma. Então, o Jaires Grilo, que era um homem
de extraordinário descortínio, figura que eu recorso com saudade, obteve a
concessão para exploração das minas de cobre do Seival. As minas de cobre do
Seival tinham sido exploradas antes da guerra pelos belgas. As minas de cobre do
Seival são uma das mais notáveis ocorrências de cobre que se encontrou na
natureza até hoje. Era uma mina que, na superfície, apresentava minério de cobre
com 7 a 8% de riqueza. Isto nunca existiu no mundo e por ser exatamente um
minério altamente rico, era um minério que era escolhido a mão, transportado para
a Bélgica em sacos de aniagem, minério esse que, além dessa riqueza de cobre,
também tinha ouro e prata.
A medida em que a mina foi explorada em profundidade, foi decaindo a riqueza do
minério, até que se chegou onde hoje é apenas 2%, que ainda assim era uma coisa
fabulosa. Nessa época sobreveio a guerra e a mina foi paralisada e, posteriormente,

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como já disse, o Grillo conseguiu a concessão, porque a ideia dele era explorar a
mina para produzir o cobre de que nós precisássemos na nossa indústria, da qual
eu até hoje sou sócio, Companhia de Indústrias Eletroquímicas. Isso nós já
andamos pelas alturas de 1938, 1939, 1940. Nessa época, tinha estourado a guerra,
eu fui convocado pelo chefe do gabinete do ministro da Aviação, o ministro geral
Mendonça de Lima, chefe de gabinete Napoleão Alencar de Guimarães, e o objetivo
da convocação era no sentido de nós – Companhia de Indústrias Eletroquímicas –
darmos, o mais rapidamente possível, início à exploração da mina para a
exploração de cobre, que era o elemento vital para o Brasil, que estava com
dificuldade de importar o cobre, que o Brasil não possuía nenhum. Nessa ocasião,
estava aqui no Rio de Janeiro também o engenheiro Carlos (inaudível) que tinha se
mudado de residência, de Porto Alegre para o Rio de Janeiro, e o engenheiro Carlos
(inaudível) tinha ideia de uma usina para produção de ferroligas aqui no Brasil,
coisa que nós importávamos, o Brasil importava tudo quanto o que era ferroliga,
que era o silício, liga de ferro, de cobre, de alumínio, de tudo. Em 1941, eu me
juntei ao engenheiro Carlos (inaudível) e foi construída a Companhia Nacional de
Ferroligas para a construção de uma usina destinada a essa atividade, que na
época era extremamente importante tanto para o Brasil como para os mercados
externos. Foi construída por B. Dutra em Honório Gurgel e como era de se
imaginar, já nessa época havia uma ligação também com a Companhia Brasileira
Carbureto de Cálcio, de Santos Dumont, que era fabricante de carbureto de cálcio,
que na época era indispensável para uso, principalmente, na mineração, para
iluminação dos capacetes, e a Companhia Brasileira Carbureto de Cálcio produzia
carbureto em fornos elétricos, quer dizer, vários fornos elétricos em Santos
Dumont. E nessa época, coincidentemente, a Carbureto acabava der paralisar três
fornos elétricos monofásicos que tinham sido substituídos por um grande forno
trifásico para produção de carbureto. Era muito mais econômico: um único forno
trifásico do que três fornos que tinham que se monofásicos e que tinham que ser
três para equilibrar a corrente, porque a corrente era trifásica. Então a Companhia
Nacional de Ferroligas teve por elemento inicial da sua estrutura industrial esses
três fornos monofásicos da Carbureto de Cálcio, que entraram na companhia como
capital. Nós começamos a trabalhar em 1942, 1943, e nessa época começamos a

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desenvolver um terceiro, um quarto forno trifásico de alta potência. Foi nessa época
também que, como consequência de sermos grandes consumidores de energia, tanto
nós como a Carbureto de Cálcio, para nós a matéria-prima básica era a energia.
Veio a ideia de termos a nossa própria fonte de energia. Daí veio a ideia de
construção da usina do Piau, que serviria para abastecer a Carbureto de Cálcio e a
Nacional Ferroligas, que nós tencionávamos, então, transladar do Rio para Santos
Dumont, com a vantagem de reduzir o percurso da matéria-prima, que ao invés de
ir até o Rio de Janeiro, iria apenas até Santos Dumont. De Santos Dumont, nós
transportaríamos o produto industrial mais nobre e, por conseguinte, em muito
menor quantidade e muito maior preço, podendo suportar o frete que, para a
matéria-prima, era pesado.

Entrevistador – (inaudível).

Benedito Dutra – Não, a Companhia Força e Luz de Juiz de Fora é uma outra
história, que nada tem a ver nem com Ferroligas, nem com a Piau. A Força e Luz
de Juiz de Fora é um negócio do dr. Ricardo Fortini. Não tinha nada a ver nem com
a Piau, nem com a Carbureto de Cálcio, nem com a Ferroligas. Daí surgiu então,
em 1942, 1943, surgiu a ideia de se construir uma nova usina e isso tudo se
concretizou em 1945, com a fundação da Central Elétrica do Piau. Começamos logo
as obras, mas em seguida paralisamos, porque com o término da guerra surgiu
uma porção de dificuldades, inclusive caiu no mercado de ferroligas e vivemos um
período de estagnação até 1951, quando eu consegui, tanto do governo federal,
através do Plano Salte, quanto do Banco do Brasil, através da Carteira de Crédito
Agrícola e Industrial, recursos para continuar a construção da usina do Piau, que
foi concluída em 1955 e foi inaugurada pelo já eleito presidente Juscelino
Kubischek. Em novembro de 1955 inaugurou a usina e assumiu a presidência da
República em março de 1956. Essa é a trajetória até a conclusão da usina do Piau.
Eu era diretor econômico-financeiro da empresa, como também era da Ferroligas.
Foi a entrada em operação da primeira usina particular por empresa constituída
depois do advento do Código de Águas, porque depois do advento do Código de
Águas não se organizaram mais empresas para a exploração da indústria da

29
eletricidade no Brasil.

