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Desprezo como uma atitude moral1

Michelle Mason

1. Introdução

É comumente lamentado que filósofos com frequência neguem, caracterizem mal ou


simplesmente desconsiderem características significativas da paisagem ética, tal como percebida
por pessoas comuns. Os filósofos morais sensíveis a essa acusação têm ampliado a consideração de
questões de psicologia moral e de emoção moral que poderiam, de outro modo, ser negligenciadas.
Apesar de todo o esforço, contudo, o elenco de personagens oferecido na filosofia moral
contemporânea e o repertório atitudinal que eles recomendam permanece sem dúvida, aos meus
olhos, pouco inspirador, senão desestimulante. Com efeito, pode muito bem ser que a própria
preocupação dos filósofos morais em nos inspirar tenha sido responsável pelas omissões que
poderíamos atribuir, adotando uma hipótese menos caridosa, a uma mera falta de imaginação.

Entre as atitudes pouco inspiradoras que os filósofos morais contemporâneos têm


continuamente negligenciado está o que será o foco do meu interesse a seguir: o desprezo. Eu
abordo o desprezo não apenas para notar que ele desempenha uma função mais ampla na vida ética
do que a literatura ética recente sugere, mas, mais importante, para argumentar que seu
reconhecimento como uma atitude especificamente moral—moral tanto no sentido que é uma
atitude que possui conteúdo moral, quanto no sentido que pode ser moralmente justificado tê-lo
em relação aos outros, o que eu chamo de uma forma propriamente enfocada. Segundo tal
concepção, o desprezo em sua forma propriamente enfocada é uma característica da paisagem ética
cotidiana que o filosofo moral não tem nenhuma desculpa que autorize ignorá-lo e sua
desconsideração merece uma explicação. É no espírito de tal compromisso que eu ofereço a seguir
uma defesa da propriedade moral do desprezo adequadamente enfocado.

Minha defesa seguirá o seguinte roteiro: na Seção II, eu apresento um exemplo que
esclarece a atitude que pretendo analisar; na Seção III, parto de uma comparação com o
ressentimento para esboçar as condições sob as quais um caso de desprezo é evidentemente
apropriado ao seu objeto, o que eu chama de condições para o desprezo propriamente enfocado;
dado que o desprezo pode ser propriamente enfocado sem ao mesmo tempo ser uma resposta
moralmente apropriada, eu desfaço algumas objeções morais em torno de condições ulteriores de
justificação moral na Seção IV. Na Seção V eu me volto para outras objeções ao desprezo e,nas seções
VI e VII, a algumas preocupações kantianas. Eu argumento, em última instância, que nem as
primeiras e nem as segundas objeções que considero bloqueiam meu argumento que o desprezo
propriamente enfocado é as vezes moralmente justificável. Eu concluo destacando algumas
considerações que, por suposto, falam em favor da conclusão mais forte que afirma que o desprezo
propriamente enfocado pode em alguns casos ser moralmente exigido. Se minha defesa do desprezo
for convincente, ela apresenta um duplo desafio às teorias morais contemporâneas: um desafio
geral relativo à visão que uma moralidade ilustrada deve ser uma moralidade gentil e, mais
especificamente, um desafio às teorias éticas incapazes (ou indispostas a) acomodar a função ética
do desprezo propriamente enfocado.

II O desprezo de Camille

Eu começo com uma cena de um casamento. O desprezo de Camille por Paul, seu marido,
é palpável. Ela repele seus avanços e geralmente tem se mantido distante dele. Paul sente que algo
mudou em sua relação com sua esposa e mudou para pior. Camille, contudo, recusa-se a dar
explicações. Paul desconhece que desde que concordou em escrever um roteiro para o produtor
egocêntrico Prokosch ele passou a ser visto por Camille como não muito homem. O que

1
Traduzido por Flavio Williges a partir do original publicado em: MASON, Michelle.
Ethics, Vol. 113, No. 2 (January 2003), pp. 234-272.
impressionou Camille não foi o fato que Paul comprometeu sua integridade artística por um
punhado de dólares, mas que o propósito de Paul, na melhor das hipóteses, cegou-o para os intentos
de Prokosch em relação a ela e, na pior das hipóteses, revelou que Paul estava disposto a facilitar
que Prokosch seduzisse sua esposa. Nesse contexto, podemos resumir, o silêncio de Camille é
estratégico. Ela deixa que Paul reconheça sua falha por si mesmo; se ele se mostrar incapaz de
perceber isso, o juízo dela em relação a ele será muito pior.

