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GEORGES VIGARELLO

aude

a saude e a doenga

desde a id ad e M édi

noticias
editorial
P o lie d ro
d a H is to ria
direcgáo de F em ando Catroga

l o m urna imagem próxima do poliedro,


Herculano definiu a perspectiva que esta
colecgao se propoe cumprir: “A historia pode
comparar-se a urna coluna polígona de mármore.
Quem quiser examiná-la deve andar ao redor
déla, contemplá-la em todas as suas faces” .
Mas os textos que lhe irao dar corpo também
pretenderáo ser cinzel e escultura desse mármore
ao darem voz aos apelos que, vindos do passado,
solicitam futuros que só o presente

L
poderá esculpir.
POLIEDRO DA HISTORIA

IS B N 9 7 2 -4 6 -1 1 7 1-X
(E d ifá o o riginal IS B N 2-02-037123-5)

© É ditio n s du Seuil, 1993, 1999

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® LUSOMUNDO

Tradugáo: L u is F ilipe S arm entó


R ev isá o técnica: Jo áo R ui Pita
R evisáo: M . M an u ela V ieira C onstantino
C apa: 3 d esig n ers gráficos

E digao: 01 407 006


1.a edigao: A bril de 2001
D e p ó sito legal n.° 162 451/01

P ré-im pressáo:
E spago 2 G ráfico HISTORIA DAS PRÁTICAS DE SAÚDE
Im pressáo e acabam ento:
A SA Ú D E E A D O E N ^ A D E S D E A ID A D E M É D IA
T ipografía G uerra
Nesta colecfáo:
GEORGES VIGARELLO
M ORTE EM LISBOA - ATITUDES E R EPR E SEN T A L ES - 1700-1830
A na Cristina Araújo

BRUX ARIA E SU PERSTICÁO - NUM PAÍS SEM C AQA AS BRUXAS - 1600-1774


José Pedro Paiva

A GU ERRA EM PORTUGAL - NOS FINAIS DA IDADE MÉDIA


Joáo Gouveia M onteiro

A TERN URA AM OROSA - SÉCULOS x v i - x v m


M aurice Daum as

O REPUBLICANISM O EM PORTUGAL - DA FORMAC'ÁO AO 5 DE OUTUBRO DE 1910 - 2.aedigao


Fernando Catroga

HISTORIA DAS PRÁTICAS DE SAÚDE - A SAÚDE E A DOENgA DESDE A IDADE MÉDIA


Georges Vigarello
HISTORIA DAS PRÁTICAS DE SAÚDE
A SAÚDE E A D O E N £A DESDE A IDADE M ÉDIA

Tradugao
Luís Filipe Sarm entó

R evisáo Técnica
Joáo Rui Pita

r f noticias
■ H editorial

4
PREFÁCIO

Livro dos Segredos, Livro para Manter a Saúde ou Livro para Prolongar a
Vida, sao obras sobre os conselhos plausíveis no que diz respeito ao «conservar
e manter a saúde corporal», sobre os quais se debrugam os grandes textos me-
dievais, visando a boa forma física e a sua manutengáo. O projecto da presente
obra é o de seguir o desenvolvimento e as mutagoes nos séculos seguintes. E é
o de também seguir as suas correspondencias práticas: os modos individuáis e
colectivos de afastar o mal, os actos para prevenir antes mesmo de curar. Trata-
-se de seguir as certezas e os saberes, as técnicas, as crengas e os imaginários
aos quais os processos se referem no tempo.
Urna historia da manutengáo do corpo nao é uma historia das doengas nem
uma historia das terapias. Também nao é a dos inumeráveis agentes determi­
nantes da saúde, a das influencias mais heterogéneas abrangendo as geografías
físicas e sociais, os modos de vida e os meios envolventes. De outro modo, tam­
bém nao é a historia dos efeitos directamente sofridos pelo corpo. Será mais a
historia da defesa e da prevengáo. Ela privilegia as atitudes de salvaguarda, as
estratégias de conservagáo, os designios vaticinados, os comportamentos tanto
mais específicos quanto pressuponham um sentido geralmente negativo dado á
saúde: a ausencia de doenga. O que mostra, de passagem, quanto a manutengáo
do corpo, sobretudo a higiene clássica, designa o conjunto de dispositivos ad­
mitidos para manter durante o maior tempo possível o bom funcionamento or­
gánico, os lentamente construidos para evitar a doenga, os acessos físicos, os
acidentes de saúde, os que asseguram uma «vida sá» tanto quanto uma «longa
vida»; todos estes comportamentos devem preceder a doenga para melhor a cir-
cunscrever e, sobretudo, evitar. Náo, evidentemente, que esta historia seja to­
talmente independente da historia das doengas: a preservagáo do corpo respon­
de em primeiro lugar aos males existentes numa dada época e num determinado
lugar até assumi-los parcialmente. Mas esta defesa ou mais precisamente a sua
manutengáo náo se limitam a isso, podendo prevenir males que ainda náo exis-
tam ou ignorar aqueles que existam, podendo também mobilizar uma perspec­
tiva simplesmente específica da manutengáo da saúde: investir reforgos larga­
mente independentes dos males e das enfermidades, desenvolvendo uma
historia conservando a sua originalidade.

7
PREFÁCIO

Nao há qualquer dúvida de que esta historia das atitudes preventivas se te-
nha imposto: a vacina é um processo mais contemporáneo do que o recurso aos
elixires, assim como as medidas de desinfecgáo químicas e epidémicas sao mais
contemporáneas que os fogos medievais ateados contra «a peconha do ar».
O conjunto de uma cultura está presente nesta forma de determinar e prevenii
o mal. As diferengas temporais sao, quanto a este aspecto, táo reveladoras como
contextualizadas: o anti-séptico é mais «moderno» do que o amuleto protector,
medir a tensáo arterial é mais moderno do que a sangría, a vigiláncia do coles-
terol é mais moderna do que a atengáo á cor da pele. Cada um destes processos,
do mais modesto ao mais marcante, confirma a antiga existencia de uma pre­
serv ad o do corpo e de uma prevengáo da doenga, cada um deles sugere tam­
bém recomposigoes e renovagoes. Muitas destas mudangas sao, por outro lado, IN T R O D U J O
á primeira vista sensíveis e previsíveis, dando lugar a investimentos sempre
mais colectivos, a objectos de risco sempre mais variados, a estratégias tempo­
rais sempre mais elaboradas. Náo nos devemos, portanto, restringir a uma com- A água mineral é um vector de saúde. Ela elimina toxinas e residuos. É a pu-
plexidade progressiva, uma vez que as práticas sanitárias reorientam a sua lógi­
blicidade que o afirma. Os médicos náo a contradizem. A imagem desta água
ca e a sua legitimidade, concretizando rupturas e descontinuidades: a sangria filtrando os órgáos repete-se hoje até á banalidade. É preciso «eliminar». O tema
preventiva, a sangria dita de «precaugáo» na Corte do Grande Rei e o recurso é moderno, difundido pelas referencias da bioquímica. Mas o tema também é
preventivo ao uso do frió, ar livre, banho frío ou uso de roupa ligeira na Fran- tradicional. Nada mais antigo do que as práticas de purificagáo: as dos banhos
ga das Luzes pertence a dois universos diferentes. Estas mudangas estáo ainda, medievais, das sangrías, dos velhos elixires cuja acgáo deveria exterminar os
inevitavelmente, ligadas as das representagoes do corpo como as das represen-
humores viciados.
tagóes sociais, da infelicidade ou do perigo: prevenir mobiliza, no seu contex­ Uma primeira constatagáo se impóe: a manutengáo do corpo ou mesmo a
to, os mais diversificados utensilios mentáis. atitude preventiva face á doenga náo foram transportadas para o mundo con­
Esta historia, deve dizer-se, ainda náo está concluida. Sendo mais a da doen­ temporáneo. Inumeráveis sao os procedimentos antigos, visando a activagáo
ga do que a da sua precaugáo, preocupada sobretudo com a terapia em lugar da dos órgáos, á sua preservagáo de toda a atengáo exterior. Uma segunda consta­
prevengáo, refugiou-se na prática da cura, nos gestos mais espectaculares, vi­ tagáo também: a de uma sobrevivencia de grandes marcas; a vontade de purifi­
sando a redugáo da doenga. O presente livro tenta, pelo contrario, fazer a histo­
cagáo atravessa o tempo, habitada pelo receio dos residuos, aqueles que amea-
ria das práticas de prevengáo e de manutengáo do corpo, da manutengáo da saú­ gam o corpo de qualquer inexorável decomposigáo. As imagens de forga
de ñas eventualidades da vida. É para melhor sublinhar este projecto de também percorrem o tempo: a forga ¡mediata trazida pela alimentagáo e pelas
investigagáo das práticas de saúde que nos pareceu mais pertinente mudar o tí­ bebidas; a forga mais elaborada trazida pelo exercício, pelo regime de vida ou
tulo da obra em relagáo á edigáo anterior. Historia das Práticas de Saúde su-
pela farmacopeia. Forga e purificagáo: dois principios que, desde há multo tem­
blinha principalmente o programa ao qual este livro obedece: seguir as diferen­
po, norteiam a manutengáo do corpo.
tes maneiras como a nossa cultura acreditou, ao longo dos tempos, dever e Persistem, obviamente, obscuras continuidades: alguns supersticiosos de
poder preservar o corpo. hoje náo desdenhariam a historia do rei medieval convencido de afastar as epi­
demias gragas á luminosidade da sua safira, um especial anel, «atraindo» com
tanta forga a pureza que ameagava partir-se quando o senhor «estava no jogo
amoroso com a sua mulher»'. As diferengas, portanto, sáo determinantes mau
grado a proximidade de certas imagens: a insistencia na sangria preventiva, por
exemplo, decisiva ainda na Castille de Gil Blas de Santillane . nos comegos do
século x v i i i , é largamente invalidada nos decénios seguintes. A sangria já náo é

1J.-J. W ecker, Le G rand T hrésor ou D ispensaire et A ntidotaire des rem edes se rv a n t á


la sa n té du corps hum ain, G enebra, 1610, p. 57.
2 A. R. L e Sage, H istoire de G il B las de Santillane. R om anciers du XV11I‘ siecle, P a n s,
G allim ard, L a P léiade, 1966. A sangria é aqui sistem áticam ente utilizad a tanto para a m a­
n u te n g o com o para a cura: «N ao se pode sangrar dem asiadam ente um doente», 1 . 1 , p. 571.
INTRODUGÁO
INTRODUgÁO

um procedimento de manutengáo no final do século xvm. A perda de sangue ventivas, extensáo de uma seguranga social lenta e laboriosamente adquirida.
tomou-se inútil e perigosa. Os «elementos» a eliminar mudam de estatuto, en- Mas nunca este último fervilhar solidário pareceu táo ameagado: fim do Esta-
quanto que a sua própria presenga se toma mais pressionante e mais constante. do-Providéncia, sentimento crescente (por vezes subjectivo) de riscos sanitários
Opera-se um trabalho sobre o sensível, visando os aspectos cada vez mais ínfi­ mal controlados, crescimento quase selvagem do mercado da saúde, definigáo
mos: secregoes discretas e rejeigoes escondidas. Opera-se também um trabalho mais personalizada dos critérios de saúde. O corpo social e o corpo individual
sobre o perigo, visando novos riscos com as toxinas, microbios ou impurezas parecem, entáo, mais fortemente confrontados.
infecciosas. É no próprio seio do projecto de «purificar» que, a longo prazo, A historia da prevengáo do corpo é, em primeiro lugar, a historia de uma
mudam totalmente as expectativas e os objectos de estudo. Sao estas as linhas conquista individual, uma lenta precisáo desta saúde que George Canguilhem
imaginárias que é preciso reconstituir. mostrou tomar-se «relativista e individualista»3, um aprofundamento da auto­
Historia dispersa, enfim, heterogénea, como esta historia da manutengáo do nomía, senáo da intimidade. É também a de um empenhamento colectivo. Uma
corpo, tais sao as diferentes práticas que ela leva em conta, táo variadas e es- historia que se toma a de um ajustamento sempre difícil entre a política sanitá-
miugadas sáo, as inquietagóes que contém. Os preceitos tradicionais sobre os ria e as exigencias privadas. Ajustamento tanto mais exigente, hoje, que as ve-
modos de prolongar a vida sáo largamente sensíveis ao detalhe, sublinhando, lhas solidariedades autoritárias náo saberiam levar a bom termo.
por vezes, até á minúcia, mil gestos aparentemente sem relagáo entre eles: es- Esta historia deve, assim, seguir as transformagóes conjuntas do imaginário
colha dos alimentos, vigilancia dos odores, do ar, dos climas, a atengáo sobre as do corpo e do imaginário do grupo.
atitudes durante o sono, curiosidade sobre os efeitos do calor, do frió, dos es-
pirros ou mesmo dos bocejos. O risco sanitário em fungáo da dispersáo, o da
desconexáo, ou até o da incoeréncia. A representagáo do corpo, portanto, ofere-
ce um tema de convergencia, a ocasiáo de unificar o sentido destes actos níti­
damente separados. Determinante, por exemplo, é a diferenga entre o conjunto
das preservagoes medievais, totalmente dependente de forgas cósmicas, habita­
do pelos signos do Zodíaco, imerso no ciclo dos planetas ou no ciclo das esta-
góes, e o conjunto das protecgóes «clássicas», submetidas as mecánicas, mol­
dadas pelas analogías físicas e maquinais, até ao artificio. Diferente ainda, o
conjunto de defesas energéticas, o do século xix, unidade orgánica tanto mais
eficaz e protegida quanto dispusesse de fontes calóricas para se mover e de po­
tencia nervosa para se controlar. Foi necessário este novo principio de rentabi-
lidade «combustiva» em meados do século xix, para que fossem também reo­
rientados os valores dados á alimentagáo, as bebidas, ao ar respirado, ao
trabalho, ao repouso, ao asseio do corpo, que se espera deixe penetrar o oxigé-
nio pela pele. Trata-se aqui de uma rotura no tempo. A historia reúne, entáo, es­
tes modelos do corpo, a cujos principios de resistencia e de eficácia orgánicas
se referem sucessivamente.
É impossível, certamente, seguir esta historia sem a confrontar com a histo­
ria das organizagóes e mais ainda a historia das políticas sanitárias. A interven-
gáo das comunidades pesa sobre as condutas de cada um. O Estado monárqui­
co, por exemplo, na sua afirmagáo moderna, acumula as intervengóes sobre os
gestos de preservagáo. Os regulamentos impostos as cidades contribuíram para
a erradicagáo das pestes, no século x v i i , renovando as inquietagóes e os investi-
mentos colectivos. Exactamente como a organizagáo do trabalho, a partir do fim
do século x v i i i , a tentativa de o tomar mais regular, mais seguro, transforma as
vigilancias individuáis. Parcialmente, no mínimo, a manutengáo do corpo pare­
ce promovida pela gestáo das cidades. Eis uma das condigoes. Ela acompanha,
expressamente, o desenvolvimento dos grandes mitos comunitários, o das refe­
rencias obscuras á unidade de grupo com as suas crengas e as suas tensóes.
Nunca esta solidariedade comunitária pareceu táo elaborada como hoje: in-
vestimentos govemamentais na investigagáo, sofisticagáo das estratégias pre­ 3 G. C anguilhem , Le N orm al et le P athologique, París, PUF, 1966 (1.a ed. 1943), p. 107.

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C A PÍTU LO I

A FOR£A DOS CONTACTOS

Lenda. certamente, a historia da herdeira agonizante, isolada no último cas-


telo de A Demanda do Graal, no século xrn, mas súbitamente curada da lepra
por um sangue muito «puro»1: extraído de uma virgem que passa perto do cas-
telo, feita prisioneira antes de ser longamente sangrada; o líquido virginal apa­
ga as podridoes e as chagas apenas pelo contacto. A cura pertence mais ao mito
do que á medicina. Assemelha-se mesmo ao milagre. Mas coloca em relevo
dois principios medievais que estabelecem a eficácia curativa de certos objec-
tos. A sua pureza, em primeiro lugar, qualidade impregnada de imaginário e,
neste caso preciso, de moral; resultado do exercício das analogías, de uma in-
vestigagáo onde dominam as semelhancas e as comparagoes. O segundo prin­
cipio é o do contacto: o sangue da donzela espalhado sobre a pele age por con-
tiguidade, como o fazem ainda mais fortemente os amuletos, pendentes ou jóias
usados para comunicar as suas virtudes «purificadoras».
Mantém-se os mesmos principios quando se trata náo apenas de curar, mas
de proteger: a ambigáo preventiva, ainda aqui, é a de afastar todo o contacto im­
puro; a inquietagáo maior, reiterada a ponto de parecer a única, é a das podri­
does internas.

1. U M A D O E N £ A E X E M P L A R

A lepra confirma até á evidencia visual, as equivalencias entre a doenga e o


cadáver no mundo medieval; carnes degradadas, deformagáo das feigoes, res-
somagáo. A decomposigáo, aqui, náo é só o mecanismo secreto da doenga, a sua
lenta progressáo na obscuridade dos órgáos; ela é ainda, a queda ostensiva, a
sua monstruosa encenagáo. Como o mostram os leprosos acossados em volta ’da
ogueira de Isolda, no romance do século xn, desfigurados e putrificados: «Cem
eprosos, deformados, com a carne roída e esbranquigada, precedidos ñas mu­
letas pelo bater das matracas..., as suas pálpebras inchadas, os olhos raiados de

p 2 7 0 ^ QUét€ ^ G m a l (SéCUl° XII)’ PariS’ É d ' dU SeUÍ1’ C01' <<Po¡ntS SaSesses>>’ 1982,

15
OBEDECER AO COSMOS
A FORCEA DOS CONTACTOS

sangue..., os seus andrajos colados as chagas que ressumam.»2 Homens disfor­


Mais obscuras sáo as outras doengas medievais, «febres pútridas» ou «ma­
mes e já sem rosto. A lepra é tanto mais temida quanto toma mais visível o apo-
drecimento. lignas», «catarros», «ranho», «fluxo ventral». A sua possível origem contagio­
sa, as suas formas, as diferengas entre elas estáo mal descritas e, sobretudo, mal
categorizadas. O universo patológico de Montaillou, no final do século xm é o
melhor exemplo: quando o pastor Bernard Marty visita os nobres irmáos de
Do mal assinalável ao mal obscuro
Castels, no inicio do decénio de 1300, encontra-os aos quatro de cama. Ele des-
creve a morte rápida de tres deles, associando-a á morte de muitos outros, sem
A transmissao da doenga parece estar identificada: atribuida ao contacto, á
evocar nunca qualquer eventual epidemia. Marty náo relaciona estas doengas
proximidade, é sempre uma difusao trágica. É a decomposigáo que se comuni­
entre si. Náo toma qualquer precaugáo directa. Náo mais, aliás, do que Amoud
ca de um corpo a outro através de um mecanismo obscuro mas implacável: uma
Teisseire, o médico mais próximo de Montaillou, instalado em Lordat, onde
doenga vinda dos «humores apodrecidos» 3 para Amaud de Villeneuve, ou vin-
concilia a actividade de notário com a de prático10. Poucas diligencias preven­
da da «exalagao maligna» 4 para Constantino, o Africano; uma doenga que tor­
tivas aqui, e ainda menos ñas aldeias mais carenciadas: a luta contra a morte tor­
na a proximidade do doente alarmante, como o seu contacto e tudo o que o cer­ nada «inútil» por excesso de miséria.
ca. Daí o receio do toque, o receio do hálito também e a rejeigao social
resultante: «Por causa disso, toma-se necessário separar os leprosos dos outros
homens, para que nao corrompam o ar e tornem leprosas as pessoas sás.»5 Res­ Analogía do cadáver
guardarse neste caso, corresponde a rejeitar o doente: o distanciamento físico
responde á impureza. O ritual da proscrigao chega a ser um ritual de enterro.
Existem todavía algumas medidas de resguardo caóticas e dispersas, provenien­
O costume rege a cena como um desaparecimento físico e religioso: missa de
tes de uma imagem dominante: a proximidade do cadáver, a transformagáo da car-
defuntos, gesto do padre apanhando térra do cemitério antes de a langar por tres
caga. Trata-se da referencia mais tangível, e a mais simples também de atribuir uma
vezes sobre a cabega do Lázaro, com uma «pá na máo», palavras rituais, enfim,
forma sensorial á realidade frequentemente invisível e secreta do mal. Qualquer tipo
codificando a «separagáo»: «Meu amigo, significa que estás morto para o mun­
de putrefacgáo, neste caso, alimenta a analogía: a doenga desenvolve-se como o bo-
do, por isso resigna-te....»6 Mais do que qualquer outra doenga da Idade Média,
lor, avanga como a estagnagáo das águas paradas; cresce como as gangrenas ou
a lepra demonstra que doenga é apodrecimento cadavérico.
como as mudangas sob os pantanos. O mal acciona a maleita através do contacto,
A preservagáo conduz a uma total repulsao do doente, ao seu isolamento dis­
pela proximidade, que permite pouco a pouco uma corrupgáo incontrolável.
tante. Náo que a exclusao seja conseguida ou absoluta. O regulamento da le-
A imagem é arcaica na cultura ocidental. Entre as mais reveladores figuras
prosaria de Lille, em 1239, proíbe aos leprosos o acesso á cidade, autorizando
encontram-se as de La Légende dorée, do século xm, representando a doenga
o acesso aos campos com a condigáo de náo entrarem em nenhuma casa1. O re­
por meio de vermes fervilhantes, multiplicando as cenas de larvas e vermes.
gulamento de leprosaria de Périgueux, em 1217, autoriza mesmo a travessia da
Um meio pelo qual Jacques de Vorágine, bispo de Genes, autor da Légende,
cidade, com a condigáo de náo se deterem 8. Daí os litigios, os incidentes: repe-
torna visível a intervengáo divina: Deus orquestra as suas sangóes assinalando-
tem-se as queixas nos séculos xn e xm contra os «leprosos errantes, embriaga­
-as aos olhos de todos pelo bulício destes animálculos. Mas também uma for­
dos e luxuriosos, que váo a todo o lado, de povoagáo em povoagáo, de locáis
ma de apontar a doenga, ao sugerir um incentivo á explicagáo, ao indicar uma
públicos em locáis públicos»9. A matraca anuncia a passagem, e o medo focali­
causalidade orgánica: a analogia do cadáver pleno de vermes tom a mais com-
za bem outros males para além do descalabro físico. A lepra afasta e relega sem
preensível a acgáo da própria doenga. Como na cura de Vespasiano, evocada
conseguir isolar totalmente. É esta a doenga que póe em movimento a única me­
dida de higiene pública no século xm. aínda por Vorágine: «Logo que os vermes lhe saíram pelo nariz, reencontrou a
saúde.»" «Ou a lenta morte de Heredes, o corpo tanto mais martirizado quan­
2 Le R om án de Tristan e t Iseult (século xn), París, «10/18», 1981, p. 85. to os bichinhos o invadiam, inumeráveis, abundantes, percorrendo e ocupando
3 A. de V illeneuve, C om pendium m edicine (X IIIe siécle), A nvers, 1586 livro n, as carnes, transformando os órgáos em chagas imundas.»12 Inclusivamente as
c a p . x l v i , p . 109. figuragóes simbólicas, enfim, evocadas na apología de um pregador alemáo,
C onstantin 1 A fricain (século xi), citado p o r F. B ériac, H istoire des lépreux au M oyen no século xm: o retrato de um menino com as costas cobertas de vermes e sa­
A ge, une so c iété d ’exclus, París, Im ago, 1988, p. 25.
5 A. de V illeneuve, op. cit., p. 109. pos aparece em sonhos a uma mulher que negligenciara a confissáo; o prega­
D ireito consuetudinario citado p o r J. S om onnet, D es institutions et d e la vie p riv ée en dor explica que a mulher é comparável ao menino por ter descurado a confis-
B ourgogne, D ijon, 1867, p. 374.
7 L. Le G rand, S tatuts d ’hotels-D ieu et d e léproseries, París, 1901, p. 199.
8 F. B ériac, op. cit., p. 185. 10 E. Le R oy L adurie, M ontaillou village occitan, de 1294 á 1324, París G allim ard
1975, p. 329, n.° 2.
9 Sum m a pastoríalis, diocese de París, século xm , E. F. R avaisson, C atalogue general
11 J. de V orágine, La Légende dorée, (século xm ), París, 1909, p. 255.
d e s m anuscrits des b ibliothéques p u b liq u e s des départem ents, París, 1841, t. I, p. 641.
'■lbidem, p. 60.

16
OBEDECER AO COSMOS A FORCA DOS CONTACTOS

sao das suas faltas: «Viva por um lado, ela é já cadáver e podridáo por outro.»13 levou Sao Luís, diante de Cartago, em 1270, descrito por Joinville, bruscamen­
Culpabilizagao banal, desprovida de surpresa, mas que sugere a representado te consciente que o rei devia «finar-se rápidamente»17. Assim, é ainda o «san­
tradicional da doenga: a presenga da decomposigáo na própria vida, este misto gue de mau odor» de que fala Barthélemy, o Inglés, que vé ai o sinal e a fonte
entre a «pureza» do vivo e a «gangrena» do morto; a putrefacgáo tomada re- de «espantosa doenga»18.
gisto único onde se enuncia o mal. Nada de estranho, contudo, nestes avatares húmidos: os humores náo tém
Esta mesma marca aparece na cultura e na medicina árabe medievais. Náo outros modelos para além dos líquidos familiares. Percorrem as mesmas «fi­
expoe Rhazes pedagos de carne pelos diferentes locáis da cidade quando foi guras»; modificam-se como o fazem as águas domésticas ou os fluidos natu-
encarregue pelo emir ‘Adud ad-Dawla da reconstrugáo do hospital de Bagdad rais; pesados ou leves, turvos ou claros, conforme a parte do corpo, o tempe­
no século X ? «Onde a decomposigáo fosse mais lenta, o local seria mais sa­ ramento ou a altura do ano, eles podem ainda tomar-se instáveis ou movéis, até
grado, e a fundagáo assim era designada.»14A podridáo só por si traduz o mal. se evaporarem em nuvens invisíveis. Daí as regras intuitivas para melhor os
Será isto a ausencia de química, a ausencia de ferramenta mental para pene­ «dirigir».
trar a estrutura do orgánico? Em todo o caso a representagáo é aqui entregue ás Daí ainda a urgencia de vigiar ou de aumentar o escoamento para favorecer
analogias mais familiares, ás correspondencias entre as sensagóes mais quoti- a purificagáo. Náo é o corpo protegido um corpo purificado? Os médicos de
dianas: os odores, as imagens. As comparagóes sáo fundadas sobre a experien­ Carlos V mantém durante longos anos uma fístula no seu brago para que por ai
cia sensível, a das carnes desfeitas: uma forma de dar um motivo á inquietagáo se possam escapar os humores e «venenos» m alignos19. A morte do rei em 1380,
e tomar compreensível uma doenga, frequentemente escondida na obscuridade teria sido, aliás, pela paragem deste fluxo e pela acumulagáo de corrupgóes que
do corpo. Outras tantas aproximagoes que a partir do pútrido e das suas imagens teria causado. Sáo numerosas as correspondencias entre os escoamentos possí-
de órgáos definitivamente vencidos pela doenga orquestrem evitar o mal. veis, podendo substituir-se uns aos outros: as hemorroidas de Luís XI, por
O impacte destas imagens prosaicas ajuda a compreender melhor os regimes exemplo, tornam-se garantía de «longa vida», apresentadas a Christophe de
medievais. A primeira preocupagáo é a de afastar os riscos de decomposigáo, Bóllate, o embaixador milanés em 1473, mais como uma forga do que como um
evitar a entrada da podridáo no corpo, bem como evitar o seu aparecimento ñas perigo20. Da mesma forma, o acto venéreo pode jogar com os humores: «Ele
entranhas. converte uma má condigáo do corpo e acalma a fúria, é útil aos melancólicos,
leva os dementes á razáo e suprime a concupiscencia amorosa, mesmo se é pra-
ticado com outra mulher que náo a desejada.»21 Insistencia constante, enfim,
Os humores form am o corpo acerca dos gestos de evacuagáo natural, um dos utensilios «imediatos» do regi-
me medieval: «O homem náo deve reter longamente a sua urina»22 da mesma
As próprias representagóes corporais prestam-se a tais receios. O corpo é forma que náo saberia «reter os gases»23.
feito de substáncias eminentemente corruptíveis, aquelas que qualquer inciden­ Os sangrados também tém um lugar próprio nos séculos centráis da Idade
te toma imediatamente visíveis, emergindo das aberturas ou das incisóes mais Média: a prática deve descarregar sob controlo, o excesso de humores acumu­
discretas: sáo os humores, esses licores fugazes á mínima ferida, presentes na lados. O gesto está suficientemente instalado para ser objecto de convengáo ñas
saliva, o pus, as excregoes várias. Líquidos misturados, vindos da assimilagáo instituigóes: os regulamentos dos mosteiros medievais, o dos hospitais, o dos
dos alimentos, estes humores impregnan) o conjuntos dos órgáos, infiltram-se colégios também, além dos tratados de saúde, tomam-no explícitamente em
nos seus espagos, ocupam as suas cavidades. Dáo ao corpo consistencia e cor. conta. Os estatutos elaborados por Robert d ’Harcourt para o colégio com o seu
Sáo o «principio»15, restaurando as purezas, accionando as decomposigoes. As nome, em 1311, mencionam, por exemplo, o estado de fadiga dos alunos san­
suas inconstáncias, as suas deterioragóes causam as doengas. Os seus acidentes grados, autorizando-os a tomar alimentos «no seu quarto com um ou dois con­
produzem os síntomas. Assim sáo os catarros, o que observa Volesce de Táren­
te, em 1387, em Montpellier: «Táo generalizado que nem um décimo da popu- 17 Joinville, H istoire de S a in t Louis (século xm ). H istoriens e t C hroniqueurs du M oyen
lagáo ficou isenta; todos os velhos morreram.»16Assim é o «fluxo ventral» que Age, París, G allim ard, L a Pléiade, 1952, p. 361.
18 B arthélem y l ’A nglais, op. cit., p. 30.
13 C itado p o r J. D elum eau, L e P éc h é e t la Peur, la culpabilisation en O ccident, x m e- 19 F roissart, C hroniques (século xiv). H istoriens e t C hroniqueurs du M oyen A ge, op. cit.,
- x v m e siécles, París, F ayard, 1983, p. 55. p. 477.
14 C itado p o r D. Jacq u art e F. M icheau, La M édecine arabe e t V O ccident m édiéval, P a ­ 20 P. M . K endall, L ouis XI, l'in tellig en ce au pouvoir, París, M arabout, 1984 (1.a ed. in­
rís, M aisonneuve et L arose, 1990, p. 58. glesa 1971), p. 300.
15 B arthélem y l ’A nglais, L e G ra n d P ropriétaire de toutes choses (século xm ), París, 21 D e coi'tu (século xi), citado por D. Jac q u art e F. M icheau, La M édecine arabe et 1’O c­
1556, p. 29. cident m édiéval, op. cit., p. 117.
16 C itado p o r J.-N. B iraben, «L’hygiéne, la m aladie, la m ort», em H istoire de la p opula- 22 A. de V illeneuve, R égim e de santé p o u r co n server le corps hum ain et vivre longue-
tion frangaise, t. I, D es origines á la R enaissance, sob a direcgao de J. D upaquier, París, m ent (século xm ), e d ifá o do final do século x v , s. p.
PU F, 1988, p. 441. 23 Le R égim e de sa n té de l ’école de Salerne (século XI), P arís, 1630, p. 38.

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OBEDECER AO COSMOS
A FORCA DOS CONTACTOS

discípulos»-4. Indicagáo banal, sem dúvida, se náo revelasse que se trata aqui de tras ainda sáo táo puras que contém em si o odor das fragrancias vegetáis, como
uma situagáo del'berada, encarada independentemente de toda a doenga, deci­ essa variedade de ágata com perfume de mirra evocada no lapidário de Mar-
dida apenas para manutengáo do corpo. Os alunos sangram-se por precaugáo. bode 32.
Ao que se acrescenta, em vários regulamentos, a precisao de uma frequéncia A jóia protege duplamente: afastando as «podridoes externas», impedindo o
anual: seis sangrías por ano para as freirás e para os monges do hospital Con- desenvolvimento de «podridoes internas». Ela ilustra a pureza explorada na sua
tesse em Lille, em 1250 15; seis igualmente no hospital de Vemon e no de Pon- versáo mais sensível: um contacto encarregue de difundir as virtudes do objec-
toise, pelo final do século xm 26; cinco na congregagáo de Sao Victor evocada to escolhido, contacto tanto mais precioso quanto assegure uma defesa definiti­
por Marténe -7; mas apenas tres para as lavadeiras do hospital parisiense, no sé- va. A pedra garantía contra qualquer surpresa. Seguranga a todo o momento, ela
culo xiv :8. Diferenga de estatuto social, sem dúvida nenhuma, privilégio tradu- evita mesmo a interrogagáo sobre a natureza da doenga. Daí a importancia des­
zido de imediato pelo número de sangrías acordadas: as lavadeiras náo tém o tes pendentes preciosos, a mengáo regular de alguns de entre eles, explícita­
mesmo estatuto dos monges e das freirás. mente evocados nos inventários como o do duque de Berry, em 1410: duas pe­
Mais obscuras ficam as condigoes concretas deste gesto sobre o sangue: a dras usadas «contra o veneno», unidas a uma pérola «pendendo de um cordáo
compilagáo da abadia de Sáo Victor, recenseia no século xm vinte e tres pontos de ouro» 33, que consignan) escrupulosamente os longos registos do irmáo de
possíveis de incisáo29: as veias do pescogo, das témporas e da testa, para além Carlos V. O mesmo costume na corte da Provenga, alguns decénios mais tarde:
de outros locáis ñas pemas e nos bragos. Pouco importa se a intervengáo é visí­ as «pedras contra a epidemia» recenseadas nos inventários do rei René, no sé-
vel. A curiosidade pouco se detém no sangue a correr pelo rosto. culo xv 34. O mesmo costume ainda com os «molhos» de pedras preciosas mer-
Uma outra prática de defesa tem um lugar determinante, insubstituível, mas re­ gulhadas ñas tagas para proteger do veneno 35. Daí os tratados de lapidária jul-
veladora ainda das sensibilidades e dos saberes do século xui: o uso de objectos gados indispensáveis aos saberes da época, diferenciando 36 as pedras, as suas
protectores, colocar sobre si materiais que afastem as decomposigoes: anéis, pe- origens, alongando-se sobre os seus significados e sobre o seu valor protector37.
dras, jóias pendentes em simultáneo, tidos por agirem pela mera presenga do seu Objectos usados em cordáo ao pescogo ou escondidos sob as vestes, permitin-
brilho ou da sua luminosidade. A purificagáo dirige entáo a escolha dos materiais. do uma defesa heteróclita constante, transmitem uma «quinta-esséncia», uma
pureza que se opoe a toda a corrupgáo possível. A aprovagáo é geral, suficien­
temente profunda para ser adoptada até no segredo dos mosteiros: no Hospital
2. A S JÓ IA S D A S A Ú D E
de Troyes, por exemplo, em 1263, onde «nenhuma religiosa deve usar anéis ou
pedras preciosas a náo ser por causa de doenga» 38. A própria Igreja legitima a
O exemplo frequentemente repetido no século xm, de Galeno usando uma existencia destas forgas invisíveis e «naturais».
pedra de jaspe «sobre a boca do estomago», encarregue de «confortar» a diges- A jóia defensiva está em proporgáo com a confusáo dos males, protegendo
táo confirma a importancia da prática 30. É a matéria, a sua substancia mineral, tanto melhor quanto mais inumeráveis paregam as desordens possíveis.
que transmite como por mimetismo as suas qualidades próprias. Pedras e me­
táis raros com a sua trama, a sua consistencia inalterável e dura, o seu brilho,
protegem tanto melhor quanto sejam mais puros. Alguns deles comunicam mes­ O contacto protector
mo a esséncia do Sol do Oriente onde nasceram: «É no Oriente, nos países onde
o ardor do Sol é muito vivo, que nascem as gemas e as pedras preciosas.»31 Ou- O que náo previnem estes objectos de atavio! O fim é multiforme e abun­
dante. As pedras dos lapidários do século xm protegem tanto das ameagas de
24 S tatuts du collége d ’H arcourt (1311), H .-L. B ouquet, L ’A n cien C ollége d ’H arcourt,
P arís, 1891. p. 74.
males físicos como das «aproximagoes do inimigo» 39; elas tanto fortalecem o
25 L. Le G rand, op. cit., p. 73. coragáo como «trazem amor entre homens e m ulheres»40; tém efeitos corporais
26 Ibidem , p. 171 e 129.
-7 Ver L. G ougand, « L a pratique d e la phlébotom ie dans les cloítres», R ev u e M abillon 32 J.-P. A lbert, O deurs de sainteté, la m ythologie chrétienne des arom ates, París,
1924, p. 5.
E H E SS, 1990, p. 65.
28 M . B riéle, C ollection de d o cu m en ts p o u r se rv ir á V histoire d e s hopita u x de P arís P a ­ 33 J. G uiffrey, Inventaire de Jean duc d e Berry, P arís, 1894, t. n, n.° 1143.
rís, 1888, t. ni, ano 1370, p. 7.
34 A. d ’A gnel, L e s C om ptes du roi René, París, 1910, t. ¡, p. 337.
29 R ecueil d e I ’a bbaye S aint-V ictor (século xm ), M .-J. Im bault-H uart, La M édecine au 35 G. M organe Tanguy, A n n e de B retagne, ja rd in s secrets, París, 1991, F. S orlot e F. La-
M o yen A g e á travers les m anuscrits d e la Biblioth'eque nationale, París, Éd. de la Porte Ver- nore, p. 117.
te, 1983, p. 114.
36 A s m ais puras destas pedras, esm eraldas ou safiras, sao sem pre as m ais eficazes.
C om en tário de P. A. M athiolus ao livro de D ioscoride, L es S ix Livres d e m atiére m é- 37 L. Pannier, Les Lapidaires fra n g a is des X ll e, X IIP , XlVe siécles, París, 1882.
dicale, Lyon, 1622, p. 540.
38 P. G aignard, A n c ie n s Statuts de l ’h ótel-D ieu Le C om te de Troyes, T royes, 1853, p. 43.
H ildegarde de B ingen, L e Livre d e s su btilités des créatures divin es (século xn), G re- 39 L apidaire (século xm ), L. Pannier, op. cit., p. 79.
noble, M illón, 1 9 8 8 ,1 . 1 , p. 231. 40 Idem.

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OBEDECER AO COSMOS
A FO R £A DOS CONTACTOS

como moráis. Permitem «vencer todos os perigos» 41, como a ágata de que o nerais ñas entranhas terrestres. Com representagoes frequentemente precisas:
Grande Alberto sublinha a regularidade e a delicadeza dos veios; ou os crisóli­
como, por exemplo, a da árvore de ouro, nascida no centro do planeta, alimen­
tos e os ónix, troféus de longos combates, num conto silesiano do século xm,
tada pelos seus licores, aquecida pelo seu fogo, estendendo os seus ramos até á
protegendo da água e do fogo, preservando «quem quer que os use em tomeio»42,
superficie, misturada com outras plantas e outros metáis; uma árvore sempre em
repelindo enfermidades e doengas. Mélusine, no romance de Jean d ’Arras no crescimento, multiplicando e estendendo as suas ramificagóes para fornecer,
século xiv, ilustra a variedade destas referencias. Ela dá aos filhos, ao embar- nos próprios veios do solo, um metal sem equivalente; uma matéria quase v iv a46:
carem em La Rochelle, na expedigáo de Famagouste para enfrentar os «infléis desde Téophraste que é, aliás, escutado que as pedras e os metáis tém um sexo
sarracenos», dois anéis, duas jóias encarregues de prevenir males físicos, mas
exactamente como os corpos vivos 47.
também de assegurar a vitória nos combates, e mesmo de proteger contra os As reliquias medievais, apesar da sua historia ser bem diferente, pertencem
«encantamentos» 43.
á mesma categoría de objectos. Vestigios orgánicos, reputadamente imputrescí­
Mais profundamente estas expectativas dissonantes revelam o estatuto ain­ veis, protegem as desagregagoes físicas e as suas consequéncias. A reliquia de
da pouco específico da doenga no século xm: enfermidades ou desesperos estao Sáo Thomas Becket, no século xn, impede as doengas, os acidentes, os sortilé-
misturados no mesmo processo genérico de defesa: os desejos naturais rara­ gios. Ela repele as chamas diante das quais um homem de Rochester pretende
mente sáo distinguidos das expectativas náo naturais, assim como as desordens té-la brandido. Ela transmite o poder do santo ao seu túmulo, aos objectos pró­
de causa física raramente sáo distinguidas das de causas ocultas. As doengas de- ximos e á água que corre da sepultura, o que toma esta «água de Sáo Thomas
tem várias origens entrecruzadas; do acídente orgánico ao «decreto» divino, da Becket» 48 táo preciosa como os fragmentos de solo que a rodeiam. O contacto
flaqueza das carnes ao feitigo humano. O mundo fica habitado por forgas ainda toma-se objecto primeiro de atengáo. Daí as associagoes entre a acgáo física dos
amalgamadas e plurais. É a essas forgas que se espera que a jóia responda. materiais puros e a acgáo mais sobrenatural dos objectos sagrados.
Náo que a doenga náo tenha sempre os seus próprios sinais; vários males fí­ O corpo dos santos, os seus despojos sobretudo, sáo transfigurados em ob­
sicos, já se disse, sáo distintos. Mas este recurso ás pedras revela o quanto esta jectos puros. Alguns destes objectos trazem uma matéria cristalina, como a «lá­
distingáo comporta zonas de sombra. A jóia tolera uma margem de imprecisáo grima do Senhor» 49 caída sobre Lázaro, conservada na abadia de Saint-Pierre-
na definigáo da doenga, afastando totalmente a inquietagáo a seu respeito. -les-Selincourt na diocese d ’Amiens, no fim do século xm. Outras trazem uma
Estes objectos raros, frequentemente dispendiosos, tém equivalentes mais pureza mais trabalhada, mais edificante, totalmente recomposta pelo sagrado.
modestos: dentes ou cornos inumeráveis, ossos usados ao pescogo, dissimula­ La Légende dorée multiplica os exemplos de gragas saídas dos cadáveres dos
dos ou visíveis sobre as vestes mais humildes. Monteux, ainda no século xvi, mártires, despojos sempre protectores: Santo André, entre outros, cujo túmulo
aconselha a proteger os «pequeños» suspendendo ao seu pescogo dentes de le- segrega um «óleo odorífero» 50, piedosamente recolhido; ou Sáo Marcos, cujo
bre e dentes de cao, dentes de lobo e dentes de golfinho 44. Ele evoca os mar- corpo transportado de Alexandria para Veneza em 468 exala um intenso perfu­
fins, os resquicios esmaltados, as concregoes polidas, todas as substáncias que me por toda a cidade 51.
dotam a pureza de uma particularidade suplementar. É que estes vestigios ós- O santo converte em pureza o que é geralmente entendido como podridáo.
seos náo sáo simples objectos inertes. Eles detém uma relagáo particular com o Ele transpoe todos os elementos de decomposigáo no seu oposto. Daí a tradigáo
vivo. Estáo em simultáneo «dentro» da vida e «além» déla. Vindos da vida, sáo de virtudes protectoras atribuidas á saliva de Sáo Francisco, ou á «sujidade» das
imputrescíveis, e mantém o inalterável no próprio corpo, transpondo as carnes suas máos e dos seus pés 52. A imortalidade celeste do personagem sagrado
para fora do tempo.
transflgurou o seu lado humano. O dejecto é metamorfoseado; tanto mais pre­
As pedras e também os metáis sáo na Idade Média, supostamente, proce­ cioso quanto encam a o exemplo de uma morte afastada e anulada.
dentes do orgánico. Náo sáo eles engendrados pela térra, corpo presumidamen­
te vivo? Os textos de Plínio, regularmente retomados, propagam a imagem das
veias e de fibras preciosas, atravessando a térra como os canais de um imenso 46 F. D. A dam s, The B irth a n d D evelopm ent o f the G eological Sciences, «T he golden
animal 45. É a percepgáo realista dos primeiros mineiros, seguindo os filóes mi- tree» L ondres, 1938, p. 286.
47 R. L enoble, E squisse d ’une histoire de l ’idée de nature, París, A lbín M ichel, 1968,
p. 298.
41 A lb ert le G rand, Vertus des herbes, plantes, anim aux e t p ierres (século X Ill); E. Santi-
48 R. C. F inucane, M iracles a n d P ilgrim s. P o p u la r B elieves in M ed ieva l E ngland, L on­
ni de R iols, Les p ierre s m agiques, París, 1905, p. 36.
dres, D ent, 1977, pp. 89-90.
L a C einture (sécu lo xm ), Le C h evalier nu, contes de l ’A llem a g n e m édiévale, París,
49 P. S aintyves, L es R eliques et les Im a g es légendaires, París, L affont, col. «B ouquins»,
Stock, 1988, p. 103.
1987 (1.a ed. 1912), p. 955.
43 Jean d ’A rras, M élusine (século xm ), P arís, Stock, 1979, p. 113.
50 J. de Vorágine, op. cit., p. 15.
44 H. de M onteux, C onservation de sa n té e t p rolongation de vie, livre f o r t utile et né-
51 Ibidem , p. 235; ver tam bém P. C am poresi, La C hair im passible, París, F lam m arion,
cessaire n o n se u lem en t a u x m édecins, m ais a u ssi á toute p erso n n e qui v eu lt a vo ir sa santé
1986 (1.a ed. italiana, 1983), p. 7.
corporelle sans laquelle cette vie e st sans fru it, París, 1572, p. 220.
52 P. de M am ix , P rem ier Tome du tableau des différences de la religión, L a R ochelle,
45 P line 1’A n d e n , H istoire naturelle de l ’o r et de l ’argent, París, Ed. Francesa, 1729, p. 1
1601, p. 402.

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23
OBEDECER AO COSMOS A FORCA DOS CONTACTOS

Os valores do sagrado sao, entáo, com toda a legitimidade, associados á pure­ Todavía, este tratamento do ouro náo está isento de perigo. Traz consigo al-
za das matérias: reliquias rodeadas de ouro ou de pedras preciosas, sacra] izagao gumas práticas confusas, a aproximagáo á alquimia e o manusear de misturas
dos minerais. O rito real dos anéis protectores, na Inglaterra do século xiv, multi­ ocultas. Provoca vários acidentes: Thomas de Bologne, astrólogo privado de
plica os exemplos de convergencia. Eduardo II oferece, na Sexta-Feira Santa, no Carlos VI, é perturbado em 1384 na sequéncia de um elixir de vida de efeitos
altar da catedral, uma determinada quantidade de ouro e de prata. A dádiva inclui desastrosos sobre a saúde de diversos príncipes. A arbitragem de Bemard de
as moedas julgadas mais nobres e mais perfeitas. O rei «resgata-as» logo de se­ Trévise, sábio incontestado e diligentemente consultado, náo conseguiu evitar o
guida com espécimes mais comuns depositados em troca. Sáo estas substancias afastamento de Thomas 62.
reencontradas, realzadas por uma dupla sacralizagáo, real e divina, que servem O licor de ouro na Idade Média náo se toma menos o penhor mais sólido de
para fabricar os anéis protectores, objectos «a dar por medicamento a diversas pureza. Em 1480 sáo ainda fundidos «noventa e seis escudos de ouro velho» 63
gentes»53 Á sua matéria atribui-se a combinagáo de todas as purezas e proteccoes. pelos boticários de Luís XI, para «certa beberragem chamada aurum potabile,
que lhe foi prescrita como medicamento» M. Beberragem rectificada após várias
destilagóes cuja fórmula se mantém secreta. O processo mobiliza tempo sufi­
Pó de pérola e licor de ouro ciente para que o seu inventor, o italiano Férault de Bonnel possa requerer e ob-
ter junto de si a presenga da sua mulher especialmente enviada de Piémont para
A acgáo dos metáis e minerais preciosos náo se limita, na Idade Média, ao o assistir. O metal solar detém um prestigio por muito tempo dominante, reu-
simples contacto físico. Eles sáo submetidos a tratamento e sáo trabalhados. De- nindo raridade e pureza.
pois de moídos, pulverizados, estes objectos entram na composigáo de licores ou
de pogoes de saúde. Multiplicam entáo os efeitos purificadores: como a hemati-
te que um lapidário do século x ii mistura com sumo de romá para prevenir 3. E S P E C IA R IA S E A R O M A T IZ A N T E S
«a boca sangrenta e espumosa» 54, ou o topázio que Hildegard de Bingen 55 deixa
a macerar no vinho para actuar sobre as «gangrenas no interior do corpo» ou a Ás substancias cuja pureza é sugerida pelo toque e pela visáo acrescentam-
safira que, ainda Hildegard mistura á saliva e aos vapores de vinho para «sanar -se, ao longo da Idade Média, aquelas cuja pureza é sugerida pelo sabor e pelo
o estomago» 56. Os elixires de vida podem ser feitos de jóias. Isabel da Baviera aroma. A qualidade dos objectos ou dos produtos protectores depende entáo das
recorre ás pedras em 1420, para prevenir um envelhecimento e um enfraqueci- sensagSes «bmtas» que provocam. O seu valor está imerso no sensível. As im-
mento já notorios: pérolas do Oriente minuciosamente moídas, reunidas com es­ pressóes imediatas sugerem e orientam.
meraldas, rubis de Alexandria e jacintos; um lote comprado explícitamente «para Trata-se de uma primeira «imagem» ñas práticas de protecgáo e uma pri­
a saúde da rainha» 57. Ingredientes por vezes encontrados em utilizadores mais meira lógica: uma confianga espontánea na mensagem dos sentidos. A pureza
modestos: Laplane assinala-os ñas oficinas de Sisteron, nos séculos x iii e xiv, protectora vé-se, toca-se e respira-se. Especiarías e perfumes impóem-se de
aos quais se acrescentam heteróclitas pulverizagoes de cornos5S. uma vez pelo agrado do seu sabor e do seu aroma. Será um bom paladar capaz
Mas o ingrediente por excelencia é o ouro, signo extremo de pureza. Na po- de enganar? Poderia um eflúvio agradável trair?
gáo de Isabel, ferveu previamente um «ducado de ouro» 59. Num tratado de co-
zinha do século xiv recomenda-se «pó de ouro» para «fortalecer» os convivas
Uma mistura de ouro, enfim, está na base do bálsamo onde Olivier vai buscar a As especiarías e a purificagáo
sua forga para enfrentar os sarracenos no romance de Fierabras no século xm.
Um bálsamo protector que o toma «sáo e salvo»; táo precioso que vale, com os O valor das especiarías conceme na Idade Média a uma pluralidade de ope-
seus barris, o ouro de «quarenta cidades» 61; táo eficaz que tom a Olivier inven- ragoes: náo é verdade que juntamente com o aroma exercem uma acgáo parti­
cível em combate, originando por si só a vitória. cular sobre as carnes? Náo é verdade que os seus efeitos se opdem ás decom-
posigoes? É o que sugerem todas as Passions de Notre Seigneur do teatro
53 C o ro a 9 áo de E duardo II c ita d a por M . B loch, L e s R o is thaunuiturges, París, G alli-
medieval: M adalena dirige-se aos «mercadores de especiarías» para «ungir o
m ard, 1983 (1.a ed. 1924), p. 160. corpo de Cristo» 65, afim de o proteger melhor; ela compra mirra, aloés ou gen-
54 L. Pannier, op. cit., p. 8 1. gibre; mistura-os antes de os usar como um bálsamo. Esta protecgáo da carne
55 H ildegarde de B ingen, op. cit., 1 . 1, p. 249.
56 Ibidem , p. 243. 62 W. G auzenm üller, L ’A lch im ie au M oyen Age, París, 1940, pp. 92-93.
57 A. C abanés, R em ed es d ’autrefois, París, 1905, p. 181. 63 «L es C om ptes du roi», citadas por P. C ham pion, Louis X I et ses physiciens, Lyon,
58 E. de L aplane, H istoire de Sisteron tirée des archives, D igne, 1848, t. II, p. 500. 1935, p. 56.
59 A . C abanés, op. cit., p. 182. 64 Idem.
60 B ibliothéque de l ’É cole des C hartes, P arís, 1860, 5.a série, 1 . 1, p. 209. 65 P assion de N otre S e igneur (versáo do século x v ), P. D orveaux, L ’É p icier du m ystére
61 F iera b ra s (século x i i i ), París, 1857, p. 46. de la P assion p u b lié p a r A chille Juvénal, P arís, 1911, p. 5.

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OBEDECER AO COSMOS A FORCA DOS CONTACTOS

influencia até a imagem da alimentagáo: absorver especiarías é desviar a podri­ digestivo e a mesma pompa para as diversas recepgoes descritas no Román de
dáo e afastar a presenga da morte na vida. Barthélemy l’Anglais di-lo muito Jeham de París. Jeham, que disfarga a sua condigáo real sob modos burgueses,
concretamente apesar dos seus termos exóticos: «a pimenta faz espirrar e purga denuncia-a pelos convites faustosos, festas táo evocadas que sugerem o estatuto
o cérebro das superfluidades fleumáticas e come a carne má e limpa os mem- real deste herói mascarado. As especiarías e o ouro desempenham ai um papel
bros espirituais das superfluidades rijas e viscosas» Comer alho tem o mes­ central: «Cedo traziam especiarías e confeitos diversos em grandes tagas de ouro
mo efeito: «o alho separa os humores gordos e expulsa-os» 67. A acgáo das es­ e pedraria; depois os vinhos, de vários modos, por isso o rei se maravilhava»76.
peciarías é dupla: areja os humores e evacua-os. Gengibre, canela ou coentros, o próprio vinho, sáo aqui consumidos «á parte»,
Outros condimentos, como o sal, pelo seu gosto, desempenham um papel se- bem depois da refeigáo. As especiarías consumidas para a digestáo, suscitaram
melhante: «júbilo e deleite da nossa vida» 68, género precioso que tem «a virtu- assim um ritual, pelo menos entre os privilegiados: manifestagáo de troca e oca-
de de destrogar e limpar os humores apodrecidos»69, o sal combina o efeito gus­ siáo de liberalidade; ligagáo entre a precaugáo higiénica e a sociabilidade.
tativo com a acgáo sobre as carnes de que as salgas de caga ou de peixe sáo os Um efeito suplementar deve, aliás, ser tido em conta: as especiarías e os vi­
exemplos mais vivos. A mercadoria é considerada táo preciosa que um decreto nhos agem sobre os «espíritos», o elemento mais subtil dos humores. Matéria
do inicio do século xm impóe a todos os navios que regressassem por Veneza a próxima do fogo, os espíritos comandam os gestos e os sentimentos, e desem­
necessidade de transportar uma certa quantidade de sal70. Este valor largamen­ penham o papel mais tarde atribuido ao influxo que passa através dos ñervos.
te assumido levou Carlos de Anjou em instituir, pela primeira vez, o monopo­ Eles percorrem os órgáos instantáneamente. Agem como um éter. As especiarías,
lio estatal do sal na Provenga da segunda metade do século xm 71. neste caso, trazem a sua substáncia volátil, os seus compostos quase inflamáveis,
O sal tem mesmo um efeito mais perturbador: o padre medieval utiliza-o partículas invisíveis e incandescentes: o agafráo «ilumina os espíritos e fá-los ex-
para que uma vez «o diabo posto em fuga, venha o espirito da sabedoria»72. Re­ pandirem-se por todos os membros» 77, o cravo-da-índia «fortalece a virtude es­
corre ao sal para proteger os umbrais das casas, para afastar o mal ñas ungoes piritual e ajuda a digestáo» 7S. O vinho é, igualmente, principio «espirituoso»,
mais diversas. Comer salgado deveria, aliás, ajudar a «cagar os demonios» 73, com os seus vapores e as suas fermentagoes. E ocasiáo de batalhas e de «dispu­
bem como a neutralizar os espíritos maléficos: unja expulsáo, sem dúvida, mais tas» ñas trovas, cada um tido por assegurar ser o mais «fortificante», prometen-
moralizada. Também o sal combate forgas combinadas. do proteger dos males sempre mais e melhor do que os outros. Os vinhos de Pa­
O gosto violento das especiarías tomava-as mais específicamente purgativas. rís sáo soberanos, visto que comparecem perante o rei, na trova do século xm:
Desde o século xm que existe a prática do consumo de especiarías depois das re-
feigoes para facilitar a digestáo: «depois das carnes, serve-se em casa dos ricos, Jamais doenga teria
para fazer a digestáo, anis, funcho e coentros, conservados em agúcar» 74. Práti­ até ao dia em que morria 79.
ca suficientemente reconhecida para que se criem novos instrumentos: as «cai-
xinhas de drageias», tagas ou caixas portadoras de especiarías, que circulam en­ Mais concretamente, as especiarías e o vinho podem agir como chamas. Eles
tre os convivas. Trata-se de um consumo de especiarías distinto do consumo da náo só perseguem os humores malignos como os queimam. Eles mobilizam
refeigáo -— um momento particular de estimulagáo. O acolhimento feito aos in­ uma imagem arcaica, já presente nos textos antigos: a do fogo conservador da
gleses na corte de Franga, descrito por Froissart em 1390, constituí uma versáo vida. A lamparina, o fomo, com o seu invisível braseiro interno, acrescem á ac­
solene: «Quando tinham jantado, voltaram ao quarto do rei onde lhes foi servi­ gáo de purificagáo. Le Secret des secrets, evocando no século xm as especiarías
do vinho e especiarías em grandes tagas de ouro e de prata» 75. O mesmo papel e o vinho como géneros de «longa vida», insiste sobre esta necessidade de con­
servar o fogo vital assimilado á «mecha embebida em óleo» 80.
“ B arthélem y l ’A nglais, op. cit., p. 170. Sobre o recurso m édico ás especiarías n a Ida-
d e M édia, ver, entre outros, B. L auriaux, «D e l ’usage des épices dans l ’alim entation m é-
diévale», M édiévales, 1983, n.° 2.
67 Ibidem , p. 153.
Uma ressonáncia mítica
68 Ib id em , p. 149.
69 Idem. O valor purgativo dos produtos do Levante é táo importante no século xm
70 P. M eyer, L ’H om m e et le Sel, reflexión su r l ’histoire hum aine et l ’évolution de la m é ­ que invade as referencias literarias e religiosas. Existe um mito sobre a origem
decine, P arís, Fayard, 1982, p. 70.
71 J.-F. Bergier, U ne histoire du sel, París, PU F, 1982, p. 52. 76 L e R om án de Jehan de P a ris (final do século xv). P oetes et R om anciers du M oyen
72 P. M eyer, op. cit., p. 70. A g e , Paris, G allim ard, L a Pléiade, 1952, p . 748.
73 Idem. 77 B enoít de N urcie, L a N e fd e santé (século xv), Paris, 1507.
74 Triom phe de la noble da m e (século x iv ) citado por C. H usson, É tu d e su r les épices, 78 B arthélem y l ’A nglais, op. cit., p . 162.
arom ates, sauces, condim ents e t assaisonnem ents. L e u r histoire, leur utilité, leur danger, 79 V incent d ’A ndéli, «B ataille des vins» (século xm), O euvres, París, 1881, p . 28.
París, 1883, p. 12. 80 L e Secret d e s secrets (século xm), in C. V. L anglois, L a Vie en F rance au M oyen A ge,
75 F roissart, op. cit., p. 804. Paris, 1925, t. II, p . 92.

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A FOR£A DOS CONTACTOS
OBEDECER AO COSMOS

destas esséncias estrangeiras; uma historia que mistura crenga e sensagñes físi­ nasce em cada quinhentos anos, transfigurada pelo fogo, é porque o animal con-
cas, prazer do paladar e ilusáo ao sagrado. Joinville evoca-a no seu relato das sumiu inicialmente canela, gengibre, noz-moscada ou funcho. Primeiro «carre-
cruzadas: estes géneros aromáticos vinham de um local paradisíaco. E uma ori- gou-se de excelentes especiarías preciosas e de diversas espécies» 8S. O próprio
gem sobrenatural o que explica os seus efeitos. É o Nilo, saído do «Paraíso ter­ fogo é ateado com sarmentos odoríferos. A Fénix regressa á vida pelos sabores
restre», que arrasta «gengibre, ruibarbo e canela» 81. Um rio prolífico, fomece- e odores.
dor de abundancia: «Diz-se que estas coisas vém do Paraíso terrestre; que é o É ao rejuvenescimento das serpentes que sáo, enfim, por vezes, associados
vento que abate as árvores que estáo no Paraíso, e também o vento que abate os aromas medievais. Perfumes e pedras preciosas podem habitar o corpo des­
ñas florestas a madeira seca; a madeira seca saída do rio é o que nos vendem os tes animais de muda, segundo o Livre du Monde de Vincent de Beauvais no sé-
mercadores neste país» 82. Mito retomado regularmente no século xm, com as culo xm: «Diz-se que há na Etiopia serpentes aladas. Há também serpentes que
suas variantes, as suas reformulagoes e as suas falsas precisoes. E o Eufrates comem pimenta branca, que tém sobre a cabega pedras preciosas.» 89 As víbo­
que se tom a rio fornecedor para Barthélemy l’Anglais, canal misterioso de ma- ras também apreciam os aromatizantes. Pausanias, desde a Antiguidade, des-
deiras preciosas: o aloé, por exemplo, «langado ao rio na India e na Babilonia; creve-as alimentando-se de bálsamo 90. Tal como o Líber monstrorum do sécu­
os que habitam perto do rio langam os seus restos e recolhem-nos para uso me­ lo x iii descreve as serpentes do vale de Iorda na India, alimentando-se de
dicinal» 83. pimenta branca e langando o brilho da esm eralda91. Neste caso toma-se decisi­
Pouco importa, de resto, o pormenor geográfico, o nome das águas ou o da va a ligagáo entre a muda animal, o rejuvenescimento, os aromatizantes e mes­
cidade. Pouco importa o vale longínquo. Fica esta associagáo obscura entre es­ mo os minerais; melhor se explica também o fascínio pelo veneno regenerador
peciarías e o «sagrado», esta repetida alusáo ao sobrenatural. Uma alusáo á qual da serpente: veneno, sem dúvida, mas de um ser cuja pele se renova com o tem­
a lenda do Graal dá ainda mais forga: logo que o santo vaso, introduzido na sala po e cujo corpo se protege com os aromas.
real, levado pelos assistentes é deposto sobre a mesa de Artur, a atracgáo que As especiarías, substancias regeneradoras, govemam os recursos orgánicos
determina a demanda é traduzida em termos físicos. Um enfeitigamento sen­ e a longevidade. Elas percorrem o imaginário medieval, para além dos critérios
sual, uma comogáo súbita do corpo, que só o efeito das especiarías parece ser da cozinha ou do agrado.
capaz de evocar. Uma «perfeigáo» de odor, de gosto e de sabor também, que só
elas parecem poder sugerir: «Ele entrou pela grande porta e desde que ai pene-
trou, a sala encheu-se de bons odores, como se todas as especiarías da térra ai A farga do gosto
fossem espalhadas» 84. Imagem retomada ainda para evocar a dependencia de
Galaad face ao escudo «encantado», na mesma récita, um dos mil sortilégios As especiarías produzem uma acgáo mais imediata ainda, mais velada, rara­
que a lenda arturiana multiplica: «Ele cheirava táo bem como se todas as espe­ mente explicitada pelos textos. Assim que os Cris de Paris, no século xm, pro-
ciarías do mundo tivessem sido espalhadas sobre si» 85. A mesma imagem, en­ poe «o páo de especiarías para o coragáo» 92; ou assim que Ogier, esgotado, é
fim, ñas últimas cenas da demanda: a hostia consumida pelos companheiros restabelecido pela pimenta acrescentada á sua carne, os seus Coelho com p i­
reencontrando e concentrando em si todas as «suavidades do mundo» 86. M es­ menta moída quefazem regressar o vigor ao coragáo 93, está claro que é supos-
mo o livro de Marco Polo, no final do século xm, acumulando testemunhos pre­ to as especiarías fortalecerem o corpo pelo choque que provocam. Elas operam
cisos sobre a cultura das especiarías, o seu comércio, os seus trajectos orientáis, pela sua forga impressiva. Elas abalam, agem menos pela sua pureza que pela
nem sempre desmente a tradigáo «fabulosa». Livre des Merveilles, ele mantém sua intensidade sensível, menos pelo seu agrado do que pela sua brutalidade.
o mistério sobre os seres e as coisas encontradas: o jardim de Mulect, por exem­ Uma comogáo dos sentidos, um efeito de perturbagáo insistente e durável. Uma
plo, na Pérsia, paradisíaco com os seus rios de mel e de água 87. forma de jogar com a sensagáo, mas convertendo a sua veeméncia em resisten­
Também reveladores sáo os mitos que também associam as especiarías ás cia e robustez. Seguramente uma das referencias mais antigas: a confianga obs­
imagens de rejuvenescimento e renascimento, jogando com metáforas de reco- cura dada ás comogóes ¡mediatas do sensível.
mego. Se a Fénix do Bestiaire Divin de Guillaume de Clerc de Normandie re- As especiarías sáo aqui directamente «fortalecedoras», agindo com a vio­
lencia do sabor e do gosto. Sáo consumidas em situagáo de esforgo e de fadiga.
81 Joinville, op. cit., p. 241.
Recursos de Quaresma como mostram as contas de Joáo, o Bom, prisioneiro em
82 Idem .
88 P ierre de B eauvais, B estiaire (século x i i i ) B estiaires du M oyen A ge, Paris, Stock,
83 B arthélém y l ’A nglais, op. cit., p. 152.
1980, p. 31.
84 L a Q uéte du G raal, op. cit., p. 63.
89 C itado p o r J.-P. A lbert, O deurs de sainteté, op. cit., p. 118, n.° 24.
85 Ibidem , p. 76.
90 Ibidem , p. 118.
86 Ibidem , p. 300.
87 M arco Polo, L e Livre des m erveilles (século xm ), in É. C artón, Voyageurs a nciens et 91 Idem .
92 C itado p o r C. H usson, op. cit., p. 5.
m o d e m e s, ou C hoix des relations de voy ages les p lu s intéressants, P aris, 1861, t. I,
93 L. G autier, La C hevalerie, Paris, 1884, p. 634.
p. 285.

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OBEDECER AO COSMOS A FORCA DOS CONTACTOS

Londres em meados do século xiv: a contabilidade das especiarías do rei reve­ é o clareya, recenseado por Stouff ñas contas do studium papal de Trets, no ini­
la o dobro ou o triplo da despesa mensal na compra de gengibre, canela, cravo- cio do século XIV l03: um líquido de festa, servindo também de pogáo médica.
da-índia, agúcar e coentros, durante a Quaresma de Fevereiro 94. Recurso tam­ E a beberragem servida na recepgáo solene de Flamenca, no romance do sécu­
bém para as grávidas, como mostram as contas dos irmáos Bonnis, lo xm: «A mesa foi abundantemente guarnecida de favos de mel e de vinhos
intermediários montalbaneses do comércio do Oriente na primeira metade do condimentados, de assados, de frutos e de caldas.» 104 É a beberragem das festi­
século xiv. Trata-se aqui de uma verdadeira mistura de esséncias diferentes, pi­ vidades amorosas, como a do cavaleiro que «fazia falar as mulheres», ocupado
cantes, apimentadas ou mesmo agucaradas: um cónego de Montauban envia em com uma condessa que o convida:
1345, a uma «senhora» da cidade, gengibre, pimenta, agafráo, cravo-da-índia,
depois da sua gravidez 95; ou Pierre Verdu, burgués da mesma cidade, enco­ Carnes frescas, de caga
mendando, em 1345, aos irmáos Bonnis, canela, pimenta, gengibre, cravo-da- E de vários pratos de peixe
-índia para a sua mulher grávida (que a senhora estaría a g u a d a ) Mistura ex­ E de vinhos novos e velhos
trema para avivar os sentidos. Um dos primeiros modelos da excitagáo criada E de picantes e claretes 105.
por qualquer droga.
O recurso a estes géneros do Oriente subentende por vezes uma intengáo se­ O hypocras é o outro nome deste vinho muito especial; com o seu patroní­
xual: as especiarías, pelo seu perfume, pelo sabor sempre mesclado de calor ar- mico médico (o «vinho de Hipócrates»), designando melhor ainda o misto de
dente, seriam quase todas «luxuriosas»: a pimenta, em particular, que «fortale­ remédio e de bebida de agrado. A sua composigáo, de gosto elaborado, está des­
ce», o anis que «provoca urina e irrita a luxúria» 97, ou a noz-moscada crita por Le Mesnagier de París: canela, gengibre, garingal e agúcar, «esmaga-
«grandemente adaptada á nossa voluptuosidade» 9S. Uma associagáo retomada dos e destemperados» num «lote do melhor vinho de Beaune» 106. Especiarías e
muito para além dos textos médicos: as trovas repetem a cena de padres ou de vinho de Borgonha, referencia suprema dos provadores parisienses. Villon so-
monges apaixonados, aprovisionando-se de «carne guisada e de páté de pimen­ nha ainda com o hypocras, no século X V , modelo que acumula todos os sabo­
ta» ", antes de se encontrarem com as amadas, intensificando assim os praze- res; bebida miragem, fora do alcance dos bebedores sem dinheiro:
res. Ou Yolaine, esperando impacientemente a partida de um marido incómodo
para enviar o seu companheiro «do coragáo» procurar «pimenta e cominhos» Beber hypocras de dia e de noite
que os dois amantes consomem apaixonadamente, antes «de se deitarem, de se Rir, folgar, mimar e beijar
beijarem e de se abragarem» 10°. Ou o jovem de Boccace, tentando seduzir Mon- E nu a nu para melhor aos corpos agradar 107.
na Belcolare, oferecendo-lhe regularmente ramos de alho fresco 101. O alho que
Platine julga, na mesma época, susceptível de empurrar os homens para os «ex- Náo que a «água-de-vida» seja ignorada, com a sua concentragáo pelo fogo,
cessos e entusiasmos delirantes» l02. a sua destilagáo, que fazem déla um líquido aparte: o alambique está presente
entre os utensilios do alquimista, a «água-ardente» está presente na farmaco-
peia. Jean de Roquetaille, monge obscuro de Aurillac, faz mesmo o panegírico
A bebida «extrema» maravilhado do licor, no inicio do século xiv, justificando esta expressáo
«água-de-vida», jurando que o uso regular desta quinta esséncia vivifica e reju-
O vinho misturado com especiarías, o «clarete», é mais estimulante ainda venesce os velhos. Ela até ressuscita os mortos, assegura o monge: «Quando
com o seu sabor picante e o seu mel intensificando as excitagoes gustativas; [o moribundo] a tiver no estómago, levantar-se-á imediatamente e falará.» 108
O bom monge sabe como «proteger da corrupgáo os pássaros ou pedagos de
94 «Journal de la dép en se du roi Jean le B on en A ngleterre» (1 de Julho de 1359- 8 de carne postos em tal água» l09, descreve pormenorizadamente o alambique, e pro-
Ju lh o de 1360), in L. D o u et d ’A rcq, C om ptes de l ’argenterie des m is de F rance au x iv e sié-
cle, Paris, 1851, p. 195 sq.
95 «L ivre des com ptes des fréres B onis, m archands m ontalbanais du x iv e siécle», A r ­ 103 L. Stouff, R avita illem en t et A lim entation en P rovence aux x iv e e t x v e siécles, Paris,
c h iv es historiques de la G ascogne, 1890, p. 140. M outon, 1970, p. 84.
96 Ib id em , p. 203. 1MLe R om án de F la m en ca (1250), in R. N elli e R. L avaud, Les Troubadours, B ruxelas,
97 B enoít de N urcie, op. cit. D esclée de B rouw er, 1960, p. 693.
98 B. P latine, L ’H onnéte Volupté (século x v ), Paris, 1871, p. 176. 105 «Le chevalier qui faisait p a rle r les fem m es...» (século x i i i ), in E. B arbazan,
99 C itado p o r E. B arbazan, F abliaux et C ontes des p o e te s fra n g a is des x u e, xn¡e, xrve et F abliaux..., op. cit., t. ni, p. 425.
x v e siécles, P aris, 1808 (1.a ed., 1756), t. iv, p. 182. Le M e sn a g ier de P a ris (século xiv), Paris, 1846, t. n, p. 273.
100 C itado p o r A. de M ontaiglon, R ecu eil général et com plet d e s fa b lia u x des x m e et x iv e 107 C itado p o r J. Favier, Franqois Villon, P aris, Fayard, 1982, p. 87.
siécles, Paris, 1872-1890, t. v, p. 222. 108 J. de R oquetaille, La Vertu et P ropriété de l ’eau ardente (século xiv), P aris, 1581, p.
127.
101 B occace, L e D écam éron (século xiv), Paris, 1878, t. ii, p. 217.
109 Ibidem , p. 17.
102 B. Platine, op. cit., p. 181.