Entrevistador – Essa companhia foi depois incorporada pela Cemig?

Benedito Dutra – Depois eu vou chegar lá. Isso é muito mais tarde.

Entrevistador – (inaudível).

Benedito Dutra – Não, não chegou a ser transferida. A sua pergunta tem
cabimento porque para quem não está nesse meio, de fato parece estranho que um
engenheiro que fez engenharia fosse aos poucos descambando para a administração
das finanças, da economia. Eu não sei se tive a oportunidade de dizer que no meu
curso de engenharia havia uma cadeira chamada economia política, que fazia parte
do nosso currículo do segundo ano, e que eu acompanhei com muito interesse,
porque várias vezes o meu professor, Tobias Moscoso, dizia que o engenheiro que
não fosse economista, era só meio engenheiro. Eu acho que eu sou meio engenheiro
porque sou mais economista, financista, do que engenheiro. Eu sou só meio
engenheiro, mas um meio engenheiro ao contrário. Quando um engenheiro está na
posição de comando, ele não pode ser engenheiro só, se não ele não comanda nada.
A atividade técnica é uma atividade criadora, mas é uma atividade criadora
pessoal, não é uma atividade de comando, de coordenação. A atividade de
coordenação, de comando não é do engenheiro. O engenheiro também tem que ter
essa capacidade se ele assumir essa posição. Pode assumir. Hoje, meu deus do céu,
o maior diretor que a Light teve era um advogado, não entendia nada de
eletricidade, era um advogado... Antonio Galotti. Antonio Galotti era advogado. O
engenheiro que está no comando, ele não exerce nenhuma atividade técnica, se não
ele não pode estar no comando. A atividade dele como engenheiro é econômica,
financeira e, antes de tudo, de coordenação. Ele é um coordenador e ele pode ser
essas coisas todas porque ele é engenheiro. Se não fosse engenheiro, ele não faria
essas coisas todas, com eficiência, com capacidade. Ah, mas o sr. acabou de citar o
Antonio Galotti como um dos maiores diretores da Light. É, ele era advogado, mas
ele estava cercado do engenheiro, que não estava desempenhando nenhuma função

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de engenharia. Estava no comando da atividade da empresa com a função de
coordenador e de comandante. Era o Tullio Romano Cordeiro de Mello e vários
outros que não me lembro dos nomes agora. Essa é a razão pela qual, talvez
também por isso, eu me chame de meio engenheiro, porque eu tenho que fazer
engenharia, eu tenho que ter uma noção da significação daquilo que eu estou
fazendo no território técnico. Mas tenho que ter, antes de tudo, a capacidade de
coordenar e comandar para chegar aquele fim.

Entrevistador – (inaudível)

Benedito Dutra – Várias, várias outras. Veio a minha firma, depois ceio a
(inaudível), que hoje faz parte da Cial, isto é, Companhia de Indústrias
Eletroquímicas, depois eu fui incorporador na Sociedade Comercial de Mineração,
no Fecho do Funil, em Minas Gerais, que já acabou. Eu fiz parte da Ferroligas,
como diretor da Ferroligas, até ela terminar. Eu fui incorporador da Central
Elétrica do Piau, eu fui incorporador também da Central Elétrica de Furnas, um
dos sete acionistas originais, e uma porção de outras coisas. Isso não me desvincula
da engenharia, muito ao contrário. Eu só pude desempenhar estes papéis,
desempenhar estar ações porque era engenheiro. No meu entender, se eu não fosse
engenheiro, provavelmente a minha posição, as minhas funções seriam outras. Elas
foram essas para que se tenha uma noção da significação, das repercussões
técnicas daquilo que você está fazendo para você poder desempenhar a função de
comando, de coordenação e de comando. Eu não mudei nem de profissão, nem de
atividade. Eu continuo sendo engenheiro e desempenhando esta função de
administrador e de financista. Durante doze anos eu acompanhei, participei e
acionei na minha (inaudível) Central Elétrica de Furnas como diretor financeiro e
administrativo, não deixava de ser engenheiro. E só desempenhei estas funções,
não sei se muito bem ou muito mal, mas pelo menos sem receber nenhuma
reprovação, porque era engenheiro. E o mal hoje do Brasil é que nós aceitamos
economista que não é engenheiro. Essa é a desgraça do Brasil. Se eu tivesse
autoridade nesse país, precisaria ser engenheiro para ser economista. Precisa ter
noção do que é o mundo físico para ser economista. Porque economista que não é

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engenheiro, é isso que a gente está vendo. É um risco para a empresa, é um risco
para a sociedade e é um risco para o país o economista que não é engenheiro.

Entrevistador – Eu acho que nós poderíamos agora passar para o relacionamento


da Central Elétrica do Piau com a Cemig, porque não há nada escrito nos livros
sobre essa questão. Como é que ela foi incorporada, ela conservou a sua razão
social, ela perdeu a razão social quando foi incorporada, como é que foi esse
episódio?

Benedito Dutra – Como nós acabamos de fazer um retrospecto, a Piau foi criada em
1945 e só começou a funcionar, a produzir energia em 1955, quase dez anos depois.
Nesse interregno, o estado de Minas Gerais criou o seu Plano de Eletrificação. Esse
Plano de Eletrificação de Minas Gerais foi produzido pela Companhia Brasileira de
Engenharia, que foi criada pelo engenheiro Ângelo Agostini no governo do dr..
Milton Campos, que eu pelo licença para reverenciar, como uma das figuras de
maior categoria moral, espiritual, intelectual que eu conheci. Não sei qual é o
conceito que fazem dele em outras áreas. Considerei sempre o governador Milton
Campos como um exponencial. Foi no governo dele que se organizou o Plano de
Eletrificação de Minas Gerais. Curiosamente, nesse plano de eletrificação, já foi
inserida a Central Elétrica de Piau como um dos elementos de primeira grandeza
no Plano de Eletrificação de Minas Gerais. Foi a única usina construída por uma
empresa privada constituída logo depois do Código das Águas. Todas as usinas que
se construíram depois do Código das Águas ou foram construídas por empresas pré-
existentes ou por empresas estaduais, constituídas depois do Código de Águas, mas
empresas estaduais ou federais. Empresa particular só se constituiu uma depois do
Código de Águas: a Central Elétrica do Piau. O engenheiro Agostini, ao formular,
juntamente com o Dr. Lucas Lopes e outras figuras... O engenheiro Agostini não
podia desconhecer a existência da Central Elétrica do Piau que, na ocasião, tinha
uma expressão relevante no cenário do setor elétrico mineiro. Lá ficou, no Plano de
Eletrificação, a Central Elétrica do Piau. Como eu disse, a pouco, nós estivemos
com as obras paralisadas até 1951. Em 1952, quando nós já estávamos com as
obras em andamento, constituiu-se a Cemig no governo do Dr. Juscelino, que foi a

