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KARATE-DÔ

CRONOLOGIA

KILDER GIOVANNI DE ARAÚJO


A CRONOLOGIA EVOLUTIVA DO KARATE-DÔ 2

Aprofundar os estudos do Karate-Dô visando maior


entendimento geral, é uma tarefa prazerosa e pode abrir novos
horizontes para o desenvolvimento da modalidade. “Todo”
conhecimento é sagrado e pode, em algum momento, fornecer a
luz para solucionarmos questões do universo que procuramos.
Dedico meus respeitos e agradecimentos ao Sensei Eduardo
Spengler, representante da Meibukan Karate-Dô Goju Ryu no
Brasil, que enfatiza a importância da busca pelos fatos históricos
do Karate-Dô objetivando compreender a evolução das técnicas
e etiquetas em seu contexto de época, cultural e geográfico,
assim como a evolução dos diversos conceitos que surgiram no
Karate-Dô, que através de transmissões orais no final de seus
treinos e também textos escritos, contribuiu para a idealização e
formatação do roteiro do texto a seguir.
A seguir, a evolução das artes marciais no Japão, no reino
RyuKyu (Okinawa) e, dentro do contexto, do Karate-Dô.
Nota: Quando uma referência de data for A.C. (antes de
Cristo) iremos grafá-las após a referência numérica. Quando for
D.C. (depois de Cristo) não colocaremos a fragia “D.C.”.

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A ORIGEM DAS ARTES MARCIAIS NO JAPÃO E EM


RYUKYU

As artes marciais japonesas se desenvolveram no Japão


continental (área que compreende as grandes ilhas) e em
Okinawa (arquipélago localizado ao sul do Japão).
As formas de lutas desenvolvidas no Japão continental foram
criadas para serem aplicadas nas guerras, que marcaram a região
por séculos.
As formas de lutas desenvolvidas em Okinawa foram criadas para
a defesa pessoal, em situações cotidianas. Okinawa apenas sofreu
ocupações e não desenvolveu exércitos organizados para guerras,
sendo um reino baseado na diplomacia e comércios com os seus
vizinhos.
A expressão “artes marciais” vem do nome do deus da
guerra greco-romano Marte ou Ares. No Japão, o seu sinônimo
recebe o nome de BUJUTSU, que significa “ciência da guerra” ou
“ofício marcial”.

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O DESENVOLVIMENTO DAS ARTES MARCIAIS NO 4

JAPÃO CONTINENTAL

Adotaremos para a cronologia dos marcos históricos o


calendário ocidental para facilitar a compreensão e contextualizar
os fatos em função do período. No Japão, a contagem é dividida
em Eras ou Gengô, que são ditadas a partir da ascensão de um
novo imperador, quando se inicia a contagem dos anos até a
próxima troca de imperador. Este sistema é vigente no Japão
ainda nos dias de hoje paralelamente ao calendário gregoriano.
Antes dos anos 660 A.C. os povos do Japão viviam de forma
tribal em aldeias espalhadas por todas as ilhas do arquipélago,
tendo como bases a agricultura e a pesca. Tinham sua crença
baseada na natureza: rios, montanhas, vulcões, sol, lua, animais,
fenômenos meteorológicos, etc. Essa religião se chamava
Xintoísmo, tendo suas origens aproximadas em 982 antes de
Cristo. O Xintoísmo ainda é hoje a religião “oficial” do Japão e é
representado pela figura do imperador.
Entre os anos 660 e 585 A.C. Jimmu denominou-se o
primeiro imperador alegando ser descendente direto da deusa do
sol, Amaterasu, e também descendente do deus do trovão,
Susanô, dando início ao processo de domínio dos territórios
através da guerra. Iniciava aqui a formação do Japão.
O modo de vida tribal confrontou com a nova cultura imposta pelo
imperador, que trouxe os modelos chineses culturais, de cidades
e de política imperialista.
Vindo através da Coreia, em 552 D.C. 8 escolas doutrinárias
budistas foram introduzidas no território Japonês. Neste período

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chamado de Asuka, o Budismo foi adotado como parte da política 5
e o imperador mudou o nome do país de Wa para Nihon, o atual
nome do Japão. A escrita chinesa praticada pelos monges budistas
foi adotada pelo imperador no meio da nobreza.
A cidade de Kyoto estabeleceu-se e virou a capital do
império em 794 D.C. Iniciando uma cultura aperfeiçoada da
aristocracia, a formação de classes foi imposta, onde não era
permitida a ascensão hierárquica. No topo ficava a família
imperial, seguida pelos nobres e pelos militares. Os mercadores
formavam a classe intermediária e os camponeses a classe
inferior.
Neste período, as técnicas de batalha eram importadas da China
e as armas utilizadas pelos militares eram a espada chinesa, a
lança e o arco e flecha.
Entre 1185 e 1333 os militares que detinham o poder da
violência a serviço do imperador resolveram governar e tomaram
o poder através de golpe militar.
Houve o surgimento da classe dos Samurais ou Bushis que
instalaram o modelo de governo conhecido como Bakufu, dando
início ao Shogunato Kamakura. Como comandante militar e
político do Japão, o Shogun dividiu os territórios em “feudos”, que
eram governados por Daimyos. Os militares, conhecidos como
Bushis ou Samurais, serviam ao seu mestre Daimyo e dominavam
a maioria do povo, os camponeses, como mão de obra produtora
de riquezas.
Em 1274 Kublai Khan coordena a primeira invasão mongol
no território do Japão enviando frotas de embarcações contendo
aproximadamente 15.000 mongóis e chineses, além de 8.000
soldados coreanos. Diferente do modo de combate dos
japoneses, os mongóis atacavam em blocos e dificultavam a