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OBEDECER AO COSMOS A FORCA DOS CONTACTOS

póe a destilagáo de sangue humano para obter a «quinta-esséncia mais miracu- Urna valorizagao social
losa». Insiste sobre o poder único de uma água susceptível de «proteger o nos-
so corpo da putrefaccáo» "°. Mas esta água náo é divulgada nos séculos centráis No século xm as especiarías percorrem longos trajectos. Elas sáo em pri-
da Idade Média. Matéria secreta, objecto de uma transmutagáo de elementos, o meiro lugar objecto de transacgáo com a potencia sarracena. Mobilizam de se­
seu conhecimento provém da alquimia. Ela é «emanagáo da divindade» diz guida intermediarios múltiplos, atentas manipulagoes e gestóes a longo prazo:
Raymond Lulle num texto esotérico. Matéria também inquietante, objecto da barcos que conduzem estas «ervas», gráos, flores ou cascas, desde as Indias ou
oposigao de contrários, a sua composigáo combina categorías geralmente sepa­ da China até ao mar Vermelho, de seguida caravanas até Alexandria, barco ain­
radas, o frío e o calor, o seco e o húmido: «É água e, no entanto, queima, arre- da até Génova ou Veneza, e de dispersáo, enfim, pelos balcóes europeus. E o
fece e reaquece, resseca e lava.» 112 trajecto mais clássico, com os seus riscos e as suas inevitáveis obrigagóes de
A água-de-vida mantém-se um género confidencial, perturbador e pouco custo, mas também com os seus lucros: «A Sereníssima pratica nos entrepostos
usado. Enquanto que o hypocras, o vinho de especiarías, toma-se num género do Grande Canal um prego de venda quarenta vezes superior ao prego de com­
sedutor e líquido salvador. É a partir do seu modelo que sáo compostos os elec- pra na Asia.» 117 Á chegada, as especiarías sáo táo preciosas que sáo encerradas
tuários e remédios «revigorantes» vendidos na casa Bonnis, em Montauban, em em cofres; transportadas com cuidado, como as do rei René, levadas em muías
meados do século xiv. No caso das misturas, por vezes preparadas para os mais especialmente protegidas assim que o rei se desloca na Provenga 118. Muito sim-
modestos, amalgamavam-se alho, arruda e cebóla; produtos mais acessíveis aos plesmente, elas sáo inacessíveis para muitos.
humildes. Existe uma gradagáo social no seu consumo. Náo é de espantar que os 51
A teriaga é outro exemplo destas bebidas combinadas. A sua origem re­ «camponeses», «domésticos», ou «jomaleiros» recenseados entre 1342 e 1350
m onta aos textos antigos: acumulagáo de especiarías (várias dezenas de es- nos livros de contas da casa Bonnis, intermediária em Montauban deste comér-
pécies segundo as fórmulas) misturadas no vinho, ás quais se acrescenta ve­ cio do Oriente, sejam ai dispensados de qualquer aquisigáo de especiarías. Os
neno de víbora para lhes aum entar a forga. A bebida é tida como recreadora compradores «modestos» ficam-se pelos produtos mais comuns: favas, trigo,
do calor natural, consolari et recreare nativum calorem m. E a beberragem fermento e, por vezes, calgado, vestuário e tecidos. Os compradores qualifica-
que os cruzados usam, segundo Guillaume de Tyr no final do século xm. Eles dos como «mercadores» ou como «burgueses», em contrapartida, acedem aos
esperam déla uma protecgáo contra as mordeduras perigosas, e uma resisten­ produtos do Levante: um em cada tres ou menos, procuram-nos regularmente
cia maior á fadiga e ás doengas: «Tomavam teriaga e todas as coisas com as na casa Bonnis. Enquanto que os nobres, «donzéis», «bispos» e «senhores»
quais cuidassem restringir o veneno.» 114 Produto susceptível de ser consumi­ locáis entregam-se á compra constante e repetida de especiarías: gengibre, noz-
do a qualquer momento gragas a pequeños recipientes frequentemente trans­ -moscada e canela, figuram em grande número em cada uma das suas enco-
portados como relicários de que os inventários dos séculos xm e xiv deixam mendas "9.
vestigios: «Um teriacal ou relicário de cassedónia branca» ll5, evocado no Claro que esta selecgáo é feita mais pelo prego do que pela cultura. A libra
mobiliário de Carlos V; ou o objecto recenseado na abadía de Fécamp, em de agafráo (489 g) vale 64 céntimos no final do século xiv 12°, a libra da noz-
1362: «Uma caixa de prata onde está o teriacal do duque.» 116 Aparece sem­ -moscada 50 céntimos 121, qualquer deles mais do que o prego de uma vaca, ven­
pre assegurada a relagáo entre a intensidade gustativa e a eficácia tónica do dida por 42 céntimos no condado de Beaubec em 1396 122. Quanto á libra de pi­
produto. menta, náo excedendo uma dúzia de céntimos l23, corresponde ao prego de um
A teriaga é uma panaceia. Por causa do seu gosto, sem dúvida, da sua com- cameiro gordo, vendido por dez céntimos e cinco dinheiros, em Saint-Martin-
plexidade e também das suas combinagóes. Mas como ignorar o seu prego táo -la-Comeille, cerca do ano 1400 ,24. Um electuário «revigorante» vale igual­
alto que a toma ainda mais preciosa? mente dez céntimos em Montauban, cerca de 1380 125. As especiarías sáo um

117 P. D elaveau, L e s Épices, histoire, d escription et usages..., P aris, A lbin-M ichel, 1987,
p. 57.
118A. d ’A gnel, op. cit., t. m, p. 30.
110 Ibidem , p. 12. 119 «L ivre des com ptes des fréres B onis», op. cit.
111 C itado p o r J. D ujardin, R echerches rétrospectives su r l ’a rt de la distillation, Paris, 120 G. d ’A venel, H istoire économ ique de la p ropriété, des salaires et des denrées depuis
1900, p. 39. l ’an 1200 ju s q u ’á l ’an 1800, Paris, 1898, t. iv, p. 500.
112 S. C olnort-B odet, «E au-de-vie logique et “banqueroutiers du S aint-E sprit” », M élan- 121 Ibidem , t. IV, p . 503.
g e s en l ’h o n n e u r de C harles M orazé, Toulouse, Privat, 1979, p. 311. 122 C. de B eaurepaire, N otes e t D ocum ents c o n c e m a n t 1 ’état des cam pagnes de la hau-
113 «C hronique du x n e siécle» citado por J. H acard, La Thériaque au M o yen A ge, Paris, te N orm andie dans les d e m ie r s tem ps du M o yen A ge, P aris, 1865, p. 353.
1947, p. 54. 123 Ibidem , p. 385.
114 Idem . 124 Ibidem , p. 356.
113 J. L abarte, Inventaire du m o b ilie r de C harles V, 1879, n.° 2249, p. 145. 125 E. Forestié, A pothicaires, M éd ecin s et C hirurgiens m ontalbanais du xrve siécle, M on­
116 Inventaire de l ’abbaye de F écam p, 1362, in J. H acard, op. cit., p. 56. tauban, 1887, p. 5

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OBEDECER AO COSMOS

luxo cuja valorizagáo é táo grande quanto a raridade do produto. E o que mos-
tra a distribuicáo nos hospitais sempre limitada aos períodos da Quaresma:
compensagáo de uma alimentagáo julgada demasiado «débil» 126. O que tambera
se pode constatar em algumas narrativas que descrevem as refeigoes dos mais
humildes; aquela que um modesto padre oferece a dois notáveis, evocado por
Boccace é disso um exemplo. O anfitriáo deseja urna festa bem sucedida e de­
cide ornamentar a carne com um molho de especiarías. Mas como moe-las se
Ihe falta um almofariz de pedra? Só uma vizinha rica resolve esta dificulda e
emprestando-lhe o almofariz. Episodio inofensivo se a raridade do utensilio nao
revelasse a disparidade social do recurso ás especiarías C A PÍTU LO II
Toma-se necessário estabelecer nuances. Existem sucedáneos. No seculo xm
há pelo menos um produto ditado de qualidades comparáveis. E muito mais ba­ A ORDEM DO MUNDO
rato porque é local e caseiro: o alho, «a especiaría forte do povo», diz Platine.
Um estimulante «bom para os homens de trabalho» 128, o consumo dos campo-
neses. É difícil apreciar a sua presenga real. As contas pouco ou nada o assina- Muito mais complexo é o regime alimentar. Processo raro, elaborado pelo
lam. Em todo o caso, é certo o uso ñas embarcagóes e ñas galeras ibéricas no ti- pensamento dos sábios, esta vigilancia dos alimentos continua a ser, no sécu­
nal do século xm: distribuigáo aos marinheiros «de alhos e cebólas para os lo xm, um alvo pouco partilhado: quando muito por uma elite, ela própria mui­
proteger da corrupgáo do ar do mar e das águas infectas» 129. O produto e con­ to limitada. Mas a dieta confirma uma forma de pensamento: o papel atribuido
siderado um conservante. Confirmam-no alguns testemunhos dispersos de mé­ á pureza dos alimentos, em primeiro lugar, imposto pelos equilibrios dos hu­
dicos medievais: «Para caminhar come cebólas e alhos» l3°. Mas e necessário mores. Sublinha ainda mais uma ligagáo muito especial entre o corpo e o mun­
reafirmá-lo, o alho é em primeiro lugar a «teriaga dos camponeses» . do, uma solidariedade entre os estados dos órgáos e o andamento do céu: o
O espectro das especiarías segue o espectro social. O que confirma a sua im­ triunfo do pensamento analógico, a certeza na virtude das semelhangas, já pos­
portancia. Ricos ou pobres combinam, através délas, o acto preventivo e a ali- ta em prática pelo uso de jóias protectoras. Náo revela a virtude das pedras a
mentagáo. Eles sonham com o acesso directo á saúde através do consumo des­ existencia de correspondencias entre os objectos e o universo? Trata-se de um
tes produtos. exemplo apenas de entre outros: o próprio regime aplica, até á sofisticagáo o
principio dos contactos analógicos e preservadores. O corpo náo pode ser pro­
tegido sem se por sob tutela. Está submetido ás forgas invisíveis e subterráneas
do mundo.

1. O R E G IM E E O S A S T R O S

O primeiro conselho alimentar é aparentemente simples: limita-se a uma


afirmagáo da temperanga. A sobriedade mantém o corpo e assegura a pureza in­
terna. Tal é a resposta do colégio de Salemo escrita especialmente para Eduar­
do, o Confessor, no século XI, sobre a conduta saudável. Texto personalizado e
destinado a um nobre, o que mostra também a sua raridade:

Come pouco quando jantas


126 P. D orveaux, Inventaire d e la ph a rm a cie de l ’hopital S aint-N icolas de M e tz, Paris, Náo esteja muito tempo á mesa... 1
1894, p. 3.
127 B occace, op. cit., p. 280. A «reserva» é o fundamento do regime, antes mesmo da concordancia com
128B. Platine, op. cit., p. 181. . . ,
'» J -J H ém ardinquer, «Sur les galéres de T oscane au xvi« siecle», P o u r une histoire de as forgas do mundo.
l ’a lim entation, sob a d i r e c t o de J.-J. H ém ardinquer, Paris, C ahier des A n n a les, C olín,
1970, p. 8 8 . , . ,Q
130 A ldebrandin de Sienne, L e R égim e du corps (seculo x i ii ), P a n s, 1911, p. m . Le R ég im e de S á le m e , op. cit., p. 3.
131 A. de V illeneuve, R égim e..., op. cit.
35
34
OBEDECER AO COSMOS A ORDEM DO MUNDO

«Moderagáo» e escolha alimentar de registada por Am aud de Villeneuve, no século xm, adapta-se bem uma be-
bedeira mensal, supostamente indutora das evacuagóes. Os vómitos que ela pro­
Idéntica reserva com Amaud de Villeneuve que comenta no século x i i i o Ré­ voca, sobre os quais insiste Amaud, preservariam «de cair em doenga crónica» \
gime de Sáleme-. «O homem deve ser sobrio ao beber e ao comer, porque beber Outros vómitos se acrescentam, ás vezes provocados pelo vinho da manhá. M o­
e comer excessivamente toma o homem pesado e adormecido.» 2 Consequén- deragáo ainda embrutecida para a sensibilidade dos nossos dias, mas que di­
cias forzosamente comentadas nos conselhos do trovador provencal por Bon- funde o que quer que seja de normas e preceitos.
durand: «Sei por boa razao que comer demasiado faz embranquecer os cábelos Acrescenta-se, enfim, como sugere Ser Lapo, uma atengáo á escolha e á
e torna-os grisalhos antes do tempo e faz aumentar o peso.» 3 A indi cacao reú­ qualidade dos alimentos e uma descriminagáo totalmente fundada na analogia.
ne as primeiras regras de conduta cortés, da qual as cortes senhoriais sao as ini­ Os alimentos «fortalecedores» devem combinar pureza e ligeireza, acumular os
ciadoras, por volta do século xm: a importancia da prudencia e a necessidade de espíritos, ajudando á cocgáo orgánica. O «bom suco» deve triunfar, o das fer-
temperanga; com esta condenagáo da «maneira como alguns agarram na terrina vuras de que os tratados de saúde multiplicam os exemplos. Os «sucos» extraí­
e engorgitam o conteúdo como se tivessem perdido a razao»4. Principios de eti­ dos de ervas aromatizantes, ou de carnes frescas, sáo os mais frequentes, o
queta e de saúde, estas regras preparam o comportamento «nobre», o da elite a «bom suco de capáo com agúcar» 8, por exemplo, dado para «fortalecer» a jo-
quem se dirigem, valorizando o autodominio. Nada mais do que o gradual po- vem grávida em Les Quinze Joies du Mariage, no século xv.
limento da cultura do cavaleiro, a intervengáo sobre os seus gestos, os seus mo­ A carne de aves sobrepóe-se a qualquer outro alimento sólido: ligeira e vi­
dos, a introdugáo de um comportamento de corte. gorosa, uma vez que enfrenta o ar e o voo, ela é tenra também, rosada, fácil de
Práticas ainda pouco partilhadas no século xm a náo ser por alguns prínci­ partir e de moer, pouco carregada de humidades e de viscosidades. Recomen­
pes e clérigos. No entanto, estas prevencóes propagam-se imperceptivelmente, dada com insistencia nos tratados alimentares, especificamente reservada ás
no final da Idade Média; lentamente reconhecidas por outros, além dos sábios grávidas do Hospital parisiense do século xiv, a carne de capoeira opóe-se di­
e dos nobres. As cartas do médico Ser Lapo ao seu amigo Francesco di Marco, rectamente ás humidades ou ás espessuras de outras carnes, á do javali, por
banqueiro e armador toscano, por volta de 1380, mostram a sua progressiva res- exemplo, desaconselhada pelos «excrementos e impurezas que gera» 9. Trata-
sonancia na elite. A linguagem de Ser Lapo é familiar e viva. Os seus conselhos -se, mais uma vez, do receio dos dejectos, das humidades excessivas, sobrecar-
sáo numerosos, pragmáticos, atentos a várias práticas: do exercício á alimenta­ regando as carnes até precipitar as corrupgóes. Sáo os animais oriundos das bru­
gáo, do sono ás purgas. Sáo concretos e variam os exemplos: «Procura um blo- mas e dos nevoeiros, vindos de zonas molhadas, saturadas de água, que trazem
co de madeira e uma serra e usa-a um bocado, ou, ainda, sobe várias vezes as o risco de mais rápida decomposigáo. Demasiado pesados, demasiado húmidos,
tuas escadas a correr. Se náo os teus alimentos náo recebem a ajuda da nature- náo poderiam, evidentemente, proteger a vida. A relagáo com a podridáo esta-
za e tal como as brasas se apagam se náo as avivarmos, o alimento congela no belece a divisáo entre alimento saudável e alimento insano.
estómago por falta de exercício... O que quer dizer [também] que precisas de E impossível, todavía, reconhecer nesta escolha de géneros as únicas suges-
comer alimentos de fácil digestáo e que ajudem as fungoes dos teus intestinos. tóes sobre o regime de vida no século xm. É que a aposta na alimentagáo é mais
E seria excelente para ti tomares um quarto de hora antes das tuas refeigoes, meio vasta. Está ligada á imagem do mundo: a conservagáo da saúde pressupoe uma
copo de um bom vinho tinto, nem demasiado seco, nem demasiado doce.»5Evo­ afinidade muito especial entre o estado do corpo e dos astros, entre o curso dos
cando o «fogo» necessário, a leveza dos géneros e a importancia da sua excre- órgáos e o curso das estagoes, dos ventos, do clima e das águas.
gáo, Ser Lapo transmite e confirma a tradigáo. Ele próprio pretende aplicar a
moderagáo que aconselha a Francesco: «Muitas vezes, á noite, janto sobria­
mente e nada faz melhor á saúde do que um punhado de azeitonas: os médicos As referencias cósmicas
dir-te-áo.» 6
Moderagáo relativa, claro, da qual é necessário medir a distáncia com crité- A representagáo medieval dos «elementos» cósmicos é particular: ela pro-
rios mais próximos dos nossos. A atitude proposta náo passa ainda de um bre­ move uma semelhanga indefinidamente repetida; o próprio corpo náo é mais
ve momento no calmo polir dos comportamentos e dos costumes. A sobrieda- que o reflexo de uma ordem mais ampia. Simples espelho, repercute em cada
uma das suas partes as que, mais extensas mas idénticas, compóem o conjunto
2 A. de V illeneuve, R égim e..., op. cit. do universo: «O mundo enrolava-se sobre si mesmo: a térra repetindo o céu, os
3 C itado p o r E. B ondurand, «U ne diététique p ro v e n ía le » (século xm ), R evue du M idi, rostos vendo-se ñas estrelas e a erva envolvendo nos seus caules os segredos
S etem bro de 1895, p. 198.
4 «C ontenance de table» (século xm ) in N . E lias, La C ivilisation des m oeurs, Paris, Cal-
m ann-L évy, 1973 (1.a ed. alem a, 1939), p. 122. 7 A. de V illeneuve, Régim e..., op. cit.
5 C itado p o r I. O rigo, Le M a rch a n d de Prato, la vie d ’un b a n q u ier toscan au X iv e siécle, 8 Les Q uinze Joies du m ariage (século x iv ). P oetes et R o m a n ciers du M o yen A ge, P a­
Paris, A lbin M ichel, 1989 (1.a ed. inglesa, 1957), p. 301. ris, G allim ard, L a Pléiade, 1952, p. 607.
6 Ibidem , p. 278. 9 B arthélem y l’A nglais, op. cit., p. 177.

36 37
OBEDECER AO COSMOS A ORDEM DO MUNDO

que servem ao homem.» 10 O corpo é atravessado por «correspondencias» e re- quente e húmido, planeta radioso como a Primavera toma os sujeitos alegres e
produz idénticamente a natureza. sanguíneos, enquanto que Marte, seco «quente e batalhador» l5, é um planeta
O regime deve obedecer a esta visao abstracta: ele supoe uma busca de se- «mau» que conduz á cólera e ás batalhas. Outra consequéncia: é preciso «rece-
melhangas entre as qualidades dos géneros e as do corpo, entre a humidade dos ber a carne conforme a natureza do tempo» l6, e ainda, claro, segundo o perfil
climas e a dos órgáos, entre a sucessao das estagoes e a dos gestos, a dos sabo­ dos planetas cuja influéncia é determinante sobre os temperamentos: «por isto
res ou das habitagoes escolhidas: visao táo complexa que é, sem dúvida, pouco é tido que há ervas mais quentes ou mais frias do que outras» l7; esta «erva»
aplicada, mesmo que revele um principio decisivo do saber e do pensamento. muda os seus efeitos segundo as gentes, os climas e o céu. Lógica aparente­
A física medieval multiplica a este respeito as relacóes especulativas, acu­ mente perfeita, pois cada elemento do cosmos, incluindo os alimentos, perten-
mulando analogias, sejam elas explícitas ou secretas. Ela constitui um sistema, ce a uma ou a outra das quatro polaridades qualitativas. Lógica difícil, também,
um entrecruzar de concordáncias, cujo centro é constituido pelas qualidades pois para um dado momento, para uma mesma pessoa, as qualidades do tem­
evocadas na física antiga: o frió, o calor, o seco e o húmido. O mundo, como o peramento, as da idade, da estagáo ou dos astros, podem ser todas diferentes ou
corpo reuniría quatro polaridades, combinando-as duas a duas: frio-seco, frio- contraditórias. Podem opor-se todas até á confusáo. O mesmo é dizer que muí-
-húmido, quente-seco, quente-húmido. Cada parte do universo, cada um dos ob­ tas destas proposigóes ficam mais pela teoría do que realmente pela prática;
jectos do espago e do tempo privilegiarían! uma destas quatro polaridades. Tudo mais formáis do que realmente concretas. Sáo um modo de pensar.
pertenceria a um destes quatro estados possíveis. Daí uma imensa possibilida- Vários indicadores revelam, todavía, aplicagóes bem reais: a preferencia dos
de de correspondencias: uma ressonáncia universalizada, canalizada por «qua- dias para sangrar, por exemplo, favorece o das conjungóes quentes e húmidas
tros»: as quatros estagoes, os quatro temperamentos, os quatro humores do cor­ que desenvolvem os humores; enquanto que as qualidades quentes e secas, pelo
po, as quatro idades da vida, os quatro grupos de planetas e os quatro grupos do contrário, as canículas do Veráo esgotando os humores, determinam os dias
Zodíaco. Daí, enfim, os cruzamentos que conjugam cada um dos quatro polos 11: maus (dies malí), aqueles em que toda a perda de sangue deve ser evitada.
certas estagoes, certos temperamentos, certos alimentos ou climas, sáo com- A preocupagáo é suficientemente banal para figurar ñas primeiras regulamenta-
postos de qualidades idénticas, harmonizando juntos, as mesmas «vantagens» góes dos barbeiros: os práticos sáo obligados a comprar o «almanaque feito para
para o corpo ou as mesmas «desvantagens». O sistema é feito de convergéncias o ano» 18 ao primeiro criado de quarto do rei; documento que recenseia regular­
ou de divergéncias qualitativas: a Primavera, por exemplo, estagáo de substán- mente os días favoráveis e os días desfavoráveis.
cia húmida e quente exige os mesmos alimentos ou comportamentos da pri­ As normas das comunidades religiosas privilegiam também as estagoes, os
meira idade da vida, os mesmos do temperamento sanguíneo, todos de subs­ elementos mais directamente sensíveis do cosmos. Os preceitos de saúde, evo­
tancia similar, húmidos e quentes. A conduta, neste caso, é fundada em cados pelo Codex Guta-Cintram no século xn para regulamentar o quotidiano
compensagoes: evitar, durante esta estagáo, o crescimento dos humores que das abadias alemás, sáo exclusivamente sazonais. Indicados mes após mes, li-
abundam, «comer carnes ligeiras, purgar e tratar para os humores tirar» As mitam-se a algumas frases breves e concisas, todas elas fundadas na analogía
consequéncias sáo diferentes assim que a Primavera é comparada á velhice ou climática: em Janeiro «bebe em jejum, diariamente, meia libra de vinho. Bebe
ao temperamento fleumático, de qualidade fria e húmida: neste caso, ao contra­ gengibre, ruibarbo, toma o electuário e a pogáo contra a sufocagáo; náo te sub-
rio, os atributos da Primavera devem ser privilegiados, compensando o engor­ metas á sangria por causa do frió excessivo porque o corpo alimenta-se do ca­
dar da velhice ou o frió da fleuma, os dois «frios e húmidos» semelhantes ao In­ lor do sangue» 19. Proposta evidentemente diferente é a de Agosto quando o calor
vern ó 13. Compreende-se que o objectivo seja manter um equilibrio, uma e a seca se encontram no centro das preocupagóes: «Náo te submetas á sangria;
repartigáo equitativa dos humores: evitar uma perturbagáo que correría o risco náo tomes laxantes; náo comas couves nem malvas, porque alimentam a bilis
de causar uma combinagáo perigosa com o seu cortejo de podridáo e de cor- negra; náo bebas hidromel, nem cidra, nem cerveja se náo forem recentes; bebe
rupgáo. O processo que equilibra contribuí para purificar. absinto e poejo.» 20 E a alteragáo ou a fermentagáo provocada pelo calor que
Os planetas concorrem ainda para esta ressonáncia de qualidades, prescre- aqui suscita o perigo. Mas mesmo nestes últimos casos, a conservagáo da vida
vendo a sua influencia conveniente, segundo os signos impostos á nascenga ou
segundo os momentos do ano 14: Saturno, por exemplo, frió e húmido, toma os
15 B. L atini, L e Livre du Trésor (século XIII). Jeu x e t S apience d u M oyen A g e , Paris, G a l­
sujeitos sombríos e melancólicos, preocupados e lentos; Júpiter, pelo contrario,
lim ard, L a Pléiade, 1951, p. 748.
16 B arthélem y l ’A nglais, op. cit., p. 60.
10 M . Foucault, Les M o ts et les Choses, une archéologie des sciences hum aines, Paris,
17 B. L atini, op. cit., p. 734.
G allim ard, 1966, p. 32. 18 R egulam ento dos barbeiros de 1497 citado p o rT . C harm asson, «L’établissem ent d ’un
11 Isidore de Séville, Traite de la N ature (século vil), in M .-J. Im bault-H uart, op. cit., p. 56.
alm anach m édical p o u r l ’année 1437», C ongrés natio n a l des sociétés savantes, Besangon,
12 A ldebrandin de Sienne, R égim e..., op cit., p. 63. 1974, p. 218.
13 Idem . 19 C odex G uta-Sintram (século xn), in M . P arisse, Les N onnes au M oyen A ge, Paris,
14 M . S antucci, «L’hom m e et les planétes dans les planches de l ’hom m e an atom ique et
C hristine B onneton, 1983, p. 162.
de l ’hom m e astrologique», S énéfiance, 1984, n.° 13. 20 Ibidem , p. 164.

38 39
A ORDEM DO MUNDO
OBEDECER AO COSMOS
camponeses dispunham do mínimo de tres a cinco hectares considerados ne-
supóe a fusao com a dinámica do mundo. A intervengo sobre o corpo harmo- cessários para alimentar uma familia 27. Desastres suficientemente graves para
niza-se com o movimento cósmico. atingirem, por vezes, os nobres e os poderosos, cujo desafogo os deveria pou-
Aquilo a que se dá importancia tem mais a ver com as mudangas do tempo par e que a crónica mostra, todavía, serem directamente afectados: «A fom e es-
do que com a laboriosa observagáo dos signos do Zodíaco. Náo que a astrolo- tendeu os seus destrogos e pode recear-se o desaparecimento de quase todo o
gia seia claramente condenada. A Igreja, apesar dos seus textos, náo chega a género humano... A própria voz humana tomava-se estreita, semelhante a pe­
proibir a leitura dos astros mesmo ñas comunidades. Tomás de Aquino a sid u a ­ queños gritos de pássaros m oribundos.»28É a imagem das nove pragas do Egip­
mente confessa a sua influencia; enquanto que Dante, no século xm, sonha ter, to, retomada com insistencia nos saltérios do século xm 29; a imagem da doen­
ao percorrer o purgatorio, «os olhos voltados para o vermelho do Zodiaco» , ga perturbava regularmente o conjunto de uma comunidade até a despojar dos
decifrando numa disposigáo do Escorpiáo, o signo de um «castigo celeste» seus aprovisionamentos.
Nada mais que um exemplo da cristianizagáo da astrologia. Comezainas e patuscadas tomam-se, de vez, miragens, sonhos que mobilizam
a espera e que sustentam a esperanga. Como a presenga repetida dos países de Co-
cagne nos contos medievais, com os seus cenários cheios de carnes cozinhadas e
A virtude das patuscadas animais no espeto, táo grande quantidade de provisóes acumuladas que cobrem
as colinas e os caminhos, táo ordenadas que se encostam aos muros e solos. Uma
Existe um paradoxo nos séculos centráis da Idade Média: é que no momen­ paisagem que se toma ela própria alimento: «As casas sáo compostas de barbos,
to em que se difunde esta cultura da temperanga desenvolve-se uma outra cul­ sáveis e salmoes, os tectos tém caibros de estuijóes, vigas de salsichas e os telha-
tura que busca a solidez do corpo no acumular de alimentos. O contrario da so- dos sáo de toucinho, de entrecosto salgado e fumado e de apetitosas carnes gre-
briedade: comer sempre avantajadamente para estar mais protegido. E o modelo lhadas.» 30 O alimento agambarca o espago, preenchendo-o até ao horizonte.
de Ysengrin no romance do século xu, curado pela ingestáo ilimitada üe vitua- A própria Igreja medieval nem sempre se pode dissociar de tais imagens.
lhas, uma quantidade prodigiosa de caga aconselhada pelo seu médico - . Mo­ Hugues de Saint-Victor, na sua Institutions pour les novices, no século xil, náo
delo marcante porque funda uma tensáo duradoura muito para alem da ldade censura a avidez, mas apenas o alimento «demasiado precioso e delicioso» 31 e
Média: a forga bruta vinda do peso do corpo contra a forga mais subtil vinda da a delicadeza excessiva. Hugues parece ignorar o glutáo. Também no século xiv
frugalidade. As duas referencias sao opostas. Por vezes combinam-se. Vanas quando Gerson recenseia os pecados no seu Sermón pour la conception de la
razoes, para já, explicam esta atracgáo medieval pela alimentagáo generosa. Vierge, alonga-se sobre o orgulho, a descrenga, a preguiga e a inveja, acusando-
O alimento prolífico é um sínal de poder, com os seus índices físicos e as -os de tomarem a juventude e a beleza «malcheirosas e enrugadas» 32, mas náo
suas valorizagoes sociais. O «letrado» ñas trovas do século xm, sem surpresa, cita a excesso de nutrigáo nem mesmo a gulodice. Tanto silencio toma-se indi­
«bem grande e gordo, comendo bastante» 24, jovern pujante, vigoroso, certodo cador de comportamento: uma maneira de revelar o julgamento equívoco da
seu ascendente, «muito apreciado», em todo o caso, pela «burguesía de Or- Igreja medieval sobre a avidez alimentar. Este vicio, para Sáo Tomás de Aqui­
léans» que soube seduzir. Ser gordo é um sínal de energia corporal. O que fun­ no, continua a ser pecado venial, mesmo se o autor da Somme Théologique veja
damenta a admiragáo por Moniage Renoart, despachando numa refeigáo cinco na «vida sobria» e no «permanecer ao ar puro» os primeiros preceitos que «fa-
patés e cinco capóes com duas medidas de vinho 25; ou por Guy de Bourgogne. vorecem a longevidade» 33.
homem «bem ampio», assustando os sarracenos com a sua robustez física, co­ Esta cultura da alimentagáo massiva tem os seus desenvolvimentos próprios.
mendo e bebendo mais do que quatro cavaleiros -6. Ela pode marcar a fronteira entre os afortunados e os outros, entre os nobres e
A fom e também está no horizonte destas imagens fabulosas. Ela sublinha ate
ao extremo o valor do alimento; é causada pela devastagáo que. entre o seculo
XI e o século x iii agita uma Europa em que a falta de comunicagóes priva de pra- 27 R. Fossier, «Le tem p s de la faim », Les M a lh eu rs du tem ps. H istoire des flé a u x e t des
calam ités en F rance, sob a d i r e c t o de J. D elu m eau e Y. L equin, Paris, L arousse, 1987,
ticas efectivas de armazenamento e onde a cultura extensiva retira qualquer pos-
p. 135.
sibilidade efectiva de excedentes. Desastres regulares acentuados por abates 28 R aoul G laber, m onge de C luny no século xi, citado p o r J. Le G off, La C ivilisation de
abusivos pela fraqueza de rendimentos e pela falta de térras: Robert Fossier l ’O ccident m édiéval, Paris, A rthaud, 1967, pp. 298-299.
calcula nos registos de térras do final do século xm que só um tergo dos lares 29 L e P sa u tie r de S a in t L ouis (século xm ), B N , m s. latim , 10525, fo. 31.
30 Le P ays de C ocagne (século x iv ), BN m s fra n já is , 7218, fo. 167.
21 D ante A lighieri, La D ivine C om édie (século xiv), O euvres com pletes, Paris, G alli- 31 H ugues de Saint-V ictor, Institution p o u r les no vices (século xu ), citado p o r J.-L. Flan-
m ard. L a Pléiade, 1965, p. 1141, v. 64. drin, «L a distinction et le goüt», in H istoire de la vie p riv ée , sob a direc§ao de P. A ries e G.
22 Ibidem , p. 1699. D uby, Paris, Éd. du Seuil, 1986, t. m , D e la R en a issa n ce a u x Lum iéres, p. 290.
23 Le R om án de R en a rt (século xm ), Paris, Stock, 1979, p. 13. 2 J. G erson, «Serm ón p our la conception de la V ierge» (século x iv ), S ix S enrions iné-
24 «La B ourgeoise d'O rléans» (século xm ). Contes et Fabliaux, P an s, Stock, 1981, p. 105. dits de G erson, Paris, 1946, p. 418.
25 M oniage R enart, B N , m s. francés, 368, fo. 246. 33 Saint T hom as d 'A q u in , O puscules (século xm ), Paris, 1856-1857, t. vn, p. 527.
26 G uy de B ourgogne, citado por L. G autier, op. cit., ed. de 1895, p. 632.
41
40
OBEDECER AO COSMOS A ORDEM DO MUNDO

os que o náo sáo. Aprofunda-se ao longo da Idade Média. Os soldado do duque consolida, por outro. Duas sensibilidades culturáis também: um regime de sá-
de Brabant, cavaleiros da pequeña nobreza, transitando entre Meuse e Rhin, no bios, letrados e clérigos opóe-se a um regime de cavaleiros ou mesmo de ho­
final do século xiv, tem uma ragáo de tres quilos de páo e quilo e meio de car­ mens do povo, mais directamente seduzidos pela necessidade e pelo peso do
ne por homem e por d ia 34. Quantidade que nada tem em comum com a das ra- corpo. É a oposigáo sugerida na tapegaria de Bayeux entre a mesa do bispo, cujo
goes dos servos frequentemente limitados ao páo, ao azeite e ao sal. As refei­ único prato se limita a um peixe, e a mesa dos nobres, cujos pratos sáo táo va­
goes evocadas por Olivier de La Marche e as evocadas por Le Févre, na corte riados como coloridos 39.
de Borgonha, cerca de 1450, promovem, segundo eles, os pratos a arquitecturas Densidade e purificagáo sáo as duas maiores referencias das práticas me­
fabulosas. A quantidade passa a ser ostentagáo; a massa alimentar toma-se ob­ dievais de conservagáo do corpo. Mas, por querernos pormenorizá-las de mais,
jecto de espectáculo: sofisticada encenagáo da opulencia. Sáo as descrigóes de estas referencias tomam-se elas próprias imprecisas, por se basearem em ana-
«barcos á vela» empurrados diante dos convidados do duque de Borgonha, logias ¡mediatas, em sensagóes e em gestos. As suas possíveis diferengas esba-
enormes carros sobrecarregados de homens e de peixes; sáo os patés suficien­ tem-se, por exemplo, no recurso a certos géneros que combinam forga e purifi­
temente volumosos para encerrar figurantes e decoragóes, soltando máscaras e cagáo: o sangue é disso um exemplo, consumido, ás vezes, como equivalente
animais; ou as carnes guardadas em alguns «gigantes ferozes», dirigidos tam­ do sangue dos «guerreiros muito audaciosos» 40, líquido denso «sólido» e puro
bém para os centros dos saloes para serem ai esvaziados 35. Estes festins do sé- em simultáneo. As mórcelas, «as bolachas de sangue» 41, ávidamente ingeridas
culo xv já náo sáo só simples ocasióes de bulício alimentar, como na La Mane- ñas novelas florentinas de Sachetti, no século xiv, evocam esta síntese de ma-
line, o romance de Philippe de Beaumanoir, do século xm, em que «se mataram térias compactas e refinadas. As especiarías, a pimenta, com a sua forga de cho­
bois, porcos e ursos, entáo em grande número, que nem o saberia dizer» 36: sáo que laxativo, tém também um duplo valor, como as medalhas do Zodíaco: aos
ocasióes de contemplagáo estética: jogos teatrais e exploragóes cénicas da acu- signos astrológicos que conservam o equilibrio e a pureza dos humores conju-
mulagáo. gam-se os signos astrológicos que conservam, pelo contrário, o peso e a densi­
dade das carnes. É o sucesso, no século xm, das «medalhas do Leáo», animal
que é suposto «ultrapassar todos os outros em forga e coragem» 42, figura cós­
Os dois polos de defesa: densidade e apuramento mica dominante, no inventário das medalhas astrológicas de Jean Blaise, médi­
co do rei de Nápoles, em 1337 43.
Confrontam-se, assim, duas sensibilidades sobre o alimento medieval: a sá- Densidade e purificagáo tém as suas zonas opacas, pouco explícitas, mistu­
bia, rara ainda, da ponderagáo quotidiana e a mais habitual e mais espontánea rando largamente ainda o registo moral e o registo sensível, os dados visíveis e
do consumo sem reserva. Por vezes antagonizam médicos e monges hospita- os dados obscuros. O uso intensivo dos objectos protectores sublinha quanto os
lários nos hospitais: «Muitas vezes os monges passam das medidas; váo de dois polos defensivos náo iniciam ainda um trabalho do corpo sobre si próprio.
cama em cama perguntando a cada um o que deseja comer e beber... Náo ten- Estes supóem um organismo passivo, conservado por contactos ou aditivos há­
des mais direito de lhes dar alimentos contrarios á sua saúde que deixar uma bilmente dispostos. No entanto, é sobre estes dois polos, densidade e purifica­
espada nua entre as máos de um louco.» 37 Estas duas sensibilidades opoem gáo, que se váo multiplicar as novas referencias de saúde na Franga antiga, mui­
também o banqueiro toscano Francesco di Marco ao seu médico logo que o ho­ to antes que seja perceptível qualquer efeito «real» sobre a duragáo da vida, ou
m em do dinheiro recomenda, no fim do século xiv, a ingestáo repetida de nu­ mesmo simplesmente sobre o evitar de certas doengas.
merosos capóes e galinholas a um servigal doente. Carnes consideradas ligei- A gravidade das crises epidémicas da Idade Média, a recomposigáo das pro-
ras, sem dúvida, nobres mesmo, mas cuja quantidade tem uma importancia teegóes que elas exigem, váo desenhar com mais precisáo as exigencias de pu-
primordial: «Enviei-te ontem tres casais de galinholas e tem o cuidado de as nficagáo, sem que a doenga seja mais conhecida ou melhor dominada.
comer porque náo poderás absorver nada melhor e mais sáo e continuarei a en­
viar-tas.» 38
Entre dieta e fartote desenvolvem-se dois registos imaginários diferentes: a
retengáo que fortalece e purifica, por um lado, e a abundáncia que fortifica e
«L évéque O dón p résid an t le festín», Tapisserie dite de la reine M athilde (século xi),
cidade de B ayeux.
34 C. G aier, «L’a pprovisionnem ent et le rég im e alim entaire des troupes dans le duché de
C. de Pisan, Livre d e s fa its e t g e stes et bon n es m o eu rs du roi C harles V (século xiv),
L im bourg et les terres d ’outre-M euse», Le M oyen A ge, 1968, n.° 3-4, pp. 557-559. P an s, 1941, p. 1 9 3 .
35 J. L e F évre, C hronique (século x v ), P aris, 1881, pp. 293-294. A u b anquet du p o rc p e n d u (século XIV), Tables florentines, écrire e t m a n g er avec
36 P. de B eaum anoir, L a M a nekine (século xm ), Paris, Stock, 1980, p. 8 6 . f r a n c o Sachetti, Paris, Stock, 1984, p. 70.
37 J. de Vitry, Serm ons (século x m ), citado p o r M. M ollat, «L a vie quotidienne dans les
( ■ e ^ D elm as, «M édailles astrologiques e t talism aniques dans le M idi de la F rance
h ó p ita u x m édiévaux», in H istoire des hdpitaux en F ranee, sob a d ire c fá o de J. Im bert, Tou-
XI?<oXIVe s*®cle s)». in A c te s du 9 6 e congrés des S o ciétés savantes, Toulouse, 1971, t. 1,
louse, Privat, 1982, p. 121. P- 448, n.° 46.
38 C itado p o r I. O rigo, op. cit., p. 281. 43 Ibidem , p. 450.

42 43
OBEDECER AO COSMOS
A ORDEM DO MUNDO

2. FLA G ELO S E CO RPO S ABERTOS _ A fuga é outra defesa: ¡mediata e massiva; é o que aconselha a Sorbonne,
oficialmente consultada por Filipe VI, fora do alcance parisiense, em Agosto de
A peste que acerca a Europa em 1347 suscita precaugóes particulares, um 1348; retoma-se uma afírmagáo de Rhazis:
conjunto de gestos tanto mais numerosos quanto a doenga seja ao mesmo tem­
po identificada e inexplicada: um mal claramente assinalado, reconhecível e, to­ Estas tres pequeñas palavras afastam a peste
davía, misterioso. A experiencia náo tem relagáo com a da lepra: a peste é bru­ Depressa, longe e tongamente, onde quer que se esteja,
tal, a sua difusáo é incontrolável, intensificada no próprio coragáo das cidades. Partir rápidamente, ir para longe e sempre a direito 48.
A síndrome pestilenta, na sua versáo pneumónica, provoca a morte em menos
de dois dias. A sua propagagáo é inexorável, alarmante, sobrevindo ás vezes Aínda, a fuga é o apelo urgente que Petrarca langa a Boccace, durante a pes­
após uma simples troca de palavras com o doente. te de Pádua, no mesmo ano 49. A impotencia é táo grande que o aviso da Sor­
A primeira vaga, provocada em Marselha, em Novembro de 1347, pela pre­ bonne, em 1348, náo encara qualquer acgáo colectiva, qualquer organizagáo
senga de tres galeras genovesas «infectadas», impóe á comunidade uma situa- particular da comunidade. O colégio dos sábios sublinha sobretudo a aposta de
gáo até entáo desconhecida: uma recessáo demográfica sem precedentes, uma alguns gestos individuáis, retomando os conselhos dos tratados de saúde da Ida-
mortalidade abismal. Uma rúa inteira de Marselha, cedo apelidada de Rifle-Ra- de Média: proscrigáo dos alimentos «espessos», carregados de humores malig­
fle, perde em duas semanas a totalidade dos seus habitantes44. Seguem-se cenas nos, recomendagáo das especiarías e dos perfumes, evocagáo das purgas e das
cem vezes descritas: gestos de fuga, de terror e de resignagáo, todos eles acele- sangrías 50.
ram frequentemente a proliferagáo do mal. Avignon é atingida em Janeiro de A atengáo ao ar, todavía, ganha importáncia desde a peste de 1348, para se
1348; onze mil corpos sáo sepultados num mes e meio em novos cemitérios, tomar lentamente dominante. Náo flui o ar «com o seu veneno e malicia, pene­
abertos precipitadamente desde Fevereiro 45. A própria Curia abandona a cida­ trante e cheio de vicio?» 51. Náo traz a peste «pós e cinzas»? 51. Náo é ela feita
de, enquanto que Chauliac, médico dos papas de Avignon, confessa aflito a sua de poeiras pegonhentas, de «nuvens» sublevadas por planetas em dissonáncia?
confusáo: «A peste foi inútil e vergonhosa para os médicos, a ponto de náo ou- Um ar provocado por infelizes conjungóes astrais, agindo como um veneno:
sarem visitarem os doentes com medo de serem infectados e quando os visita- «É preciso evitar cuidadosamente o seu ar que nos poderia inocular um tal ve­
vam náo os curavam nem ganhavam nada.» 46 neno e levá-lo de homem a homem, de casa em casa, de aldeia em aldeia e de
Todavía, é desta impotencia que nascem os novos processos de preservagáo cidade em cidade.» 53
de si, uma maneira mais complexa de proteger o corpo, acentuando a referen­ A imagem recorda a do leproso, matando através do seu hálito, aterrorizan­
cia das purificagóes: involucros orgánicos que se eré mais frágeis, mais poro­ do á sua passagem. Mas ao mesmo tempo, ela desloca-se, englobando as coi­
sos, provocam uma nova vigiláncia, meios de vida mais inquietantes também, sas, os locáis e as povoagóes. É o «estado» do ar que dá inicio tanto ás práticas
considerados mais perigosos ou nauseabundos, que originam novos distancia- colectivas como ás individuáis.
mentos. O medo fixa-se em alguns lugares reputadamente infectos, os curráis, in-
terditos pelas ordenagóes do preboste de Paris, em 1348 e 1350, os talhos, as
carcagas mal enterradas e todas as zonas onde as carnes se decompóem ao ar
O veneno do ar livre, sob o olhar dos transeúntes. Sáo os «matadouros» em particular que se
tomam objecto de novas atengóes. Uma desconfianga surda conduz á transfe­
A piedade colectiva parece ser, inicialmente, a «melhor» resposta: as Tres rencia dos matadouros para fora de Paris; uma rejeigáo exigida pelas lettres
Belles Heures du duc de Berry descrevem minuciosamente as procissóes dos patentes de Carlos VI, em 1416, e a evocagáo explícita das suas «emanagóes»
mascarados flagelados. Estas inspiram as oragóes feitas aos quatro lados do perigosas: «No que toca á matanga dos animais, nós ordenámos e ordenamos,
horizonte. Evocam dois rituais: o do transporte de um dragáo, representando o
diabo propagador da peste, queimado á saída da procissáo; e o do transporte
48 C itado p o r J. N ohl, L a M o rt noire, chronique d e la peste, Paris, Pavot 1986 (1 a ed
da cruz reposta á cabega do cortejo, alguns meses mais tarde, para melhor mar­ inglesa, 1926). p. 96 ' '
car o cessar do m a l47. O rito traduz quanto o horror é «suportado», e feito de ” A. P hilippe, H istoire de la p e ste noire, 1346-1350, Paris, 1859, p. 49.
um desastre «enviado» por qualquer potencia obscura. Implorar é a defesa ini­ 50 C onsultation de la fa c u lté de m édecine de P aris, L. A . J. M ichon, D ocum ents inédits
cial. ae la grande p e ste de 1348, Paris, 1860.
1 O. de L a H aye, P oém e su r la grande p e ste de 1348, Lyon, 1888, p. 43. O texto de O.
e L a H aye, escrito p ouco depois da G rande Peste, é um a interpretacao em verso da infor-
44 J.-N . B iraben, «L’hygiéne, la m aladie...», op. cit.. p. 437. m afa o da Sorbonne.
45 J.-N. B iraben «Les tem ps de 1’A pocalypse», u L es M alheurs du temps, op. cit., p. 183. 52 Ibidem , p. 19.
46 G. de C hauliac, L a G rande C hirurgie (século xiv), Paris, 1890, p. 171. 224° - F u ,ginatis, C ontra p estilestiu m concilium (1348), citado por A. Philippe, op. cit..
47 Tres Belles Heures du duc de B erry (cerca de 1410), Paris, Draeger, 1975, fo. 74 e 74 v.

44
OBEDECER AO COSMOS A ORDEM DO MUNDO

afim de que o ar da nossa dita cidade nao seja doravante infectado nem cor­ mais aptos a apanhar a infec^áo.» 59 O médico florentino cita entre as pessoas
rompido por tais matanzas e esfolas e também para que a água do rio Sena nao «mais fácilmente atingidas», aquelas cuja pele e cujos órgáos sao invadidos
seja corrompida e infectada pelo sangue e outras imundícies dos ditos animais pela humidade, aquelas cujo excesso de humores favoreceu as aberturas e aque­
que se atiravam á dita ribeira do Sena, que todas as matan?as e esfolas far-se- las cuja fadiga, transpirado ou calor, alargaram os poros. Vários comporta-
-ao da nossa dita cidade de Paris.» 54 O novo local é o das Tulherias, apetre- mentos se revelam entáo bruscamente ameagadores: o exercício, «aquecendo e
chado com algumas «fossas» p a ra recolher o sangue, junto ao Louvre, para abrindo os poros do corpo» 60; o calor «abrindo de mais os canais do corpo» 61;
além do circuito de Carlos V. E a primeira vez que se opera em Paris, com um os banhos ou o abandono «demasiado frequente ao prazer sensual, debilitando
fim sanitário, a d eslo cad o de profissoes; o Grande Matadouro de Chátelet a virtude natural» 62. Em cada caso, o ar pestilento poderia infiltrar os órgáos e
foi, aliás, no mesmo ano, ele próprio desmantelado e disseminado, instalado «infectar todos os humores» 63. O corpo seria oferecido ao mal como um objec-
em quatro locáis diferentes, afim «de suprimir e evitar tudo o que possa ser to poroso, contagiado e penetrado por inumeráveis passagens e aberturas.
causa e ocasiao de corrupgao ou infec?ao do ar e de prejuízo para o corpo hu­ Hábitos largamente instalados sao transformados: as estufas ou banhos, por
mano» 55. exemplo, progressivamente interditas no tempo da peste, desaparecem da pai-
Falta ainda medir estas p ertu rb are s, sublinhar como estáo consolidadas no sagem urbana, entre os sáculos xv e xvi. O seu encerramento repetido a cada
seu tempo. É claro que é impossível ver ai os primordios do saneamento mo­ epidemia, o receio de uma presenta sempre latente do mal, aumentam a sua
derno. Só o cheiro e a podridáo visível inquietam e nao o rio, receptáculo uni­ desactivagao: «Estufas e banhos, pe£o-vos, fugi deles ou ai morrereis.» 64 Das
versal do refugo. Em Orléans, por volta de 1360, é mesmo no Loire que «de- quatro estufas de Dijon do século xiv, a última é destruida em meados do sé-
vem» ser mergulhadas as carnes supostamente infectadas: «Ninguém pode culo xvi 65. As de Beauvais, de Angers e de Sens, desaparecem também no
vender carne de vaca que tenha fío ou tenha muco. Poderáo os jurados apreen- século x v i66. Da trintena de banhos parisienses, enfim, recenseados no século xrv,
der tal carne e lan§á-la ao rio.» 56 É ainda no Loire que sao despejadas, por me­ um ínfimo número está ainda presente no Livre commode des adresses de Pa­
dida de seguran?a, as imundícies e as miudezas, os despojos e os dejectos de ris de 1692 67: um desaparecimento sobre o qual diversos testemunhos conver-
animais, vindos dos matadouros: os cortadores «limparáo as rúas que habitam... gem. O de Erasmo, por exemplo, no inicio do século xvi: «Há vinte e cinco
e levaráo os restos para o rio em cada sábado» 57. A m anutengo dos locáis de anos nao havia nada mais em voga do que os banhos públicos; hoje em dia já
venda da carne e a sua organizado espacial traduzem o balbuciante comeco nao os há, a nova peste ensinou-nos a passar sem eles.» 68 Nao que as práticas
de um trabalho de sensibilizado. O talho de praca de Horloge, em Avignon, por higiénicas tenham sido desordenadas. A maior parte destes banhos nao eram ba­
exemplo, nao tem no século xv, um recinto fechado; de noite serve de abrigo nhos de limpeza: na Idade Média a estufa é um local de prazer (mesmo sendo
aos mendigos e a quem passa. Várias queixas reclamam o seu encerramento. também um local de p u rificado ao provocar a transpirado), toca mais ao ero­
Em 1489 foi colocada urna cancela de madeira até se partir e desaparecer, o que tismo do que á conservado do corpo. A estufa é um espado de encontro com
deixa o acesso livre, á noite, durante vários anos. É preciso descobrir dois ho- vista ao deboche.
mens mortos pela peste sobre os balcoes em 1527, para que o recinto seja defi­ O risco alarga-se ainda com esta imagem de um corpo mais vulnerável. O ar
nitivamente encerrado 58. que penetra a pele torna-se uma ameaga maior. Suscita outras aten^oes: o peri-
go do ar frió, por exemplo, aumenta e é susceptível de penetrar o corpo até ge-
lar o co rad o . Daí as d escrid es de mortos por «arrefecimento» na caga, na péla,
Os corpos porosos no jogo, segundo as crónicas do século xv: Jacques de Bourbon, morto a 22 de
Maio de 1468, em Bruges, «por refrigerado devido ao jogo da p éla» 69; Chamy
A aterid o ao ar, no entanto, acentua-se durante o século xiv. Instala-se uma
inquieta 5áo surda, directamente ligada á peste. A atitude de cada um a respeito 59 J. Soldi, A n tid o ta rio p e r il tem po di p e ste (século x v ), F lo re n ja , 1630, p. 19.
do seu próprio corpo impoe uma referencia suplementar. Jacopo Soldi exprime 60 Ibidem , p. 20.
o novo medo com o máximo de clareza num Antidotaire contre le temps de pes­ 61 Ibidem , p. 18.
te, no inicio do século xv: «Os corpos cujos poros se mantém abertos sao os 62 T. Le Forestier, L e R égim e contre épidém ie et pestilence (século xv ), Paris, s/d, p. 102.
63 M . Ficin, A n tid o te des m aladies p e stile n te s (século x v ), Paris, 1595, p. 16.
54 Lettres p a ten te s d e C harles VI, aoüt 1416, in R. de L espinasse, L es M étiers e t Cor- 64 G. B unel, O euvre exced en te e t á chacun d é sira n t soi de p este préserver..., Paris, 1836
( l . a ed „ 1513), p. 17.
p o ra tio n s, Paris, 1886, p. 276.
65 J. G am ier, L es É tu ves dijonnaises, D ijon, 1867, p. 30.
55 Ibidem , p. 275.
56 O rdonnance p o u r les bouchers (cerca de 1360), art. vil, in C. C uissard, É tude su r le “ P. G oubert, B eauvais e t le B eauvaisis de 1600 á 1730, Paris, SE V P E N , 1960, t. 1,
P- 232; e F. L ebrun, La M o rt en A n jo u au x v m e siécle, Paris, M outon, 1971, p. 266.
com m erce e t l ’industrie á O rléans a v a n t 1789, O rléans, 1897, pp. 269-270.
67 N. de B légny, L ivre com m ode des adresses d e P aris, 1878 (1.a ed., 1692), p. 184.
57 Ibidem , art. x x v , p. 271.
58 A. P leindoux, Les M aitres de victuailles e t le C om m erce d e la b oucherie en A vignon 68 D. É rasm e, Les H ótelleries, trad., Paris, 1872 (1.a ed., 1526), p. 18.
J J. de W avrin, A nciennes Chroniques d ’A ngleterre (século xv), Paris, 1859, t. n, p. 375.
so u s la d o m ination des P apes, A vignon, 1924, p. 58.

46 47
OBEDECER AO COSMOS

que, «por ter apanhado frió [depois da caga], cai num excesso de febre» 70; daí
ainda o preceito insistente cerca de 1480: «Nao repousar em tempo ventoso.
Porque a destilagáo do ar furaria e penetraría os poros e entraría até as partes in­
teriores do corpo.» 71 Inquietagoes marginais, em relagáo as que sao mobiliza-
das pelas epidemias, sem grande peso, mas que mostram como se desviaram as
representagoes e se perfilam novas defesas: um empenho face as protecgoes
«individuáis» e mecánicas entre outras.

E depois tal a rfa z transmutar


Os humores do corpo e apodrecer
Os que devem os membros alim entar11. C A PÍTU LO III

O REGIME CONTRA O COSMOS

A peste acentuou a imagem de urna porosidade das fronteiras orgánicas, de


um corpo mais permeável. Ela permitiu de vez imaginar melhor a lenta elabo­
r a d o de urna barreira entre o corpo e o seu meio. A «pureza» que deve circular
nos órgaos nao é mais do que apenas a dos alimentos transformados em humo­
res, mas ainda a dos efluvios, das águas e dos ventos.
A brutal apar igao da sífilis, no final do sáculo xv, acrescenta novos medos.
Os síntomas deste mal venéreo desviam ainda mais o olhar. Uma dúvida surge:
poder-se-á culpar o ar, uma vez que a transmissao parece ser directa, lembran-
do o papel do mero contacto íntimo? A contaminagáo sifilítica permite um ínti­
mo deslizar para a compreensáo do fenómeno do contágio: a atengao dirige-se
para a troca sujeito a sujeito.

1. O A R O U O C O N T Á G IO ?

As testemunhas dos primeiros síntomas da sífilis, ñas armadas francesas e


espanholas, na batalha de Fomoue, em 1495, tém o sentimento de assistir a uma
doenga nova, a uma doenga terrível: «Esta doenga ultrapassa em horror a lepra,
geralmente incurável, ou a elefantíase, e a vida corre perigo» Podridóes ¿nu­
meras, «uma sama ignóbil e negra... nada mais repugnante» 2, uma morte lenta
e inexorável. No final do século xv multiplicam-se as interrogagoes sobre as
circunstáncias exactas desta afectagáo bruscamente violenta que os soldados de
Carlos VIII levam para Franga após as suas aventuras italianas. As explicagóes,
em boa verdade, sao as habituais: planetas errantes, contactos «impuros». Sao
sempre acusadas as decomposig5es e os apodrecimentos de darem inicio ao
processo. O que muda é a ideia de transmissao. Esta difusáo rápidamente é re-
conhecida como sendo de natureza sexual: «Pelo contacto venéreo, uma nova
doenga, ou pelo menos desconhecida dos médicos que nos precederam, a doen-

70 G . C hastelain, O euvres, B ruxelas, 1863-1866, t. III, Chrotiiques, 1454-1458, p. 442. 1 A. B enedicti, Veronensis p h y sici historiae corporis hum ani..., 1497. C itado p o r
71 B enoít de N urcie, op. cit. C. Q uétel, Le M a l de N aples, Paris, Seghers, 1986, p. 11.
72 O. de L a H aye, op. cit., p. 43. 2 J. G runbeck, D e la m entalugre ou m al fra n g a is, Paris, 1884 (1.a ed., 1496), p. 35.

48 49
OBEDECER AO COSMOS O REGIME CONTRA O COSMOS

ga francesa, introduziu-se do Ocidente até nós» 3, afirma Benedetti, em 1497, completa o quadro explicativo. Ele avanga com uma precisáo decisiva: a trans­
sugerindo a origem «americana» da doenga, transportada pelos soldados espa- missáo da doenga efectuar-se-ia pelo contacto com uma parte do corpo «priva­
nhóis regressados das «ilhas». Esta identificagáo do contacto íntimo sugere, im- da de epiderme» 11.
perceptivelmente, novas protecgoes. É acrescentada a imagem de uma propagagáo em cadeia: contaminagáo pro-
gressiva de grupos humanos a partir de um primeiro corpo tocado. Como na re­
cita proposta por Brassavole de Ferrare, de uma «bela e honesta senhora», apre-
O primeiro principio contagioso sentando ulceragoes ñas partes genitais: «Ela contamina primeiro um homem,
depois dois, depois tres, depois cem, porque era uma prostituta e também uma
A doenga é mesmo de «esséncia venérea» \ diz Bethencourt em 1527, que mulher muito bela.» 12 Ou o episodio, também ele revelador, evocado por May-
é o primeiro a propor esta palavra «venérea» para a definir: infecgáo causada nart: uma «famosa cortesá de Valence», infectada por um «cavaleiro atacado de
por «uniáo sexual com uma mulher manchada» 5. Nao que a «companhia car­ elefantíase», difundindo por sua vez a nova doenga ,3.
nal» seja a única a ter em conta. Paré, como outros, acrescenta-lhe a transmis- A estratégia de exclusáo do doente impóe-se entáo mais do que nunca: acan-
sáo pelo «fólego infectado»7de um individuo infectado com varióla ou pelo to­ tonamento e retirada dos doentes venéreos, evitando misturas. Menos para tra­
que das suas úlceras. Paré descreve o contágio de uma familia inteira após os tar, aliás, do que para «manter a cidade, com a ajuda de Deus, em boa saúde»
amores impuros de uma ama de leite, cujo hálito gangrena primeiro o lactente, 14. O que acentúa a procura de novos lugares para enfermos regularmente reto­
depois, através dele, a máe, o pai e ainda duas criangas que o pai «muitas vezes mada pelo Parlamento de Paris: Saint-Eustache, Lourcynes, Saint-Germain, em
deitava com ele» 8. Mas é a explicagáo sexual que domina no meio sábio: 1497, as Petites-Maisons, em 1557, construidos no espago da leprosaria Saint-
«doenga do deboche» 9, assegura Paracelso, «doenga secreta», também, dizem -Germain, e a Trinité, em 1586. Os doentes venéreos seguem o caminho dos an-
já alguns grupos de charlatoes. tigos excluidos, ocupando o lugar deixado pelos leprosos, cujo mal está em re-
A afirmagáo permite um primeiro desvio das explicagoes epidémicas: a in­ cessáo. Mas também, mais do que nunca, a doenga ilustra a dificuldade dos
fecgáo já náo estaría ligada a qualquer estado da natureza, a qualquer sujidade desterras: as ameagas de penas ou mesmo de enforcamento náo podem afastar
espalhada em tomo das vítimas, mas antes a uma «semente» alojada no trans- a circulagáo dos doentes venéreos. A doenga está tanto mais presente quanto os
missor, a um veneno directamente comunicado pelos sexos: um principio invi- seus síntomas sejam por algum tempo invisíveis. Os doentes «conversando pela
sível mas que faz da doenga uma comunicagáo sujeito a sujeito. Dito de outra cidade com pessoas sás» 15 pululam apesar das interdigóes na Paris do final do
maneira: já náo a epidemia, mas sim o contágio, já náo a disseminagáo descen­ século xv. Alguns conseguem alcangar o hospital, onde o recenseamento pro­
trada, mas sim a transmissáo localizada. Fracastor, médico de Pádua, é o pri­ vocado pelo preboste dos mercadores desconta uma centena em 1508. Outros
meiro a evocar, 1530, estes «germes» (seminaria), passando de corpo a corpo reintroduzem o mal a partir dos arrabaldes onde se refugiaram. Até ao inevitá-
para alastrar a doenga. E o primeiro a sugerir uma visáo parasitária: «pequeñas vel desuso da ordenagáo de exclusáo confessado pelo Parlamento de Paris em
coisas vivas e invisíveis» 10transmitidas de individuo a individuo. Há ainda uma meados do século xvi: «Desde esta paragem, a doenga tinha-se tomado táo co-
tentativa esotérica: Fracastor evoca uma vinganga divina. Ele descreve a aven­ mum que já náo era cumplida.» 16
tura ficticia de um pastor profanador, Syphile, banido pelos deuses, pelos seus Em compensagáo sáo sugeridas algumas medidas prometidas para breve,
actos de desrespeito para com eles, pagando com a sua doenga vergonhosa os para o controlo dos doentes: a de situar o seu estabelecimento, por exemplo, ou
seus sacrilégios e as suas impiedades. Fracastor recorre ao mito, mas também de circunscrever o seu itinerário. Ruy Diaz de Islas recomenda em 1539 que to­
dá inicio á imagem de agentes orgánicos propagadores da doenga: elementos das as raparigas públicas sejam dotadas de um certificado atestando a sua saú­
materiais, fermentos, viajando entre as vítimas. Femel, alguns anos mais tarde, de. Diaz propoe mesmo a extensáo do seu uso ás raparigas dos albergues, pro-
movendo o certificado a condigáo de contratagáo 17. É claro que a sugestáo náo
3 C itado p o r C. Q uétel, op. cit., p. 11.
4 J. de B ethencourt, N ouveau C arém e d e p én iten c e, purgatoire d ’expiation, Paris, 1871 " I. F em el, op. cit., p. 38.
(1.a ed., 1527), p. 34.
12 A . M. B rassavole de F errare, E xam en om nium loch... de m orbo gallico, V eneza, 1553,
5 J. F em el, Traite de la p a rfa ite cure de m aladie vénérienne, Paris, 1633 (1.a ed., 1579), citado p o r C. Q uétel, op. cit., p. 87.
p. 37.
13 P. M aynart de V érone, Tractato de m orbe gallico, 1516, citado p o r L. T huasne, Le M al
6 T. de Héry, L a M éthode curative d e la m aladie vénérienne, Paris, 1552, p. 14. fra n g a is á l ’époque de 1 ’expédition d e C harles V III en Italie, Paris, 1886, p. 114.
7 A . Paré, T raité de la grosse vérolle (1575), O euvres com pletes, P aris, M algaigne Éd., 14 A. P éricaud, «N otice sur A ndré d ’Espinay, cardinal, archevéque de L yon et B or-
1840-1841, t. ii, p. 528.
deaux», R evue du L yonnais, 1854, V III.
8 Idem .
15 O rdonnance du P arlem ent de P a ris sur la grosse vérolle, 6 de M argo 1497, in A. C hé-
9 T. Paracelse, L a G rande Chirurgie, Paris, 1593 (1.a ed. latina 1573), p. 167. reau, L es O rdonnances d e p e ste, Paris, 1873, p. 92.
10 G . Fracastor, L es 3 L ivres sur la contagion, les m aladies contagieuses e t le u r traite- 16 A rré t du P a rlem en t de P aris, 1510, BN , m s. francés, F F 21 629.
m ent, Paris, 1893 (1.a ed. latina, 1550), pp. 5 e 6 . 17 C itado por C. Q uétel, op. cit., p. 8 6 .

50
51
OBEDECER AO COSMOS O REGIME CONTRA O COSMOS

tem efeito imediato. Pelo menos confirma a tentativa de aumentar a segregagáo A escolha do ar
das prostitutas, no século xvi, até á interdigáo dos bordéis pelos estados de Or-
léans em 1560: «Proibimos todos os bordéis... que queremos castigar extraor­ Pressentido, suspeitado, mas náo situado verdadeiramente, o contágio, no
dinariamente sem dissimulagao ou conveniencia dos juízes.» 18 O medo da sífi­ século xvi, mantém-se pouco explicado. A corrupgáo do ar transmite-o sempre
lis converge com as primeiras medidas contra reformistas de moralizagáo na explicagáo das pestes. O espago envolvente é o primeiro a ser designado.
pública e de relegacáo das populagoes «duvidosas». Mas a proposta de Diaz de­ É um «vapor malcheiroso» 22 o que explica, para Ambroise Paré, a peste de
signa sobretudo novas condutas possíveis face aos contagiados, como a de pro­ Agenois em 1552: a que surgiu dos corpos mergulhados num pogo do castelo
curar dominar os seus movimentos. A sífilis teria favorecido uma concepgáo de Péne, no comego das guerras da Religiáo. Neste caso preciso, o tema da pre­
mais «individualizante» dos ataques: concentrar o olhar sobre o doente porta­ servagáo de si mesmo mantém genérico um conjunto de práticas idénticas de
dor, tentar localizar a doenga, designar e ficar os sujeitos duvidosos. uma doenga a outra: manter a pureza dos humores, comer «boas carnes», jun­
O processo de empurrar a doenga para os confins geográficos ou o de de­ car o cháo de ervas frescas 23, usar «sobre a regiáo do coragáo uma saqueta fei-
signar o seu portador sao as únicas defesas claramente empreendidas. Muito ta de rosas, violetas e folhas de mirra» 24 para melhor se proteger do mau ar. Da
mais difícil se revela a elaboragáo de uma defesa específicamente individual: a mesma forma, o «vestuário da peste», preconizado pelos médicos do século xvi,
preservagáo de si próprio no acto sexual, a protecgáo no contacto sao módica­ é pensado para preservar do ar: um vasto involucro para cobrir, encarregue de
mente evocadas. A doenga toca uma esfera de comportamento que parece ain­ obturar toda a saída do corpo, como o «marroquino do Levante», casaco de cou­
da depender do instinto, pertencente as atitudes ainda pouca analisadas ou pou- ro macio e apertado, reputado obstáculo ao veneno pestilento trazido pelo ven­
co interrogadas: discursos e comentários quase nao tém lugar, observagóes e to, ou os estofos «apertados», lisos e perfumados, «cetins, tafetás e cam el5es»25.
recomendagoes pouco efeito tém. Alménar é um dos poucos a sugerir, no inicio Quaisquer mudangas, no entanto, recordam as novas atitudes suscitadas pela
do século xvi, precaugóes a tomar na relagáo sexual, recomendando «ao homem sífilis. É directamente sobre o portador do mal e sobre o espago físico, que o sé-
e á mulher que fagam uma toillete minuciosa depois do coito, servindo-se da culo xvi permite concentrar a observagáo: os síntomas, sem dúvida, mas sobre­
sua camisa ou de qualquer outra roupa limpa, e de nao empregar as toalhas das tudo as instalag5es e as deslocagóes do doente. Impós-se uma medida original
prostitutas porque estáo contaminadas» 19. Fallope acrescenta em 1564 uma pre- para a peste: a reclamagáo as portas das cidades de cartoes de saúde atestando
caugáo limitada aos gestos masculinos: a de envolver a glande depois do coito a náo contaminagáo dos que entram; dito de outro modo, uma vigilancia por es­
com um pedago de tecido impregnado de vinho de malvasia, pó de madeira de crito dos viajantes e dos errantes. Biraben indica-lhe os vestigios em Brignoles,
guaiaco e de madeira de aloé 20. Em compensagáo sao muito poucas as evoca- desde 149426. O procedimento generaliza-se no século xvi, com uma exigencia
góes sobre precaugóes específicas que poderiam suscitar o defrontar da doenga, cujo reforgo é por vezes perceptível de peste a peste.
senáo algumas sugestoes vagas sobre o reconhecimento dos corpos infectados, A verdadeira inovagáo defensiva prende-se com as iniciativas colectivas.
sobretudo o das prostitutas: O preboste de Paris instituí em 1553, uma sucessáo de responsabilidades em ca-
deia: «O comissário de bairro convoca dois fabriqueiros, nomeará dois homens
Mas guardai-vos de subir aos locáis em cada paróquia que teráo cada um dez libras parisienses para o seu dever.» 27
sem candeia, nao tenhais vergonha Trata-se de seguir o itinerario da pestilencia. Cada um deve informar sobre o
remexei, investide, olhai para cima e para baixo aparecimento da doenga, do seu avango possível de lugar em lugar. Ao que se
e depois tomai todo o vosso gozo 21. acrescenta a obrigagáo feita á populagáo de participar directamente na organi-
zagáo: o decreto de 1553 ordena «a todos os que saibam de alguém atacado de
A preservagáo pessoal na sífilis ainda náo é claramente pensada, daí a im- pestes, ou de que se suspeite apenas, que previnam sem parar os grupos dos dez,
portáncia da exclusáo espacial apesar das suas falhas. dos cinquenta ou os vigilantes de bairro»28. O objecto é localizar a doenga e se-
gui-la para a compartimentar e acantonar.

22 A. Paré, D e la p e ste (1568), O euvres com pletes op. cit., t. m , p . 358.


18 O rdonnance du roi C harles IX su r les p la in tes des d éputéz des trois E sta ts tenus en la 23 F roissart, op. cit., p . 833.
ville d ’O rléan, art. Cl, L e s E dits e t O rdonnances des tres chrestiens roys, L yon, 1677, 24 O. Ferrier, R em edes p ré se rv a tifs et confortatifs contre la peste, Lyon, 1548, p . 33.
t. i, p. 79. 25 E. L abadie, Traite de la p este divisé en diagnostic, pronostic, curation, Toulouse,
J5 J. A lm énar, Libelli d u e de m orbo gallico, Lyon, 1528, citado p o r J. Jeanselm e, H is- 1620, p . 40.
toire de la syphilis, son origine, son expansión, Paris, 1931, p. 183. 26 J.-N . B iraben, Les H o m m es et la P este en F rance et dans les p a y s européens et m édi-
20 G. F alloppio, Tractatus de m orbo G allico, Patavii, 1564, citado por J. Jeanselm e, terranéens, P aris, M outon, 1976, t. II, p . 8 8 .
op. cit., p. 183. 27 O rdonnance du p ré v ó t des m archands, 13 de S etem bro de 1533, in N. de L am arre,
21 L e Trium phe de h aulte e t p u issa n te dam e verolle, R oyne du P uy d ’A m ours... (1539), Traité de la p ó lic e , Paris, 1722 ( 1 .a ed „ 1698), t. I, p . 651.
citado por C. Q uétel, op. cit., p. 90. 28 Ibidem , 1 . 1 , p . 649.

52 53
OBEDECER AO COSMOS O REGIME CONTRA O COSMOS

Os oficiáis encarregam-se por fim do que desde há muito cabia á iniciativa comendo e bebendo até cair de apoplexia. O rei morreu em 1483 sob a abun­
dos particulares. Os prebostes da saúde efectuam visitas ás casas infectadas, as- dancia dos humores, sufocado pelo seu sangue e pela fadiga física: «Ele levou
segurando o seu encerramento e o seu arejamento: «remover e deslocar os mo­ os seus prazeres muito além, náo temendo ninguém, fez-se gordo e cheio e na
véis, transportá-los para os locáis que seráo ordenados, limpar os lugares, man­ flor da idade vieram-no a destruir a pouco e pouco os seus excessos, e morreu
ter as janelas abertas e fechar as portas» 29. Intervém, neste caso, sobre o ar e súbitamente de apoplexia.» 32 Commynes encontra a mesma tónica para criticar
sobre as pessoas; fixam cruzes que designam as casas suspeitas; regem o isola- o «regime» de Mehmet Ottoman, o imperador dos turcos, cujas armadas che-
mento dos doentes, o seu «transporte durante a noite, para o hospital, por ho­ garam a ameagar Veneza, falecendo no mesmo momento, aos cinquenta e dois
mens destacados para este servigo» 30; e asseguram a inumagáo dos corpos. anos, por ter sido «um glutáo desmesurado» 33. Mehmet foi tomado por incha-
Estes regulamentos do fim do século xvi continuam a ser válidos durante vá­ gos ñas pemas, por tumores variados que os cirurgióes náo puderam corrigir e
rias décadas: responsáveis hierarquizados por sectores e doentes obrigados a de perturbagóes inesperadas, «doengas que lhe apareceram ced o » 34. Commynes
declarar a doenga para serem bem isolados. Ao que se acrescenta o retomo re­ náo tem dúvidas: a morte foi ajudada «pela grande gulodice»35, talvez ainda por
petido ás ordenagoes antigas, á denúncia de locáis malcheirosos, á evacuagáo algum «castigo de Deus» 36. Proposta sem surpresa para o leitor de hoje, mes­
de mendigos e á interdigáo de mercadorias provenientes das zonas «infectadas». mo sem interesse, se náo revelasse, fora dos textos médicos tradicionais, uma
A peste náo é ainda conhecida nem dominada, somente a resposta se torna das primeiras aproximagóes entre o excesso de comida e a morte. As censuras
mais activa, mais determinada e mais concertada também. Ainda que o foco da de Commynes impSem uma evocagáo «concreta» do perigo das comezainas,
inquietagáo se mantenha inalterável: os espagos ameagadores sáo os espagos fe- uma ilustragáo de volumes físicos inquietantes e a reprovagáo explícita de for­
dorentos; o corpo que corre perigo é o corpo «penetrado». mas corporais perigosas.
E preciso medir a distáncia entre estas descrigóes de Commynes, no final do
século xv, e as de Froissart, um século mais cedo. Froissart descreve com en­
2. A F O M E A B R A N D A ? tusiasmo as grandes carnes de Gastón de Foix, cuja autoridade e porte impo­
nente ele admira na sua estadía em Orthez. Gastón come «muitas av es» 37, e fica
Comaro, nobre de Pádua, ao confessar o seu regime de vida em meados do sempre á mesa mais de duas horas acumulando bebidas e acepipes. Quando ele
século xvi, sublinha o sucesso dos seus concidadáos contra a peste: secagem de morre, também de apoplexia, em 1388, Froissart náo sugere qualquer possível
pántanos e resguardo das quarentenas. A mortalidade da cidade teria baixado. relagáo com o seu «regime». Os criados tentam reanimar o moribundo meten-
Comaro insiste entáo noutras ameagas: os alimentos doentios das gentes de Pá­ do-lhe na boca páo e especiarías, tudo coisas consideradas «fortalecedoras» 3S.
dua podem matar mais do que a peste... Detém-se no pormenor, na quantidade Eles recorrem ao prestigio dos alimentos prolíficos, das excitagóes e dos acu­
de alimentos e nos seus efeitos, o que sugere a maneira como esta atengáo tra- mulados.
duz, sem dúvida, a «verdadeira» mudanga ñas práticas de saúde no século x v i31. A nova sensibilidade de Commynes prende-se com a condenagáo física do
A novidade acentúa toda uma vontade específica de um lento cuidado com o cor­ excesso. O propósito detém-se nos perigos visíveis e ñas ameagas de morte.
po: um trabalho determinado e consciente ao longo do tempo. Mudanga aparen­ O olhar recaí sobre as formas para nelas evidenciar podridoes e impurezas. Dito
temente discreta, mas que pressupóe um recuo da fome, além de uma esperanga de outro modo, a valorizagáo da corpulencia massiva parece ter recuado no fi­
inédita na duragáo de vida. Esta sensibilidade, que se manifesta desde o fim do nal do século xv. O que explica, sem dúvida, a troga dos companheiros do jo-
século xvi, promove uma mutagáo possível das práticas quotidianas. vem Loys de La Trémoille, por volta de 1490, denegrindo o seu perfil e acu-
sando-o de «se ter tomado táo gordo como o senhor de Cran, seu tio paterno»39.
Loys defende-se, aventurando-se num jejum preserverante, para melhor «ultra-
O peso considerado excessivo passar a natureza» 40.