32
continuação do governo do Dr. Milton Campos. Em 1952. Em consequência, a
Cemig procurou, como era natural, uma vez em que nós éramos figura no Plano de
Eletrificação, procurou na Central Elétrica do Piau para se associar à Central
Elétrica do Piau e, em 1953 ou 1954, não posso precisar, a Cemig se tornou
também, acionista da Piau. Inaugurada a Piau, começou a trabalhar, continuou a
trabalhar, a Cemig era um acionista como um outro qualquer, até que, em 1962, os
outros acionistas da Piau, a instâncias do governo de Minas, que por uma série de
razões que não vêm a pelo numa exposição desta natureza, resolveram vender as
suas ações também à Cemig. E a Cemig comprou então a totalidade das ações da
Piau em 1962. Compradas as ações da Piau, eles, pura e simplesmente,
extinguiram a empresa, porque o patrimônio já era da Cemig, por via dela ser a
detentora da totalidade das ações. E a Central Elétrica do Piau S.A. deixou de
existir, mas continuou lá a usina como parte do Patrimônio da Cemig. Agora se
você quiser saber o dessus da história, do porque da empresa ter sido vendida à
Cemig, esta é uma história que eu não desejo contar.

Entrevistador – (inaudível).

Benedito Dutra – Não foi modificação nenhuma. O projeto da usina do Piau é da


Lavra de uma das figuras mais extraordinárias que eu conheci em toda a minha
vida, um homem que figura na minha memória, no meu coração, na minha estima,
em um lugar privilegiado: o engenheiro Nello Crocchi. O engenheiro Nello Crocchi
era diretor técnico da Carbureto de Cálcio, italiano, veio para o Brasil muito moço,
casou-se aqui no Brasil com uma italiana, teve filhos brasileiros, dois rapazes e
duas moças, era diretor técnico da Carbureto, um dos engenheiros mais
competentes que eu já conheci, um artista, um homem de extraordinária
sensibilidade, foi ele que projetou a Piau. Para favorecer à Carbureto e à
Ferroligas, só.

Entrevistador – (inaudível).

33
Benedito Dutra – A Piau era uma das componentes da capacidade instalada em
Minas Gerais. Havia outras, casa uma já com a sua função. O Plano de
Eletrificação de Minas, como é natural, considerava dois aspectos: primeiro, o
aumento da oferta de energia, através da construção de novas usinas e uma
interligação das usinas de forma a balancear a disponibilidade de energia para
atender melhor a demanda. Você tinha mais energia nessa área com uma demanda
inferior, menos energia em outra área, com uma demanda maior, então se
procurava, e essa é que é a função do engenheiro, estabelecer um equilíbrio,
transportar energia daqui, onde ela sobra, para onde ela falta. E, se não há essa
possibilidade, porque todo mundo não tem sobra...

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3ª entrevista: 24/07/1990

Entrevistador – Dr. Benedito Dutra, em 1956, o sr. atuou em duas frentes de


trabalho de suma importância no conjunto de iniciativas do governo JK na área de
energia elétrica: a preparação do projeto de constituição da Central Elétrica de
Furnas e, na área de legislação, a elaboração do Projeto nº 1.898, enviado ao
Congresso em setembro de 1956, e do Decreto nº 41.019, promulgado pelo
presidente Juscelino Kubistchek em 1957. Como se deu a sua entrada na equipe de
governo JK?

Benedito Dutra – Eu creio que, anteriormente, eu já fiz referência à participação da


Cemig na Central Elétrica de Piau, que nós organizamos em 1945, 1946, e que
esteve paralisada por longo período consequente ao término da guerra, que criou
uma situação muito difícil para todas as iniciativas que se baseavam,
principalmente, na exportação, e essa foi uma das razões pelas quais a Central
Elétrica do Piau ficou paralisada, uma vez que ela ia, primordialmente, fornecer
energia para a Companhia Nacional de Ferroligas, que era uma grande produtora
de ferroligas para exportação, que, durante a guerra, foi o nosso forte. Os trabalhos
da Central Elétrica do Piau só foram retomados em 1951, depois que eu consegui
recursos do Plano Salte e do Banco do Brasil, porque, como sempre, o empresário-
investidor brasileiro é anãozinho. Em geral, quando ele ganha algum dinheiro
maior é para gastar na Europa, não é para investir no país. Mas pondo de lado
esses aspectos...

Entrevistador – Um parênteses, sr. Benedito Dutra, ao rememorar a Central


Elétrica do Piau, me ocorreu formular uma pergunta: o sr. disse que, em 1951, as
obras da Central Elétrica de Piau foram retomadas com recursos do Plano Salte e
do Banco do Brasil. O sr. poderia dar algum detalhe, algum pormenor, sobre a
obtenção desses recursos?