Camille e Paul são personagens de um filme de Jean-Luc Godard intitulado


convenientemente para meus propósitos de Le mépris (O desprezo). O filme conta a evolução do
desprezo que Camille (Brigitte Bardot) vem a sentir por seu marido roteirista Paul (Michel Piccoli).
No começo do filme, Camille e Paul parecem estar profundamente apaixonados. Contudo, a chegada
do produtor americano lascivo Jeremiah Prokosch (Jack Palance) ameaça sua felicidade. Não há
dúvidas que o rico Prokosch planeja conquistar Camille. Por exemplo: quando Paul pergunta por
que Prokosch quer contratá-lo para adaptar a Odisseia de Homero para a televisão, Prokosch
responde: “você precisa do dinheiro”. Prokosch acrescenta ainda em resposta a indagação de Paul,
“eu ouvi dizer que você tem uma linda mulher”. À luz dessa apresentação reveladora, uma série
de ações subsequentes de Paul parecem denotar encorajamentos aos avanços sexuais de Prokosch
em relação a Camile, encorajamentos arquitetados para favorecer Paul aos olhos do produtor.
Assim, quando Prokosch convida o casal para conhecer seu chalé, sugerindo que ele deixasse Camille
viajar perto dele em seu conversível vermelho e recomendando que Paul fosse de taxi, Paul encoraja
sua esposa, contra seus desejos expressos, a ir. Como era imaginado, Paul demora a chegar no chalé
e o desfecho subsequente sugere a cena de uma sedução. Assim começa o desprezo de Camille,
aparentemente em resposta ao juízo de Paul, que ignorou e encorajou o comportamento de
Prokosch, mostrando-se disposto a trocar seus serviços sexuais pelo seu sucesso profissional.

A ação em Le mépris é, de fato, mais ambígua do que essa breve glosa sugere. Para minhas
finalidades aqui, eu vou supor que os motivos de Paul são motivos realmente objetáveis como
Camille aparentemente crê que sejam e que a própria Camille não é destituída de princípios, como
Godard sugere às vezes. Eu assumirei que nós temos diante de nós um caso em que um marido
revela falta de integridade e disposição para explorar de modo oportunista a relação intima que
mantém com sua esposa. Precisamos crer, além disso, que o que foi revelado mostra qualidades
duradouras que descrevem o tipo de pessoa que ele é. Em resposta a isso, sua esposa passa a tratá-
lo com desprezo.

Eu estou inclinada a julgar o desprezo de Camille por seu marido não só como algo
compreensível, mas se suas crenças forem verdadeiras, justificado. Contudo, o desprezo é
moralmente justificado? Se for, quais são as condições justificatórias relevantes? A despeito de
estar no filme um desfecho trágico que sugere uma tristeza para a qual o desprezo conduz, eu
ofereço os sentimentos de Camille como um ponto de partida para mostrar além de toda dúvida
que o desprezo é algo que sempre devemos moralmente expurgar e esboçar uma defesa de sua
justificação moral. Embora eu não tenha encontrado nada na teoria moral contemporânea que
poderia justificar a resposta de Camille à sua situação, eu considero isto mais um problema da
teoria moral moderna do que dela.

III O que é o desprezo propriamente enfocado?

Alguém que se incline, como eu, em direção a uma visão caridosa segundo a qual não é por
falta de imaginação moral que os filósofos morais contemporâneos negligenciam o desprezo, fará
bem em reconhecer o lado mais sórdido do desprezo. Enquanto atitudes como o respeito, a gratidão,
o amor, a humildade e o perdão constituem a constelação do que é bacana, o desprezo comporta
exclusivamente o que é asqueroso. Ou algo assim, eu sustento, muitos de nós estão inicialmente
inclinados a supor. Se além disso se supõe que a moralidade deve ser inspiradora, temos uma
explicação de porque o desprezo é tão facilmente esquecido.

Ainda, tal feiura potencial não tem impedido os filósofos morais de investigar atitudes
que podem ser igualmente pouco atraentes. A raiva e o ódio moralmente motivados, por exemplo,
receberam seu quinhão de atenção filosófica. Do mesmo modo, basta apontar para atenção dos
filósofos ao ressentimento como atitude moral, e lembrar as formas que o ressentimento pode
assumir para perceber que a negligência em relação ao desprezo não é resultado de quaisquer
suspeitas que possamos ter quanto a seu caráter muito intragável para merecer nossa atenção,
quanto mais para inspirar uma defesa.

Eu faço referência ao desprezo como atitude moral. Ambos três termos são carregados,
eu receio, com sua própria bagagem filosófica. “Atitude” captura bem, eu creio, a qualidade do
desprezo como uma forma de consideração (uma qualidade que não é características de todos as
emoções e sentimentos). Eu assumo que o desprezo é uma forma de consideração- eu quero dizer
justificar- em última instância, justificar moralmente- uma certa perspectiva afetiva em relação
a outra pessoa, não (ou não meramente) a adoção de uma certa crença sobre ela (por exemplo, que
eles são desprezíveis). Finalmente, minha referência ao desprezo como uma atitude alude à
discussão de P. F Strawson em torno do que ele chama, famosamente, de atitudes reativas- uma
discussão na qual me apoiarei para individuar o desprezo em geral, bem como para especificar as
condições necessárias para seu foco adequado e propriedade moral.