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resistência dos Samurais que não estavam acostumados com suas 6
armas e táticas superiores. Rapidamente os mongóis fizeram
grandes progressos ocupando as ilhas de Tsushima e Iki. Mas após
dificuldades na batalha da bahía de Hakata, a maioria do exército
foi forçada a recuar para seus navios e uma forte tempestade
selou o destino da invasão destruindo grande parte da frota
mongol.
Este evento foi importante para a evolução de táticas
militares do Japão que precisou se preparar para a segunda
invasão mongol que estava certa por vir. Desenvolveram novas
táticas de guerra criando linhas defensivas que protegiam o litoral.
Em 1281 uma nova frota naval mongol teve dificuldades de
invadir o litoral japonês apresentando enormes baixas e mais uma
vez foi obrigada a recuar. A linha de defesa territorial japonesa
contra-atacou pesadamente obtendo êxito. As embarcações
mongóis permaneceram perto da costa japonesa sem poder
desembarcar. Então, pela segunda vez, o famoso Kamikaze (vento
divino), um tufão maciço, destruiu muito a frota mongol durante
dois dias de vento extremo.

A Batalha de Takashima na segunda invasão mongol do Japão, em 1281

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Após o acontecido, os mongóis desistiram de vez em tentar 7
tomar o controle do arquipélago. O imperador japonês, agora
fortalecido por ser representante do poder divino na terra que
veio a manifestar-se em forma de vento, continuou se mantendo
como representante do poder divino, mas sem poder interferir
no comando político do Shogun e da classe Samurai.
Nesta época, as táticas militares e as formas de guerrear
começaram a ser desenvolvidas no próprio Japão e surgiu a
espada curva conhecida como Tachi, desenvolvida para ser
carregada em montaria.
Os Samurais, que eram responsáveis pela cobrança da produção
dos camponeses conforme sua necessidade, reprimiam suas
revoltas contra a opressão dos Daimyos. Estes, nunca foram
heróis e eram extremamente cruéis com os camponeses.
E foi em 1333 que um segundo Shogunato sobe ao poder no
período chamado Muromachi Bakufu. Época conturbada com
intermináveis guerras civis entre os senhores feudais, Daimyos,
que disputavam o poder. O Japão se dividiu em Corte do Norte e
Corte do Sul. Período que marcou o início do comércio com a
dinastia Ming (China), desenvolvendo as atividades econômicas
feitas com moedas importadas da China.
Neste período surgiu a Katana, transformação da Tachi, e ocorreu
o primeiro contato com os portugueses que chegaram à deriva no
sul do Japão, trazendo as armas de fogo e o cristianismo. Foi um
período muito intenso militarmente e que levou ao
desenvolvimento dos primeiros estilos “documentados” de
Bujutsu Japonês, conhecidos como RYU. Para serem consideradas
estilos (RYU), as tradições deveriam ser documentadas e
sistematizadas. Eram ensinadas de geração em geração e seus
documentos escritos em Makimonos eram transmitidos a

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gerações sucessoras encarregadas de dar sequência à tradição. 8
Cada estilo Japonês, Ryu, era na verdade uma coletânea de
técnicas com diversas armas, por se tratarem de formas de
combate em desenvolvimento durante o período de guerra.
Marcado como o período da guerra civil japonesa, este foi na
verdade o período de guerra entre os militares pelo poder.
E foi no intervalo entre 1603 a 1868 que a família Tokugawa
iniciou o período conhecido como Edo Bakufu transferindo a
capital do Japão para a cidade Edo, atual Tokyo. A ditadura militar
elevou as diferenças entre as classes sociais e as transformou em
verdadeiras castas. As guerras entre os Daimyos acabaram, mas o
número de assassinatos e repressão de revoltas camponesas se
elevou a níveis jamais experimentados no Japão. Por isso, a
afirmativa de que este foi o período de paz do Japão não
representa uma verdade.
Para demonstrar o poder são construídos os grandes castelos,
decorados com extremo luxo e requinte. Por outro lado, nessa
mesma época, surgem a cerimônia do chá e o teatro Noh, que
pregam a elegância da simplicidade.
Foi neste período que as artes marciais japonesas, o Bujutsu ou
Kobujutsu, começaram a se desenvolver. Agora sem as guerras,
os samurais se concentraram em treinar as antigas artes das
armas e os estilos, RYU, se multiplicaram.
Alguns Samurais se tornaram pobres e, segundo a distribuição
das castas, os Samurais não podiam cultivar a terra pois era o
trabalho indigno do camponês. O Shogunato Tokugawa, em um
esforço para manter a classe samurai, implantou a distribuição do
saco de arroz aos Samurais como forma de pagamento e de
arrecadação de impostos.