A crítica do peso corporal e o perigo da voracidade sáo evocados, no fim do P. de C om m ynes, M ém oires (1464-1498), H isto rien s e t C hroniqueurs du M o yen Age,
século xv, de uma forma diferente do que sucedía anteriormente. Commynes la- °P- cit., p. 1289.
33 Ib id em , p. 1292
menta-se, ao descrever o regime alimentar de Eduardo de Inglaterra, nos últi­
34 Idem .
mos anos do século xv: príncipe satisfeito com o revés do seu rival Warwick, 35 Idem .
Eduardo multiplicou «festas e banquetes», entregando-se ás suas paixoes, 36 Idem .
37 Froissart, op. cit., p. 531.
38 Ibidem , p. 833.
29 Idem .
30 Idem . J- B ouchet, Le P an ég yriq u e du chevalier de La Trém oille (inicio do século xvi),
París, 1820, p. 4 4
31 L. C ornaro, D e la sobriété, c o n seils p o u r vivre longtem ps, G renoble, M illón, 1991
40 Idem .
(1.a ed. italiana, 1558).

54 55
OBEDECER AO COSMOS
O REGIME CONTRA O COSMOS

Nao que a «magreza» triunfe. Trata-se antes de um momento na lenta histo­


ria que opoe formas, o de um primeiro desafio face aos volumes considerados Evidentemente com inevitáveis consequéncias sobre os regimes alimenta­
res. E nítidamente perceptível um aumento do consumo de carne e de peixe no
demasiado corpulentos: o receio das ameagas físicas reforjado por sugestóes
arcebispado de Arles, entre 1429 e 1468; a sua presenta ñas despensas alimen­
estéticas. No máximo um índice de um primeiro recuo do peso, enquanto que
tares passa de 39% a 46% 47. O pao domina menos, em proveito de alimentos
os critérios do excesso e as suas referencias escapam ainda a toda a precisáo.
mais diversificados e mais ricos: 32,1% de pao no Studium papal de Trets, em
1365, contra 26% no arcebispado de Arles, em 1468 48. Tudo isto sao sinais in­
directos, mas notorios, de uma possível recessao da fome e de uma menor cris­
A valorizagao «mínima» do alimento
p a d o sobre a alim entado e os géneros alimentares.
Isto nao indica, evidentemente, o desaparecimento das fomes. Até ao sécu­
Seria preciso que a fome exercesse menos pressáo trágica para que os «pe­
lo xvm impoem-se alguns episodios graves. Um exemplo entre tantos outros: a
sos» e as «replegóos» pudessem em parte perder para os abastados o prestigio
fome intensa de 1531, na regiao de Nantes, «táo grande que os pobres morriam
que tinham anteriormente? Seria preciso que a valorizado dos alimentos se ate-
de fome ñas rúas, pelos caminhos e ñas suas casas»49. Igualmente intensa é tam­
nuasse para que nascesse esta tendencia para denunciar os corpos «pesados e
bém a fome que atinge os contornos do Mediterráneo entre 1521 e 1524. A mor-
gordos» 41? É difícil aqui sublinhar as causalidades directas; é difícil indicar o
te pela fome continua a ser uma realidade do século xvi. O romance picaresco
possível recuo da fome, no século xv, como co n d id o directa de novas aprecia­
de Mateo Alemán, no final do século. La Vie de Gúzmán de Alfarache 50, dá tes-
d a de formas e de densidades do corpo. É fo goso apenas constatar conver­
temunhos para além de Espanha. Os seus pobres, a quem a alim entado ocupa
gencias: é no século xv que comegam a ser evocados, fora dos textos médicos
os sonhos e os pensamentos, nao sao só os da Galiza ou da Andaluzia; sao, ain­
e dos rituais religiosos, medidas concretas de restrigao higiénica e abstinencias
da, os da Aquitánia ou de Poitou.
claramente dietéticas, enquanto que a própria fome parece abrandar a sua opres-
sáo. Aumento de homens e aumento de géneros tiveram, contudo, no século xvi,
consequéncias sobre a própria visáo da conservado do corpo.
A segunda metade do século xv é, a este respeito, um momento chameira.
A regiao de Nante, entre 1465 e 1527, regista apenas uma colheita deficitária;
igualmente no Cambraisis, entre 1439 e 1523, uma única quebra frumentácea;
3. M O D E R A g Á O E A M O R P E L A V ID A
nenhuma escassez séria durante o mesmo período na Provenga ou no Bassin pa­
risiense, enquanto que a crise de aprovisionamento de 1315 se continuara a fa-
A presenta da vida ganhou, sobretudo, terreno no século xvi. A Franca, cuja
zer sentir durante várias décadas 42. Nao que tenha surgido qualquer in o v ad o
populado baixou para metade, entre 1348 e 1450, passa de 12 a 20 milhóes de
técnica no mundo rural. O simples aumento das térras cultivadas explica aqui a
habitantes, entre 1530 a 1594, Castela de 3 a 6 milhóes, enquanto que a popu­
mudanza: o recuo das epidemias desde 1440 e o final da Guerra dos Cem Anos
la d o inglesa mais do que duplica durante o mesmo período 5I. De uma regiao
trazem uma lenta ascensáo demográfica. Esta «conservado e copiosidade do
a outra, os números indicam um crescimento mínimo de 50% ao longo do sé-
popular» 43 de que fala Claude de Seyssel, visitando os campos do final do sé-
culo. E a imagem da vida que pode mudar; sobretudo a visáo do tempo. Desde
culo xv, permite, por sua vez, novas possibilidades de arroteamento. Causali­
o fim do século xv que se afirma um sentido inédito da d u rad o , uma aten^áo
dades circulares que geram uma vitalidade nova e transformam a relacáo com a
mais marcada sobre a densidade da existencia, as suas fases sucessivas e a sua
térra. Revelam-no alguns números, apesar da sua raridade: o aumento progres-
riqueza. A pergunta sobre qual o país onde a vida seria mais longa toma-se um
sivo do rendimento por grao, com a valorizado das novas térras, a passagem
tema habitual nos tratados de saúde: a índia domina nestas comparagóes labo­
de 3,8 a 4,3 graos recolhidos por um grao de cevada semeado, de 2,42 a 4,3 para
riosas; nao permitiram o seu «ar subtil e puro», os seus «frutos excelentes» e as
um grao de aveia, entre 1350 e 1450, em W e s tm in s te ro u o aumento do gado,
suas «flores e frutos selvagens», que alguns anciáos se aproximassem dos tre-
o de Maillane, por exemplo, na Provenga, que passa de uma quarentena de ani­
zentos anos 52?
mais de tiro, em 1430, a duzentos em 1471 45, e também o dos «lanígeros» in­
O próprio lamento sobre os mortos precoces toma-se mais insistente e mais
gleses, cuja produyao aumentou um tergo entre 1450 e 148046.
pressionante: em todo o caso, uma declarad o mais explícita de atengáo aos
vivos.
41 Idem .
42 H. N eveux, «Déclin et reprise: la fluctuation biséculaire 1330-1560», Histoire de la F run­
47 L. Stouff, op. cit., p. 227.
ce rurale, sob a d i r e c t o de G. D uby e A. W allon, Paris, Éd. du Seuil, 1975, t. i i , pp. 99-100.
48 Ibidem , p. 226.
43 C. de Seyssel. G rande M onarchie d e F rance, Paris, 1557 (1.a ed., 1519), p. 44.
w A. M. N antes, G G 705, citado por A. C roix, op. cit., 1 . 1 , p. 366.
44 G . Duby, E con om ie et Vie des c am pagnes d e l ’O ccident m édiéval, Paris, A ubier, 1962,
t. n, p. 614. 50 M . A lem án, G uzm an d e A lia ra ch e (1599). R om ans p ica resq u es espagnols, P aris, G al-
lim ard, L a Pléiade, 1968.
45 Ib id em , t. II, p. 615.
46 G. Fourquin, H istoire économ ique d e l ’O ccident m édiéval, Paris, C olin, 1979, p. 278.
j| M . Vovelle, La M ort e t l'O ccident de 1300 á nos jours, Paris, G allim ard, 1983, p. 182.
52 G. P ictorius, Les Sept D ialogues, Paris, 1557, p. 16.

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57
OBEDECER AO COSMOS O REGIME CONTRA O COSMOS

A inquietando e o efémero trar encanto. Ora este encanto, este prazer, que outra coisa é senáo a volúpia?» 58
O que conduz a algumas divisóes abstractas entre uma «saúde perfeita» e uma
Os sinais desta afirmagáo carnal multiplicam-se. A jovem rapariga colhida «saúde imperfeita», complicadas transitoriamente pela proposigáo de Monteux,
pela morte, a beleza reservada para o cadáver, figura nova dos livros de horas e estabelecendo ainda um terceiro estado «entre as duas» 59. Distingóes absoluta­
dos quadros do fim do século xv, acentúa, com Durer ou B aldung53, alguns de- mente relativas e ocasionáis sobre estas diferentes «espécies de saúde» aliás
cénios mais tarde, ocasiao de perturbagáo e de exaltagáo: a adolescente do sé- pouco descritas ou precisas, mas que mostram como o estado de «bem-estar» é
culo xv, geralmente vestida, ameagada por um esqueleto inclinado sobre ela, ele próprio mais mencionado, observado e avaliado do que anteriormente.
toma-se agora um corpo nu, ele próprio mais gracioso, celebrando a beleza e as Os textos cristáos repercutem, a seu modo, as novas preocupagoes. As «ar­
alegrías da vida; a imagem de uma frescura e de um brilho, cuja brevidade faz tes de morrer», subtilmente analisadas por Philippe Aries, estes preceitos que
precisamente o prego. Figura transposta com Titien na de uma velha mulher supostamente preparam o moribundo, largamente difundidos depois da Idade
descamada, de olhar trágico, a máo apontando para si própria, desta máo cai um Média, revelam uma mudanga notável no século xvi 61. Durante muito tempo
papel onde Titien revela o sentido do quadro: Col Tempo («com o tem po»)54, concentrados sobre o próprio momento da morte, sobre os gestos e formas de
rosto alterado pela fuga dos dias. O que sugere ainda a seu modo, a nostalgia de devogáo que ela exige, sobre o quarto do moribundo, com o seu espago e os
Ronsard, transposta em meditagáo sobre o tempo; sublinhando o desapareci- seus objectos, sugerem no século xvi uma piedade mais quotidiana, uma vigi­
mento dos instantes, a sua aboligao, mas também a sua forga e a sua densidade; lancia que se alarga a todos os momentos da vida. Náo corre o risco de ser o úl­
timo, cada um destes instantes? O sentimento mais agudizado do instável e a li-
Porque náo me prendo ao que sois gagáo mais viva ao presente transformam lentamente a própria imagem da
Mas á doce recordagáo das belezas que vive 55. morte: diluida na diversidade dos momentos, em intensidade da última hora ten-
de a perder a forga. As advertencias alargam-se insensivelmente ao «bem-vi-
Ou Les Regrets que a melancolia de Du Bellay traduz numa longa deplora- ver», ás prudencias e aos cuidados implícitos. A temperanga domina esta per-
gao sobre o tempo: cepgáo do tempo. Uma palavra, sobretudo, ganha uma notoriedade que até ai
náo tinha: a palavra sobriedade. A conduta é a de poupar, a intensidade do tem­
A i de mim! E nós, entretanto, consumimos a nossa idade po leva a economizar: a «arte de morrer», com uma tonalidade inédita, insiste
Sobre a margem desconhecida de uma estranlia ribeira, sobre a «conservagáo do corpo». A sensibilidade modificou-se.
Onde a infelicidade nos fa z cantar estes tristes versos 56.

A Pléiade soube transmitir esta inquietagáo: um novo sentido do efémero, Uma temperanga profana
uma atengao ansiosa as duragóes e ao seu desvanecimento; ela soube sobeja-
mente encontrar alguma tónica hedonista, uma inclinagáo inédita para a evoca- O humanismo da Pléiade e a austeridade crista confirmam, por vias diferen­
gao do presente: tes, a nova percepgáo do tempo. Os regimes encontram ai a oportunidade de
prospecgóes inéditas. Esta sensibilidade é ilustrada pelo longo testemunho
Vivei, se credes em mim, náo espereis pelo amanha 5\ de Comaro, que morreu em Pádua em 1566 com noventa e nove anos, após uma
dieta cuja descrigáo se mantém clássica durante várias décadas. Senhor vene-
Thomas Moore tem o sentimento de uma descoberta, quando instiga os seus ziano de costumes dissipados, Comaro decide, aos quarenta anos, restringir a
utópicos, no principio do século xvi, a considerar a saúde como uma volúpia, sua alimentagáo a 12 ongas de alimento por dia (cerca de 500 gramas) e a 14
fazendo déla uma sensagáo de maturidade, de acuidade, uma forga particular, ongas de vinho 62. A sua resolugáo, tomada para além de qualquer prescrigáo
até entáo escondida na banalidade dos instantes. É uma insistencia radicalmen­ médica, encontra-se explicitamente ligada á vontade de prolongar a vida: man-
te nova sobre uma plenitude possível: «É preciso ser de pedra ou vencido pela ter o corpo «alegre» e «vigoroso», evitar «sufocar os espiritas» com a quanti-
letargía, para náo se comprazer com uma saúde perfeita, para nela náo encon­ dade de «carnes» absorvida. Uma restrigáo que se acentúa ainda mais com a ve-
hice: Comaro tenta, depois dos oitenta anos, diminuir certas quantidades,
53 A . D ürer, La Jeu n e F ilie et la M ort. consumindo com mais frequéncia, mas menor porgáo de cada vez.
54 L e T itien, «L a vecchia», 1505, V eneza, G allería d e ll’A ccadem ia.
55 P. de R onsard, «L’an se rajeunissait», S e co n d Livre de m élanges (1559), P oésies choi- T. M ore, L ’U topie (1518), Voyages a u x p a y s de nulle p a rt, Paris, L affont, coll. «Bou-
quins», 1990, p. 172.
sies, Paris, G arnier, 1969, p. 111.
56 J. D u Bellay, «C ependant que M agny...», L es R egrets (1558), P oetes du x v ie siécle, v>H. de M onteux, op. cit., p. 5.
60 Idem .
Paris, G allim ard, La Pléiade, 1953, p. 452.
57 P. de R onsard, «Q uand vous serez bien vieille...» , L e s A m o u rs (1552), Paris, G arnier, 61 P A ries, L ’H om m e d e va n t la mort, Paris, Éd. du Seuil, 1977, pp. 304-305.
1963, p. 431. 62 L. C o m aro, op. cit., p. 52.

58
OBEDECER AO COSMOS
O REGIME CONTRA O COSMOS

Os preceitos sobre a qualidade dos géneros mantém-se, pelo contrario, tra­ sa de restrigáo, com as vigiláncias paralelas que impóe: «Muita gente abraga a
dicional para este veneziano cujo tratado é difundido em toda a Europa: esco- vida de recolhimento e de oragáo; oh! Se abragassem táo plenamente a vida re­
lhidos para respeitar o «calor» ou o «frío» dos temperamentos, eles devem, sem grada e s o b ria !» A té a felicidade alcangada pela saúde assim obtida parece tor-
assombro, ser «simples» e ligeiros, adaptados ao estómago de cada um. Tudo nar-se uma réplica do Paraíso: os prazeres sensíveis mais castos, as paisagens
concorre para a sobriedade, medida táo importante que Comaro parodia o seu vicejantes e pacificadas, a familia rodeando o santo anciáo para melhor o vene­
nome em figura divina, dirigindo-lhe poemas e discursos: «O divina sobrieda­ rar. O paralelo é táo presente quanto o explicitado: «Pode-se, como eu, possuir
de que és tao útil e proveitosa aos homens... fazendo-os viver uma táo grande o paraíso na térra.» 69 Comaro utiliza as referencias sagradas, deslocando-as
idade que a razáo se tom a inteiramente sua m estra.»63Figura táo imponente, en­ como utensilios feitos para reforgar melhor a convicgáo profana.
fim, que parece atenuar o próprio medo da morte. A sobriedade permitia afas­ O acesso mais livre a alguma fruigáo da vida, a maior forga concedida aos
tar o corpo de toda a doenga, prometendo um fim sem sofrimento: «Náo, o pen­ prazeres quotidianos, emprestam aqui um estilo demonstrativo, uma retórica,
samento da morte náo tem dominio sobre mim.» 64 O macabro perde parte da um manusear da moral que continuam a ser os mesmos de uma tradigáo mais
sua negritude e a morte parte da sua forga ameagadora. A «vida regrada» torna- antiga. As fórmulas do discurso, as suas imagens, pertencem ao estilo da predi-
-se um auxilio contra a angustia derradeira: «Tu os libertas também do terrível cagáo sagrada, enquanto que o seu conteúdo déla se desliga. A mudanga, por
pensamento da morte.» 65 Comaro serve-se da ars moriandi, mas ultrapassa o mais paradoxal que seja, conduz a esta promogáo do sensível e a esta vigilan­
seu objecto que faz transpor em diligencias profanas. Ele adopta a sua constru- cia mais exigente da vida.
gáo e a sua finalidade, mas transforma o seu conteúdo: com o «regime», a vigi-
láncia quotidiana sobre o excesso liberta o corpo de toda a impureza; com a
«arte de morrer», a vigiláncia quotidiana sobre o pecado liberta a alma de toda P r e s e n g a d o r e g im e a l i m e n t a r
a mácula. Nos dois casos mudaría o peso da morte, tornada menos medonha e
menos ameagadora; nos dois casos impor-se-ia uma preparagáo mais assídua, A prática do regime toma-se de repente mais presente, no século xvi, mais
mas menos inquieta; uma consciencia mais agudizada do tempo, uma forma comentada e precisa. Já se viu que Comaro pesa os seus alimentos antes de cada
de lhe apreciar largamente a intensidade domesticando-a: o desenvolvimento de refeigáo como Pontormo, o pintor florentino de meados do século xvi. Pontor-
uma estratégia explícita de duragáo. A sobriedade torna-se, para Comaro, um mo chega a anotar escrupulosamente no seu D i á r i o a quantidade e a qualidade
processo de conjuragáo da infelicidade, uma forma profana de reger uma ques- dos géneros consumidos. Anota as ongas de peixe e de carne, o modo como sáo
táo posta, ainda implícitamente, nos limites da religiáo. cozinhados, férvidos, fritos ou assados. Ele jejua após uma doenga: na sexta-fei-
O conjunto do discurso de Comaro é marcado pelo cunho religioso. Man­ ra,. de Margo de 1555, em que sofre de dores nos rins, «foi na sexta-feira e á
tém-se o estilo demonstrativo da exortagáo, mais próximo, por vezes, da homi­ norte nao jantei, e descansei até á noite de sábado, quando comi entáo dez ongas
lía ou do sermáo, do que da demonstragáo sábia: «Meditai nisso, eu vos conju­ de pao, dois ovos e uma salada de flores de borragem» ™. A conservagáo do cor­
ro, em nome de Deus, pois estou certo [que o excesso de alimento] é um vicio po, mais do que no passado, suscita o cálculo diário. Da mesma forma, Héroard,
abominável.» 66 O preceito moral, a sugestáo de uma «outra vida» tomam-se medico do futuro Luís XIII, anota escrupulosamente no inicio do século xvn, o
imperceptivelmente sermáo de uma promessa, anúncio de uma «esperanga». peso dos alimentos consumidos pelo delfim: a 2 de Maio de 1606, «Sopa de 6
A nova existencia, incentivada pela dieta, é ela mesma qualificada como re- [ongasJ — espargos 8 — capáo cozido, uma asa; parte de uma asa — ... mantei-
núncia. As palavras influenciam-se pela proximidade de sentido, substituem-se ga fresca no páo, 6...» 7I; ou na terga-feira, 16 de Maio, «salada de flores de bu-
pela vizinhanga de matéria; o tom da convicgáo escorrega para o da conversáo, g ossa, 8 e 12 de páo — sopa na travessa e no prato com metade de um capáo
a «vida regida» toma-se «vida santa», o acesso á felicidade prometido pela so­ C m d o ' 16- >>” ■A conservagáo do corpo parece estar tanto mais asse-
briedade transforma-se em graga, sobre o que Comaro deve declarar com insis­ T T qUant° scjam controlados os pesos dos géneros consumidos.
tencia que ela náo é sobrenatural: «Digo-lhes que a graga que usufruo náo é uma
i n t ^ amemu e aS qualidades ^adicionáis, como mostra Cardan quando se
graga especial, mas antes acessível a todo o individuo.» 67 O próprio Comaro
m inh°ga~ C ° S SCUS gostos: <<Tenho prazer em comer caranguejos porque a
apresenta a sua nova vida como uma devogáo, uma suavidade, a adesáo intacta a mae comeu-os ávidamente enquanto me transportava no seu ventre.» 73
a qualquer potencia eminente. A adopgáo de uma prática de restrigáo alimentar,
com as vigiláncias que implica, é irresistivelmente comparada á prática religio­ 65 Ibidem , p. 9 7 .
69 Ibidem , p. 1 0 2
70 j

des artiste'i 6 W ittkow er, Les E nfants d e S a tu m e , p sych o lo g ie e t com portem ent
63 Ibidem , p. 85.
na> 1958) p 9 3 q u lté á la R évolution fm n g a ise , Paris, M acula, 1985 (1.a ed. am erica-
64 Ibidem , p. 95.
65 Ibidem , pp. 85-86.
73 J¡ hl<nal de Jean H érourd (1601-1627), Paris, Fayard, 1989, t i p 935
66 Ibidem , p. 41. n ¡bidem , 1 . 1 , p. 9 5 3 .
67 Ibidem , p. 105. • Cardan. M a vie, Paris, B elin, 1992 ( 1 .a ed., 1575-1576), p. 51.

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OBEDECER AO COSMOS O REGIME CONTRA O COSMOS

Ou Rabelais quando evoca o regime de Gargántua, comendo, nos dias de chu- to dia retoma-se a carne e assim sucessivamente, afim de nao fatigar o estoma­
va «mais sobriamente do que nos outros dias e carnes mais dessecantes e redu- go... Os Solários vivem ordinariamente até aos cem anos.» 80 O regime já nao
zidas, para que a intempérie do ar, comunicada ao corpo pela necessária confi- é uma prática de excepgáo.
nidade, fosse por este meio corrigida» 74. Este corpo é ainda um conjunto
«penetrado» pelos poros. É impregnado pelo ar, atingido pela atmosfera fría,
quente, seca ou húmida. Isto orienta, voltamos a afirmar, a escolha alimentar. A medicina de si mesmo
Enquanto que sao o lugar da alimcntacáo e o cuidado com a vida que mudam.
O regime, no século xvi, está evidentemente longe de ser a preocupagáo de A insistencia de Cornaro ou de Montaigne sobre os alimentos que convém a
todos. A sua ignorancia ou a sua negligencia mantém-se largamente sensíveis, cada um, as anotagóes regulares de Pontormo sobre as medidas dietéticas e to­
mesmo para os mais precavidos. Numa carta a Villeroy, em 1579, Henrique III, das as indicagóes sobre uma defesa pelo alimento, revelam a presenga de uma
embora atingido pela gota atribuida aos excessos alimentares, insiste na recusa certeza crescente: a possibilidade de uma medicina de si mesmo.
de toda a restrigáo: «Fui tomado de uma doenga no pé esquerdo que nao me dei- A evocagáo desta medicina nao é nova. Tibério já tinha legado uma das
xa dormir. É uma doenga ridicula, mas de resto, passo bem. Além disso, como orientagóes do cuidar de si: «Todo o homem que já tenha passado dos trinta
que nem um lobo.» 75 Gilíes de Gouberville, cujo testemunho sobre a pequeña anos deve ser o seu próprio médico» 81, este homem deve reconhecer os géne­
nobreza rústica é táo precioso, nao hesita em enviar a 28 de Abril de 1559 a uma ros que lhe convém e os hábitos que o favorecem. A certeza de Montaigne: «Ba-
irmá «muito atacada de pleurisia» várias «garrafas de cidra» e numerosos «bor­ seias-te ñas contas dos médicos. Observa antes os efeitos e a experiencia.» 82
rachos» 76. Dallington, enfim, viajante, sensível aos gestos quotidianos, ao per- Projecto pouco desenvolvido nos tratados de saúde medievais, a proposigáo ad-
correr a Franga em 1598, repara na «maneira desordenada de comer» dos fran­ quire aqui uma profundidade inédita.
ceses. Ele lamenta a sua aparente ausencia de dieta, «coisa em mais uso entre Cornaro é quem no século x v i dá mais precisáo á ideia. A «medicina de si
as mulheres que entre os homens que podemos ver sentados ao ar livre, á porta mesmo» toma-se com ele um tema de preocupagáo específica, um trabalho de
de casa, comendo e bebendo com fartura» 77. atengáo e também uma experiencia sobre a duragáo: «É preciso muito tempo para
A sobriedade torna-se, contudo, uma prática mais «legítima», uma busca estas observagóes íntimas... quem acreditaría que o vinho velho de um ano me
mais comentada e mais estimada. É o seu valor como modelo que interessa. Tal prejudica o estómago ao passo que o vinho novo lhe é favorável.» 83 O anciáo ve-
é a novidade: o regime tem mais presenta, mesmo se o seu uso está longe de neziano insiste sobre a particularidade destas atengoes inacessíveis ao olhar exte­
ser globalmente partilhado. Quando Montaigne o contesta, considerando dema­ rior. Dá exemplos e cita observagóes: a inconveniencia dos alimentos frios para o
siado rigorosas algumas das suas restrigóes ao ponto de as julgar «castradoras» 78, seu estómago, ele próprio frió, daí o seu abandono do meláo, do peixe, das em-
sublinha o interesse que o regime suscita. Trata-o como matéria familiar. Por padas e das carnes de porco; a grande diferenga que ele experimenta entre o vi­
vezes, recorre ao regime, aliás, confessando comer frequentemente com gula ao nho bebido em Julho e o vinho bebido em Outubro, a sua impossibilidade de o
ponto de morder a língua e os dedos. Justifica de passagem as suas dietas oca­ consumir no Veráo e a quebra de forgas que disso resulta; ou a grande virtude de
sionáis pela necessidade de «conservar o seu vigor ao servigo de alguma acti- aquecimento dos seus órgáos atribuida ao cinamomo, essa canela do Oriente.
vidade do corpo e do espirito» 19. Em maior escala, os reparos de Montaigne li- É explorado um universo de sinais sensíveis que nao tem hoje as mesmas
gam o gosto alimentar as sensagóes de cada corpo, e a sua insistencia sobre a designagóes, nem, sem dúvida nenhuma, o mesmo conteúdo. As nuances cita­
necessidade de nao mudar os alimentos habituais («muito tempo acostuma- das (frieza do peixe ou do porco, o calor da canela) já nao tém, igualmente, sen­
dos»), o apego á sua «experiencia» pessoal e as adaptagóes que esta criava, de- tido. A física do quente e do frió, do seco e do húmido, fica totalmente distan­
notam uma vigilancia mais constante. Presenga discreta, enfim, em La Cité du ciada da nossa. M as ao utilizá-la para adaptar os alim entos ao seu
Soleil de Campanella, mas notoria. É com a alternancia de ementas que os So- temperamento, Cornaro insiste sobre uma nova particularidade: o bom gosto, o
lários pretendem govemar o estomago: «A composigáo da refeigáo muda todos bom sabor, já nao sao penhor suficiente. O efeito benéfico supóe uma expe­
os dias. Um dia há carne, no seguinte peixe e no terceiro dia legumes. No quar- riencia, uma escolha, para as quais o «bom cheiro» nao seria suficiente. Crona-
ro pretende consumir apenas géneros e vinhos «em conformidade com o seu
74 F. R abelais, L a Vie tres horrificque du G rand G argantua (1532), O euvres com p letes, temperamento» e náo necessariamente em conformidade com o seu gosto. Está
Paris, G allim ard, L a Pléiade, 1955, p. 99. consumada a distancia em relagáo aos tratados medievais.
75 C itado p o r P. C hevallier, H enri III, Paris, Fayard, 1985. p. 370.
76 Un sire d e G ouberville g entilhom m e cam pagnard de 1553 á 1562, publicad o por A. 80 T. C am panella, La C ité du Soleil (1613), Voyage aux p a y s de nulle part, op. cit., p. 261.
T ollem er, Paris, M outon, 1972 (1.a ed., 1870), p. 244. 81 C itado p o r C. S uétone, Vies des douze C ésars (século i), Paris, L es B elles-L ettres,
77 R. D allington, The View o f F ranee, un a p e rfu de la F rance telle q u ’elle é ta it vers Van 1932, t. ii, p. 54.
1598, V ersailles, 1892 (1.a ed. inglesa, 1604), pp. 174-175. 82 M . de M ontaigne, op. cit., p. 107. Ver tam bém F. B atisse, M ontaigne et la m édecine,
78 M . de M ontaigne, E s sa is (1580), Paris, G allim ard, L a Pléiade, 1958, p. 1218. P aris, L es B elles-L ettres, 1962, p. 67.
79 Ib id em , p. 1241.
83 L. C ornaro, op. cit., p. 55.

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OBEDECER AO COSMOS O REGIME CONTRA O COSMOS

Mantém-se uma certeza: o regime parece preservador como o eram o licor Só mais tarde, quando fossem melhor avahados e objectivados os sinais de
de ouro ou a jóia protectora; é definitivamente certo. Mas uma originalidade se saúde, é que seriam negligenciados estes recitativos que combinam a observa-
afirma: só o sujeito dispoe de informagoes pertinentes, só ele, em definitivo, gáo interna com ambigáo de sabedoria, mas ao calcular a sobriedade até ao nú­
acede ao interior do seu corpo. A consequéncia é importante: esta medicina que mero, Comaro dá ao regime uma precisáo que náo existia.
recusa o médico já nao é só uma opgáo possível, uma escolha, mas uma neces-
sidade, um recurso obrigatório. O observador exterior é parcialmente atingido
de enfermidade: «O homem náo seria o médico peifeito senao dele próprio.» 84 4. U M R E G IM E D O S P O B R E S ?
Proposigáo de que é preciso medir o alcance cultural, muito maior, é claro, do
que o modesto alcance científico. Esta esfera privada investida e considerada Praticado ou negligenciado, o regime ganha em valorizagáo entre os privi­
fora de alcance inaugura, á sua maneira. o individuo moderno. legiados. E conhecido e comentado. Em compensagáo, as diferengas sáo maio-
A originalidade prende-se com uma confianza confusa: a convicgáo ainda ele­ res entre os abastados e os outros. Cultura de elite e cultura popular acusam uma
mentar, mas nitidamente enunciada, de um corpo em que o sujeito é o único a po­ divergencia crescente, até á ironía de Alemán, em 1599: «Com medo de fazer
der avaliar as disposigoes. Este controlo de si que Cronaro sugere sobre as práti- mal aos ricos, faz-se-lhes mal, fazendo-lhes comer ongas e beber escrúpulos, vi-
cas de saúde e de conservagao corporal parece concordante com o controlo ver por dracmas e morrer de fome antes que de doenga. Dos pobres, porque sáo
sugerido na mesma altura por Baltassare Castiglione ou Erasmo sobre as práticas pobres, todos tém piedade... Dá-se-lhes sem escolha nem medida... Enchem-se
de delicadeza e etiqueta 85: a urbanidade do século xvi, a sociedade cortés, con- tanto que sufocam sob as carnes e morrem táo cheios a ponto de rebentar.» 87
duzem a uma autodisciplina mais marcada e a uma definigáo mais precisa das
fronteiras de si próprio. Os textos contemporáneos sobre as regras de civilidade
ou sobre a etiqueta da corte mostram o quanto, de uma vez, se pode aumentar o A imagem do pobre
número de comportamentos destinados á intimidade e o número das experiencias
consideradas incomunicáveis. Baltasar Gracian teoriza ainda melhor, algumas A valorizagáo das quantidades e do acumular continua a dominar a cultura
décadas mais tarde, mostrando como a corte, com a multiplicidade de relagoes a popular. As fórmulas dos provérbios recenseados no século xvi dizem-no sem
que obriga, o seu entrecruzamento e os seus jogos, leva a «tomar-se impenetrá- rodeios: «Quem bem come, casa e dorme, náo tem medo da m orte.»88Algumas
vel», e a fazer com que nada «transparega para fora» 86. O modelo difunde-se, destas fórmulas sugerem mesmo directamente a sensagáo física da abundáncia,
dando mais prestigio a uma vigilancia particular das reacgoes e dos afectos. Re­ sublinhando a seguranga corporal que ela inspira: «Quem náo tem a barriga
serva e autovigiláncia mais nitidamente regulamentadas na cortesía medieval, cheia náo pode dormir seguro.» 89A profusáo alimentar continua a ser garantía
criam novos espagos «interiores», bem como novas maneiras de expor o corpo. de preservagáo.
A atitude vigiada de Comaro, o aprofundamento do volume corporal que ela pro­ A divergencia aumenta ainda entre as marcas dos abastados e a dos outros,
voca sáo consequéncias destas novas preocupagoes no século xvi. porque muda a imagem social dos mais humildes. A privagáo pode tomar-se ob-
A particular originalidade do veneziano consiste em confrontar-se directa­ jecto de sarcasmo, no século xvi, de crítica mordaz, provocando afastamentos
mente com as sensagoes privadas, aquelas cuja existencia só é possível após o e rejeigoes. Imperceptivelmente a pobreza perde o valor sagrado que tinha na
trabalho de autocontrolo. Comaro aplica táo fielmente o projecto que redige os Idade Média. Aproximar de uma mentalidade moderna, sem dúvida, que valo­
seus conselhos na primeira pessoa, pondo em cena o seu próprio exemplo, evo­ riza o trabalho. A Reforma, como o catolicismo do fim do século xvi, toma o
cando a sua vida em Pádua, os seus alimentos quotidianos, a organizagáo da sua pobre largamente responsável pelo seu estado. A idealizagáo franciscana do
casa e as reacgoes aos incidentes familiares. Daí o tom particular dos seus «con­ mendigo enfraquece em proveito de uma exaltagáo do labor. As condigóes de­
selhos para viver muito tempo», um recurso á récita que constitui em simultá­ mográficas tomaram também mais alarmante o peso dos pobres, agravando a
neo a sedugáo do texto e a sua lógica, uma relagáo muito individualizada que dissonáncia entre uma populagáo «crescente como ratos numa granja» 90 e uma
provoca o saber dos conceitos e lhes dá um sentido próprio. De passagem, Cor- produgáo cujo desenvolvimento náo é equivalente. Fomes e pestes que sobre-
naro inventa um género: o dos testemunhos personalizados sobre as práticas de vém em 1527-1529 em redor de uma Veneza florescente sáo disto exemplo,
saúde, a associagáo da experiencia individual e do saber reunido, um género com as suas mas, em Fevereiro de 1528, invadidas por esfomeados: «Acidade
bem vivo ainda nos séculos xvn e x v i i i . está em festa, organizaram-se numerosas mascaradas, mas ao mesmo tempo,
84 Idem . 87 M . A lem án, op. cit., p. 87.
85 É rasm e, L n C ivilité p u é rile (1530), Paris, Ram say, 1976, B altassare C astiglione, Le 88 L. Joubert, E rreurs p o pulaires touchant la m éd ecin e et le régim e d e santé, Paris, 1578,
C ourtisan (1528), Paris, 1537. t. ii, p. 145.
86 B. G racian, Le H éros (1647), P aris, C ham p libre, 1973, pp. 26 e 15; ver J. R evel, «Les 89 Ibidem , t. n, p. 115.
u sag es de la civilité», H istoire de la vie p rivée, sob a d irec fao de P. A ries e G . D uby, Paris, w H. N eveux e J. C éard, «U n m onde qui se dérégle», L e s M alheurs du tem ps, op. cit.,
Ed. du Seuil, 1986, t. m. p. 262.

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OBEDECER AO COSMOS O REGIME CONTRA O COSMOS

dia e noite, véem-se imensas multidóes de miseráveis.» 91 Desenha-se, em vá­ L’Hermite evoca ainda «graves» doengas epidémicas causadas pelas intempe-
rios centros europeus, uma nova política face á pobreza, ilustrada pelos éditos rangas de soldados «enchendo-se de maus alimentos», até provocarem uma ine-
de Carlos V, em 1530: a autor: zagao para mendigar limitada aos doentes e en­ xorável «putrefacgáo do ar» 96.
fermos, a vontade de fazer com que os filhos dos mendigos tivessem alguma As dietas sao entáo explicitamente pensadas para os pobres. Em 1542,
aprendizagem, para os afastar do «mal». Thomas Platter revela também a mu­ Sylvius é o primeiro a propor um acordo dietético dos alimentos casuais. Nele
danza de mentalidade quando narra as suas d ea m b u la res em meados do sécu­ explica como tom ar comestíveis caracóis, vermes da térra e cobras, regular­
lo xvi, a sua mendicidade de estudante sem recursos, espantando-se com as in­ mente consumidos pelos mais desfavorecidos: é preciso que sejam «bem esva-
jurias e as hostilidades que suscita. «Os pregadores repetem frequentemente na ziados e esfolados depois de ter cortado e extraído cerca de quatro medidas da
sua cátedra: “ Ganharás o pao com o suor do teu rosto” , esforgando-se por mos­ cabega e também, se quiserdes, da cauda, bem lavadas e limpas em barrela» 97.
trar quanto o trabalho manual é abengoado por Deus e acham mau que se fi- O alimento deve, simplesmente, ser «expurgado». E um trabalho sobre as po-
zessem de todos os estudantes eclesiásticos. O próprio mestre Ulrich dizia que dridóes, por isso os géneros «bichados» nao devem ser aproveitados. Do mes­
era preciso empurrar os jovens para o trabalho para prevenir um táo grande nú­ mo modo as mórcelas, os couratos, as cartilagens, os ossos tenros, as cabegas,
mero de eclesiásticos. Assim, muitos renunciavam aos estudos.» 92 Crítica de os pés, a pele, o toucinho e a tripalhada» devem-se moer ou picar, antes de se­
«ociosidade» que Platter retomará mais tarde por sua conta, narrando o seu su- rení impregnados de vinagre e misturados com pó aromático: é o peso dos gé­
cesso de médico estimado, evocando o seu conforto material, as suas casas e a neros que se pretende, neste caso, evitar ao reforgar a sua virtude aromática.
sua prosperidade adquirida «com muito trabalho» 93, sublinhando por sua vez a O que conduz ao recenseamento das « especiarías» mais fácilmente disponí-
importancia do mérito e do labor. veis: «Rosmaninho, salva, hissopo, segurelha, tomilho, manjerona, louro e ca­
bega de cardo cabegudo.» 98 Nestas condigóes, mesmo os tendóes, os ñervos ou
os ossos, podem fomecer «grande e longo alimento as gentes de trabalho» 99.
Alimentos sórdidos Sao assim ajustados «pequeños e jovens caes, gatos, ratos, patos, jumentos, te-
xugos, furóes e outros animais costumeiros» 10°. O vinho, inacessível, por ser
Esta distancia acrescida face ao pobre, no século xvi, traduz-se por um des- «muito caro para os pobres» obriga ainda a vigiar as suas bebidas. Daí os subs­
prezo estritamente físico; denúncia de comportamento, mas também de alimen­ titutos purificados e suavizados: «Pode-se ferver água com um pouco de mel ou
tos, do «regime»; géneros considerados grosseiros, indigestos, por vezes mes­ agúcar, uvas ou alcaguz com um pouco de vinho azedo.» 101 A alimentagáo do
mo portadores da peste e de epidemias pelas decomposigóes que geram. Diz-se pobre deve ser «educada».
da alimentagáo dos mais despojados criar um «putredo» interno susceptível só O projecto mantém-se utópico senáo irrisorio; vagamente contraditório tam­
por si, de contaminar a atmosfera. A desconfíanga contra os corpos «sórdidos e bém: nao chama o trabalho rude alimentos rudes, «bons para os que trabalham
fétidos» dos mais desfavorecidos multiplicam-se. Aumenta a ironia sobre os muito e que podem digerir carnes mais duras»? 102. Esta dieta dos pobres mos-
seus casebres, comparados «a cavernas infectas» 94, difundida por alguns trata­ tra apenas como se agudizou, no século xvi, a consciencia de consumos social­
dos de saúde do século xvi. mente diferentes e quanto o desaprego que inspira a alimentagáo dos mais hu­
Transposta para um registo de escámio, é ainda a consequéncia dos «cinco mildes pode tomar a forma de inquietagóes de ordem sanitária. Uma maneira de
conjuntos de belas viseiras de alhos», este alimento do povo oferecido pelos marcar algumas novas fronteiras a partir de uma cultura de elite.
Amorautes a Pantagruel: «Um hálito malcheiroso saiu-lhe do estómago por ter
comido tanta alhada.» 95A exalagáo alastra uma peste que invade Rouen e Nan­
tes, enfraquecendo uma populagáo impotente e inumerável. Dito de outra for­ 5. A S V IA S D E U M A L I B E R T A ^ A O
ma, a alimentagáo grosseira nao atinge só os que a absorvem, podendo atingir
também os que se avizinham. Em Le Page disgracié, um século mais tarde, As «crendices», enfim, constituem outro pólo de diferenciagáo no século xvi.
Também por elas se acentuam as distancias sociais: uma maneira de denunciar
91 M . S enudo, I d ia r i (século xvi), citado por B. G erem ek, L a P o tence ou la P itié, l ’Eu- as purezas obtidas por simples contacto. Pela primeira vez, o afastamento das
rope e t les p a u v re s du M oyen Á g e á nos jo u rs, Paris, G allim ard, 1 9 8 6 ( l .a ed. polaca, 1978), referencias medievais é afirmado e sublinhado. Os licores de ouro e os elixires
p. 175.
92 T. Platter, La Vie de Thom as P la tte r (século xvi), G enebra, 1862, p. 61. 96 T. L’H erm ite, Le P age disgracié, Paris, 1642, p. 300.
93 Ib id e m , p. 140.
97 J. Sylvius, R égim e de sa n té p o u r les p auvres, Paris, 1542, ff. 44-45.
94 R. G ropetii A trebatis, R egim en sanitatis, P aris, 1539, fo. 35; ver J. D upébe, «L a dié- 98Ibidem , fo. 4 1 .
tétique e t ra lim e n ta tio n des pauvres selon S ylvius», in P ratiques et D iscours alim entaires 99 Ibidem , fo. 42.
á la R enaissance, A ctes du colloque de Tours 1979, sob a d irec fao de J.-C . M argolin e R. Ibidem , fo 43.
S auzet, Paris, M aisonneuve e t L arose, 1982. 101 Ibidem , fo. 48.
95 F. R abelais, P antagruel, roi des D ipsodes (1532), O euvres, op. cit., p. 326. 102Ibidem , fo. 4 1 .

66 67
OBEDECER AO COSMOS O REGIME CONTRA O COSMOS

de alquimistas sao denunciados como pogóes extraviadas, artificios de charla- O ouro potável, os licores de pedra e os pós de marfim sáo misturados na de­
toes, crengas aceitáveis apenas para as «gentes pequeñas». núncia. Bemard Palissy pretende limitar-se as provas: náo seria suficiente pesar
as pegas de ouro férvidas em qualquer pogáo de saúde para verificar que «sáo táo
pesadas como dantes»? 109. A «limalha de ouro» náo revela assim mais superio-
A denúncia das jóias protectoras ridade do que uns gráos de areia, assegura Bemard, sobre o «ouro potável» em
1580: objecto inerte náo mantém relagáo com o que se digere e se consomé. Náo
Um gesto de Ambroise Paré indica o sentido das renovagóes. Chamado tem nem suco nem fermento, nem ar nem cheiro, acrescenta ele, diferenciando-o
pelo rei num dia de 1570, a testemunhar sobre o valor protector de uma pedra das ervas e das plantas. Afirmagáo precoce, pouco explicitada, mas conduzin-
rara, Ambroise prop.' í uma prova: dar veneno a um condenado á morte antes do-o a distingóes alimentares: entre o orgánico e o inorgánico, entre o que pode
de fazer «agir» a pedra e de lhe constatar os efeitos. A «experiencia» aceite e o que náo pode tomar-se carne; esforgo balbucíante para especificar a vida.
teve lugar no mesmo instante: um cozinheiro do rei, ladráo de algumas tra- A crítica é ainda pouco difundida em meados do século xvi. Ela divide os
vessas de prata, absorve o veneno e o antídoto (a pedra reduzida a pó) contra próprios «sábios». Chappelains, médico de Carlos IX, em 1565, mantém o uso
uma promessa de vida salva. O resultado é antes de mais edificante: o homem de um como de licome mergulhado na taga do rei para evitar os efeitos do ve­
morre acometido de dores insuportáveis, «andando como uma besta, os olhos neno ou de qualquer outra infecgáo uo. Ele perpetua a tradigáo das «linguetas»
e a face flamejantes, deitando sangue pelas orelhas, pelo nariz, pela boca, pelo de pedras preciosas que os reis medievais mergulhavam no seu vinho. O pró­
ánus e pelo pénis» l03. O cirurgiáo do rei triunfa. O seu gesto torna-se atesta­ prio Paré, apesar das suas reservas sobre a virtude dos objectos protectores, náo
do: a prova de que «a ilusao» traz o sofrimento e a morte. Ligáo sangrante hesita em recomendar o uso do ouro para purificar uma água corrompida: «Se
dada pela medicina, que na segunda metade do século xvi, reúne uma diná­ se teme que a água esteja viciada em tempo de peste, corrigir-se-á, fazendo-a
m ica cultural mais larga: as primeiras afirmagoes de uma ciencia «moderna», ferver um pouco ou ferrando-a com ago, ouro ou prata quentes.» 111 A imagem
as primeiras recusas do boato, a crítica dos «erros populares» também, aos da eficácia dos contactos puros continua a ser dominante nesta segunda metade
quais Laurent Joubert consagra um livro inaugural, em 1572. Um texto pe- do século xvi. Ao como de licome que preserva as bebidas do rei responde o
remptório, entre outros, sobre o recurso aos minerais: «Parece supersticioso e como de licome que preserva as bebidas dos viandantes anónimos; este como
enganador que haja um a virtude inacreditável e secreta ñas pedras preciosas que «uma honesta senhora mercadora» explora, no Pont-au-Change: «Um as-
quer se usem sobre si quer se utilize o pó das m esm as.»'04Mais numerosos ain­ saz grande bocado preso a uma corrente de prata que mergulha normalmente
da sáo os médicos que procuram um «teste de prova» a estes objectos, antes num gomil cheio de água, que ela oferece de boa vontade a todos os que lha pe-
de os julgarem totalmente inoperantes: «Nenhum efeito louvável»105, indica gam.» 112 Durante muito tempo as pedras preciosas e os licores de ouro fazem
Christophe Landré, depois de algumas laboriosas tentativas em tempo de pes­ parte das farmacopeias. Os cirurgióes embarcados ñas galeras reais dispóem,
te, quando leva os seus pacientes a usarem objectos puros para melhor obser­ ñas suas caixas de campanha, no final do século x v i i , de «fragmentos de esme­
var a sua «acgáo». ralda, de rubis, de safira, de sardonia e de topázio» "3. Objectos que a maior par­
O tema extravasa a literatura médica. Straparole, o imitador veneziano de te de entre eles se apressava, aliás, a vender nos portos de passagem por incon-
Boccace, cerca de 1550, leva Maistre Zéphire, o boticário dos seus diálogos, a fessáveis lucros, mas que revelam a persistencia de uma representagáo. Da
dizer que prefere as pedras as ervas medicináis muito simplesmente porque uma mesma forma, Labat, missionário naturalista do final do século x v i i , troca ain­
vez langadas sobre os charlatóes elas atingiam-os «de forma mais cruel» l06. É o da com os indios Caraibas «duas pedras verdes e duas bolsas de couro» “4; para
escámio, neste caso, que leva á lenta rotura com as forgas obscuras e com os se proteger de males diversos. O viajante dominicano de livre curso a toda a for­
efeitos por simpatía. Do mesmo como Rabelais troga da «corrente de ouro pe­ ga da crenga. Ele confessa uma precaugáo particular: estas pedras náo devem ter
sando vinte e cinco mil e sessenta e tres marcos de ouro» que faz usar a Gar- tocado nenhum cadáver, nenhuma carne em putrefacgáo. Também se informa
gántua para seguir a velha prescrigáo dos «médicos gregos» 107 e se proteger dos com insistencia acerca da sua proveniencia. Só um objecto preservado se man­
males. Nada mais do que uma denúncia acrescida dos «charlatóes» e dos «má­ tém em condigóes de actuar.
gicos», em meados do século xvi, esses «insolentes pantomineiros de futilida­
des, embusteiros e ladroes» l08, que evoca Ambroise Paré. 109 B. Palissy, D iscours adm irables de la nature des eaux e t des fo n ta in e s tant naturel-
les q u ’artificielles, Paris, 1580, p. 225.
103 A. Paré, Oeuvres..., op. cit., t. m , p. 341. 110 A. Paré, D iscours de la licorne, op. cit., p. 162.
IM C itado p o r A. Paré, D isco u rs de la lic o m e (1580), in D es m onstres, des prodiges, des 111 A. Paré, D e la p este, op. cit., t. III, p. 368.
voyages, Paris, L ivre club du libraire, 1964, p. 166. 112 A. Paré, D iscours de la lic o m e , op. cit., p. 159.
105 C. L andré, D e l ’o ecoiatrie, P aris, 1573, p. 800. 113 A. Z ysberg, Les G alériens, vies et destins de 6 0 .0 0 0 fo rg a ts su r les galéres de F rail­
G. F. Straparole, Les F acétieuses Nuits, Paris, 1857 (1.a ed., 1550-1551), t. n, p. 58. ee, 1680-1748, Paris, Éd. du Seuil, coll. «L’U nivers historique», 1987, p. 214.
107 F. R abelais, G argantua, op. cit., pp. 51-52. " 4 J.-B . L abat, Voyage a u x Ules fra n g a ise s de l ’A m ériq u e (1693-1705), Paris, Seghers,
A. Paré, D iscours d e la licom e, op. cit., p. 167. 1979, p. 138.

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OBEDECER AO COSMOS O REGIME CONTRA O COSMOS

Uma ruptura, no entanto, é incentivada no século xvi. As panoplias de ob­ A explicagáo astrológica toma-se, neste ponto, outro exemplo de renova-
jectos preciosos perdem legitimidade. A forga atribuida ao simples contacto dos gáo. Náo que se apague, no século xvi, a importáncia do papel atribuido aos
materiais desliza, insensivelmente, para a superstigáo. astros: os papas Julio II, Leáo X e Paulo III julgam sempre necessário conhe-
O próprio poder das reliquias náo é mais o mesmo: a sua garanda preserva- cer a colocagáo dos planetas e dos signos antes de fixarem a data da sua co-
dora e a sua emanagáo quase física perdem evidencia. A Reforma denuncia uma roagáo, a da sua entrada numa cidade ou da ocorréncia de um consistorio l21.
divinizagáo de «carcagas», um recurso idólatra, a instauragáo de intermediários A aprendizagem da astrologia mantém-se sempre como condigáo da aprendi-
inúteis entre a alma do cristáo e Deus. Calvino consagra ás reliquias a totalida- zagem médica. Mas no mesmo momento, esta astrologia perde em transparen­
de de um livro que recenseia fraudes e logros: «Náo se poderia adorar um anel cia, mudando imperceptivelmente de sentido. Já Rabelais lhe dá uma versáo
de Nossa Senhora, um pente ou um cinto seus, sem correr o perigo de adorar os ridicula publicando falsas profecias. As infelicidades anunciadas na Panta-
anéis de qualquer indigente.»115 Mas para além da possível impostura, é sobre­ gruéline Prognostication, em 1533, náo sáo mais do que engodo e escámio:
tudo a sacralizagáo dos despojos físicos o que a Reforma denuncia, a atribuigáo «Este ano, os cegos pouco veráo, os surdos ouviráo muito mal, os mudos náo
de forgas «ilegítimas», esta forma de « se rir de Deus», mais do que de «instruir falaráo muito e os ricos portar-se-áo um pouco melhor do que os pobres.» 122
os hom ens»116. Agrippa d ’Aubigné, evocando as suas primeiras viagens no Loi- A astrologia aqui náo é mais do que facécia: «No Invernó, segundo o meu fra-
re, relata com distanciamento, os gestos do seu servidor Eschalart, que se pro­ co entendimento, náo seráo sábios os que vendam as suas peles e peligas para
tege da peste de Orléans em 1562 com «um salmo na boca»"7. comprar lenha.» 123
A própria Igreja, no século xvi, tenta limitar o uso das reliquias regulamen- Comaro é mais suave e, ao mesmo tempo, mais realista. Ele mostra a forga
tando-o. Os concilios de Trento, de Miláo e de Aix, depois de 1550, condenam da convicgáo que a astrologia mantém no século xvi para melhor a negar. Ele
as manipulagóes muito frequentes destes objectos e as suas exploragóes venáis. lembra ñas suas fórmulas de regime e de dieta, em 1558, a inevitável «forga»
Proíbe-se que as reliquias sejam distribuidas ou levadas á cabeceira dos doentes l18. dos astros, a sua presenga manifesta, mas sugere também a necessidade e a pos-
Propostas muito genéricas, na verdade, mas o principio crítico é importante: a sibilidade de os afastar. A conduta de saúde toma-se, de vez, afirmagáo de li-
denuncia da superstigáo, a sua discussáo e o recenseamento dos excessos, en­ bertagáo. O regime serve para escapar ás influencias cósmicas. E feito para as
quanto que o recurso ás reliquias se mantém, evidentemente, dominante. Náo contrariar: «A opiniáo é a de que os astros predispóem mas nada forgam.»124
pede, ainda em 1638, Ana de Austria, grávida, uma reliquia de Sáo Leonardo á Comaro assimila a manutengáo da saúde a um acto de «resistencia», uma for­
cidade de Saint-Leonard-de-Noblat, para que o patrono dos prisioneiros lhe as- ma de lutar contra as forgas invisíveis do mundo, uma forma de lhes limitar os
segure um parto feliz? ll9. Náo aceita em 1657, um bispo do Algarve que as ca- efeitos, e já náo só de as conjugar ou de as «acompanhar»: «O homem saberá
begas de dois camponeses que curam sejam, após a sua morte, colocados «num pela sua habilidade pessoal vencer a oposigáo dos céus e [triunfar] sobre uma
nicho da capela-mor, ao lado do Evangelho» para perpetuar os poderes de pre­ constituigáo débil gragas á vida sobria.» 125 Comaro reencontra á tónica de Ma-
vengáo e de cura? 12°. Exemplo notável de uma canonizagáo popular, com as suas quiavel, sugerindo as vias para ultrapassar as casualidades e o poder dos signos:
promessas «médicas», bem particulares, imposta á autoridade episcopal. «A Sorte é mulher, ela náo cede senáo pela violencia e pela audácia.» 126 O Prín­
cipe é aquele «que tem cabega», ele resiste e decide; é mesmo com «ferocida-
de» que deve comandar a Sorte. Linguagem abrupta ainda, no século xvi, rara,
Uma libertagao do cosmos sem dúvida nenhuma, mas importante. Confirma a forma como no caso da ma­
nutengáo de si, o interesse é dirigido para outros principios que náo as meras
A crítica que nasce no século xvi, em compensagáo, revela uma atengáo pressóes ocultas. Pode dirigir-se para os mecanismos, por exemplo, para o fun-
maior aos principios mecánicos, e mesmo racionais, e ao encadeamento de cau­ cionamento concreto do corpo, para as técnicas, também, mais do que para a
sas e efeitos. E o lugar do corpo, a sua inscrigáo no universo, a sua vizinhanga opressáo do «céu».
com as forgas naturais, que tende a mudar lentamente: menor dependencia de
potencias invisíveis.

115 J. C alvin, Traité des reliques, G enebra, 1599, p. 74.


116 P. de M oulin, B o u clier de la F o y ou défense de la confession de f o i des E glises Ré- 121 J. D elum eau, La civilisation de la R enaissance, Paris, A rthaud, 1967, p. 490.
fo r m é e s du R o ya u m e de F rance, C harenton, s.d. (século x v n ), p. 481. 122 F. R abelais, P antagruéline P rognostication, certaine, véritable e t infaillible p o u r Van
117 T. A g rip p a d ’A ubigné, Sa vie á ses enfants (1552-1630), O euvres, P aris, G allim ard, p erp étu el (1533), O euvres..., op. cit., p. 921.
L a Pléiade, 1969, p. 388. 123 Ibidem , p. 927.
118 S. B oiron, La C ontroverse née d e la querelle des reliques á l ’époque d u concile de 124 L. C o m aro , op. cit., p. 78.
Trente (1500-1640), Paris, PU F, 1989, pp. 76-77. 125 Idem .
119 P. B oussel, D es reliques e t de le u r bon usage, Paris, B alland, 1971, p. 216. 126 N . M achiavel, Le P rin ce (1513), O euvres com pletes, Paris, G allim ard, L a Pléiade,
120 J. D elum eau, Rassurer..., op. cit., pp. 232-233. 1958, p. 367.

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l
O REGIME CONTRA O COSMOS
OBEDECER AO COSMOS

6 . A N A L O G IA S M E C Á N IC A S quando se devem purificar e também aliviar. Daí a necessidade de serem con-


duzidos secando-se. O alambique ilustra uma figura canónica de purificagáo.
A «máquina», mais do que outrora, serve aqui de ¡lustracáo. O corpo, no sé- O consumo de «água ardente», de «água de fogo», prolonga ainda a ima­
culo xvi, assemelha-se largamente aos objectos fabricados. Impóe-se uma ima- gem. O espirito do vinho conserva as energías adquiridas no alambique. Pene­
gem que oferece uma representagáo já global da disposigáo corporal e da sua tra os órgáos como um «éter», separando as matérias, rejeitando «o que náo está
autonomía possível: o modelo do alambique, a cucurbita e as tubuladuras, que puro», preservando as carnes de todo o apodrecimento até á «enorme virtude de
purificam as esséncias. dissol ver o sangue coagulado mantido no corpo» l33. A água-de-vida é a mais ac­
O uso do alambique está dominado desde a Idade Média, mas mantém-se tiva das quintas-esséncias, realizando a adequagáo entre o seu nome e a sua ac-
durante muito tempo misterioso e secreto; prática confinada aos laboratorios gáo: ela é a água que pode prolongar os dias. O seu poder toma-se tanto mais
dos alquimistas ou de boticários ¡solados. A difusáo da destilagáo no século xvi comentado quanto o licor comega a difundir-se para além dos segredos dos al­
facilita, sem dúvida nenhuma, o recurso a este modelo. quimistas. As suas virtudes estáo menos cunhadas de mistério. As suas qualida-
des contrárias, associando o frió da água e o calor do fogo, o húmido e o seco,
sao menos inquietantes l34. Joubert propóe mesmo fortalecer os velhos, citando
O alambique e a destilagáo o caso de mortes adiadas pelo recurso as «águas impelíais», confecgóes de «al-
quermes ou outras coisas cordiais» ,35. Ambroise Paré julga igualmente estas
A analogía orienta aqui o sentido dos fluxos, sugere a ascensáo dos humo­ substancias indispensáveis á saúde; multiplicando sem fim a sua diversidade;
res no corpo e a sua expulsáo para o alto, um movimento que atravessa o descrevendo minuciosamente como dispor «por pequeñas camadas de alambi­
conjunto dos membros. Como na gravura de Gerard Dorn, em meados do sé- que de vidro» as carnes de «vitelos, cameiros, cabras, capóes, frangos, galinhas
culo xvi ni\ um homem inscrito num alambique, cujas sobreposigóes anatómi­ gordas, perdizes e faisóes... miudamente picados» 136, para lhes extrair as essén­
cas representam sucessivamente o fomo, a cucurbita, a tubuladura e o bico ver­ cias mais activas. O alambique acentúa todas as purificagóes.
tedor. A «purificagáo» reúne-se claramente ao mecanismo técnico: deixando a Foi a conservagáo que constituiu a qualidade primeira da água-de-vida e o
cabega escapar os humores previamente trabalhados. seu sucesso para os marinheiros holandeses, os primeiros agentes da sua difu­
Os conselhos de saúde dados no século xvi seguem simplesmente a imagem sáo no século xvi: líquido melhor protegido do que o vinho ñas longas traves-
como o faz Straparole numa das suas novelas: «Primeiro, que mantenhais a ca- sias 137; líquido mais «potente», também, dado regularmente aos marinheiros
bega seca de todo o humor; segundo, que tenhais os pés quentes.»128 O corpo nao para as situagóes de forga a partir do final do século xvi: «Por forma de aumento
«destila» bem se o sentido dos humores nao for sustido, «favorecido», orientado e para bordagem de vela no mau tempo.» 138 O mercaao alarga-se suficiente­
como um percurso. Caso contrario surgiriam doengas e decomposigóes das ma- mente em Franga para que regióes como Aunis ou Charente exportem, desde o
térias; como o intenso «fluxo do ventre» de que se diz vítima Félix Platter num século xvi, para a Holanda e para a Inglaterra. Sao, enfim, a conservagáo e a pu­
dia de 1522: desordem causada, segundo ele, por caminhar descaigo sobre um rificagáo que constituem a sedugáo da imagem do alambique, primeira máqui­
solo gelado, perturbagáo da elevagáo dos humores provocada pelo frió 129. na analógica do corpo, antes das montagens mecánicas mais geometrizadas que
Montaigne retoma a imagem, insistindo sobre este «calor que se toma de ini­ o século x v i i inventará.
cio nos pés», para ser transformado em «vapor que vai subindo e exalando-se» 13°.
Monteux também retoma a imagem, recomendando o aquecimento dos pés e a
secagem da cabega, sublinhando o perigo de toda a evaporagáo contrariada. A «república» do corpo
O turbante dos Persas seria disso prova: nao tém os Orientáis de turbante os den-
tes apodrecidos por qualquer excesso de humor estagnado? O turbante sufoca o O modelo, no entanto, junta-se ainda a outros, durante o século xvi. O im­
fogo e contraria o fluxo 131. A imagem banaliza-se no final do século xvi: Bas- portante aqui é mesmo o brusco aumento de evocagóes analógicas, a sua diver-
sompierre pretende reconhecer os cadáveres dos turcos nos combates húngaros sificagáo e a sua multiplicidade. Trata-se menos de alusóes mecánicas, aliás,
de 1603, «pelos dentes todos estragados que eles tinham por causa do seu tur­ que de analogías jogando com a hierarquizagáo e o comando: a orquestragáo
bante» l32. O risco consiste deixar os humores tomarem-se espessos na cabega,
133 A. Paré, D isco u rs de la licorne, op. cit., p . 129.
127 G. D o m , L ’anatom ia d elli corpi viví (século xvi), pl. 134 Ver aqui p . 34.
135 L. Joubert, op. cit., 1 . 1 , p . 11.
128 G. E S traparole, op. cit., t. n, p. 390.
129 F. et T. P la tter á M ontpellier, 1552-1559, 1595-1599, notes de voyage de deux étu- 136 A . Paré, D es d istillations (1575), in O euvre com pletes, op. cit., t. m , p . 621.
137 M . L achiver, Vins, Vignes et Vignerons. H istoire du vignoble fra n g a is, Paris, Fayard,
dia n ts bálois, M ontpellier, 1892, p. 13.
1988, p . 261.
130 M . de M ontaigne, op. cit., p. 380.
138 R. C halles, Jo u rn a l d ’un voyage a u x Indes (1690), Paris, M ercure de F rance, 1979,
131 H . de M onteux, op. cit., p. 30
132 F. de Bassom pierre, Journal de m a vie, Mémoires, Paris, 1870 (1.a ed., 1665), 1 . 1, p. 118.
PP- 82, 188, 192.

73
72
OBEDECER AO COSMOS

polifónica, por exemplo, ou a república, o Estado, no qual cada acgáo deve con­
vergir para lhe preservar a unidade. Uma maneira de sugerir a totalizagáo dos
órgáos, a sua «unificagao», de lhe sublinhar também o funcionamento conve­
niente, longe das referencias cósmicas. É em tomo da ordem que Comaro de-
senvolve as comparagoes, a ordem do exército, a da cidade, a que «dá a vitó-
ría», a que «dá a estabilidade»: em cada caso, a analogia do comando único
sobre um conjunto hierarquizado l39. Brantóme dá alguns exemplos, ainda mais
precisos, ñas Dames galantes: «Aprendi com um grande médico que os corpos
humanos náo conseguem estar bem se todos os seus membros e partes, desde
os maiores aos mais pequeños, náo fízerem em conjunto os seus exercícios e as
fungóes que a sábia natureza lhes ordenou para a sua saúde, e náo fagam um SEGUNDA PARTE
acordo comum, como um concerto de música, náo havendo razáo para que al­
gumas das ditas partes ou membros trabalhem e as outras repousem; assim EVACUAR OS HUMORES
como numa república fazem todos os oficiáis, artesáos operários e outros, o ne-
cessário, unánimemente, sem se darem descanso nem se colocarem uns sobre S É C U L O X V II
os outros, se se quer que tudo esteja bem e que o seu corpo se mantenha sáo e
íntegro.» 140
A música do século xvi com instrumentos mais numerosos, mais emancipa­
dos e os seus «concertos» que se aventuram imperceptivelmente para a sinfo­
nía, vem ajudar a analogia. As primeiras análises de Bodin sobre o Estado mo­
derno, em 1550, sugerem também novas referencias: a representagáo de uma
república toma-se pessoa moral, conjugando organizagáo e diversidade, a ima­
gem de uma coordenagáo centralizada, erigindo a colectividade em entidade 141.
O corpo descrito como uma cidade, ou como um exército, por Comaro, obede­
ce ao mesmo principio: o da ordem, uma unidade física hierarquizada, coman­
dada do centro para a periferia. Daí esta associagáo frequente, no século xvi, en­
tre a manutengáo da saúde e o «govemo», entre a conduta preservadora e o
«comando», a coordenagáo de principios sucessivos e subordinados. Como no
título de um tratado de La Framboisiére, médico ordinário do rei, em 1600, Le
gourvemement nécessaire á chacun pour vivre longuement. A imagem náo sub-
verte necessariamente as práticas 142. Ela mostra somente que o corpo adquire
aqui uma pretensáo «organizadora». A sua apropriagáo toma-se mais específi­
ca, em todo o caso menos misturada com as meras qualidades do universo.

139 L. C o m aro , op. cit., p. 54.


140 P. de B ourdeilles, conhecido co m o B rantóm e, Vies des dam es gala n tes (fináis do sé-
culo x v i), Paris, G allim ard, coll. «F olio», 1981, p. 204.
141 J. B odin, L e s D ix L ivres de la R épublique, Paris, 1576.
142 Sieur de L a F ram boisiére, Le g o u vern em en t nécessaire á chacun p o u r vivre longue­
m ent, Paris, 1600.

74
CA PÍTU LO I

MECÁNICA CORPORAL E E V A C U A D O

As silhuetas de Giovanni Braeelli, dedicadas ao duque Pierre de Médicis,


em 1624 representagóes filiformes que ilustram o corpo em movimento, reto-
mam, algumas délas, a analogía com o alambique: o modelo do século xvi náo
está esquecido. Mas a série de Braeelli mostra também que o aparelho do des­
tilador já náo é a única referencia maquinista do corpo no século x v i i . A maior
parte destas gravuras renovam e multiplicam os exemplos de mecanismos mais
diversos, sugerindo figuras geométricas e a rtic u la re s metálicas: ligagóes por
parafusos e cavilhas, cavidades ligadas por tubuladuras e movimentos acciona­
dos por energias. As animagoes de Giovanni Braeelli náo sáo mais do que jo-
gos ficticios aos quais o próprio gravador recusa qualquer valor realista. O Flo­
rentino náo é nem anatomista nem mecánico, e Tristan Tzara que lhe consagra
um texto longo em 1963 2, ve nele antes um precursor dos surrealistas, um vi-
sionário que manuseia o imaginário com audácia e destreza. Esta inspiragáo do
gravador italiano merece, no entanto, uma atengáo: nele a referencia mecánica
possui um sentido decisivo que revela uma transformagáo da percepgáo do cor­
po no século x v i i .
Outros índices confirmam a mudanga. O corpo é mais instrumentalizado,
mais mecanizado nos tratados de saúde do século x v i i do que nos tratados
anteriores. É feito largamente de circuitos, de fluxos, como os do coragáo com
a sua mecánica circulatoria, descoberta em 1628. Este corpo parece menos
submetido do que na Idade Média ás meras influencias cósmicas. Ganha em au­
tonomía possível, dispondo, mais do que anteriormente, de articulagóes e com-
postos. Toma-se mais fácilmente objecto de manipulagóes, de direccionamen-
tos e de intervengóes espontáneas. Náo que a eficácia preventiva se tenha
perturbado ou que as curas sejam mais numerosas. Uma certeza se afirma: a de
se agir sobre uma mecánica tangível, a que melhor previne os malogros.

' Ver G. B. B raeelli, B ia rrie di v a n e fig u re. F lo re ría , 1624.


2 T. T zara, «A p ropos de G. B. B raeelli» (1963), in M . Préaud, B raeelli, gravures, Paris,
Ed- du C héne, 1975.

77
EVACUAR OS HUMORES MECÁNICA CORPORAL E EVACUACÁO

1. A R E G U L A Q Á O M E C Á N IC A soas mais refinadas da corte combinam até á obsessáo, carnes tenras e lactici­
nios: os acompanhantes da corte, em Franga, por volta de 1 6 9 0 , procedem sim-
A atengáo as qualidades sanitárias dos alimentos é já mais presente no sé- plesmente á engorda de vitelos com a ajuda de leite e de ovos «com a sua cas­
culo x v i i . E esta atengáo que Marie Mancini, a sobrinha de Mazarin, invoca ca» 10. O extremo das carnes nascentes. Náo que estes consumos mais vigiados
para justificar o seu refugio temporário num convento, á sua chegada a Franca: obedegam sempre aos preceitos médicos, como no caso das saladas ou dos fru­
«As poucas regras que eu tinha na minha maneira de viver, comendo sem dis- tos mais vulgares, que sáo julgados factores de decomposigáo pela Faculdade 11
tingáo do que pudesse fazer bem ou mal, reduziram-me a um táo lastimável es­ Descartes apura, na Suécia, uma dieta que ele eré infalível. Os seus visitan­
tado que o cardeal, meu tio, resolveu pór-me num convento para ver se eu me tes apresentam-na como um sucesso, uma esperanga para «viver vários sécu-
recompunha.» 3 E ainda um mau regime que é suposto alterar a saúde de Ma- los»: o abade Pécot «ficou táo contente que no seu regresso a Franga renunciou
dame d ’Aubigné, cerca de 1690; baseado em erros táo «graves», segundo o mé­ seriamente á grande carne... e quis reduzir-se ao instituido por Monsieur Des
dico do rei, que lhe ameagaria a vida, proibindo-lhe toda a esperanga de ter um Cartes, acreditando que seria o único meio de fazer triunfar o segredo que pre-
filho: «Monsieur Fagon está persuadido que Madame d'Aubigné come vilanias tendia ter sido encontrado pelo nosso filósofo para fazer viver os homens qua-
e que ela náo terá jamais saúde nem crianga se, através de uma longa sucessáo tro ou cinco séculos» 12. Muito «clássica», no entanto, se mantém a conduta de
de bons alimentos, náo restabelecer o seu estómago e náo purificar o seu san- Descartes: «A melhor maneira de prolongar a vida e o método a seguir para
gue.» 4 Náo há dúvida que o regime alimentar tem um lugar relevante no sécu­ manter um bom regime é viver como os animais e, entre outras coisas, comer o
lo x v i i , e a sua importancia é comentada e analisada. que nos apetece.» 13 Descartes avalia, como Comaro um século antes, os efeitos
do que come, observando as suas impressóes, retendo o que lhe agrada, per­
suadido de que Deus náo pode enganar se as sensagóes sáo «clara e distinta­
O regime alimentar ou a evacuagao? mente» designadas. Vigilancia tanto maior que o filósofo diz, em 1 6 4 5 , ter fei-
to «da conservagáo da saúde o principal fím dos seus estudos» 14.
Hooke, conhecido aliás por sábias observagóes microscópicas, investiga as A dieta é assim admitida e comentada no século xvn. Ela só é escarnecida
consequéncias de certos pratos sobre o seu sono. Por volta de 1670 acumula no­ quando parece «extrema», como no caso de Madame de Gondran que Tallement
tas cursivas e precisas, revelando uma curiosidade inédita: «Mal dormido, de­ ridiculariza suspeitando da sua loucura: «Ela meteu na cabega que devia ema-
pois de ter comido pudim de arroz [...]. Mal dormido depois do queijo.» 5 As grecer. Para isso, esteve vinte e quatro horas sem comer, bebeu vinagre, comeu
trocas de correspondencia entre Saint-Evremond e o conde d'O lonne formulam limoes e outras vilanias. Ela fingiu-se passar por hidrópica; ela emagreceu, mas
igualmente apreciagóes sobre os efeitos dos seus consumos: ocasiáo para Saint- já quase náo tem saúde. Ela está um pouco tola.» 15 Ou no caso do padre de
-Evremond transpor a cultura libertina para a atengáo particular aos sabores, a de Saint-Vincent du Mans, em 1 7 0 2 , cujas refeigoes, tomadas de oito em oito dias,
celebrar o vinho d'Ay, «o mais saudável, o mais puro de todas as qualidades da teriam conduzido a uma «inanigáo mortal» 16.
térra» ”, a de condenar os acepipes que as misturas de ingredientes transforma- Se os índices de uma maior vigilancia sobre a alimentagáo no século xvii sáo
riam em venenos. Os alimentos tomados as próprias raízes da vida sáo larga­ reais, muito mais importante é a transformagáo das práticas de evacuagáo que
mente comentados, como os que possuem o fermento dos crescimentos, o leite, renova sangrías, transpiragoes e purgas. Muito mais reveladora também de uma
os ovos, as carnes de animais recentemente desmamados. Madame de Sévigné deslocagáo da cultura. A mudanga é marcante. O conflito entre os médicos e os
insiste sobre estas carnes de animais ainda «crias», o seu sangue rosado, a sua cozinheiros do rei constituí um sinal: os cozinheiros ainda prevalecem sobre o
cor quase branca: «Para mim, govemo-me com a vitela, o cordeiro e pequeños
frangos e sinto-me táo perfeitamente que mais náo vos poderia desejar.» 7Os re- 10 L. de Saint-S im on, M ém oires, B oislisle éd., Paris, 1879-1928, t. x i, p. 21.
gimes de Saint-Cyr e das Ursulinas inclui regularmente «manteiga fresca bati­ 11 O abade de C hoisy insiste m uito, p o r exem plo, nos seus «frutos de Invernó» dos quais
da e ovos frescos no prato» 8, por vezes «aves e cordeiros» 9. Muitas das pes- possui «um a g rande p rovisáo» (M ém oires de l ’abbé de C hoisy hab illé e n fe m m e , m eados do
século x v n , Paris, M ercure de France, 1966, p. 351), e nquanto que os frutos acusados pe-
os m édicos de p ro v o car «ventosidades e dores no ventre» (B. Pisanelli, Traite de la nature
3 M . e H. M ancini, M ém oires, Paris, M ercure de France, 1965 (1.a ed., 1676), p. 101. des viandes, Paris, 1620, p. 5).
4 M m e de M aintenon, Lettres, P aris, 1752, t. n, p. 42 ‘ A. B aillet, Vie de M o n sie u r D escartes, Paris, 1691, t. II, p. 452; ver tam b ém M.
5 C itado p o r G. R attray Taylor, H istoire illustrée de la biologie, Paris, H achette, 1965, G rm ek, La P rem iére R évolution biologique, Paris, Payot, 1990, p. 141.
1.a ed. inglesa, 1963), p. 50. 13 R. D escartes, E ntretien avec B urm an, 16 de A bril de 1648, O euvres et Lettres, Paris
6 C. de S aint-E vrém ond, C arta de 1676, O euvres m élées, t. m, C orrespondance, Paris, G allim ard, L a Pléiade, 1953, p. 1402.
1866, p. 17.
P 329^ D escartes’ C arta 30 m arqués de N ew castle, O utubro de 1645, O euvres..., op. cit.,
7 M m e de S évigné, C arta de 2 de A bril de 1690, C orrespondance, Paris, G allim ard, L a
Pléiade, 1974, t. m, p. 856. G. T allem ant des R éaux (1619-1692), H istoriettes, Paris, G allim ard, L a P léiade 1960
8 M m e de M aintenon, op. cit., t. iv, p. 159. l - " , p. 437.
9 P. C onstant, Un m onde á l ’usage des dem oiselles, Paris, G allim ard, 1987, p. 150. 6 L e M ercure galant, N ovem bro de 1702, p. 216.