Eu ofereço o desprezo de Camille como um caso paradigmático e um ponto de partida para


um esboço inicial da atitude. Embora tenhamos perdido uma forma verbal transitiva para
funcionar como desprezar a si mesmo uma vez fazia, parece mais adequado dizer que a falha de
Paul impulsionou Camille a desprezá-lo. Se isso estiver correto, então o desprezo herda a conotação
de olhar de cima para seu objeto (desprezar deriva do latim despicere, olhar de cima para baixo).
Nas palavras de Camille, a falha de Paul mostra-o como alguém que “não é homem”. Se entendemos
“homem” aqui- ou mais geralmente “pessoa”- funcionando num sentido puramente descritivo,
então Camille fala, claro, falsamente. Mas não há razão para atribuir tal erro a ela. Ao olhar com
ar de superioridade para Paul como alguém que “não é homem”, eu sugiro, a atitude de Camille
presume rastrear quão bem ou mal Paul se sai quando medido a partir de padrões de excelência
aplicados propriamente a homens ou, mais geralmente, pessoas entendidas em um sentido
normativo. Nesse sentido, as pessoas são seres portadores de certos direitos e expectativas quanto
ao nosso comportamento em relação a eles e eles mesmos são responsáveis por reconhecer certos
direitos, demandas e expectativas acerca do seu comportamento em relação a outros. Nesse nível
geral, o desprezo que eu procuro defender em nome de Camille é uma resposta a uma falha que
presumivelmente ensina o valor do outro como pessoa, no sentido de inferiorizar sua perspectiva
no sistema de expectativas, demandas e direitos (merecidos e devidos) que definem relações
normativas com nossos parceiros.

Em síntese, eu sugiro que entendemos melhor o desprezo na medida que o vemos


apresentando seu objeto como baixo, no sentido de ocupar uma posição de importância mais baixa
como pessoa em virtude de não conseguir cumprir algum ideal interpessoal legítimo da pessoa,
um ideal que o desprezado endossa, quando não um que ele mesmo conseguiu alcançar. Ter desprezo
pelo outro, novamente, não envolve meramente julgar ou crer que o outro relevante tem um
valor inferior como pessoa mas, antes disso, envolve considerar o outro como alguém que é
inferior. Chega-se a ver o outro como inferior quando se mensura o outro a partir de um ideal
interpessoal relevante. Essa forma de consideração tem uma qualidade afetiva saliente: sentimos
dor na presença de seu objeto, que dessa forma torna-se para nós uma fonte de aversão (como
ocorreu com Camille por Paul). Embora eu creia que as manifestações comportamentais de desprezo
possam ser muito variadas, elas partilham essa qualidade da aversão (evitar situações sociais onde
o outro está presente e recusar-se a cumprimentar vem à mente como exemplos). É uma outra
questão saber o que se pode mais ser motivado a fazer em virtude do desprezo. É importante
enfatizar, em relação a isso, que o desprezo não é necessariamente uma emoção retributiva.
Enquanto emoções essencialmente retributivas (como a vingança) sugerem um desejo de machucar
seu objeto, o desprezo só aciona imediatamente o desejo de se retirar ou ficar longe de seu objeto.

Eu não espero que esse breve esboço ofereça uma descrição completa da atitude. Eu
pretendo, contudo, apresentar as marcas necessárias mais proeminentes – ou condições de
identificação- da atitude que nós intuitivamente identificamos, como no caso de Camille, como
desprezo. As condições de identificação são aquelas condições que determinam as circunstâncias em
que uma certa emoção ou atitude é inteligível. É uma questão posterior saber se um exemplo de
uma atitude identificada como desprezo é evidentemente apropriada a seu objeto. Ao voltar-nos
para condições das propriedades evidenciais do desprezo, nós nos voltamos para condições que
devem ser satisfeitas se o desprezo por outro pretende ser o que eu chamaria de propriamente
focado. Condições para o enfoque próprio de uma atitude ou emoção são condições que devem ser
satisfeitas se a atitude ou emoção está acuradamente presente no objeto. Isto é, uma atitude é
propriamente focada se e somente se seu objeto intencional de fato possui aquelas características
que a atitude apresenta o objeto como tendo. Uma vez que temos desprezo propriamente focado
em vista, finalmente podemos nos voltar para a questão de sua propriedade moral.