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A maior parte das técnicas de Bujutsu se voltou a duelos 9
realizados dentro das residências e castelos. Aos poucos, o
Bujutsu começou a tratar menos de “batalhas de guerra” e mais
sobre técnicas de duelo desarmado e contra armas. A maior parte
das técnicas usadas nos duelos eram as técnicas de Jujutsu, como
as chaves nas articulações, apresamentos com quedas, técnicas
muto dori (desarmado), estrangulamentos ou com o auxílio das
espadas ainda nas suas bainhas. O Jujutsu daquela época era um
conjunto de técnicas dos Samurais contra as armas dos Samurais.
Juntamente com o surgimento do Jujutsu, apareceu o Sumo,
inicialmente como um ritual Xintoista usado pelos camponeses
para pedir boas colheitas e, posteriormente, adotado pelos
Samurais para seu entretenimento. A partir daí os camponeses
não podiam mais ser lutadores de Sumo, apenas os samurais. Suas
técnicas eram muito parecidas com o Jujutsu, mas tiveram
aplicações diferentes por existirem regras. O Sumo daquela época
era bem diferente da sua versão moderna.
Ainda com sua economia baseada em arroz e na ditadura
militar Samurai, o Japão se viu em choque diante do capitalismo
crescente pelo mundo. O Japão havia passado por um longo
período de restrições e isolamento e devido a falhas intrínsecas
de sua administração, os Tokugawa se colapsaram com o
crescente movimento antibakufu.
Houve uma abertura forçada dos portos japoneses para a
invasão do capitalismo ocidental provocada pelos americanos que
realizaram ataques com sua armada à baía de Tokyo. O Shogunato
se viu enfraquecido e muitos imperialistas viram a oportunidade
de colocar o imperador do Japão de volta ao poder. Como o
imperador era uma criança, seria uma marionete que facilitaria a
transformação do Japão em um mercado consumidor da
civilização ocidental, que apoiou esta mudança.

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Um novo período, conhecido como Meiji Ishin, se iniciou em 10
1868
O Bakufu foi abolido, selou-se o fim da classe Samurai com a
proibição do uso e ensino do Bujutsu, assim como o porte da
Katana.
Com o fim da classe Samurai, inicia-se a história das artes
marciais japonesas como as conhecemos hoje, o Budô.
Os antigos Samurais que não viraram funcionários do
governo, soldados ou policiais, se viram sem habilidades para
sobreviverem sob um regime capitalista. A opção encontrada foi
a abertura de Dojôs para o ensino a quem pudesse pagar. Como o
Bujutsu se tornou proibido por se tratar de técnicas com o uso de
armas, o que foi ensinado acabou sendo o Jujutsu.
O mau uso das técnicas de Jujutsu para brigas de rua trouxe
má fama à forma praticada e aversão da sociedade com os Dojôs
de Jujutsu, com a redução nos quadros de alunos. Como solução
para manter suas escolas vivas, os antigos instrutores de Bujutsu
mudaram o foco de seu ensino incluindo conceitos da filosofia Zen
Budista a direcionarem seus alunos à prática das lutas como forma
de desenvolvimento espiritual.
Em 1895 o governador da província de Kyoto, que era figura
importante no âmbito das artes marciais japonesas, defende a
ideia de fundar a Dai Nippon Butoku-kai, que foi feito com a
autorização do Imperador Meiji. A institucionalização das escolas
Gendai Budô (escolas de artes marciais modernas), com o
respaldo do Ministério da Educação Nipônico, tinha por escopo a
preservação histórica e valorizar as virtudes tradicionais
guerreiras da sociedade japonesa estabelecendo padrões a serem
seguidos por todas as formas de Gendai Budô que, por influência
do imperador, eram militarizados, com o uso de uniformes,

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graduações a definir hierarquia, a aversão à influência não 11
japonesa nas artes marciais como da China e do antigo Ryu Kyu.
Consequentemente, Kenjutsu se tornou Kendô, mantendo a
figura mítica do Samurai como um esporte nacional. O Bujutsu se
tornou Budô. O sumo se transformou em esporte e show, com
algum resgate religioso. Logo em seguida, as artes marciais antigas
vieram a ser conhecidas como Kobujutsu, Kobudô ou Koryu.
As artes modernas passaram a enquadrar-se na categoria
denominada Gendai Budô ou Budô, como o Sumô, Kendô, Iaidô,
Judô, Aikidô , Kyudô, Karate-Dô, Jukendô, Tankendô, Atarashi
Naginata, Jodô e Shorinji Kenpo.
A formatação desenvolvida pela Dai Nippon Butoku-Kai teve como
principal modelo o Judô, um símbolo da identidade nacional do
Japão. Jigoro Kano, fundador do Judô, que praticava Jujutsu,
sabendo da sua má fama e da virada de mentalidade para o Budô,
retirou do Jujutsu tudo o que pudesse ferir o oponente e criou o
Judô. Seu desejo era que o Judô se tornasse um esporte olímpico
e que fosse internacional. Incorporou ao Judô o sistema de faixas,
o uso do uniforme de treino e praticamente tudo o que define
uma arte marcial japonesa segundo os moldes conhecidos hoje
em dia. Por isso ele é basicamente o “fundador das artes marciais
japonesas”, segundo o conceito ocidental. O Judô se tornou o
Gendai Budô mais praticado no mundo e um exemplo de Budô.
A Dai Nippon Butoku-Kai queria, portanto, que todas as artes do
Budô se inspirassem na estrutura organizacional a partir do Judô.
Jigoro Kano, além de desenvolver o Judô, “adotou” uma
forma de luta desenvolvida na pequena ilha de Okinawa, o Todê,
se tornando amigo de mestres okinawanos. Em 1922 Gishin
Funakoshi, mestre de Todê em Okinawa, deslocou-se a Kyoto para
representar a arte marcial em uma exibição nacional de educação