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MECÁNICA CORPORAL E EVACUACÁO
EVACUAR OS HUMORES

més também para Luís XIII que Bouvard, seu ctrurgiao, corta ate q u in ta i e
regime. Saint-Simon mostra os médicos de Luís XIV inquietos com o número
sete vezes num ano 26. Frequéncia idéntica aínda para Madame des P o rc e e t
de guisados e de molhos que o rei consomé. Evoca o seu receio de ver o san­
uns trinta anos mais tarde, que prefere estabelecer um contrato com o seu c -
gue real «transformar-se em gangrena» n, sugerindo um regime mais seco, mais
X S o para náo ter de lhe pagar no acto: «Estabeleci uma convengao com
«espirituoso» para limitar os excessos de líquido. A própria princesa Palatina,
Monsieur Darles, meu cirurgiáo, para me servir [a pedido], agltondo-m e du
embora engolindo choucroutes e salsichas, se espanta com o intenso apetite do
cargas de trigo ou dez escudos de prata, a minha escolha.» E entao que todas
rei: uma orgia de carnes cozidas que o mau estado dos seus dentes náo lhe per­
as semanas Madame des Porcellets o recebe para uma sangría. A mes™ S ’
mite mastigar IS. Mas os cozinheiros, alertados, respondem que «cabe-lhes a
sidade enfim para Ménage, o amigo de Guez de Balzac e d e M ad am ed eL a^ a-
eles dar de comer ao rei, e aos médicos purgá-lo» 19: As refeigoes do soberano
yette, que, por volta de 1670, ajusta com o cirurgiáo uma media de 13 céntimos
náo mudam. A evacuacáo continua a ser mais importante do que a ingestáo.
Como mostra ainda a atitude de M. de Bulion, conselheiro no Parlamento de
P° T p 5 t k a toma-se táo comum que nenhum perigo parece daí resultar. Pelo
Paris, muito citado por Tellement: o velho parlamentar faz-se «dar lavagens» 20
contrário, alguns atribuem-lhe apenas um risco: o de um «excesso de sau e»
para comer melhor e sofrer menos.
ou de uma abundáncia de humores compensadores, um acres,=i_m0 ^ 5
O gesto da sangria é mais importante ainda. Tomou-se táo legítimo, táo ba­
que vem substituir a fuga de sangue assim provocada. Profusao s o b re a q u a la
nal na Franga clássica, que os próximos do Senhor, o irmáo do rei, grande co­
Bibliothéque des sciences se perde em conjecturas: «Uma m ulhe■ *“ 8 ^
medor de cara «congestionada», o incita, em 1701, a mudar de cirurgiáo para
mais de sessenta vezes num ano, por afecgóes moráis, adquire uma gordura tal
ser mais frequentemente e melhor sangrado 21. Nenhum reparo sobre a qualida­
que o peso do seu corpo aumenta mais de cento e anquento libras.»
de ou o excesso de alimentos, neste caso, mas antes a insistencia na aposta da
O exemplo real é o mais frequentemente citado, senao o mais imitado.^
evacuagáo: a afirmagáo de uma prioridade ñas condutas de manutengáo.
Journal de Santé de Luís XIV menciona regularmente vánas sangrías por mes,
a isto se acrescenta um «remédio» mensal (clister ou purga), escrupuíosamen e
relatados por Saint-Simon; ou a combinagáo dos dois evocada pela prmcesí
A forga e a sangria
Palatina, em 1701, quando julga que a saúde do reí enfraquecera. «Sua M J
tade já náo goza de boa saúde, temo-o, porque se droga continuamente. Ha oit
M adame de Sévigné sublinha a intensificagáo desta prática quando em 1675
dias que lhe foram tiradas, como medida de precaugáo, cinco medidas e san­
o pequeño marqués de Grignan é sangrado devido á febre, aos tres anos, uma
gue (quatro ongas); há tres días tomou um remédio forte; de tres em tres sema­
idade em que a incisáo parecía até entáo impossível. A marquesa admira-se:
nas o reí toma remédios.» 30A purga preventiva alcanga aquí uma comp exida-
«No meu tempo náo se sabia o que era sangrar um menino de tres anos.»22 No
de sem precedentes. Ela precede qualquer iniciativa imP < fante’ ^
entanto, Gui Patin assimila estas sangrías precoces a uma garantía de forga.
previsáo de fadiga, toda a partida em campanha, «punficando» o corpo p
É ao tratar uma bronquite do seu filho, também com tres anos, ao «descarregar
melhor o ajudara defender-se. Mais aínda, a tomada de purgante
pelas veias» os catarros com que a crianga «pensava sufocar» 23, que o médico
precedida de uma preparagáo purificadora, um clister que lhe completo e lhe au
parisiense adquire uma convicgáo: a sangria precoce faz os seres fortes; ela
menta os efeitos: «A 14 do mes de Setembro [1672] prepara-se, a hora de d
desempenha um papel preventivo. Várias sangrías provocadas deram ao filho
tar, para um clister e no dia seguinte, toma a sua mezinha purgante » O fim
de Gui um vigor que este náo tinha, uns pulmóes mais fortes e uma maior re­
deste redobrar da acgáo é também o de tom ar mais «suave^ m a is ^ c phnad
sistencia: «Ele é hoje o mais forte dos meus tres rapazes.» 24
a operagáo laxativa. Um acréscimo das precaugoes sem que tenham aínda mu
A frequéncia da incisáo aumenta, na elite do século xvii: várias vezes por
mes para o cardeal de Richelieu no grau supremo do poder, segundo o teste- dado as explicagóes ou as referencias tradicionais. diversifica­
o s gestos de intervengáo sobre o corpo, mais numerosos e mais diversifica
munho de Angelo Correr, o embaixador veneziano em 163925. Várias vezes por
dos no século xvii, substituem lentamente as forgas obscuras e os efeitos da

17 L. de Saint-S im on, op. cit., t. x x v n , p. 188.


* J . H éritier, L a Séve de V hom m e, de l ’áge d ’o r de la saignée a u x debuts de V hém ato-
18 J. G rand C arteret, L ’H istoire littéraire, les M oeurs, la Curiosité, 1450-1900, Paris, Li-
b rairie de la curiosité, 1927, t. m, p. 83. logie, Paris, D enoél, 1987, p. 21. . , 039
27 C. de R ibbe. Une grande dam e dans son m enage au tem ps de Louis XIV, F a n s, ío o y .
19 L. de Saint-S im on, op. cit., t. x x v n , p. 187.
20 G. T allem ant des R éaux, op. cit., 1 . 1 , p. 301. P- 359.
28 G . T allem ant des R éaux, op. cit., 1 . 11, p. 329.
21 L. de Saint-S im on, op. cit., t. v m , p. 313.
» B ib liothéque des sciences. P a n s, B ureau d ’adresses 1668, t. v i, p 1 /O.
22 M m e de S évigné, C a rta de 26 de Jun h o de 1675, op. cit., 1 . 1 , p. 743.
» L ettres d é la p rin cesse P alatine (1672-1722) P a n s, M ercare de France 1 9 8 p. 2 0 L
23 G. Patin, C a rta de 18 de Janeiro de 1644, Lettres, Paris, 1 8 4 6 ,1 . 1 , p. 314.
31 a Vallot A d ’A quin G . C. F agon, J o u rn a l de sante du roí L o u is X IV de l a n n e e l
24 Idem . a / w J / S , p 1 T s 6 Í p. 113; ver tam bém M . C a r o * I * C orps du R oi-Soleil, P a n s,
25 Ver G. C om isso, L es A m b a ssa d eu rs vénitiens, Paris, L e P rom eneur Q uai Voltaire,
Im ago, 1990, em particu lar «Le corps purgé», pp. 59 e ss.
1989, «E xtrait de la relation d ’A ngelo C orrer», p. 234.

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EVACUAR OS HUMORES MECANICA CORPORAL E EVACUACAO

simpatía: uma pureza «trabalhada» e já nao «por contacto» apenas. Há uma bus­ sangue de cameiro para um «pobre homem pervertido» 3S; mas as suas manipu-
ca de objectivagáo neste aliviar dos humores, mesmo que seja irregular: aguar­ lagóes perdem-se no insucesso e no esquecimento. Jean Denis, obscuro cirur-
dar «físicamente» a doenga até a mostrar. As repetidas alusóes as novas máqui­ giáo parisiense, procura igualmente, em 1667, alguma celebridade nestas ope-
nas do século xvn confirmam-no ainda mais: o corpo que se toma «bomba», ragóes audaciosas, elogiadas por «fazerem regressar as forgas e rejuvenescerem
«fonte», ou mesmo «relógio», com a difusáo das referencias cartesianas, é um os velhos»39. Ele descreve as reaegóes de um bravo e «robusto» talhante de qua-
corpo prioritariamente submetido a evacuagoes mecánicas. Ele manifesta uma renta e cinco anos que ele diz ter transfundido com sangue de cameiro: o ho­
imperceptível libertagáo a respeito dos movimentos do mundo. Sinal discreto, mem alega logo sentir um vigor excepcional, engolindo num simples gesto o
quase invisível, da ascensáo do individuo moderno. carneiro da experiencia antes de enfrentar «um trabalho de todo o seu corpo, táo
A descoberta de uma circulagáo linfática quase ao mesmo tempo da deseo- rude que os próprios cavalos difícilmente teriam resistido» 40. E preciso dizer
berta da circulagáo sanguínea, a sua representagáo em estrela ou em rede (os que o sangue de cameiro é incompatível com o sangue humano. Várias mortes
«vasos lácteos» de Gaspare Aselli) 32, reforgam ainda a convicgáo de um fun- vieram interromper estas «experiencias» e surge a condenagáo pelo lugar-te-
cionamento mecánico do corpo. Os riscos sáo os tubos demasiado frágeis. Re­ nente criminal de Chátelet, em Abril de 1668 41. A mecánica corporal tem as
presentagáo ligada as técnicas hidráulicas da época, mas que privilegia os ges­ suas surpresas, mesmo que as suas referencias se tenham imposto.
tos de purificagáo ligados á tradigáo: «Como acontece ñas fontes ás condutas da Máquina acima de tudo estranha, que parece náo ter orientagáo interna,
água entupirem... acontece também muito frequentemente ás condutas do san­ nem mesmo resistencia conveniente: a perspectiva mecanicista faz negligen-
gue entupirem e rebentarem, quando o licor que contém é mais espesso do que ciar parcialmente a possível existencia de obscuras energías interiores, de uma
devia ou é em demasía.» 33 A imagem mais banal das chaminés, sobre a qual vitalidade íntima. A máquina aqui é entregue apenas ás leis das forgas moto­
Duncan insiste, corrobora a mesma analogía dos circuitos obstruidos de esco­ ras. Os conselhos de Madame de Sévigné dados a sua filha náo revelam
rias: «Porque os vapores do sangue náo saem apenas pela boca e pelas narinas, nenhuma sabedoria vinda do corpo; nenhum equilibrio, por exemplo, entre
eles devem sair também pelos poros de todo o corpo, que em conjunto fazem aquecimento e arrefecimento, nenhum equilibrio entre dessecamento e humi-
uma chaminé maior.» 4 Mesmo quando Malebranche considera a «máquina do dificagáo. Toda a experiencia exterior se pode tom ar ilimitada. Inumeráveis
corpo» táo complexa, «tao admirável», que o homem deveria «encontrar com sáo as circunstáncias de risco de aquecimento do sangue «até criarem estragos
mais certeza nele próprio o que lhe é necessário para a sua conservagáo do que cruéis» 42: o sol da Provenga que transforma «em fomo» 43 o quarto de M ada­
pela ciencia» 35, mesmo quando o douto académico hesita em confiar nos mé­ me de Grignan, o jogo de xadrez que «faz mal enquanto diverte» 44, as bebidas
dicos, recorre á referencia mecánica: fluxos e circuitos justificam para ele o uso quentes, a insuficiencia de alimentos, a postura inclinada ao escrever que
regular da purga e da sangría, permitindo «limpar o sangue e os humores e ti- «mata o peito» 45, o ar de Avignon que «inflama a garganta» 46, e a banal «agi-
rar-lhes o amargor» 36. tagáo dos dias» 47. Inumeráveis sáo, também, as circunstáncias que criam in-
coercíveis de secamentos: o vento de Grignan que «suprime o sono» 4S, o ex-
cesso de evacuagoes que estanca o corpo e o esquecimento do leite e dos
Máquina e regulagao alimentos tenros, que emagrece as carnes.
Nada de mais sensível, todavia, que este corpo mecánico, nada de mais per-
É claro que a mecánica tem os seus riscos, os seus resultados por vezes de­ turbável também. A máquina sofre passivamente as aegóes vindas do exterior:
sastrosos e os seus dramas. Sáo patentes vários reveses. A atengáo á circulagáo o aquecimento suscitado sobre as costas por uma posigáo de dormir pode cau­
mecánica do sangue desencadeia a tentativa de transfusóes com o intuito de pro­
longar a existencia. Richard Lower, em 1665, inventor das sábias válvulas de
prata, introduz sangue estranho ñas artérias do corpo. Ele pretende prevenir as 38 Idem .
39 R L a M artiniére, M éd ée ressuscitée a ffirm ant V utilité de la transfusión d u sang, P a­
doengas: trocar o sangue «de animais velhos pelo de animais jovens, de animais
ris, 1668, p. 5.
doentes pelo de animais saudáveis» 37, dar uma forga nova aos seres abatidos. 40 J. D enis, Lettre á M o n sie u r M o n tm o r co n seiller du R oy en ses conseils, P rem ier M ais-
Richard descreve algumas tentativas: a transfusáo entre dois caes e depois a do tre de R equestes touchant une nouvelle m aniere de g u é rir p lu sieu rs m aladies p a r la tra n s­
fu sió n du sang, Paris, 1667, p. 14.
32 G . A selli, D e lactibus sive lacteils venís, Lyon, 1627. 41 P. L a M artiniére op. cit., p. 11.
33 C. de M arais, L e M édecin de soi-m ém e, L eyde, 1682, p. 57. 42 M m e de Sévigné, C arta de 25 de Janeiro de 1690, op. cit., t. m, p. 819.
D. D uncan, A vis salutaire á tout le m onde su r l ’abus des choses chaudes, p articulié- 43 Ibidem , t. n, C arta de 18 de Junho de 1677, p. 470.
rem ent du café, d u choco la t e t du thé, R oterdáo, 1705, p. 177. 44 Ibidem , t. III, C arta de 23 de A bril de 1690, p. 869.
35 N . de M alebranche, D e la recherche de la vérité (1674-1675), in O euvres com pletes, 45 Ibidem , t. m , C arta de 5 de N ovem bro de 1684, p. 152.
Paris, V rin, 1 9 6 2 ,1 . 1 , p. 491. 46 Ibidem , t. m, C arta d e 13 de Julho de 1689, p. 640.
36 Ibidem , t. Ill, p. 197. 47 Ibidem , t. m, C arta de 30 de O utubro de 1689, p. 740.
37 C itado p o r G . R. T aylor, op. cit., p. 6 8 . 48 Ibidem , t. m, C arta d e 19 de A bril de 1689, p. 580.

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EVACUAR OS HUMORES
MECÁNICA CORPORAL E E V A C U A D O

sar cálculos renais 49; a respiracao de um ar quente pode conduzir á raiva 50; a queira!.» 56 Eusébe Renaudot decreta mesmo «o antimonio triunfante» 57 em
penetragáo do «ar encanado» pode conduzir á morte 51. O perigo é constante: 1 6 5 3 . Mas a droga é de uso complexo, apesar de todos os suavizantes e dos ate­
a referencia a uma mecánica corporal parece mesmo ter tomado indispensável nuantes que lhe misturam. A sua acgáo pode ser violenta, semelhante á do arsé­
e permanente a vigilancia que lhe afina o curso. O acréscimo de «ciencia» au­ nico. A Pharmacopée roya l de Moyse Charas sugere discretamente os seus pe-
menta neste caso a incerteza. Pela primeira vez, a experiencia da saúde revela a rigos: «Só se deve dá-la a pessoas bem robustas e que, tendo o peito largo,
infínidade do risco: os objectos ameagadores multiplicaram-se. Só Deus, aliás, possam vomitar fácilmente.» 58 O antimonio é mais um medicamento do que
poderia ser instáncia reguladora. É a confissáo de Malebranche que insiste no uma pogáo preventiva: mais um remédio utilizado para as febres do que uma
inesgotável do detalhe mecánico e na incapacidade de abranger o conjunto: droga de precaugáo. O recurso a este vinho táo especial é limitado pelo Parla­
«E impossível que os homens conhegam suficientemente todas as figuras e to­ mento de Paris, a 1 6 de Abril de 1 6 6 6 , que «faz inibigáo e proíbe a todas as
dos os movimentos das pequeñas partes do seu corpo e do seu sangue para sa- pessoas de dele se servirem sem a ordem dos médicos da Faculdade» 59.
berem que se comerem [este fruto] seráo curados.» 52 Evidente é, pelo contrário, no século xvn a tentativa de aumentar e diversi­
ficar os fluxos protectores, com uma multiplicidade de propostas evocadas
como descobertas. As de Domergue, por exemplo, sugerindo muito seriamente,
2. F L U X O S M A IS D IV E R S O S , F L U X O S M A IS S U B T IS em 1 6 8 7 , o uso de uma pena de ganso «nova e inteira cuja ponta seja suave»,
empurrada para o fundo da garganta para melhor «atrair as águas e as fleumas
A verdadeira mudanga das práticas de saúde na Franga do século xvn pren- que se formam na cabega e escorrem para o peito» Domergue propóe ainda
de-se com o alargamento das práticas evacuantes. Madame de Nouveau mostra- «puxar o ar ou os ventos que se formam no estómago» 61 com frequentes pres-
o quando arranja em 1656 uma «intendente de saúde que lhe prescreve o que é soes exercidas sobre o ventre; sugere a adopgáo de uma posigáo particular ao
necessário que ela faga para se manter em forma» 53. A sua prática preventiva dormir para aumentar as transpiragóes: «Esticar-se, inchar e intumescer o ven­
diversifica-se em acgoes multiplicadas: já náo apenas a purga ou a sangría, mas tre e suster a respiragáo tanto quanto se consiga, retomá-la e encher o ventre
também a transpiragáo, a expectoragáo e o vómito. Os objectos tidos em conta continuamente, manter-se nesta postura deitado com os lengóis sobre as costas,
sáo menos visíveis e as evacuagóes provocadas mais subtis. Um refinamente do a cabega baixa sem camisa... achar-se-á entáo todo coberto de água até as ex­
sensível, característico da Franga clássica. tremidades.» 62 Ele próprio estima com alguns dos seus gestos regularmente re­
Enquanto náo sáo aumentadas nem as curas nem a duragáo de vida; en- petidos, ter-se guardado «das doengas causadas pelas águas e pelos ventos que
quanto náo avangam nem a compreensáo das epidemias nem a das desordens se formam no corpo» 6\ O «acto venéreo», claro, é tido em conta: evacuagao
internas, é próprio objecto do gesto de manutengáo que se desloca no sécu­ necessária, útil ao equilibrio dos humores, é evocado como qualquer mecánica
lo xvn. Exemplo notável de uma exigencia preventiva acrescida, náo seguida de vital. O médico da Franga clássica, imitando os seus antecessores, mostra-se
eficácia. pouco encamigado para com os jovens esposos: «Há perigo em reter este ex­
cremento... porque sendo retido apodrece e toma-se táo pernicioso como o ve­
neno.» 64As jovens viúvas sáo vítimas de «sufocos de matrizes», de «pálidas co­
A diversificacao dos fluxos res», de plétoras dolorosas e de «palpitagoes e síncopes» 65. As suas doengas
justificam um segundo casamento num prazo razoável; estas doengas explicam
Os fluidos vigiados sáo mais numerosos e mais trabalhados. O antimonio, também a ironia de Bussy-Rabutin perante a longa viuvez da sua prima, a mar­
por exemplo, impressiona os espirites: mineral cuja mistura com o vinho «pur­ quesa de Sévigné: «Náo creio que vos tivésseis mais dificuldade em tomar um
ga de alto a baixo todos os humores que encontra» 5\ o antimonio é, por vezes, amante do que um vinho emético.» 66
proposto como panaceia. Malebranche náo passa sem ele quando julga o seu es­
tómago frágil e sente necessidade de «o limpar», usando «vinho emético em pe- 56 J.-C. Dausset, Histoire des m édicaments des origines á nos jours, Paris, Payot, 1985, p. 170.
quena quantidade» 55. Madame de Sévigné vé nele ocasiáo de uma renovagáo 57 E. R enaudot, L ’A n tim o in e ju s tifié e t l ’A n tim o in e triom phant, Paris, 1653.
58 M . C haras, op. cit., p. 812.
completa dos humores: «Depois disso, prometem-me uma saúde eterna. Deus
59 Ver F. M illepierre, L a Vie quotidienne des m édecins au tem ps d e M oliere, Paris, Ha-
chette, 1983 (1.a ed., 1967), p. 125.
49 N . A. de la F ram boisiére, op. cit., p . 134.
60 D om ergue, M oyens fá c ile s et assurés p o u r co n se rve r la santé, Paris, 1687, p. 93.
50 C. M acherot, Jo u rn a l de ce q u i s 'e s t p a ss é a Langres e t dans les environs
61 Ibidem , p. 98.
(1628-1658), P aris, 1 8 8 0 , 1 . 1 , p . 374.
62 Ibidem , pp. 104-105.
51 N . G oulas, M ém oires (1627-1643), Paris, 1879, p . 37.
63 Ibidem , p. 107.
52 N . de M alebranche, op. cit., 1 . 1 , p . 491.
64 G. Patin, T raité de la conservation de la santé, Paris, 1632, p. 109.
53 G . T allem ant des R éaux, op. cit., t. ii, p . 451.
65 P. Jacquelot, L ’A rt de vivre longuem ent, L yon, 1630, p. 175.
54 M . C haras, P harm acopée royale, P aris, 1718 (1.a ed., 1676), p . 815. 66 C arta de R. de B ussy-R abutin de 16 de A g o sto de 1674, M m e de S évigné, C orres­
55 A . R obinet, M a leb ra n ch e vivant: biographie, bibliographie, Paris, Vrin, 1967, p . 17. pondance, op. cit., 1 . 1, p. 697.

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85
EVACUAR OS HUMORES MECÁNICA CORPORAL E EVACUAGÁO

A saúde, mais do que outrora, conquista-se através de uma multiplicagáo dos O processo permite afinar a imagem da evacuagáo: sugerir os mecanismos
fluxos. E o que confirmam ainda os testemunhos deixados por de Lorme. nos morosamente patenteáveis, aligeirar a forma ou o volume dos objectos obser­
seus Moyens fáciles et eprouvés... pour vivre prés de cent ans 67, velho médico vados, trabalhar sobre a sua «discrigáo» possível, sem que mude ainda o qua-
normando falecido aos noventa e oito anos: o seu leito de tijolo, por exemplo, dro explicativo da saúde ou da doenga. A curiosidade de Sanctorius ilustra a len­
sob o qual se pode queimar um fogo suave que mantém o calor dos anciáos, fa­ ta mudanga das práticas de manutengáo na Europa antiga: um esmiugar
cilitando as evaporagóes dos humores; ou as suas caigas e botas de pele, usadas progressivo dos gestos, a sua orientagáo para objectos mais escondidos, en­
de noite, para favorecerem o aquecimento e a transpiragáo; ou a pele de cisne quanto que o dejecto fica no centro das inquietagóes. Uma acentuagáo das vi-
colocada sobre o estómago para ajudar a cocgáo dos alimentos. Os gestos de De giláncias para um enquadramento teórico inalterado.
Lorme associam o aumento dos fluxos ao reforgo do fogo vital. Eles sustentam Outra novidade é que Sanctorius avalia o seu estado físico pelas flutuagóes da
o calor do coragao e o das visceras, sempre diminuido na terceira idade, uma balanga: «Quando se reconhece pelo exame da balanga que a transpiragáo é im­
máquina orgánica definitivamente fomo ou alambique. A cabega, enfim, é evo­ pedida, prevé-se para os dias seguintes uma transpiragáo mais abundante ou al-
cada mais do que nunca: precisa de emplastros durante o dia, dissimulados so­ guma grande evacuagáo sensível, talvez um comego de caquexia ou de febre.» 70
bre o chapéu, mas tomando a forma do cránio para o proteger melhor, precisa A constatagáo calculada guia o comportamento preventivo. A saúde parece
de barretes de dormir durante a noite, para facilitar a absorgáo e aquecimento «medida». Acrescenta-se a atengáo a um sentimento muito particular, o de al-
dos humores: o melhor meio de evitar «as fluxóes sobre os dentes, sobre o pei- guma ligeireza interior e de alguma leveza impalpável: «A marca de uma saú­
to e outras incomodidades» 68. O barrete é mesmo, por vezes, considerado uma de perfeita consiste em dois pontos: um, de se sentir mais leve do que de cos-
«ampia e grande ventosa» puxando «os humores pituitosos» que poderiam, sem tume, o outro de náo ter com efeito diminuido de peso.»71 Daí, enfim o conselho
ele, causar «grandes danos nos pulmóes» 69. de manter e vigiar esta imperceptível evaporagáo e de lhe favorecer a manuten­
gáo e a regularidade.
Sanctorius náo pode provocar uma «vulgarizagáo» das observagóes pela ba­
A í evacuagoes invisíveis langa. O engenho permanece muito raro nos interiores do século x v i i . Os in-
ventários post-mortem, mesmo os dos médicos, quase náo o citam. As suges-
A este interesse pela diversidade de fluxos acrescenta-se um outro interesse tóes do médico de Pádua, em compensagáo, mostram o sentido de um progresso
no século xvii: o orientagáo para o ínfimo; a vigilancia dos fluidos menos visí- possível: a vigilancia de manifestagóes sempre mais discretas das matérias eva­
veis e de sinais próximos do insensível. E sobre estas sensagóes que se efectúa cuadas.
o lento trabalho de afinagáo. Este processo recente, em 1625, confirma que a prática purificadora tem ela
Sanctorius, austero médico de Pádua, fascinado por pesagens e contagens, re­ própria uma historia: da Idade M édia ao mundo clássico, a sua aplicagáo evo-
vela, no inicio do século x v i i , esta mudanga dos objectos da atengáo. Ele sugere lui ñas suas formas, nos seus dispositivos, apesar da unidade do seu principio
um cálculo aparentemente trivial: comparar o peso das matérias ingeridas com o imaginário. Os conselhos tomam-se precisos, até á busca de razóes julgadas
das matérias rejeitadas. Insiste numa constatagáo: o peso dos excrementos é in­ hoje irrisorias ou esquecidas: a posigáo durante o sono, por exemplo, imagina­
ferior, depois de cada refeigáo, ao dos alimentos absorvidos; urina e defecagáo da no século x v i i para náo impedir a evaporagáo dos humores. A posigáo de
náo alcangam, longe disso, o volume dos alimentos ingeridos. Outras rejeigóes quem dorme náo deve ser obstáculo ás fugas invisíveis que purificam o corpo.
devem ser tidas em conta para explicar a estabilidade do peso do corpo, outras E preciso dormir com a cabega sobreelevada, o corpo pouco inclinado: «Os va­
fontes de evacuagáo; matérias sem dúvida menos referenciáveis. Sanctorius pores tém melhor saída quando o corpo e a cabega estáo direitos do que quan­
multiplica, cerca de 1625, contagens e observagóes e langa-se numa aventura do estáo deitados.» 72 Tomou-se mais precisa uma atengáo particular ás «bra­
imóvel: instala-se, uma grande parte do dia, numa balanga transformada em pol­ mas» e aos «vapores húmidos» do corpo; o interesse pelos dejectos evaporados.
trona cujo mecanismo dissimula no tecto para tomar as medigóes mais discretas; As diferengas sáo directamente sensíveis de um século a outro: as purgas de
e, é claro, verifica aquilo de que já suspeitava: o seu corpo toma-se impercepti- Madame de Sévigné sáo, no século x v i i , mais frequentes do que as do senhor
velmente mais leve ao correr das horas. Sanctorius descobre um fenómeno até de Gouberville, um século antes, revelando novas exigencias. O gentil-homem
entáo negligenciado: o da «transpiragáo insensível», este suor que se escapa dos normando purga-se de longe em longe, por volta de 1550, com uma farmaco-
poros em vapor imperceptível. Ele afirma a «descoberta», revelando, de passa- peia de efeitos sempre bruscos, a ponto de o deixarem, por vezes, doente e en­
gem, a vagarosa emergencia da ciencia moderna, a da observagáo e do cálculo. flaquecido; como na noite de Setembro de 1553, em que tem de recorrer a dois
criados para o velarem depois das insuportáveis devidas á beberragem purgan-
67 M . de S aint-M artin, M oyens fá c ile s e t éprouvés d ont M o n sieu r de L orm e s ’est servi
p o u r vivre p ré s de cent ans, C aen, 1682. 70 S. de S anctori, La M éd ecin e statique, 1722 (1.a ed. latina, 1614), p. 6 .
68 L. D alicourt, Le B o n h eu r de la vie ou le Secret de la santé, Paris, 1666, p. 85. 71 Ibidem , p. 14.
69 J. de R enou, In stitutions p h arm aceutiques, P aris, 1626, p. 186. 72 D om ergue, op. cit., p. 24.

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EVACUAR OS HUMORES MECÁNICA CORPORAL E EVACUAGAO

te tomada, afirma ele, somente «por precaugáo» 73. O poder do produto, a sua mais que um «remédio universal... operando por insensível transpiragáo» 82.
forga evacuante sao, para Gouberville, o objecto dominante. A marquesa, por O metal raro náo é mais do que o emblema e náo uma indicagáo de conteúdo.
volta de 1680, purga-se, pelo contrário, com o seu «maná de capuchinha» 74, O elixir conserva, no entanto, um papel particular. Ele faz ter esperanga,
uma «água de pervinca bem verde» 75 com efeitos deliberadamente benignos. como anteriormente o ouro potável, numa garantía global, definitiva e numa
Procura nela uma acgao mais constante, promovendo a preocupagáo com a pre­ protecgáo constante. Chomel conserva tónicas medievais no seu Dictionnaire
servagáo a gesto quase quotidiano. A marquesa bebe a sua preciosa água «como d ’oeconomie domestique, em 1670, para louvar o «elixir de limpeza» 83, beber­
uma limonada... para náo pensar mais nisso» 76. Ela evoca-a como um hábito ragem saída do alambique, combinando aguárdente de vinho, água destilada de
completamente diferente das grandes purgas importunas e episódicas. O argu­ melissa, agafráo subtilmente moído M. A acgao desta água queimante seria com-
mento é o mesmo, aliás, quando Le Mercure Galant, em 1693, faz o elogio de parável ao do «bálsamo natural», garante Chomel, matéria habitada de virtudes
uma água purgativa descoberta por um obscuro mercador de Bordéus: a água ocultas, substancia quase mágica «necessária á conservagáo do corpo» 85. Mas
de Rousselle. O Mercure aconselha que se beba pouco mas frequentemente. a operagáo já náo é a das jóias protectoras. O seu éxito prende-se com a sua in­
A beberragem, de gosto mineral, agiría com constancia e discrigao: «Já náo se fluencia completamente instrumental sobre os crepúsculos do sangue que ex­
fica retido na cama e no quarto, é-se livre de sair e de agir como os outros, ain­ pulsa ao aquecer. Náo há nenhuma dúvida: o elixir mantém a esperanga de uma
da que se tenha dado uma evacuagao considerável no corpo.» 77 Do século xvi protecgáo permanente, mas o procedimento usado visa a mecánica do corpo.
ao século x v i i , a vigilancia intensificou-se: maior pressáo sobre o gesto quoti­ Os conselhos sobre as práticas de saúde da elite, os preceitos sobre o alimen­
diano para um imaginário dos humores quase inalterado. to, o exercício ou mesmo o vestuário, mudam ainda largamente quando a atengáo
se dirige para as emanagóes subtis. Madame de Maintenon sugere a seu irmáo
que «coma pouco mas frequentemente» e, sobretudo, «que se passeie a cavalo,
Do elixir á roupa interior de carruagem ou de barco e que caminhe um pouco» 86. O movimento moderado
favorece a transpiragáo imperceptível. Os embates provocados pelos solavancos
A atengáo as evacuagóes subtis tem também efeito sobre os elixires. O M er­ da carruagem agem sobre os humores mais subtis. Madame de Sévigné insiste na
cure Galant multiplica, na segunda metade do século x v i i , os exemplos de no­ necessidade das suas próprias deambulagóes a Vitré, a Guitry e aos Rochers, fus­
vas pog5es que visam as tra n sp ira re s insensíveis: o «remédio» sugerido por al- tigando a sua filha considerada demasiado sedentária em Grignan: «Passeai-vos,
gum boticário anónimo em 1681 é, neste caso, um líquido aplicado na própria fazei exercício, respirai o ar puro, mas náo vos detenhais sempre nesse palácio es­
pele, agindo «por uma insensível transpiragáo ao abrir os poros e extraindo os curo ou no covil do vosso quarto.»87 Claro que náo se trata de uma prática inten­
humores malignos que causam as doengas» 78; da mesma forma a farmacopeia sa: pelo contrário, o exercício «forgado» é sempre entendido como algo violento
inventada por Audibert, em 1687, obscuro padre de Ivry-en-Brie: um espirito de e perigoso, que aquece o sangue e o enfraquece; a turbulencia e a agitagáo que
vinho preservante «purificando-lhe o sangue pela transpiragáo»79. Ou mais ain­ provoca sáo acusados de «apodrecer os humores e acender a febre» 88, de amea-
da a beberragem consumida por Galdo, o veneziano que alguns crédulos, em gar qualquer equilibrio ainda mal definido; tanto mais que o esforgo abre os po­
1687, acreditam ter quatrocentos anos. O Mercure Galant, claro, duvida da an- ros em excesso, fragilizando o corpo ao expó-lo aos riscos do «mau» ar.
tiguidade real do misterioso anciáo, mas atribui a sua longevidade á impercep- A actividade do rei, ainda neste caso, ilustra a norma: as suas cagadas mar-
tível transpiragáo que o elixir teria mantido 80. ciais e calmas com a caga repartida num cerrado «contribuem muito para a
A aproximagáo ao «ouro potável», que a todo custo alguns criadores destas saúde e para a conservagáo do vigor» 89; enquanto que uma cagada demasia­
novas pogóes tentam manter, já náo é senáo alusáo formal, astucia retórica, do intensa é considerada perigosa. Mostram-no os exemplos: o Journal de
mesmo se o procedimento confirma a ligagáo ostensiva á pureza. A evocagáo santé du roi nota, num dia de Veráo de 1668, uma agitagáo «rápida e turbu­
do ouro pode prender-se com a cor ou a consistencia do produto proposto: uma lenta por ter estado sobre um escorrega que tinha mandado fazer expressa-
«tintura aurifica», por exemplo, para o «espirito de vinho»81 comercializado por mente no seu parque» 90. Imediatamente o séquito inquieta-se e os médicos
Cormier, em 1693, mas em que o efeito de evacuagáo se tom a o principal. Nada
82 Idem .
73 U n sire d e G ouberville, op. cit., p. 260. 83 N . C hom el, D ictionnaire d 'o e co n o m ie d om estique contenant divers m oyens d ’aug-
74 M m e de S évigné, C a rta de 6 de M aio de 1689, op. cit., t. m, p. 601. m en ter son bien e t de co n se rve r sa santé, Paris, 1718 (1.a ed., 1708), 1 . 1 , p. 960.
75 Ibidem , t. ni, C arta de 5 de N ovem bro de 1684, p. 152. 84 Idem .
76 Ibidem , t. in, C arta d e 29 de Ju n h o de 1689, p. 631. 85 Ibidem , 1 . 1 , p. 961.
77 L e M ercure galant, A bril de 1693, pp. 33-34. 86 M m e de M aintenon, op. cit., t. n, p. 247.
78 Ibidem , Ja n e iro de 1681, p. 300. 87 M m e de Sévigné, C a rta de 14 de F evereiro de 1689, op. cit., t. m, pp. 502-503.
79 Ibidem , O utubro de 1689, p. 212. 88 A. P orchon, L es R egles de la sa n té et le R égim e de vivre, Paris, 1684, p. 43.
80 Ibidem , Ju lh o de 1687, p. 132. 89 Le M ercure galant, N ovem bro de 1682, p. 336.
81 Ibidem , Janeiro de 1693, p. 194. 90 A . Vallot, A. d ’A quin, G . C. Fagon, op. cit., p. 8 8 .

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MECÁNICA CORPORAL E EVACUAGÁO
EVACUAR OS HUMORES

alarmam-se: o rei nao devia sonhar com um divertimento táo brusco. O exer- «Uma boa camisa de tecido mudada todos os dias vale, a meu ver, o banho quo­
cício deve ser simples e quotidiano: uma caminhada, qualquer trajecto... daí a tidiano dos romanos.» 96
sua aplicagáo sempre possível e a sua versáo banalmente acessível: o exercí- Comportamento mais importante porque a ablugáo náo é evocada. O re­
cio náo precisa de tempo nem de espago particulares: Brienne, cerca de 1680, curso á água é no século xvn um costume receado. Náo se supóe sempre que
descreve o diplomata Chanut, fazendo o seu exercício ao «cultivar a sua hor- os poros se abrem na presenga do líquido? Náo ficam eles mais «escancara-
ta com as suas próprias máos» 9\ o que espanta as visitas, sendo a prática con­ dos» ainda, depois da emersáo no banho quente? Os medos nascidos com as
siderada demasiado vil, mas que permite o cuidar das emanagóes invisíveis. pestes apresentam-se aqui inalterados: a água infiltra o corpo entregando-o ás
Náo sendo o exercício senáo a agitagáo de humores, o seu universo é o do es­ ameagas de um ar maligno, deixa-o aberto aos quatro ventos. O banho só é en­
pago quotidiano. táo possível rodeado de precaugóes redobradas: longa protecgáo após a emer­
A inquietagáo com estes humores etéreos reúne-se transitoriamente ás con­ sáo, repouso, espera de um a dois dias antes de sair para o ar livre. O marqués
dutas de distingáo, com o uso mais exigente da roupa interior e a atengáo diri­ d ’Effiat que se banhava de longe em longe em Chaillot, cerca de 1635, só rea­
gida para a sua renovagáo e a sua brancura, na segunda metade do século x v i i . parecía na corte vários dias depois de cada um dos seus banhos, querendo evi­
Práticas de saúde e práticas de etiqueta seguem, neste ponto, uma evolugáo pa­ tar todo o perigo de enfraquecimento 97. La Grand Mademoiselle faz preceder
ralela: uma e outra testemunham uma atengáo ás manifestagóes do corpo con­ os seus escassos banhos, exclusivamente sazonais, de purgas e sangrías
sideradas mais discretas. É a afirmagáo dos tratados de saúde da Franga clássi- A emersáo é uma prática rara, senáo insólita. Só o uso mais frequente da rou­
ca: «Se a roupa branca tem a virtude de limpar e atrair a sujidade e a gordura pa interior, protegendo e absorvendo ao mesmo tempo, manifesta as novas exi­
do corpo, é certo que quanto mais as puxarmos mais cedo seremos purifica­ gencias.
dos.»92 Renovar a roupa interior é renovar a transpiragáo insensível, agir sobre
os humores purificados. Dito de outra maneira, favorecer o suor para melhor o
absorver: «A roupa branca lavada pode embeber-se mais fácilm ente.»93 O bran- 3. A G R A D U A g Á O D A S D O E N G A S
co atrai o humor conservando o corpo. As observagóes crescentes ñas cartas,
ñas memorias ou ñas récitas do século x v i i , confirmam estas vigiláncias que até Estas vigiláncias dos fluidos invisíveis, estas insistencias sobre os apodre-
entáo estavam largamente ausentes. cimentos ínfimos mudam insensivelmente a designagáo das doengas. Sáo no­
Deslocou-se um limiar de sensibilidade: o uso de uma mesma camisa du­ vas maleitas que podem ser tidas em conta, perturbagóes até ai pouco evocadas
rante vários dias é menos aceite pela elite da Franga clássica. A troca de roupa ou simplesmente náo manifestas. Os corrimentos insignificantes ultrapassam as
interior impóe-se mais do que anteriormente, como uma exigencia íntima, um fronteiras da saúde, transformando em desordem o que até ai náo o era. Náo
gesto de manutengáo física e de limpeza. Mademoiselle de Montpensier, que que estas doengas sejam definidas por uma indicagáo verificada ou mesmo ob-
foge do Louvre quando da Fronda parlamentar em 1649, mostra-o á sua ma­ jectiva. Elas testemunham apenas um aprofundamento do sensível, um traba­
neira: refugiada no castelo de Saint-Germain de como náo pode levar as suas lho de cultura.
malas, tem de esperar dez dias que uma equipagem que prudentemente se aven­
tura a partir de Paris lhe restitua as suas «comodidades». Ela tenta, entretanto,
preservar os seus hábitos comprometidos, mas sofre com isso e considera o epi­ Epidemia e representagáo «imóvel»
sodio suficientemente doloroso para ser escrupulosamente anotado: «Eu náo ti-
nha nenhuma muda de roupa interior, e lavava a minha camisa de noite duran­ A peste mantém-se como referencia exemplar no século xvn, aquela que or­
te o dia, e a minha camisa de dia durante a noite.»94A mudanga de roupa interior questra o conjunto das percepgóes da doenga. É preciso evocá-la para perceber
é largamente sugerida também depois dos passeios, dos exercícios, ou mesmo como se recombinam os gestos preventivos e as doengas, sejam elas mais ou
de simples deslocagóes, enquanto que anteriormente quase nunca o era. Mada- menos ameagadoras.
me de Sévigné considera útil nele se deter, depois de um percurso de carruagem A consciencia dos perigos do ar, para comegar, mantém-se no centro das de-
na sua provincia de rennaise: «Vim a casa de meu filho mudar de camisa e re- fesas. A peste já náo é enviada por qualquer potencia obscura, ela «visita» os lu­
frescar-me.» 95 Ou ainda Lister, viajante inglés do fim do século xvn, que faz da gares, ela passa, propagada pelos soldados, pelos vagabundos e pelos grupos er­
mudanga de camisa tanto um sinal de etiqueta como um gesto de manutengáo: rantes; uma ameaga que circula como uma coisa e se infiltra como um veneno.
É o substituto dos regulamentos regularmente actualizados pelo retomo do fla-

91 L. H. L om énie de B rienne, M ém oires (1643-1682), Paris, 1916, p. 181.


92 P. Bailly, Q uestions naturelles e t curieuses, Paris, 1628, p. 377 % M . Lister, Voyage á P aris en 1698, Paris, 1873, p. 44.
93 Ibidem , p. 378. 97 A . C abanes, L es M oeurs intim es du p a ssé (deuxiém e serie), la vie aux bains, Paris,
94 M lle de M ontpensier, M ém oires, 1735 (1.a ed., 1728), t. I, p. 157. 1902, p. 243.
95 M m e de Sévigné, C a rta de 11 de M aio de 1689, op. cit., t. m, p. 594. 98 M lle de M ontpensier, op. cit., t. n, p. 311.

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gelo: «Anuncios publicados quando da última visita de 1603 e retomados hoje.»99 substituintes possíveis da peste de 1666: «Nunca se tinha visto tantas bexigas
Visáo erudita, ainda, reservada aos que lancam um novo olhar sobre a natureza como desde estes dois últimos meses.» 105Tudo doengas que se implantam mais
no século xvn e reduzem o mundo aos «movimentos ordinários» l0C. Esta visao sólidamente ainda no lugar da epidemia de peste quase desaparecida depois do
favorece uma aproximagáo mais realista, sugerindo quarentenas mais restritas e episodio londrino.
verificagoes mais cerradas. A inquirigáo conduzida em Florenga, pedida pelas Raros sáo, aliás, no século xvn, os saneamentos urbanos obtidos por uma
autoridades da cidade em 1621 a Filippo Lusagnini, «mestre magáo e ministro modificagáo dos espagos, como este «muito belo» renque de árvores disposto
das rúas», que diz ter encontrado 109 caves cheias de águas usadas, 20 caves pelo intendente de Amiens as portas da cidade, para agir melhor sobre a saúde
fechadas rodeadas de fossas de latrina, 49 fossas transbordantes e 8 pogos de colectiva: «Os meus motivos foram para isso, impedir o contágio que de tem­
água náo potável, saturados de um líquido negro, vindo de dejecgóes variadasl01. pos a tempos tém afligido esta cidade, para que as gentes que ficam toda a se­
Entradas e saídas das cidades, circulagoes diversas, sobretudo, sáo mais vigia­ mana fechadas no seu trabalho e durante o Invernó no fedor do fogo de turfa,
das. É no século xvn que os portos de Adour aplicam a patente de saúde ao con­ se váo purificar, por assim dizer, folgando e passeando ao ar livre.» 106 Ou o cal­
junto dos barcos chegados. E no século x v i i que sáo instalados guardas costei- cetamente de La Rochelle alargado em 1690 com uma perspectiva quase de­
ros em cada duas léguas, ao longo do litoral aquitánio, interditando o acesso aos mográfica: «Estes melhoramentos aumentaráo o número de habitantes ao
navios desprovidos de patentes 102. Correspondencias sanitárias mais numero­ sanear a cidade.» 107 Estes projectos depressa encontram os seus limites no sé-
sas, enfim, em que os almotacéis de Chambéry escrevem em 11 de Abril de culo xvn. Eles debatem-se contra o impossível dominio dos despejos que os
1616 aos de Grenoble para lhes anunciar a presenga da peste em Genebra, os magistrados florentinos recomendam ainda que sejam vertidos exclusivamente
quais escrevem logo aos de Gap para lhes transmitir a novidade 103. Tantas me­ no Arno: «Quanto ao odor libertado por esta matéria tenra e líquida quando é
didas que, ao se multiplicarem, sem dúvida afastaram a peste nos últimos decé- deitada ao Amo, é de toda a maneira inevitável que empeste quando a remo-
nios do século, apesar dos seus retomos tanto mais mortíferos porque atingiam vem; por isso parece justo escolher o momento em que o sino toca, pois a essa
uma populagáo que se tomara pouco imunizada. hora a populagáo está abrigada ñas suas casas com as janelas fechadas, particu­
M as este afastamento náo poderia corresponder a um vasto desaparee imen­ larmente no Invernó.» 108 Os projectos de saneamento debatem-se também com
tó das epidemias e menos ainda a uma melhor compreensáo da doenga. Bem a sujeigáo ao poder monárquico em Franga: a encenagáo da sua forga, por
pelo contrário. Sobre o terreno lentamente abandonado pela peste várias doen­ exemplo. As novas pragas construidas em Caen, Lyon. Rennes ou Montpellier
gas despoletadas vém, no século x v i i , captar os candidatos as epidemias. Me­ favorecem assim algum arej amento, mas obedecem em primeiro lugar ao gesto
nos violentas, menos espectaculares, estas doengas sáo mais constantes, endé­ de «mostrar» e menos ao de sanear 109. Quando o intendente de Dijon propóe
micas, aprofundando, por vezes largamente, a sangría demográfica; como as uma reconstrugáo dos acessos do palácio bourguinháo que ele considera «obs­
febres das regiSes dos pantanos, como a malária, como as desinterias, todas es­ truidos», ele examina exclusivamente a majestade do lugar. Enobrecer as linhas,
tas afectagóes mal catalogadas, no século x v i i , de que Tourton constata os da­ ampliar os espagos: a obra de Dijon é «necessária para a beleza e ornamento
nos no seu livro de razáo: «As febres malignas de 1686 e de 1694 despovoaram desta cidade e mais ainda do alojamento do rei, o qual foi um dos mais majes­
de tal maneira a cidade de Annonay que náo se contavam, em Maio de 1694, tosos do reino» "°. O Grande Rei apela ao monumental e menos ao projecto sa-
mais do que 2800 pessoas» 1<M ; como as desinterias, igualmente pouco identifi­ nitário. Blondel fomece a regra austera nos seus cursos de arquitectura em
cadas, infeegoes dos subnutridos, mantidas pelas águas incontroladas e pelas 1680: «A decoragáo das fachadas e o estudo dos ornamentos é a parte mais no-
misérias microbianas; como as bexigas (varióla), cuja intensidade redobra no bre e a mais considerável da arquitectura.» 111
século xvn, a ponto de Pepys em 1668, em Londres, a evocar como uma das A prevengáo, em compensagáo, consiste em evitar os lugares «perigosos»,
em respirar pomos de ámbar ou «esponjas embebidas em salva e genebra» lu
náo se aproximar do quarto dos doentes, afastar-se prudentemente das suas ca­
99 F. H erring, C ertain R ules, D irections o f A d vertisem en ts f o r This Time o f P estilence
a n d C ontagion... F irst P u b lish e d in the L ast V isitation o f 1603, a n d N o w R eprinted, L o n ­
dres, 1625. 105 S. Pepys, Jo u rn a l (1660-1669), Paris, M ercure de F rance, 1985 (1.a ed. inglesa,
100 T. R enaudot, R ecu eil général d e s questions traitées es conférences du bureau d ’a- 1825), p. 341.
d resses (1655-1656), citado por H. N eveux e J. C éard, «Perm anence des fléaux», L es M a- 106 «C orrespondance des Intendants», A N G 7-84, 1690.
Iheurs du tem ps, op. cit., p. 312. 107 Idem .
101 C. M . C ipola, C ontre un ennem i invisible, épidém ies et structures sanitaires en Italie 108 «R ecom m andations de 1621», citadas por C. M . C ipola, op. cit., p. 72.
de la R enaissance au X V l l e siécle, P aris, B alland, 1992 (1.a ed. italiana, 1985), p. 70. 109 P. B ourdelais, «L e p aysage hum ain», H istoire de la F rance, sob a d irec 9 ao de J. Re-
102 J.-N . B iraben, Les H om m es et la P este en F rance et d ans les p a y s européens et m é- vel e A. B urguiére, 1 . 1, L 'E sp a ce fra n q a is, Paris, Ed. du Seuil, 1989, p. 223.
diterranéens, P aris, M outon, 1976, t. n, p. 87. 110 Ibidem , 1691.
103 Ibidem , p. 8 6 . 111 F. B londel, C ours p ro fe ssé a V A cadém ie d ’architecture, Paris, 1680, p. 1.
104 C itado p o r E. L e R oy L adurie, L e s P aysans du Languedoc, Paris, SE D E S, 1 9 6 6 ,1 . 1 , 112 A vis d o n n é a u x bourgeois de P aris p o u r la conservation de leu r p erso n n e et de leur
p. 5 51, nota. fa m ille , Paris, 1649, p. 4.

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EVACUAR OS HUMORES MECÁNICA CORPORAL E EVACUAGÁO

sas e das suas cercanias, como o terror da peste o soube impor: o Palácio Real melhor» 121. O ar de Blois provoca maleitas a Mademoiselle de Montpensier, o
é abandonado pelos «jovens que se pretendiam belos» “3, aquando das bexigas que náo acontece com o de Orléans: «Fui para Blois, onde a estadia me desa-
do jovem rei, em 1647. O quarto de Madame de Fiesque, no castelo de Saint- gradou muito, onde o ar me é absolutamente contrário, nunca tinha tido tantas
-Fargeau, é «ventilado» durante vários dias, o colcháo e a roupa interior sáo dores de cabega e tanto catarro como nesses quinze dias.» 122 Cada lugar tem o
queimados, depois que a sua amiga Mademoiselle de Montpensier ai morreu seu «ar» com os síntomas que provoca, cada cidade dispensa as suas influen­
em 1660, de uma febre desconhecida “4. A doenga é insidiosa, invisível, bem cias particulares. É o que confirmam os viajantes de longo curso: Challe, por
pouco retida por estas medidas individuáis sobre os ventos e os lugares. A sua exemplo, escriváo do rei embarcado no Écueil, em 1690, que descreve o ar das
intensidade contribuí para a demografía caótica do século x v i i ; uma demogra­ ilhas abordadas. Nuances táo numerosas que acabam por deteriorar a saúde des­
fía que tende para a regressáo: a que alcanga os baldíos e as bacías de Lodevois, te escriváo perdido entre os navegadores: «A febre comega a dominar-me...
por exemplo, cerca de 1630, com a sua lenta queda de efectivos humanos, a que Atribuo o facto á mudanga de climas que desarranja a máquina.» 123 É ainda a
alcanga também o vale de Anjou, brumosa, insalubre, gravemente infiltrada de explicagáo atribuida ás doengas do duque de Mortmart, no final do século xvn,
paludismo, cerca de 1650, ou uma Sologne devastada pela malária "5. viajante de «inumeráveis» expedigóes: «Esta doenga náo deve, de modo ne­
Face a estas doengas náo denominadas, o recurso de uma lógica das impu­ nhum, surpreender. É o resultado da mudanga que se encontra nos diferentes cli­
rezas internas do corpo é, no entanto, aprofundada. mas, cujo ar ele respirou em poucos anos.» 124
Náo que as apreciagóes sejam todas convergentes. Coulanges afirma, em
1694, que «náo há actualmente ar mais detestável do que o de Paris» 125. Alguns
O formigueiro do ar anos antes, Duret atrai a curiosidade ao fechar o seu filho numa jaula de vidro
para o proteger melhor dos miasmas ambientáis 126; enquanto que Madame de
O ar, em primeiro lugar, ao agir sobre as entradas e saídas do corpo, encarre- Maintenon garante que este ar parisiense pode curar o seu irmáo das mais va­
ga-se dos mais numerosos efeitos. Os poros estáo no centro das preocupagóes riadas incomodidades l27, e Lister julga-o «incomparável» para sustentar a saú­
quando o «doente imaginário» de Moliere persiste em «guardar-se do relento» 116, de dos seus amigos ingleses vindos a Franga: «Os que tossiam e expectoravam
esse ar penetrante e húmido que, ao saturar a pele, interrompe a transpiragáo. logo foram curados.» 128
Idéntica referencia quando Madame de Sévigné diz recear o nevoeiro denso, Pouco importa, na verdade, a veracidade da impressáo, pouco importa a
aquele cujo peso pode obstruir as mais finas aberturas do corpo. É impossível qualidade do julgamento. É efectivamente esta vigiláncia sobre as doengas pou­
encarar um passeio ao ar livre demasiado nublado: «Apercebi-me de que o Sol co conhecidas que é de longe a mais marcante. A incomodidade e já náo a doen­
se esconde numa nuvem furiosa a 24 de Dezembro (estranha coisa) e que o ne­ ga brutal, em indisposigáo e já náo a enfermidade, com os seus alardes também
voeiro estava muito denso. Isso avisa-nos, minhas irmás, que náo se deve pas- eles mais discretos.
sear nesta estagáo.» 117 O clima ameaga de tal forma a transpiragáo insensível
que pode «obstipar súbitamente os poros» 118. O modelo das pestes, com o seu
ar que penetra o corpo para o destruir, obtém assim nuances e graus. Um con­ O «estado» dos vapores
junto de perturbagóes físicas, moderadas ou anodinas, causadas pelas qualida-
des do ar, tom a existencia. Uma nova doenga permite objectivar, no século x v i i , esta categoría original
Ampliam-se as vigiláncias para Madame de Maintenon, por exemplo: o ar de incómodos; uma doenga de que o próprio nome sugere o resultado directa­
de Fontainebleau dá-lhe «pouca saúde», provocando «doengas que ela náo co- mente físico: os vapores.
nhecia» "9, até sucumbir ás enxaquecas, enquanto que o ar de Versalhes as vem A palavra já existia. Tem uma historia que designa a perturbagáo histérica:
apaziguar «pela metade» 120 e o ar de Chambord lhe permite «sentir-se muito a forga dos humores genitais femininos contrariados, vindos do «hipocondrio»
para perturbar o cérebro. Nesta versáo tradicional, os vapores explicam certos
113 F. de M otteville, M ém oires p o u r se rv ir á l ’histoire d ’A n n e d ’A u tric h e épouse de «desvarios» das mulheres sobre os quais Ambroise Paré dá, em 1573, a inter-
L o u is X III roi de F rance, P aris, 1851 (1.a ed., 1676), 1 . 1 , p. 179.
" 4 M lle de M ontpensier, op. cit., 1 . 1 , p. 301. 121 Ibidem , t. n, p. 256.
115 F. L ebrun, op. cit., p. 267. 122 M lle de M ontpensier, op. cit., 1 . 1 , p. 342.
116 J.-B. P oquelin, conhecido p o r M oliere, Le M alade im aginaire (1673), Théátre com - 123 R. C halle, op. cit., p. 455.
p let, P aris, G am ier, s.d., p. 1659. 124 L e M ercure galant, Setem bro de 1684, p. 217.
117 M m e de S évigné, C arta de 25 de Janeiro de 1690, op. cit., t. m , p. 820. 125 L. de C oulanges, C arta de 1 de S etem bro de 1694, M m e de S évigné, op. c it t ra
" 8 B. R am azzini, E ssai su r les m ala d ies des artisans, Paris, M i l (1.a ed. latina, 1700), p. 1057.
p. 42. 126 G. T allem ant des R éaux, op. cit., t. i, pp. 173-174.
" 9 M m e de M aintenon, op. cit., 1 . 1 , p. 309. 127 M m e de M aintenon, op. cit., 1 . 1 , p. 300.
120 Ib id em , t. n, p. 250. 128 M . Lister, op. cit., p. 205.

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EVACUAR OS HUMORES MECÁNICA CORPORAL E EVACUAGÁO

pretagáo física; aquela que já os textos antigos sugerem: «O útero enche-se e in- dinámica de preciosidade, onde lojas de livreiros, bibliotecas privadas e salóes
cha porque alguma substancia apodrecida e nele corrompida se dissolve em va­ renovam os seus locáis de encontro 135. A ascensáo de notáveis letrados que se
pores e ventosidades dos menstruos, ou da corrupgáo da semente... de onde se afastam dos divertimentos do século xvi, reprovando os seus risos, os seus ban­
engendram os muito cruéis acidentes algumas vezes próximos dos acidentes quetes e os seus exemplos rablesianos, impóe um código de urbanidade, uma
dos que sáo mortos por caes enraivecidos.» 129A mulher histérica é aquela que «arte de agradar na conversagáo» l36, uma maneira mais elaborada de falar de si
se agita até á crispacáo revulsiva sob a acgáo destes vapores condensados. como uma maneira mais sofisticada de preservar o corpo.
A evocagáo é convencional: comparagáo entre os efeitos destes fluxos «ácidos» A extensáo das cidades termais, no século xvn, a criagáo de Bourbon-l’Ar-
e dos que provocam o veneno das serpentes ou as furias rábicas; descrigáo qua­ chambault, de Forges-les-Eaux, de Vichy, a evocagáo regular dos seus visitan­
se morfológica de paralisia muscular e de sobressaltos incontrolados: a imagem tes pelo Mercure galant, prolongam esta nova sociabilidade. Estadías de uma
sem idade da histeria. elite ainda restrita, como mostram as visitas de Madame de Montespan a Bour-
A palavra vapores, todavia, alarga o seu sentido no século xvn. Os ares e as bon-l’Archambault, em 1676, conduzida numa caleche de seis cavalos seguida
respiragóes do corpo adquirem uma existencia mais difusa e mais variada. Os de vários furgóes, «seis animais, dez ou doze cavaleiros, uma marcha de 45 pes-
vapores designam também «os fumos que se elevam do estómago ou do baixo soas» 137. Estas idas a termas já náo se explicam no final do século xvii só pela
ventre para o cérebro» l3°. Eles provém de digestóes incompletas, de alimentos razáo médica. Huet, bispo de Avranches, hospeda-se em Bourbon-l’Archam-
em excesso e de embaragos peitorais. Eles provocam sufocagóes, obstrugóes e bault para apagar «fraquezas e abatimentos» l38. Fléchier detém-se em Vichy
vertigens. Os vapores de Luís XV e a longa crónica das ingestóes que os pro­ tanto «para mudar de ar» como para «fortalecer o corpo» l39. Ali, a água é apre-
vocam, ocupam uma parte notável do Journal de Santé du Roi. Eles «abatem- sentada pelo Mercure de 1676 como «excelente para os vapores» l4°. Razóes
-no», obrigando-o a «segurar-se e a encostar-se por um momento para deixar preventivas, além das curativas comegam a mobilizar alguns banhistas. Do evi­
dissipar este vapor que era levado á sua vista e enfraquecia os jarretes» 131. Eles tar das pestes ao evitar dos vapores, é o conjunto de um espectro defensivo que
obrigam-no a ir á cama antes de se ter fortemente purgado. Quanto aos vapores se desenvolve largamente.
de origem tísica que atormentam o abade Testu, o amigo de Madame de La Fa-
yette, eles sáo táo violentos que nem o próprio os consegue fazer ceder l32.
Outras intensidades sáo possíveis. As brumas vindas de fermentagóes inter­ 4. A P U R IF IC A G Á O D O S H U M IL D E S
nas tém também as suas versóes mais anodinas. A própria palavra designa o im-
palpável. Ela aumenta o número de estados intermediários entre saúde e doen­ As defesas dos hum ildes m antém -se, é claro, mais tradicionais no sé-
ga até os sintomas permanecerem quase secretos: «Segundo o médico, estou culo xvn, ancoradas mais do que nunca na crenga, ñas solidariedades cósmicas.
muito bem, quanto a mim estou muito mal» l3\ confessa Madame de Mainte­ Trata-se de distinguir, mais uma vez, uma dupla cultura, a da elite e a dos ou-
non evocando episodios de fraqueza e de abatimento. Nada mudou no meca­ tros, enquanto que o tem a das evacuagoes parece generalizar-se imperceptivel-
nismo: os vapores sáo as brumas saídas das fermentagóes e dos apodrecimen- mente.
tos. Tudo muda, em compensagáo, ñas dimensóes tomadas em conta: os Os almanaques dos vendedores ambulantes do século x v i i prognosticam
corpúsculos sáo imperceptíveis. Mas mudam definitivamente também as ma- acontecimentos raros, intempéries ou infelicidades, nos livres bleus difundidos
neiras de evocar a doenga e as maneiras de a preservar. pela primeira vez entre os pequeños leitores das cidades e dos campos que mos­
Uma prática social nova favorece o uso da palavra: os vapores alimentam tram bem como lhes interessam os ritmos sazonais ou climáticos. Estes textos
uma arte do comércio social, das trocas concentradas em «pequeñas coisas», de náo romperam com as referencias medievais. Leituras de rurais, curiosidades
«pequeños assuntos» 134, de acgóes quotidianas ou fúteis que as elites urbanas das «gentes pequeñas», mesmo se outros públicos mais urbanos lhes concer-
do século x v i i inventam. A palavra indica uma mutagáo de sociabilidade. A im- nem, os almanaques populares prolongam no século xvn a atengáo tradicional
plantagáo de gentis-homens na cidade, ao longo do século, a dos proprietários aos indicadores do céu. Ferramentas de homens que vivem mais próximo da
rurais, dos recebedores e juízes senhoriais, também a dos oficiáis do rei, criam natureza, eles perpetuam a observáncia dos períodos «maus» ou «favoráveis»
uma inevitável renovagáo da cultura urbana. Uma instalagáo de cenáculos, uma para os gestos de manutengáo, a vontade de um recurso aos signos «bons para

129 A. Paré, D e la génération de l ’honim e (1573), O euvres com pletes, op. cit., t. II, p. 751. 135 R. C hartier e H. N e v eu x , «L a v ille dom inante et soum ise», H istoire de la F rance ur-
130 D ictio n n a ire de l ’A ca d é m ie fra n g a ise , Paris, 1694, t. n, p. 613. baine, sob a d ire c ja o de G . D uby, P aris, Éd. du Seuil, 1981, t. ii, p. 183.
131 A. Vallot, A. d ’A quin, G. C. F agon, op. cit., p. 95. 136 R. Bary, L 'A r t de p la ire d ans la conversation, Paris, 1701.
132 M m e de S évigné, C a rta de 28 d e Janeiro de 1689, op. cit., t. m: «L’opium ne le fait 137 M m e de Sévigné, C a rta de 16 de M aio de 1676, op. cit., t. n, p. 292.
plus dorm ir... C e la fait g ra n d ’pitié», p. 488. 138 D. H uet, M ém oires, P aris, 1853 (1.a ed. latina, 1690), p. 226.
133 M m e de M a intenon, op. cit., 1 . 1, p. 200. 135 E. Fléchier, M ém o ires su r les G rands-Jours d ’A uvergne, 1665, Paris, M ercure de
134 J. de La B ruyére, C aracteres, P aris. G am ier, 1954 (1.a ed. 1688), p. 135; ver o cap í­ F rance, 1984 ( I a ed., 1845), p. 90.
tulo: «D e la so ciété et de la conversation». 140 L e M ercure galant, M aio de 1678, p. 108.

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EVACUAR OS HUMORES

tomar remédios» ou «bons para tratar» 141. A «Lúa em Gémeos», por exemplo, as cidades do século xvii leva consigo as rendas e os lucros do mundo rural. Um
interdita sempre a sangria, comprometida pelos calores do Verao, enquanto que desequilibrio que, sobretudo em caso de crise, joga contra o campo.
a «Lúa em Capricómio», com as suas abundancias primaveris «é boa para tra­ As gravuras de Callot emaciando os corpos para sublinhar melhor as suas
tar os sanguíneos» 142. Até para o acto de cortar o cábelo que devia observar o «misérias» l46, a emogáo de La Bruyére «analisando» os camponeses para me­
ciclo lunar. lhor sugerir a sua privagáo l47, desenham um século xvii trágico. Sáo numerosas
as cenas de subnutrigáo transformadas em corrupgáo orgánica: «A maior parte
dos pobres, para prolongar um pouco a sua vida e apaziguarem a fome, comem
A saúde dos almanaques coisas imundas e corrompidas, como o sangue que corre no regato, tripas, in­
testinos e outras coisas semelhantes... E tudo isso produz corrupgóes no corpo
As referencias sáo também «antigas», quando o regime alimentar é evoca­ humano.» 148 Os recenseamento de Vauban no fim do século sáo alarmantes.
do. Triunfa ai apenas l ’école de Sáleme, com os seus preceitos do século xi, O engenheiro do rei desconta escrupulosamente as baixas de porcos, de animais
uma sobriedade transposta em versos solenes e pomposos: de tiro e animais de subsistencia no círculo de Vézelay. Ele acusa «má nutrigáo»
de tomar «moles e preguigosos» os homens dessa regiáo, condenados aos
A breve mesa... «maus frutos, bravos na maior parte e a algumas hortaligas das suas hortas, co-
Eis para comegar zidas em água com um pouco de azeite» 149. A memoria dos comissários do rei
o que fa z viver com saúde l43. «sobre a miséria dos povos» toma a mesma tonalidade em 1687: «Vé-se em to­
das as ordens e em todos os estados uma diminuigáo sensível e uma queda qua­
Raros sáo, neste quadro popular, os pormenores sobre a qualidade dos ali­ se universal.» '50A privagáo do vinho é, aliás, apresentada, de forma mais ima-
mentos; enquanto que a insistencia na retengáo dos alimentos e o controlo das ginária claro, como causa de morte para os rudes camponeses da Flandres, na
quantidades sáo completamente novos. Nisso consiste a originalidade desta li­ campanha de 1709: «Viu-se claramente que os que tinham garrafóes de bom vi­
teratura feita para o povo: a instauragáo mais marcada de um controlo; o afas- nho de Bourgonha, e o resto em profusáo, desses, nenhum morreu.» 151 Recen­
tamento explícito de sensibilidades longamente seduzidas pelos alimentos mas- seamento lúgubre, enfim, em Limousin no final do século, onde o intendente de
sivos e pelas ingestñes protectoras. A literatura do vendedor ambulante é Bouville tenta mostrar o aumento dos pobres, contando «com toda a exactidáo
inovadora, no que toca os gestos dos mais humildes. Nela sáo abundantes as imaginável, setenta mil pessoas de todas as idades e de ambos os sexos, que se
fórmulas de pogóes «purificantes». «Xaropes de Vida», «Tisanas de Saúde», encontram a mendigar o seu páo» 152.
«Ámbares de Vida» ou «Perfumes do Pobre», multiplicam-se nos tratados de A literatura azul tem pouco em conta esta miséria. Ela combina antes um
«doengas dos pobres» ou dos livros do «médico caritativo» do século xvii: a grupo de indicagóes tradicionais sobre a astrologia e outras mais recentes sobre
«Agua Celeste» com genebra e sabugueiro, por exemplo, de que um combina­ as dietas, os elixires, os xaropes, sugerindo, também ela, um dominio mais aper-
do particular ajudaria os habitantes de algumas tribos longínquas a viver quase tado das purificagóes.
140 anos ao permitir «a restituigáo do uso da palavra aos agonizantes» 144; ou a É difícil medir o impacto destas propostas no mundo rural do Grande Rei.
tisana de M. Sainte-Catherine que «purga sem que nos apercebamos» 145 por ter O aumento da sua difusáo só por si, é um índice de sucesso: o número de vende­
resultados constantes e medidos. No final, nada mais do que um arsenal de eli­ dores ambulantes autorizado a vender estes livros triplica durante o século, pas-
xires que combinam as plantas conhecidas pelos desfavorecidos: arruda, grama, sando de quarenta e cinco em 1611 a cento e vinte em 1712 153; ao que se acres-
chicoria brava ou mesmo urtiga e taráxaco.
146 J. C allot, L e s G randes M iséres d e la guerre (18 águas-fortes editadas em 1633); ver
No século xvii, as subsistencias dos campos continuam a ser frágeis. A sua G. Sadoul, J. C allot m iroir d e son tem ps, Paris, G allim ard, 1969, p. 271.
precariedade é mantida por crises cíclicas, elas próprias acentuadas pelo episo­ 147 J. de L a B ruyére, op. cit., p. 295 : «lis vivent de pain noir, d ’eau e t de racines.»
dio de frió extremo, cerca de 1650, e também pela gravidade das guerras do sé- 148 Journal de L e C arón, secretario do bispado de B eauvais. C itado p o r P. G oubert, B ea u ­
culo, as que devastam as fronteiras de Leste até á Champagne e á Bourgonha, vais..., op. cit., 1 . 1 , p. 303, nota.
ou as térras «heréticas» de Cévennes e de Savoie. O engodo da prosperidade ur­ 145 A. J. Le P restre de Vauban. «D escription de l ’élection de V ézelay», in A. M . de Bois-
bana aumenta ainda o despojamento dos campos: a transferencia das elites para lisle, M ém oires de la g én éra lité de P aris, Paris, 1881, p. 740.
150 «M ém oire des com m issaires du ro i sur la m isére des peuples et les m oyens d ’y re-
m édier», A. M . de B oislisle, op. cit., p. 783.
141 A lm a n a ch (1641), citado por G. B óllem e, La B ibliothéque bleue, Paris, Julliard, coll.
151 H. Pratelle, Jo u rn a l d ’un curé de cam pagne au x v iie siécle (1686-1739), P aris, 1965,
«A rchives», 1971, p. 12.
p. 156.
142 A lm a n a ch de M ilán (1679), citado p o r J. G rand C arteret, Les A lm a n a ch s frangais,
152 D e B ouville, intendente de L im oges, C arta ao con tro lad o r geral, de 12 de Janeiro de
1600-1895, P aris, 1896, p. xxm .
1692, A. M . de B oislisle, C orrespondance des contróleurs généraux d e s fin a n c e s avec les
143 A lm a n a ch (1641), op. cit., citado p o r G. B óllem e, op. cit., p. 30.
intendants, Paris, 1 8 9 7 , 1 . 1 , p. 274.
144 N . C hom el, op. cit., 1 . 1 , p. 915.
153 G. B ollém e, La B ible bleue, Paris, F lam m arion, 1971, p. 22.
145 La M édecine et la C hirurgie des pauvres, Paris, 1714, p. 313.