Quais, pois, são as condições do desprezo propriamente enfocado? Ao determinar essas


condições, é útil considerar uma classe de atitudes com as quais o desprezo tem, em minha visão,
afinidades importantes: aquelas atitudes que Strawson chama de atitudes reativas. Como Strawson
as descreve, as atitudes reativas são, no nível mais geral, reações a qualidades da vontade- boa, má
ou indiferente- conforme manifestadas em atitudes e ações. Que estejamos propensos a tais
atitudes reflete a importância para nós da qualidade da vontade que as ações humanas e atitudes
expressam e nossas expectativas e demandas com relação a elas. Tudo o mais constante, esperamos
ou exigimos algum grau de boa vontade ou consideração dos outros e tratamos a nós mesmos como
responsáveis por demandas feitas a nós. Atitudes reativas são “reativas” por serem reações de
resposta a essas demandas.

Strawson traça uma série de distinções ao tentar esboçar os contornos do conceito de


atitude reativa. Ele primeiro isola as atitudes reativas pessoais, reações à qualidade da vontade de
outra pessoa- boa, má ou indiferente- em relação a nós, conforme manifestas em suas atitudes e
ações. As atitudes reativas pessoais, das quais o ressentimento e a gratidão são casos paradigmáticos,
são o que Strawson chama de “não-distanciadas” no sentido que elas são “reações das pessoas
diretamente envolvidas nas transações uns com os outros”. Essas atitudes contrastam tanto com
atitudes reativas “distanciadas” que assumem um escopo mais geral e com atitudes auto-reativas.
A primeira, da qual a indignação é um caso paradigmático, são reações à qualidade da vontade de
outra pessoa- boa, má ou indiferente- em relação àqueles que são importantes para nós. Strawson
trata os membros dessa segunda classe de atitudes reativas como análogos vicários das atitudes
reativas pessoais; por exemplo, a indignação é o análogo vicário do ressentimento. Finalmente, as
atitudes auto-reativas são reações à qualidade da nossa própria vontade conforme expressa em
relação a outros, reações conectadas com expectativas e demandas que outros nos impõem. Strawson
coloca nessa classe o sentido de obrigação, culpa e vergonha.

Strawson distingue ainda atitudes reativas que são morais e atitudes que não são morais.
Estranhamente, sua proposta para distinguir o moral do não-moral foi estabelecida em termos de
se a atitude reativa em questão é experimentada vicariamente à expensa do outro (nos casos morais)
ou em resposta a uma injúria a si próprio (os casos não-morais). Ou seja, a segunda classe de atitudes
reativas que distingui é a classe das atitudes reativas morais na visão de Strawson. Mas, certamente,
nossas respostas à vontade boa ou má que outros expressam para nós não são menos morais por
envolverem preocupação com nós mesmos. Dito de outro modo, pode-se procurar um meio de
capturar a distinção moral e não-moral entre atitudes reativas distinguindo atitudes reativas que
possuem conteúdo moral explicito daquelas que não tem. Isso é, numa certa concepção do que é,
para uma emoção ou atitude ser uma atitude ou emoção moral, o seu conteúdo deve invocar
explicitamente propriedades morais de seu objeto, ou, de outro modo, explicitamente invocar
conceitos morais. Assim, o ressentimento e a indignação frequentemente são considerados atitudes
morais prototípicas em virtude de seu conteúdo invocar o conceito de erro, um conceito moral
fundamental. Em contraste, a gratidão e a raiva, dois exemplos de atitudes reativas citados por
Strawson, não parecem ser morais nesse sentido. Não obstante, a gratidão e a raiva- não menos
do que o ressentimento e a indignação- são atitudes reativas à medida que elas são respostas à
qualidade da vontade que outros expressam em relação a nós ou aqueles que são de nosso interesse.
Esse fato, contudo, sugere uma compreensão mais ampla da “moral” segundo a qual é verdadeiro
que todas as atitudes reativas são, de fato, atitudes morais: a saber, o sentido em que é verdadeiro
considerar alguém dentro do escopo de uma atitude reativa particular é considerar alguém como
responsável por uma expectativa ou demanda que faz parte de um sistema de expectativas,
demandas e direitos regulados de acordo com o que é necessário para aspirar uma comunidade
moral entre nós. Nesse sentido, considerar alguém dentro do escopo das atitudes reativas é parte
constitutiva de considerar alguém como um agente moral.
Embora tais atitudes possam não possuir conteúdo moral explicito, elas são atitudes morais
por terem o que podemos chamar de importância moral. A importância moral fundamental das
atitudes que são morais nesse sentido mais amplo é evidente na distinção crucial feita por Strawson
para separar atitudes reativas e não-reativas. Essa é a distinção entre considerar outra pessoa
dentro do escopo das atitudes reativas e assumir em relação a elas o que Strawson chama de uma
atitude “objetiva”. Nós assumimos uma atitude objetiva em relação a pessoa quando a vemos como
“um objeto de política social; como alguém sujeito àquilo que, num sentido amplo, poderia ser
chamado de tratamento”. Em suma, assumir uma atitude objetiva em relação à alguém na ausência
de condições exculpatórias usuais é não ser capaz de considera-la livre, como um agente responsável;
como tal é ser incapaz de considerar ela como um agente moral pleno.