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física. Jigoro Kano o convidou a fazer uma apresentação em seu 12
Dojô em Tókyo. Gichin Funakoshi, que planejava regressar a
Okinawa após a apresentação, ao pedido de Jigoro Kano para
promover a arte, permaneceu na capital onde fundou seu Dojô.
Jigoro Kano guiou mestres de Okinawa a introduzirem o Todê na
Dai Nippon Butoku-Kai, acreditando na aceitação e crescimento
da forma de luta no Japão continental.
O movimento deu início com a aprovação pela Butoku-Kai em
1935 para Chojun Miyagi, em 1938 para Kenwa Mabuni e Hirinori
Ohtuka e em 1939 para Gichin Funakoshi.
A Dai Nippon Butoku-kai exigia mudanças padrões para que as
modalidades fossem aceitas e, para o Todê não foi diferente.
Em 1935 Gichin Funakoshi promoveu mudanças na
“japonização” do Todê, que significava “mãos chinesas” em seus
caracteres. Neste ano, Funakoshi alterou o nome da arte trocando
seus caracteres e levando o significado literal a “mãos vazias”,
com o sentido de “esvaziar a mente de interferências externas”
através do treinamento árduo do Budô. A introdução do conceito
Dô somou a busca constante pelo desenvolvimento da
personalidade. Assim, de Todê, a forma de luta okinawana passou
a chamar-se Karate-Dô.
Além da modificação do nome da arte, Funakoshi alterou os
nomes dos Katas, que originalmente eram transmitidos oralmente
e vinham de uma mistura de dialetos chineses e okinawanos,
adaptando os novos nomes à língua japonesa. Introduziu as
graduações, o uso das faixas, uniforme e, de um certo modo,
seguindo a evolução natural da “arte marcial” que passara a ser
lecionada em escolas como educação física e forma esportiva.
Vários aspectos técnicos existentes no Karate-Dô de Okinawa
foram modificados, a militarização na forma de ensino culmina-se

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na adoção da expressão dos marinheiros japoneses, “Osu/Oss”, 13
que tem como significado filosófico: Perseverar sob pressão. Este
movimento converteu o Karate-Dô ao que veio a tornar-se
conhecido como: Karate moderno, sendo considerado o seu
patrono, Gichin Funakoshi. Este Karate moderno influenciou a
maioria das linhagens que se desenvolveram no Japão continental
e por isso também é conhecido como Karate japonês.

Gichin Funakoshi ministrando classe em meados de 1936 com seus alunos usando KeikoGi

A entrada nas universidades leva ao Karate-Dô uma nova


conotação científica e didática onde a velha transmissão “oral” se
converte a livros técnicos e científicos e os primeiros vídeos vem
a auxiliar na transmissão maciça para grupos repletos de alunos e
em outros países.
Em 1957 Nakayama Masatoshi promove o primeiro
campeonato de Karate-Dô, dando início ao desenvolvimento,

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dentro da disciplina esportiva, das práticas competitivas e 14
formação das federações esportivas.
Em 1979 com a finalidade de preservar as artes marciais
antigas, o Bujutsu ou Kobujutsu ou Koryu, foi criada a organização
Nihon Kobudo Kyokai. Anteriormente, com a mesma finalidade, já
existia a Nihon Kobudo Shikokai, fundada em 1935. Apesar do
Karate-Dô ter sido aprovado como Gendai Budô (Arte marcial
moderna) pela Dai Nippon Butoku-kai, cinco escolas (RYU)
desenvolvidas em Okinawa, na época do Todê, também foram
reconhecidas oficialmente como Koryu (Estilo antigo). São elas:
Itosu Ryu Karate, Kigai Ryu Karate Okinawa Kobujutsu, Okinawa
Goju Ryu Bujutsu e Ryukyu Oke Hiden Motubu Undun-Ti.
Atualmente, existem poucas escolas de Kobujutsu no Japão, mas
adotaram o ideal de Budô em sua grade curricular.
Em 2021 o Karate-Dô faz sua estreia nos “Jogos Olímpicos de
verão de 2020”, em Tokyo. Os jogos olímpicos programados para
acontecerem em 2020 foram adiados para serem realizados em
2021 devido ao surto de pandemia do vírus SARS-CoV-2,
responsável pela Covid-19. O evento aconteceu sem a presença
de público e contou com sua cobertura, além dos meios já
conhecidos, pelas redes sociais e plataformas digitais existentes.
A pandemia provocou a corrida pelas comunicações realizadas
através de meios digitais, o que possibilitou evoluções na maneira
em que o Karate-Dô é transmitido. No passado, acontecia a
transmissão oral; a partir dos anos 20 do século XX os livros
marcaram um grande passo como conteúdo didático para a
disseminação do Karate-Dô no mundo, também iniciaram as
gravações dos primeiros vídeos didáticos; e em 2021, a internet e
suas plataformas permitiram a aproximação de Karatedokas de
todo o mundo através das vídeo aulas em tempo real, Gashukus
virtuais e até competições virtuais

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O DESENVOLVIMENTO DAS ARTES MARCIAIS EM 15

RYUKYU / OKINAWA

O que conhecemos hoje como Okinawa se trata de um


arquipélago e no passado não fazia parte do Japão. Okinawa era
um reino à parte do Japão chamado Ryukyu. Sua língua era o
uchinaguchi. Possuíam outra cultura e outra religião. O povo de
Ryukyu era chamado Uchinanchu. Eles viviam da agricultura,
pesca e seu porto acolhia embarcações que tinham como rota
diversos reinos da China antiga, Taiwan e sul do Japão feudal.
O reino Ryukyu era formado por um povo pacífico. Não
tinham grandes exércitos, viviam de trocas portuárias de
mercadorias e não eram ricos, baseando-se politicamente na
diplomacia. As armas criadas na China quase não chegavam em
Ryukyu, como aconteceu no Japão no início da formação do
império, pois o povo não tinha interesse em comprá-las.