Benedito Dutra – Quando a Central Elétrica do Piau foi iniciada, com subscrição de
capital da Companhia Nacional de Ferroligas, da Companhia Brasileira de

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Carbureto de Cálcio e de alguns poucos particulares, tudo fazia crer que o capital
subscrito e, potencialmente, disponível, seria suficiente para enfrentar o custo do
projeto. Com o término da guerra, se iniciou uma espiral inflacionária no país e
esses recursos se revelaram insuficientes. Eu tive um trabalho muito grande em
conseguir no Plano Salte, por intermédio do então deputado Henrique Novais,
nosso colega engenheiro... O Henrique Novais era o ex-diretor geral do Serviço de
Águas e Esgoto do Distrito Federal. Um engenheiro distinto, um homem de grande
valor, não sei se ele era baiano. O dr. Henrique Novais patrocinou a dotação de
recursos no Plano Salte que, em 1947, tinha sido criado pelo presidente Eurico
Gaspar Dutra. Foi o primeiro plano nacional de desenvolvimento econômico,
melhor dizendo, foi o início da intervenção do Estado no Governo econômico, depois
do hiato que se verificou com a morte do presidente Vargas, que foi o grande
artífice do dirigismo econômico no país. Aliás, este aspecto é muito bem focalizado
pela Memória da Eletricidade, no livro Panorama do setor elétrico brasileiro,
editado pela Memória da Eletricidade. Foi Getúlio Vargas que iniciou o dirigismo
econômico nesse país. O Plano Salte, com a sigla de saúde, alimentação, transporte
e energia, considerava essas quatro atividades infra-estruturais como
fundamentais para o desenvolvimento econômico do país e havia uma dotação no
Plano Salte para energia, não especificadamente para quem nem como. Eu tive um
destaque da parte que era destinada à energia para a Central Elétrica no Piau.
Nessa ocasião, eu também consegui no Banco do Brasil, na Carteira de Crédito
Agrícola e Industrial, mais um reforço e com esses recursos foi que nós levamos a
bom termo o projeto da Piau. Mas, voltando atrás, como já foi mencionado, a Cemig
veio participar do projeto da Piau. Nós tínhamos tido, no passado, muitos contatos
com o governador de Minas, o dr. Milton Campos, que foi substituído pelo dr.
Juscelino Kubistchek. O dr. Juscelino Kubistchek organizou a Cemig e, na Cemig,
sob a direção do dr. Lucas Lopes, foram trabalhar vários colegas, dr. John Cotrim,
dr. (inaudível), Flávio Henrique Lyra, e outros mais. Como consequência, na
associação da Cemig com a Piau, naturalmente eu estabeleci relações com essa
gente toda. Em 1956, já havia assumido a presidência da República o dr. Juscelino,
esses amigos, particularmente o dr. Cotrim, me convidaram para dar uma ajuda no
Conselho Nacional de Economia, que funcionava no BNDE, o Banco Nacional de

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Desenvolvimento Econômico. Essa ajuda se manifestou, em primeiro lugar, pelo
estudo de um decreto, se não me engano, de 1952, da Lei do Imposto de Renda de
1952, que autorizava as empresas a fazerem a correção dos seus ativos
imobilizados em função da inflação, pagando o imposto. Faziam a correção dos seus
ativos, naturalmente para efeito de fixação de preço dos seus produtos e pagavam
imposto sobre essa correção. Foi a primeira vez que se falou de correção monetária
no Brasil. Evidentemente, que as empresas concessionárias de serviços públicos
que viviam no regime de tarifas contratadas, como as concessionárias de porte, as
concessionárias de serviços de eletricidade e outras, estradas de ferro, todas elas,
no regime de tarifa contratada, viviam uma vida infernal porque essas tarifas não
eram corrigidas, não eram corrigidas em função da inflação. Então, ocorreu que,
havendo a possibilidade da correção dos ativos, isso interessava, particularmente,
às empresas de eletricidade, porque, corrigidos os ativos, haveria a base para se
promover a correção das tarifas. E, nessas condições, o presidente Juscelino havia
vetado um artigo da recente lei do imposto de renda, em continuação à lei de 1952,
que não só autorizava a correção dos ativos, mas que esses ativos serviriam de base
para a correção de tarifas, exceto as do serviço de utilidade pública. Esse artigo,
que se não me engano era o artigo 27 dessa lei do imposto de renda, foi vetado pelo
presidente Juscelino. E, vetado este artigo, o presidente Juscelino mandou estudar
um projeto de lei autorizando que os serviços de utilidade pública corrigissem os
seus ativos para fins tarifários. Daí o estudo que gerou este Projeto nº 1.898 e a
mim coube, nesse estudo, a elaboração da parte econômica do projeto. O projeto foi
enviado, como era natural, ao Congresso, acompanhado de uma exposição de
motivos ou exposição do projeto; E nessa justificação, a mim coube elaborar a parte
econômico-financeira. Esse projeto não teve nenhum sucesso no Congresso porque
os nacionalismos, se ocasião, o chamado nacionalismo, se sobrepôs a qualquer outro
interesse e o projeto foi recusado no Congresso. Nesse meio tempo, também se
tratava de disciplinar o Código de Águas, de 1934, e como toda lei, porque o Código,
apesar de ser denominado decreto, era lei, porque todos os atos que precederam a
Constituição de 1937, atos do governo ditatorial, foram configurados como leis e,
mais ainda, insusceptíveis de apreciação pelo Poder Judiciário. Isso é da
constituição de 1937, que só foi depois substituída pela Constituição de 1946. A

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Constituição de 1946 não alterou esse status jurídico dos atos do governo ditatorial,
de 1937, a 1946. Nessas condições, era preciso disciplinar o Código de Águas que,
como lei, nunca havia sido regulamentado por decreto, porque é o decreto que
regulamenta a lei, o decreto é o modo de aplicar a lei. E nós, na esperança de que o
Projeto de lei nº 1.898 fosse acolhido no Congresso, tratamos, dr. Cotrim, dr. Lucas
Lopes, com instruções do presidente da República, trataram de promover a
regulamentação do Código que sobrevindo à Lei 1.898, já o Código representaria os
fundamentos da aplicação da lei, porque era a regulamentação do Código. E
chegamos à regulamentação do Código baseados, principalmente, num velho estudo
que havia sido feito pelo Conselho Nacional de Águas e Energia Elétrica, estudo
esse que, não sei por qual razão, não foi adotado pelo governo que, naquela ocasião,
podia perfeitamente ter baixado o decreto. Essa regulamentação do Código teve a
colaboração, excepcionalmente proveitosa, do dr. José Luiz Bulhões Pedreira, que
houvera sido consultor jurídico do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico
e, além de advogado de altíssimas qualidades, era um homem de uma inteligência
extraordinária e há muito identificado com o setor elétrico. De modo que, com ele,
pudemos em menos de uma semana, elaborar o 41.109, ou melhor, a
regulamentação que depois recebeu o número 41.019 como decreto federal.