As distinções de Strawson, independente de suas finalidades, tentam traçar os contornos de um


conceito cuja extensão inclui formas de consideração que se adéquam aos seus objetos intencionais
somente no caso de o objeto ser uma pessoa com quem você ou aqueles importantes para você
partilham alguma relação interpessoal. Nesse caso, a pessoa em questão é tratada corretamente
como alguém do qual esperamos ou exigimos que expresse a nós mesmos ou aqueles que interessam
a nós algum grau de boa vontade ou consideração. Em resposta às suas expectativas com relação à
qualidade da vontade que você corretamente espera que tal pessoa exiba, você apropriadamente
devota a esta pessoa uma atitude reativa relevante. Contudo, na ausência de condições excludentes,
considerar que alguém está dentro do escopo das atitudes reativas é parte do que significa tratá-
lo como agente moral. O desprezo propriamente enfocado, eu quero agora argumentar, é um tal
tipo de atitude. Minha argumentação para mostrar isso depende de uma comparação com a
discussão de Strawson das atitude reativa do ressentimento.

De acordo com Strawson:

1. o ressentimento é uma resposta atitudinal capaz de ser ofendida ou danificada pela ação de outro
quando a ofensa ou injúria tem uma natureza tal que o agente é corretamente considerado
responsável. Por exemplo:

a) o agente não estava, nas circunstâncias da ação, ignorando que causava ofensa ou injúria,
obrigado ou forçado.

b) o agente não era “ele mesmo” nas circunstâncias da ação, e

c) o agente não era psicologicamente anormal ou moralmente imaturo.

2. O ressentimento repousa na expectativa ou demanda que outros manifestem um grau razoável


de boa vontade ou consideração pelas pessoas em geral.

3. se um agente pretende evitar uma forma de solipsismo moral, então ele deve considerar a si
mesmo como um objeto apropriado às atitudes reativas tais como ressentimento, tanto de si
mesmo, quanto de outros.

Strawson parece considerar 1 e 2 como condições do que eu chamei de foco apropriado.


Ele pretende especificar aquelas características que devem estar presentes se o ressentimento deve
ser evidencialmente apropriado para seu objeto (argumentando notavelmente que a liberdade
metafísica da vontade não está entre elas). A condição 3, em contraste, não é uma condição para o
foco próprio do ressentimento; ela não diz nada quanto ao objeto da atitude merecer ressentimento
no sentido de possuir as características que o ressentimento considera que seu objeto detém. Ela
sugere, contudo, uma condição que o ressentido deve satisfazer para seu ressentimento ser
moralmente não-objetável: supondo que entendemos a inclinação para direcionar o ressentimento
a outros enquanto exclui-se a si mesmo como uma forma de hipocrisia moral. Aqui é um lugar,
então, onde vemos a diferença entre questões relativas ao foco próprio e aquelas relativas à
propriedade moral.

Embora a discussão do ressentimento de Strawson seja mais rica do que esse panorama
esquemático, ela proporciona um modelo útil para pensar o desprezo e suas condições de foco
apropriado, condições que podemos separar daquelas do ressentimento apenas nos aspectos que o
desprezo difere do ressentimento. Como o desprezo difere do ressentimento?
Primeiro, embora tanto o ressentimento quanto o desprezo possam tomar pessoas e não
atos como seu objeto, o desprezo mais tipicamente toma como seu objeto intencional pessoas e não
atos, uma característica que eu chamei de o foco na pessoa do desprezo. Alguém usualmente se
ressente por______, está indignado com______, ou expressa indignação moral por_____,
onde o que preenche a lacuna é algum conteúdo proposicional que se refere a um ato realizado por
um agente ou um estado de coisas conforme trazido à tona por um agente. Por exemplo: alguém
pode se ressentir por Ana ter deixado alguém de fora da lista de convidados ou estar indignado
pelo nepotismo que o chefe vem adotando em suas decisões de contratação. Em oposição, alguém
tipicamente mantém_____ sob desprezo, considera _______com desprezo, ou expressa desprezo
por_______, onde o que preenche as lacunas são pessoas particulares ou grupos de pessoas. Assim,
por exemplo, Camille sente desprezo por Paul e Lang expressa seu desprezo por Prokosch quando
ele sugere que sua atitude em relação à cultura não é melhor do que aquela de um nazista.

