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VIOLÊNCIA E DESAMPARO EM PATOLOGIAS GRAVES

Encontro Latinoamericano sobre Winnicott


Montevidéu, 17 de outubro
Tempo de apresentação 10 min.

J. Outeiral, Brasil

“O que viola a intimidade do outro o corrompe”


Maomé, citado por M. Khan

“O protótipo mítico do paciente de nosso tempo não é mais Édipo e sim Hamlet”
André Green

Considero necessário abordar, especialmente, no aprofundamento da questão proposta, dois


eixos de conceitos teórico-clínicos. O primeiro eixo é a retomada de três contribuições
freudianas: (1) o conceito de “desamparo”, (2) o conceito de “trauma” e o conceito de
“série complementar” ou “equação etiológica”. O segundo eixo me remete a importância
dos elementos transferenciais e contratransferenciais.

No tempo em que disponho neste Encontro, e visando estimular a discussão, vou


inicialmente retomar muito brevemente os conceitos referidos, para, logo a seguir,
apresentar duas vinhetas de material clínico; sigo a filiação que enfatiza na experiência e
que coloca o pensamento como derivado desta. Assim, evidentemente, muitos aspectos da
consigna proposta não serão considerados e vou buscar apenas determinados vértices,
aqueles vinculados à clinica. Na verdade, os conceitos são sobejamente conhecidos dos
participantes e/ou estão nos livros: o que interessa, e pode ser novo e criativo e nos reunir, é
a clínica. No livro Desamparo e trauma: transferência e contratransferência, que
escrevi com Luciana Godoy, desenvolvo estas idéias em profundidade.

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1. Desamparo

A noção de desamparo nunca chegou a ser formulada por S. Freud propriamente como um
conceito. No entanto, ela perpassa toda a sua obra, desde o Projeto para uma psicologia
científica ( 1895 ) até Inibição, sintoma e angústia ( 1926 ), assumindo diferentes
dimensões e ocupando um lugar central na formulação de alguns conceitos fundamentais na
teoria psicanalítica, como por exemplo, o conceito de angústia.

No texto do Projeto..., o desamparo é apresentado designando “um estado objetivo e


impotência psicomotora do recém-nascido em face de suas necessidades”. S. Freud,
entretanto, no desenvolvimento do pensamento psicanalítico, ultrapassa o desamparo
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objetivo do bebê ao nascer, indo além dos laços que dos estreitos laços que o desamparo
mantém com os conceitos de angústia e trauma, e designa ao desamparo uma condição da
existência e de todo o psiquismo humano. O desamparo passa então, a ser entendido
também compreendendo o plano simbólico do desamparo do homem frente a natureza e o
desencadeamento, em conseqüência, dos processos de simbolização.( Pereira, 1999;
Outeiral& Godoy, 2003 ).

No percurso iniciado por S. Freud, vários outros psicanalistas abordaram a questão de


desamparo. Acredito, entretanto, que D. Winnicott ( e os autores do middle group ), ao
estudar o desenvolvimento emocional primitivo e, particularmente, a importância do
ambiente facilitador, apontou-nos questões fundamentais: quando ele escreve que “não
existe tal coisa chamada um bebê ( there is not a thing as a baby )”, ele está se referindo ao
desamparo do infans humano ao nascer e à necessidade de uma mãe suficientemente boa
( ou a um ambiente facilitador ou, ainda, uma mãe devotada comum ).
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2.Trauma

Laplanche e Pontalis ( 1987 ), em seu Dicionário, nos oferecem uma conceituação geral
geral de trauma ( “traumatismo psíquico” ) na teoria freudiana. Vários autores,
aprofundando a questão, referem a evolução feita por S. Freud no conceito de trauma, de
certa maneira acompanhando a progressão de seu pensamento ( Baranger, 1988; Telleria,
1988; Pereda 1996; Knoblock, 1998; Outeiral& Godoy, 2003 ). Considero fundamentais,
também, a contribuição de Masud Khan sobre o “trauma acumulativo”, que ele postula a
partir da concepção de S. Freud da mãe como “escudo protetor” ( Além do princípio do
prazer, 1920 ), e o “complexo de mãe morta” desenvolvido por André Green.
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3. A série complementar
A série complementar é um conceito fundamental, porque nos remete aos diferentes
aspectos – constitucionais, vivências infantis e situação atual – que interagem na
estruturação do psiquismo e da personalidade como um todo.
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4. Transferência e contratransferência
O espaço potencial, resultante da superposição da área de brincar do paciente e do analista,
terceiro espaço que resulta da relação transferencial-contratransferencial, é fundamental no
processo analítico com estes pacientes. Eles, habitualmente, não vem com queixas ou
manifestações sintomatológicas que possam nos remeter, diretamente, às experiências de
desamparo e de trauma nas primeiras etapas de vida; estas vivências surgem, isto sim, na
mutualidade que se estabelece entre paciente e analista.
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4. Vinhetas clínicas