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centa um lentíssimo aumento das práticas evacuativas nos campos: L’Hermine, É o imaginário social, sobretudo, que fica quase saturado por tal metáfora
em 1674, descreve o uso regular das sangrías quando percorre a Alsácia, espan- no século x v i i . Uma forma de pensar os componentes da comunidade disso-
tando-se com o instrumento utilizado para fazer a incisáo ñas carnes. Uma ponta ciando-os, de gerar a ordem excluindo: prática de segregagáo e de retrocesso.
(«balestilha») semelhante as lancetas que os marechais aplicam nos cavalos, lá­ A defesa contra a peste, como era a da lepra, é baseada na exclusáo: o doente
mina pesada cujo efeito os aldeáos sofrem sem vacilar: «eles encaram esta opera- deve ser internado num hospital para onde é conduzido á forga, quando recusa
gao como um remédio e um preservativo excelente para a saúde, e náo fazem caso ou quando dissimula a sua doenga, por um preboste de saúde, ele próprio en-
de sofrer, no mínimo, quatro vezes por ano «os inumeráveis cortes de navalha com carregue de «ocupar-se incessantemente da investigagáo e pesquisa das casas
que lhes retalham os ombros» l54. Grande, claro, é a diferenga entre a faca que cor­ que serao infectadas com a doenga contagiosa, advertindo a cada dia os comis-
ta as carnes aldeas e i. agulha manuseada pelos cirurgioes parisienses. Grande é sários dos bairros» 158. Mas em maior escala, o racionamento e a prática de eva­
também a diferenga entre lineares de dor, que variam segundo os graus de classe cuagáo tocam os que pertencem as margens da sociedade. O intendente de
e de fortuna. Nos dois casos, todavia, o imaginário da evacuagáo parece reforgado. Béam revela-o em algumas palavras quando entra em Pau em 1676. O equili­
Várias medias sublinham ainda o crescimento das práticas purifícadoras dos brio social pressupóe, como o do corpo, exclusóes e rejeigóes: «O rei enviou-
camponeses do Grande Rei. É o sal aquilo que os intendentes do Delfínado da -me á provincia para a purgar de todos os mandrióes e gentes de má vida, e na
Champagne ou da generalidade de Paris solicitam durante as grandes fomes dos opiniáo de Hipócrates, o que forma os humores viciosos é a ociosidade.» 159As
primeiros anos do século xvm. O salgado deveria atrasar as decomposigoes penas aplicadas a algumas «raparigas de má vida» durante os Grandes Dias de
dos humores. D ’Angervilliers, o intendente do Delfim, insiste em 1709 nesta visáo Auvergne, em 1665, confirmam-no concretamente: «marcada com a flor de Lis,
das resistencias orgánicas: «É garantido que se eles tivessem um pouco de sal, agoitada pela cidade e exilada» 16°.
que náo podem comprar, corrigiriam com isso a crueza desta alimentagáo: o que A metáfora de uma «purga» de todo o refugo social percorre, implícita e ex­
evitaría as doengas.» 155 Daguesseau, procurador-geral no Parlamento de Paris, plícitamente, as ordenagóes do Grande Século sobre os pobres, sobre os vaga­
sublinha mais ainda a preocupagáo preventiva: afastar com o recurso ao sal «as bundos, e as gentes sem eirá nem beira: gerir seria á partida retirar o que «obs­
doengas contagiosas de que já se véem os tristes preludios» 156. Projecto de uma truí» e pesa sobre a comunidade como o «humor viciado» pesa sobre o corpo.
monarquía centralizadora, progressivamente sensível as quantidades populacio- Pobres internados nos hospitais gerais; soldados estropiados, excluidos das ci-
nais, tentando laboriosamente manter-lhes o número: a assisténcia toma-se de­ dades e arredores para serem reunidos nos lugares fronteiros 161; prostitutas mu­
ver do Estado e já náo, únicamente, dever da Igreja. Recurso tradicional a gé­ tiladas, «nariz e orelhas cortados» l62, antes de serem afastadas de Versalhes ou
neros purificantes, mas muito recente o gesto de os difundir. de certos acampamentos militares; operarios dos Gobelins, marcados com a flor
de Lis, se vierem a largar a manufactura l63; a única via parece ser a da ordem
através do refugo. No horizonte desta divisáo encontra-se tudo o que ameaga a
Um modelo de pensamento forma moral dada á razáo: a ociosidade, o desenraizamento e a blasfémia, como
o mostrou Michel Foucault. Populagáo castigada pela sua miséria, a sua errán-
O tema das purificagóes impoe-se com uma tal evidencia no século x v i i que cia e a sua impiedade: «Esta canalha que se atrópela ñas cidades, perturbando a
se tom a modelo de pensamento, analogia táo convincente que inspira outros ordem pública, assediando as carruagens, pedindo esmola aos gritos as portas
comportamentos. das igrejas e das casas particulares.» 164 Os adivinhos e os astrólogos também
Sáo Francisco de Sales explora a palavra purgagáo como um símbolo quando «devendo esvaziar incessantemente o reino» 165. Estas imagens tomam mais di-
descreve as etapas sucessivas de uma edificagáo da «vida devota», no inicio do sé- fíceis os gestos de assisténcia, atrasando-os ou, por vezes, anulando-os, confir­
culo x v i i : rejeigáo das «taras e dejectos» de que o devoto se deve desembaragar; re- mando o valor simbólico dos gestos votados as decomposigoes do corpo.
jeigáo dos «excrementos» interiores. O mal moral, podridáo a eliminar, sendo ele
próprio assimilado as matérias malignas que ameagam o corpo: «Tendo assim pre­
parado e recolhido os humores viciosos da vossa consciencia, detestai-os e rejeitai-
-os pela contrigao e desgosto táo grandes quanto o vosso coragáo possa suportar.»157 158 «O rdonnance du lieutenant civil du 31 m ai 1631», citado por J.-P. B aud, «L es m ala-
dies exotiques», in Sida et L ibertés, la régulation d ’une épidém ie dans un E tat de droit, A r­
154 «L es M ém oires de voy ag e de sieu r de L’H erm ine» (1674-1676 e 1680), in M . M ag- les, A ctes Sud, 1991, p. 24.
delaine, G uerre e t P aix e n A ls a c e au x v n e siécle, Toulouse, P rivat, 1981, p. 187. 159 N. J. Foucault, M ém oires (século x v n ), Paris, 1885, p. 25.
153 D ’A ngevilliers, intendente do D elfinado, C arta ao co ntrolador geral, de 16 de A bril E. Fléchier, op. cit., p. 104.
de 1709, A. M . de B oislisle, C orrespondance..., op. cit., t. III, p. 127. 161 O r d e n a d o real de 7 de M aio de 1657.
156 D aguesseau, procurador-geral no Parlam ento de Paris, carta ao controlador-geral, de 162 O rdenagáo real de 18 de M argo de 1687.
22 de Janeiro de 1710, ibidem , t. m, p. 264. 163 D ecreto do C onselho de E stado de 18 de M argo de 1713.
157 S aint Fran<¿ois de Sales, ¡ntroduction á la vie dévote, Oeuvres, Paris, G allim ard, La 164 M . Foucault, H istoire de la fo lie á l ’áge classique, Paris, G allim ard, 1972, p. 78.
Pléiade, 1969 (1.a ed., 1609), p. 42. 165 É dit de 1682, citado p o r M . F oucault, op. cit., p. 109.

100 101
EVACUAR OS HUMORES

O peso da vida

E em práticas muito mais discretas, quase invisíveis, que se manifesta, em


compensagáo, uma preservagáo totalmente nova entre os desfavorecidos no sé-
culo xvii: a tentativa do alivio das sobrecargas pelo adiamento da idade de ca­
samento. Lenta elevagáo da idade dos jovens casados, instigada no século xvi
em Inglaterra, para se alargar, um século mais tarde, á Europa do Centro e do
Norte. Uma deslocagáo cronológica de consequéncias notorias: age sobre os
condicionantes materiais ao restringir o número de filhos. O recuo de alguns
anos para a primeira uniáo pode diminuir sensivelmente a fecundidade de um
casal. O que mostram as médias calculadas por Pierre Goubert, para o Beau-
vaisis e por Pierre Dayon para o Amiénois 166. A consequéncia é táo importante C A PÍTU LO II
que se toma «a chave do sistema demográfico antigo» 167. Muito mais impor­
tante, mesmo que esta elevagáo da idade média de casamento seja muito sensí­ PLANTAS PURIFICADORAS E CONSUMOS APRAZÍVEIS
vel no século, passando de menos de 20 anos a mais de 24 anos, para as rapari­
gas do Bassin parisiense l68; de 19,1 anos a 23,4 entre os períodos de 1578-1599
e 1655-1670 para as raparigas de Athis 169; de 18,9 a 22,3 anos, entre os perío­ Quando o embaixador de Portugal relata a lenta agonía do rei Guilherme III,
dos de 1560-1569 e 1610-1619 para as raparigas de Bourg-en-Bresse; a pro- em Margo de 1702, insiste sobre os beneficios do chocolate absorvido pelo mo­
poigáo de raparigas casadas antes dos 20 anos cai, neste caso, de 69% para 31% ribundo: o líquido teria permitido, durante vários días, prolongar a vida do mo­
neste curto período 1". As cidades, enfim, revelam uma idade média de casa­ narca '. Episodio insignificante se náo confirmasse a importáncia crescente, no
mento mais tardía do que nos campos: é depois dos 27 anos que se casam as ra­ século x v i i , de substáncias novas: café, tabaco, chá e chocolate, tudo produtos
parigas de Saint-Malo ou de Lyon, cerca de 1700 m. O recuo desta idade pode vindos da América ou do Oriente, para transformar as protecgóes quotidianas.
entáo aproximar-se, segundo os locáis, mais de oito anos no século. O seu destino assemelha-se áquele que suportaram alguns séculos mais cedo as
Prática modesta, aparentemente menor ou mesmo irrisoria, no que respeita especiarías medievais. Nada comparável, no entanto, á aspereza destas especiarías.
as condutas de saúde, este abrandamento dos nascimentos substituí, no entanto, Nada comparável aos recursos espirituosos do vinho ou da água-de-vida. A maior
o peso dos labores. Modifica as fadigas e os deveres. Com esta primeira «arma parte destas plantas aliam-se ao agúcar, jogam com os amargores e os perfumes «li-
contraceptiva» a mais humilde de todas é talvez um incentivo de um lento geiros». Elas promovem os aromas atenuados, por uma acgáo ela própria mais va­
progresso material que se afirma sob o Antigo Regime. Nenhuma vitória sobre riada. As suas influencias aliviam os flatolentos, dáo forgas aos fracos e atengáo
a doenga e menos ainda sobre a morte, nesta nova disposigáo sobre o casamen­ aos sonolentos. Mudangas tanto mais marcantes porque confirmam a defesa con­
to. em compensagáo uma atenuagáo, ainda que fosse ínfima, das provagoes e tra as doengas inéditas do século xvn: multiplicidade de dores de cabega, flátuos e
das incomodidades, e no fim de contas, um comportamento preventivo de um perturbagóes do ar. Os produtos respondem ás novas preocupagoes preventivas.
genero inédito. De certo que a depressáo demográfica, frequentemente notada O lento recuo das especiarías impóe-se em primeiro lugar. E o que se toma
no seculo x v i i , é igualmente subentendida por este acto de vontade obscura que necessário primeiramente descrever e explicar.
diminuí o número de criangas. Uma tentativa ainda balbucíante, mas notável de
defesa.
1. A « S U A V IZ A g Á O » D O S A R O M A S

Fez-se menor consumo de pimenta, de gengibre e de canela sem particular


, .P ' 9 0 u b ert’ °P- cit->P- 40; P. D eyon, A m iens capitale provinciale, étude com parée sur
la so c iete urbaine du x v ii‘ siécle, Paris, A rthaud, 1967, p. 36.
relevo, nem crítica precisa, antes mesmo do inicio do século xvn. Os doces de
L ebrun, «Le m ariage et la fam ille», H istoire de la population francaise, op. cit t II fruto, para comegar, tomam o lugar das especiarías após as refeigoes ou durante
D e la R enaissance á 1789, Paris, PU F, 1988 p 305 as ceias, na segunda metade do século xvi. Eles sáo a vitualha dos amantes ñas
168 Idem. novelas de Straparole, em 1555: o jovem conduz Philéne «pela máo» antes do
a r, J ' J^ auriceau’ 1x1 P opulation du sud de P aris aux x v ie et x v i r siécles, U niversidade seu encontro amoroso, diante de «um pequeño caramancháo perto dali, onde ele
de P a n s-I, 1978.
tinha uma mesa guarnecida com excelentes doces de fruta e vinhos generosos» 2.
p 2 0 3 ° TUrTe1’ BourS~en B resse au x v ¡ e siécle, Société de dém ographie historique, 1986, Outras cenas do Heptaméron de Marguerite de Navarre confirmam a mudanga.
171 F. L ebrun, op. cit., p. 305.
I7- P. C haunu, L a C ivilisation de 1 ’E urope classique, Paris, A rthaud, 1966, p. 33 1 L. de Saint-S im on, op. cit., t. x, pp. 131-132.
2 G . F. Straparole, op. cit., 1 . 1 , p. 111.
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103
EVACUAR OS HUMORES PLANTAS PURIFICADORAS E CONSUMOS APRAZÍVEIS

O apaixonado faz ai muitas vezes chegar os seus doces de fruta através de al- doces de agúcar de todas as maneiras, mais uma caixa de agúcar cristalizado» 9,
guma intermediária complacente: «E todas as tardes, esta velha senhora levava oferecidos por Rodrigo Fernandez d'Almada, ou a «grande quantidade de do­
doces de fruta a essa princesa para a sua merenda.» 3 É a única diferenga em re- ces de agúcar» l0, oferecidos pelo mesmo quando Dürer foi atingido de febres e
lagáo aos encontros amorosos descritos na Idade Média: a pimenta partilhada de dores de cabega durante os grandes fríos do Invernó. O agúcar americano,
pelos amantes medievais toma-se menos presente nos rituais de excitacao 4. transitando por Lisboa até ao grande mercador de Anvers, tomou o lugar do pro­
Flandrin salientou esta lenta conquista do agúcar: a versáo impressa do Vivan- duto do Levante: impoem-se os restos cristalizados de cana ou de agúcar mas-
dier de Taillevent, no final do século xv, utiliza já o agúcar em 18% das suas cavado mesmo que subsistam os consumos de hypocras ou de pratos tempera­
receitas e o Livre fort excellent de cuysine, no século xvi, em 31 % 5. O «exci­ dos com especiarías. É o agúcar ainda que acompanha o chá, o café e o
tante» já náo é o mesmo, o sabor azucarado apaga-o imperceptivelmente. A vio­ chocolate, reforgando o seu consumo, como o sugere o tratado das drogas
lencia dos temperos dos elixires antigos recuou diante de composicoes mais re­ de Pomet, no final do século xvn: «O café tomado de manhá com um pouco de
buscadas: misturas refinadas e temperadas, incorporando menos picante, mas agúcar é muito útil á saúde.» "
com mais água-de-rosas e vinho doce. Uma brutalidade menos viva para uma O agúcar é de toda a utilidade ñas compotas e nos xaropes. Ele permite a
maior diversidade. acumulagáo destes preparados pelos mais ricos. Toma a sua diversidade táo
grande, garante Moyse Charas, na sua Pharmacopée royale, em 1 6 7 0 «que se
quisermos sujeitarmo-nos a té-los todos já preparados, as lojas náo seriam su­
Compotas e xaropes ficientemente grandes para os arrumar» 12: xarope de gamboa «para fortalecer
o estómago», xarope de alteia «para aliviar os rins», xarope de ruibarbo, de ar­
O aumento brusco da disponibilidade do acucar no século xvi explica par­ temisia e de manjerona «para vazar alguns humores malignos», o doce é feito
cialmente esta substituigáo. Raro ainda na Idade Média, laboriosamente produ- também para rectificar e purificar o sangue. Compoteiras, sertás, campánulas
zido em algumas ilhas mediterránicas, como a ilha de Chipre ou a ilha de Can- e recipientes onde se cozem os frutos, ocupam como nunca os inventários
die, o agúcar torna-se um género claramente mais acessível no século xvi e, post-mortem do século x v i i . As trocas, enfim, os pagamentos podem por vezes
sobretudo, no século xvn: ele é difundido pelo mercado atlántico, desmultipli­ ser modificados: o proprietário de uma pequeña casa de campo, em 1 6 3 0 , re­
cado pela cultura da cana americana e alimentado pela escravatura. As planicies clama anualmente «3 cestos de cerejas de 10 libras cada e uma meia centena
do subcontinente impuseram-se, agitando a produgáo e absorvendo perto de me­ de magás» 13, para fazer as suas cozeduras. Agúcares, compotas e xaropes man-
tade dos escravos negros enviados para as Américas, entre 1600 e 17006. O cres- tém, até nos modos de financiamento, um lugar deixado pelas especiarías me­
cimento americano explodiu em alguns decénios: as 1000 toneladas exportadas dievais.
no principio do século xvi passam a ser 200 000 no inicio do século xvm 7. Vá­ É impossível, no entanto, explicar apenas pelo crescimento dos produtos
rios índices confirmam estes aumentos: no Hospital de Rennes, as reservas de agucarados, o recuo das especiarías no século xvn. Os historiadores da cozinha
frutos e doces de fruta sáo de 7 libras e 3 céntimos, em 1608, enquanto que em já demonstraram quanto trabalho completamente particular sobre o gosto se
1667 sáo de 67 libras e 18 céntimos; no Hospital de Saint-Malo, a quantidade acrescentava: no século xvn o prestigio social já náo se reveste de especiarías,
de agúcar comprado em 1619 limita-se a uma libra, enquanto que atinge as trin- pois elas próprias se tomam mais comuns com a renovagáo dos mercados e das
ta libras em 1666 e nos anos seguintes 8. rotas, mas antes com o refinamente e a diversidade dos «sabores» e o aumento
E um conjunto de gestos modestos, por vezes solenes, que podem entáo mu­ da sua variedade. Como a «sopa da saúde», tongamente evocada por Nicolás de
dar, mesmo que o agúcar se mantenha um produto semiluxuoso no século xvii: Bonnefons ñas suas Délices de la Campagne, em 1 6 5 4 : «que uma sopa de saú­
os presentes de gosto, por exemplo, os que adulam a sensibilidade do destina- de seja uma boa sopa de Burgueses, bem constituida de boas carnes bem esco-
tário gratificando «a delicadeza de boca». As ofertas de géneros mais aprecia­ lhidas, e reduzida em pouca fervura, sem picado, Cogumelos, Especiarías, nem
das por Dürer, na sua viagem aos antigos Países Baixos em 1520, sáo os agú- outros ingredientes, mas que seja simples, pois tem nome de saúde; que a de
cares que lhe propóem os mercadores portugueses: «Um barril pequeño de Couves cheire inteiramente a Couve; que a de Alho-porro cheire a Alho-porro;
que a de Nabos cheire a Nabo, e outros assim... E vereis que os vossos Amos
3 M . de N avarre, L ’H eptam éron (1559), C onteurs fra n g a is du X V Ie siécle, P aris, G alli­ passaráo melhor, teráo sempre bom apetite e que vós e os cozinheiros recebe-
m ard, L a Pléiade, 1956, p. 728.
4 N e sta obra p. 35. 9 A. D ürer, J o u rn a l de voyage d ans les a nciens P ays-B as (1520-1521), B ruxelas, L a
5 L e C uisinier frangais, textos a presentador p o r J.-L. Flandrin, P. e M . H ym an, Paris, C onnaissance, 1970, p . 63.
M ontalba, 1983, p. 16-17. 10 Ibidem , p. 93.
6 J. M eyer, H istoire du sucre, Paris, D esjonquiéres, 1989, p. 95. 11 P. Pom et, H istoire g énerale des drogues, 1695, p. 7.
7 Ibidem , p. 124-125. 12 M . C haras, op. cit., p . 115.
* A . C roix, L a B retagne a u x X V I e e t X V IIe siécles, la vie, la mort, la fo i, P aris, M aloi- 13 Ver A. P ardailhé-G alabrun, La N aissance de l'intim e, 3.0 0 0 fo y e r s p a risie n s aux
ne, 1981, t. n, p. 834. X V I h -X V IlI’ siécles, Paris, PU F, 1988, p . 297.

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EVACUAR OS HUMORES
PLANTAS PURIFICADORAS E CONSUMOS APRAZÍVEIS

reis louvores» l4. A distingáo social prende-se com a diversificagáo dos recursos
O perfumista afirma em maior escala a sua presenga contra a peste, como
gastronómicos e com o alargamento do espectro das sensagoes gustativas: a es­
Étienne Cormus, em 1668, em Bruxelas, que recebe 24 florins por mes para «fu­
peciaría pode contribuir para isso; ela pode também constituir obstáculo ao dis-
migar, perfumar, purificar e limpar» 20 transeúntes e casas. O perfume afasta a
fargar o aroma de cada produto. Daí a possível queda do seu interesse.
doenga. Madame de Maintenon também o diz claramente, recorrendo aos odores
para proteger das bexigas a sua instituigáo de Saint-Cyr. Ela faz mesmo acom-
panhar várias esséncias diferentes, em 1695, de ornamentos, preceitos e comen-
Diversidade de perfumes
tários: «Eis alguns citrinos que, com alguns cravos-da-índia espetados preservam
do mau ar. Eis os aromas que se eré serem bons. Esfregai, todas as manhás, os
Nem todos os aromatizantes sao aprovados, antes pelo contrário. O perfu­
narizes dos nossos pequeños pensionistas com a água da Rainha da Hungría.» 21
me, pelo menos, continua a ter uma fungáo activa, mesmo quando o efeito de
Lémery, em 1709 22, hierarquiza um «perfume real», um «perfume para a bur­
comogáo e de abalo provocado pelas especiarías é menos privilegiado. No sé-
guesía» e um «perfume para os pobres». Quinta-esséncia do perfume real a «mir­
culo x v i i aumentou o valor protector das esséncias fragrantés, com os seus eflu­
ra mesclada de ámbar cinzento» é, evidentemente, reservada apenas a alguns...
vios considerados mais doces, mais numerosos e com mais nuances. Os odores
Em compensagáo, todos devem esperar uma protecgáo pelo o aroma.
multiplicaram-se perdendo a sua brutalidade. A cultura tomou-os mais ricos,
mais subtis, enquanto mantém o seu possível destino preventivo. As luvas en­
comendadas por Mazarin aos seus perfumistas italianos 15 tomaram-se preser-
2. A S P L A N T A S E S P IR IT U A IS
vadoras pelas suas impregnagdes aromáticas, como os «epítemas» saturados de
esséncias e aplicados sobre o coragao para melhor o sustentar, ou os «rosários
O gosto já náo é o único guia quando Nicolás Tulp prescreve o chá aos seus
perfumados», os «leques aromáticos», os «óleos de flores para as perneas», to­
doentes londrinos desde 1642. O impacto orgánico tem a sua importancia: «Os
dos eles tidos como capazes de «servir contra o mau ar e de terem virtudes me­
que usam chás estáo só por isso isentos de todas as doengas e chegam a uma ve-
dicináis» 16. O «bom gosto» supóe sempre uma protecgáo pelos ácidos de toil-
lhice extrema.» 23 Sem dúvida um efeito obscuro, ilusorio pela certa, mas total­
lette, as águas de anjo, de mil flores, de néroli e de bergamota; supoe o recurso
mente independente do simples sabor, diferente do impacto físico esperado da
as «tocas de algodáo piqué» descritas pela Pharmacopée royale de Moyse Cha­
especiaría. O valor gustativo apagou-se perante o valor estimulante, mesmo que
ras, em 1670 l7: estas coifas cujas dobras retém, acumuladas no forro, raízes de
a qualidade do aroma náo tenha sido negligenciada. O chá, o café e o tabaco
iris, flores de lavanda, pétalas de rosas vermelhas, as «extremidades da manje-
constituem os exemplos.
rona», também o musgo e o ámbar cinzento, para melhor «fortalecer o cérebro»
e defender melhor o corpo do contágio.
As caixas de pó-de-arroz estáo encarregues de difundir o efluvio protector.
A fa v a do Levante
0 séquito de Grimmelshausen confirma-o quando o jovem alemáo, em 1638, ata­
cado de um mal-estar incoercível, espalha bruscamente os seus excrementos em
O verdadeiro consumo do café desencadeou-se em Paris, em 1669, pelas re-
publico e faz temer uma propagagáo da doenga através do cheiro: «Levaram-se
cepgóes faustosas oferecidas por Suliman Aga, mistificador de génio, que che-
entao perfumes e pivetes para queimar e os convidados exibiram as suas caixas
ga a fazer-se passar pelo embaixador pessoal do Gráo-Turco 24. O personagem
de cheiro e de bálsamo.» 18A boa companhia, presente na recepgáo onde Grim­
é hábil e teatral: ele multiplica as solenidades, recebe a corte, faz-se notado, até
melshausen se encontrava, mostra assim a sua familiaridade com o uso de aromas
a carta da sua embaixada deixar claro tratar-se de um falsário. Suliman é, entáo,
protectores. Claro que náo se produz nenhum efeito sobre o mal, mas avivou-se
rejeitado, caindo na insignificancia, mas a sua passagem deslumbrante deixou
a certeza. Trocam-se os defumadores, comentam-se e tomam-se tema de conver­
uma moda, o uso de uma bebida que o papa Clemente V I I I declarara já «dia­
sa e de debate como os que Guez de Balzac envia a Ménage em 1660: «Lembrai-
bólica e deliciosa» 25, o café que o falso embaixador ofereceu ñas suas chávenas
-vos que é preciso queimá-los sobre o copo para que o odor seja mais puro.» 19
de porcelana e cafeteiras de prata.
O líquido impóe-se para além da corte. O efeito de excitagáo que provoca pa­
'5 y f e B onnefons, L es D élices de la cam pagne, Paris, 1654, p. 313.
rece destinado para prevenir ou para tratar a flatuléncia. Náo é suposto o café
1nen ' es^andes e J. Pinset, H istoire des soins de beauté, Paris, PUF, col. «O ue sais-ie?»,
1960, pp. 56-57.
20 C itado por J. C harlier, La P este á B ruxelles de 1667 á 1669, B ruxelas, 1969, p. 15.
. , de B légny, Secrets c o n c e m a n t la b eauté et la santé, Paris, 1689, t. i, p. 683; ver
21 M m e de M aintenon, op. cit., t. n, p. 284.
nw G uerrer, L es P ouvoirs de Vodeur, Paris, F. B ourin, 1988.
M . C haras, op. cit., p. 427. 22 N . Lém ery, «P réserv atif contre les m aladies contagieuses», R ecueilles p lu s beaux s e ­
crets de m édecine, A m esterdao, 1709, pp. 360-361.
( 1 a e d ^ Í ó ó s T 'p ^ l T 11' A ventures de S im plex Sim plicissim us, Paris, A ubier, 1983 23 C itado por P. B utel, H istoire du thé, Paris, Jonquiéres, 1989, p. 48.
G. de B alzac, Lettres, Paris, 1626, p. 52. 24 Ver P. B eaussant, Versailles, Opéra, Paris, G allim ard, 1987, pp. 92-93.
25 L. C habouis, L e L ivre du café, Paris, B ordas, 1988, p. 24.
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EVACUAR OS HUMORES PLANTAS PURIFICADORAS E CONSUMOS APRAZÍVEIS

dissipar as brumas, as dores de cabega e os pesos? É o que afirma Blégny, polí­ Trata-se da oposigáo evocada por Michelet: «vigiláncia» contra «ebrieda-
grafo ávido de novidades, comentando o efeito do produto, descrevendo os uten­ de», licor negro contra licor vermelho. É também o signo de um deslizar cultu­
silios que o acompanham, com a indicagáo do enderezo de alguns mercadores ral mais profundo onde os valores da ordem e da razáo tomam um lugar que an­
parisienses: «O café dissipa com a mesma prontidáo os vapores que causam in- tes náo tinham, sugerindo objectos específicos de estímulo.
sónias, as letargías e as inquietagóes.» 26 Madame des Ursins náo diz outra coi­ O que náo poderia tom ar caduco o uso tradicional do vinho; tanto mais que
sa á Madame de Maintenon ñas cartas da sua longínqua estada em Espanha: o líquido fermentado sofre as suas próprias transformagóes no século xvn: me-
«Estou persuadida de que quase todas as doengas vém das más digestóes e sei lhoramento das cepas e da vinificagáo a que é atribuido o efeito de tornar o vi­
por experiencia própria que náo há melhor remédio do que o café para bem di­ nho mais «medicinal». O vinho de Champagne, por exemplo, com as suas uvas
gerir.» -1 Cada um ve nele apenas a explicagáo conveniente: a purificagáo do «brancas como cristal» 33, cuja fórmula espumante é descoberta em meados do
sangue e a acgáo dos evacuantes. Esta «fava negra tem um sal adequado para ra- século, parece levar ao máximo a delicadeza e a pureza. Vinho dourado areja-
refazer os humores e para soltar os que sáo gordos e viscosos. Ela ajuda o san­ do até ao símbolo, a sua acgáo sobre os espíritos vitáis é considerada sem igual.
gue a circular» s. O líquido do Levante é inicialmente bebida de manutengáo. As tagas que o contém parecem mesmo feitas para revelar estas qualidades: fi­
Uma sensagáo nova se acrescenta, no entanto: a de uma excitagáo mais inte­ nas e longas, tomam bem visíveis «as pérolas que sobem» 34. Saint-Simon atri­
lectual. Dissipador de fadigas, o café seria também dissipador de «nuvens», de buí a longevidade de Duchesne, o médico dos filhos do rei, ao facto de que ele
obscuridades quase mentáis. O que exprime até ao ridículo a jovem vaporosa jantava todas as tardes uma salada e náo bebia nada além de vinho de Cham­
de uma pega de Dufresny, no final do século xvn, que propoe esperar pela di­ pagne» 35. O rei, cerca de 1680, náo consomé senáo champanhe, o que confir­
gestáo do café antes de ir a algum encontro. Daí a necessidade de fazer regular­ ma uma hierarquia das bebidas de manutengáo.
mente esperar os seus interlocutores: «É preciso uma hora para digerir o café.» 29 Trata-se de uma nova querela entre as provincias e um combate entre os mé­
Daí ainda a dificuldade, para ela, em ter qualquer vida social. Dufresny esco- dicos que é desencadeado quando, cerca de 1700, o rei aceita converter-se ao
lheu a caricatura, mas salienta de passagem a nova referencia: o projecto de au­ bourgogne considerado menos seco e mais aveludado 36. A desafectagáo real
mentar uma mobilizagáo física e intelectual e o recurso ás drogas de vigilia. provoca libelos, teses de escola e discursos eruditos: a faculdade está directa­
Estas certezas sáo suficientemente inéditas para que Michelet defina a mis- mente envolvida, no século xvn, no reconhecimento de um vinho. Ela deve ga­
sáo histórica do café 30: a de agitar o regime dos excitantes, a de abalar a omni­ rantir a sua forga, senáo provar a sua «ajuda á digestáo dos alimentos de que é
potencia do vinho; o aparecimento de uma bebida julgada específicamente «in­ o veículo» 37.
telectual» de que os negociantes europeus de Aden mostraram o uso: «Quando O café, neste caso, náo faz mais do que instaurar uma querela suplementar,
os nossos mercadores franceses tém muitas cartas para escrever e querem tanto mais que a excitagáo evocada é mais cerebral, diferenciada de todo o es­
trabalhar toda a noite, tomam uma ou duas chávenas de café.» 31 O que os puri­ tímulo á embriaguez. O chá, por fim, redobra o exemplo. Thomas Garraway, o
tanos ingleses perceberam melhor do que ninguém desde 1660, insistindo na primeiro a explorar a sua venda em Inglaterra, sob Cromwell, utiliza em 1657
oposigáo possível entre o café e o vinho, como sobre a recomposigáo dos esti­ os termos retidos alguns anos mais pelos bebedores de café: «A bebida é reco-
mulantes que ela possa arrastar: nhecidamente das mais salubres, ela preserva em perfeita saúde... purifica os
humores... activa o cérebro.» 38 O rigoroso Bontekoe, médico holandés, sensí­
Enquanto que o doce veneno da uva traigoeira vel ao comércio do Oriente, propoe, em 1668, fazer do chá uma bebida «edu­
Tinha alegrado a térra inte ira... cativa», susceptível de favorecer o estudo e de despertar o espirito. Ajuda a pro-
Eis que chega o café, solene licor e sao duzir um suco nervoso muito subtil, uma substancia favorável á reflexáo:
Que protege o estómago e tom a o génio mais vivo «Fizemos esta prova em muitos sujeitos e, principalmente, em criangas com
e reanima o espirito sem ser uma agressáo 32. pouca disposigáo para aprender, que, depois de terem bebido o chá segundo o
nosso conselho, passaram a ser outras, com o entendimento bastante vivo, a me­
moria muito feliz e táo susceptíveis á instrugáo a que antes eram incapazes.» 39
-6 N . de B légny, Le B on U sage du thé, du ca fé et du choco la t p o u r la préserva tio n et la
g uérison des m aladies, Paris, 1687, p. 181.
27 C itada p o r A. Franklin, L a Vie p rivée d ’autrefois, t. xm , Le Café, le Thé, le C hocolat 33 M . L achiver, op. cit., p. 276.
Paris, 1893, pp. 79-80. 34 R. L ovelace, Lucasta, L ondres, 1649, p. 99.
28 L e M ercure galant, M aio de 1696, pp. 28-29. 35 L. de Saint-S im on, op. cit., t. xxvn, p. 183.
29 C. D ufresny, La M alade sans m aladie (1699), Oeuvres, Paris, 1731, t. II, p. 19. 36 A. Vallot, A. d ’A quin, G. C. Fagon, op. cit., p. 211, nota.
30 W. Schivelbusch, H istoire des stim ulants, Paris, Le Prom eneur, 1991 (1 ‘ ed alem a 37 Q uestion agitée le cinquiém e m ai de l'a n n ée 1700 a u x écoles d e m édecine de Reims,
1980), p. 28. si le vin de R eim s est p lu s agréable et p lu s sain que le vin de Bourgogne, R eim s, 1700.
31 M . T hévenot, Voyages en Europe, A sie e t A frique, Paris, 1727 (1.a ed 1689) t I 38 C itado por P. B utel, op. cit., p. 50.
p. 103. 39 C. B ontekoe, S uite des nouveaux élém ents d e m édecine, Paris, 1698 (1.a ed., 1685),
32 P oem a anónim o de 1674 citado p o r W. S chivelbusch, op. cit., p. 28. p. 186.

108 109
EVACUAR OS HUMORES PLANTAS PURIFICADORAS E CONSUMOS APRAZÍVEIS

Bentekoe é táo entusiasta que avalia em seis a oito chávenas por dia o mínimo Enquanto que já sáo mais intelectuais as sensagóes que os fumadores de
necessário para conservar a saúde, mas considera perfeitamente razoável beber Abraham Bosse evocam, cerca de 1 6 5 0 , puxando os seus cachimbos finamente
150 ou 200! Projecto ainda cheio de metáforas de Huet, bispo de Avranches, trabalhados: «Quando nos enchemos de humores melancólicos, o vapor do ta­
que pretende fazer das folhas do chá a «vassoura da inteligencia» 40, a bebida baco aviva os nossos espíritos.» 47 Em compensagáo, o acto de fumar mantém-
que ordena o espirito. -se, nesta altura do século xvii, uma prática limitada, mal conhecida, um gesto
suficientemente embaragoso para parecer vulgar.
Tudo muda com a «pitada» e os seus resquicios de folhas «aspiradas pelo
A «pitada» e o fum o nariz», «sorvidas», segundo um conjunto de movimentos que associam larga­
mente ao perfume. A rápida difusáo desta prática, na segunda metade do sé-
O tabaco sofre uma evolugáo mais complexa entre o século xvi e o século culo xvn, apoia-se numa tradigáo: a da aspiragáo de sais e de aromatizantes. Ela
xvii, antes de se tomar igualmente um «adjuvante da razáo» 41. A planta reforja promove uma excitagáo particular. Vigneul-Marville salienta com precisáo a as-
em primeiro lugar a panoplia dos medicamentos. Ela reduz os derramamentos sociagáo possível entre gestos antigos e gestos novos, no final do século xvn:
líquidos, drena e estanca; qualidade primordial para uma medicina que assimi- «Parece que nestes últimos anos toda a gente foi ameagada de apoplexia. Cada
la a doenga aos humores malignos. Nicot, que envia para Franga a primeira um levava consigo a sua garrafa de Água-de-Rainha da Hungría; tomavam-na
planta do tabaco desde a sua embaixada portuguesa, em 1560 42, facilitou as a toda a hora para prevenir a doenga de que náo se sentia a mínima aproxima-
curas de Catarina de Médicis: redugáo das suas enxaquecas gragas ás folhas da gáo. Mas depois de tudo, a moda passou: é preciso ceder ao tabaco. Náo se so-
planta enroladas em compressas. Daí o nome duradoiro de «erva da rainha» e nha com outra coisa que náo seja purgar o cérebro.» 48 Testemunho tanto mais
também o de «nicociana». marcante quanto associa o papel preventivo ao gesto de prazer.
Na mesma altura, o fumo suscita mais reservas. Prática inclassificável, faz O tabaco revela ainda virtudes cartesianas: «Toma o espirito susceptível das
do tabaco um produto táo purificador quanto suspeito: a «erva do diabo» 43, se­ mais altas meditagóes no estudo das ciencias mais difíceis e ilumina o entendi-
gundo a elite colonizadora do Novo Mundo, evocando as magias indias e os mento.» 49 Como o café e o chá toma «a razáo iluminada» 50. E isto que a ima­
seus rituais obscuros. A embriaguez é frequentemente associada ao tabaco fu­ gem tracista de Sganarelle, no monólogo do Dom Juan de Moliére, salienta, na
mado nos «saloes de fumo» do comego do século xvn, tabernas que oferecem abertura da pega: «Náo só [o tabaco] diverte e purga o cérebro, mas ainda ensi-
cachimbos e copos a alguns consumidores sem dinheiro, «vagabundos, solda­ na a virtude ás alm as.»51 Ou a irania de Dufresny, pretendendo, num longo poe­
dos... aqueles que se apelidam de trapaceiros»44, segundo os termos do édito de ma, perder «saúde, razáo e vivacidade» 52, muito simplesmente por se esquecer
1624 que impoe o encerramento destes lugares desprezados. O fumo, no entan- da sua tabaqueira numa mesa!
to, tem o seu efeito preservador: as autoridades do colégio de Eton, durante a Ao tabaco que favorece o consumo de vinho, ao fumo corolário da embria­
peste de Londres em 1665, obrigam os al unos a fumar cachimbo para os pre­ guez, comega a opor-se o tabaco que agudiza a atengáo. Da mesma forma que
servar melhor da infecgáo 45. Elas atribuem a isso importáncia bastante para ao tabaco dos «salóes de fumo» do inicio do século xvn, se comega a opor, cer­
ameagar com chibatadas todo o colegial recalcitrante. As gravuras dos tempos ca de 1 6 7 0 , o tabaco dos fumadores distintos. As palavras atribuidas por Gon-
de peste, em meados do século, assinalam sempre em grande número, os ca­ dolffe aos camponeses da Picardía: «O tabaco descontrai-nos e distrai-nos, é a
chimbos dos «coveiros» com os seus longos penachos de fumo protector. As sobremesa após as nossas refeigóes frugais.»53 Sáo a este respeito diferentes das
gravuras de Saint-Igny acampam mosqueteiros comentando em versos detestá- afirmagóes do poeta La Garenne: «Ele fortifica o cérebro.» 54 Também o tabaco
veis a protecgáo que o fumo traz: dos soldados, como descreve De Prade, por exemplo, em 1 6 7 7 , «sustentando as
fadigas da guerra, sem comer nem beber, e sem tomar outra coisa além de meia
Contra o ar pestilento de um vapor grosseiro onga de tabaco em vinte e quatro horas» 55, é diferente do pó que o mesmo De
fum am os o tabaco como verdadeiro medicam ento46.
47 L e s F um eurs, g ravura d ’A braham B osse, Paris, B N , C abinet des E stam pes.
48 N . de V igneul-M arville, M élanges d ’histoire e t de littérature, Paris, 1725, t. II,
40 D. H uet. op. cit., p. 189. pp. 32-33.
41 J. R oyer de Prade, H istoire du ta b a c ou il est traite p a rticu liérem en t d it tabac en p ou- 49 C. B ontekoe, Suite..., op. cit., p. 112.
dre, Paris, 1677, p. 20 : com o uso do tabaco, «a c a b e ja é m ais saudável e m ais ordenada». 50 J. B runet, Le Bon U sage du tabac en poudre..., Paris, 1700, p. 35.
4‘ J. Baudry, Jean N icot á l 'origine du tabac en France, Lyon, La M anufacture, 1988, p. 88 . 51 J.-B . Poquelin, conhecido com o M oliére, D o m Juan ou le F estín de pierre, 1665,
4 F. O rtiz, C uban C outerpoint, Tabacco a n d Sugar, N ova Iorque, V in tase B ooks, 1970 Théátre com plet, op. cit., p. 715.
(1.a ed., 1940), p. 119. 52 C itado p or S. Blondel, Le Tabac, le livre des fu m e u rs e t des priseurs, Paris, 1891, p. 197.
A rrét du P arlem en t de Paris, 1624, D om M. F élibien, H istoire de la ville de Paris, P a ­ 53 E. G ondolffe, Le Tabac d ans le N ord de la F rance. H istorique 1587-1814, Vesoul,
ris, 1707, t. m, p. 736. 1910, p. 102.
« ^ B enedicenti, M alati, m e d id e t ferm a c isti, M ilán, 1947, p. 659. 54 H. de L a G arenne, L e s B acchanales ou les L o is de Bacchus, Paris, 1667, p. 58.
L es F um eurs, gravura de Saint-Igny, Paris, B N , C abinet des E stam pes. 55 J. R oyer de Prade, op. cit., p. 127.

11 0 111
PLANTAS PURIFICADORAS E CONSUMOS APRAZÍVEIS
EVACUAR OS HUMORES

Prade utiliza para aumentar «a imaginagáo e a memoria» 56. A evocagáo das dis­ tiliza a quina todas as vezes que sente a mais ligeira indisposigao» . O Deltim
tancias sociais acrescenta-se neste caso á nova imagem do excitante. Consti­ também ele prontamente restabelecido em 1679, confessa o seu entusiasmo a
t u ir s e claramente uma estimulagáo completamente inédita. Racine. Ele pretende fazer da quina uma bebida de salvaguarda uma pogao de
Há, obviamente, resistencias. Alguns médicos pretendem ter descoberto saúde combinada com o agúcar e o vinho: «No outro día, em Marly, Monsei-
uma obstrugáo do cérebro feita de «cera negra», ao dissecarem um «consumi­ aneur depois de um grande almogo com a pnncesa de Conti e outras senhoras,
dor de pitadas de tabaco» 57. Outros mostram as matérias que sujam lentamente mandou requisitar duas garrafas aos boticános do Reí e bebeu um grande copo,
os cachimbos para as comparar aos «amontoados de excrementos» 58 que o ta­ no que foi seguido por todas as acompanhantes que tres horas depois jantaram
baco faz acumular ñas cavidades dos órgaos. A morte de Boutet, fulminado m elhor» 66 O rei convence-se com o uso regular depois de 1690, misturando a
bruscamente no jogo da péla em 1665, é explicada pela «prodigiosa quantidade quina ás infusóes de vinho 67. O duque de Chevreuse também a usa intensa­
de tabaco que ele tomava a todo o momento» 59. A purificagáo ou a oclusao, a mente, chegando a esconder-se para a tomar, tanto o seu consumo lhe parece
distribuigáo ou a obstrugao, continuam a ser, no século xvn, as imagens do sau- excessivo68. Racine, enfim, pode anunciar o sucesso da nova beberagem, cerca
dável e do doentio: o tabaco podía escorregar de um polo ao outro. de 1680: «A coisa toma-se moda.» 69
A última experiencia, por fim, provada pelos fumadores da Franga clássica: O líquido, no entanto, náo se banaliza no século xvm. Sem duvida demasia­
eles descobrem uma «dependencia» que náo compreendem: «chama-se-lhe erva do caro: o prego da libra de casca (489 gr.) aumenta para nove libras em 1687
encantada, porque aquele que a comega a usar já náo pode passar sem ela» 60. em Bordéus, o equivalente a mais de vinte e cinco dias de trabalho para um ope-
Labat cita o caso, em 1697, de alguns parentes que se levantam de noite para a rário talhador. O produto, difundido com parcimónia, continua a ser mais um
to m ar61. Préfontaine espanta-se com os seus próprios expedientes, confessando remédio para as febres do que um remédio de precaugáo ou de prevengáo. Este
cortar, por vezes, o fundo dos bolsos, com o seu ínfimo resto de tabaco, para ter uso limitado da quina mostra apenas a nova atengáo sobre os efeitos «reais», e
a pitada que lhe falta 62. A experiencia é a do excitante moderno. a tentativa de os transpor e de os explorar para melhor prevenir as doengas. Ele
Apesar destas surpresas o tabaco mantém-se como um instrumento preven­ mostra a lenta distancia tomada face a uma valorizagáo durante muito tempo
tivo no século x v i i : «O que é notável nesta planta é que se usa mais por pre- dominante, conseguida ás impressóes do paladar e do aroma: o gosto nao de-
caugáo do que na urgencia das doengas.» 63 sempenhou nenhum papel neste primeiro interesse sobre a quina.
Também os pregos desempenharam o seu papel no sucesso do cafe, do cha
e do tabaco. O café, vendido em Paris por 40 céntimos a libra, em 1687 , tor-
O resultado sobrepoe-se ao gosto na-se acessível a um público distinto. O tabaco está aínda mais dispomvel: o po
francés, vendido por 25 céntimos por libra em 1681 71, uns quatro días de sala­
Outros produtos igualmente vindos de fora sáo arriscados em panaceias, no rio de um operário alcanga um público já vanado. O sucesso das novas plantas
fim do século xvn; os géneros confirmam esta nova expectativa da verificagáo está também ligado ao seu efeito, ao seu gosto e ao seu prego. O seu uso re-
do efeito. A quina é uma dessas plantas. A casca do Perú demonstrou claramente quente torna-se possível combinado com a saúde e com o prazer. Estes produ­
desde os anos de 1 6 7 0 o seu poder sobre as febres. A sua acgáo é soberana con­ tos podem prolongar, no século x v i i , o projecto mais antigo, mesmo arcaico, de
tra os acessos intermitentes, o paludismo, que se toma frequente nos pantanos combinar a protecgáo do corpo com os consumos quotidianos: fazer das pogoes
da antiga Franga. O remédio, cuja fórmula foi comprada pelo rei, em 1 6 7 9 , por de preservagáo pogóes aprazíveis.
2 0 0 0 luíses de ouro, curou Colbert, Bossuet e o delfim, de febres até entáo re­
beldes 64. A casca é o primeiríssimo exemplo de sucesso face as doengas tradi-
cionais. Daí as tentativas de a usar como prevengáo. 3. D O R E M É D IO A O A G R A D O
Os modelos iniciáis desta utilizagáo preventiva vém das próprias pessoas
que se curaram. Bossuet, restabelecido dos seus acessos febris em 1 6 7 9 , «reu- A troca mundana que inventa a sociedade do século xvn encontra outra van-
taeem nestas plantas excitantes. Elas servem os jogos de «conversagao». A pi­
56 Ibidem , p. 105. tada «purifica o cérebro» e ajuda o diálogo, admite Bontekoe: «A planta tem
37 C itado p o r J. N éander, Traité du tabac, Lyon, 1626, p. 55. esta virtude de ligar a sociedade de todo o tipo de pessoas e de as unir pela con-
58 Ibidem , p. 53-54.
59 R. d ’A rgenson, R apports inédits (1697-1715), Paris, 1891. p. 134.
65 L F de B ausset, H istoire de J.-B . Bossuet, V ersalhes, 1814, t. Ul, p. 336.
“ C arta de 5 d e A gosto de 1713, in M éla n g es historiques, a n ecdotiques e t critiques su r
« J. R acine, C arta de 24 de A gosto de 1682, Lettres, Paris, 1 7 4 7 ,1.1, p. 138.
la f i n du régne d e L ouis XIV, Paris, 1807, p. 324.
61 J.-B . L abat, op. cit., p. 256. 61 A . Vallot, A. d 'A q u in , G. C. Fagon, op. cit., p. 211.
62 O . de P réfontaine, L e P oete extravagant, a v ec l'a ssem b lée des filo u s e t d e s filie s de 68 L. de Saint-S im on, op. cit., t. xxin, p. 197.
joie, P aris, 1670, citado p o r E. G ondolffe, op. cit., p. 26. 69 J. R acine, L ettre, op. cit., 1 . 1, p. 138.
63 L. Ferrant, Traité du tabac en stem u ta to ire, B ourges, 1655, p. 23. 70 N . de B légny, Le B on Usage..., op. cit., p. 143.
M «L ettre su r le rem ede anglais», L e M ercure galant, O utubro de 1680, pp. 262 e ss. 71 G. d ’A venel, op. cit., t. v, p. 83.

113
112
EVACUAR OS HUMORES
PLANTAS PURIFICADORAS E CONSUMOS APRAZÍVEIS

versagáo.» 7- Café e tabaco sao entáo as ferramentas culturáis de uma socieda- talidade do mercado a um arrematante que aceita, em contrapartida, pagar uma
de que acede ao prazer de dizer, a que transforma a conversagáo numa arte do renda ao Tesouro Real. A decisáo de Colbert náo merecería atengáo se náo re-
quotidiano. Ambos tém o papel muito especial de prevenir as doengas e sanear velasse, quase oficialmente, a espantosa importáncia da planta: um consumo su­
os flátuos, enquanto permitem falar melhor sobre eles. Brunet insiste douta- ficientemente marcante para ser objecto de um imposto distinto e autónomo.
mente em 1701 nesta dupla perspectiva médica e social: «O uso do tabaco em A extensáo da prática o confirma. O montante da renda sofre uma progressáo
pó e o do café» sao indispensáveis contra a fadiga e as «más exalagoes», e sáo constante. Duplica e triplica em alguns anos: 500 000 libras em 1674, pagas por
igualmente «admiráveis invengoes para preencher o vazio das conversas» 73. J. Bretón, o primeiro arrematante; 1,5 milhóes de libras, vinte anos mais tarde,
cifra que atinge perto de oito milhóes de libras em 1730 79. O tabaco está em
Consumos instituidos vias de banalizagáo.

As plantas «espirituais» instalam novas práticas sociais. A sua adopgáo pela


O excitante e a sociabilidade
elite do fim do século xvn recompóe a organizagáo das refeigóes, renovando há­
bitos e dispositivos materiais. Saint-Simon evoca minuciosamente os servigos Os novos produtos estáo suficientemente presentes, enfim, para originar lo­
de café nos aposentos de Madame de Maintenon, descreyendo os grupos deti- cáis de consumo igualmente inéditos. Pascal, um arménio habituado aos usos
dos, após o jantar, em tomo dos cabarets, essas mesas leves que suportam as das bebidas turcas, é o primeiro a abrir uma «casa de café», em 1672, oferecen-
bandejas concebidas para as novas beberragens: «Estávamos perto de vários ca­ do o «novo aroma» por 2,5 céntimos 80, o que exclui a frequéncia popular, mas
barets de chá e de café, servindo-nos como quiséssemos.» 74 O café dá mesmo possibilita um público de mercadores e burgueses. Procope abre uma outra em
ao seu nome a este final de refeigáo, tornando-se referencia cronológica e códi­ 1684, na Rúa dos Fossés-Saint-Germain, recolhendo a clientela dos comedian­
go temporal; aquele que Saint-Simon utiliza para escandir as suas anedotas e tes do rei. Trezentos destes estabelecimentos que privilegiam o café, estáo insta­
descrigóes: «O baráo, que já náo sabia onde estava, sentia-se muito bem, e ao lados em Paris, em 1710, e já mais de tres mil em Londres na mesma altura. Lo­
café, reza o Padre Nosso....» 75 Historia sem importáncia que revela em com- cáis públicos de um novo género, com as decoragóes pintadas, os seus espelhos,
pensagáo, como o nome de um género se tom a o nome do momento escolhido os seus consumos agucarados, por vezes mesmo os seus veludos e as suas me­
para o seu consumo. A bebida «digestiva» tomou definitivamente o lugar das sas, os cafés opóem-se ás tabernas e aos cabarets onde se consomem exclusiva­
antigas especiarías, combinando, também ela, a protecgáo do corpo com os ges­ mente vinhos e aguardentes. Locáis de conversagáo e de encontros mundanos
tos mais familiares. As Mémoires do abade de Choisy salientam o quanto a pre­ concretizam a nova sociabilidade urbana do final do século xvn; aquela que
senga das novas beberragens é julgada sugerir a qualidade de um acolhimento, Mailly encena em 1702 nos seus Entretiens des cafés de Paris et les différends
por vezes mesmo de uma refeigáo: «Eu dava de cear muitas vezes aos meus vi- qui v surviennent: «Os cafés sáo locáis muito agradáveis onde se encontra todo
zinhos e, por vezes, ao senhor padre e a Granier e, sem me irritar por fazer mui- o tipo de pessoas e de caracteres diferentes. Neles se véem jovens cavaleiros que
ta carne, fazia-a suficientemente boa... Encontrava-se em minha casa café chá se divertem agradavelmente. Ai se véem pessoas sábias que neles vém descon-
e chocolate.» 76
trair o espirito do trabalho de gabinete. Véem-se outros cuja importáncia e nu-
As cafeteiras, as pegas de porcelana expostas sobre as mesas e as chaminés trigáo detém lugar de mérito. Os que num tom elevado impóem frequentemente
para o servigo do chá e do café comegam a penetrar os interiores do século xvn: silencio aos mais hábeis e se esforgam por louvar o que é digno de censura e cen­
o inventario post-mortem do padre de Charenton, Antoine Sévre, realga em surar o que é digno de louvor...» As cenas de Mailly náo tém mordacidade nem
I? 07 «cinco objectos de faianga em guamigáo sobre uma mesa» 77, até aos in- relevo literario, mas concretizam exemplos. Elas sublinham as ocasióes de en­
ventários de alojamentos modestos que podem mencionar «bandejas e consolas contró, de reencontros de amigos e de amantes, as discussóes depois do teatro,
guarnecidas de chávenas e pires» 78 no final do século x v i i e no comego do sé- as lenga-lengas literarias, enfim. a banalidade das trocas quotidianas. As suas
culo XVIII.
personagens animam-se regularmente quando se comparam as virtudes do vinho
A difusáo do tabaco é mais rápida e mais alargada. O consumo é tal, no fi­ com as do café ou as do tabaco, revelando a importáncia desta interrogagáo re­
nal do século xvn, que Colbert decide a sua exploragáo fiscal: a cedéncia da to- petida sobre o valor respectivo dos géneros estimulantes no final do século xvn.
72 C. B ontekoe, Suite..., op. cit., p. 1 1 1 .
O fenómeno social é ainda mais marcante em Londres onde o Lloyd’s Cof-
73 J. B runet, op. cit., p. 3. fehouse, aberto em 1687, se torna um lugar de encontro para negociantes, ar­
74 L. de Saint-S im on, op. cit., t. xv, p. 242. madores e agentes de seguros. Um lugar onde se discutem os fretes, os investi-
75 Ib id em , t. vi, pp. 41-42. mentos marítimos, as rotas e os ganhos; informagóes e ecos numerosos, sempre
76 A b b é de C hoisy, op. cit., p. 297.
77 C itad o por A . Pardailhé-G alabrun, op. cit., p 394
79 M ém oires su r les fe r m e s au x v iu e siécle, BN, m s. francés 7728.
78 Idem .
80 L. C habouis, op. cit., p. 31.

114
115
EVACUAR OS HUMORES

reactualizados, tao aguardados que a casa julga útil publicá-los regularmente


sod a torma de boletim o Lloyd’s News. É entáo a nova actividade do café que
se lans orma. o Lloyd’s já náo é uma loja de bebidas no século xvm, mas sim
a compannia de seguros com o mesmo nome 81.
Os cafes tém atractivos suficientes para que Nem eitz, no inicio do sé-
culo xvm, recomende a sua visita a todos os estrangeiros: «Acho bem que um
j em viajante vá, por vezes, a estes cafés, após o jantar ou pelo seráo, para es-
cutar os discursos dos novelistas.» 82 Nasce ai uma tradigáo da troca, com um
acento político que Montesquieu já pode comentar em 1721: «Se eu fosse o so­
berano deste país, encerraría os cafés, porque os que frequentam esses lugares
icam de cabega quente...» 83 É preciso reter ainda os alcances mais modestos,
mas também muito importantes para a sensibilidade quotidiana: a tentativa de TERCEIRA PARTE
ligar os consumos aprazíveis a uma preocupagáo de manutengáo do corpo,
aproximar gestos de prazer e gestos de saúde. As especiarías medievais encon­ RESISTIR E ENDURECER
traran!, efectivamente, o seu substituto.
S É C U L O S X V III

" W Schivelbush, op. cit., p. 36-37.


" P iL f ' S é jo u r á Paris, L eyde, 1727, p. 1 1 1 .
C ita d o p o r L . C h abouis, op. cit., p. 3 3 .

116
C APÍTULO I

A FOR^A DAS FIBRAS

No inicio do século x v i i i , a audácia de Lady Mary Wortkey Montagu carac­


teriza, com o máximo de clareza, uma mutagáo possível das práticas de preser­
vagáo. Mulher do embaixador inglés no Império Otomano, esta viajante do Le­
vante confessa em 1717 uma constatagáo espantosa: a quase inexisténcia de
varióla ñas margens do Bosforo, ñas cidades do mar Negro ou ñas do arquipé-
lago grego que visitou várias vezes. Muito poucas mortes, segundo ela, devido
a essa febre eruptiva cujos efeitos em Londres e em Paris sáo catastróficos. Ela
ve a razáo para isso numa prática estranha ainda aos europeus: a inoculagáo vo-
luntária da doenga durante os primeiros tempos de vida, a incisáo da pele, a in-
sergáo na ferida de matérias purulentas tiradas das bexigas de um varioloso.
O processo mostra-se simples e a comunicagáo da doenga, neste caso preciso,
insignificante. Um breve episodio de febre sobrevém alguns dias mais tarde, se­
guido de uma erupgáo ela própria breve e ligeira, antes que o inoculado fique
definitivamente preservado: a doenga nunca se apanha duas vezes, observagáo
geralmente reconhecida no século x v i i i , aqui evocada para basear a insergáo.
A protecgáo adquire-se assim sem daño: «Uma semana é suficiente para reto­
mar o seu estado habitual.» '
As cartas de Mary á sua amiga Sara Chiswell salientam o empirismo do pro­
cedimento, evocando mesmo o seu carácter por vezes supersticioso: náo procu-
ram os gregos efectuar quatro picadas que inoculam a doenga «uma sobre a tes­
ta, uma em cada brago e uma sobre o peito» : para melhor evocar a forma da
cruz? Mas impóe-se a constatagáo de uma preservagáo bem sucedida. Ao pon­
to de a 19 de Maio de 1718, em Belgrado, Mary levar o seu filho de seis anos
para fazer uma incisáo, a uma velha grega que pratica «esta técnica desde há nu­
merosos anos» 3. O resultado é convincente. Mary faz inocular o seu segundo
filho e confessa um proselitismo totalmente inédito nestes primeiros anos do

1 M . W ortley M ontagu, C arta de 1 de A bril 1717, citada por J.-F. de R aym ond, Q uerelle
de l ’inoculation ou P réhistoire d e la vaccination, Paris, Vrin, 1982, p. 43.
2 Idem.
3 C. M aitland, A cc o u n t o f Inoculing the Sm all Pox, L ondon, 1722, citado p o r J.-F. de
R aym ond, op. cit., p. 44. M aitland é o cirurgiao de M ary M ontagu.

119

1
RESISTIR E ENDURECER
A FORCA DAS FIBRAS

sécuio x v i i i : «Tenho patriotismo bastante para tentar introduzir em Inglaterra esta


ros alarmantes de uma epidemia italiana: «garantem que em Turim, em Piémont,
feliz descoberta.» 4 Ela chega mesmo a persuadir varios membros da corte, entre
a mesma doenga levou mais de 4000 pessoas em muito pouco tempo» Uma ve-
os quais a princesa de Gales, a mandar inocular os seus filhos em 1721 e 1722.
rificagáo cenada dos números atesta uma mortalidade variólica de 18,5% em Du-
A incisáo assim praticada é «ilógica» para o olhar do tempo. Ela é contraria
blin entre 1715 e 1746, e de 14% em Besangon cerca do mesmo período I2. Tan­
a uma longa tradigáo, o que torna a sua aceitagáo laboriosa e agitada. Mas ela é tas indicagóes confirmam a existencia de uma nova angústia depois da angústia
históricamente decisiva, simbolizando só por si a transformagáo das práticas de da peste. Tantos receios tornam mais notável ainda a audácia da inoculagáo.
preservagáo do século xvm. O seu lento sucesso, mais ainda, acompanha uma
mudanga na imagem do corpo: a inoculagáo pressupóe uma forga particular dos
órgáos, uma resistencia própria, uma defesa escondida, até ali náo menciona­ Uma imagem da doenga
das. Náo há aqui nenhum elixir, mas antes o apelo a uma reacgáo orgánica ain­
da inexplicável. É sobre esta deslocagáo da sensibilidade e da representagáo do Os textos do século x v i i i abundam em descrigóes implacáveis, sobretudo
corpo, sobre este incentivo da nova poténcia, que os avatares da inoculagáo sáo das bexigas confluentes, cuja erupgáo inadia, para além da pele, pelas vias res­
particularmente reveladores.
piratorias e pelas mucosas: «O corpo mergulhado em azeite fervente; as dores
excessivas. Com a supuragáo o rosto monstruosamente inchado e desfigurado;
os olhos fechados; a garganta inflamada e fechada, náo conseguindo engolir a
1. A « C O R A G E M » D E IN O C U L A R
água que o seu estertor pede sem parar.» 13 A morte atinge a décima parte dos
doentes; uma parte quase igual fica fortemente mutilada.
A acgáo de Lady Montagu é tanto mais marcante quanto a varióla adquire O trágico da doenga prende-se com os tragos deixados sobre o rosto de uma
uma vertente trágica no século xvm: «O flagelo da Europa» \ afirma Buchan
parte dos que lhe conseguem escapar: a desfiguragáo pelas gretas e pelas man­
em 1770, que se instala no lugar da peste definitivamente apagada. Endémica, chas vermelhas devido ás pústulas, a «picada», que criva de sinais e de forma.
a doenga tem, além disso, um aspecto epidémico, propagando-se segundo vagas Neste ponto, o trato familiar atravessa os séculos x v i i e xvm: a doenga conse-
consideradas sempre mais próximas. Também mais incontomáveis, com uma gue, em alguns dias, anuinar para sempre a aparéncia e a beleza, como na des-
mortalidade que alcanga por vezes, como em Boston em 1723, perto de 20%
crigáo de Grimmelshausen aterrorizado pela ruina definitiva do seu aspecto fí­
das pessoas infectadas 6. Voltaire cita o número de 23 000 mortos em Paris, em sico, depois de um acesso de varióla numa aldeia alsaciana, durante a G uena
1723 7; Mathieu Marais certifica a «morte de 3200 criangas ou mais» \ apenas
dos Trinta Anos: «A minha cara estava crivada de pequeños furos que lhe da-
nos meses de Agosto e Setembro do mesmo ano. A endemia está em progres-
vam o aspecto de uma eirá de granja onde tivesse malhado ervilhas... Os meus
sáo, atestada pelos números ingleses calculados com os métodos de hoje: a mor­
olhos estavam vermelhos e remelosos como os do octogenário cacóquimo.» 14
talidade variólica em Inglaterra teria passado de 1,6% no período de 1574-1598
O daño é táo profundo que Grimmelshausen náo é reconhecido quando entra na
para 5,8% de 1650-1689 e 8% de 1720-1739 9.
sua aldeia da Baviera, provocando uma sequéncia de dramas e de quiproquós.
Mas o mais importante é a avalizagáo dos contemporáneos, ainda que fosse Mais cruel ainda é a palavra de Madame de Sévigné acerca de Pélisson, desfi­
pouco objectiva: o perigo das bexigas negras representa o medo do século xvm.
gurado pela doenga e tido por «abusar da permissáo que todos os homens tém
Os diános de Mathieu Marais ou de Buvat confirmam-no, desde a regencia, evo­ de ser honendos» 15. Ou o julgamento do cardeal de Bemis acerca de Toumemi-
cando regularmente os prejuízos da doenga com uma insistencia crescente: «To­
ne, um dos seus antigos mestres do colégio: «o mais disforme do seu século» !6.
dos os dias as bexigas levam alguém.» 10Buvat nota as «devastagóes» feitas pela
A presenga intangível do contágio reforga a inquietagáo. Nem os acantonamen-
doenga no exército expedido para as fronteiras de Espanha, em Julho de 1719,
tos nem os afastamentos sustém a difusáo, apesar das tentativas repetidas no fi­
para se opor ás reivindicagóes de Alberoni. Acrescenta no mesmo dia, os núme-
nal do século x v i i i : a resistencia bem real do virus toma-o comunicável pelo
vento, pela chuva, pela água, pelo comércio dos homens e dos objectos. O seu
4 M . W ortley M ontagu, C arta..., op. cit., p. 45. modo de propagagáo é manifestó. O contágio, ao contrário da peste ou da lepra
G. B uchan, M édecine d om estique ou Traité co m p let des m oyens de se co n se rve r en é partilhado por todos os grupos sociais: o que acentúa a imagem incontomá-
sa n té e t de p ré v e n ir les m ala d ies p a r le régim e e t les sim p les remedes, Paris, 1792 (1.a ed.
inglesa, 1772), t. n, p. 198.
vel.O D elfim de Franga m one em 1711, o imperador José I em 1 7 14eL uísX V
6 J.-F. de R aym ond, op. cit., p. 35.
11 J. B uvat, Jo u rn a l de la R égence (1715-1723), Paris, 1865, p. 431.
7 F. M . A rouet, conhecido com o V oltaire, Lettres p hilo so p h iq u es (1734), O euvres co m ­
12 P. D arm on, op. cit., p. 58.
pletes, P aris, 1879, t. x x n , p. 115.
13 Dr. Faust, C om m unication au congrés de R a sta d t s u r l'ex tirp a tio n d e la p e tite vérole,
* M . M athieu, Journal et M ém oires (1715-1737), Paris, 1863, t. m, p. 1.
1798, citado por P. D arm on, op. cit., p. 39.
9 P. D arm on, L a Longue Traque de la varióle, les p io n n ie rs de la m édecine préventive,
14 G rim m elshausen, op. cit., p. 665.
Paris, L ibrairie académ ique Perrin, 1986, p. 60.
15 M m e de Sévigné, C arta d e 5 de Janeiro de 1674, C orrespondance..., op. cit., 1 . 1, p. 658.
10 M . M arais, op. cit., t. ni, p. 38.
16 F. J. de Pierre, cardeal de B em is, M ém oires et Lettres, 1715-1758, Paris, 1 8 7 8 , 1 . 1, p. 180.

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121
A FOR^A DAS FIBRAS
RESISTIR E ENDURECER

rescimento de doengas dissonantes: «raquitismo, escrófolas, tumores cancero­


em 1774. As representagóes que a inoculagáo voluntária desperta sao assim sos» 22. Tudo exemplos que confirmam o quanto a visáo tradicional da doenga é
muito mais perturbadoras. Os riscos parecem desmesurados. Esta introdugáo necessariamente polimorfa: nela a infecgáo perde as suas fronteiras, tomando-
deliberada do pus fere directamente a concepgáo tradicional das gangrenas e -se objecto de metamorfoses, de insidiosas deslocagóes e erráncias: «Náo há ne­
dos seus efeitos. Ela assemelha-se a um contra-senso. Como poderia ela cor­ nhuma razáo para que a insergáo das bexigas náo possa produzir uma erupgáo
responder «ao génio do nosso povo e ao seu modo de pensamento» n? A dúvi­ de outro tipo diferente.» 23 Os próprios médicos seriam vítimas de «dartros no
da acentua-se em Abril de 1722, após a morte em Inglaterra do jovem William rosto e ñas m áos»24ao curar a vanóla ou ao inoculá-la. Dito de outro modo, ape-
Spencer e o criado do Lorde Bathurst, no dia seguinte ás suas inoculagoes: um sar de todas as categorías que supostamente lhe distinguem os grupos diferen­
duplo drama adensa as oposigóes. tes, a doenga mantém-se aqui um ser multiforme, manifestagáo móvel, cujo nú­
A confrontagáo, acentuada como nunca, permite entáo delinear melhor o pa­ cleo se reduz ao episodio obscuro e inesgotável da decomposigáo.
norama cultural e a sua evolugáo. A resposta dos inoculadores náo é directamente teórica. Buchan afirma-o na
sua Médecine domestique: «O sentimento que exponho aqui náo é o resultado
da teoría, mas únicamente da observagáo.»25 O recenseamento estatístico serve
A querela da inoculagáo e o proselitismo mesmo, pela primeira vez, de referencia, tendo como única constatagáo os su-
cessos e as derrotas. Jurin inaugura este cálculo muito particular em 1725. Um
E em Inglaterra que o confronto se aviva. Ai precede largamente o que terá inquérito aprofundado aos inoculadores, associado ao recenseamento das «cer-
lugar noutros países, sem dúvida acentuado pela propaganda de Lady Montagu, tidoes de óbito ao longo de 42 anos» conduzem-no á primeira avaliagáo esta-
mas também por uma primeira modemidade das instituigoes sociais e eruditas tística da prevengáo médica e ao seu uso «militante»: «A décima quarta parte
británicas. Textos médicos, cartas públicas, artigos, folhas volantes ou mesmo do género humano morre de bexigas», enquanto que, segundo os testemunhos
sermoes da cátedra multiplicam-se para denunciar os métodos «praticados ape­ mais pessimistas, «por inoculagáo náo morrem mais do que um em cinquenta»26.
nas por algumas mulheres ignorantes entre um povo iletrado» 18. Os médicos A conclusáo parece transparente: a insergáo da doenga na pele aumenta «objec-
sáo os mais estridentes a rejeitar as obscuras endireitas de Circassie «inaptas» tivamente» a vida. Os números recenseados sáo precisos e a análise concisa.
para qualquer competencia médica. Afirmam defender a ciencia, rejeitar a ilu- O livro de Jurin fez historia incontestavelmente. Ele revoluciona o argumento
sáo e o empirismo. Afirmam combater os remédios das boas mulheres, as prá­ preventivo. Ele enuncia, pela primeira vez em termos de percentagens as pro­
ticas de charlatoes e as crengas. O que toma o debate mais complexo ainda: es­
babilidades e os riscos de vida.
tes médicos reticentes sabiam preconizar o imobilismo em nome das Luzes, as Os acidentes ingleses de 1722, acentuam, no entanto, as desconfiangas. Eles
práticas conservadoras em nome da razáo. É contra esta argumentagáo «erudi­ chegam a fazer esquecer a indicagáo estatística como Pierre Darmon efectiva­
ta» que de ve lutar a nova medida. É contra um saber organizado, diferente já do mente demonstrou 27. Daí o quase desaparecimento da prática durante vários
saber popular, que ela se deve impor. anos, e o julgamento pessimista de Montesquieu: «Um homem em falta [quan­
As resistencias que esta medida encontra fazem compreender melhor, é pre­ do da insergáo] fará mais impressáo do que cem. É preciso saber calcular.» 28
ciso dizé-lo, a representagáo tradicional da epidemia. E que os adversários da
inoculagáo evocam a visáo sem idade das gangrenas que atingem os órgáos. Se­
gundo eles, só uma decomposigáo pode explicar a varióla, só a purificagáo e o
Um gesto simbólico
náo contacto poderiam evitar o seu desenvolvimento. A insergáo voluntária náo
passa entáo de um gesto louco, acréscimo de um mal a outro mal, comparável O brusco aumento epidémico de 1738 renova, no entanto, o interesse e faz
ao derrame de um «barril de pólvora de canháo para apagar um grande fogo» 19. renascer a exploragáo estatística. A inoculagáo ganha terreno, primeiro em In­
A argumentagáo negativa sublinha os casos «assustadores»: os 13 soldados fran­ glaterra, conduzindo a recenseamentos de sucesso mais credíveis do que antes.
ceses inoculados em Cremona, cerca de 1720, dos quais 4 teriam morrido após
a operagáo, enquanto que outros 6 teriam conservado doengas durante muito
22 P. V. D ubois, op. cit., p. 76.
tempo invencíveis 20; ou as mulheres grávidas, inoculadas em Nova Inglaterra,
23 G. W agstaffe, op. cit., p. 10.
cedo obligadas a abortar 21; ou as criangas cuja inoculagáo desencadeia um flo- 24 P. V. D ubois, op. cit., p. 18.
25 G . B uchan, op. cit., t. II, p. 230.
17 J. A lien, Synopsiae m edicinae, L ondres, 1733, p. 81. 26 J. Jurin, R elation du su ccés de l ’inoculation de la p e tite vérole d ans la G rande-B re-
18 G . W agstaffe, L ettre a u d o cteu r F reind m ontrant les dangers e t l ’incertitude d ’ínsé- tagne, Paris, 1725 (1.a ed. inglesa, 1724), p. 14.
rer la p e tite vérole, Paris, 1722, p. 74. 27 « E m 1727, os chefes de fam ilia optaram . A s in o c u la íó e s pararam », P. D arm on, op.
19 P. V. D ubois, O bservations e t réflexions su r la p e tite vérole e t su r un rem ede préser- cit., p. 8 6 .
v a tif contre cette m aladie, Paris, 1725, p. 74. 28 C. de M ontesquieu, M e s pensées. O euvres com pletes, P aris, G allim ard, L a Pléiade,
20 G. W agstaffe, op. cit., p. 17.
1956, t. i, p. 1200.
21 Ib id em , p. 25.