Os primeiros relatos conhecidos sobre o arquipélago são


datados de 210, quando os chineses desembarcaram nas ilhas
acreditando que lá haviam “imortais felizes”, sem sucesso. No
século V novas expedições chinesas ocorreram.
Em 607 os chineses trouxeram um exemplar (humano) para
a China. No mesmo século, a China exige submissão e em um
artigo japonês da época, estava escrito que o povo de Yaku, como
as ilhas eram conhecidas por eles, seguia o imperador chinês.

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O arquipélago era dividido em norte (Hokuzan), centro 16
(Chuzan) e sul (Nanzan), havendo três príncipes que disputavam o
território.
Em 1185 o clã Satsuma, do sul do Japão, incorpora as ilhas
como parte do seu distrito, mas não as explora.
O príncipe de Chuzan obteve forte ligação com a China e, com a
intenção de intercâmbio cultural, fundou a aldeia Kume que
recebeu 36 famílias chinesas originárias da região de Fujian. Foi
por meio desta iniciativa que a cultura chinesa acentuou-se de
modo mais significativo em Okinawa.
Este evento histórico marca o início da influência das artes
marciais chinesas que vieram a contribuir para a formação do
Karate-Dô e o Kobudô no arquipélago.
Com o apoio do imperador chinês Ming, em 1429, a região
central Chuzan unifica as regiões de todo o arquipélago formando
um único estado soberano, o reino Ryukyu, com sua capital em
Shuri, onde foi construído o castelo Real. Para evitar revoltas
armadas dos antigos rivais, Sho-Hashi emitiu o primeiro decreto
de proibição do uso de armas.
A influência chinesa era tão grande que Ryukyu era obrigado a
pagar tributos ao imperador Ming. O nome da dinastia de Ryukyu,
“Sho”, foi dado pelo imperador chinês. A construção do castelo
real de Shuri e a frota de navios do reino foram patrocinados pela
monarquia chinesa e o reino comercializava com a China, Vietnã,
Coreia, Sumatra, Filipinas e Japão. Era um estado próspero e
contou com influências culturais de todos os países mencionados
acima, apesar da maior parte vir da China.

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17

Rotas comerciais do reino Ryukyu (final do século XIV até o século XVI). Período de trocas culturais e
marciais entre Ryukyu e diversas regiões Asiáticas.

Acredita-se que nestas rotas portuárias aconteceram


intercâmbios culturais e marciais, principalmente entre os
Chineses e Filipinos.
Sendo um estado que distribuía produtos e intermediava o
comércio entre os países, o reino se desenvolveu na diplomacia e
não investiu recursos na formação de um exército nacional.
Apenas havia a guarda para proteger o rei e as principais cidades.

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Neste período, povos de Ryukyu estudavam na Academia Imperial 18
em Pequim formando uma rede de troca cultural com a China.
Em 1609 o clã Satsuma, do sul do Japão, invade o pacífico
reinado Ryukyu com uma esquadra de 100 navios e exige a
submissão ao Shogunato Japonês. Esta foi a primeira ocupação
militar do arquipélago.
O governo chinês havia proibido o comércio da China com o
Japão. Satsuma se aproveitou das relações comerciais do Reino
Ryukyu com a China para manter um comércio velado com a China
através de Ryukyu. O Rei ShoNei foi raptado e levado para Tókyo,
de onde permaneceu governando Ryukyu à distância.
Satsuma permitiu a “subordinação dupla” e o reino Ryukyu passou
a pagar tributos para a China e para o Japão. Os reis de Ryukyu,
sem que os chineses soubessem, eram nomeados pelos japoneses
e governavam conforme orientações obrigatórias.
Neste período, não houve influência cultural do Japão em Ryukyu
pois o Japão não podia transparecer o seu domínio. Os japoneses,
incluindo os Samurais, eram proibidos de visitar o arquipélago. O
povo de Ryukyu não podia adotar nomes, roupas e costumes
japoneses. Isto manteve a relação dupla do reino com o Japão e
com a China, permitindo o comércio entre os dois países rivais
sem que a China soubesse.
Os camponeses de Ryukyu desenvolveram uma forma de
luta e ritual que se chamou Shima Sumo. Esta foi a base de
fundação do que viria a se tornar o Karate-Dô. Era muito parecido
com o Sumo japonês da época, mas sem a influência dos Samurais,
mantendo-se como algo do camponês de Ryukyu.
O Reinado era agora dividido em três regiões: Naha, Tomari e
Shuri. Em Naha, o Shima Sumo era conhecido como Tegumi. Em
Tomari e Shuri, era conhecido como Mutô. Foi esta forma de luta

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que deu origem ao que conhecemos hoje como Kumite e foi a 19
partir da palavra Tegumi que surgiu a palavra Kumite.
O Tegumi é a forma de combate original de Ryukyu, mas por volta
de 1600 se iniciaram as principais influências externas vindas da
China que vieram a se fundir com o Tegumi.
O método de luta vindo da região da China chamada Fujian, Fukien
em Japonês, o Quanfa que em japonês é escrito como Kenpo,
sendo traduzido como método do punho, chega pelo porto de
Tomari. O povo que ali vivia inicia seus aprendizados nas formas
de Quanfa.
Passando posteriormente para a área residencial de Naha e Shuri,
o Quanfa se fundiu ao Tegumi dando a forma ao que conhecemos
hoje como Karate-Dô, que na época ficou conhecido como Todê,
também chamado de Toudi, ou simplesmente Ti, Dii ou Te.
No início do século XVIII , o monge Takahara Peichin
introduziu os primeiros conceitos de “Dô” , como caminho
espiritual, no Todê. Seu discípulo, Sakugawa Kanga, criou o
primeiro Dojô Kun, código de ética importante ainda nos dias de
hoje.
E foi a partir do século XIX que surgiram os principais
mestres da primeira geração de Todê, destacando-se: Kanga
Sakugawa, Kosaku Matsumura, Anko Itosu, Sokon Matsumura,
Yasune Azato, Kanryo Higaonna, Seisho Arakaki e Chotoku Kyan.
Em Ryukyu, o aprendizado de técnicas de combate era proibido.
As técnicas de Quanfa eram treinadas secretamente. Já o Tegumi,
era tolerado como uma brincadeira e podia ser praticado. Para
prosseguirem com a prática do Quanfa, os nomes para se referir a
este sistema passaram a ser: Dii ou Todii / Todê, abandonando o
termo Quanfa. Dii significa mão em uchinaguchi, e Todê significa