Entrevistador – O sr. chegou a acompanhar, a ter alguma intervenção no debate,


na tramitação do Projeto nº 1.898 no Congresso Nacional? O sr. foi chamado a
defender o projeto das críticas feitas pela corrente nacionalista?

Benedito Dutra – Não, não participei de nenhuma defesa, de nenhuma ação junto
ao Congresso relacionado ao 1.898, mesmo porque considero que isso seria inútil.
Não eram os pobres dos elaboradores do projeto de lei que teriam qualquer espécie
de influência no Congresso. Essa defesa teria que ser feita pelas bancadas da
Câmara dos Deputados e Senado fiéis ao governo e mais pelo ministro.

Entrevistador – E, complementando a pergunta do Paulo Brandi, esse tipo de


discussão acerca das tarifas era algo que despertasse o interesse da imprensa?

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Saíram ensaios, artigos, por exemplo, defendendo a correção dos ativos das
empresas?

Benedito Dutra – A defesa da atualização das tarifas, ou melhor, a defesa da


correção monetária dos ativos para que, neles se aplicando o mandamento do
Código de Águas que determina que as tarifas sejam fixadas pelo custo,
entendendo como custo uma cota de depreciação e uma cota de remuneração sobre
o ativo, evidentemente que essas duas cotas sobre um ativo depreciado, não
representavam nada. Então era necessário que esse ativo fosse atualizado para que
essas duas taxas neles aplicadas representassem, de fato, o verdadeiro custo do
serviço. Porque o custo do serviço não é só despesa de operação, o custo do serviço é
a depreciação do investimento e mais a remuneração do investimento. Se o
investimento está corroído pela inflação, essa remuneração, essa depreciação não
tem nenhuma significação. E, evidentemente, não só o serviço sofre com essa
situação, como o próprio investidor é roubado no seu patrimônio. E, na época,
houve muita discussão pela imprensa, houve muita discussão, inclusive, nos meios
técnicos.

Entrevistador – (inaudível)

Benedito Dutra – Todos esses debates tinham sempre um ranço ideológico, todos
eles. Esses debates todos, em tese, eram um choque entre a direita e a esquerda.
Não era nada técnico, nem nada realmente de interesse social. Discutia-se apenas
se devia ou não acabar com o empresário, que a ideia era acabar com o empresário,
socializar o setor, coisa contra a qual eu não me oponho eu não tenho nada que ver
com isso, eu não sou contra nem a favor da estatização, apenas acho que estamos
vivendo há muito tempo, desde 1934, uma situação absolutamente abstrusa que só
tem servido para criar dificuldades, para criar problemas e, principalmente, para
desmoralizar o setor elétrico. É o fato dele não ser nem socialista, nem privatista,
nem coisa nenhuma. O setor elétrico brasileiro não tem personalidade. O setor
elétrico brasileiro precisa e deve ter identidade, ele precisa ser institucionalizado,
porque até hoje o setor elétrico brasileiro é amorfo. Ele não é coisa nenhuma.

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Continuam existindo empresas privadas subordinadas ao governo federal, porque é
o governo federal que faz a tarifa. Existem empresas estaduais que não são fruto de
planejamento nenhum do governo federal, são planejadas por conveniência política
ou não de governos estaduais e têm a sua economia nas mãos do governo federal e,
com o correr do tempo, se transformaram em cabides de emprego. Deixaram de
cumprir sua missão e se transformaram em cabides de emprego. E todo esse melê,
toda essa confusão, tendo a Eletrobras como, teoricamente, mentora do setor
elétrico brasileiro. A Eletrobras não dirige coisa nenhuma, porque para dirigir o
setor elétrico, era preciso que a Eletrobras comandasse as empresas estaduais. Ela
não comanda as empresas estaduais, ela não comanda as empresas particulares, as
empresas particulares fazem a sua programação e se submetem ao governo, que
aprova ou não, mas não fazem programação oriunda da Eletrobras, como os
governos estaduais fazem lá a sua programação. Então a Eletrobras funciona no
setor elétrico como a Rainha Vitória. Ela reina mas não governa. Esse é o
melancólico panorama do setor elétrico há muito tempo.

Entrevistador – Dr. Benedito Dutra, ainda sobre o Decreto nº 4.898, eu gostaria de


lhe fazer uma pergunta sobre algo que me intriga muito: se de um lado, esse
decreto não foi aceito no Congresso, era um projeto de lei, por outro lado, também
as concessionárias estrangeiras que eram acusadas de terem extremo interesse na
aprovação dessa revisão, elas não paralisaram os seus investimentos, como, por
exemplo, a Rio Light, que produziu, nessa época, a usina de Nilo Peçanha. Então
como que o sr., sendo um analista financeiro, explica isso? Qual era a importância
da tarifa realmente, dessa revisão da tarifa do ponto de vista de se efetivarem
investimentos no setor elétrico? Por que que a Light fazia mesmo tendo a tarifa
congelada?