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122
RESISTIR E ENDURECER

A FORCA DAS FIBRAS


A pratica, alias, reíínou-se: na escolha dos botóes incertos e na finura da inci-
sao praticada. Nao há nenhum acidente, por exemplo, ñas 1000 inoculagóes fechado, das preservagóes tradicionais, repleto de fechaduras e involucros en-
reivindicadas em 1752 por Ramby N. Nenhum acidente nos 20 000 reivindica­ carregues de obstruir o veneno, comega a desenhar-se um corpo protegido por
dos em 1767 por Daniel Sutton, cujo sucesso é táo grande que tem de mobili- operagóes internas, solicitado ñas suas forgas e energias, «estimulado» ñas suas
zar granjas e alpendres, ñas suas duas casas do Essex, para receber os inocu­ resistencias e no seu trabalho. As silhuetas dos tempos de peste, cobertas com
lados . Inovagao determinante, enfim, no lento nascimento de um servico as suas roupas de couro ou de tecidos apenados comegam a ser substituidas por
samtarjo publico: acomodamentos nos hospitais de Northampton em 1746 de silhuetas tanto mais defensivas quanto as suas protecgóes sejam internas. As
in o c u la re s gratuitas para os mais desfavorecidos. Já náo a rejeicáo, mas o grandes barreiras construidas em tomo do corpo cedem em parte perante as pro­
ep id ém ica^ hm itad° 6 ° tratamento preventivo para conter a extensáo tecgóes mais orgánicas. Claro que a rotura náo é massiva, nem o pode ser to­
talmente (continuam a ser numerosos os contágios de que é preciso defender-se
Muito lentamente, a inoculado instala-se em Franga na segunda metade do pelo isolamento), mas ela é já acentuada, e em todo o caso suficiente para sub-
seculo x v i i i , reve ando o atraso em relagáo á Inglaterra, mas suscitando algumas verter o universo das práticas. É esta transformagáo que se pretende agora des-
tentativas exemplares. A de Chastelux em 1754, que escolhe o ar de Bercy con- crever e explicar.
7 ' S PL'r0’ P;lra favorecer a operagáo - Também a que é praticada nos
filhos do duque de Orléans, a 12 de Margo de 1756. O duque manifesta, de pas-
agem, o seu modernismo na familia real, recorrendo a Tronchin, o amigo de 2. U M C O R P O F E IT O D E F IB R A S
o taire e de Diderot para efectuar a incisáo. A polémica renasce, claro, com
íolencia ate a decisáo do rei de se submeter á inoculagáo em 1774 o ano da Quando, a 26 de Dezembro de 1747, Jallabert efectúa a electrizagáo em No-
sua sagragao, alguns meses após a morte de Luís XV, também ele levado pelas gues , um mestre serralheiro paralítico, para lhe devolver os movimentos per­
exigas. A incisao ultrapassou a tradigáo. O empenhamento real marca um pon­ didos, joga com a descoberta muito recente da corrente eléctrica e da sua pro-
to de nao retorno. Ideia e prática impoem-se, mesmo se a sua aplicagáo em 1774 dugáo. Ele entrega ñervos e músculos a uma física que reinventa as suas
se mantem amda limitada. referencias. Apoia-se igualmente na importáncia inédita dada ás partes sólidas
A inoculagáo tem o valor de um símbolo. Ela inaugura uma estatística da do corpo, ás fibras e aos tecidos. O empreendimento parece ser bem sucedido:
preservagao, aplicando a leí dos grandes números á manutengáo da vida. Ela é um mes mais tarde, a 26 de Janeiro de 1748, Nogues surpreende com os seus
também o primeiro passo da «imunizagáo» dos grupos humanos, o primeiro en- progressos, levantando uma garrafa de duas libras e pondo o seu chapéu. A cor-
de uma modl,icagao orgánica deliberada, «definitiva», feita para defender rente eléctrica toma-se um modelo de potencia corporal: os humores náo pode-
grupos e sujeitos. riam explicar tudo. Trata-se de um dos primeiros exemplos de atengáo ás forgas
É na audacia deste passo que é preciso determo-nos em primeiro lugar, nes­ internas, uma das primeiras tentativas para representar o seu mecanismo e lhe
ta ousadia que da uma resistencia completamente particular aos órgáos Neste sugerir analogías. Náo há nenhuma relagáo ¡mediata com a inoculagáo e, no en-
caso a inoculagao nao é idéntica a nenhuma prática passada. Ela náo explora a tanto, ainda aqui, uma confianga surda e difusa ñas energias orgánicas específi­
luta do mal contra o mal como sugería o uso tradicional do veneno de víbora ou cas. As defesas corporais podiam ser repensadas.
e escorpiao. Ela nao opoe dois venenos para que se anulem. Pelo contrario
n n ^T n T ° d° en9a real Uma desordem. Ela constituí sempre
m daño. A sua onginalidade esta mesmo em ser uma perturbagáo «dirigida», um A fibra e o humor
prejuizo voluntario e, ao mesmo tempo, um mal ultrapassado. Ela concede uma
energía m ediata ao corpo e uma resistencia invisível. Da patología á manutengáo do corpo, as operagóes de electrizagáo prendem
Esta crenga na forga orgánica é obscura. Ela náo se apoia nem sobre um me­ médicos e curiosos, na segunda metade do século xvm. As «observagóes» mul­
canismo claramente descrito nem sobre uma explicagáo física nítidamente de­ tip lic a n te cerca de 1750: Bemouilli electriza galinhas e rás, depois de as ter
finida. Ela revela apenas uma confianga até entáo desconhecida: a certeza de sufocado e pretende que elas regressam á vida. Nicolás, em 1755, demonstra-
que existe uma forga interna do corpo, um principio invisível mas activo. A con- or de química na Universidade de Nancy, reanima com a corrente coelhos as­
sequencia e uma reonentagáo da imagem: paralelamente ao corpo abrigado e fixiados pelos vapores de carváo. Abildgaard, médico dinamarqués, reanima
passaros e quadrúpedes previamente mortos á pancada 14. Daí esta conclusáo re­
petida: a electrizagáo podia reforgar a saúde. Bertholon certifica-o sugerindo o
» F Íe z M e ^ e M,ém°ireSSU[' ' C a t i ó n de la p e tite vérole, Paris, 1754, p. 28. ortalecimento do pulso, da respiragáo e da digestáo sob o choque o eléctrico:
pp 55-57 V alentín, Traite h isto n q u e e t p ra tiq u e de ! ’inocularían, Paris, 1800,

31 J.-F. de R aym ond, op. cit., pp. 76-77. 33 C itado pelo abade N ollet, «E xpériences de l ’électricité appliquée a des paralytiques»
32 Ibidem , p. 76. istoire de l ’A ca d ém ie des sciences, 1749, p. 28.
J. Torlais, L ’abbé Nollet, u nphysicien au siécle des Lumiéres, Paris, Sipuco, 1954, p. 180.
124

125
RESISTIR E ENDURECER A FORCEA DAS FIBRAS

«Nada é certamente mais adequado para prevenir as diferentes doengas ás quais Era difícil, é claro, em 1750 e alguns decénios depois, designar estas forgas
o corpo humano está sujeito.»35 Os seres frágeis poderiam ser beneficiados, escondidas ñas carnes: nem as ferramentas mentáis nem a análise da matéria
bem como as vítimas de «fraqueza nervosa» e de difusa falta de forga: «Muitos permitem interpretar claramente, no século xvm, estes impulsos físicos. Mas a
fariam bem em deixar-se electrizar, de tempos a tempos, durante toda a vida.»36 recusa de nelas ver uma emanagáo dos humores, nem que fosse a das suas par­
Os limites do fenómeno sáo, no entanto, rápidamente apreendidos: os para­ tes mais voláteis, é cada vez mais frequente: as qualidades motoras já náo resi-
líticos náo andam sob o efeito da corrente eléctrica, os seus músculos raramen­ dem prioritariamente no estado dos líquidos. Uma observagáo feita desde há
te ganham em vigor e os seus órgáos em equilibrio. O peso da aparelhagem con­ muito tempo toma bruscamente um novo sentido: os movimentos orgánicos
tribuí para a dificuldade de aplicagáo: a corrente eléctrica continua a ter um uso preservados apesar da morte, as oscilagóes mantidas apesar da fuga dos humo­
excepcional na manutengáo da saúde no século xvm. Mobilizado para ultrapas- res e do sangue. Bruwerus examina atentamente o coragáo de caes de caga de-
sar algumas doengas, ele é na realidade mais escassamente explorado para as vidamente estrangulados, cujos «ventrículos» se contraem durante algumas ho­
prevenir: a cura mais do que a preservagáo, o choque corrector mais do que o ras ainda sob o efeito do escalpelo e do ácido. A sua conclusáo é reveladora:
choque protector. «Devemos confessar que as fibras dos corpos vivos tém um movimento próprio
Pouco importam, na verdade, as desventuras do projecto eléctrico. O im­ sensível, pois este movimento subsiste depois da sua separagáo do corpo de que
portante é que ele confirma a existencia de novas representagóes e a referencia faziam parte.» 42 Só uma forga muito particular das fibras poderia explicar estas
a uma nova arquitectura íntima do corpo: o lugar crescente da fibra, por exem­ estranhas energías. Fibras como as que evoca Alembert numa homenagem pon­
plo, a que se atribuí a comunicagáo da corrente. Construgáo filamentosa, longo derada ao rei da Prússia para insistir na potencia física e no ardor impetuoso de
lineamento sugerido pelas lentes dos primeiros microscopios, a fibra toma-se, Frederico, e náo nos humores: «A natureza fez-me nascer fraco enquanto que a
no século xvm, a unidade anatómica mínima, o primeiro fragmento de que se Vossa Majestade deu fibras proporcionáis ao vigor e á grandeza do seu génio.» 43
compoem as partes do corpo. Ela tem, além disso, as suas impulsóes e as suas Pela primeira vez, as velhas categorías de Hipócrates e de Galeno sáo con­
próprias energías: «O vigor da fibra náo é mais do que o seu estado habitual.»37 testadas. As qualidades humorais que a tradigáo sempre retomou perdem em per­
E que ela é também a primeira unidade de movimento e o primeiro principio de tinencia, na segunda metade do século xvm. A impregnagáo líquida dos corpos,
forga: «Em fisiología a fibra é o mesmo que a linha em matemática»38, garante a oposigáo entre biliosos, fleumáticos, sanguíneos e melancólicos, distinguidos
Diderot em 1765, promovendo-a a estrutura orgánica central e multiplicando as segundo a sua fluidez, acidez e calor dos seus humores, todos estes tragos ma-
evocagóes reticulares: os «sonhos» do filósofo emaranham no espago interno do nuseados desde há muito pelos mais doutos tomam-se menos evidentes. Pressa-
corpo uma infinidade de «feixes e de fios» 39 todos eles sensíveis e activos. As vin, Roussel, Préville e ainda alguns outros, tentam agarrar-se ás qualidades pre­
tábuas anatómicas da Enciclopédia de Diderot sáo elas próprias fibrilosas. Ne- sumidas dos tecidos44. As novas distingóes opóem os corpos de fibras delicadas
las se impóe uma poesia figurativa: veias, vénulas, filamentos e canais ocupam aos de fibras consistentes, ou os corpos de fibras distendidas aos corpos de fibras
como uma imensa cabeleira nervosa os espagos desses corpos adormecidos, tensas. Holbach é mesmo o mais lapidar ainda, fazendo da «matéria eléctrica
dissecados e abertos 40. Muitas sáo as imagens que se afastam das representa­ uma das principáis causas da diversidade dos homens e das suas faculdades» 45,
góes mais tradicionais onde dominam bolsas e cavidades feitas para reter os hu­ náo sendo o corpo mais do que «um grande ñervo» 46. Distingáo laboriosa, qua­
mores. Das tábuas de Dionis, o final do século x v i i , onde o corpo se dispóe em se impossível mesmo, mas que confirma o quanto as referencias se deslocaram,
níveis que sobrepóem sucessivamente sacos e anfractuosidades 41, ás de Dide­ a ponto de desmentir os textos canónicos de Hipócrates e de Galeno.
rot, em meados do século xvm, onde o corpo se estende numa sucessáo de tex­ Nestas categorías precoces, muda a imagem da saúde e da doenga depois de
turas e filamentos, é o universo orgánico que oscila. 1750: uma nova forma de descrever a desordem levada pelas doengas. A doen­
ga adviria de uma fraqueza particular. A certeza de Bordeu, por exemplo, em
35 P. B ertholon, D e l ’é le ctric ité du corps hum ain dans l ’é ta t de sa n té et de m aladie, P a ­
ris, 1779, p. 100.
1775: «Adoecemos quando as nossas fungóes sáo perturbadas, ou quando a
36 G. D esbois de R ochefort, M atiére m édicale, Paris, 1 . 1 , p. 24. energia das nossas partes, o seu tónus, é destruido.» 47 Ou mais ainda, a tentati-
37 D . D iderot, E lém ents de p h y sio lo g ie (m anuscrito de 1780), P aris, D idier, 1964, p. 311.
38 Ibidem , p. 63; ver tam b ém sobre este tem a R. Rey, «H ygiéne et souci de soi dans la 42 C itado por C. M alouin, Traité des corps solides e t des flu id e s, Paris, 1718, p. 78.
pen sée m édicale des L um iéres», C om m unication, L e G ouvernem ent du corps, 1993, n.° 56. 43 J. d ’A lem bert, C arta de 3 de N ovem bro de 1780, O euvres com pletes, Paris, 1832,
39 D . D iderot, Le R eve d e D ’A le m b e rt (1769), in O euvres philosophiques, P aris, Pauvert, t. v, p. 434.
1964, p. 198. 44 L. de P réville, M éthode aisée p o u r conserver sa santé, P aris, 1762; L-B. Pressavin,
40 «P ara o hom em d a E n ciclopédia é preciso d izer fib ro so , com o os antigos gregos L ’a rt de p ro lo n g e r la vie et de c o n server sa santé, Paris, 1884; P. R oussel, Systém e physi-
diziam húm ido ou quente ou redondo: um a certa esséncia da m atéria é aqui afirm ada.» que et m oral de la fe m m e , Paris, 1788.
(R. B arthes, «Im age, raison, déraison», L ’Univers de l ’E ncyclopédie, Paris, L es L ibraires 45 P. H. d ’H olbach, Le S ystém e de la Nature, A m esterdáo, 1770, p. 255, nota.
a ssociés, 1964. p. 14). 46 Ibidem , p. 214.
41 P. D ionis, D ém onstrations anatom iques fa ite s au Jardín du Roy, Paris, 1703, p. 388, 47 T. de B ordeu. R echerches su r les m aladies chroniques (1775J, O euvres, Paris, 1818,
pl. xiv. t- ii, p. 832.

126 127
A FO R £A D A S FIBRAS
RESISTIR E ENDURECER

va de dar aos ñervos, aos seus espasmos e ás suas convulsoes, um papel deter­ que a emogáo e a sensibilidade atingiam mais vivamente. A observagáo detém-
minante: «Todas as doengas náo sáo, propriamente falando, mais do que doen­ -se nos efeitos dos ñervos: «O essencial para cada homem é portanto conhecer
gas nervosas, pois elas sáo a maior parte das vezes ocasionadas e sempre acom- a sua parte fraca e quem náo for médico pode fácilmente ai chegar. Com efei­
panhadas por alguma degradagáo ñas fungoes do sistema dos ñervos.» 48 La to, só tem que observar qual o órgáo que se ressente sobretudo das emogóes e
Roche faz mesmo depender prioritariamente do tónus e da tensáo das artérias a das paixóes vivas; essa é, certamente, a parte fraca.» 56 Trata-se entáo de avahar
pureza do sangue e os riscos da sua decomposigáo 49. A origem das doengas des- a forma como os pulmóes, o estómago, os intestinos ou o coragáo, de forma di­
locou-se. A forga, em primeiro lugar, já náo tem definitivamente, as mesmas ferente para cada um, «concentram todas as impressóes» 57. Trata-se de avahar
causas nem o mesmo conteúdo. a forma como a fadiga, a irritagáo ou os choques se reflectem mais fácilmente
sobre uma dessas partes, consoante os individuos e as suas características pró-
prias. A fragilidade nervosa denota o aparecimento dessas doengas inicialmen­
As form as nervosas da inquietando te modestas.
O espasmo, sobretudo, retém as imagens negativas das quais o onanismo se
Com os ñervos, a tonalidade dada ás doengas quotidianas muda ainda mais: toma uma das imagens privilegiadas na segunda metade do século x v i i i ; o ex­
evitar as perturbagóes anodinas é em primeiro lugar vigiar as efervescencias cesso de tensáo sexual e nervosa. O texto inaugural de Samuel Auguste Tissot,
consideradas estéreis e as tensóes «fúteis». Melhor que outros, Madame d ’Épi- em 1775, L'Onanisme, multiplica os casos de enfraquecimentos nervosos so-
nay pode descrever estes enfraquecimentos crispados: extenuada depois de uma brevindos após a reprovada prática: náo se toma o relojoeiro de dezassete anos,
viagem a La Conge, em Dezembro de 1757, em que o postilháo esteve a ponto paciente de Tissot, objecto de acessos espasmódicos incoercíveis e funestos 58?
de virar a berlinda numa ribeira, ela diz-se tomada «de movimentos convulsi­ Tal como outro ainda, um jovem quase menino, náo é ele vítima de agitagóes
vos em todos os membros de palpitagóes violentas» 50. Os seus ñervos cedem, ardentes, dores excessivas e inflamagóes que lhe atingem todo o corpo no «es­
mas devido ao excesso de tensáo e de tremor. O seu abatimento é, em primeiro tado mais horrível e mais indefinível» 59? Náo morre, enfim, um outro, de con-
lugar, contracgáo. vulsóes de epilepsia, levado aos quinze anos pelas febres e pela asfixia “ ? Tis­
A renovagáo da imagem permite exprimir melhor a figura inédita da inquie- sot observa prioritariamente os ñervos aos quais, aliás, consagrou um livro:
tagáo que frequenta os meios esclarecidos da segunda metade do século xvm: Traité des nerfs et de leurs m aladies61. É, efectivamente, uma nova maneira de
para eles, as desordens tomam-se doengas espasmódicas e mobilizagoes impo­ interrogar a consciencia sensível, de imaginar as suas turbulencias, o seu fun-
tentes. A representagáo dos vapores é ai, de vez, largamente transformada. cionamento corporal, que aumenta aqui o campo dos perigos possíveis. Uma
O seu mecanismo mudou: enquanto que Madame de Sévigné, Madame de imagem de tensóes: nervosismo e febrilidade conduzem a medicina a avizinhar-
Maintenon, Fagon e os médicos do Grande Rei, assimilavam esses vapores aos -se da moral, estigmatizando qualquer «veneno infame, particular á espécie hu­
«fumos fervilhantes do cérebro»51, a «ferm e ntag óe s » vindas do baixo ventre ou mana» 62. O tema dos ñervos subverteu as consideragóes sobre a saúde.
do estomago, Madame d ’Épinay, Julie de Lespinasse, Roussel e os médicos de A condenagáo dos licores «espirituosos» encontra igualmente uma forga que
Luís XVI véem neles, um século mais tarde, «agitagóes de ñervos» 52, convul- antes náo tinha. As aguardentes, por exemplo, correm o risco de «destruir o po­
s5es repetidas e febrilidades: «O pretenso fumo náo é mais do que a irritagáo der dos ñervos» 63. Elas provocam tremuras e convulsoes. A importancia, neste
das fibras.» 53 Daí as associagoes insistentes com algum «tumulto interior», a caso, já náo é a ligeireza ou o peso das esséncias semelhantes aos espíritos vi-
«intemperanga das ideias» 54, ou o desgosto. tais, contidos nestas águas fortes e embriagantes, mas antes a sua acgáo «irri­
O lugar dado aos ñervos, á sua irritagáo e ao seu «heretism o»55recompós os tante», a sua forga corrosiva: já náo a pureza ou o excesso dos seus elementos
objectos da inquietagáo. A sensibilidade «nervosa» dirige a atengáo. O que é voláteis, mas antes a nocividade dos seus elementos ardentes. Os licores arden-
mostrado por Hufeland quando retoma os temas da «medicina de si próprio», tes atacam o género nervoso: eles consomem o corpo. Sáo eles que teriam ani­
no final do século x v i i i : os órgáos mais vulneráveis de cada um seriam aqueles quilado os selvagens do Canadá, transportando a nocividade das civilizagóes

56 C. F. H ufeland, L a M acrobiotique ou l A r t de p ro lo n g e r la vie de l ’hom m e, Paris, 1838


48 D. de L a R oche, A n a lyse des fo n c tio n s du systém e nerveux, G enebra, 1778, 1 . 1 , p. 13.
45 Ibidem , p. 19. (1.a ed. alem a, 1795), p. 407.
50 M m e d ’Epinay, L e s C ontre-confessions, histoire de M adam e de M ontbrillant, Paris, 57 Idem.
58 S.-A . T issot, L ’O nanism e. D issertation su r les m aladies produites p a r la m asturba-
M ercu re de F rance, 1989, p. 1253. Sobre a historia deste texto e do v alor do seu testem u-
nho cultural, v e r o prefácio de É lisabeth B adinter, p. ix. tion, Paris. L a D ifférence, 1991 (1.a ed., 1775), pp. 44-45.
51 D ictionnaire de l ’A cadém ie..., 1694, op. cit., t. II, p. 613. 59 Ibidem , p. 50.
52 M m e d ’Épinay, op. cit., p. 1074. 60 Ibidem , p. 39.
53 A rt. «V apeurs», J. d ’A lem bert e D . D iderot, E ncyclopédie, op. cit., t. x v i, p. 836. 61 S.-A . T issot, Traité des nerfs e t de leurs m aladies, P aris, 1782, 4 vols.
54 P. R oussel, op. cit., ediijáo de 1813, p. 56. 62 G. D aignan, Tableau des variétés de la vie hum aine, Paris, 1786, p. vm .
55 P. P om m e, E ssai su r les affections vaporeuses des d eux sexes, Paris, 1760, p.184. 63 G. B uchan, op. cit., 1 . 1 , p. 266.

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RESISTIR E ENDURECER

«enervantes» para o mundo e a natureza: «Esta bebida é o presente mais funes­


to que o Velho Mundo fez ao Novo.» 64 Sáo eles que tomam mortais as bebe-
deiras, como a do operario de Edimburgo, citado por Buchan convencido de se
livrar de uma febre, bebendo uma «garrafa inteira de aguárdente», mas ¡media­
tamente arrastado por uma morte brutal por «aterrorizantes» sobressaltos6S.
A crítica inglesa denuncia já as aguardentes de miséria, a «moleza» de
Edimburgo, sumariamente destilada com mau vinho nos cerca de dois mil
alambiques com que a cidade conta em 1770. Buchan detém-se ñas imagens de
mogos de fretes e de operários «cambaleando ñas mas», ñas de máes «que ven-
dem as roupas dos filhos, que vendem os alimentos que deviam comer, que ven-
dem em seguida os próprios filhos para comprar um mísero copo de licor» 66. Já CA PÍTU LO II
Hogarth, cerca de 1750, tinha ilustrado uma bebedeira da desgraga, feita de vio­
lencias, acidentes e mortes, com a sua Ruelle du gin, onde se acumulavam sui­ ENDURECER
cidios, homicidios, enterros, derrocada de casas e de vidas 67. Até que Wesley,
por fim, metodista rigoroso, pede em 1780 ao Parlamento londrino a supressáo
legal da destilagáo, acusada de aumentar perigosamente a descristianizagáo 68. O estado das fibras orienta as accoes preventivas. Impóe-se um imperativo
A bebedeira, neste fim de século inglés, toma-se o «vicio mais abominável», depois de 1750: o «fortalecimento».
«fonte da maior parte de outros vicios» 69. Uma anedota várias vezes evocada pelos tratados de saúde confirma-o ate
A crítica francesa, no final do século, ainda náo tem esta intensidade: quan­ á caricatura. Uma mulher que leva uma vida «lánguida» em Paris é tirada da sua
do Rétif narra o seu encontro com o «homem bébado», no gelado passeio pari­ letargia pela brutal aquisigáo de uma heranga na provincia. Lá ela ganha ardor e
siense, é para se deter na ajuda que lhe dá ao conduzi-lo até ao hospital 70. vivacidade: a mudanga é brusca e massiva; a saúde desabrocha; o corpo transfor-
O consumo de licores que se condena é antes um consumo dos abastados. Aque­ ma-se. Historia banal cujo interesse, todavía, reside na explicagáo. E que a muta-
les cujas esséncias demasiado subtis amolecem. Aqueles que Roussel fustiga no gáo náo está aqui ligada á fortuna adquirida, ao luxo ou aos divertimentos que ela
seu Tableau de l ’Homme et de la Femme, conotando-as com o arrebatamento permite. Está ligada, sublinha com seriedade Pressavin ', ás provagóes da viagem,
apaixonado pelas «carnes de alto gosto e os licores espirituosos e aromáticos». á mobilizagáo da estrada, ao enfrentar dos trilhos e dos solavancos dos caminhos:
A denuncia incide sobre um «excesso» de sensibilidade, uma fraqueza íntima, uma travessia de 40 lugares, efectuada na má carruagem de um almocreve. Sacu-
deficiencia de privilegiados que a civilizagáo teria fragilizado. didelas e vibragóes avivaram as fibras da viajante. O «exercício» fortaleceu-a.
A estrada rejuvenesceu-a. O efeito é menos o da transpiragáo e do aquecimento do
que o dos choques e mesmo das pancadas: uma dureza que afecta os «sólidos»,
um enteirigamento que promove a saúde. É a imagem da fibra que orienta urna
nova visáo da saúde; o endurecimento sobre a sua forma mais intuitivamente física.
O tema das rudezas comanda ao mesmo tempo a escolha dos regimes fru-
gais, a nova importáncia dada ao frío e a insistencia na «educagáo natural».
E preciso ainda medir o quanto esta imagem de consolidagáo converge com
uma agitagáo mais profunda, uma sensibilidade orientada, mais do que ante­
riormente, para o confrontamento e o aperfeigoamento de si.

1. A C O N S O L I D A D O E O P R O G R E S S O
64 G . T. R aynal, H istoire p h ilo so p h iq u e et p o litiq u e des établissem ents et du com m erce
des E uropéens d a n s les d e u x Indes, G enebra, 1780 (1.a ed.), t. iv, p. 68. 0 conflito entre moleza e endurecimento está no centro destes enteiriga-
65 G . B uchan, op. cit., t. iv, pp. 472-473. mentos. A arte de «aperfeigoar a espécie humana» anuncia-se como um pro-
66 Ibidem , t. I, p. 269.
67 W. H ogarth, The G in L a ñ e (1750-1751), B N , C abinet des E stam pes. 1 J.-B . Pressavin, op. cit., p. 154; d aí o conselho insistente: «N ao é necessário procurar
68 J.-C . S o u m ia, H istoire de l ’alcoolism e, Paris, F lam m arion, 1986, p. 40. carros com m olas bem firm es» (idem ). .
69 G . B uchan, op. cit., t. iv p. 269. 2 J Faignet de Villeneuve, L'Économ ie politique, projet p o u r e n n ch ir et perfectionner l es-
70 N . R é tif de L a B retonne, L es N u its de Paris, Paris, L affont, col. «B ouquins », 1990 péce humaine, Paris, 1763; C. A. Vandermonde, Essai su r la maniere de perfecttonner Vespece
(1.a ed.. 1788), p. 643. hum aine Paris 1766; J. A. M illot, L'art d 'améliorer et de perfectionner les hommes, Pans, 1801.

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RESISTIR E ENDURECER ENDURECER

jecto tanto político como médico, nesta segunda metade do século xvm. O cál­ gragas a farmacopeias colocadas ñas suas máos enquanto as electrizava. Ele
culo desloca-se para melhoramentos progressivos, exercícios graduáis e uma propóe mesmo promover este choque pouco comum a prática de manutengáo
«perfectibilidade indefinida» O futuro desempenha um papel que nao tinha: corporal: a saúde por electrizagáo evacuante 13. Rétif qualifica como «benfeitor
«Um libertino que altere a sua saúde é mais culpável face á sua posteridade do da humanidade» em 1778, o inventor de uma «água preventiva», purgagáo que
que o pródigo que dissipa os seus bens e os de outrem.» 4 ele considera muito vantajosa porque de um uso «fácil e continuo» 14. Igual­
mente Diderot, aconselha a sua filha Angélique em 1773, a evitar depois do par­
to, que o seu leite «corrompa toda a massa dos humores». A jovem mulher de-
A evacuagao e o enfraquecimento veria transpirar e manter-se quente: «Enquanto se exalar do vosso corpo o
mínimo odor leitoso, mantende-vos no quarto.» 15 O receio de um apodreci-
Em nome da consolidado, a atitude preventiva do passado é recusada, so­ mento dos humores náo desaparece. Ele torna-se apenas mais variado, combi-
bretudo depois de 1750. A sangría é acusada de amolecer mais do que reafir­ nando-se com o novo tema do endurecimento.
mar: «Ela relaxa e enfraquece os músculos.» 5 Considerada perigosa, ela é gra­
dualmente abandonada, na segunda metade do século xvm: «Renunciaram
enfim ao costume de sangrar um pobre homem 25 vezes, como faziam ainda há A natureza e o frió
trinta anos.» 6A incisáo poderia mesmo desencadear síntomas e doengas: «tre­
mores habituais, convulsoes habituais» 7 assinaladas por Tronchin a propósito Este tema da dureza ultrapassa, aliás, o das polaridades preventivas. O re­
de um jovem que tinha sofrido 833 flebotomías em poucos anos. O gesto, no curso ao frió, entre outros, transforma as práticas. A frieza que enteiriga as fi­
entanto, sobrevive em certos hábitos populares, fiéis por algum tempo ainda á bras é completamente contrária ao calor tradicionalmente preconizado pelos
imagem exclusiva da evacuagao. Afirma Mercier em 1782: «Sangra-se muito tratados de saúde. Os conselhos de Benjamín Franklin, cerca de 1775, que su-
menos, apenas os velhos cirurgióes submetem o bom povo a esta perigosa eva- gerem camas «simples» e recobertas de tecido, opóem-se aos conselhos de De
cuagáo.» 8 Algumas febres, enfim, algumas prisoes de ventre excessivas, cha- Lorme que sugerirá, um século antes, camas cobertas de peles, aquecidas como
mam ainda a incisáo reparadora. Mas a sangría de precaugáo, aquela a que se fomos pelas caixas de tijolos. Os gestos de Franklin sáo inversos aos da tradi-
atribuí a preservagáo do corpo pela purificagáo, já náo é uma «fantasía nociva» 9. gáo: o seu método para garantir a presenga do sono, levantar-se de noite, «sa­
Ela desaparece, denunciada como recurso ilusorio e perigoso. cudir bem os lengóis, urnas vinte vezes, depois abrir a cama e deixá-la refrescar
A purga também é denunciada. Tronchin protesta perante o regime de que lhe enquanto se passeia pelo quarto sem se vestir» 16, é completamente contrário aos
fala Dufort de Chevemy: «Ordenam-vos purgagóes, mas cansam-vos os ñervos.»10 conselhos de Domergue, que procurara em 1686 aumentar o calor do sono atra-
O risco é idéntico ao da sangría: um relaxamento da fibra, uma fraqueza náo do­ vés das posigóes do corpo adoptadas em camas calafetadas l7. A frescura refor-
minada. Dufort conta como uma purga aparentemente anodina o abate brusca­ gadora é mesmo táo importante que Montesquieu se langa em laboriosas obser-
mente a ponto de lhe tirar durante vários dias «a forga para sair da cama» vagóes para medir a contracgáo das fibras examinadas ao microscopio, de uma
Náo que seja abandonada toda a purificagáo. A imagem mantém-se incon- língua de vaca previamente gelada 18.
tomável: as fibras comandam também os escoamentos e os fluxos. O choque As práticas inglesas sáo mais reveladoras ainda, propagando verdadeiros
eléctrico seduz porque contrai glándulas e vasos, favorecendo as suas secre- modelos de comportamento: banho frió, caminhada ao longo da praia e regime
goes. Nollet ve nele a possibilidade de aumentar as transpiragoes e a de «de­ austero sáo os primeiros principios dos frequentadores de termas británicos que
sobstruir» os órgáos n. Bianci pretende, em 1755, ter purgado várias pessoas se orientam para o Norte, em meados do século, por ai encontrarem mais rude­
za. A praia toma-se lugar de afrontamento, toma-se uma prova contra a inquie-
3 « L a perfectib ilité de l ’hom m e est réellem ent indéfinie», J. A. N . de C ondorcet, Es- tagáo dos langores, o que Corbin notavelmente mostrou l9. Trata-se de uma su-
quisse d ’un tableau historique d e sp ro g r é s de V esprit hum ain, Paris, E ditions sociales, 1971 cessáo de mergulhos no mar quase gelado de Southampton, por exemplo, entre
(1.* ed., 1794), p. 77.
4 G . B uchan, op. cit., 1. 1, p. 21.
5 D . de L a R oche, op. cit., p. 246. 13 Ibidem , p. 97.
6 L. S. M ercier, Le Tableau de Paris, 1782-1788, t. x, p. 150. 14 N. R é tif de L a B retonne, L es N uits..., op. cit., p. 1106.
7 T. T ronchin, C arta de 1762, H. T ronchin, Un m édecin d u xvwe siécle, Théodore Tron­ 15 D. D iderot, C arta de 25 de O utubro de 1773, O euvres com pletes, P aris, Le C lub fran ­
chin, Paris, 1906, p. 45. já is du livre, 1971, t. x, p. 1090.
8 L. S. M ercier, op. cit., t. ix, p. 90. 16 B. F ranklin, L ’a rt d ’a v o ir des songes agréables (1798), M élanges de m orale, d ’éco-
9 G . B uchan, op. cit., t. iv, p. 312. nom ie e t de politique, Paris, 1824, t. I, p. 174.
10 J. N. D u fo rt de C hevem y, M ém oires (1731-1774), Paris, P errin, 1990 (1.a ed., 1886), 17 Ver acim a, p. 1 0 0 .
p. 377. 18 C. de M ontesquiecu, D e V esp rit des lois (1748), in O euvres com pletes, op. cit., p. 476.
11 Ibidem , p. 222. J A. C orbin, Le Territoire du vide, l ’O ccident et le D é sir du rivage, 1750-1840, Paris,
Aubier, 1988.
12 J. Torlais, op. cit., p. 88.

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RESISTIR E ENDURECER ENDURECER

17 de Novembro de 1747 e 12 de Fevereiro de 1748, que teriam restituido vi­ gada a Diderot, um desvanecimento das viagens e das aventuras, das iniciativas
gor e vivacidade a um jovem paciente de Richard Frewin 20. A acgáo visa as fi­ e das forgas: «Vede o quanto estamos enervados, amolecidos e degradados. To­
bras: a simples emersáo na vaga oceánica provoca o efeito de reforjo; náo a na- dos os progressos das ciencias náo puderam compensar o recuo do vigor e do
tagáo mas o encontro com o frío; náo o movimento do corpo mas o contacto verdadeiro valor.» 23
com a água. Frewin faz da sua experiencia glacial um renascimento. Esta pri­ As silhuetas tomam-se um outro indicador, descritas pela primeira vez, se­
meira cura empenha uma larga série de experiencias onde o mar serve estes es- gundo critérios morfológicos expressos: formas frágeis, contornos fracos.
tranhos enteirigamentos. Durante vários decénios, o confrontamento com as va­ A presenga das debilidades físicas mais tradicionais, as mutilagóes observadas
gas, a precipitagáo ñas ondas, estáo no centro destas práticas marinhas: o desde sempre ñas rúas e ñas pragas das cidades, o espectáculo das deformagóes,
choque no frió do rochedo. Nada mais do que a busca de uma forga reactiva do das claudicagóes, das insuficiencias de estatura, tomam-se menos bem aceites
corpo, uma tensáo interna e imediata. cerca de 1750-1760. Daí o apelo á reacgáo e ao reforgo: «Como é que as gen­
Mas, para além do debate sobre a fibra, trata-se de um debate sobre a rusti- tes que detém as rédeas do govemo náo se impressionam por encontrar em cada
cidade que percorre textos e práticas de saúde depois de 1750, em que a preo­ passo, em Paris, anóes, corcundas, coxos, manetas e homens de pernas estro-
cupagáo é explícitamente cultural. O receio de um amolecimento das fibras é piadas?» 24
também receio de alguma indolencia secreta. O tema da melancolía tocou as As Mémoires de Dufort de Cheverney, cerca de 1760, multiplicam as notas
classes dominantes no século xvm. A agitagáo das Luzes faz-se acompanhar de cifradas sobre a estatura dos amigos do conde, revelando inquietagáo e vigilán-
uma hesitagáo face á robustez: o perigo passa a ser o das delicadezas, dos refi- cia e inquietagáo ao mesmo tempo. Dufort comenta regularmente as grandes es­
namentos, sintomas atribuidos a uma sociedade urbana, considerada pela pri­ taturas: Mamier, por exemplo, «homem de cinco pés e onze polegadas [1,95 m],
meira vez em Franga, portadora de doenga e de debilidade. É que a cidade, brus­ da mais bela figura que se pode ver 25, ou Boemier-Delorme, apresentando-se
camente desenvolvida no século xvm, sobretudo na sua segunda metade, valentemente com uma estatura avantajada, «homem de cinco pés e nove pole­
suscita sedugáo e condenagáo, atracgáo obscura e crítica moral, de que Le Pay- gadas [ 1,88 m] de uma bela figura, com uma soberba voz de barítono» 16. Buf­
san parvenú de Marivaux ou La Paysanne pervertie de Rétif de La Bretonne fon confirma largamente ainda esta sensibilidade ao langar-se em observagóes
sáo as mais reveladoras imagens a alguns decénios de distancia: perda de forga, até entáo desconhecidas: ele verifica durante dezassete anos, de seis em seis
degradagáo difusa e aviltam ento21. O éxodo dos campos, o aumento do urbano, meses, com a craveira e o esquadro, a estatura de um jovem da «mais bela pro­
durante o qual Léon passa de 97 000 a mais de 150 000 habitantes entre 1700 e veniencia» 27, nascido em 1752. Ele tenta identificar os ritmos de crescimento,
1800. Bordéus de 45 000 a mais de 110 000, Berlim de 50 000 a 140 000, de- compara o crescimento do Invernó com o crescimento do Veráo, avalia a even­
sencadeiam sem dúvida estes receios difusos. A justificagáo moral domina os tual perda de altura após um tempo de fadiga e o seu ganho em tempo de re-
enteirigamentos. pouso. Modestos resultados, na verdade, senáo largamente ilusorios, mas que
sublinham no mínimo a decisáo de observar mais objectivamente a estatura de
cada um. Gesto tanto mais revelador já que se acompanha de uma outra busca
Degenerando e progresso de precisáo: a indicagáo da correspondencia desejável entre a estatura e o peso
do corpo. Buffon é o primeiro a sugerir as medidas precisas: o peso de um ho­
As próprias deficiencias sáo dramatizadas. Roda nestas alegagóes de fra- mem de cinco pés e seis polegadas (1,81 m) deve ser de 160 a 180 libras (80 a
queza, o espectro do definhamento da espécie humana. Os animais descritos por 90 kg). Já é «gordo» se pesar 200 libras (100 kg), «demasiado gordo» se pesar
Buffon, cerca de 1750, sáo outros tantos exemplos evocados. As suas constitui- 230 libras (115 kg), e «muitíssimo mais espesso, enfim, se pesar 250 libras
goes podem inexoravelmente degradar-se: náo perdem eles vivacidade e firme­ (125 kg) ou mais» 28. Nenhuma explicagáo vem justificar estes números. O seu
za um a vez submetidos á domesticagáo? Náo se afastou a «insignificante ove- papel é deparar os limites de uma boa ou de uma má constituigáo, de precisar
Iha» da robustez do «argali de que, no entanto, é descendente» 22? Buffon é um os limiares, de evocar as quantidades que marcam maior ou menor afastamen-
dos primeiros a pensar ñas mudangas possíveis de uma espécie, avaliando-as de to da silhueta considerada normal.
geragáo em geragáo segundo as suas formas e a sua vitalidade. Esqueletos e for­
mas de vida transformam-se com o tempo e com os lugares. Da mesma forma 23 A bbé G aliani, C arta de 5 de S etem bro de 1772, p u b licad a in D. D iderot, Oeuvres...,
op. cit., t. x, p. 951.
o homem poderia perder em recursos naturais com a civilizagáo. O abade Ga-
24 C. de Peyssonnel, L e s N úm eros, A m esterdáo, 1783, t. II, p. 12. Ver tam bém : «D égra-
liani dá um bom exemplo destas inquietagoes ao postular, numa carta endere-
dation de l ’espéce p a r l ’usage du corps á baleine», J o u rn a l oeconom ique, 1771, p. 541.
25 J. N . D ufort de C heverny, op. cit., p. 186.
20 Ibidem , p. 80. 26 Ibidem , p. 349.
21 P. C. de M arivaux, Le P aysan parvenú, Paris, 1734; N. R é tif de L a B retonne, Le Pay- 21 G. L. de B uffon, D e I ’hom m e, O euvres com pletes, Paris, 1836 (11.a ed., 1749-1767),
san e t la P ay sane pervertís, Paris, 1787. t-iv , pp. 70-71.
22 G . L. de B uffon, O euvres, Paris, PU F, 1954 (1.a ed., 1749-1767), p. 396. 28 Ibidem , t. IV, p. 102.

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RESISTIR E ENDURECER ENDURECER

É no próprio momento que se inventa a própria ideia de progresso que eres- convicgáo. Grande iniciador dos regimes frugais, dos exercícios e dos banhos
ce esta inquietagáo difusa. O tempo tomava-se o objecto de possível recessáo. fríos, Tronchin detém-se ñas mais modestas práticas de endurecimento: supri­
Daí a ambicao de «planificar» os endurecimentos. A vontade de um aperfei­ mir os barretes de dormir, náo usar chapéu «nem a cavalo», aligeirar a espessu-
goamento é evocada mais do que nunca. É que ao definhamento sempre temi­ ra das roupas e evitar as transpiragóes fortes. Ele recebe em Genebra o público
do, opoem-se como num espelho a esperanga de uma progressao. Os projectos iluminado da Europa. Madame de Epinay faz-lhe uma longa visita, descreven-
de «aperfeigoamento da espécie humana» multiplicam-se na segunda metade do do detalhadamente a sua alimentagáo á base de lacticinios e de frutos, os seus
século xvm, com a garantía de que os corpos sao aperfeigoáveis como foram passeios e o frío vivo «que a fortalecem» 34. Voltaire qualifica de «grande ho­
certas «ragas de cavalos e de caes» 29. Faignet de Villeneuve nao hesita em se mem» 35 este médico que condena sangrías e purgagóes, este inventor de práti­
aproximar da energia, quando propóe a constituigáo de vários regimentos de cas aparentemente banais, naturais, mas cujo sucesso provoca a adopgáo de mo­
corcundas e de zarolhos encarregues de tarefas subalternas para aligeirar os das novas, «tronchines», vestidos encuitados e despojados de panos, feitos para
exércitos, libertando assim os robustos soldados, para garantir casamentos fe­ facilitar a caminhada.
cundos e promover uma sólida descendencia30. Mais seriamente, Vandermonde E preciso dizer que o «passeio de saúde» se tom a mais familiar, no meio cul­
insiste na necessidade de um ganho de forga, «a primeira energia do homem» 31, tivado. Condorcet comenta com Julie de Lespinasse as suas próprias caminha-
que quer submeter a um aperfeigoamento regular e continuo pelo exercício e das hebdomadárias, aquelas que o conduzem da Rúa Antin á sua casa de No-
pela higiene. E o equivalente do trabalho apreendido no mesmo momento pela gent, pretendendo que elas o «fortaleceram de uma maneira notoria»36. Buffont
Enciclopédia para o progresso do espirito: a afirmagáo de uma ascensáo possí­ calcorreia a sua casa contando os passos para avahar melhor o seu exercício
vel da espécie humana e do seu desenvolvimento indefinido. quando náo pode sair: «Passeio-me várias vezes no meu apartamento, onde fago
Uma mudanga da sociedade conduz estas mobilizagóes. Os valores higiénicos cada dia mil e oitocentos a dois mil passos.» 37 Rousseau, mais ainda, faz da ca­
do corpo opoem-se aqui ao velho ideal aristocrático: o investimento na descen­ minhada um tema de cultura, uma maneira de aprofundar a consciencia tanto
dencia contra o prestigio das linhagens. A burguesía, cujos valores dominam no quanto a saúde, um empenhamento pré-romántico nos vales e nos bosques, a
século xvm, afirma-se cada vez mais por esta busca de forgas físicas: aqueles m e ­ ocasiáo, sem dúvida pela primeira vez, de nela projectar uma aventura interior38.
diatos da saúde e aqueles mais demorados de um reforgo das geragoes futuras. Os Os passeios «nobres» adquirem o mesmo fim físico: os do bosque de Bologne
novos valores sanitários confrontam-se com os valores tradicionais do sangue: a ou do bosque de Verriére, por exemplo, que o príncipe de Ligne evoca, cerca de
certeza da posteridade contra a certeza da ascendencia. A oposigao é simplifica- 1760, e que, «independentemente das cagadas, eram demasiado bonitos para
dora, é certo, as transformagóes da segunda metade do século xvm sao demasia­ que náo se evocassem» 39. Ou os trajectos efectuados por Casanova, em 1755,
do profundas para serem limitadas a um grupo «burgués». Frangois Furet, Roger em Miláo, em carro descoberto e ao ar livre para «restaurar as suas forgas» 40.
Chartier ou Daniel R oche32 mostraram o lugar que a nobreza detém nesta elite es­ Náo há aqui nenhuma ginástica nem qualquer indicagáo de movimentos
clarecida. Uma sociedade de «progresso» instala-se, seja de que maneira for, pro- complexos. Nem a respiragáo nem o trabalho dos músculos sáo ainda tidos em
movendo uma vigilancia sobre o porvir físico de uma comunidade. conta. Mas o projecto já náo é o mesmo do passado. A eficácia prende-se com
uma propagagáo de ondas e de oscilagóes. Montesquieu confirma-o como nun­
ca, contando escrupulosamente os impulsos recebidos sobre a cela de um cava­
O exercício e a fibra lo, antes de os promover em prática privilegiada de manutengáo: «Náo há me­
lhor marcha para a saúde do que andar a cavalo. A cada passo há uma pulsagáo
Tronchin é dos que combinam melhor o projecto de um reforgo das fibras no diafragma e numa légua há cerca de quatro mil pulsagóes além daquelas que
com o do endurecimento moral. A fraqueza orgánica toma-se fraqueza de civi- se teria.» 41 Influencia tanto mais feliz, enfim, porque os anatomistas da sensi-
lizagáo: «Enquanto os Romanos, ao sair do Champ de Mars, iam mergulhar no
Tibre, dominam o mundo; mas os banhos [quentes] de Agripa e de Néron fize-
34 M m e d ’Épinay, op. cit., p. 1282.
ram-nos a pouco e pouco escravos.»33A água fria deve tocar o corpo como toca 35 F. M . A rouet, conhecido com o Voltaire, C a rta de 3 de D ezem bro de 1757, O euvres
o ago. A referencia filamentosa converge de vez com o projecto cultural: a ima­ C om pletes, Paris, 1827, t. III, p. 1340-1341.
gem física da fibra, a sua vertente directamente concreta, contribuem para a 34 J. de L espinasse, C a rta de 1776, Lettres, Paris, 1876, p. 305.
37 G . L. de B uffon, C arta de 2 de A bril de 1771, C orrespondance générale, Paris, 1885,
29 « L ’A m i des pauvres », Journal oeconom ique, 1766, p. 464. t. i, p. 197.
30 J. F aig n et de V illeneuve, op. cit., p. 113. 38 «O m brages frais, ruisseaux, bosquets, verdure, venez purifier m on im agination», J.-J.
31 C. A. V anderm onde, op. cit., 1 . 1, p. 48. R ousseau, R everles du p ro m en e u r solitaire, Paris, G arnier, 1931 (1.a ed., 1779), p. 272.
32F. F uret, P en ser la R évolution frangaise, Paris, G allim ard, 1978; R. C hartier, Les O ri­ 39 C. J. de L igne, M ém oires, L ettres e t P ensées, Paris, F. B ourin, 1989 (1.a ed, 1928),
gines culturelles d e la R évolution frangaise, Paris, Éd. du Seuil, 1991; P. G oubert e p. 104.
D. R oche, L es F rangais et V A n d e n R égim e, Paris, C olin, 1984, 2 vols. 40 G. G. C asanova de Seingalt, M émoires, B ruxelas, 1860 (1.a reed., 1797), t. v, p. 205.
33 T. T ronchin, C arta de 3 d e S etem bro de 1759, H. T ronchin, op. cit., p. 59. 41 C. de M ontesquieu, M es pensées, op. cit., 1 . 1 , p. 1195.

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RESISTIR E ENDURECER ENDURECER

bilidade instalam neste centro «sphrénique», um lugar muito especial de afec- o tipo de doengas» 48. Buchan, em 1778, fomece alguns pormenores acerca das
tagáo e de reforgo do corpo: zona onde vinham convergir as mais ricas redes de infelicidades dos citadinos ingleses considerados «demasiado» carnívoros, «ge-
ñervos 42. ralmente atacados de escorbuto e das numerosas sequelas desta doenga; tais
E preciso aparecer a máquina de Rabiqueau, enfim, em 1775, para que o pa­ como as indigestoes, a melancolía e a afecgáo hipocondríaca» 49. Rousseau sa-
pel dado á oscilagao seja especificado até á caricatura: um «manejo mecánico» 43 lienta a forga terrena da seiva para melhor insistir ñas sórdidas equivalencias
onde sáo colocadas criangas frágeis ou um pouco deformadas. A máquina sa- das carnes vermelhas: «Os grandes celerados endurecem-se no homicidio be-
code em todas as direcgóes os corpos nelas presos e dá-lhes «choques eléctri­ bendo sangue.» 50
cos» com a ajuda de bragos articulados. Ela «estimula-os». O manejo de Rabi­ Existem, no entanto, alguns cambiantes: os lacticinios de um clima seco, de
queau seria apenas ridículo se náo fosse confirmar a nova visáo das tensóes montanha, parecem ser vivificantes, enquanto que os de uma Holanda opulenta
físicas. e gorda náo o seriam. Peyssonnel, visitante de Amesterdáo em 1780, diz-se cho­
Muito mais literarias sáo as referencias de Diderot observando a educagáo cado com o abatimento e a «rudeza» dos holandeses gordos devido á sua ali­
dos cadetes de Catarina II em Sampetersburgo. As suas conclusoes sáo as mes- mentagáo familiar: «A populagáo holandesa passa por ser gorda. A horrível hu-
mas que as dos efeitos do exercício e do frío. Os cadetes com isso teriam ganho midade do país que afrouxa as fibras, o queijo, os lacticinios que espessam os
«uma saúde á prova do clima e de todas as intempéries» 44. humores e multiplicam as viscosidades e o uso da cerveja, que ataca os ñervos,
constituem as causas físicas.»51 O estado das fibras comanda o estado das formas
e, é claro, também o conteúdo dos regimes propostos: «As pessoas fracas que
2. O A L IM E N T O R Ú S T IC O tém as fibras frouxas abster-se-áo de toda a espécie de alimentos viscosos.» 52
O modelo confirma, sobretudo, o novo lugar atribuido á natureza no sé-
Também a rusticidade comanda a escolha dos regimes alimentares nesta se­ culo xvm. Cocchi retoma a cena canónica de Pitágoras, calcorreando as praias,
gunda metade do século xvm: as refeigoes de Julie, por exemplo, em La Nou- contemplando o mar, pedindo que a este seja devolvido os peixes e as conchas
velle Héloise, «sem carne, nem refogados nem sal» 45, e ainda as de Cagliostro trazidos pelos pescadores: náo devem ser «os mínimos corpos animais», resti­
feitas de queijo ou de macarráo, tomadas uma única vez por dia 47. A oposigáo tuidos á vida? Só o regime vegetariano, neste caso, seria legítimo. Cocchi in­
aos regimes tradicionais, compostos até ali por caldos de galinha e de outras siste, com uma tónica nitidamente inédita, aliás como Rousseau, no respeito
aves de capoeira, de carnes leves mas apaladadas, de sucos limitados mas sa- devido ás «obras da natureza mais úteis e mais dignas da nossa curiosidade» 53.
borosos; a crítica destas qualidades elaboradas, náo traduz apenas a procura da O que é confirmado ainda pelas primeiras críticas á caga, no final do século xvm;
solidez das carnes através de qualquer alimentagáo primitiva, ela traduz tam­ as denúncias das armadilhas, dos halalis; as acusagóes de Francis Mundy con­
bém a denúncia das delicadezas provocadas por algum excesso de artificio ou tra os monteiros de lebres ou os atiradores aos pássaros: nestes casos é impos-
de afectagáo. sível aprovar «o grande prazer encontrado em perseguir uma pobre lebre inde-
fesa, com uma uivante e vilá matilha de caga... [táo] desumana e bárbara como
a perseguigáo aos touros» 54.
Frugívoros e carnívoros O valor nutritivo atribuido aos vegetáis é acentuado no século xvm por uma
constatagáo: a da sua eficácia na prevengáo do escorbuto. Em 1765 Cook ob­
Este tema dos endurecimentos dá uma nova forma ao tema do vegetarianis­ serva, ñas suas viagens pelo océano Pacífico que um nítido aumento dos ali­
mo, neste final do século xvm: os géneros da térra seriam mais nutritivos do que mentos vegetáis e uma diminuigáo das carnes salgadas preservam a tripulagáo
os géneros de origem animal e os alimentos rústicos mais vivificantes do que os de uma doenga até ali náo dominada: a doenga inexorável que, do sangramen-
a imentos refinados. É a ocasiáo de privilegiar os consumos do campo em de­ to das gengivas ás úlceras generalizadas, condena por vezes os marinheiros de
trimento dos consumos urbanos: «os habitantes das cidades que fazem da car­ longo curso. Cook arrisca algumas comparagóes. Ele garante que o seu regime
ne o seu principal alimento passam a sua vida miseravelmente expostas a todo de cereais e de agúcar, as suas reservas de choucroute e de couves salgadas, de

48 J.-B . P ressavin, op. cit., p. 77.


S' pLe dlaphrag rne jo u e un des prem iers roles dans l ’histoire de L irritabilité», P. V. de
eZ®’ ec' lerches p h y sio lo g iq u e s su r la sensibilité, P aris, 1786, p. 94. J9 G. B uchan, op. cit., t. I, p. 165.
„ ' ^ b i q u e a u , N ouveau M anége m écanique, Paris, 1778. 50 C itado por M . O nfray, Le Ventre des philosophes, critique de la raison diététique, P a ­
- ■ ^ 'd e r o t, L e s Plans e t les Statuts des d ifférents établissem ents ordonnés p a r Sa M a- ris, G rasset, 1989, p. 56.
je s te m p e n a l e (1775), in O euvres..., op. cit., t. XI, p. 118. 51 C. de P eyssonnel, op. cit., 1 . 1, pp. 83-84.
p 435 ‘ R ousseau, Julie ou la N ouvelle H éloise, Paris, G am ier, 1960 (1.a ed., 1760), 52 G. B uchan, op. cit., 1 . 1, p. 196.
53 A. C. C occhi. R égim e de Pythagore, Paris, 1762, p. 40.
54 C itado por K. T hom as, D ans le ja rd ín de la nature, la m utation des sensibilités en A n-
47 2 de C orrespondance générale, op. cit., t. n, p. 431, nota.
<~razette de santé, 1781, p. 7 3 . gleterre á l ’époque m o d e m e , Paris, G allim ard, 1985 (1.a ed. inglesa, 1983), p. 215.

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RESISTIR E ENDURECER ENDURECER

mostarda e de sumo de mosto de cerveja, permitiram sem nenhuma dúvida, li­ tende, por exemplo, que as favas e as ervilhas acalmam a fome ao «incharem
mitar a um único morto as perdas da sua tripulagáo durante a sua segunda via- no estómago» 60. É, portante, necessário cultivá-las. Mas as tentativas de explo­
gem, a de 1772 55. É a primeira sangáo erudita da acgáo vegetal. rar estes vegetáis sáo caóticas e dispersas e náo atenuam suficientemente as fo-
Numerosas sao. no entanto, as contradigóes das práticas vegetarianas. Rétif mes que ainda culminam de vinte em vinte anos durante o século xvm.
de la Bretonne mostra-o involuntariamente: recomendando várias vezes o uso Mais importantes sáo algumas iniciativas locáis. Broussonnet faz experien­
exclusivo de géneros vegetáis, pormenoriza incidentalmente as suas vistas aos cias com os nabos e o abade de Pomerel com as beterrabas6I. Duhamel du Mon-
restaurantes parisienses, os seus alimentos vulgares constituidos por «asas de ceau recorre ao arroz, em 1759, género pouco conhecido mas considerado
galinha» de «assados excelentes» e de carnes que alegadamente preenchem «completo», na sua térra bretá. Ele descreve a sua cozedura em lume brando e
tudo o que «a sua sensualidade pode desejar» 56. Bougainville faz o mesmo: ci­ o seu crescimento progressivo sob o efeito da água. Narra também as suas mis­
tando como exemplo o regime sem carne dos seus taitianos observados ñas suas turas: o sal e o louro para preparar sopas colectivas, durante «certos anos de pe-
viagens ao Pacífico, parece esquecé-lo quando os descreve em vários episodios, núria» 62. O milho também aparece progressivamente como alimento «comple­
criando galinhas, pombos e porcos 57. Pouco importam, aliás, as contradigóes. to» ao norte do Mediterráneo na segunda metade do século xvm: a polenta do
O vegetarianismo contém um valor de índice cultural, no final do século xvm: Norte de Itália, a millasse aquitánia e a mamaliga romena.
símbolo de uma mudanga mais vasta e mais profunda, ele é a confirmagáo de A batata transforma bruscamente as práticas ao reforgar o prestigio dos ve­
uma representagáo nova da natureza: a esperanga de nela encontrar alguma al­ getáis depois de 1770. O padre de Saint-Roche é o primeiro a utilizá-la na sopa
ternativa possível ás pressoes urbanas e também um principio de forga. económica, no Invernó de 176963: distribuí a alguns paroquianos um caldo com­
Dá-se um debate revelador: será o homem frugívoro ou carnívoro? Interro- posto por este legume até ali depreciado, acusado de ser uma simples raiz, pá­
gam-se os sábios de 1780. Ocasiáo, para alguns, de recordar a rusticidade ori­ rente distante das plantas venenosas pela sua classificagáo na familia das Sola­
ginal do recurso ao vegetal; ocasiáo também para interrogar, pela primeira vez, náceas. Varenne de Béost dá a receita do caldo para a sua cozinha dos pobres,
as adaptagoes morforlógicas: a forma da boca, os dentes, as unhas, os intesti­ explícitamente conseguida para «remediar os acidentes imprevistos da escassez
nos, o que confirma de passagem, o novo interesse pela «arquitectura» do cor­ dos cereais» M, da mesma forma que desenha máquinas para transformar as ba­
po. Vários higienistas do final do século agarram-se a uma convicgáo: o homem tatas cozidas em «pasta para páo» 65. Impóe-se a convicgáo de Parmentier, mes­
seria frugívoro, «náo notamos na espécie humana nenhum dos caracteres dis­ mo sendo inicialmente teórica, longamente desenvolvida no seu «Estudo das
tintivos da espécie carnívora» Se a qualidade de «omnívoro» prevalece em substáncias alimentares que poderiam atenuar as calamidades de uma escas­
definitivo nos textos eruditos, isso acontece apesar de resistencias várias e á sez» “ , com o qual ganha o concurso que a Academia de Besangon langou sobre
custa de grandes desenvolvimentos sobre as morfologías físicas: «O tubo intes­ o tema em 1772. Parmentier elogia a diversidade dos preparados possíveis do fe­
tinal do homem está perfeitamente disposto para que o homem seja um animal culento, evoca culturas e quantidades e descreve o legume protegido pelo solo,
omnívoro. Ele assemelha-se ao dos carnívoros pela estrutura do ventrículo e prosperando ao abrigo do gelo e das intempéries. Ele convence Sébastien Mer-
pela brevidade do ceco. Aproxima-se do intestino dos herbívoros pelo grande cier a plantar o tubérculo na planicie de Sablons, vasto espago onde os exércitos
comprimento do intestino delgado.» 59 de Luís XV treinavam. Sébastien sonha entáo com o desaparecimento das fomes:
O vegetal seduz os novos partidários do endurecimento, da mesma forma «A batata que náo receia nem os gelos, nem as trovoadas nem os ventos, nem a
que mobiliza as buscas de um alimento «completo» para o pobre. chuva, dá-se igualmente em todos os terrenos para se converter em páo saboro-
so e nutritivo.» 67A originalidade de Parmentier prende-se com o seu raciocinio
estritamente económico: «Um árpente (50 a 51 ares) destas raízes alimenta duas
Os feculentos do pobre vezes mais do que a mesma extensáo de térra convertida em trigo.»68A cozedu-

A descoberta de um vegetal susceptível de substituir os gráos de cereal é ob- 60 H . L. D uham el du M onceau, M o y en s de co n se rve r la sa n té des équipages des vais-
sea u x avec la m aniere d e p u r ifie r les salles d ’hópitaux, P aris, 1759, p. 151.
jecto de uma expectativa tradicional no mundo rural: substituir ao trigo, por ve­
61 L. S. M ercier, op. cit., t. xn, p. 150.
zes escasso, outros géneros mais acessíveis. Um costume do século xvm pre- 62 H. L. D uham el de M onceau, op. cit., p. 153.
63 M . T oussaint Sam at, H istoire naturelle e t m orale d e la nourriture, Paris, B ordas,
J. Cook, Voyages a u to u r d u m onde (1772), J.-F. de L a H arpe, H istoire a b rég ée des vo- 1987, p. 524.
yages, Paris, 1780, t. XX, p. 212. 64 Varenne de B éost, C uisine du pauvre, D ijon, 1772, p. 12.
* N . R é tif d e L a B retonne, L es N uits..., op. cit., pp. 942-943. 65 «Machine pour réduire en páte des pommes de terre cuites pour en faire du pain», ibidem, p. 23.
A" B ougainville, Voyage a u to u r du m onde p a r la fr é g a te du roi la B oudeuse... 66 A. A. Parm entier, E xam en chim ique de la p o m m e de terre, P aris, 1773.
(1772), J.-F. de L a H arpe, op. cit., t. xix , pp. 180-181. 67 L. S. M ercier, op. cit., t. xn, p. 151.
58 J.-B . P ressavin, op. cit., p. 69. 68 A. A. Parm entier, R a p p o rt au m inistre de l ’In térie u r su r les so u p es de légum es dites
59 J. F. B lum em bach, D e l ’u nité du gen re hum ain e t de ses variétés, Paris, 1804 (1 a ed á la R um ford (ano vm ), A . A. Parm entier, D ecandolle, D elessert, M oney, R ecueil de rap-
latina, 1795), p. 80. ports, de m ém oires et d ’expérience su r les soupes économ iques, Paris, 1801, p. 6 6 .

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RESISTIR E ENDURECER
ENDURECER

ra destes tubérculos exige ainda duas vezes menos energia do que a necessária do bergo e na seguranga das faixas apertadas, opoem-se a alimentagáo «libera­
para cozer igual quantidade de pao. Depois de 1780 proliferam projectos e as
da» desde os coeiros. Rousseau evoca Emile que é livremente deixado a «andar
suas realizagóes: o «amido da saúde» 69, a «farinha da saúde» 70, vendidos por de rojo pelo quarto»75 e já náo constrangido por ligaduras apertadas sobre o seu
trinta céntimos cada libra, pouco mais do que dois nacos de pao vendidos corpo. Madame de Genlis, preceptora apaixonada dos filhos do duque de Or-
por vinte e cinco céntimos, os «biscoitos da saúde» também, todos confeccio­ léans, nos anos de 1780, pede-lhes que caminhem continuamente na sala du­
nados com a fécula assim explorada. A batata explode no final do século: exis- rante as ligoes para melhor se fortalecerem 76. E a acgáo física que comanda
tem 40 espécies em 1789. O reconhecimento extremo: a Comuna de Paris or­ o principio das forgas. Ela deve tomar «mais flexível a textura das fibras» 77.
dena que se transforme o jardim das Tulherias em batatal por deliberagáo de 21 Náo que, ainda neste caso, tenha sido inventada alguma ginástica ou algum mé­
do Ventoso do Ano I I I 71.
todo particular de execugáo: o choque e a vibragáo das fibras é mais importan­
A batata, evidentemente, náo faz desaparecer a miséria: para isso será neces- te do que a escolha dos movimentos.
sário reorganizar o tráfico de cereais e a sua distribuigáo. O édito de Julho de
Em compensagáo, é nitidamente sugerida uma progressáo na acgáo. Rous­
1764 que autoriza a livre circulagáo de trigo no reino, e a criagáo de sistemas seau deseja uma habituagáo gradual ao frió: «E apenas gradualmente que se
de armazenagem, desempenharam, a este respeito, um papel determ inante72. As pode levá-los ao vigor primitivo.» 78 Madame de Genlis inventa um aumento na
fomes desaparecem com os velhos sistemas de controlo que limitam o comér- intensidade dos gestos. A prática completamente banal da jardinagem, por
cio de provincia a provincia. Mas o prestigio do novo legume mostra como o exemplo, toma-se ocasiáo de um progresso de energia: «Os seus vasos tém um
alimento completo é ainda largamente procurado nos vegetáis. E também o pre­ fundo duplo no qual se podem introduzir láminas de chumbo á medida que as
go elevado da carne como mostram em 1764, as contas de Antoine-Alexandre suas forgas aum entam .»79 Da mesma forma que se toma gradualmente mais pe­
Barbier, notário de Besangon, que regista as compras episódicas de carne, fre­
sada a roldana que Madame de Genlis manda instalar no quarto dos meninos de
quentemente limitadas ás festas e ás ocasioes solenes 73. O prestigio dos vege­ Orléans, proporcional aos vigores crescentes. Uma forma modesta, mas bem
táis prende-se tanto ao novo prestigio do rústico como ás prosaicas exigéncias
real, de programas e progressos: projectar a saúde no futuro.
da economía.
E com a infancia, mais do que com quaisquer outros, que se impóe a novi-
dade destas práticas do século x v i i i . A protecgáo do corpo está aqui directa­
mente ligada ao desencadear de uma poténcia e á sua aplicagáo. A saúde toma-
3. U M A P E D A G O G IA R E A C T IV A
-se tema de exercício. O corpo deve agir sobre si próprio: «A arte da educagáo
é de alguma forma a arte de substituir um corpo por outro.» 80
As práticas educativas, enfim, resumem as expectativas de endurecimento Fourcroy, conselheiro no magistrado de Clermont, di-lo com mais nitidez
no século xvm. Elas dáo-lhes mesmo todo o seu sentido: o investimento no
ainda, quando decide, em 1770, aplicar novas medidas á alimentagáo do seu fi­
aperfeigoamento e no futuro. Náo sáo as fraquezas estimuladas na primeira ida- lho: água fría «mesmo durante os Invemos rigorosos», alimentos naturais, ges­
d e. É o que afirma Buchan, cuja extensa reflexáo sobre «as causas gerais das
tos livres e exposigáo ás condigoes atmosféricas. O resultado é uma «saúde inal-
doengas» comega com um capítulo consagrado á infancia: «Para dar uma des-
terável» 81. Fourcroy confia numa defesa vinda do corpo, numa resisténcia
cngáo exacta das doengas a partir das suas causas originárias, é preciso come-
quase autónoma. Sonha com órgáos suficientemente sólidos para assegurar a
?ar por langar um olhar sobre a maneira vulgar de conduzir os homens na in­
fancia.» 74 sua própria protecgáo: «Com esta operagáo diária, revestiu de uma couraga con­
tra o ar mais penetrante que, ao fim de pouco tempo, já náo tem efeito sobre
ele.» 82 Daí a inversáo das referencias antigas: os apoios exteriores (faixas e es-
O reforgo gradual partilhos) e as purificagóes passivas sáo substituidos pela mobilizagoes activas,
as contracgoes e o trabalho. Já náo a sangría que segundo Gui Patín, um século
antes, fazia as criangas robustas através da evacuagáo dos humores 83, mas o
oreo ° m C~ta persPectiva de reforgo aparece um espago totalmente novo de
carnes Pa?f ° : & activa?a° Precoce das fibras, a luta desde a infancia contra as 75 J.-J. R ousseau, L ’Ém ile, Paris, G arnier, 1951 (1.a ed., 1762), p. 39.
s mo es e a fraqueza dos ñervos. Á alimentagáo tomada, até ali, no calor 76 M m e de G enlis, L egón d ’une g o u v em a n te á ses eleves, Paris, 1791, t. II, p. 18.
77 J.-J. R ousseau, L ’Ém ile, op. cit., p. 38.
™^ P ches- A nnonces et A vis divers, 1775, p. 187. 78 Idem.
7, taZf íe
A s a n te ', 1785, p. 104. 79 M m e de G enlis, op. cit., t. n, p. 18.
80 J. Verdier, C ours d ’éducation á l ’usage des éléves destinés a u x p re m ie re sp r o fe ss io n s
72 F L eb rSSamt S am at’ op: c it- P- 5 2 5 -
et aux g ra n d s em plois de I ’Etat, Paris, 1772, p. 3.
73 M . G ress t ' r CÍrculation des bles», in J. D elum eau e Y. L equin, op. cit., p. 349.
81 J.-L . de Fourcroy de G uillerville, L e s E nfants élevés d ans l ’ordre de la nature, Paris,
1978, t. i, p. 3 1 2 ' de ju s tic e á B esangon, 1674-1789, Paris, B ibliothéque nationale,
1774, p. 8 1.
G - B uchan, op. cit, t. i, p . j 82 Ibidem , p. 108.
83 Ver aqui, p. 80.
142

143

niál
ENDURECER
RESISTIR E ENDURECER

próprio endurecimento voluntario das fibras e dos ñervos. O conjunto das for­ cessidade.» 89 Muito menos frequentes, pelo contrário, eram os preceitos de
Madame de Sévigné, um século mais cedo, e menos precoces também, centra­
gas desloca-se: «É preciso que tudo venha do interior» M, afirma Andry de Bois-
regard quando propoe em 1741 alguns exercícios e gestos elementares para dar dos no espartilho que o seu neto devia u sar90, em algumas sangrías sofndas aos
consistencia ao caminhar das criangas. É preciso «agir do interior», diz ainda tres anos 91, e sobre o corte de cábelo acusado de dar entrada em demasia ao ar
Hufeland, nos seus conselhos ás máes, várias vezes editados: «Náo conhego frío 92. A vigilancia dos riscos da pequeña infancia deslocou-se num século. os
familiares prodigalizam os seus conselhos desde o nascimento; lazem-no em re-
nada mais pernicioso, nada que encerre táo perfeitamente a ideia de fraqueza e
de infinidade do que a característica da natureza humana generalizada nos nos- lagáo aos objectos mais quotidianos: do conteúdo dos caldos á amplitude das
sos dias, de agir do exterior para o interior.» 85 Enquanto que, pelo contrário, é vestes. É preciso voltar a dizer que, á excepgáo da inoculagáo, náo há nenhuma
descoberta médica, mas antes um investimento diferente na alimentagáo e nos
necessário solicitar uma defesa «interna».
objectos.
A obstetricia desempenha ainda o seu papel num insensivel recuo da morte
de recém-nascidos. Intensifica-se a reprovagáo da inexperiencia de algumas
ldades e vida
matronas: «Quantas criangas mutiladas! E outras vistas como mortas e que cui­
A medigáo da vitória sobre a morte é decisiva para compreender este rela- dados bem aplicados teriam feito regressar á vida!... Tal é o esbogo do quadro
cionamento com a infancia. Os números revelados pelos demógrafos sáo for­ assustador, mas verdadeiro. que a ignorancia das comadres todos os días ofere-
máis: a partir dos anos de 1750 impós-se uma baixa de mortalidade sem que ne­ ce.» 93 Surgem as iniciativas que visam a revisáo de competencias. Madame de
nhuma descoberta médica o explique directamente. A mortalidade dos rapazes Coudray é nomeada pelo rei em 1767 «para ensinar a arte do parto em toda a
com menos de cinco anos declina de 34% a 20%, entre o século xvn e o sécu­ extensáo do reino». Ela traduz a prática em fórmulas pedagógicas, com exem­
lo xvm, ñas familias dirigentes estudadas por Peller, e a das raparigas de 29% a plos figuras e manequins articulados e manipuláveis que favorecem a aprendi-
16% 86. A morte recua igualmente ñas provincias deserdadas, em Anjou, por zagem. Dá cursos em Caen (1775), Rennes (1775-1776), Rouen (1776-1777),
exemplo, durante muito tempo dizimada pelas endemias: 36% de mortalidade Le Mans (1777-1778) e Angers (1778). Entrega certificados reconhecidos pelos
intendentes e estimula novas transmissóes de conhecimentos, como Frangois
para as criangas com menos de cinco anos em 1670, e 26% em 1789, em La
Chappelle-d'Alize, paróquia todavia miserável, perdida no meio dos bosques Lebrun analisou, no caso de Angers: 109 mulheres diplomadas após algumas
semanas de curso seguidas no saláo dos Pagos do Concelho; em seguida um en-
entre o Sarthe e o Loir 87.
Um lento crescimento das subsistencias explica, sem dúvida, estes números. sinamento de quinze dias dirigido a nove cirurgióes da provincia que se tomam,
Ainda mais a transformagáo das precaugóes e das atitudes familiares: a higiene por sua vez, «cirurgióes demonstradores», e se encarregam de um curso todos
mais bem cuidada, as atengóes, os isolamentos face á epidemia, enquanto a ino­ os anos ñas cidades sob a sua algada94. A rede é frágil e frequentemente aban­
culagáo continua ainda pouco difundida. Na elite há uma diferenga total entre donada antes do fim dos anos de 1780: os encargos com a subsistencia dos alu-
as atitudes de Madame de Maraise em 1780 e as de Madame de Sévigné um sé- nos náo podem ser honrados pelos senhores e pelos padres por eles res-
culo antes. A correspondencia de Madame de Maraise com os seus familiares e ponsáveis. Mas as iniciativas continuam a ser em grande número, tomadas
amigos desde os primeiros dias de um parto é do mais revelador: insistencia so­ directamente pelos intendentes «para convidar esta famosa parteira a vir dar li-
bre uma vigilancia constante, fomecimento de detalhes sobre o ar, o sono, a ali­ góes sobre esta importante matéria ás mulheres do campo que lhe seráo envia­
mentagáo, focalizagáo no aleitamento materno e crítica incessante da ignoran­ das» 95.
cia e dos preconceitos. Madame de Maraise multiplica as opinióes. Escreve Multiplicam-se os sinais destas atengóes aos nascimentos e a primeira ida-
sobre as suas criangas, sobre o seu filhinho nascido em 1779, cuja fragilidade a de, até ás referencias mais formáis, como a maneira de distribuir as posologias
preocupa muitas vezes durante «metade da noite» 8S, e sobre Alphonse Ober-
kampf, o inventor dos tecidos de Jouy. Ela confessa a sua paixao pela infancia 89 C arta de 13 de Jan eiro de 1786, ibidem , p. 130.
o que é uma das originalidades destes conselhos que se tomam habituais no sé- 90 M m e de Sévigné, C arta de 6 de M aio de 1676, C orrespondance, op. cit., t. ii, p. 284.
culo xvm: «Alargo-me neste assunto porque me interessa, mais do que por ne- C arta de 26 de Jun h o de 1675, ibidem , 1 . 1, p. 743.
92 «Tende o cuidado de m andar b arbear o pequeño m arqués», ibidem , p. 741.
93 M C hevreul, Le P récis de l ’art des accouchem ents, en fa v e u r des sa g es-fem m es et
84 N . A ndry de B oisregard, L ’O rthopédie ou A r t de p ré v e n ir et d e co rríg er d ans les en-
des éléves en cet art, A ngers, 1782, p. vil; ver tam bém J.-J. B audelocque, P rincipes s u r V art
fa n ts les d iffo rm ités du corps, Paris, 1 7 4 1 ,1.1, p. 100.
des a ccouchem ents p a r dem andes et réponses en fa v e u r des sages fe m m e s d e la cam pa-
85 C. G. H ufeland, A vis a u x m éres su r tous les p o in ts les p lu s im portants de l ’éducation
p h y siq u e des enfants, P aris, 1801 (1.a ed. alem a, 1793), pp. 18-19. gne..., Paris, 1775.
94 F. L ebran, La M o rt en A njou, op. cit., pp. 213-214.
86 C itado p o r P. C haunu, op. cit., p. 157.
95 C itado por M . E l K ordi, B ayeux aux x v n ' e t x v m * siécles, P a n s, M outon, 1970,
87 F. L ebran, L a M o rt en A njou, op. cit., p. 182.
p. 113, n.° 56; ver tam bém J.-C . Perrot, G enése d 'u n e ville m o d em e, Caen au x v iw siécle,
88 M m e d e M araise, C a rta de 20 d e D ezem bro de 1779, S. C hassagne, Une fe m m e d ’af-
fa ir e s au x v m e siécle, T oulouse, Privat, 1981, p. 102. Paris, M outon, 1975, t. n, p. 896

145
144
RESISTIR E ENDURECER

medicamentosas aos diversos períodos da vida. As escalas infantis proliferam


como nunca nos esmigalhar das doses para remédios e pogóes, no final do sé-
culo. quatro posologias diferentes entre a idade de «alguns meses» e a de «de-
zoito anos» para o conjunto de doses propostas por T issot96; quatro posologias
amda, entre os dois e os dezassete anos, para o pó contra as febres da senhora
Renault de Caen 97. Os números desta senhora Renault sao, aliás, tanto mais
marcantes porque multiplicam as categorías da terceira idade:

1 gráo 2-4 anos


2 gráos 5-8 anos e 76-80 anos
3 gráos 9-12 anos e 71-75 anos CA PÍTU LO III
4 gráos 13-17 anos e 61-70 anos
5 gráos 18-21 anos e 56-60 anos AS ENERGIAS DO AR
6 gráos 22-25 anos e 51-55 anos
7 gráos 26-30 anos e 41-50 anos
8 gráos 31-40 anos Com o século xvm náo é só a mecánica do corpo que autoriza novos gestos
preventivos, é também a maneira de tratar os elementos físicos, a de habitar os
Como se compreende, é uma nova esperanza de vida o que revela a insis­ lugares e a de neles conduzir os fluxos.
tencia sobre a diversidade das idades: uma nova maneira de encarar as progres- Um acidente trágico em 1694 desenha já os contornos das novas questóes
sóes e o alargamento das fases da existencia. A prática, pela primeira vez evi­ sobre o ar e o espago que no século xvm teráo cada vez mais importáncia. Tra-
dente no século xvm, de uma limitagáo voluntária dos nascimentos, dá ainda ta-se do episodio do subúrbio de Sainte-Savine em Troyes, evocado pelo Mer­
mais sentido a esta esperanza. O número médio de criangas por familia de cam- cure-. tres pessoas que prudentemente descem a um pogo para procurar uma pe-
poneses passa de 6,25 entre 1730-1749 a 4,38 entre 1770-1779 ñas nove aldeias ruca perdida por uma crianga, ai morrem sucessivamente, todas elas por um
do Oeste de París estudadas por L achiver98; o mesmo número passa de 6,15 a «eflúvio metífico». A explicagáo é nova: a morte sobreviria pela respiragáo;
2,00, no mesmo período ñas familias dos pares de Franga ", A queda é brutal e «um vapor untuoso» teria enchido «os bronquios» destes homens, consumando
pronunciada. O mvestimento na infancia explica esta limitagáo voluntária: uma uma irremediável sufocagáo Um comentário confuso mas importante. Ele
maior atengáo á instrugao e ao tempo reservados á filha ou ao filho. Mas a von- inaugura uma tentativa repetida de avahar o acto respiratorio e de apreciar a sua
tade de um aumento de independencia, a procura mais acentuada do aligeira- relagáo com o espago: recensear os confinamentos e os impedimentos da respi­
mento das cargas familiares exercem igualmente a sua influencia sobre a nata- ragáo.
lidade. Uma escolha inédita, depois do recuo da idade do casamento no
enfrentar do peso da vida.
De facto, a grande originalidade demográfica do século xvm é o prolonga- 1. A R E N O V A g Á O D O A R
mento da vida: um ganho de perto de dez anos num século para a Franga. A es-
peranga de vida á nascenga passa de 30 para 40 anos; mais marcante ainda para Conhecimentos totalmente teóricos, num primeiro tempo. As «experien­
as mulheres das quais metade deixa de morrer antes dos 30 anos, como no sé- cias» que provocam a morte de animais por asfixia num ar confinado tomam-
culo xv n e passa a morrer antes dos 45 anos 10°. Devem ser tidas em conta trans- se correntes na primeira metade do século xvm. Arbuthnot, Hales, Boissier de
formagóes mais profundas, como a do espago e do enquadramento da vida, para Sauvages contabilizam mesmo a duragáo das agonias segundo o volume do cor­
compreender melhor esta mudanga. Sáo essas transformagoes que se trata de po do animal e da campánula na qual ele é encerrado2. Coelhos, galinhas e pás-
explorar. saros diversos morrem segundo diferentes tempos na sua prisáo de vidro. Ha­
les, em 1745, pretende que um «pintarroxo metido num vaso com capacidade
96 S. A. T issot, A vis au p e u p le sur sa santé, Paris, 1782 (1.a ed 1762) t II d 330 de cerca de duas pintas [um pouco menos de dois litros], morre ao fim de tres
” C itado p o r J.-C . P errot, op. c/r., t. n, p. 828.
M . L achiver, Vin, Vigne e t Vigneron en région p a risie n n e du x v n e au x ix e siécle P a ­
rís, S ociété h istorique de P ontoise, 1982, p. 612. 1 Le M ercure galant, M a rfo de 1694, p. 33.
A. Bideau, J.-P. B ardet e J. H oudaille, «L a fécondité», H istoire des p o p u la tio n s fran- 2 S. H ales, L a Statique d e s végétaux et l ’A n a ly se de l ’air, Paris, 1735 (1.a ed. inglesa,
paises, op. cit., t. n, p. 391. 1727); J. A rbuthnot, E ssai su r les ejfets de l ’a ir s u r le corps hum ain, Paris, 1742 (1.a ed. in ­
100 P. C haunu, H istoire Science sociale, la durée, V espace et V hom m e á l'é p o q u e mo- glesa, 1733); A. B oissier de Sauvages, D issertation ou l ’on recherche com m ent l ’a ir suivant
derne, P a n s, S E D E S , 1974, p. 3 7 9 , ses dijférentes qualités ag it su r le corps hum ain, Paris, 1754.