O velho judeu
Motivo da consulta
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Jacó tem 73 anos. É encaminhado para “uma consulta”, através de seus filhos, por se
apresentar “irritado, deprimido e estar bebendo muito”. Seus familiares dizem que ele está
novamente enfrentando problemas profissionais, pois sua firma de importação e exportação
entrou em concordata e está com muitos problemas fiscais. Não acreditam, entretanto, que
este seja o problema que tenha desencadeado suas dificuldades, pois ele teve várias outras
firmas que também tiveram problemas. Segundo eles a vida do pai foi sempre de fazer
fortuna e perder tudo; “um dia era muito rico e no outro dia estava muito pobre”. Os
familiares dizem que ele sempre foi de fazer negócios “escusos”, como, por exemplo, trazer
contrabando nos containers com os objetos que importava ou como em uma ocasião em
que enganou um sócio, foi por ele processado e condenado. É conhecido da Policia Federal
por contrabando. Costumava sempre fraudar o fisco e constantemente tinha problemas por
isto. Os filhos mostram-se envergonhados ao falar destes aspectos “ delinqüentes” do pai,
segundo eles conhecidos por toda a comunidade israeli. Contam que sofrem muito por isto.
Chama a atenção que seus familiares, paradoxalmente, o descrevem como um marido e pai
afetuoso e companheiro e um amigo “fiel”. Os filhos tem uma vida razoavelmente
organizada. Jacó é viúvo há cerca de vinte anos e sempre tem “algumas namoradas goy,
pois as mulheres judias o conhecem bem e não se arriscariam com ele...ele tiraria o dinheiro
delas. Iria fazer alguma falcatrua”.

História clínica
Jacó nasceu na Polonia em 1930, em uma pequena cidade do interior. Sua família era de
pequenos comerciantes. Ele conta que quando estava com dez anos a Polônia foi invadida
pelos nazistas. Conta que “de um dia para o outro tudo se modificou”. Era um período de
grande confusão, do qual tem dificuldades em lembrar. Recorda, entretanto, que de um dia
para o outro a família foi mandada para lugares diferentes. O pai e os irmãos mais velhos
para um lugar e ele, o caçula, e a mãe para outro. Com dificuldade em recordar, diz que ele
e a mãe conseguiram fugir do trem que os levava para a Alemanha e o pai e os irmãos nãso
tiveram a mesma sorte e foram levados para um campo de “trabalhos forçados”. Passaram
a viver de um lugar para o outro, no interior do país. Os camponeses os ajudavam durante
algum tempo e depois pediam que eles fossem embora, pois os nazistas podiam ser
alertados e todos serem presos. Viveram sempre fugindo até o final da guerra, quando
foram para Paris e ficaram em um campo de refugiados muito precário. Nunca mais soube
de seu pai e de seus irmãos. Não tinham documentos e receberam “passaportes de
apátridas”. Vieram, por intervenção de uma agência judaica, para o Brasil, para trabalhar
em uma pequena colônia agrícola no interior do Rio Grande do Sul. A situação começou a
melhorar quando a mãe casou com um viúvo que tinha “algum dinheiro e muitos filhos”.
Começou a estudar e se formou em contabilidade. O viúvo morreu e logo após sua mãe
também. Ele tinha vinte e poucos anos, formara-se em contabilidade e se apaixonou por
uma das filhas do padrasto. Casaram-se e ele diz que foram muito felizes. Tiveram quatro
filhos. Relata com pesar a morte da mulher no início dos anos oitenta, com carcinoma de
seio. O único momento, em todo o seu relato, que demonstrou profunda emoção foi ao falar
da morte da esposa. Fala dos acontecimentos como tendo sido vividos por outra pessoa,
sem afeto, ironizando a própria mala suerte, e com muita dificuldade em lembrar os fatos,
especialmente os do passado remoto, as lembranças da guerra.

A consulta
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Jacó é um homem pouco asseado, despenteado e barbudo, vestido com desleixo. Fala com
arrogância e entra fumando no consultório. Parece que bebeu há pouco pelo cheiro que
exala.A descrição que faço de Jacó revela a impressão que ele me causou. Uma associação
me veio a mente logo de início: que ele iria deixar um “cheiro ruim” na sala e que os outros
pacientes perceberiam. Pensei se não deveria tê-lo encaminhado para outro colega. Logo
uma curiosidade me motiva: um homem com a história de vida dele deve ser interessante.
O rechaço inicial deu origem a uma curiosidade.