KILDER GIOVANNI DE ARAÚJO


mãos de Tang, uma dinastia do império da China. Todê podia ser 20
interpretado como mãos da China ou mãos chinesas.
O Tegumi continuou a ser praticado como um esporte, o
Todê tornou-se a forma de autodefesa, as técnicas praticadas
com armas se desenvolveram conjuntamente com o Todê, sendo
adotadas também como forma de autodefesa.
Com o Quanfa chinês, algumas armas acabaram sendo importadas
e enriqueceram as formas de luta armada que possuíam as
mesmas movimentações corporais do Todê e também o uso de
Katas. As formas de luta armada se desenvolveram paralelamente
às formas desarmadas e ambas faziam parte de um “todo”.
O Todê treinado em Naha e Tomari chegou até a região de Shuri,
que era a capital de Ryukyu, incorporando-se às práticas dos
militares que protegiam o castelo de Shuri. Estas três regiões
deram nome às formas de Todê nelas praticadas: o Naha-Te, o
Tomari-Te e o Shuri-Te.
Em 1868 com a restauração Meiji, Ryukyu foi invadida
novamente pelos japoneses, agora com exércitos modernos e o
rei foi definitivamente deposto. Acabava o reino Ryukyu, que foi
anexado ao Estado-Nação do Japão.
Em 1874 a última missão tributária foi enviada à China e a partir
daí, o Japão restringiu as relações tributárias com a China por
serem vistas como uma mostra de submissão. Aos poucos, o Japão
vai impondo seu domínio e enrijecendo as regras para uma futura
anexação territorial e, em 1879 o território foi oficialmente
transformado em Okinawa.
Desta vez, o imperador Japonês teve como objetivo o
domínio cultural impondo transformações drásticas na cultura
dos antigos uchinaguchis, agora japoneses.

KILDER GIOVANNI DE ARAÚJO


A sociedade matriarcal de Okinawa, que tinha a crença Onarigami, 21
na ideia de que todo poder espiritual emanava das mulheres, teve
que se tornar patriarcal e foram proibidas as sacerdotisas, Nuru,
que faziam a ligação entre a corte e as aldeias. O Confucionismo
foi imposto como religião oficial e pregava uma visão de
subordinação das mulheres aos homens. As terras foram
redistribuídas aos homens que receberam novos nomes
japoneses. As roupas japonesas passaram a ser o modelo a ser
adotado e o Nihongo, língua japonesa, foi imposto como língua
oficial de Okinawa, que passou a adotar na educação o modelo
Japonês com influências ocidentais.
Em 1901 alguns professores do Todê, como Anko Itosu e
Gishin Funakoshi, começaram a corrida para manter o Todê vivo e
passaram a ensiná-lo abertamente nos recém implantados
colégios seguindo o modelo ocidental como educação física para
os jovens.
Desde 1898, Funakoshi já era professor na escola primária, dando
início aos seus trabalhos no início do século XX, e Itosu tornou-se
professor em 1905 na escola Dai Ichi e professor assistente da
prefeitura.
A partir deste marco histórico o Todê passa a ser visto de forma
mais abrangente, não sendo mais considerado apenas para a
defesa pessoal, como também, um instrumento para cultivar um
corpo saudável beneficiando a saúde.
Em 1905 Chomo Hanashiro adotou o Kanji “mãos vazias”
escrevendo Karate, para poder se expressar ao escrever sobre o
Kumite de Todê, escrevendo Karate Kumite.
Em 1930 Chojun Miyagi registrou seu estilo na Associação
atlética da prefeitura de Okinawa e, posteriormente, em 1933, na
Dai Nippon Butokukai com o nome Goju Ryu Todê Jutsu,

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sistematizado nos moldes dos Koryu japoneses. Este foi o início da 22
modernização oficializada do ainda conhecido como Todê.

Apresentação do Todê aos membros da Butokukai no Butokuden Hall, Naha

Exigências vindas da Dai Nippon Butokukai do Japão haviam


conduzido variações conceituais por mestres que ensinavam no
Japão. O nome Todê, que se referia à China (mãos chinesas), teve
seus caracteres modificados para esconder a influência chinesa na
arte, recebendo novos caracteres com outro significado. Agora, o
novo nome adotado, Karate-Dô, traduzido: caminho das mãos
vazias, incorporava conceitos filosóficos oriundos do Zen Budismo
onde a expressão passou a representar o “caminho de busca do
desenvolvimento pessoal” através do esvaziamento das
interferências externas na mente, canalizando o foco no
treinamento que passou a ser uma “ferramenta” para alcançar o
principal propósito, a evolução constante da personalidade como
forma espiritualizada.