146 147
RESISTIR E ENDURECER
AS ENERGIAS DO AR

horas se o ar do vaso nao dver nenhuma comunicagáo com o ar do exterior» 3.


objecto de modificagoes semelhantes em 1740: as chaminés dos quartos sáo
Estas explicagoes de Hales, como as de Arbuthnot ou de Boissier de Sauvages,
igualmente deslocadas para fazerem face ás janelas 9.
sao para nós de uma outra época. Eles ignoram, em 1740-1750, o papel do oxi-
O ventilador constituí a verdadeira descoberta instrumental no inicio do sé-
génio *. Consideram apenas a respiragao indispensável ao movimento do cora-
culo xvm. Désaguliers é o primeiro a encarar, em 1735, o mecanismo utilizável
gao e á refrigeragao do sangue. As suas preocupagoes e os seus cálculos, con-
num quarto: uma grande ventoinha fechada numa caixa com um canudo de te-
tudo, sao inéditos.
cido que aspira e reflui, movida por uma manivela de ferro 10. O espago dos
doentes deveria, segundo Désaguliers, estar assim munido devido ao «mau ar»
que ai impera. Alguns dos modelos descritos sáo uns quantos movéis preciosos
A y « c o m o d id a d e s »
vistos em apartamentos luxuosos: «Os que vimos estavam fechados em caixas
de pau-rosa da maior elegáncia.» 11 Sáo os aparelhos mais simples, no entanto,
Além das consideragoes eruditas, é mesmo a transformagáo das próprias os que se difundem, distribuidos inicialmente pela Inglaterra: ventoinhas inse­
práticas que é mais marcante no século xvm, com resultados muito concretos:
ridas em vitrinas, movidas por correntes de ar. Pingeron diz constatar a presen-
a intervengao sobre os aparelhos de arejamento. As chaminés ñas casas mais
ga do mecanismo em «todos os quartos ingleses» por volta de 1770: «Rosetas
abastadas sáo, pela primeira vez, concebidas para activar o ar. A invengáo de um
movéis inscritas em caixas de folha-de-flandres» 12que ocupam a parte de cima
isolamento do fogo e dos seus anteparos, deixando um espago livre entre as pla­
das vidragas das janelas.
cas quentes e a parede do suporte, poe em movimento o ar em torno da lareira.
Náo que a instrumentagáo se generalize, é claro, mas ela revela um a crítica
Gauger tenta uma construgáo deste género em 1713: «Dispor a parte detrás da
ao arejamento «antigo», aquele que privilegia a difusáo de perfume, e que pu­
chaminé de tal forma que o ar vindo do exterior possa passar por ai, aquecer e
rifica pela mera operagáo sobre o odor e a sua transformagáo: o ar, agora, deve
encaminhar-se em seguida para a sala.» 5 Geugier salienta a acgáo possível des­
circular. Tissot, nos seus «Conselhos ao povo sobre a saúde», várias vezes ree­
tas chaminés sobre «o fólego deteriorado dos doentes» 6, as transpiragoes aba­
ditados depois de 1670, impóe entre as causas de mortalidade do povo o facto
ladas e as exalagoes fétidas. Ele calcula a duragáo da renovagáo do ar segundo
de náo «abrirem diariamente as janelas» 13.
o volume do compartimento, a quantidade de aberturas e a potencia do fogo.
A instrumentagáo ás «comodidades», aquelas de que o arquitecto Blondel,
em 1752, pretende «ter-se tornado idólatra», enquanto que os seus «anteces­
O sopro das multidoes
sores as ignoravam um pouco em demasia» 1. Elas transformaram o espago
privado da elite: salas com dimensoes mais restritas que retém o calor, mais
A respiragáo dos grupos de homens em locáis confinados orienta igualmen­
numerosas, mobiliário mais diversificado, posto ao servigo de uma instrumen­
te a nova atengáo. Náo correm, as multiddes e as suas exalagoes, o risco de au­
tagáo do íntimo, cem vezes descritas, com as suas esséncias raras, o seu forma­
mentar o perigo das cidades? A acumulagáo humana, o pej amento dos lugares
to estreito, as suas invengoes mecánicas, secretárias de abas, algados, secretá-
dá um novo objecto a um a inquietagáo do urbano, ela própria acentuada no sé-
rias de gavetas, tocadores, cómodas e pequeños escritorios. Estas comodidades
culo x v i i i . Á falta de elasticidade do ar restituido por pulmoes contiguos e de­
que os arquitectos e os marceneiros descrevem com insisténcia, também trans­
masiado numerosos acrescentar-se-ia o excesso de calor, de humidade com os
formaram a relagáo entre o espago interno e o espago externo da habitagáo.
odores que provocam. Boissier de Sauvages propoe, em 1754, a avaliagáo da
Uma verdadeira máquina, com bocas de arejamento e canalizagoes calculadas,
intangível coluna de ar viciado que se supóe pesar na cabega de cada homem
mantém as trocas entre os dois espagos, reforgando o bem estar. A própria casa
quando o vapor que ele produz náo pode escapar-se: «O homem come cerca de
vem a «respirar». A montagem é referenciável ñas transformagóes dos grandes
5 libras por dia, essas 5 libras transformam-se todas as 24 horas em excremen­
hotéis parisienses sofridas cerca de 1730 a 1740. No hotel de Maison, por exem­
tos fétidos e voláteis que, reduzidos em vapores tais como a transpiragáo que
plo, modificado por Mouret aquando da aquisigáo por M. De Saucourt em 1745.
constituí metade dos mesmos, deveriam formar sobre uma superficie de 15 pés,
Algumas chaminés muito próximas das portas (como a da sala comum, por
como a da pele, uma coluna com o peso de 5 libras, quer dizer, 1000 vezes mais
exemplo) sáo deslocadas para serem dispostas em frente ás janelas e assegurar
alta do que um sólido de água que tivesse esta base.» 14Depois de uma laborio­
assim um melhor circuito do ar 8. A casa de M. Sonning, na Rúa Richelieu, é
sa enumeragáo efectuada sobre o volume de ar inspirado e expirado, Arbuthnot
4 L av o isie r descobre o p ap el deste gás em 1777, v e r a p. 190.
avalia, quanto a ele, em 20 minutos o tempo resultante para a morte de 500 ho-
N . G auger, L a M écanique d u fe u ou l ’A rt d ’en a u g m e n ter les effets e t d ’en d im in u er
la dépense, Paris, 1713, p. 29. 9 Ibidem , t. III, p. 87.
6 Ibidem , p. 55. 10 «Soufflets p o u r appartem ents», J o u rn a l économ ique, 1770, p. 325.
" J. C. Pingeron, M a n u el d e s gens de mer, P aris, 1789, t. II, p. 460.
7 J. F. Blondel, L ’A rchitecture fra n g a ise ou R ecueil d e plans, París, 1 7 5 2 -1 7 5 6 ,1. 1, p. 239.
12 Ibidem , t. n, p. 357.
8 Ibidem , 1 . 1 , p. 259. Ver o estado a n te rio r de alguns destes hotéis em P. J. M ariétte, A r-
13 S. A. T issot, A vis au p euple..., op. cit., t. II, p. 60.
chitecture frangaise, Paris, 1727, 2 vols.
14 A. B oissier de S auvages, op. cit., p. 56.

148
RESISTIR E ENDURECER
AS ENERGIAS DO AR

mens herméticamente «fechados numa cámara com a capacidade de quinhentos A extensáo desta aparelhagem colectiva, voltamos a dizé-lo, náo é imediata
tonéis» 15. O hálito tomou-se mesmo um perigo: a respiragáo e o seu «mefitis-
na segunda metade do século xvm. Sébastien Mercier queixa-se em 1782 da
mo» particular sáo entendidos como decomposigáo; o sopro é entendido como promessa náo cumprida a respeito do ventilador esperado na nova sala pari­
excremento. É também o ar, a impregnagáo miasmática das paredes que arras-
siense da Ópera. Ele denuncia este ar «imóvel», cada vez menos suportável,
ta as gangrenas dos hospitais, provocando por vezes a morte dos simples visi­ evocando a atmosfera deletéria dos pequeños camarotes e das varandas: «A po-
tantes dos doentes l6. Daí, sem dúvida, os primeiros ensaios, cerca de 1745-
lícia, que zela por banir das salas as más palavras, deveria ocupar-se em expul­
-1755, sobre a circulagáo do ar nos espagos colectivos.
sar das salas de espectáculo o ar respirado que já náo é respirável.» 24
É para os navios, as pris5es e os hospitais, que Hales concebe ventiladores
monumentais, alguns deles movidos pela forga do vento. Em 1745, sugere a ins-
talagáo de um moinho de vento sobre o tecto da prisáo de Newgate afim de im-
2. P R E V E N IR A T U B E R C U L O S E
pulsionar melhor o ar para uma vasta tubagem interna l7: a acgáo da máquina
deve prevenir uma «febre pútrida» que dizima os prisioneiros amontoados em A angústia da tísica acompanha este interesse pela respiragáo. A Sociedade
cárceres húmidos e nauseabundos. O resultado, é claro, é mediocre: Hales evo­ de Medicina de Paris julga combater uma doenga em crescimento quando ofe-
ca apenas o «mau ar» quando o que existe é uma infecgáo bacteriana invisível
rece um prémio ao melhor ensaio escrito sobre a tísica pulmonar. O texto de
para as ferramentas mentáis do século xvm.
Baumes, conservado pela obtengáo do prémio em 1783, confirma desde as pri­
As tentativas nos barcos negreiros provocam resultados mais concretos: a
meiras linhas este juízo alarmado: «A tísica pulmonar é um dos grandes flage­
colocagáo de ventiladores que animam o ar dos poróes e das entrecobertas (pe­ los da humanidade, pela sua natureza e pelos seus resultados.» 25 Faltam os nú­
sadas caixas de abeto munidas de válvulas e obturadores movidos á forga de meros que indiquem a extensáo real do contágio. Vários índices, no entanto,
bragos) é vista como causa de grande redugáo da mortalidade entre os escravos sugerem o avango do bacilo tuberculoso nos terrenos gradualmente abandona­
amontoados, que o Almirantado adopta por volta de 1750 l8, ñas embarcagoes dos pela varióla no final do século: evocagáo crescente da lesáo pulmonar nos
militares e mercantis. O navio, com a sua promiscuidade, ambiente fechado que
Affiches, Annonces etAvis divers e na Gazette Santé, propostas de remédios cada
aproxima hálitos e cheiros. que mantém estagnagoes e humidades, abafando a vez mais específicos para a combater e prevenir, insistencia sobre os testemu-
atmosfera ao ritmo da viagem e das suas etapas, é entendido, no século xvm,
nhos que comparam o seu estado presente ao seu estado passado. A afirmagáo
Corbin mostra-o claramente, como o exemplo canónico dos confinamentos 19. de Duplenil, por exemplo, o tradutor de Buchan em 1870: «Ainda que esta doen­
Várias máquinas sáo testadas para a refrigeragáo dos poróes durante a segunda
ga seja menos conhecida em Franga [do que em Inglaterra], apesar disso náo há
metade do século: das primeiras válvulas de Hales ás fórmulas mais «cómo­
ninguém que náo se aperceba que ela é ai mais frequente do que outrora.» 26
das», como as tomadas de ar na ponte, captando o fluido para o difundir por
«condutas internas até ao fundo dos poróes» 20.
Uma muito lenta instrumentagáo alcanga os locáis colectivos: colocagáo do
A morfología inquietante
ventilador de Désaguliers em 1740 na Cámara dos Comuns em Londres e no
Hospital de Winchester 21, disposigáo de cúpulas de arejamento no Hospital Náo é a im portancia do ar o que, em primeiro lugar é salientado, no sé-
Saint-Louis e ñas Escola Real Militar 22, e colocagáo de «ventosas» ainda na culo xvm, para denunciar a tísica. Bender insiste em 1759, na alimentagáo. Ele
sala Lancry do Hospital parisiense em 1748 23. Duhamel du Monceau, inspira­
descreve a forma como o recurso regular a um copo de vinagre para diminuir
dor dos arranjos na sala Lancry, mostra a forma como um fogáo colocado no
«uma gordura que lhe desagradava» levou-o á doenga pulmonar de uma jovem
celeiro é posto em comunicagáo com as tubagens de arejamento provocando,
mulher «que gozava, no entanto, de uma saúde perfeita» 27. Buchan acusa tam­
neste caso, aspiragáo e circulagáo do ar, uma chaminé muito especial encarre­ bém a alimentagáo, os alimentos de «alto gosto», os licores e as carnes animais 2S:
gue de fazer desaparecer o ar das gangrenas e das febres.
estes géneros multiplicam as febrilidades desencadeando os escarros de sangue
que trazem a doenga. Um perigo ao qual o senhor Fauvel, confeiteiro parisien­
15 J. A rbuthnot, op. cit., p. 137.
se, pretende responder em 1778 com a invengáo de uma pasta suficientemente
16 G azette de santé, 1773, p. 201. Ver tam bém A. C orbíri, L e M iasm e et la Jonquille, P a ­
ris, A ubier, 1982, pp. 29-30.
doce para acalmar ou mesmo prevenir a tosse dos «tuberculosos»: trata-se de
17 C itado p o r G. R attray Taylor, op. cit., p. 87. uma «feliz combinagáo do amido da batata e da polpa da magá reineta, própria
18 «L a ventilation des vaisseaux», G azette de sainté, 1773, p. 222.
19 A . C orbin, Le M iasm e e t la Jonquille, op. cit., p. 56.
24 L. S. M ercier, op. cit., t. vm , p. 310.
20 «L a ventilation...», G azette de santé, op. cit., p. 221.
25 J. B. B aum es, D e la p h tisie pulm onaire, M ontpellier, 1 7 8 3 ,1 . 1 , p. 1.
21 J. C. P ingeron, op. cit., t. n, p. 367.
26 J. D . D uplanil, nota ao texto de G. B uchan, op. cit., t. n, p. 113.
22 N . Jacquin, D e la santé, ouvrage utile á tout le m onde, Paris, 1762, p. 79.
27 B. B ender, E ssai théorique et p ratique su r la phtisie, P aris, 1759, p. 34.
23 H. L. D uham el du M onceau, op. cit., p. 80.
28 G. B uchan, op. cit., t. n, p. 113.

150
RESISTIR E ENDURECER AS ENERGIAS DO AR

para todos os sujeitos magros, biliosos, secos e exaustos, aos que tém o sangue O ar preventivo da tísica
azedo e que precisam de um alimento capaz de nutrir e ao mesmo tempo sua­
vizar, a grande massa dos humores» 29. E a mudanga do ar, em definitivo, que parece poder aligeirar a opressáo dos
Os principios de forga física mobilizam ainda as preocupagóes com o cui­ tuberculosos depois de 1760-1770. E a passagem de um «ar denso a outro me­
dado e com a prevengáo: reafirmamento corporal e restituigao do tónus ás fibras nos espesso» ,7. É a vizinhanga das colinas e das ribeiras e a estadia nos éteres
e aos ñervos. Cario Gozzi, literato prolífico e buligoso, explica em 1770 como livre e leves. Gilchrist recenseia em 1770 os casos de curas obtidas depois de
«uma forma de vida regular e montar a cavalo tres horas todos os dias» 30puse- longas travessias de barco 3S. Baumes afirma ter ele próprio vencido a expecto­
ram fim á expectoragáo de sangue que contudo, se agravara nele desde algum ragáo de sangue, aos dezoito anos, por montar todos os dias a cavalo, mas tam­
tempo. Tissot multiplica os exemplos de passeios a cavalo considerados bené­ bém por percorrer regularmente de barco um grande lago atravessado pela bri­
ficos, fazendo mesmo da equitagáo «o verdadeiro remédio eficaz para esta sa 39. Lepecq de La Clóture apresenta os pescadores de Polet perto de Havre
doenga» 31. como os bem salvaguardados da tísica, gragas ao ar sempre agitado que respi-
O que se reconhece cada vez mais na doenga pulmonar é sobretudo o facto ram 40.
de ser constituida por etapas sucessivas, referenciáveis fases lentas, as primei- Contrariamente á tradigáo, as qualidades do ar já náo se limitam ao seu per­
ras das quais parecem sempre insignificantes: uma tosse áspera acompanhada fume. É o que afirma Julie de Lespinasse, meses antes da sua morte, em 1775,
de «expectoragáo mais ou menos abundante», alguma opressáo no peito e um quando, vencida pela tosse e pela consumigáo, o jardim das Tulherias lhe surge
gosto amargo na boca, «sem nenhuma irritagáo sensível»32 no seu conjunto. Tal como um bálsamo, depois de abandonado pela multidáo. O ar estagnado da ci­
seria a primeira etapa: síntomas benignos que, no entanto, iniciam no doente a dade ai reencontraría a vibragáo e a liberdade: «Prefiro respirar o ar suave e
propensáo para uma quebra gradual. Contrariamente á peste ou ás bexigas, es­ puro das Tulherias á hora em que ai se está praticamente só .» 41 A circulagáo do
tas primeiras manifestagóes da tísica sáo sempre discretas, por vezes menos ar é indispensável. Na sua falta os Annonces de Paris sugerem em 1766 uma
insignificantes. Trata-se de uma nova categoría de doengas: as da lenta deterio- «máquina pneumática» que agite o ar junto do rosto dos doentes pulm onares42.
ragáo e do definhamento gradual cujos primeiros sinais sáo, de inicio, imper- A evocagáo das causas da tísica conduz, aliás, a um novo recenseamento dos
ceptíveis. A doenga mortal abandona aqui o terreno das violencias antigas. A en- ares perigosos na segunda metade do século xvm. As atmosferas abafadas pa­
fermidade toma-se mais secreta, senáo mais íntima 33. recem ser as mais alarmantes: as oficinas que obrigam á «inspiragáo de molé­
Daí, a dúvida dirigida mais do que anteriormente para as opressóes, as tos- culas vegetáis», como as dos moleiros e dos peneireiros de gráos; as oficinas
ses repetidas e os episodios febris: a inquietagáo do cavaleiro de Faublas, por que obrigam á «inspiragáo de moléculas animais», como as dos correeiros e dos
exemplo, no romance de Louvet, em 1786, ao reconhecer a febre mínima, mas sapateiros, ou as «moléculas minerais» ainda como as dos ceramistas e dos es­
persistente, instalada numa sua amiga: «E se o perigo se tom ar ainda maior! Se cultores, suscitam insistentes inquietagóes 43.
a marquesa, na flor da idade, perecer consumida pela lenta doenga!» 34 Daí a A sensagáo respiratoria, enfim, para além do próprio odor, é evocada como
atengáo reservada, mais do que antes, aos sinais anunciadores, aos emagreci- índice de alerta. Meister diz concretamente provar o ar desencadeador da tísica
mentos persistentes e ás morfologías frágeis: «Os que tém o peito estreito e cha­ quando visita a Inglaterra em 1795; um ar «reconhecido» pelas dores de gar­
to, os ombros elevados como asas de morcego sáo ordinariamente vítimas des- ganta e pelos incómodos sofridos. Ele denuncia a «fuligem» e os «corrosivos»
ta doenga» 35; os que tém «o pescogo muito comprido» 36 e o fólego muito breve que saturam o céu inglés, e que provocam sensagóes identificáveis: todos estes
também. A atengáo á respiragáo impoe-se de forma incontomável. A observa- «vapores se agarram ás membranas mais susceptíveis como vos apercebeis com
gao atravessa o olhar já dirigido, ao mesmo tempo, para as silhuetas do enfra- muita facilidade ao acordar pela manhá» 44. Já náo as brumas e as nuvens da at­
quecimento e para as posturas forgadas. mosfera apenas, mas as percepgóes internas que desencadeiam.

29 La G azette de santé, 1778, p. 87.


30 C. G ozzi, M ém oires inútiles, chroniques indiscrétes de V énise au x v m e siécle, 37 D ictionnaire p o r ta tif d e santé, op. cit., t. II, p. 295.
Paris, Phébus, 1987 (1.a ed. italiana, 1797), p. 212. 38 E. G ilchrist, U tilité des voyages su r m er p o u r la cure des dijférentes m ala d ies e t no-
31 S. A. T issot, A vis a u peuple..., op. cit., t. I, p. 95. ta m m en t p o u r la consum ption, L ondres, 1770.
32 A rt. « P h tisie », D ictionnaire p o r ta tif de santé, Paris, 1761, t. n, p. 282. 39 J. B. B aum es, op. cit., p. 213.
33 O livro de C. H erzlich e de J. P ierret, M alades d ’h ier et M alades d ’a u jo u rd ’hui * L. L epecq de L a C lóture, C ollection d ’observations su r les m aladies et constitutions
(P aris, Payot, 1984), m arcou efectivam ente estas diferen$as e o p o sijo es. épidém iques, R ouen, 1778, p. 172.
34 J.-B . L o u v et de C ouvray, A m o u rs du ch eva lier de F aublas (1786), R om anciers du 41 J. de L espinasse, C arta d e 28 de F evereiro de 1775, Lettres, op. cit., p. 183.
X V l l l' siécle, P aris, G allim ard, L a P léiade, 1965, t. n, p. 594. 42 A ffiches, A n n o n ces e t A vis divers, 1766, p. 123.
35 D ictionnaire p o r ta tif d e santé, op. cit., t. II, pp. 283-284. 43 J. B. B aum es, op. cit., pp. 221-222.
36 B. B ender, op. cit., p. 5.
44 H. M eister, S ouvenirs de m es voyages en A ngleterre, Paris, 1795, p. 32.

152
RESISTIR E ENDURECER AS ENERGIAS DO AR

3. O T R IU N F O D O E S P A D O E D O A R Uma leitura mais atenta mostra. no entanto, verdadeiras mudangas nestes re-
censeamentos médicos. A linguagem fibrilar, por exemplo, impoe-se com maior
A investigado que a Academia de Medicina langa em 1776 para isolar a ori- firmeza na descrigáo do corpo: os habitantes da Haute-Auvergne, habituados
gem das epidemias traduz a importancia atribuida aos efeitos do ar. No entan- aos ares frios e vivazes, apesar do «céu frequentemente enevoado», possuem
to, a ambigáo é mais ampia. Trata-se da primeira investigagáo sanitária organi­ «fibras fortes, massivas e pouco irritáveis» 50. Os pescadores de Marselha, ha­
zada por uma instituigáo médica. índice de mudanga de cultura, a media mostra bituados aos ventos secos e ás atmosferas vaporosas, possuem uma «disposigáo
o quanto a medicina é contagiada pela preocupagao com a medigao, seduzida vibrátil» 51 que lhes dá calor e firmeza. Os correspondentes médicos confirmam
pelo cuidado de informar e sobretudo, de agir sobre o meio. Vicq d ’Azir, no- a mínima importáncia dada aos humores.
meado «Comissário Geral das Epidem ias»45, apresenta o seu questionário a inu- A mudanga mais importante é a remodelagáo dos espagos que inúmeros mé­
meráveis correspondentes locáis. Centenas de médicos recensearam deste modo dicos projectam: uma acgáo directa sobre o meio. Raymond procura os «meios
as doengas sazonais das suas cidade e aldeias, assinalaram o horário das marés, para corrigir o clima da cidade» quando efectúa a topografía médica de Marse­
a forga dos ventos e a quantidade das chuvas. A sua informagáo estendeu-se ao lha em 1777: ele lamenta a orientagáo das rúas, o desnudamente da colina e a
estado das rúas e das habitagoes, aos «alimentos diários» e ao desenvolvimen- «subversáo» do Mistral; propoe a «plantagáo de árvores como mais de cento e
to dos trabalhos e dos dias. O conjunto destas informagóes criou um género, o vinte anos» 52, o levantamento de muros, o aumento do número de fontes e a
das «topografías médicas», sínteses que incentivam os primeiros balangos sani- suavizagáo do ar avivado pelo sol e pelo vento. Hallé indica igualmente os sa-
tários efectuados sobre uma comunidade. neamentos possíveis quando visita as margens do Biévre por ordem expressa da
Trata-se da perspectiva de um «Estado higienista» o que aqui se desenha, o Sociedade Real de Medicina em 1789: afastamento dos moinhos que lhe dirni-
Estado que procura mudar o homem «através de uma acgao bem calculada so­ nuem o curso, atulhamento dos canais laterais que lhe retém os miasmas, cna-
bre o meio do individuo» 46. É o projecto que retomam os revolucionários e o gáo de um declive mais uniforme para lhe acelerar a corrente. Hallé está cons­
Estado do século xix: «É preciso que a higiene aspire ao aperfeigoamento da ciente de um papel em gestagáo, ou de uma colaboragáo entre o médico e o
natureza humana em geral.» 47 político. Ele coloca-se como «interlocutor» do poder, sugerindo o «aconselha-
mento dos artistas» 53 que estariam encarregues dos trabalhos. Isto multiplica
também os projectos utópicos: os dos grandes ventiladores colocados ás esqui­
A diferenga dos lugares nas da rúas, por exemplo, animados pela forga de moinhos hidráulicos, ou as
bombas do abade Mandres concebidas para agitar as águas estagnadas, ou
Há, em primeiro lugar, muito de tradicional nestas topografías provincianas. os grandes véus de gaze movidos por meio de cordas, feitos para renovar o ar
Elas igualam o homem á sua térra: ele cresce como crescem as árvores, vegeta dos edificios públicos54. ,
como o humus. Os habitantes das zonas costeiras sáo magros no «seu solo seco De facto, a cidade muda, na segunda metade do século xvm. O ar e ai re­
e árido», na provincia de Nice, enquanto que no solo vizinho, mas já dispendio­ pensado. Os conjuntos arquitecturais sáo largamente modelados pelo preceito
so e regado dos campos de Mentón, sáo «gordos, rotundos e de uma maior esta­ médico. Os piojectos de Ledoux pretendem banir as rúas estreitas acusadas de
tura» 4S, e no vale húmido de Montmorency sáo «sombríos e pesados»49. É o úl­ manter «a parede oposta táo perto que comprime os pulmóes, restringe as facul-
timo grau do interesse desde há muito votado ás atmosferas e aos climas: as dades e repercute os bafos contagiosos que encerra» 55. A existencia de ossários
«saúdes», os modos de andar e as energias físicas variam segundo o horizonte e de tumbas mantidas no coragáo das cidades é igualmente menos suportada.
das térras e dos idiomas próprios de cada provincia. A investigagáo quase náo A morte de várias pessoas em Janeiro de 1774 é atribuida á mera frequéncia da
dá nenhuma síntese, e as indicagóes sobre as geadas quase náo dáo esclareci- igreja de Nantes: o corpo de um senhor «morto de febre pútrida», em Dezembro
mentos sobre as epidemias. de 1773, enterrado sob as lajes teria «envenenado» o ar do lugar santo 56. E des­
ta forma que, sob o controlo da Sociedade Real de Medicina, é encerrado e em
45 J. M eyer, «L’enquéte de l ’A cadém ie de m édecine sur les épidém ies, 1774-1789», M é-
decins, C lim at e t É pidém ies á la f in d u x v u ie siécle, Paris, M outon, 1972, p. 9. 50 M . de B rieude, «T opographie m édicale de la H aute-A uvergne», ibidem, 1782-1783,
46 P. R osanvallon, L ’E ta t en F rance d e 1789 á n o s jo u rs, Paris, Éd. du Seuil, col. «Points
p 299
E ssais», 1993 (1.a ed., 1990), p. 121. 51 R aym ond, «T opographie m édicale de la ville de M arseille», ibidem , M i l , p. 105.
47 G. C abanis, R apport du p h y siq u e e t du m oral de l ’hom m e (1802), O euvres philoso-
52 Ibidem , p. 130.
p h iq u e s de C abanis, Paris, PU F, col. «C orpus des philosophes fran^ais», 1956, t. i, 53 N . H allé, «V isite le long de la B iévre», ibidem , 1789, p. L x x x v m .
pp. 356-357. 54 J. B. B anau e A. F. T urben, M ém oire su r les épidém ies du Languedoc, P aris, 1786,
48 F. E. Fodéré, Traité d e m édecine légale e t d ’hygiéne publique, Paris, 1813 (1.a ed.,
pp. 29, 53, 84.
1802), 1 . 1 , p. 48. 55 C. N. L edoux, L ’A rchitecture considérée sous le rapport de l ’art, des m oeurs et de la
49 L e R. P. C otte, «T opographie m édicale de M onm orenci», H istoire et M ém oires de la
législation, Paris, 1 8 0 4 ,1 . 1 , p. 70.
S o c ié té royale de m édecine, 1779, p. 83.
56 G azette de santé, 1777, p. 136.

154 155
RESISTIR E ENDURECER AS ENERGIAS DO AR

seguida exumado e deslocado o cemitério dos Saints-Innocents em 1786. Mer­ do, 9,3% 62. O personagem adquire um prestigio inédito. Dufort de Chevemy é
cier dá-nos uma descrigáo alucinada: «Sob os archotes acesos apresentam-se tocado, em 1752, pela forma como o médico Dumoulin, vindo de Paris a Ver-
fossas imensas abertas pela primeira vez, restos de ossadas, fogos dispersos. salhes com «sapatos de camponés e uma espessa veste cor de café que nunca
Tratava-se de formar um leito de várias polegadas de cal e com ele encher trin- largava» 61, ordena «como um déspota» o regime que o delfim deve seguir para
cheiras profundas.» 57 A transferencia dos corpos, amontoados em carruagens as suas bexigas. Dumoulin atemoriza um séquito que lhe obedece. Este aumen­
cobertas de panos negros, tem lugar a partir de 7 de Abril de 1786, desde os to de prestigio é, aliás, confirmado pelas trajectórias da vida dos médicos do sé-
Saints-Innocents até ás catacumbas, de noite, sob a direcgáo do clero. A teoría culo xvm. Louis Bagot, nascido em 1728 de uma familia sem fortuna, é o exem­
do ar metífico impoe, pela primeira vez, o afastamento dos mortos para fora da plo mais característico. Cirurgiáo da marinha mercante, trata os escravos dos
cidade. Impoe também a derrocada de pontes no último decénio do século: sen­ barcos negreiros por volta de 1750. Regressado aos estudos, é recebido como
do a demoligáo das casas julgada necessária para a circulagáo do a r 58. médico na Faculdade de Reims, em 1762, antes de se instalar em Saint-Brieuc
E efectivamente o ar o que se mantém no centro das preocupagóes dos mé­ e de ai se tomar um notável apreciado. O nivel da sua vida cresce regularmen­
dicos do final do século xvm, mesmo quando debatem as quantidades de água te: nenhum criado em 1762, uma criada em 1764, duas em 1768. A sua in­
necessárias á cidade. Menuret de Chambaut náo tem outro objectivo quando se fluencia aumenta também: faz-se inocular publicamente em 1763 com a mulher
felicita com a presenga de um «depósito de água» na Rúa Vivienne, em 1785. e os filhos, para servir de exemplo e superar melhor as reticencias populares.
O líquido deste grande reservatório, que fugia pelos seus intervalos, corría pelo A sua eleigáo como presidente do Municipio de Saint-Brieuc em 1794, enfim,
pavimento multiplicando os fluxos e os canais antes de arrastar a poeira e o sanciona o crédito pacientemente acumulado: o antigo cirurgiáo de escravos fez
lodo: «O que seria muito mais precioso durante o calor, quando os maus odores o seu percurso de honras M. Outras figuras confirmam estas ascensóes. Thouret,
tém mais vigor e sáo mais perigosos.»59 O papel da água limita-se ao apagar dos médico em Caen, director da Escola de Saúde em Paris, em 1794, depois tribu­
odores. A sua substancia náo inquieta directamente, desde que ela esteja sempre no e membro do Corpo Legislativo 65; ou Hallé, acolhido pela Sociedade Real
em movimento. Banau e Turben pretendem, aliás, que a água tirada do Sena, de Medicina, antes mesmo de ser médico, ocupando de seguida a primeira ca-
trezentas toesas abaixo do esgoto do hospital, pode ser bebida sem perigo 60. deira de higiene, em 1794, para se tom ar membro da Academia das Ciencias no
A agitagáo sofrida á superficie do leito do rio é o suficiente para a purificar. final do século 66.
É impossível compreender estas novas figuras sem as associar a uma vonta-
de, completamente nova, de difundir o conhecimento médico. A Gazette de
Os médicos da prevengáo Santé, criada em 1773 para chegar «ás gentes do campo» por intermédio «dos
padres, dos senhores e das senhoras caridosas»6 é o exemplo característico des­
A originalidade muito particular desta investigagáo sobre o ar, voltamos a tas expansáo das Luzes. A Gazette quer-se educativa. Ela enumera os acidentes
dizé-lo, é a de confirmar o novo lugar dado ao médico. O seu estatuto já náo é de saúde, as mortes por asfixia, as doengas dos artesáos, o mefitismo dos cemi-
o mesmo no final do século, como já náo é o mesmo o seu papel preventivo: térios e a insalubridade dos pantanos. Ela aponta as receitas preservadoras, a do
homem das Luzes, ele reivindica uma influencia que náo tinha. banho de ar ou do banho frío, como a da farinha de amido e a do vinho de qui­
O aumento do número de praticantes, no século xvm, favorece, sem dúvida, na, publica lista de centenários, descreve as experiencias sobre o ar das monta-
esta afirmagáo. Os números que Catherine Maillé-Viróle calcula para Paris sáo nhas e a gangrena dos hospitais. Ela insiste sobretudo na necessidade de uma
reveladores: menos de 100 no inicio do século, os médicos parisienses sáo 150 maior presenga médica.
em 1780 e sobretudo 172 em 1789 61. Progressáo mais nítida ainda no caso dos A condenagáo da «medicina de si próprio», argumento regularmente repeti­
cirurgióes: 235 em 1715, 466 em 1789. Números semelhantes para Caen onde do depois de 1770, confirma esta insistencia: as dietas sem controlo e os regi­
Jean-Claud Perrot constata um aumento de 38,7% do pessoal médico entre mes sem aconselhamento seriam os mais perigosos. Só o médico deveria apre­
1750 e 1792, enquanto que o conjunto da populagáo aumenta no mesmo perío- ciar e propor: «Náo há pior médico do que o de si próprio e corre-se o risco
de matar-se quando náo se tem as primeiras nogóes da nossa arte.» 68 A Gazette
57 L. S. M ercier, op. cit., t. ix, p. 192.
58 M ouillefarine, M ém oire p ré se n té á l'A ssem b lée nationale le 9 a vril 1790, A N , N III 62 J. C. Perrot. op. cit., t. n, p. 882.
Seine 87, ver tam bém R. E tlin, " 1. air d ans 1 urbanism e des L um iéres» D ix-h u itiém e siécle 63 J. N . D ufort de C hevem y, op. cit., p. 153.
1977, n.° 9, p. 128. 64 J. M eyer, «L e personnel m édical en B retagne á la fin du x v m e siécle», M édecins,
J. J. M en u ret de C ham baut, E ssa i su r 1'histoire m édico-topographique d e P aris C lim at et É pidém ies..., op. cit., pp. 196-201.
Paris, 1786, p. 87.
65 J.-C . Perrot, op. cit., t. n, p. 8 8 8 .
“ J. B. B anau e A. F. T urben, op. cit., p. 50. 66 F. H uguet, L es P rofesseurs de la fa c u lté de m édecine de Paris, dictionnaire biogra-
61 C. M aillé-V iróle, «L a naissance d ’un personnage, le m édecin parisién á la fin de phique, 1794-1935, Paris, INRP, C N R S . 1991, p. 223.
l’A n c ien R égim e», La M édicalisation d e la so ciété fra n ca ise, 1770-1890 W aterloo 1982 67 G azette de santé, 1773, p. 1.
p. 154.
68 Ibidem , 1776, p. 212.

156 157
AS ENERGIAS DO AR
RESISTIR E ENDURECER

de Santé de 1777 ve ai mesmo uma das razóes do «enfraquecimento da espé­ Esta competencia é feita também de intervengóes mais numerosas ñas prá­
cie»: os «dicionários de saúde», essas obras de onde cada leitor extrai o senti- ticas privadas. Os correspondentes de Vicq d ’Azir salientam as suas próprias
mento de poder prevenir as suas doengas, multiplicariam as suas enfermidades, tentativas para influenciar concretamente os gestos populares. Robin de Kéria-
tomando-as mais incontroladas. Uma «medicina posta ñas máos de toda a gen­ valle, médico em Josselin, afirma em 1776 ter insistido junto das autoridades
te» assemelhar-se-ia antes a «uma espada posta ñas maos de um louco» 69. policiais no sentido de evitar as longas e «perigosas» estadias dos mortos ñas
A prevengáo das doengas, tal como a sua cura depende apenas do médico. casas antes do seu enterro 73. Sellier, na sua topografía médica de Amiens, re­
clama o direito dado ao médico e ao cirurgiáo de «mandar abrir buracos nos ta­
biques das paredes dos quartos demasiado estreitos» onde permanecem os
Os médicos do social doentes para melhor «evacuar o mau ar»; os buracos seriam em seguida «veda­
dos á noite com panos» 74 para evitar o frió em demasia.
E, aliás, num vasto controlo dos comportamentos populares que se empe- O asseio do corpo toma-se também numa aposta mais notoria. Uma limpe-
nham os médicos do final do século, recenseando, pela primeira vez, os corpos za limitada, é claro, aos odores e á sua percepgáo. A lavagem dos pés para os
enfraquecidos pelas profissoes. Cada prática provoca as suas desordens. Cada homens do campo e mesmo a troca de meias tidas como limitadoras das epide­
profissáo engendra as suas doengas: os carregadores podem romper as fibras mias do Languedoc para Banau e Turban em 1785 75. Da mesma forma, a troca
dos pulmóes por transportarem peso em demasia; os lavradores podem ficar de roupa interior, o arejamento da roupa de cama sáo reputados como limitado­
com as pemas inchadas por estarem muito tempo de pé; os alfaiates podem ter res das febres para os camponeses da Bretanha que «dormem com os doentes
contorgóes ñas costas por ficarem sentados durante muito tempo 70. Náo que es­ ñas mesmas camas, náo mudam a palha dos seus colchóes com a mesma fre-
tes reparos sejam efectivamente verificados. A evocagáo dos ñervos e das fibras quéncia com que se estraga, e ocupam as camas dos que morrem de doenga» 76.
sugere, neste caso, mais certeza do que observagáo. Um atrito de tecidos, uma A pele comega a tomar-se objecto de atengáo para estes investigadores do final
rotura de filamentos, desenvolvem uma infinidade de inclinagóes e de fricgoes. do século, imaginando em torno déla as primeiras defesas contra a doenga. Um
Winslow demonstra-o com uma das suas doentes, uma jovem mulher de gran­ asseio no contacto, melhor especificado, quando os médicos censuram as par-
de estatura, que tentó executado numerosos trabalhos com a cabega inclinada, teiras do fim do século por negligenciarem a lavagem das máos, denunciando
sem vigiar a posigáo do seu busto, se toma encurvada até á paralisia «deforma­ as suas unhas negras e os seus dedos manchados. Mais do que até ai, a barreira
da a ponto de ter perdido cerca da quarta parte da sua altura» 71. defensiva comega na atengáo á pele e á sua manutengáo, fossem elas pelo me­
A insistencia é posta ainda ñas doengas do cansago: os esgotamento dos jor­ nos para o povo limitadas á mudanga de roupa e á ablugáo das máos 77.
nalemos, a sobrecarga dos carregadores. É de esforgos excessivos que sofre a
vida dos mogos de fretes, de inflamagoes repetidas e de dessecamentos mortais.
Diderot faz disso um elemento do horizonte enciclopédico, pondo em filigrana O ar que «prolonga a vida»
a primeira versáo de uma miséria operária: «Há muitos estados na sociedade
que excedem de fadiga, que esgotam rápidamente as forgas e que abreviam a Uma descoberta, o isolamento do oxigénio por Lavoisier, em 1777, acaba
vida.» Daí os conselhos de regimes diluentes concebidos para trabalhadores por reforgar a imagem do médico melhor instruido, da mesma forma que acaba
de esforgo, as bebidas refrescantes, o soro e a manteiga tidos como opositores por salientar a nova importáncia do ar. A constatagáo de Lavoisier transforma o
aos efeitos das fricgoes sofridas pelos órgáos. Daí ainda a sugestáo de limitar sentido da respiragáo: já náo é um simples mecanismo da refrigeragáo do san­
toda a acgáo penosa, de lhe repartir a intensidade no tempo, de lhe prever a di- gue, já náo um simples principio de fólego que assiste o coragáo, a respiragáo
visáo em porgóes. Preceito erudito, é claro, preocupagáo de enciclopedista e, toma-se fonte directa de energia e de forga. O oxigénio alimenta a química do
mais raramente, conduta dos operários confrontados com as tarefas das oficinas músculo. Dá-lhe o seu fogo, transformando o acto respiratorio em acto motor.
e com a sua miséria, mas que confirma até que ponto a competencia do médico A necessidade de oxigénio varia, aliás, segundo as circunstancias: um esforgo
penetra largamente os comportamentos. físico maior tem como consequéncia, um consumo maior deste ar muito parti­
cular. Lavoisier verifica-o através do número: o oxigénio necessário durante um
65 Idem.
73 J.-P. G oubert, M alades et M édecins en Bretagne, 1770-1790, P aris, K lincksieck,
70 «L es travaux du corps», in É. T ourtelle, É lém en ts d ’hygiéne ou de l ’influence des cho-
ses p h y siq u e s et m o rales s u r l ’hom m e, e t des m o yen s de co n server la santé, E strasburgo p. 193.
1797, t. n, p. 221. 74 Sellier, «T opographie m édicale d ’A m iens», Le Journal encyclopédique, 1981, t. II,

71 J. B. W inslow , «M ém oire sur les m auvais effets de l ’usage des corps á baleines», M é ­ p. 503.
75 J. B. B anau e A. F. T urben, op. cit, p. 20.
m oires de l ’A ca d ém ie des sciences, Paris, 1741, p. 239. A tra d u já o em F ra n ja do livro de B.
76 C itado por J.-P. G oubert, op. cit., p. 161.
R arriazzini, L e s M aladies des artisans (Paris 1772, 1.a ed., 1700), m antido durante m uito
77 J. G élis, L ’A rbre et le Fruit, la naissance dans l'O c cid en t m o d e m e (x v i‘-xrxe siécles),
tem po sem equivalente, desem penhou, sem dúvida nenhum a, um papel nestas análises.
72 D . D iderot, R éfutation d ’H elvétius, O euvres..., op. cit., t. XI, p. 458. Paris, F ayard, 1984, p. 217.

159
158
RESISTIR E ENDURECER AS ENERGIAS DO AR

exercício de elevagáo de pesos aumenta «na razáo directa da soma dos pesos Calcular o risco
elevados até uma altura determinada» 78. Impóem-se em absoluto as diferengas
de consumo «em fungáo da idade, da saúde e do vigor» 79. Também uma aten­ Tentar ligar os riscos de tísica á forma das silhuetas, como o fazem Baurnes
gáo muito especial ao oxigénio, ao seu uso, ás suas quantidades poderia favo­ ou Bender 84, é definir as populagoes mais susceptíveis do que outras de serem
recer a preservagáo de si mesmo. atingidas; tentar ligar o aparecimento de doengas precisas ao exercício de pro-
Este ar laboriosamente ¡solado toma-se para Priestley um prodigioso elixir fissóes também elas precisas, como fazem Ramazzini, Tourtelle ou Winslow 85,
de vida. O pastor inglés, químico de génio nos seus tempos livres, acumula o é, igualmente, focalizar as probabilidades de ataque, orientar toda a atengáo
precioso líquido num sifáo de vidro, respira-o abundantemente e dele tira algu­ para o «possível». Nos dois casos, a previsáo é melhorada. O aprofundamento
ma forga desconhecida: «Parece-me que o meu peito se encontra singularmen­ da diligéncia preventiva é feita de uma exigéncia quase impalpável: a da pers­
te libertado e cómodo durante algum tempo.» 80 Priestley pensa dispor de uma pectiva temporal, a da revelar a doenga antes mesmo que ela seja declarada. Já
nova arte de prolongar a vida: «Quem pode garantir que em seguida este ar puro náo a simples defesa contra ela, mas repelir ao máximo a sua possível aparigáo,
nao se venha a tomar um objecto de luxo muito divulgado?» 81 jogar com o tempo para lhe prevenir melhor a presenga. O uso de objectos pro­
Várias tentativas foram feitas com os tísicos por volta de 1780. Caillens pro- tectores na Idade Média correspondía já a este esforgo de indicar os riscos. As
jecta-lhes sobre o rosto o fluido «purificado»: «Vi, como por encanto, o doente quarentenas e os isolamentos sáo outras maneiras de «preceder» os perigos epi­
restabelecer-se pouco a pouco.» 82A Gazette de Santé repercute com insisténcia démicos. A previsáo existe, é claro, desde há muito tempo. Mas o século xvm
práticas do género, arriscando a descrigáo de bombas complexas propostas por revela, a este respeito, uma originalidade que se toma necessário precisar mes­
alguns médicos industriosos. Uma inalagáo «purificada» pela química pode mo que os autores da época nem sempre consigam explicitar: esta originalida­
salvar: «Viram-se doentes perto de sufocarem, com pouca respiragáo, resta- de prende-se com a estratégia temporal.
belecerem como por encanto, respirando de tempos a tempos o ar sem logísti- A inoculagáo, em primeiro lugar, constitui o próprio exemplo da tentativa de
co, curando-se totalmente em muito poucos dias.» 83 Mas o ar «eminentemente anular uma doenga a surgir: proteger o corpo contra toda a ocorréncia, trans-
respirável» náo pode ser simplesmente manipulado e bem raros sáo os que o uti­ formando-o a partir do interior. Ela é acompanhada pelo primeiro cálculo sobre
lizara regularmente por volta de 1780. o risco da varióla numa dada populagáo e, ainda, pelo primeiro cálculo sobre o
risco de insucesso do próprio gesto inoculador. É em percentagem que se enun­
cia, neste caso, o possível e o provável da doenga. O reparo de Jurin, em 1725,
4. G A R A N T IA S E P R E V IS Ó E S já evocado, ao afirmar que a décima quarta parte do género humano morre de
vanóla, enquanto que apenas um em cada cinquenta morre da inoculagáo, resu­
Para lá da renovagáo do ar, para lá da transformagáo dos espagos de vida, me toda a originalidade do raciocinio 86. Da mesma forma, a investigagáo da
opera-se no século xvm um trabalho gradual contra as doengas, do qual nem os Academia Real, em 1776, ao estabelecer tabelas de concordancia entre a apari­
próprios actores tém sempre consciéncia: este trabalho incide sobre a previsáo. gáo das doengas e os episodios do ambiente, ensaia-se no cálculo do risco. Os
Aprecaugáo está directamente centrada no risco: a eventualidade do insucesso. seus resultados sáo aleatorios, táo caóticos e limitados sáo os episodios retidos:
Está também centrada nos sinais, aqueles que revelam o perigo antes mesmo direcgáo dos ventos, secura ou humidade dos solos, duragáo das chuvas, dos ne-
que ele aparega. Nenhuma ciéncia «epidemiológica» vem federar estes gestos voeiros, frequéncia das trovoadas e das tempestades, mas a tentativa de prever
dispersos. Nenhuma categoría específica do saber os representa nos tratados de busca efectivamente os seus números e as suas leis 87.
saúde da Europa das Luzes apesar de serem, no entanto, largamente ¿novado­ Até á descrigáo dos síntomas, que é renovada na segunda metade do sécu­
res. O raciocinio que assinalam acrescentam uma perspectiva suplementar aos lo xviii. Náo pretende Buchan descrever na sua Médicine doméstique, os «sín­
temas táo esmiugados da saúde: a perspectiva de prevengáo. O investimento no tomas precursores e anunciadores das doengas graves» 88 para antecipar melhor
futuro favoreceu, sem nenhuma dúvida, este raciocinio. o seu perigo? Intengáo completamente teórica neste caso: o conhecimento, em
1780, dos primeiros sinais da «incontinéncia da urina», da «desinteria» ou da
«cardialgía», pouco melhora ainda a sua prevengáo. O raciocinio antecipador,
em compensagáo, sistematizou-se. O passo da previsáo toma-se mesmo táo le­
gítimo que, uma outra atitude, completamente inovadora também, pode nascer
78 A . L. L avoisier, M ém oire su r la respiration, Paris, 1790, p. 142.
cerca de 1770: a da garantía contra a doenga.
79 Idem.
80 J. Priestley, E xpériences e t O bservations su r dijférentes espéces d ’air, Paris, 84 Ver p. 151.
1777-1780 (1.a ed. inglesa, 1774-1777;, 1 . 1 , p. 126. 85 Ver p. 158.
81 Idem . 86 J. Jurin, op. cit., p. 14.
82 G azette de santé, 1783, p. 38. 87 Ver p. 154.
83 Ibidem , 1788, p. 67. 88 G. B uchan, op. cit., t. II, p. n.

160 161
RESISTIR E ENDURECER

A seguranza e o operário

A previsáo, neste caso, náo é feita para evitar directamente a doenga, mas
antes para lhe atenuar os efeitos: preservar uma saúde «mínima» apesar dos ata­
ques ou, melhor ainda, preservar as energias da vida apesar da presenga da
doenga. É em tomo do trabalho e dos seus perigos que nascem estas «garantías»
modernas.
A companhia de Saint-Gobain aplica um sistema de assisténcia médica para
os operários antes de meados do século xvm. Mas os mestres alfaiates de Lon­
dres e de Westminster sáo os primeiros, em 1770, a propor uma prática salarial
que incluía explícitamente a preocupagáo com a saúde. Os companheiros pres- QUARTA PARTE
sionaram-os, lamentando-se das fadigas e das mortes precoces, pretendendo
mesmo recusar o pagamento de patente se náo fossem largamente protegidos. A FO R£A DE SI E A FOR^A DOS OUTROS
Os mestres hesitaram, resistiram, mas cederam, empenhando-se em confortar
os operários em caso de enfermidade, de sustentar os operários envelhecidos e S É C U L O S X IX
enfraquecidos. O plano precisado e calculado: 6 shillings e 6 pence pagos se­
manalmente durante os primeiros seis meses de doenga, 5,3 durante os meses
seguintes, 3,6 para os que ficarem inválidos 89. Os alfaiates londrinos inventam
o primeiro seguro de trabalho. Sáo eles que pela primeira vez tomam em conta
a vida privada dos operários, associando-a ao trabalho. É que há um dever es-
tritamente pessoal, que é exigido a estes companheiros alfaiates, pagos pelos
seus mestres: eles empenham-se, pelo seu lado, em garantir ao máximo a inte-
gridade do seu próprio corpo. Náo seriam «segurados» aqueles que «pelo desre-
gramento de costumes e mau género de vida viessem a arruinar a sua saúde, e se
encontrassem assim, por sua culpa, na situagáo de náo poderem trabalhar» 90.
Criado o plano de novos auxilios, sáo também criados novos controlos. No fun­
do, ele inaugura uma prática inédita de «autocontrolo». Os operários alfaiates
tém de respeitar um regime de vida. Tém que «moderar-se». O regulamento in­
glés tem poucos equivalentes ainda, no final do século xvm, mas indica o quan­
to o seguro sobre a doenga está ainda ligado á moral. Oberkampf diz a mesma
coisa quando reorganiza a sua manufactura de tecidos estampados em Jouy, em
1790: «Aqueles cuja conduta terá sido irrepreensível, se adoecerem, seráo pa­
gos como em estado de saúde.» 91
Pela primeira vez, o auxilio salarial é conjugado com a exigencia de uma
auto-vigiláncia física. Defínigáo «negativa», em suma, onde o dever é, acima de
tudo, o de evitar o deboche. Mas a atengáo ás «doengas dos artesáos» determi­
na, melhor do que nunca a prevengáo da saúde tanto nos gestos do operário
como nos do mestre. Gradualmente o operário toma-se responsável pelo seu
corpo, vigiado pelo mestre, para melhor garantir o trabalho.

89 «E tablissem ent ch aritable des m aítres tailleurs de L ondres», Jo u rn a l économ ique,


1770, p. 369.
90 Idem.
91 C. P. O berkam pf, «P roclam ation du 17 m ars 1792», citada p o r S. C hassagne, O ber­
kam pf, un entrepreneur c a pitaliste au siécle des Lum iéres, Paris, A ubier, p. 254.

162
CA PÍTU LO I

ESPADO ÍNTIMO E ESPADO PÚBLICO

As epidemias mudam de leis, no inicio do século xix, mesmo que as suas


causas sejam, como anteriormente, atribuidas ás mutagóes do ar. A condessa de
Dash mostra-o, ao explicar o seu terror durante a cólera de 1832. Ele diz temer
os efluvios e os miasmas. Compra pós, usa almofadinhas perfumadas e inunda
de cánfora os seus móveis e os seus soalhos. Mas atribui sobretudo ás bebedei-
ras, aos bailes de estacada, ás turbulencias e ás negligencias operárias as mor-
tes que ela considera sempre mais numerosas ás segundas e tergas-feiras, depois
dos «excessos» dominicais Sáo os seres deserdados das fábricas, das oficinas
atravancadas que geram os novos focos de inquietagáo, ameagas vindas das zo­
nas obscuras da cidade e já náo apenas das águas estagnadas, dos ventos, das
rúas estreitas ou dos lugares confinados. Os perigos do espago económico pre-
valecem sobre os perigos do espago urbano ou geográfico.
O perigo de os pobres ameagarem os outros agudizou-se bruscamente. Tan­
to a assisténcia, como a disciplina social, adquirem assim outro relevo. E ao
proteger a saúde de alguns, e também ao obsequiar sobretudo os deserdados,
que o investimento nacional conseguirá proteger melhor a saúde de todos. O es­
tado industrial confere deveres a si próprio, combinando auxilios protectores e
vigilancia autoritária. Está em vias de constituigáo uma higiene pública.

1. O E S T A D O « IN D U S T R IA L » E A IN IC IA T IV A P Ú B L IC A

A implacável degradagáo física dos mais desfavorecidos é expressamente


evocada para explicar os desastres da cólera de 1832: «Foram os homens vesti­
dos de túnicas e de andrajos que abriram esta horrível marcha de Paris para a
morte.» 2 Uma partilha cada vez mais agudizada mostra a cólera tomando o es­
pago dos mais pobres, as rúas populares, o «caminho das revoltas e das insur-
reigóes» 3. Era o que Pontard previa em 1809, quando quería explicar a origem

1 C om tesse de D ash, M ém oires des autres, Paris, s.d., 1 . 1 , p. 256.


2 L. B lanc, H istoire de d ix ans, 1830-1840, L ausanne, 1850, p. 177, t. m.
3 F. D elaporte, Le S a v o ir de la m aladie, Paris, PUF, 1990, p. 46.

165
A F O R £A DE SI E A FOR<JA DOS OUTROS ESPADO ÍNTIMO E ESPAQO PÚBLICO

do tifo de Périgueux e a sua influencia em diversos lugares da cidade: «Os sitios febres, os cheiros e as infecgóes provenientes das fábricas, e o perigo dos gé­
por onde tinham passado os prisioneiros espanhóis, sujos, fétidos, cheios de neros falsificados. Paris dispóe mesmo, pela primeira vez em 1802, de um con-
vermes, cobertos de andrajos, as rúas que eles mais frequentaram, os bairros selho de 4 membros, médicos ou administradores assalariados, cujo número se
onde habitaram e os individuos que se relacionaram com eles ou com os doen­ eleva a 18 em 1828 ". Um decreto de 1810 permite hierarquizar os estabeleci­
tes, foram os únicos infectados.» 4 Os pobres desempenham, na cólera de 1832, mentos perigosos: os de primeira classe, os mais insalubres, devem ser repeli­
o papel desempenhado pelos espanhóis no tifo de 1809. Mais do que nunca, as dos para fora das cidades, os de segunda classe deveriam observar as regras so­
epidemias parecem surgir deste «império do mal, estabelecido sob os nossos bre os odores, os fumos e a maceragáo das águas, os de terceira classe, por fim,
o lhos»5. Em 1832 a massa industrial toma-se uma ameaga sanitária. É para me­ sáo simplesmente submetidos a autorizagáo 12. O conselho combina, neste caso,
lhor a gerir que o Estado parece ter-se instituido em «Estado Higienista» 6. policía e saúde, vigilancia e sangóes. A higiene pública, aquela que os dicioná-
rios do século xix dizem englobar «as modificagóes imprimidas ao homem pelo
estado social» 13, possui, pela primeira vez, os seus órgáos de avaliagáo, senáo
Decisoes de governo mesmo de decisáo. As estatísticas obtidas de pois da cólera de 1832 sáo o re­
sultado de novos instrumentos com que o Estado se dotou e dáo testemunho do
A preocupagáo estatística indica claramente as novas partilhas. A centraliza- novo olhar sobre a pobreza: «Verificou-se que nos bairros da praga Vendóme,
gao de dados numéricos sobre as cidades e os campos existe, é claro, desde Vau­ das Tulherias e das Chaussée d'Antan, a mortalidade tinha sido de 8 por mil ao
ban, no século x v i i 7. Mas a curiosidade dos prefeitos, desde os primeiros decé- passo que nos bairros do Hotel de Ville e da Cité, que sáo os da miséria, tinha
nios do século xix, assinala mais do que nunca as consequéncias sanitárias das sido de 52 a 53 por mil.» 14
diferengas sociais, das profissóes e dos gestos económicos. As exploragóes so­ Os efeitos directos do empenhamento público sáo, no entanto, limitados
bre a mortalidade nos distritos ou nos bairros das cidades, os primeiros núme­ neste inicio do século xix. A importancia atribuida ás imundícies e aos odores
ros sobre os ataques da tísica diferenciados segundo as profissóes, indicam os faz sempre obstáculo a uma real compreensáo das transmissóes infecciosas.
efeitos expressamente sanitarios de um «maior bem-estar, de uma sociedade O conselho de salubridade declara inofensivas as «doengas» engendradas pelas
mais civilizada, de uma industria mais avangada» 8. As investigagóes de Viller- fábricas de produtos químicos de Charenton, em 1825, baseando-se apenas nos
mé ou de Frégier sobre as condigóes dos operarios, as de Parent-Duchátelet índices aparentes, aqueles que sáo físicamente provados pelos investigadores:
sobre as condigóes das prostitutas, em 1834, a de Benoiston de Cháteauneuf so­ os eflúvios manifestos e considerados suportáveis, a variedade das plantas ou a
bre as diferengas entre «a duragáo de vida para os ricos e para os pobres»9, em cor dos legumes que crescem á beira dos edificios 15. Da mesma forma, as me­
1832, renovaram largamente as investigagóes sobre o ar, a térra, os climas ou didas tomadas com o anúncio da cólera de 1832 permanecem únicamente cen­
mesmo as cidades, conduzidas no século xvm. Os novos projectos dao uma tradas ñas exalagóes fétidas: «As ruelas mais estreitas, as mais infectas, foram
nova forma ao territorio da higiene pública: trabalhar sobre os refugos da so­ empedradas e encerradas; trabalhos rápidos limparam as imundícies da ilha
ciedade para melhor lhes dominar os perigos, «refugos físicos (imundícies, es- Louviers.» 16A impressáo sensível, o efeito sobre o olfacto influenciam ainda o
gotos, depósitos de esquartej amento), mas também refugos moráis (estivadores, juízo. A cólera é, aliás, declarada náo contagiosa pelos investigadores de 1834,
trabalhadores dos esgotos, trapeiros, prostitutas)» 10. A higiene constrói-se sobre e associada prioritariamente á miséria e ás condigóes de vida 1 .
a avaliagao dos «flagelos sociais»; tudo doengas atribuidas a qualquer zona in­ Mais vastamente é o investimento estatal que impoe os seus limites: como
quietante onde a miséria propagaría a infecgao enfraquecendo-lhes os corpos. poderia ele garantir de repente o aumento dos projectos de saneamento? O fi-
Vigilancia também de alguns estabelecimentos. O Estado possui desde o Im- nanciamento é insuficiente e os intermediários administrativos também. Falta
pério diversos concelhos distritais de salubridade, encarregues de prospectar as criar uma organizagáo, além da necessidade de aumentar as convicgóes, o que
toma inaplicáveis grande parte das proposigóes do conselho de salubridade: a
4 C itado p o r F. E. Fodéré, op. cit., t. v, p. 457.
evacuagáo por meio da chalupas dos lodos parisienses para campos de infiltra-
5 M . P oujalat, Religión, H istoire, P oésie, Tours, 1843, p. 300.
6 P. R osanvallon, op. cit., p. 121. gao, considerada demasiado cara por volta de 1820: a drenagem por esgotos das
7 V er p. 99.
8 P. B uchez e U . T rélat, P récis élém entaire d ’hygiéne, Paris, 1825, p. 33. 11 C onseil de salubrité de la Seine, année 1825, A rchives de la p réfecture de P ólice de
9 L.-F. B en o isto n de C háteauneuf, R echerche su r la consom m ation de tout genre de la Paris.
ville d e P aris en 181 7 com parée a ce qu 'elle était en 1789, Paris, 1820; A .-J.-B . Parent-D u- 12 B. P. L ecuyer, op. cit., p. 84.
chatelet, D e la p rostitution d ans la ville de Paris, Paris, 1836, 2 vols.; H .-A . Frégier, D es 13 A rt. «H ygiéne», D ictionnaire ab rég é de m édecine, op. cit., t. IX, p. 357.
c lasses dangereuses de la p o p u la tio n d a n s les villes et des m oyens de les rendre m eilleures, 14 Ibidem , p. 180.
Paris, 1840, 2 vols.; L.-R. V illerm é, E n q u éte su r le travail e t la condition des enfants dans 15 R ap p o rt au C onseil de salubrité, 1825, op. cit.
les m in e s de G rande-B retagne, B atignolles, 1843. 16 L. B lanc, op. cit., p. 176.
10 B. P. L ecuyer, «L’hygiéne en F rance avant Pasteur. 1750-1850», in C. Salom on-B a- 17 L. F. B enoiston de C hateauneuf, R apport su r la m arche et les effets du choléra m or-
yet, P a steu r et la révolution p astorienne, Paris, Payot, 1986, pp. 125-126. bus d a n s Paris, Paris, 1834, p. 119.

167
A FO R gA DE SI E A FOR£A DOS OUTROS ESPAgO ÍNTIMO E ESPADO PÚBLICO

comunas dos arredores de Paris, considerada também demasiado cara e náo pas- palácio, as bexigas propagam-se a uma aldeia vizinha, apesar das precaugóes
sando de projecto, por volta de 1840. Em compensagáo, é adoptada em 1839, que tinham sido tomadas» 23. A diferenga é capital: a variolagáo obriga o médi­
uma central fechada de esquartejamento, recomendada pelo conselho para reu­ co a transportar a doenga que pretende combater. A vacina, pelo contrário, per­
nir e isolar os matadouros parisienses 18. mite náo «tocar» o virus.
A higiene pública renovou os seus cálculos e as suas vigilancias no inicio do «A extingáo das bexigas» toma-se uma ambigáo, baseada, pela primeira vez,
século xix, mas ainda náo renovou os seus conhecimentos nem instalou todas numa técnica controlada. O projecto de «enfraquecer o flagelo» 24 toma-se ob­
as redes de um a administragáo. jecto das declaragóes oficiáis e dos manifestos eruditos. A enadicagáo da doen­
ga desenha-se como uma conquista possível.
É para a vacinagáo obligatoria que tendem os preceitos médicos. Valentín
A vacina e a rede que se corresponde com Jenner e multiplica as intervengóes em Nancy cerca de
1810, salienta a influencia das vacinagóes pontuais, ainda que fossem numero­
A instituigáo da vacina é o exemplo mais revelador do novo empenhamen- sas. Ele aponta todo o foco como uma ameaga que só a «universalizagáo» da
to estatal, e também o dos seus limites. É que a defesa contra a varióla pode ser vacina poderia afastar: «Apesar de tudo o que pude fazer nesta provincia pela
subvertida desde o fim do século xvm. Tudo se prende a uma constatagáo já an- vacina, ainda aqui temos bexigas. Acabo de tratar uma menina de 32 anos, na­
tiga: os sujeitos que haviam sido vítimas da cow-pox, as bexigas das vacas, turalmente variolada pelo seu jardineiro, cujos setes filhos estavam atacados por
ficam refractários ao virus variólico l9. Eles estáo preservados como os que já esta peste.» 25 Fodéré salienta em 1813 as consequéncias possíveis das vacina­
sofreram a infecgáo. As pústulas localizadas ñas tetas das vacas comunicaram- góes desigualmente partilhadas pelas comunidades: «Vi, nos Alpes marítimos,
-lhes as úlceras ás máos, acompanhadas de uma febre passageira: eles contraí- a pequeña aldeia de Péglion, onde todas as criangas tinham sido vacinadas, fi-
ram a cow-pox, doenga insignificante, mas tornaram-se insensíveis á vanóla, car intacta entre duas outras grandes aldeias vizinhas, Péglia e Contes, que fo-
doenga trágica. Jenner é o primeiro o transpor a constatagáo em experiencia: a ram destrogadas por uma epidemia terrível e que náo tinham querido submeter-
cow-pox inoculada, em Maio de 1796, em James Phipp, uma crianga de oito -se á vacinagáo.» 26
anos, coloca-o ao abrigo do contágio do virus da varióla dois meses mais tarde. Esta obrigagáo seria a primeira do género: pressionar todo o individuo a so-
As vantagens da operagáo impóem-se: benignidade da inoculagáo e eficácia do frer a um ataque físico para evitar a doenga, mas também para a evitar aos ou­
seu efeito. Nasce a primeira vacina. Daí o «sonho» de preservar populagóes in- tros; afectar a carne de cada um no interesse de todos. As propostas multipli-
teiras e o desejo de vacinar colectivamente. cam-se em Franga, desde o inicio do século: seria esta universalizagáo muito
A febre e a borbulha da vacina náo apresentam perigo. As sequelas da ino­ dispendiosa? «Os pais ricos deveriam pagar as operagóes para as criangas po­
culagáo náo exigem particular vigilancia. Os números ingleses servem de con- bres.» 27 Seria a convicgáo do público insuficiente? «E preciso olhar para as
firmagáo, sempre continuados, insistentes e acumulados em poucos meses: os criangas raquíticas cuja saúde foi melhorada pela vacina.» 28 Existe assim, pela
48 habitantes da aldeia de Lowther, vacinados numa assembleia em 1800, ficam primeira vez, uma vontade estatal a favor de uma generalizagáo da vacina.
preservados quando a varióla lhes é comunicada algumas semanas mais tarde20; A circular de Chaptal, em 1804, revela este desejo de universalizagáo: «Vacinar
os guardas do rei de Inglaterra, os marinheiros da frota, sáo vacinados sem pre- os filhos da pátria e enviá-los para os campos para servirem de vaciníferos; de
juízo em 1800 21; os soldados do campo de Alexandria sáo vacinados em 1801 uma maneira geral, vacinar gratuitamente os pobres.» 29A ideia de uma obriga­
«sem interromperem o servigo» 22. Náo há acidentes nestas vacinas em série. gáo muito particular nasce neste iniciar do século xix, aquela que exige uma vi­
Duas palavras marcam doravante toda a diferenga: a «variolagáo», antiga práti­ gilancia física pessoal em nome da própria comunidade: «E curioso que náo se
ca que insere directamente a empola variolosa, e a «vacina», a nova, que inse- ouse forgar os homens a sentirem-se bem, quando se os obriga a se deixarem
re a ampola de uma doenga diferente e atenuada. matar.» 30
Duas razóes, sobretudo, tomam a vacina mais segura: o virus só se comuni­
ca pelo sangue e náo é perigoso. Enquanto que a inoculagáo comportava riscos.
23 F. E. Fodéré, op. cit., t. v , p. 459.
Ela comunicava uma varióla efectivamente real e podia sustentar a epidemia. 24 C. E A. G rassi, M anuel des vaccinateurs, Paris, 1817, p. 39.
Os acidentes do século xvm sáo recordados com insistencia: «É deste modo 25 C itado por F. E. F odéré, op. cit., 1 . 1, p. 466, nota.
que. quando Marie-Thérése, em Viena, manda inocular várias criangas do seu 26 Ibidem , t. v, p. 460.
27 «R apport á la Société m édicale d ’In dre-et-L oire» (1801), citado p o r C. B eaucham p,
D élivrez-nous du m al, épidém ies, endém ies, m édecine e t hygiéne au xrxe siécle..., M aulé-
18 B. P. L ecuyer, op. cit., pp. 91-92. vrier, H érault-É ditions, 1990, p. 236.
19 A rt. «V accine», D ictionnaire a b ré g é de m édecine, op. cit., t.x v , p. 377. 28 J. Ségaud, P récis h istorique de la vaccination p ra tiq u ée á M arseille, M arselha, 1812,
20 J. T horritor, P reuves de l'e ffic a c ité de la vaccine, Paris, 1807, p. 51. pp. 17-18.
21 P. D arm on, L a Longue Traque..., op. cit., p. 159. 29 C itado por C. B eaucham p, op. cit., p. 237.
22 J. T horutor, op. cit., p. 41. 30 A rt. «Vaccine», D ictionnaire ab rég é de m édecine, op. cit., p. 379.