Benedito Dutra – A explicação não é muito difícil não. Mesmo com a tarifa
congelada, que a essa altura já tinha sofrido algumas correções independentemente
de se apreciar ou não o investimento da Light, a verdade é que a Light seria
obrigada a fazer novos investimentos para não perder o que tinha feito, porque se
ela não viesse a atender o crescimento de demanda, mesmo que insuficientemente,

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ela correria o risco de ter sua concessão ou o seu contrato, porque naquela época ela
era apenas contratante, ter o seu contrato rescindido e ser encampada pelo
governo, de graça. Então a Light estava na situação do português que emprestou
dez contos ao brasileiro e quando morreu ele era credor de 1.000 contos do
brasileiro e o brasileiro vivia muito bem, não tinha a menor preocupação de pagar
os dez contos que ele tinha tomado do português, porque o português, para não
perder esses dez contos, emprestou mais dez e depois, para não perder 20,
emprestou mais dez e assim foi sempre emprestando mais um pouco para não
perder o que já tinha emprestado. A Light estava na situação do português: ou ela
fazia alguma coisa ou ela perdia tudo. E é natural que ela sempre tivesse esperança
de que as coisas se regularizassem, De fato essa regularização nunca chegou a
acontecer em sua plenitude, mas, afinal de contas, a Light acabou vendendo o seu
patrimônio por 300 e tantos milhões de dólares, que eu não quero saber se valiam
mais ou menos, mas que, sem dúvida nenhuma, era muito mais que zero. Essa é
que é a razão pela qual em algumas outras concessionárias, inclusive, em escala
muito menor, a própria Amforp, foram obrigadas a fazer. Ou faz alguma coisa ou
perde tudo. E como a esperança é a última coisa que morre, e essas empresas, na
esperança de que um dia se regularizasse uma situação que era absolutamente
injustificável, continuaram a fazer algum investimento para não perderem tudo o
que tinham. Essa é que era a verdadeira situação à época.

Entrevistador – Eu ia fazer uma observação: que, para isso, certamente devem ter
concorrido os racionamentos, que geravam uma pressão muito forte para que essas
empresas fizessem novos investimentos.

Benedito Dutra – A sua observação é verdadeira. Se não houvesse pressão, ou seja,


se não houvesse um aumento de demanda insuficientemente atendida, resultando
aí um racionamento, ou disfarçado ou efetivo, evidentemente que elas não fariam
nenhum investimento. O investimento foi feito por isso. O investimento era pressão
da demanda. Mas sempre não perdendo de vista isto: ou fazia o investimento para
atender a demanda ou perdia o que tinha.

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Entrevistador – Sr. Benedito Dutra, para completar ainda o seu testemunho sobre
a parte da revisão de legislação, qual a sua contribuição na elaboração do Decreto
nº 41.019? Qual a sua parte, qual a contribuição que o sr. deu nesse decreto? De
que maneira o sr. dividiu o trabalho com o jurista José Luiz Bulhões Pedreira?

Benedito Dutra – A elaboração do Decreto nº 41.019, no estudo do futuro Decreto nº


41.019, coube ao dr. José Luiz Bulhões Pedreira, que como eu disse, fazia parte do
corpo jurídico do BNDE anteriormente, e nessa época ainda, nessa época ele ainda
era do corpo jurídico do BNDE, toda a parte legal, toda a parte jurídica do decreto,
do futuro decreto. A mim, coube só a parte econômica e a parte técnica, em parte,
porque o resto da parte técnica também teve a colaboração do dr. Cotrim, com os
assessores dele, do Conselho Nacional de Economia, A mim coube a parte
exclusivamente de economia e finanças do decreto. Um decreto dessa natureza
apresenta três aspectos: apresenta um aspecto jurídico, um aspecto econômico e um
aspecto financeiro e mais o quarto aspecto, que é o aspecto técnico, a questão das
frequências, a questão das transmissões, das tensões de transmissão, vários
aspectos técnicos que ficaram com o dr. Cotrim mesmo. A minha parte foi muito
pequena nesse terreno porque isso era matéria que já tinha sido estudada pelo
Conselho Nacional de Águas e Energia no trabalho de 1951. Eu apenas me cingi a
usar essa parte do trabalho do Conselho Nacional de Águas e Energia de 1951. A
outra parte, que era a parte de economia e finanças do decreto, essa foi a que me
coube, a fixação da formação da tarifa, como é que se calculava a tarifa, o
estabelecimento das normas para fixação da remuneração.

Entrevistador – (inaudível).

Benedito Dutra – Não, isso já existia, sempre existiu. Existia, inclusive,


consensualmente, muito antes do 41.019, já existia a energia industrial, comercial,
a energia residencial, a energia para serviços públicos (iluminação, bombas, para
serviços de águas, etc). E, no trabalho do Conselho Nacional de Águas e Energia, já
estava definido. Não se inovou grande coisa. O 41.019, e eu me orgulho muito de ter
participado da elaboração dele, e de fato foi mais uma cristalização e uma

42
atualização do que já era prática nos serviços de eletricidade, do que qualquer
inovação. Nós não fizemos inovação nenhuma. Era uma consolidação daquilo que,
inclusive, já era tradicional, vamos dizer, já era de hábito, não fizemos... É uma
ilusão pensar que o 41.019 trouxe uma inovação no setor elétrico. Não trouxe
inovação nenhuma. Ele apenas fixou, disse: _ não, agora o que era apenas
consensual, passa a ser obrigatório, passa a ser lei. Não é um diploma inovador. É
um diploma regulamentador de práticas já estabelecidas, fixadas, correntes, mas
que não tinham força da lei. Passaram a ter força de lei. Isso é o que é o 41.019.

Entrevistador – Vamos passar para Furnas, então? Dr. Benedito Dutra, nós
tínhamos comentado, ainda antes do início da nossa entrevista, que em 1956, o sr.
colaborou na elaboração do projeto de constituição de Furnas, da Central Elétrica
de Furnas, na época no singular ainda. O sr. poderia dar o seu depoimento sobre
esse trabalho de preparação do projeto de Furnas?