Jacó diz que não sabe o que está fazendo ali. Veio porque os filhos o trouxeram. Sempre
negou-se a ir ao Psiquiatra. “Psiquiatra é para loucos e eu não sou louco”, argumenta. Fica
em silêncio, fumando. Está visivelmente irritado. Não devo pensar que ele é um michigna.
A palavra em ídiche me faz sorrir. Ele diz que não vai falar do passado, que não existe para
ele... só existe o presente. Está mais irritado e desafiador. Digo que não estou preocupado
com o diagnóstico, se ele é ou não michigna, e que eu não havia pensado em pedir que ele
falasse do passado. Eu não havia solicitado isto. Ele é que havia falado na palavra
“passado”. Ele diz que psiquiatras vivem do passado e assim ganham dinheiro, muito
dinheiro. Percebo claramente a projeção que ele faz e o sentimento de rechaço é substituído
pela curiosidade e interesse em ajudá-lo. Não interpreto, mas resolvo perguntar o que
estava acontecendo agora. Ele diz que viveu mais do que era merecido, pois seus familiares
morreram sempre muito cedo. Não quer mais viver. Diz que não sente mais vitalidade para
estar sempre fazendo negócios e que se não fizer mais negócios, morre e que não está mais
conseguindo fazer negócios. Todos o conhecem e o evitam, está velho e não tem para onde
fugir. Digo que tem sido sempre um fugitivo, fugindo de um passado que é sempre
presente.
Ele me surpreende ao começar a chorar convulsivamente. Concorda comigo que busca
sempre não ter tempo para lembrar do que lhe aconteceu na infância. Tem um sonho
recorrente desde aquela época. Não sabe se realmente vivenciou o que sonha seguidamente.
Um trem para antes da cidade, no meio de um campo e todos descem, inclusive ele e a
mãe. Existem mortos ao redor e sobre os trilhos. Muitas pessoas, inclusive crianças. È
como um quadro ou um filme que o acompanha desde criança. Não lhe sai da cabeça. Ao
final da consulta ele diz que sou um schmoke in turras... sorri, revelando uma intimidade.

O adolescente “possuído”
Lucio foi adotado aos dois anos. Logo após o nascimento foi enviado para uma instituição
onde viveu até a adoção. Provavelmente foram anos muito difíceis. Aos dois anos falava
com muita facilidade, mas era “muito magro e com várias doenças”. Após a adoção seu
desenvolvimento foi normalizado. Quando estava com quatro anos os pais adotivos se
separaram. Ele aparentemente não mostrou nenhum sintoma. A mãe o trouxe para uma
avaliação, aos quatorze anos, porque tem estado com as “notas baixas”, ele que sempre fora
um ótimo aluno e “adorado” pelas professoras. Num sábado pela manhã, após eu tê-lo visto
uma única vez, a mãe me telefona e pede que eu os veja com urgência, pois ele encontrou
na rua uma cigana que quis ler a sorte na mão, ele recusou e “ela disse uma maldição e ele
enlouqueceu”. Vou ao consultório e encontro Lúcio muito ansioso e paranóide, com
prováveis alucinações. O pai, chamado pela mãe veio junto. Estamos todos no consultório
quando Lucio começa a falar com “a voz de preto velho”, torce as mãos e os braços e a
entidade diz que ele vai matar o médico. Ele se joga em minha direção e eu tenho de contê-
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lo fisicamente. Caímos no chão e ele machuca o lábio. Enquanto eu o contenho no chão, a


mãe grita e o pai, significativamente foge da sala e desaparece. Aos poucos ele vai se
tranqüilizando, ainda fala algumas vezes como “um preto velho”, me faz ameaças e por fim
pede que eu o solte e vai para a cadeira. A mãe continua chorando e o pai não voltou.
Percebo que Lucio me contou através do episódio psicótico, elementos importantes de sua
vida. Uma mãe frágil, incapaz de realizar uma continência, e um pai ausente, que se
ausentava nos momentos de dificuldade. Ao me revelar o script de sua vida, também
testava quem seria o médico, se eu seria capaz de “segurar” a desintegração ou não, como
não foram continentes nem seus pais biológicos, nem a instituição que o acolheu e
tampouco seus pais adotivos. Nas entrevistas seguintes ele se mostrava assintomático e
podendo conversar sobre o corrido.

5. Comentários

Tanto Jacó como Lúcio experimentaram profundamente a violência, o desamparo e o


trauma. Ambos apresentavam uma clínica fundamentalmente baseada na cisão.
Conseguiram, entretanto, estruturar um funcionamento que os permitiu não um “viver
criativo”, mas, simplesmente, seguir vivos. Jacó como esposo e pai era razoavelmente
presente e afetivo, nos negócios, entretanto, evidenciava uma forte tendência anti-social.
Lúcio, por seu lado, sobrevivia por uma hipertrofia da mente, que era capaz de exercer os
cuidados que o ambiente lhe recusara, sendo “inteligente e sedutor”. As vivências de
violência, experiências traumáticas vividas na infância e os sentimentos de desamparo ,
resultaram em estruturas psíquicas baseadas, especialmente, na cisão. Somente no
interjogo, sutil e expressivo ao mesmo tempo, da transferência e da contratransferência,
neste terceiro espaço criado, espaço potencial, o sofrimento se revelava. Estas patologias,
de origem tão precoce, estes estados primitivos de mente ocultados por falsos selves,
trazem em si a esperança de encontrar um espaço e um tempo que permita o
descongelamento da situação de fracasso ambiental. A velhice e o início da adolescência
foram momentos do ciclo vital, onde uma nova possibilidade de elaboração se ofereceu,
tanto a Jacó como para Lúcio. Minha intenção é apenas esta: trazer duas vinhetas para
discussão.
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Outeiral, J. Godoy, L. Desamparo e trauma: transferência e contratransferência.
Revinter. Rio de Janeiro. 2002

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