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Seguindo os modelos criados por Jigoro Kano para o Judô, o 23
sistema de faixas e o uso do uniforme branco (KeikoGi, DôGi ou
KarateGi) foram incorporados. Jigoro Kano foi o “padrinho” do
Karate-Dô e influenciou as mesmas modificações tanto no Karate-
Dô desenvolvido por mestres que viviam no Japão quanto pelos
mestres de Okinawa.

Em 25 de outubro de 1936 uma segunda geração de


praticantes de Todê se reuniu em Okinawa para ajustar conceitos
que viriam a promover e facilitar a aceitação da forma de luta no
Japão continental, que rejeitava culturas vindas da China e
Okinawa, e iniciar o movimento de crescimento no Japão
continental. Nesta reunião, observadas as mudanças que estavam
acontecendo com os Karatekas que viviam no Japão continental e
objetivando ajustar ao que era praticado em Okinawa, foi decidido
que o nome Todê seria mudado para Karate-Dô, passando a ser
adotado pela comunidade de Karatekas de Okinawa, bem como o
uso de uniformes e o desenvolvimento do Karate competitivo.
Eles queriam unificar o Karate-Dô, preservando os ‘Katas antigos”
e criando novos Katas que seriam “padrão” para todos, pensando
no ensino em escolas e universidades.
Devido à importância do tema desta reunião, a data 25 de outubro
ficou conhecida pelos Karatekas de Okinawa como o dia mundial
do Karate-Dô e todo ano celebra-se a data em Okinawa com o
festival “Karate no Hi”.

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Fotografia registrada em 25 de outubro de 1936. Fila traseira da esquerda para a direita:


Shinpan Gusukuma, Choryo Maeshiro, Chosin Chibana, Genwa Nakasone. Fila da frente da esquerda
para a direita: Chotoku Kyan, Kentsu Yabu, Chomo Hanashiro, Chojun Miyagi.

Na mesma época, Shinken Taira começava a ensinar o


Kobudô de Okinawa, um conjunto de técnicas de lutas armadas
que foram por ele coletadas nas regiões do arquipélago,
desenvolvidas pelos mestres em conjunto com o Todê.
Assim, em Okinawa se desenvolveram as formas: Shima Sumo
(Tegumi), Karate-Dô e Kobudô de Okinawa.
Em 1945 o sonho foi interrompido. Com a entrada dos
Estados Unidos na Segunda guerra mundial, os ataques contra o
Japão se iniciaram partindo de Okinawa, onde foi implantada uma
base americana que permanece ainda nos dias de hoje. Mais uma
vez, o arquipélago sofreu uma ocupação militar.
Muitos Senseis e alunos foram mortos. A fome e a pobreza
tomaram conta da ilha. Durante cinco anos, o Karate-Dô, o

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Kobudô e o Tegumi não foram mais treinados como eram feitos 25
anteriormente. Todos buscavam a sobrevivência.
A partir de 1950 o Karate-Dô e o Kobudô voltaram a ser
praticados em segredo. Aos poucos, os Senseis sobreviventes
começaram a treinar novos alunos e os militares permitiram a
entrada do Karate-Dô nas bases americanas. Os Dojôs se
espalharam pelo arquipélago e o Karate-Dô se tornou um símbolo
de Okinawa.
Nos dias de hoje, há esforços em conjunto entre os Senseis
de Okinawa a fim de tombarem o Karate-Dô de Okinawa e o
Kobudô de Okinawa como patrimônios culturais da humanidade
pela Unesco. Para tal, o Karate de Okinawa precisa manter suas
características preservadas, permanecendo fiel às tradições das
linhagens em sua origem.
O Karate-Dô desenvolvido e treinado em Okinawa ficou
sendo conhecido como Karate-Dô de Okinawa, mas assim como o
Karate-Dô moderno ou Karate-Dô japonês, faz parte de um todo,
onde a modalidade é apenas uma: O KARATE-DÔ!

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A EVOLUÇÃO DAS DISCIPLINAS 26

Originado em Ryukyu, desenvolvido pelos camponeses


como uma forma de luta, brincadeira e ritual, o Tegumi foi a base
para a formação do Todê, que veio a se tornar o Karate-Dô
moderno.
Com a influência da cultura Chinesa, as formas de combate
conhecidas como Quanfa ou Kenpô em Japonês se fundiram ao
Tegumi somando a esta forma de luta do reino Ryukyu os Katas,
os primeiros equipamentos de Hojo Undo, as técnicas com armas
e os modelos de Kihon. Inicia-se assim, o Todê ou Todê Jutsu e
suas primeiras tradições sistematizadas desenvolvidas nas regiões
de Naha, Shuri e Tomari.
Esta primeira forma desenvolveu-se em um contexto onde o reino
Ryukyu, apesar de ter sofrido ocupações, não formou um exército
e não se envolveu em guerras e batalhas, destinando sua política
à diplomacia. Este foi o principal ponto que contribuiu para o
desenvolvimento do Todê como uma forma de luta com
propósitos de defesa pessoal.
Após a ocupação dos japoneses, com a introdução das escolas no
arquipélago, agora nomeado Okinawa, ocorre a disseminação do
Todê como matéria de educação física seguindo o modelo
japonês de educação.
Ao ser levado ao Japão pelos mestres de Okinawa, o Todê sofre a
influência da cultura japonesa e, para lá ser aceito, sofre
modificações técnicas e conceituais mudando seu nome para
Karate-Dô, tendo agora como propósito a evolução da
personalidade através da prática das formas de luta (Budô). A