Benedito Dutra – O projeto de Furnas foi entregue pelo dr. Lucas Lopes à
responsabilidade do dr. Cotrim. O dr. Cotrim, talvez pela minha atuação na
Central Elétrica do Piau e pela nossa convivência no Conselho Nacional de
Economia, os trabalhos do 1.898, do 41.019, e mais pequenas tarefas que não vêm a
pelo, o dr. Cotrim me convidou para, juntos, organizarmos o orçamento da Central
Elétrica de Furnas, que serviria de base à exposição que o dr. Lucas Lopes iria
encaminhar ao presidente, pedindo autorização para que o governo federal
subscrevesse ações da futura Central Elétrica de Furnas, que iria ser constituída
como empresa privada. E a Central Elétrica de Furnas foi constituída como
empresa privada. Ela não foi constituída por decreto do governo. O decreto que
existe é de autorização de funcionamento como empresa de energia elétrica, mas
não é um decreto criando a empresa. A empresa foi constituída por escritura
publica celebrada, se não me engano, no dia 27 de fevereiro de 1957, aliás a
escritura foi assinada lá em Petrópolis. O presidente estava, nessa ocasião,
veraneando em Petrópolis. Mas a empresa não foi criada como sociedade de
economia mista. Foi criada como empresa privada, da qual o governo não tinha
também não maioria do capital, não. A maioria do capital era da Light, da Paulista

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de Força e Luz e mais os particulares, inclusive eu, eu sou acionista fundador da
Central Elétrica de Furnas. Não era uma empresa estatal. Depois, com o correr do
tempo, a Light foi perdendo posição, agora eu não estou me lembrando de todos os
acionistas,,, era o DAE de São Paulo, era a Cemig...

Entrevistador – O dr. John Cotrim, em seu depoimento, afirma que Furnas foi a
única empresa de capital misto, verdadeiramente misto, que se fez no Brasil. O sr.
concorda com a afirmação? E como se desenvolveram as negociações com a Light, a
Amforp, o governo de Minas e o governo de São Paulo, que subscreveram ações
para Furnas?

Benedito Dutra – Bem, o trabalho da constituição de Furnas ficou entregue, ficou


entregue não, era da alçada do dr. Lucas Lopes, do dr. Luiz Gonzaga do
Nascimento Silva, que era diretor do Departamento Jurídico do Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico, do dr. Cotrim como assessor deles todos e eu não
participei dessas negociações. Eu só vim a participar da diretoria de Furnas, já
uma vez constituída a sociedade, como já foi dito, por escritura pública, que não é
decreto. Só é sociedade de economia mista a sociedade criada por decreto. O fato do
governo federal ter, eventualmente, maioria de ações da empresa não significa que
ela seja de economia mista. O BNDES tem hoje maioria de ações em cinco das
maiores editoras brasileiras, ninguém vai dizer que elas são sociedades de
economia mista. São sociedades particulares, sociedades privadas. O governo tem
maioria de ações, o governo tem o poder de direção, sem dúvida nenhuma, mas não
era sociedade de economia mista, ou melhor, não era uma sociedade regulada pelas
leis federais. Furnas era regulada exclusivamente pelo Código Comercial. Todas as
sociedades de economia mista têm pelo menos um artigo do decreto de criação que
resolve em relação a elas algumas disposições do Código Comercial. Como, por
exemplo, em todas elas os presidentes são nomeados. Numa sociedade privada,
numa sociedade particular, todos os membros da diretoria, da direção, são eleitos.
Na sociedade de economia mista, não. Há, inclusive, a sociedade de economia mista
em que toda a diretoria é nomeada. Em algumas, parte da diretoria é nomeada,
parte é eleita e assim por diante. Não era o caso de Furnas. Em furnas toda a

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diretoria foi eleita. Não foi nomeada pelo governo. Foi eleita pelos acionistas,
inclusive o governo federal. Furnas foi constituída nessas condições, eu me atrevo a
dizer, principalmente, para evitar uma crise com o governo de Minas, porque o
objetivo da empresa, que era o aproveitamento da corredeira das Furnas, em
território mineiro, fazia com que, em sendo mineiro o dr. Lucas Lopes, mineiro o
presidente da República, fazia com que fosse lógico que a empresa fosse uma
empresa mineira. Apenas, Minas não tinha condições de financiar Furnas. Então,
não podia ser paulista, embora o objetivo inicial maior de Furnas fosse atender à
crise que se esboçava em São Paulo. Uma crise no maior centro industrial do país
como é São Paulo teria uma outra área. A crise em São Paulo era uma crise de uma
gravidade superior e Furnas foi por isso constituída como uma empresa privada,
não ofendia ninguém, nenhum interesse político, ninguém ficava suscetibilizado
com a criação de Furnas e foi dentro desse espírito privatista que Furnas foi
organizada e administrada durante mais de dez anos, com os resultados que todo
mundo conhece. Se fosse uma empresa estatal como as outras e como ela veio a se
tornar mais tarde, certamente que outras fadas estariam presentes nesse cenário.

Entrevistador – Dr. Benedito Dutra, recentemente nós entrevistamos o ex-


presidente da Rio Light, o Tullio Romano de Mello e ele disse que, por ocasião da
constituição de Furnas, a Light teria sido a única empresa que entrou com dinheiro
vivo, quer dizer, os outros participavam do capital acionário, mas não chegaram a
dar dinheiro a Furnas. Achamos isso muito estranho e insistimos muito nesse
ponto e ele manteve a afirmativa de que a Light teria sido a única a entregar
dinheiro vivo para a constituição da empresa. Em relação a isso, o sr. poderia dizer
alguma coisa?