Nós também dizemos coisas como “eu me ressinto assim-e-assim pelo que ela fez”, onde
“assim-e-assim” é uma pessoa particular ou um grupo de pessoas. Essa locução, contudo, me
surpreende como tendo o foco no ato, o que é típico do ressentimento e não do desprezo. Contudo,
mesmo se for correto em tais casos considerar uma pessoa como o objeto intencional do
ressentimento, a atitude dirige-se à pessoa qua perpetrador de tal e tal ato (ou omissão) em vez
de, como eu sugiro que seja verdadeiro acerca do desprezo, da pessoa ou grupo de pessoas
considerada em si mesma como desprezível, em virtude de alguma qualidade que define um aspecto
mais duradouro de sua identidade- isto é, algo que se ajusta ao nível de generalidade de um traço
de caráter. Se você se pega praguejando em torno do desleixo de sua colega de quarto, pode ser que
você se ressinta por ela deixar o apartamento em tal estado ou, talvez, você esteja indignado com
a falta de consideração que o desleixo dela manifesta. Se você descobre a si mesma praguejando
“aquela folgada”, contudo, você provavelmente avançou para o domínio do desprezo. Do mesmo
modo, se você despreza seu colega, um professor efetivo, pois ele nunca publica, explora seus
estudantes, e geralmente abusa de sua posição, é improvável que você a veja como uma pessoa
íntegra que sempre age de maneira profissionalmente irresponsável; ao contrário, você
provavelmente interprete seu comportamento com relação às suas responsabilidades profissionais
como indicativo de alguma qualidade de caráter falha. O desprezo, para adotar a frase de Agostinho,
não terá a característica de “desprezar o pecado, mas não o pecador”. O “pecado” em tal caso é
simplesmente uma manifestação externa de algo que é parte do âmago do “pecador”, tomado como
desprezível.

Uma segunda distinção diz respeito aos fundamentos nos quais o desprezo, em oposição ao
ressentimento, é inteligivelmente sustentado. Enquanto o ressentimento como tal é uma resposta
a uma ofensa, injúria ou dano conhecido, o desprezo como tal é muito mais amplo em seu escopo,
sendo uma reação a qualquer série de transgressões contra um ideal da pessoa que o desprezador
considera querida. Por exemplo: lê-se nesses dias que nas montanhas da Carolina do Norte não é
pequeno o grau de desprezo por judeus, negros, abortistas, homossexuais, o FBI e a Nova Ordem
Mundial. Embora algo desse desprezo possa ser motivado por pensamentos desses grupos que, de
algum modo, tenha gerado ofensa, injúria ou causado dano a um ou outro camarada, tais
pensamentos não são necessários para que uma atitude seja considerada desprezo. O que parece
necessário, em oposição, é que o objeto do desprezo seja classificado como inferior em comparação
com o ideal relevante da pessoa. O desprezo dos membros do assim chamado Movimento Identidade
Cristã que moram nas montanhas da Carolina do Norte é motivado, por exemplo, pelas crenças
que “os judeus são o produto do acasalamento de Eva com o Satã” e...que negros são “pessoas sujas”.
O problema com os agentes do FBI é que eles são “vigaristas da cidade”.

O desprezo como tal não supõe que seu objeto tenha cometido algum tipo de ofensa, injúria,
erro contra o desprezador. Embora o desprezo dos membros da Identidade Cristã não seja
propriamente focado (um ponto que eu retomarei), ele exibe a mesma apresentação de seu objeto
que encontramos no caso do desprezo de Camille por Paul: ela apresenta seu objeto como menos do
que uma pessoa em virtude de ser incapaz de atingir, mesmo no grau mínimo, o ideal pessoal
relevante. Tais ideais, como sabemos, estão sujeitos a deformação e excesso. Ao considerar outros
(ou a si mesmo) sob ideais irrealistas, arriscamos a encontrar falhas onde nenhuma deveria ser
localizada. Em uma possível leitura de Le mépris, por exemplo, a expectativa de Camille de que
Paul imprudentemente bagunçou a relação entre ele próprio e seu produtor, comprometendo
assim um trabalho muito necessário para defender sua honra, é uma expectativa juvenil e talvez
uma expectativa pelo qual ela é mais culpada por medir Paul do que o próprio Paul por não cumprir
a medida. Ao avaliar os outros e a nós mesmos a partir de ideais irrealistas, nós cultivamos um
moralismo e uma injustificada intolerância, ambas atitudes que podem estimular a crueldade.