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influência japonesa também direcionou à formação dos estilos 27
(Ryu) em seus moldes sistematizados de Kobujutsu.
Esta nova organização sistematizada do Karate-Dô veio a reforçar
as diferenças técnicas entre os Ryus que se tornaram “disciplinas”
do Karate-Dô, e continuaram se desenvolvendo de forma
independente.
Importante ressaltar que apesar de serem disciplinas
independentes, os Ryus vêm da mesma origem, o Todê de
Okinawa, e fazem parte de um mesmo sistema de luta, o Karate-
Dô.
Mesmo o Kobujutsu de Okinawa, conhecido como Kobudô de
Okinawa, as formas de combate armadas que foram
desenvolvidas em Ryukyu pelos mestres de Todê, também faz
parte do Karate-Dô estando presente no currículo de diversos
Ryus existentes. O Kobujutsu veio a se tornar um Gendai Budô
independente com a criação das escolas de Kobudô de Okinawa,
mas continua tendo como base o Kihon do Karate-Dô.
O Todê, que foi inserido nas escolas de Okinawa no início do
século XX como matéria de educação física, também recebeu
deste conceito educacional influências marcantes que
direcionaram propósitos esportivos à sua prática. Este modelo de
Karate esportivo ganhou força após a entrada do Karate-Dô nas
Universidades japonesas que promoveram eventos competitivos,
naturais em várias modalidades esportivas, e que vieram a fazer
parte dos encontros de karatedokas, agora também considerados
atletas. A disciplina do Karate-Dô como modalidade esportiva foi
um marco para o seu crescimento e disseminação pelo Japão e
pelo mundo.
Em sua formatação inicial, o Karate esportivo, criado
exclusivamente para a prática de recreio, pode ser facilmente

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usado como um veículo eficaz para canalizar tanto a aptidão física 28
e o estímulo de atividades cognitivas, quanto a interiorização de
regras e sua partilha com os outros, o respeito, o desenvolvimento
da empatia, do trabalho em equipe e do espírito de liderança. É
um esporte de participação em grupo.
Em sua ramificação para esporte de competição, além do foco no
desenvolvimento físico e nos resultados que busquem a eficiência
das técnicas aplicadas em determinada regra, o Karate esportivo
também veio a colaborar com experiências de provação das
capacidades e talentos, melhorando a auto confiança,
aumentando a concentração com o desenvolvimento do foco no
objetivo e definição de metas, a ter disciplina, o respeito ao
oponente esportivo e colaboradores, a perseverança e superação,
aprender com as derrotas e saber lidar com a perda, que
estratégias são importantes, que o adversário não pode ser
subestimado e que a inteligência emocional é necessária para
saber administrar as emoções enquanto se constrói a estratégia
da luta.
O Karate com o conceito “Dô” converge-se diretamente na
formação da personalidade, onde se acredita que estamos em
constante mudança e que percorremos uma busca sem fim da
evolução espiritual. O objetivo final não é o mais importante e sim,
o caminho que percorremos para alcança-lo. Nesta busca,
precisamos compreender os princípios que regem o nosso
entorno, para praticá-los com naturalidade definindo as virtudes
e desenvolvendo o caráter. Com a percepção do entorno, através
do conhecimento cultural e avaliação dos contextos,
desenvolvemos nossos valores e, unindo o caráter aos valores,
nos tornamos pessoas éticas ou “guerreiros éticos”. Este ciclo se
repete durante toda a nossa vida e o caminho que se percorre na

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busca desta evolução espiritual de forma ascendente em espiral, 29
é conhecido como Dô.
Este conceito Dô é aprendido de forma direta ou metafórica,
enquanto se pratica as formas físicas da arte marcial, além das
pesquisas históricas e técnicas.
Todas as formas de prática do Karate podem fornecer situações
que elevem o nosso Dô. Basta que tenhamos este como o principal
propósito.
A prática do Karate-Dô seguindo o currículo de determinada
escola (RYU), é conhecida como tradicional. Nela, ocorre a busca
técnica, filosófica e estudos históricos que seguem o modelo
traçado pelo Ryu ou linhagem em questão.
O que podemos compreender é que, desde sua formação
inicial, o Karate-Dô vem sofrendo influências das culturas e
contextos históricos, que vieram a estimular as mais variadas
disciplinas a serem desenvolvidas. Todas estas etapas fazem parte
do universo Karate-Dô. São inúmeras as possibilidades de
desenvolvimento e esta é a verdadeira riqueza do Karate-Dô. É
como um curso de graduação em uma faculdade, que possui suas
disciplinas, e que se atualiza conforme o avanço dos
conhecimentos ao longo do tempo, sem abandonar as disciplinas
conceituais.
Se uma cidade se desenvolve mantendo preservados seus
patrimônios históricos (construções antigas de vários estilos
arquitetônicos) e sua história, mas se adaptando sempre às novas
necessidades com métodos construtivos e concepções
urbanísticas modernas, o Karate-Dô também pode fazer o mesmo,
conservando sua história e suas escolas (Ryu), se adaptando às
novas didáticas de ensino e formas de prática em função das

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novas demandas, mantendo-se como uma modalidade Gendai 30
Budô viva e perseverante.
A grande maravilha que a cidade e o Karate-Dô têm em comum é
que ambos existem para atender às necessidades humanas. São
ferramentas para o homem.
Sendo assim, pensando no homem, deixo a seguinte reflexão:
“ O Karate-Dô é para a vida. Não, a vida para o Karate-Dô.”

Este texto faz parte dos primeiros capítulos do livro:


Shoshin IV
Ciência, arte e espiritualidade no Karate-Dô

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