Benedito Dutra – Há, talvez, um toque de exagero na afirmação do dr. Tullio. O dr.
Tullio é um velho funcionário da Light. Ele está na Light há trinta anos ou coisa
que o valha. Quando Furnas foi constituída, Furnas contava, primordialmente, com
os recursos do Fundo Federal de Eletrificação, que eram administrados pelo Banco
Nacional do Desenvolvimento Econômico, que era presidido pelo dr. Lucas Lopes,
de modo que o governo federal tinha que atender os seus compromissos de

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subscrição de capital, seria, simplesmente, inimaginável. O governo federal sempre
contribuiu, não só com a sua cota de capital, como também e, principalmente, com
os recursos de financiamento da obra que iam muito além do capital de Furnas.
Basta dizer que só o Banco Internacional nos emprestou 75 milhões de dólares, na
época é qualquer coisa de estrondoso, se você pensa que naquela época, com 75
milhões de dólares, se instalou uma usina como Furnas, que custou, vou lhe dizer,
coisa da ordem de... não chegou a 50 dólares de potência instalada. Furnas custou,
instalada, 150 milhões de dólares e instalou 950.000 kW, quer dizer, 149 dólares o
kW instalada, hoje custa 2.000. Todos sempre contribuíram com a sua parte,
apenas, por exemplo, o DAE de São Paulo, a participação dele era mínima. A
Companhia Paulista de Força e Luz, a Cemig, todos eles sempre contribuíram com
a sua parte, com mais dificuldade, com menos dificuldade e, sem dúvida nenhuma,
diante dessas dificuldades, o aporte da Light se sobressaía, se sobrelevava sobre
todos os outros.

Entrevista – Ainda sobre a Light, reportando sobre o depoimento do dr. Cotrim,


existe uma participação da Light muito importante para avaliar o projeto junto à
comunidade financeira internacional. Ele também diz que a Light também teria
ajudado muito através de seu escritório técnico no exterior. Então, eu gostaria de
combinar duas perguntas: uma seria de como se desenvolveram as negociações com
o Banco Mundial que resultaram no financiamento dos 75 milhões de dólares,
financiamento esse que foi assinado em Washington em 3 de outubro de 1958, e a
outra é sobre uma parte que eu acho que também diz muito a respeito à sua
atuação como diretor financeiro de Furnas, que é sobre a compra de equipamentos,
e a ajuda, a intermediação que a Light teria dado através de seu escritório no
exterior.

Benedito Dutra – Bom, uma vez constituída a empresa, o próprio Banco Nacional
de Desenvolvimento Econômico, através do dr. Lucas Lopes, entrou em negociações
com o Banco Internacional, com o Banco Mundial, no sentido de obter um
financiamento para o projeto que, como acabei de dizer, seria da ordem de 150
milhões de dólares, que seria um peso acima da nossa capacidade na ocasião. E o

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Banco Internacional, em fins de 1957, mandou uma missão aqui no Brasil para
examinar o projeto, para investigar o mercado, as condições prevalentes aqui no
país e a mim, como diretor financeiro, coube receber essa missão, fornecer
elementos para eles e depois negociar com o banco a concessão do empréstimo,
inclusive fornecendo ao banco toda a série de documentação e de estudos
econômico-financeiros que o banco exigia para estudar a concessão do empréstimo.
Eu fiz isso pessoalmente porque, naquele tempo, Furnas não tinha corpo de
assessores, nem corpo de assistentes, como hoje tem qualquer empresinha de
terceira ordem. Nós éramos obrigados a fazer tudo a unha. Trabalhar mesmo com o
próprio corpo e não com o dos outros. E esse trabalho todo eu fiz, pessoalmente,
para o Banco Internacional, naturalmente ajudado pela nossa contabilidade. As
negociações foram demoradas e eu não digo nem penosas nem difíceis, mas
trabalhosas. Trabalhosas porque, como é natural, o banco queria se cercar de
determinadas garantias, garantias essas que nem todas podiam ser conseguidas,
ser concedidas, sem desmoralização do país. O banco pretendeu fazer algumas
exigências que nós não podíamos conceder. Essas negociações foram demoradas e a
última parte delas foi em Washington, onde eu tive que passar 45 dias, negociando
com o banco os termos finais do contrato que, afinal de contas, ao meu ver, se
revelaram satisfatórias tanto para o banco como para o Brasil, aqui para Furnas.
Furnas passou a ser, posteriormente, considerada cliente de primeira linha do
banco. Primeiro porque, sempre com correção, nós sempre atendemos às nossas
obrigações. E segundo porque tudo quanto nós alegamos ou informamos ou
prometemos ao banco, foi verificado na sua plenitude. Esse contrato, afinal, como
foi dito a pouco, esse contrato de financiamento foi assinado em outubro de 1958 e
nessa época nós já tínhamos adiantado alguma coisa das obras, nós estávamos
inclusive fazendo o preparo dos acampamentos, o preparo da vila de operadores e
no próprio local da obra já havia muito serviço feito. O empréstimo do banco à
Furnas tinha uma importância muito grande porque nessa época a indústria
brasileira ainda era muito incipiente. E uma parte grande do equipamento não era
fabricada no Brasil, inclusive as turbinas e os alternadores, que naquela época
eram os maiores que já se tinha visto aqui no Brasil. Eram grupos de 150.000 kW,
a gente está acostumado, no máximo, com coisinhas de 35.000 kW, 50.000 kW já

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era de arregalar os olhos, unidades de 150.000, que até hoje são grandes unidades.
Tudo isso tinha que se importar, transformadores, chaves... Uma grande parte do
equipamento de Furnas teve que ser importada e para isso nós precisávamos de
dinheiro de fora. Nós não tínhamos dinheiro aqui para comprar dólar que não
existia para importar esse equipamento. Esse equipamento foi importado, teve
concorrência, não compramos isso por simpatia nem por preferência, foi feita
concorrência, compramos todo o equipamento em concorrência. A Light prestou um
grande serviço, exclusivamente na parte de fiscalização e transporte do
equipamento, porque a Light tinha escritórios de compras nos Estados Unidos, o
que nos facilitava. Eram nossos sócios não tinha nada de extraordinário que nós
usássemos os escritórios deles para fiscalizar e promover o embarque do
equipamento comprado, tanto nos Estados Unidos como na Europa. Esse é que é o
aspecto mais importante do empréstimo, era nos dar liberdade, facilidade,
flexibilidade, para comprar o equipamento onde fosse mais conveniente no
momento, coisa que não ocorreria se nós tivéssemos empréstimo de outra fonte que,
em geral, é feito cingido a determinadas fontes de fornecimento.

FIM

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