Terceiro, e relacionado com o foco do desprezo na pessoa, está o fato que o desprezo
permeia as interações de alguém com a pessoa que é seu objeto de um modo que o ressentimento
usualmente não consegue. Tal aspecto é sugerido, por exemplo, no caso da colega desleixada.
Considere, como forma de contraste, o seguinte: Meu ressentimento com o fato de Ana fazer
lobby pelas minhas costas para o posto que eu aspirava conquistar não precisa influenciar minha
avaliação de Ana em todas as área de minhas interações com ela- talvez a mesma ambição que fez
com que ela ganhasse a vaga explique por que eu também estava disposta a servir ao comitê. No
caso de considerar com desprezo minha colega como “aquela relaxada”, a descrição sob a qual eu
considera-o com desprezo torna a descrição mais saliente para as finalidades de minha interação e
avaliação dela. Esse fenomeno está bem ilustrado no Le mépris de Godard, onde podemos imaginar
o desprezo de Camille por Paul vinculado a descrição de Paul como um oportunista, um cafajeste,
um marido e homem covarde. Algumas dessas descrições colorem o modo pelo qual Camile vê seu
marido em todas suas interações com ele. Esse foco na pessoa, essa qualidade pervasiva do desprezo
é, supostamente, outro aspecto que o torna susceptível a abuso.

O filme de Godard ressalta uma quarta característica distintiva do desprezo: o modo pelo
qual o desprezo pode contaminar a percepção que uma pessoa tem da outra, indicando um ponto
além do qual perdão e reconciliação não serão mais possíveis. Se, como alguns filósofos tem instado,
o perdão requer o tipo de separação do agente em relaçao ao ato que Agostinho recomenda, então
a pessoa que manifesta desprezo arrisca perder a capacidade de perdoar. Eu tenho sugerido que o
ressentimento é limitado ou circunscrito de um modo que o desprezo tipicamente não é. O caráter
pervasivo do desprezo aprofunda a distinção dele em relação ao ressentimento por tornar certas
formas de preocupação e, com elas, a possibildade do perdão e reconciliação, mais dificeis de
manter.

Finalmente, para retornar ao caráter comparativo do perdão: embora a possibilidade de auto-


desprezo sugere que aquele que dirige o desprezo a outro não vê, assim, necessariamente a si mesmo
como superior, a natureza humana é tal que nos torna vulneráveis a considerar a nós mesmos
como superiores mesmo quando as evidências estão contra nós. Nossa vulnerabilidade ao erro e
auto-engano com relação a nossos próprios méritos em comparação com outros aponta para outro
aspecto de desprezo em virtude do qual ele é vulnerável a abusos.

Esta descrição do desprezo em geral torna vívidas as preocupações que suscitam uma preocupação
especial quanto a abraçar o desprezo como uma atitude moral, no sentido de ser uma atitude
moralmente justificável. No entanto, se nós nos preocupamos com o desprezo em sua forma
devidamente focada, a forma em que ele responde à evidência de que alguém se rebaixou conforme
medido por um ideal legitimamente assumido pela pessoa, podemos responder a essas preocupações.
Antes de recorrer à justificativa moral do desprezo, então, sugiro que examinemos o tratamento
de Strawson para o ressentimento a partir de um esboço das condições necessárias para o seu
devido enfoque:

1. É dirigido a uma pessoa como uma resposta à violação de um relacionamento interpessoal ideal
da pessoa,

2. cuja violação decorre de um traço de caráter moralmente avaliável,

3. a expressão do traço de caráter em questão é de um tipo que o agente é apropriadamente


considerado responsável, por exemplo,

a) o agente não estava, nas circunstâncias da ação, ignorando inocentemente a possibilidade de


causar ofensa ou dano, por não ter alternativa ou de modo forçado,

b) o agente não, nas circunstãncias da ação, “ele mesmo”.


c) o agente não é psicologicamente anormal ou moralmente imaturo, e

4. existe uma expectativa legítima ou demanda de que o agente se aproxime do ideal interpessoal.

Lembre-se acerca do que tratam essas condições de enfoque adequado do desprezo: são
condições da precisão da apresentação avaliativa que o desprezo faz de seu objeto. Eu sugeri que a
apresentação avaliativa em questão toma o seu alvo como alguém inferior como pessoa, em virtude
de desprezar algum ideal interpessoal relevante da pessoa. As condições do enfoque adequado
esboçam as circunstâncias sob as quais alguém verdadeiramente se rebaixou nesse aspecto.

Apesar das diferenças entre desprezo e ressentimento, eles não nos dão nenhuma razão
para supor que o desprezo em sua forma devidamente focada é uma atitude menos reativa do que
o ressentimento, por ser uma reação a expressão de outro em relação a nós ou aqueles que nos
preocupam por alguma qualidade da vontade (boa, má ou indiferente). No caso do ressentimento,
a qualidade relevante da vontade normalmente é expressa nas ações de outra pessoa; o desprezo
simplesmente leva uma gama mais ampla de características expressivas da pessoa que são indicativas
da qualidade de sua vontade. Para cunhar um slogan: enquanto o ressentimento reage ao que não
devemos fazer, o desprezo reage àquilo a que não devemos nos rebaixar.

O desprezo não é, apesar de todas as diferenças entre ele e o ressentimento, uma atitude
menos moral. Eu observei que os filósofos morais normalmente reconhecem o ressentimento como
uma atitude moral ou emoção em virtude de seu vínculo conceitual com o fato de alguém ter sido
injustiçado. Minha recusa da tese que o desprezo compartilha desse vínculo conceitual, contudo,
não impugna o status de desprezo como uma atitude moral. Primeiro, o desprezo devidamente
focado compartilha no sentido amplo em que argumentei todas as atitudes reativas como atitudes
morais. Em segundo lugar, como o ressentimento (e em contraste com as atitudes reativas de
gratidão e raiva), o desprezo também é uma atitude moral, no sentido mais restrito de possuir
conteúdo moral explícito. É assim em virtude do fato de apresentar seu objeto (uma pessoa) como
sendo inferior em valor como pessoa (entendido em um sentido normativo) porque ele ou ela fica
aquém quando medido em relação a algum ideal relevante da pessoa. Embora o ideal em questão
não possa em si explicitamente invocar conceitos morais ou propriedades (lembra dos membros
da Identidade cristã) a atitude de interesse com o valor das pessoas no sentido normativo que
propus deve qualificar qualquer compreensão suficientemente rica do “moral” como uma
preocupação moral.

Em suma, embora meu perfil do desprezo em geral sublinhe alguns de seus possíveis abusos, as
preocupações que observei são, em primeiro lugar, irrelevantes para a questão de saber se o
desprezo é adequado ao seu objeto e, em segundo lugar, insuficiente para fornecer um argumento
contra a alegação de que o desprezo propriamente enfocado às vezes é moralmente justificado.
Agora eu quero voltar para esta última alegação.

4. Condições de justificação moral do desprezo propriamente focado

Uma defesa completa da propriedade moral do desprezo devidamente focado precisaria


responder a cada um dos supostamente predominantes razões morais contra essa tese. Embora eu
não possa empreender tal defesa aqui, minha experiência sugere que os filósofos consideram um
certo núcleo fundamental de objeções como particularmente ameaçadoras. Antecipando o que
considero correto em suas objeções, quero preservar duas de suas preocupações para uma
caracterização de mais duas condições, além daquelas já apresentadas sobre o desprezo com foco
adequado, que o desprezo deve satisfazer caso pretenda ser moralmente justificável. Primeiro, há
a objeção de que o desprezo é moralmente injustificável porque nossas próprias falhas morais
tornam errado olhar os outros com ar de superioridade. Em segundo lugar está a objeção de que o
desprezo, ainda que propriamente enfocado, é incompatível com demandas morais em torno do
perdão, porque torna o último impossível. Embora os objetores estejam enganados ao pensar que
essas considerações bloqueiam todos os argumentos em defesa da propriedade moral do desprezo
devidamente focado, cada uma dessas vozes expressa uma preocupação moral válida.
Em primeiro lugar, embora as condições de enfoque adequado do desprezo sejam
independentes de considerações sobre as faltas do desprezador, isso não implica que as condições
da permissibilidade moral de considerar o outro com desprezo sejam igualmente independentes.
Da mesma forma que seria um tipo de hipocrisia moral para o ressentido considerar-se como fora
do escopo potencial da atitude, por exemplo, seria moralmente censurável para o desprezador ter
desprezo pelo outro, mas não estar preparado para censurar da mesma forma uma falha semelhante
em si mesmo. A primeira objeção, portanto, sugere que para o desprezo devidamente focado ser
moralmente justificado, deve ser verdadeiro que:

5. A atitude é dirigida por um agente que não possui uma falha similar
ou, se o fizer, compromete-se a considerar-se desprezível, em virtude disso, nas circunstâncias
relevantes.

Em segundo lugar, eu reconheço que uma atitude que de fato cegou aqueles que tinham-na para [a
percepção] das evidências que seu objeto havia se arrependido ou mudado de algum modo para
melhor - cegando-os assim para as evidências que contam legitimamente em favor do perdão -
seriam uma atitude moralmente questionável de se endossar. A justificativa moral do desprezo,
portanto, além disso, parecem exigir a condição de:
6. A atitude é sensível às evidências que contariam a favor do perdão ou alguma outra
mudança relevante de atitude.
Com essas seis condições em vigor, agora quero argumentar que o desprezo que elas
individuam é às vezes uma resposta moralmente justificável às pessoas que manifestam uma
personalidade má. A discussão prossegue respondendo as demais objeções em contrário. Na ausência
de futuras objeções irrespondíveis, sugiro, os filósofos morais devem reconhecer o desprezo como
atitude moral em ambos os sentidos que defendo.

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