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A PORQ'A DE SI E A FOR£A DOS OUTROS ESPAgO ÍNTIMO E ESPADO PÚBLICO

Novas e numerosas sáo as disposigóes que se encaminham para a universa- nhecimentos, as investigagóes conduzidas sob a Restauragáo ou a Monarquía de
lizagáo: no inicio do século xix, a instalagáo de um «comité central de vacina» Juillet. A figura do «homem médio» emerge lentamente da associagáo numéri­
do qual dependem os comités distritais e mesmo os concelhios. Primeira orga- ca. Homem ficticio, «média em tomo da qual oscilam os diversos elementos so-
nizagáo médica hierarquizada, segundo a nova grelha política do século xix, o ciais» 35, ele renova a imagem da saúde colectiva.
comité promove digressóes de vacinadores. Várias decisoes administrativas Só a tentativa de comparar a forga muscular entre os homens revela já um
confirmam a vontade propagandista: o autarca de Blessonville (Haute-Mame) programa e uma visáo do mundo. O instrumento de medida parece neste caso
é suspenso das suas fungóes por ter recusado a vacina aos pais que lha recla- insignificante: o dinamómetro inventado por Régner em 1805, pequeña mola de
mavam durante a epidemia de 1816 31; regulamentos e decretos impoem desde láminas cuja agulha registadora indica a intensidade das forgas exercidas sobre
1812 «nos estabelecimentos públicos, ñas escolas, nos colégios, nos exércitos... ela. O aparelho é um objecto de diversáo. Penetra as feiras provinciais, os jogos
que se faga prova de ter tido bexigas ou que se tenha tomado a vacina» 32. A di- dos campos, aventura-se nos circos itinerantes erguidos no coragáo das cidades.
fusáo administrativa da vacina concretiza uma agitagáo nos costumes efectiva­ Daumier representa-o em Les Frangais peints par eux-mémes 36 enquanto que
mente salientada por Darmon: «Pela primeira vez na nossa historia o Estado La Bédoliére comenta o seu uso entre os saltimbancos da Monarquía de Juillet:
afirma a sua determinagáo em supervisionar um conjunto de operagóes sanitá- «Carregai nesse tampáo em linhas verticais ou horizontais, encostai a coluna
rias.» 33 Uma instáncia central de prevengáo dissemina os seus agentes locáis de vertebral contra esta almofada, podereis mesmo ver surgir do dinamómetro um
um lado ao outro das malhas e dos estratos do espago nacional. Os médicos Hércules em madeira pintada com o qual ser-vos-á legítimo comparar-vos.» 37
já náo sáo simples informadores e peritos, como ñas primeiras invesdgagóes Mas o instrumento pode ser também usado por máos mais peritas e levar a con-
epidémicas do século xvm, sáo agentes de uma intervengáo nacional impulsio- clusóes sanitárias: comparar a forga entre populagóes, por exemplo, calcular ro­
nada. bustezas, interpretar fragilidades. O «homem médio» do inicio do século xix re­
O obstáculo mais importante é, em compensagáo, o do financiamento e o da serva, por conseguinte, surpresas. Indica numéricamente as diferengas sociais
administragáo. E no acto gratuito dos médicos que Chaptal, ministro do Interior com as quais os observadores náo contavam.
em 1810, funda toda a esperanga. Chaptal consagra o vacinador a um trabalho
«militante». Certificados honoríficos, cartas oficiáis de felicitagóes, medalhas,
títulos de «Primeiro vacinador», vém recompensar o operador consciencioso: A farga dos citadinos
«Confiai este emprego aquelas cuja actividade e devogáo sejam bem conheci-
das. Fazei-os encarar a possibilidade de obter os lugares de médico ou de cirur- O dinamómetro de Régner, franqueando fronteiras e continentes, é utilizado
giáo que vierem a vagar no seu concelho, dai-lhes consideragáo, e excitai a sua para comparagóes entre culturas. Os quadros de Péron, realizados durante a sua
emulagáo...» 34, recomenda Chaptal em 1810. Mas estas homenagens formáis volta ao mundo em 1806, parecem entáo formáis: os homens do océano austral
náo fazem mais do que acrescentar á exortagáo moral feita aos vacinados uma mostram-se inferiores em vigor aos homens vindos da Europa. Os selvagens
exortagáo moral feita aos vacinadores. A administragáo náo pode, neste caso, su­ pouco mais atingem do que os 50 quilos de pressáo de máos no dinamómetro
portar os encargos de um servigo público: durante muito tempo é aos conselhos enquanto que os marinheiros franceses e ingleses atingem e ultrapassam os 70
gerais, ás comunas e aos responsáveis locáis que cabem as iniciativas para sub­ quilos. Maurouard, um dos oficiáis franceses, «vence várias vezes na luta com
vencionar a digressáo dos vacinadores. As ajudas financeiras náo chegam á va­ uma grande facilidade» 38 o mais robusto dos homens do Diémen. As observa­
cina ao passo que existe, e é considerável, uma tomada de consciencia estatal. góes repetidas de ilha em ilha confirmam: os «nativos» a quem Cook e Bou-
gainville tinham elogiado a forga, cerca de 1760, revelam-se débeis e desfale-
cidos. A maior parte deles náo consegue disfargar o seu défice físico apesar dos
2. A F O R ^ A V IT A L E O T R A B A L H O «ombros largos e dos rins bem desenhados» 39.
A imagem do selvagem bem como a do civilizado mudam com esta vonta­
As agitagóes culturáis nos primeiros decénios do século xix sáo mais im­ de efectivamente aplicada de comparar forgas: o homem do Diémen, o de Ti-
portantes ainda do que estas tentativas administrativas: trata-se de critérios iné­ mor ou o da Nova Holanda sofrem a sua miséria até no seu vigor. Péron choca-
ditos de saúde que o Estado, ainda neste caso, náo consegue tomar totalmente a -se com a sua antiga valorizagáo pelos enciclopedistas do século xvm. Ele rele­
cargo, mas que desenham mudangas de práticas. É preciso retomar os novos co-
35 A. J. C. Q uetelet, S u r l ’hom m e et le d éveloppem ent de ses fa c u lte s ou E ssai de physi-
que sociale, B ruxelas, 1835, p. 21.
31 P. D arm on, L a Longue Traque..., op. cit., p. 229. 36 H. D aum ier, «L es banquistes», L es F rangais p e in ts p a r eux-m ém es, les provinces, P a­
32 F. E. F odéré, op. cit., t. v, p. 462. ris, 1 841, t. i,p. 130.
33 P. D arm on, L a Longue Traque..., op. cit., p. 207. 37 E. G igault de la B édoliére, «Les banquistes», ibidem , p. 133.
34 C a rta do m inistro do In terio r de 13 de N ovem bro de 1810, citada p o r C. B eaucham p, 38 F. P éron, Voyage de découverte a u x terres australes, Paris, 1 8 0 7 , p. 4 4 9 .
op. cit., p. 240. 35 Ibidem , p. 4 4 8 .

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A FORC,’A DE SI E a FO R gA DOS OUTROS ESPADO ÍNTIMO E ESPADO PÚBLICO

ga-os para o fundo de uma escala humana que a certeza do progresso brusca­ novo, pouco desenvolvido ainda no inicio do século xix, embora desenhe uma
mente reforgou, instalando as civilizagóes numa hierarquia implacável. A «su- das grandes operagóes de cultura conduzidas ñas décadas seguintes: as popula-
perioridade irrecusável» 40 do europeu sobre o selvagem traduz-se por um au­ goes trabalhadoras tém de ser educadas, elas devem seguir uma instrugáo. Des-
mento de saúde, neste caso observado a partir da forga. A monumental Histoire ta empresa dependem tanto o seu trabalho como a sua saúde. O Estado, que
naturelle du genre humain de Virey acumula, em 1824, afirmagóes categóricas, rompeu com as legitimidades religiosas e hierárquicas do Antigo Regime, deve
contabilizando os selvagens da América do Norte para apontar o seu envelheci- ser náo só higienista, mas também pedagógico.
mento sempre prematuro, o seu número sempre limitado, a sua sempre desola­
da solidao 41. O lago entre a precariedade material e a precariedade sanitária
apertou-se. A «forga» orgánica
Um raciocinio idéntico é aplicado a outros «selvagens» mais próximos,
aqueles que frequentam as oficinas e as rúas populares das cidades: os opera­ Para além desta instrugáo a que a Escola desenha os contornos, existe um
rios. A comparagáo da sua estatura, a medida da sua constituigao mostram uma programa de reforgo físico nos anos de 1820. Clias e Amoros exemplificam-no.
mudanga na imagem do pobre, uma forma inédita de apreciar e explicar as suas Os exercícios que inventam nos seus ginásios de Berna e de Paris sáo simples,
fragilidades. variados, totalmente novos e também abstractos (tracgáo, flexáo, extensáo, ro-
A preocupagáo de distinguir os graus de civilizagáo orienta as constatagóes. tagáo...); os seus movimentos seguem linhas geométricas (oblíqua, horizontal,
Os primeiros conselhos de revisáo, por exemplo, sugerem após o Império, um vertical e curva...); os seus grupos compóem séries numeradas e ordenadas do
conjunto de comparagóes numéricas: a estatura média do homem revela-se simples ao complexo, com progressóes de dificuldade e variagóes de duragáo
maior em Paris do que ñas comunas limítrofes, maior nos distritos ricos do que ñas sessóes. Estes movimentos podem ser directamente exercidos sobre o dina­
nos distritos pobres, maior nos «distritos onde a populagáo urbana é mais nu­ mómetro que regista a sua potencia. A avaliagáo dos resultados é inédita, como
merosa» 42. Daí esta nova insistencia em invalidar a crenga dos higienistas do mostra Clias quando descreve o «renascimento» operado em 1815 sobre um
fim do século xvm: náo é nos campos, longe disso, que a saúde estaría mais as- débil jovem de dezassete anos: extensáo de rins, tracgáo de bragos, pressáo de
segurada, mas sim, muito simplesmente ñas cidades. Nesta a estatura média se­ máos, todas estas forgas teriam duplicado em alguns m eses45. As formas do di­
ria maior, as doengas em menor número e maior a duragáo de vida; uma dife- namómetro modificam-se, aliás, para registar melhor os diferentes movimentos
renga que a riqueza de cada bairro urbano podia ainda acentuar, como pretende exercidos 46. O cálculo náo tem relagáo com o do século xvm em que o exercí­
mostrar o prefeito do Sena em 1821: os habitantes que atingem uma «idade cio náo passava do endurecimento das fibras, de simples tensáo e de conver­
avangada», de 80 a 90 anos, sáo proporcionalmente mais numerosos no bairro gencia de oscilagóes estimulantes. A novidade consiste na geometrizagáo dos
opulento dos Inválidos e de Saint-Germain, o décimo bairro de Paris, do que no gestos e na sua conjugagáo; ela consiste no registo de forgas e no seu desen-
bairro mais pobre de Les Halles e de Saint-Eustache, o sexto bairro. Aqui a di- volvimento.
ferenga é de mais do dobro. Os homens e as mulheres de 80 a 90 anos que no O mesmo é dizer que esta atengáo ás eficiencias implica mudangas mais vas­
décimo bairro constituem 58 por mil, náo sáo mais do que 25 por mil no sexto tas. Ela pressupóe uma lenta transformagáo da cultura do corpo que só o con­
bairro 4\ Idéntica constatagáo nos distritos. Os do Centro, Haute-Vienne, Cor- texto social e económico permite compreender. Náo muda a imagem do traba­
réze, Charente, Dordogne e Lot acumulam neste aspecto, as falhas: estatura lho entre o fim do século xvm e o inicio do século seguinte, promovendo uma
pouco elevada, doengas numerosas, pobreza difusa. Pela primeira vez, as cau­ maior vontade de calcular as capacidades e de as comparar? Uma visáo já in­
sas evocadas sáo claramente sociais: náo só a riqueza, mas também a cultura, o dustrial, uma economía de gestos e de custos: a incansável repetigáo de movi­
saber, os comportamentos e os hábitos de vida: «É notável que estes cinco dis­ mentos especializados e precisos para realizar os objectos «fabricados» de que
tritos fagam parte daqueles em que a instrugáo primária está menos alargada; é fala o baráo Dupin, em 1826, na sua «mecánica das artes e oficios» 47. Traba-
também entre estas populagóes que se encontra, em geral, o maior número de lhos reduzidos mais do que antes «a um pequeño número de movimentos» 4S.
reformas, devidas á tinha e ás escrófulas, índices de uma grande falta de limpe- As gravuras dos enciclopedistas e a sua reconstituigáo a algumas décadas de
za.» 44 A fraqueza física é explícitamente ligada a uma fraqueza do saber: o dé- distancia, ilustram estas renovagóes. As máos dos operarios ou dos artesáos, lar­
tice sanitário do operario e do c ampones prende-se com a ignorancia. Tema gamente presentes ñas gravuras da Enciclopédia de Diderot, em meados do

40 J.-J. Virey, H istoire naturelle du genre hum ain, Paris, 1 8 2 4 ,1 . 1 , p. xxvi. 45 P. H. C lias, G ym nastique élém entaire, ou cours g ra d u é d ’exercices p h y siq u es propres
41 Ibidem , t. I, p. x xv.
á d é ve lo p p e r e t á fo r tifie r l ’organism e hum ain, B em e, 1819, citado por P. B uchez e U. Tré-
A . d A ngeville, E ssai su r la statistique de la pop u la tio n fra n g a ise considérée sous lat, op. cit., p. 306.
q uelques-uns d e s ses a spects p h y siq u es e t m oraux, Paris, 1836, p. 49. 46 F. A m oros, M a n u el de gym nastique, Paris, 1830, atlas, prancha 17.
R echerches statistiques su r la ville de P aris c. le dép a rtem en t de la Seine, Paris, 1821, 47 C. D upin, G éom étrie e t m écanique des arts e t m étiers e t des beaux-arts, P aris, 1826,
quadro n.
t. ni, p. 125.
44 A. d ’A ngeville, op. cit., p. 49. 48 A rt. «M anufacture», E. M . C ourtin, E ncyclopédie m o d em e, Paris, 1823, t. x x ra, p. 28.

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século x v i i i , os seus dedos ágeis que preenchem uma parte do quadro para sa- jecto de Victor Considérant descrito em 1834 53: uma visáo dos espagos habita­
lientar a habilidade dos gestos, desaparece na Encyclopédie m odem e de Cour- dos, ainda utópica, mas já suficientemente credível para estar no limiar da apli-
tin, em 1823 49. O trabalho mecánico comega a impor-se sobre o trabalho hábil. cagáo real. Os fluxos de ar e de luz, os de água quente e de calor, sáo inteira-
A física sobrepóe-se á destreza; a medida sobrepoe-se ao tacto. mente redistribuidos: o calor, por exemplo, é extraído de um calorífero central
A ginástica inspirada em gestos geometrizados adquire um estatuto oficiaT •• que serve para alimentar tanto as cozinhas, as estufas, os banhos como os apo­
no inicio do século xix. O ginásio de Amoros, antigo coronel espanhol que ade­ sentos. O projecto visa desmultiplicar os servigos. Ele é económico, pois estes
re ao Império, é inaugurado por um ministro, Latour Maubourg, em 1820 50. tubos contém outros, feitos para levarem a água corrente aquecida. É pragmáti­
Bálzac segue o seu percurso alguns anos mais tarde, descreyendo em La Ra- co também, pois visa menos o luxo do que a efícácia. Uma rede de circuitos es­
bouilleuse heróis de espantosa forga, alguns jovens de Alengon «alertas como pecíficos, por fim, permite a evacuagáo de dejectos por condutas reagrupadas e
os alunos de Amoros» 51, desaparecendo em escaladas impossíveis e em inal- enterradas.
cangáveis fugas ñas rúas da cidade. Esta ginástica penetra os dicionários do ini­ A palavra conforto adquire, neste caso, um sentido que náo tinha baseada
cio do século, as enciclopédias, os livros de higiene e triunfa nos textos lúdicos. nesta visáo unitária do conjunto dos fluidos e na transformagáo das práticas que
Ela dá origem a ilustragóes e comentários. Ela seduz. Em compensagáo a sua permite: «Concebe-se fácilmente o quanto estes dispositivos de conjunto sáo fa-
instalagáo concreta é mais difícil. Pressupoe a organizagáo de espagos, o uso de voráveis ao asseio geral, como fazem circular o conforto e como contribuem
aparelhos específicos e dispendiosos. Modelo inaugural, o ginásio de Amoros para privar o servigo doméstico do que ele tem de sujo e repugnante e muitas
que recebe «os alunos de todas as escolas reais» 52 é objecto de uma difusáo res- vezes hediondo, ñas lides domésticas da civilizagáo.» 54 A rotura é radical em
trita apesar da sua réplica de Montpelier, em \ 828, e da existencia de alguns lo­ relagáo ás «comodidades» do século precedente. O aposento já náo é apenas
cáis privados. Surge uma convicgáo sem que surja uma grande prática. O giná­ atravessado por fluxos de ar, mas também por fluxos de calor e de água. Será
sio convence e impressiona, sem que se opere, nos primeiros decénios do preciso algum tempo, certamente, para que estes dispositivos sejam concreta­
século, uma verdadeira transformagáo dos hábitos e dos comportamentos. mente instalados, mas o principio está presente. Ele incentiva a disposigáo de
O projecto estatal de construir uma série de estabelecimentos gímnicos choca- uma «maquinaria do conforto» 55 cujo papel sanitário está expressamente asso-
-se ainda com a dificuldade de lhes assegurar as despesas e de lhes constituir a ciado ás certezas da civilizagáo.
administragáo. Mais modestas sáo as realizagóes tangíveis no comego do século xix. Ob­
jectos e arrumagSes sáo dispersos e heterogéneos, próximos mais das «fórmu­
las de arrumagáo» 56 do que a empresa arquitectónica. Mas indicam claramente
3. A S P R IM IC IA S D O C O N F O R T O as primicias de uma tecnología da higiene: paredes revestidas de folhas de
chumbo vendidas pela companhia Hutchinson em 1823 para isolar do frió 57, ou
Os próprios números desenham outras prioridades para além da mera forga mesmo revestidas com placas de lava vulcánica propostas por alguns vendedo­
muscular. E a influencia muito particular do desafogo e das condigoes de vida res parisienses 58; «sandálias higiénicas», «sapatos impermeáveis» para «prote­
que poem em evidencia as «constatagoes» de Péron sobre os selvagens do fim ger os pés da humidade» 59; coletes de flanela guarnecidos de mangas para con­
do mundo e as estatísticas dos prefeitos sobre a mortalidade ñas cidades e nos servar melhor o calor «escalfetas saudáveis» arranjadas sob a forma de uma
campos. Gradualmente, o tema da civilizagáo passa a constituir um argumento «elegante caixa metálica» que dispóe de um regulador e de uma lamparina de
sanitário: a disposigáo das casas, o seu conforto, a técnica de decoragáo, a dos azeite 61; «escrivaninhas caloríferas» para o trabalho de escritorio, que Schwic-
espagos íntimos e os objectos quotidianos sáo sempre largamente citados como kardi vende, um mecánico da Rúa Castiglione em 1827 62. Também as banhei-
garandas de saúde. ras surgem tímidamente nos alojamentos dos privilegiados, mas sobretudo
aquelas que uma dezena de sociedades parisienses de «banhos ao domicilio»

Os primeiros objectos do «conforto» 53 V. C onsidérant, L es C onditions sociales de l ’architecture, Paris, 1834.


54 Ibidem , p. 44.
A palavra conforto toma-se mais frequente na pena dos arquitectos cerca de 3S F. B éguin, «L es m achineries anglaises du confort», R echerches, n.° 29, D ezem bro de
1830. Ela adquire entre eles um sentido preciso, claramente indicado num pro- 1977; ver tam bém D u luxe au confort, sob a d irec fáo de J.-P. G oubert, P aris, B elin, 1988.
56 A. D ubourg d á b om exem plos no seu D ictionnaire des m énages, Paris, 1836.
57 Hygie, 7 de O utubro de 1827, s.p.
49 Ibidem , to m o s de pranchas. 58 Le Journal des connaissances útiles, 1835, p. 312.
50 S u r A m oros, ver M . Spivak, «F rancisco A m oros y O ndeano», L e C orps en m ouve- 59 Ibidem , 1833, p. 16.
ment, so b a direcgao de P. A m au d , T oulouse, Privat, 1981. “ G azette hebdom adaire de santé, 1823, pp. 60-61.
51 H . de B alzac, La R a bouilleuse (1841), O euvres com pletes, Paris, 1867, t. I, p. 25. 61 H ygie, 1 de Fevereiro de 1827, s.p.
52 A rchives nationales, F 17 2647. 62 Idem.

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alugam transportando cuba, água quente e baldes o que permite, segundo o ligado á cidade: reúne-se-lhe sob a acgáo obstinada do médico, através de
cálculo de Abel Hugo em 1835, uma média de 3 banhos por parisiense por a n o 64. uma rede de estradas alargadas, de um fluxo de mercadorias multiplicadas, e
O importante náo é tanto a dispersáo destes objectos, a sua heterogeneidade, de uma troca fortemente acrescida de homens e de ideias. Modifica-se, entáo,
mas mais o cuidado técnico que revelam. Algumas realizagóes tiveram efeitos lentamente o regime alimentar destes camponeses romanceados por Balzac, du­
muito reais sem que os seus autores deles tivessem consciencia: as vi dragas, por rante muito tempo votados «ás batatas e aos lacticinios» 69. A sua alimentagáo
exemplo, progressivamente instaladas ñas casas rurais durante o primeiro tergo toma-se mais carnívora e mais diversificada: «Colhe-se ai mais trigo sarraceno
do século xix. Um dispositivo que pela primeira vez faz obstáculo aos mosqui­ para alimentar a capoeira do que o que se semeava antigamente para alimentar
tos numa Sologne durante muito tempo dizimada pela malária, enquanto que o os homens.» 70 Atenuam-se as enfermidades, esbatidas pelo recurso ás carnes
papel infeccioso do insecto continua a ser ignorado. Também o tijolo colocado brancas e vermelhas, cuja acgáo Bénassis considera determinante. «Curei os
em vez do barro amassado com palha cortada, no primeiro tergo do século XIX, camponeses das suas doengas táo fáceis de curar: trata-se apenas, com efeito, de
tem um efeito semelhante ao impedir a nidifícagáo de mosquitos lhes devolver as forgas através de uma alimentagáo substancial.» 71 O médico
E efectivamente um a tecnología preventiva que brota sobre estes instru­ de Balzac impóe a carne como um símbolo, elevando o talho a índice principal de
mentos dispares no inicio do século xix, mesmo que náo seja consciente de si prosperidade: «Um talho revela numa regiáo tanto de inteligencia como de ri­
própria: um processo que gera aparelhos específicos, favorecendo a sua con- queza.» 72
cepgáo e a sua difusáo. Esta insistencia na carne aviva também as questóes mais eruditas: o poder
das substáncias camais toma-se mais do que nunca uma preocupagáo da quí­
mica, um tema de experiencia e de manipulagáo. Thenard pretende identificar
Civilizagao e «forga» alimentar o principio activo das carnes comestíveis num suco que isola em 1816: a «os­
mazoma», concentrado líquido obtido ao submeter á reacgáo do álcool o suco
A hierarquia entre as técnicas sanitárias conceme também os regimes ali­ da carne previamente limpo de gordura73. Procedimento aproximativo, eviden­
mentares. A constatagáo de uma inferioridade dos campos renova o juízo sobre temente, casual mesmo, mas que durante muito tempo dá um prestigio particu­
os alimentos: legumes, cereais e farináceos já náo constituem regimes satisfa- lar ao extracto de carne e aos seus derivados: «De todos os constituintes das ma­
tórios. É a falta de carne aquilo que causaría a debilidade dos distritos do Cen­ térias animais, a osmazoma é a mais reparadora.» 74 Daí estas novas tentativas
tro: regióes cujo aprovisionamento muito particular constituía «a parte da Fran­ para concentrar o suco em produtos ditos de saúde: tabletes de osmazoma in­
ga onde se consomem mais castanhas: pois dos 2 700 000 hectolitros que se ventadas por Cadet em 1820 para empregar em sopas e em caldos 75; chocolate
consomem em Franga, estes cinco distritos consomem 1 436 000» Os cam- de osmazoma, de «efeitos tónicos e extraordinariamente nutritivos» , aprova-
poneses que comem amido náo poderiam ter o vigor dos citadinos que comem do em 1825 pela Academia de Medicina; pó de osmazoma, substáncia nutritiva
carne; tanto mais que, para ser mais intensificada, a forga deve estar concentra­ para viagens ou situagóes de esforgo, recomendada pelo Dictionnaire abrégé de
da. O que o volume fibroso e incómodo dos vegetáis náo permite. Daí a indi­ médecine em 1825 77. Longe dos velhos elixires, a «forga» é gradualmente pro­
gencia física atribuida aos camponeses «que vivem apenas de legumes e de mu- pagada através de alimentos mais eruditos, objectos de uma colaboragáo entre
cilaginosos, que tém os órgáos fracos, lagos, um sangue pouco espesso e estáo o químico e o fabricante.
predispostos para as doengas atónicas, mucosas e caquéticas» 67. Enquanto que
o oposto é originado pelo regime carnívoro: «Quem náo vé que a dieta animal
fortifica todos os órgáos e vivifica todas as fungóes...?» 68 A saúde romántica
Esta insistencia na carne confirma um lento enriquecimento social, mas tam­
bém a ascendencia decisiva dos valores citadinos. O lugarejo de Balzac, em Le A insistencia destas substáncias tanto mais activas quanto sejam pouco vo-
Médecin de campagne, o lugar selvagem e isolado tomado a cargo como uma lumosas encobre uma outra mudanga de sensibilidade no inicio do século xix:
missáo de um novo tipo pelo doutor Bénassis, só prospera quando fortemente a divisáo mais acentuada entre magros e gordos. A crítica dos alimentos exclu­

63 P. de K ock, «Les b ain s á dom icile», La G rande Ville, nouveau tableau de Paris, 69H . de B alzac, L e M éd ecin de cam pagne (1 8 3 3 ), O euvres com pletes, op. cit., t. II, p. 7.
Paris, 1 8 4 2 ,1 . 1 , p. 170. 70 Ibidem . p. 10.
64 A . H ugo, L a F rance p ittoresque, Paris, 1835, t. n, p. 122. 71 Ibidem , p. 12.
65 « C ’est dan s le p rem ier tiers du x i x e siécle que com m ence á se répandre l ’usage de 72 Ibidem , p. 9.
carreaux aux fenétres et éven tu ellem en t aux portes, p rotection non n égligeable contre 1 ’in­ 73 A rt. «O sm azone». D ictionnaire ab rég é de sciences m edicales, op. cit., t. x n , p. 138.
vasión des m oustiques», C. B eaucham p, op. cit., p. 225. 74 P. B uchez e U. T rélat, op. cit., p. 128.
66 A . d ’A ngeville, op. cit., p. 49. 75 A rt. «O sm azone», D ictionnaire..., op. cit., p. 139.
67 J. B. G. B arbier, Traite d ’hygiéne appliquée á la thérapeutique, Paris, 1811, t. n, p. 24. 76 H ygie, 4 de F evereiro de 1826, s.p.
68 L. R ostan, C ours élém entaire d 'h y g ié n e, P aris, 1828 (1.a ed. 1820), 1 .1, p. 197. 77 A rt. «O sm azone», D ictionnaire..., op. cit., p. 139

176
A F O R fA DE SI E A FOR£A DOS OUTROS ESPADO ÍNTIMO E ESPADO PÚBLICO

sivamente vegetáis é também a do excesso de gordura que estes poderiam ori­ portáncia dada á dieta animal, mas ele sonha, efectivamente, em emagrecer:
ginar. Aqueles que comiam amido e feculentos nao seriam apenas débeis, mas «Nada lhe dava mais prazer do que ouvir dizer que tinha emagrecido.» 8,1 Pela
também «corpulentos»: «Os individuos que se alimentam de farináceos sáo em primeira vez, a dietética separa muito explícitamente o projecto de manutengáo
geral pesados, indolentes, providos de muito sangue, sobretudo gordo.» 78 e o projecto da aparéncia. O dandy substituí o valor do corpo inteiramente físi­
A estética náo está ausente destas preocupagoes com a corpulencia no inicio co e pessoal aos valores de classe e condigáo promovidos pela aristocracia tra­
do século xix. O conselho dado por Brillat-Savarin sobre o uso de uma cinta dicional. A luta contra a decadencia, a inquietagáo com a mistura das ordens so-
«antiobesidade», feita para «apertar á medida que a obesidade diminui» 79, ciais, no inicio do século xix, o culto de si que daí resulta, sáo transferidos para
salienta o novo arranjo do vestuário masculino: o ajuste do tamanho da cintura. um investimento no porte e na saúde, ambos estreitamente combinados. O dan­
O acessório colocado ñas dobras do vestuário estrangula o ventre, salienta as dismo prende-se com o gesto para nós contemporáneo que entrega o individuo
ancas e altera o seu contorno. Os prussianos que invadem a Franga em 1815, apenas ás exigencias da sua afirmagáo pessoal: as qualidades da aparéncia e do
exemplificam-no pela primeira vez com os seus uniformes nitidamente cingi- corpo.
dos: «Os homens estavam cobertos com pequeñas capas azuis, aderentes ao cor­ Um prestigio das formas massivas existe, no entanto, nestes primeiros de-
po, abauladas no estómago e ajustadas na cintura por meio de cintos.» 80 cénios do século. O ventre náo perdeu toda a sua dignidade entre a elite bur­
O porte do dandy, cerca de 1820, é o exemplo extremo destas novas formas: guesa, antes pelo contrário: Balzac constata com insistencia que o «notário alto
o contorno do «cavaleiro florentino de Ingres, pintado em 1823, exibe uma cin­ e seco é uma excepgáo» 87, aquele que ele descreve é sempre envolto em gor­
tura contida e um colete saliente e colorido 81. O efeito do colete acentuado pe­ dura untuosa; Briffault define a silhueta emproada do deputado eleito para a Cá­
los ombros, lembra a lenta tomada de consciencia do novo papel atribuido á res- mara, em 1831. como uma garantía de dignidade 88; o próprio Vigny consegue
piragáo. O peito alimenta a vida, modificando a riqueza do sangue. As sentir a sua «magra estatura» 89 como um obstáculo ao seu sucesso literario.
descrigóes fazem dele um sinal mais marcado de forga e de saúde. É sobre ele Uma magreza «demasiado» visível continua a ser um índice de pobreza e de in­
que se detém Edgar Póe ao aventurar-se na ficgáo de um homem-máquina, me­ digencia. Os miseráveis de Daumier ou de Henri Monnier reconhecem-se pelo
canismo cegó e vazio que a civilizagáo do ferro permitirá criar: «O seu peito era seu contorno famélico e a encenagáo de Monsieur Prudhomme em 1828, bur­
incontestavelmente o mais belo que me fora dado ver.» 82 O peito destaca-se de gués «imponente, com passado, um pouco pretensioso» 90, confirma a forga vi­
uma silhueta durante muito tempo dominada pelo ventre, ele próprio muito tem­ sível da rotundidade. E, aliás, ao observar políticos e homens de letras que
po acentuado pelas linhas do antigo gibáo. E toda a diferenga que existe entre Théophile Gautier sustenta uma simples constatagáo: «O homem de génio deve
as gravuras de Moreau, o Jovem, cerca de 1770, com os seus drapeados abertos ser gordo.» 91
sobre o ventre 83, e as gravuras das Modes Frangaises, em 1820, com as suas Mas as intermináveis comparagóes entre os resultados das dietas animais e
vestes cintadas 84. vegetáis, nos primeiros decénios do século xix, a ligagáo do dandy a uma trans­
E claro que o dandy tem uma dietética. Byron viaja para Itália na companhia formagáo da pessoa física, a renovagáo dos contornos na moda, enfim, de-
de um médico que lhe prescreve os exercícios e as refeigoes. Perde 24 quilos monstram o quanto, para uma parte da elite, os valores de saúde estáo já mes-
em 1807, depois de ter multiplicado transpiragóes e restrigóes alimentares. As ciados com um refinamente da silhueta, o quanto a imagem valorizada da
cartas de Byron definem o «bom estado» do corpo com o emagrecimento: «Pe- manutengáo do corpo se prende com a imagem de um trabalho conduzido de si
dis-me novas da minha saúde. Tenho uma magreza tolerável, que obtenho com para si.
o exercício e com a abstinencia.» 85 Byron recorre á tradigáo dos vegetáis, dos As turbuléncias íntimas do inicio do século xix acrescentam uma tensáo psi­
legumes verdes e das bolachas, á água com gás, ao chá, distanciado da nova im- cológica ás preocupagóes sobre o corpo. As viagens de Byron, impulssionadas
por alguma instabilidade interior sáo disso exemplo. «Peregrino da etemidade» 92
18 A . G autier, T raité d es alim ents, Paris, 1828, p. 25. como diz Shelley, seu companheiro de exilio, Byron nunca se fixou, possuído
79 A . B rillat-S avarin, P hysiologie du goüt, Paris, H erm ann, 1975 (1.a ed., 1826), p. 130.
por uma ferida náo confessada. A imagem é quase habitual entre os jovens dos
80 A . D um as, M e s M ém oires, Paris, L affont, col. «B ouquins», 1989 (1.a ed., 1853) t i
1802-1830, p. 229.
81 J. A . D. Ingres, Le C avalier flo ren tin , 1823, C ortesia do Fogg A rt M useum , H arvard 86 L ady B lesington, cita d a p o r G. M atzneff, ibidem , p. 2 9.
U niversity. 87 H. de B alzac, «Le notaire», L es F rangais p e in ts p a r eux-m ém es, op. cit., t. II, p. 105.
82 E. Poe, L ’hom m e qui é ta it refait (1839), Contes, Essais, Poém es, Paris, L affont, 1989, 88 E. B riffault, «Le député», ibidem, t. I, p. 185.
p. 398. 89A . de Viguy, J o u rn a l (ano de 1831), O euvres com pletes, Paris, G allim ard, L a Pléiade,
83 Ver J. M . M oreau le Jeune, R en d ez-vo u s p o u r M arly, cerca de 1770, BN, C ab in et des 1 9 60, t. ii , p. 9 3 7 .
E stam pes. 90 H. M onnier, Les M oeurs adm inistratives (1 8 2 8 ), citado por R. Searle, C. Roy, B. Bom e-
84 V er «Jeune hom m e en h abit et pan taló n clair», M odes fra n g a ises, 1823, B N , C abinet m an, La Caricatitre, A rt et M anifeste du x v ie siécle á nos jours, G enebra, Skira, 1 974, p. 145.
des E stam pes. 91 C itado por J. L éonard, A rchives du corps, la sa n té au x ix e siécle, R ennes, O uest-Fran-
85 G. N. B yron, C arta de 15 de Junho de 1811, cita d a por G. M atzneff, La D iététique de ce, 1 9 8 6 , p. 20 6 .
Lord B yron, Paris, L a Table ronde, 1984, p. 24. 92 Citado por H. Peyre, «Rom antism e», Encyclopaedia Universalis, Paris, 1968, t. xiv, p. 369.

178 179
A F O R gA DE SI E A FO R £A DOS OUTROS

primeiros anos do século dilacerados por algum sonho inacessível. O romantis-


mo deu o seu nome a este mal particular: esta esperanza impossível de satisfa-
zer. Um nome genérico e delicado, mas que sugere novas expectativas: o des­
pedazar de um mundo onde se desmorona as antigas ordens, onde o jogo social
parece mais aberto como parecem mais numerosas as ilusóes. Há uma insatis-
fagáo com o presente, manifestada pelos homens que vivem depois do grande
golpe da R e v o lu to , aqueles que aspiram sobretudo a uma ascensáo social e
medem gradualmente os seus limites. Daí o seu abandono das esperanzas, a sua
exasperado, a sua busca de evasao. Daí, sobretudo, esta insistencia nova ñas
tensóes interiores, nos seus efeitos físicos, o perigo mortal da propensáo para a
tristeza: «O que era já náo é; o que será ainda náo é. Náo procurem noutro lado CA PÍTU LO II
o segredo das nossas doengas.»93 Musset vé uma pressáo asfixiante, uma amea-
5a quase vital, nestas intensidades dolorosas, do mesmo modo que vé nelas uma A INVENgÁO DA ENERGIA
necessidade. O que explica, quanto a ele, a morte de companheiros mais novos:
«O limiar do nosso século está pavimentado de tumbas.» 94
Esta sensibilidade revela uma dupla tensáo, por volta de 1830: o risco vital O empenhamento do Estado, todavia, torna-se no acontecimento que domi­
dos desejos excessivos, mas também o fascínio que eles exercem. La Peau de na as práticas de saúde em meados do século. A higiene pública dá ocasiáo a in-
chagrín é, a este respeito. um livro simbólico. É ao querer demasiadamente e ao vestimentos mais numerosos, mais diversificados, como mostram, depois de
poder demasiado que se expóe Rapháel. É isso que o mata: «Dois verbos expri- 1850, os grandes trabalhos que atravessam o coragáo das cidades para nele en­
mem todas as formas que tomam estas duas causas da morte: querer e poder.» 95 terrar as redes de água. O conteúdo dos argumentos preventivos muda, acima
O texto diz fríamente o quanto a duragáo de vida é ameagada pelo investimen- de tudo, nos decénios centráis do século xix para melhor mobilizar a colectivi-
to psicológico, pela ardor e pelo desejo. Mas o texto afirma também a presenga dade. Esperangas e incertezas sáo reformuladas. Trava-se um debate que quase
incontomável deste ardor. Tanto mais que há «muito do verdadeiro Balzac nes­ chega ao drama, antes mesmo da descoberta de Pasteur: a degenerescencia, a
te Rapháel» 96 de La peau de chagrín, que dissipa fortuna, trabalho, emogóes e decadencia progressiva da espécie sáo bruscamente apreendidas como ameagas.
projectos. Um Balzac sensível ao aumento da liberdade, ao anuncio vertigino­ Danos físicos da primeira industrializagáo, sem dúvida, com a sua massa cres-
so da promessa que o seu tempo faz furtivamente entrever. cente de operários estiolados, mas também prospecgáo de doengas mais ocul­
A saúde romántica acrescentou uma vertente psicológica muito particular á tas, diminuigáo de nascimentos, consumo de álcool, receio de desordens, de en-
higiene: o regime de vida é desde ai mais secreta e concretamente confrontado fraquecimentos íntimos e, acima de tudo, apelo quase moral ao envolvimento
com a vida pessoal. Os diários íntimos do inicio do século xix, como mostram de todos. A insistencia numa degenerescencia possível é uma forma de agitar
os de Maine de Biran ou de Benjamín Constant, redigidos náo para serem pu­ um perigo massivo, de mobilizar as consciencias, de inventar solidariedades:
blicados, mas ajudarem os seus autores a encontrar algum equilibrio interior97. aumentar a forga das grandes mensagens colectivas numa sociedade em que se
As práticas de saúde sáo renovadas com o inicio do século xix, das exigencias apaga cada vez mais o argumento religioso. Daí a reformulagáo do projecto hi­
colectivas ás exigencias íntimas. giénico desde 1850, a certeza de novas apostas, a atengáo ás fraquezas moráis,
por exemplo, susceptíveis de inverter o progresso, aquelas que a derrota de
1870 parecem confirmar.
A estratégia mobilizadora é evidentemente mais importante do que os resul­
tados concretos, mas mostra a higiene cada vez mais alistada na vasta pastoral
nacional. O Estado higienista e regenerador impóe-se a cada um a partir do ex­
” A . de M usset, La C onfession d ’un enfánt du siécle (1836), Oeuvres, G en eb ra F agot terior, encontrando na saúde colectiva ocasiáo para um objectivo comum.
1973, p. 596. ’ ’
54 A. de M usset, A la M alibran, stances (1836), (Oeuvres completes, París, t. n, 1887, p. 149.
95 H. de Balzac, L a Peau de chagrín, Paris, Gallim ard, col. «Folio», (1.a ed., 1831), p. 62.
I . O E S P E C T R O D E U M A D E G E N E R E S C E N C IA
A . M aurois, P rom éthée ou la Vie d e Balzac, P aris, H achette, 1965, p. 181.
A in q u ie ta d o de M m e de B iran: «E u náo estou bem em parte nenhum a po rq u e eu
transporto com igo ou na m in h a o rg a n iz a d o um a fonte de a flifáo , de pertu rb a?áo ou de um Os argumentos de Starck, médico de Estugarda, ao explicar em 1871 a Vi­
m al-estar perm anentes», M . F. P. G ontier (apelidado M aine) de B iran, Jo u rn a l intim e (ano toria alemá com uma «degenerescencia» da nagáo francesa, sáo, é claro, dema­
de 1818), Paris, 1927, t. II, p. 109. Ver tam bém P. Pachet, L es B arom étres de I ’ám e, nais- siado caricaturais para serem aceites ou mesmo retomadas sob essa forma em
sance du Jo u rn a l intim e, P aris, H atier, 1990. Franga. Starck acusa os Franceses de terem um cérebro inferior em peso ao dos
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A F O R £A DE SI E A F O R fA DOS OUTROS A IN VENgÁ O DA ENERGIA

Alemáes, e censurou-os por serem vítimas de monomania das grandezas e por As hereditariedades insanas
frequentarem os asilos de alienados em número incomparavelmente mais sóli­
do do que os seus vizinhos saxóes ou bávaros. A Année scientifique ri-se deste Expressado desta forma, o tema da degenerescencia é novo e variado, cen­
«caro doutor» a quem acusa de delirio, e cujo propósito explica por um odio trado no enfraquecimento de alguma forga «genital». A sua representagáo aju-
surdo e mal controlado Mas o redactor de L ’Année scientifique leva a sério o da a compreender melhor as saúdes estioladas, mas também os crimes e a mi­
termo degenerescencia. Consagra-lhe vários artigos nos anos de 1860, antes séria: «Em 1830 havia 10 000 alienados em Franga, hoje 80 000, e este número
mesmo do texto estridente de Starck \ aumenta cada dia que passa ao mesmo tempo que o movimento progressivo da
Os números reunidos no século xix, sobretudo depois de 1850. desenca- populagáo abranda.» 9 O receio reside efectivamente na fraqueza aumentada
deiam regularmente uma interpretagáo pessimista: o número de recrutas dis­ pela hereditariedade, numa desordem que atinge as geragóes como uma epide­
pensados por estatura insuficiente e por enfermidades, o número de alienados mia. Em maior escala, a retórica degenerativa permite compreender a doenga,
internados nos hospitais, o número de criangas ilegítimas ou mortas no be re o. numa «civilizagáo todavia poderosa que alcangou o primeiro lugar ñas ciencias,
sáo apresentados como outros tantos sinais alarmantes. Impóe-se a convicgáo ñas artes e na indústria» l0.
de um risco de deficiencia quase biológica. A 3 de Maio, de 1863, o jornal Le As novas teorías económicas facilitam, evidentemente, as explicagóes eru­
Siécle, recorda que esta convicgáo náo se limita apenas aos médicos: «Sabe-se ditas. A demonstragáo de Lamarck efectuada alguns anos antes é aproveitada
que o Ministério da Guerra pensou dever baixar em alguns centímetros a altura para aproximagóes consideradas lógicas: a constatagáo de filiagóes hereditárias
exigida pelos antigos regulamentos. Seríamos nós, dentro em breve, forgados a no seio de uma mesma espécie pela transmissáo de caracteres adquiridos. Os ór­
baixá-la mais? Teremos uma perspectiva de raga liliputiana?» O jom alista con­ gáos adormecidos durante a vida de alguns animais ir-se-iam atrofiando nos
sidera os números «lamentáveis». O futuro seria de decrescimento. seus descendentes. Este transformismo poderia explicar a degenerescencia: de-
Os cenários da grande indústria alimentam certamente esta imagem, por vol- terioragóes sucessivas, acusadas de geragáo em geragáo até á decadencia. Daí a
ta de 1850. Os inquéritos ao mundo operário convergem: neles os operário leo­ brusca abertura á interpretagáo das hereditariedades infelizes. Morel. em 1854,
neses da indústria da seda sáo «homenzinhos simples e mirrados com as pemas é o primeiro a sugerir este mecanismo de enfermidades crescentes ao publicar
cambadas» 3; os operários de Lille sáo «individuos pálidos, de carne mole e flá- o seu Frailé de la dégénérescence ": a hereditariedade alcoólica, do cretinismo
cida, estropiados de todas as formas» 4; as próprias criangas, as dos pátios de e da loucura, a da tuberculose e a da sífilis, doengas bem determinadas ou fra-
Lille, por exemplo, sáo pequeños «velhos enrugados, moles, flácidos e desden­ quezas difusas, todas elas susceptíveis de uma série sem fim de transmissóes
tados, de barriga proeminente e dura, e o peito como a quilha de um barco» 5. mórbidas. O estado de um sujeito, o seu passado, a atengáo que dá a si próprio,
Gastos, deformados e envelhecidos, sáo os termos que dominam estes inquéri­ comprometem entáo mais do que nunca o estado de uma decadencia. A vigi­
tos quando designam os operários das fábricas e das oficinas. Jules Simón de­ lancia de si mesmo é uma condigáo para a vigilancia de todos.
nuncia ainda «um lamentável abastardamento da raga» 6 ao visitar os bairros Inquietagáo tanto mais característica quanto se trata, sem dúvida pela primei­
operários do norte, depois de 1870. A diminuigáo da fecundidade por casal, que ra vez, de com ela evocar a raga e o sangue. Como no lamento de Michelet: «a
passa de 4,24 em 1800 para 3,16 em 1860 7, somada a esta visáo pessimista, a decadencia sanguínea há muito preparada» e que se revela «um facto desta épo­
migragáo urbana mais masculina do que feminina descrita nos recenseamentos, ca» 12. Ou, melhor ainda, como no fresco construido por Zola, ilustrando as here­
deixam entrever um enfraquecimento dos nascimentos: «Esta predomináncia ditariedades insanas: o determinismo corporal implacável que cerca os Rougon-
do sexo masculino em relagáo ao sexo feminino nos centros urbanos dá origem -Macquart. Gervaise, a heroína de LAssomoir morta na miséria e na bebedeira em
á dissolugáo dos costumes e ao desenvolvimento da prostituigáo, muito preju­ 1869, foi concebida por Antoine Macquart em estado de embriaguez em 1828.
dicial ao aumento da populagáo.» 8 Os seus quatro filhos sáo todos vítimas da nevrose e da loucura: a morte na for-
ca do pintor Claude Lantier, a fúria assassina do mecánico Etienne Lantier, su-
gerem o elo suplementar de uma degradagáo que se completa com a morte de
Jacques Louis Lantier, em 1869, falecido aos nove anos devido á hidrocefalia !3.
1 L. Figuier, «L a race prussienne», L ’A n n ée scientifique, 1871, p. 199.
2 «L e recen sem en t de la population fran ja ise» , ibidem, 1867, p. 377, e «D écroissance 9 G. L e B on, L a Vie, p h y sio lo g ie hum aine appliquée á l ’hygiéne e t á la m édecine, Paris,
de la population fran ja ise » , ibidem , 1869, p. 412. 1874, p. 113.
3 G . D uveau, L a Vie ouvríére en F ra n ce sous le Seco n d E m pire, Paris, G allim ard, 1946, 10 P. B uchez, «L e traité des dégénérescences de B. A. M orel», in A n n a le s m édico-
p. 275. -psychologiques, 1857, p. 456.
4 J. P. T houvenin, H yg ién e populaire, Paris, 1842, p. 18. 11 B. A. M orel, Traité des d égénérescences p hysiques, intellectuelles e t m orales, Paris,
5 T. B écour, D e s dangers de l ’écrém age du lait, L ille, 1879, p. 26. 1857, 2 vols.
6 J. Sim ón, L ’Ouvriére, P aris, 1861, p. 138. 12 E. M ichelet, L ’Amour, P aris, 1858, t. II, p. 124.
7 P. Broca, Su r la prétendue dégénérescence de la population fra n fa ise , Paris, 1867, p. 28. 13 «Arbre généalogique des Rougon-M acquart», E. Zola, Histoire naturelle et sociale d ’une
8 G . L agneau, Situation d e la p o p u la tio n en F rance, Paris, 1873, p. 8 . fa m ille sous le Second Empire, Paris, Laffont, col. «Bouquins», 1991 (1.a ed., 1893), 1 . 1.

182 183
A FOR ^A DE SI E A FO R £A DOS OUTROS
AINVENQ ÁO DA ENERGIA

A linhagem dos Rougon-Macquart multiplica as ramificagoes degenerativas prevengáo do século xix. O próprio conteúdo do insano é deslocado, jogando
onde o álcool e a loucura se vém entrecruzar.
com o porvir da espécie, ponderando os valores tomados mais preciosos: o cres-
Inquietagáo cultural, evidentemente, que realga os factos e desloca o olhar, cimento e o progresso.
a ponto de Broca nao ser compreendido quando mostra, em 1867, o lento au­
mento da estatura física e fala da «pretensa degenerescencia»: o Ministério da
Guerra tinha baixado a estatura do recruta em 1835 para aumentar o recruta- Flagelos degenerativos e moral preventiva
mento, mas as isengóes por «falta de altura» diminuem de 831 em 10 000, em
1835, para 531 em 10 000, em 1865 l4. Outros números salientam um lento re­ De todas as doengas, o alcoolismo é aquela que se associa mais claramente
cuo da morte, também eles indicados por Broca: a mortalidade dos recém-nas- á preocupagáo com a degenerescencia e ao recurso ao sobressalto moral. Lan-
cidos cai de 24% em 1820 para 17% em 1860, e a duragáo de vida passa de 27 ceraux visa directamente uma acuidade totalmente interior quando estuda em
anos em 1786 para 42 anos em 1856 15. Os números retomados nos nossos dias 1874, as etapas da «degradagáo» alcoólica sofrida por jovens operários provin­
e prolongados para o final do século xix confirmam a análise de Broca: a mor­ cianos em Paris: a hereditariedade, sem dúvida, mas também a fraqueza gradual
talidade masculina passa de 23 por 1000 em 1861 para 19 por 1000 em 1911 e que se torna hábito, uma falta de atengáo e de decisáo, os entraves da cons­
a mortalidade feminina passa de 22,8 por 1000 em 1861 para 17 por 1000 em ciencia 20. Daí o apelo a uma vigilancia pessoal para por fim a um perigo colec­
1911 \ Em contrapartida, as disparidades sociais continuam a ser notorias: Ar- tivo: «E um facto que é a preguiga e sobretudo a falta de energía dos homens
mengaud salienta um número de óbitos duas vezes superior, no ano de 1863, de que os leva a entregarem-se ao alcoolismo.» 21
individuos com menos de 15 anos entre a classe operária de Lille, em relagao Esta degradagáo é considerada tanto mais preocupante quanto a palavra alcoo­
aos individuos da mesma idade ñas outras classes sociais 17. Uma disparidade lismo é nova, depois de 1850. Ela define uma doenga que soma á bebedeira secu­
que favoreceu, sem dúvida, o argumento degenerativo. lar um conjunto de síntomas bem circunscritos: danos no fígado, danos nos vasos
A inquietagáo é tanto mais forte quanto ela visa a nagáo. É esta que se eré sanguíneos, catarro crónico, tremuras e perturbagóes nervosas, delirium tremens...
«caminhar para a decadencia» l8. É em seu nome que os riscos sao evocados. Seria necessário, sem dúvida, um aumento de duragáo de vida e de impregnagáo
Riscos focalizados sobretudo no proletariado industrial, descrito por Morel do vinho para que os efeitos das bebidas fossem melhor delimitados e identifica­
como classe degenerada por excelencia, massa instável, crescente, aculturada. dos. Magnus Huss é o primeiro, em 1849 22, a descrever no espago anatómico do
O espectro de uma degenerescencia «digna de captar a atengáo pública» 19cons­ bebedor um grupo de desordens idénticas de um individuo a outro: perturbagóes
tituí entáo um horizonte de pensamento, uma surda certeza sobre a qual se apoia sempre reconhecidas na sua sucessáo, na sua regularidade e na sua gravidade.
um intenso compromisso do Estado em sanear, fixar uma populagáo instável, A bebida em excesso toma-se, no século xrx, um perigo, por assim dizer, medido.
facilitar as comunicagóes e reforgar a administragáo pública. O tema degenera­ O consumo de álcool, na verdade, cresceu nitidamente durante o século, as-
tivo é a base da argumentagáo que acompanha a mutagáo da higiene pública na sociado ao lento aumento do nivel de vida, ao fabrico de esséncias industriáis e
segunda metade do século xix. Ela impoe o recurso a uma forga que domina os á multiplicidade das comunicagóes: a produgáo de álcool puro em Franga pas-
individuos, aquela que lhes dita do exterior as normas e os deveres. sou de 200 000 hectolitros no inicio do século para 891 000 em 1850 e para
A sensibilidade aos flagelos, em particular, é modificada: a sua brutalidade 2 360 000 hectolitros em 1900 23. Só o consumo de aguárdente duplica entre
já nao é a das velhas epidemias. O tema degenerativo seleccionou novas doen­ 1850 e 1875 passando de 585 000 para 1 010 000 hectolitros 24. Crescimento
gas atribuindo-lhes novas prevengóes. Alcoolismo, prostituigáo e hereditarieda- também ele acelerado dos estabelecimentos de venda: 60 000 lojas suplemen-
des difusas, dirigem-se mais á culpabilidade e ao dinamismo pessoal de cada tares entre 1855 e 1865 25. É, aliás, ao ir á deriva, de café em café ao longo do
um. Daí uma conversáo das práticas de manutengáo do corpo. um cuidado pre­ dia, associando vinho branco, absinto e vermute que o Rigimbert de L’Éduca-
ventivo, visando mais a decisáo do sujeito, a sua forga interior. É ao orientar-se tion sentimental dá uma cor realista ao cenário de F laubert26. A progressáo al-
cada vez mais para a moral que se aprofunda neste universo pré-pasteuriano a
20 E. L ancereaux, D e l ’alcoolism e e t de ses conséquences au p o in t de vue physique, in-
14 P. B roca, op. cit., p. 28. tellectu el et m o ra l des p opulations, Paris, 1878, p. 27.
15 Ib id e m , p. 3. 21 C itado por M .-C . D elahaye, L ’A bsynthe, histoire de la fé e verte, París, B erger-L e-
vrault, 1983, p. 144.
16 M . G arden, «L a m ortalité», H istoire des Francais, x ix e-x x e siécles, Paris, A rm and Co-
lin, 1 9 8 4 , 1 . 1, L e P euple et son pays, p. 300. 22 L. J. R enaudin, «D e l ’alcoolism e chronique», A n n a le s m édico-psychologiques, 1853,
p. 60. O prim eiro artigo sobre M agnus H uss escrito em F ra n ja.
17 A . A rm engaud, «Industrialisation e t dém ographie dans la F rance du x i x e siécle», L ’in-
23 D . N ourrisson, Le B u ve u r du x x e siécle, Paris, A lbin-M ichel, 1990, p. 87.
d ustrialisation en E urope a u x ix ‘ siécle, C olloque in te m a tio n a l du CNRS, L yon 7 -1 0 1 9 7 0
Paris. 1972, p. 196. 24 L. L unier, D e a pro d u ctio n et de la consom nation des boissons alcooliques e t de leur
influence su r la sa n té p h y siq u e et m orale des p opulations, P aris, 1877, p. 170.
18 P. Jolly, Le Tabac e t l ’A bsynthe, le u r influence su r la sa n té p u b liq u e et 1 ’ordre m oral
25 L. Jacquet, L ’A lcool, étude économ ique générale, Paris, 1912, p. 755.
et social, Paris, 1887, p. 186.
26 G. Flaubert, L ’E ducation sentim entale, histoire d ’un je u n e hom m e (1869), P aris, G al­
L es M ondes, revue hebdom adaire des sciences, 1869, t. xxi, p. 149. lim ard, L a Pléiade, 1952, t. n, p. 70.

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A IN V ENgÁ O DA ENERGIA
A FORQA DE SI E A FOR£A DOS OUTROS

coólica é indesmentível, durante a segunda metade do século: «água do sol», mas a sífilis aparece como o flagelo maior, aquele que causaría «mais males que
«água dos bravos», «cheirinho», «pirolito», «unha para limpar», «gloria» e todas as doengas juntas» 3S. O presidente da Sociedade de Medicina Pública e
«champoreau» alimentam o vocabulário da maior parte dos bebedores. A doen­ de Higiene, Bouchardat, deseja fazer nascer um verdadeiro «terror» a este res-
ga ameagaria submergir as forgas vivas da nagáo27, atacar a vontade e desenhar peito para melhor «conservar e preservar a espécie humana» 39; o presidente da
a «degradagáo da raga e a sua esterilidade» 28. É como a imagem de L ’Assom- Academia e da Sociedade de Medicina de Vancluse, Yvaren, ve ai a primeira
moir. o risco de uma invasáo sem limites dos licores fermentados. O alambique causa da degenerescencia: «A sociedade inteira deveria reunir os seus esforgos
como instrumento diabólico, aquele que «sem qualquer chama, sem qualquer para esmagar esta grande destruidora, esta morte crónica da raga humana, para
alegría, nos reflexos acesos dos seus cobres, persistía, deixava escorrer o seu extirpar esta lepra imunda que aplica os seus golpes na sombra.» 40 Convertida
suor de álcool, semelhante a uma fonte lenta e obstinada, que dali por algum em doenga simbólica, nos últimos decénios do século, a sífilis «infectou todo o
tempo deveria invadir a sala, espalhar-se pelos boulevards exteriores e inundar imaginário social» 41. É a sua imagem que preenche os produtos literános da
o buraco imenso de Paris» 29. decadencia e do declínio. É a partir de llores inocentemente cortadas que o Des
O tema degenerativo reactualiza o imaginário das doengas que proliferam, Esseintes de Huysmans, em 1884, é perseguido pela imagem hedionda de po-
aquelas que se multiplicam ao transitar de um estado para outro como uma ger- dridóes sifilíticas. As flores transformam-se em filamentos monstruosos, im­
minagáo sem fim. Este álcool bebido por fraqueza seria ainda fomecedor de tu- pondo uma conclusáo obsessiva: «Tudo náo passa de sífilis.» Invadido pela cer­
berculose, um dos outros flagelos do século: náo sáo as fragilidades nervosas e teza das degradagóes, projectando os seus pesadelos em alucinagóes cósmicas,
as perturbagoes digestivas que o álcool provoca «acompanhadas de uma ma­ Des Esseintes toma-se testemunho de uma espécie humana ameagada: «Ele
greza progressiva que acaba quase invariavelmente na tuberculose?» 30. Hayem teve a brusca visáo de uma humanidade sempre deformada pelo virus das épo­
afirma-o com uma palavra mais trivial, deixando calcular um passado de negri- cas antigas. Desde o comego do mundo, de pai a filho, todas as criaturas fazem
tude na vida ou na ascendencia do tuberculoso: «A tuberculose apanha-se com transmitir a sólida heranga, a eterna doenga que danificou os ancestrais do ho­
o zinco.» 31 O alcoolismo causaría «o pejamento dos hospitais» 32. Era preciso mem e que escavou os velhos fósseis até aos agora exumados ossos.» 42
preveni-lo por meio de um esforgo de consciencia e de vontade.
A defesa contra a sífilis constituiu uma outra vertente desta prevengáo inves­
tida de moral: a doenga venérea corrói a «raga ñas próprias fontes da vida» 33, Protecgáo de si, protecgáo do Estado
atacando a hereditariedade através do que parece ser mais incontrolável, o pra-
zer e o desejo. Os números neste caso ainda dariam outras tantas provas de um Nunca as derivas individuáis tinham antes parecido ameagar a tal ponto a
crescimento da doenga: as admissóes anuais de venéreos nos hospitais de Paris, protecgáo comunitária. O apelo á reacgáo da «sociedade inteira» 4\ ao «gover-
evocados por Michel Lévy em 1845: 2112 em 1804, 5059 em 1842 34; a infec- no» 44, ás «nagóes civilizadas» 45 para combater estes flagelos que se arriscam
gáo das prostitutas «proporcionalmente mais importante de 1824 a 1832 do que «a parar a marcha ascendente da humanidade» 46, reaparece regularmente, tan­
de 1 8 12a 1824» 35; os 50 000 homens das tropas anualmente infectados por to nos textos eruditos como nos periódicos de vocagáo popular. Tentativa de
contágio, evocados por Gerin em 1870 36. Tudo isto sáo números interpretados vestir de dever uma moral. Símbolo do crescente papel emprestado ao Estado,
como sinais degenerativos que anunciam «uma raga enferma, abastardada, o mais do que até ai árbitro dos comportamentos de cada um. A iniciativa estatal
povo de abortos que aguarda a ortopedia» 37. é solicitada, é espreitada e explicada: «O nosso código» náo pode «deixar im­
E clara a distorgáo entre o perigo real da sífilis e a angústia que provoca. pune a prostituigáo que mata e envenena a sociedade» 47. A tentativa de opor a
A infecgáo causa menos de 3% de óbitos no final do século e a tuberculose 20%, lei aos comportamentos considerados degenerativos torna-se entáo inseparável
do empreendimento de protecgáo colectiva. O Estado, nos últimos decénios do
27 A. B ecquerel, Traité élém entaire d 'h y g ié n e p rivée e t publique, Paris, 1877 (1.a ed.,
1851), p. 697.
38 M . Lévy, op. cit., t. n, p. 750.
28 J. A rnould, N o u v ea u x É lém ents d ’hygiéne, Paris, 1895 (1.a ed., 1881), p. 625.
39 A. B ouchardat, Traité d ’hygiéne publique et privée, Paris, 1883 (1.a ed., 1880), p. 938.
29 E. Z ola, L'A ssom m oir, Paris, Le L ivre de poche, 1978 (1.a ed., 1878), p. 50.
40 P. Yvaren, D es m étam orphoses de la syphilis, Paris. 1854, p. 16.
30 E. L ancereaux, op. cit., p. 35.
41 J.-P. R ioux, C hronique d ’une f in de siécle, F rance, 1889-1900, P aris, Éd. du Seuil,
31 C itado p o r M . C. D elahaye, op. cit., p. 131.
1991, p. 212.
32 J. A rnould, op. cit., p. 625.
42 J.-K . H uysm ans, A rebours, Paris, G allim ard, col. «Folio», 1991 (1.a ed., 1884),
33 J. G arin, D e la p ó lic e sanitaire e t de l ’assistance publique, d ans leu r rapport avec
p. 193.
l ’extin ctio n des m aladies vénériennes, Paris, 1866, p. vi.
43 P. Yvaren, op. cit., p. 16.
34 M . Lévy, Traité d ’hygiéne p u b liq u e et p rivée, Paris, 1857 (1.a ed., 1845), t. n,
44 Ibidem , p. 17.
p. 747.
45 A. B ouchardat, op. cit., p. 901.
35 Ibidem , t. II, p. 748.
46 Ibidem , p. 308.
36 J. G arin, op. cit., p. v.
47 J. P. T roncin, P réservation de la syphilis, P aris, 1851, p. 144.
37 A. M. B arthélem y, Syphilis, P aris, 1840, p. 18.

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século, legisla acerca destas atitudes de prazer e de excesso. Mas a ínter ve ngáo bre a embriaguez confirma-o. Ela condena em primeiro lugar bebedeira mani­
da lei nos comportamentos mais pessoais nao é simples. É a dificuldade de re- festada na via pública e as suas recidivas. Ela sanciona os actos visíveis, por as­
ger a sensibilidade, de intervir nos prazeres privados, ao mesmo tempo que se sim dizer públicos, do excesso. O que náo permite prever o alcoolismo, nem os
reivindica a liberdade prometida desde o fím do século xvm, aquilo que reve- seus consumos eventualmente dispersos mas repetidos, aqueles que Huss tinha
lam as leis propostas no século xix. A vigilancia autoritária continua a ser, na sido o primeiro a denunciar vinte e cinco anos antes. Difícil, é claro, é levar a
verdade, dominante. regulamentagáo ao próprio coragáo dos comportamentos mais privados.
É o que demonstra a regulamentagáo sobre a sífilis, que escolhe um público Uma outra dificuldade contraria a legislagáo sobre o alcoolismo, bem como
alvo: as prostitutas. Solugáo mais «simples» do que uma vigilancia alargada a a legislagáo sobre a sífilis nesta segunda metade do século xix: a resistencia
cada possível portador da doenga. O isolamento das prostitutas em casas públi­ daqueles que daí tiram lucros mercantis. As ligas e as associagóes de hotelei-
cas ou, pelo menos, o seu registo, reclamados desde o Consulado, sao objecto ros e de hotéis mobilados resistem ás veleidades de supressáo das casas de pas­
de crescentes exigencias durante o século. Daí a perseguigáo das raparigas re­ se, da mesma forma que diversas associagóes de tabemeiros e de retalhistas re­
beldes, suspeitas de comunicar a doenga mais frequentemente porque menos vi­ sistem ás veleidades de interdigáo dos licores e das aguardentes. Toda a
giadas. As estatísticas de 1860 confirmariam o perigo destas raparigas dema­ denúncia alvoragada do álcool desencadeia a oposigáo dos proprietários no fi­
siado livres: «26,4 casos de doengas em 100 para as insubmissas; 1,58 casos de nal do século. É o caso do anúncio antialcoólico afixado em Paris, no virar do
doenga em 100 para as raparigas das casas de passe.» 48 A vigilancia deve ba- século: «O homem que bebe uma quantidade imoderada de vinho, de cidra ou
sear-se na inspecgao obligatoria: a visita médica imposta para melhor despistar de cerveja, torna-se certamente táo alcoólico como aquele que bebe aguarden-
o possível aparecimento de infecgao. Parent-Duchátelet teoriza esta obrigagao te.» Os autores do anúncio sáo postos perante o Tribunal Civil pelo Sindicato
num livro monumental em 1836: «Alegar-se-á em favor das prostitutas a liber­ dos Comerciantes de Vinho e de Licores que obtém o ganho da causa ao de­
dade que cada um tem de fazer o que quiser? Noutros termos pode-se e deve- nunciar «esta afirmagáo particularmente ousada em presenga das contradigóes
-se privar as prostitutas da liberdade individual?» 49A consulta toma-se obliga­ da ciencia» 51.
toria em meados do século, bem como a hospitalizagao, se a infecgao se ma­ Mas este anúncio malogrado é ele próprio revelador. Ele sublinha o novo lu­
nifestar. gar atribuido á «instrugáo»: o proselitismo mais do que a lei. Esta tentativa de
A crítica destas vias «regulamentares», a consciencia da sua eficácia relati­ prevenir as doengas, em que a moral tem o seu papel, promove uma pastoral pe­
va, sao compreendidas no final do século. Lutaud ironiza sobre o logro que uma dagógica de uma amplitude sem igual: uma iniciativa de persuasáo á medida do
vigilancia autoritária tomada irrealizável pela própria vastidáo dos meios que alerta social e do medo provocados.
exige: náo se tomaría necessário «transformar as 85 000 prostitutas de Paris em
funcionários aquartelados» e mandar examinar «todo o candidato em erecgáo»
por um inspector médico? 50 Sáo tentadas outras políticas, na Noruega, a partir Da moralizagao das doengas á pedagogía
de 1860, adoptadas pouco depois pelos Estados Unidos e pelo Canadá. Elas vi-
sam todos os cidadáos e náo só as prostitutas. Elas perseguem o doente, o indi­ Quando Michel Lévy salienta, em 1845, que, em 4430 prostitutas recensea-
viduo, e náo apenas um grupo previamente designado: cabe ao médico a obri- das, 2332 náo sabem assinar, é para melhor associar a sua depravagáo á sua fal­
gagáo de declarar qualquer novo doente, cabe a este a obrigagáo de assinar uma ta de instrugáo 52. Quando Henri Homo se dedica, em 1872, a um inquérito so­
informagáo segundo a qual aquele que infectar ou expuser á infecgáo uma ou­ bre as prostitutas de Cháteau-Gontier, é para confirmar melhor o ínfimo número
tra pessoa incorre na pena de tres anos de prisáo. Atitudes igualmente difíceis, de anos escolares que elas frequentaram 53. As raparigas que se prostituem náo
mas mais modernas, onde a lei interpela a responsabilidade de cada um. O re­ o fariam, afirmam eles, se tivessem recebido alguma instrugáo. A conclusáo tor-
ceio do perigo venéreo, a vontade de atribuir a culpa a um dado meio conti- na-se peremptória: «Em todos os lugares onde a instrugáo penetra, os excessos
nuam, sem dúvida, a vigorar em Franga: a existencia de casas públicas e a re- diminuem.» 54 Daí estas inumeráveis iniciativas pedagógicas, características do
gulamentagáo das visitas sáo mantidas até ao final do século xix. século xix, esta vontade de transformar os comportamentos pelas Luzes, esta
Os obstáculos encontrados na legislagáo sobre a sífilis no final do século xix insistencia na moralizagáo e no saber: «O único que resta neste caso é o de mul­
estáo, aliás, próximos dos que se encontram na legislagáo sobre o alcoolismo: tiplicar as ligóes e os conselhos de higiene popular.» 55A defesa contra as doen-
dificuldade de legislar a sensibilidade, dificuldade de penetrar os comporta­
mentos privados, em nome, todavia, de uma defesa de todos. A lei de 1873 so-
51 D. N ourrisson, op. cit., p. 278.
52 M . Lévy, op. cit., t. n, p. 757.
48 F. C arlier, É tudes de p a th o lo g ie sociale, les d e u x prostitutions, Paris, 1887, p. 121. 53 H. H om o, É tude su r la p rostitution dans la ville ae Cháteau-G ontier, C háteau-G on­
A. J. B. P arent-D uchátelet, D e la p ro stitu tio n dans la ville de P a ris, considérée sous tier, 1872, p. 42.
le ra p p o rt de l ’h ygiéne p ublique, de la m orale et d e l ’adm inistration, Paris, 1836, t. I. 54 A. R iant, L ’Instruction e t la Santé, Paris, 1869, p. 38.
50 C itado p o r C. Q uétel, op. cit., p. 295. 55 L. Figuier, L ’A n n ée scientifique, Paris, 1861, p. 345.

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gas degenerativas assenta mais do que antes numa convicgáo: o saber é uma titulares da Academia de Medicina. O argumento propagado continua a ser o do
arma privilegiada para as prevenir. terror a respeito do álcool enunciado pelos médicos. Mas a expressáo de um
A luta antialcoólica é impulsionada por um grupo organizado: a Sociedade pensamento sanitário colectivo vé a luz, a expressáo de uma opiniáo discutida
Francesa da Temperanga, criada em 1873, que reúne alguns milhares de mem­ que mais tarde terá a sua importancia. O exemplo é quase idéntico, no comego
bros em tomo de diversas autoridades moráis, titulares do Instituto, professores do século xx, desta vez para a sífilis: mais revelador mesmo, uma vez que nele
ou deputados. A Sociedade reivindica uma finalidade sanitária: «Desenraizar o se confrontam uma Federagáo Abolicionista das Casas Públicas e uma Socie­
uso do álcool e sobretudo da aguárdente pelo exemplo que dáo os membros da dade de profilaxia Sanitária e Moral, favorável á sua manutengáo. A solugáo
Sociedade e as suas familias, ao mesmo tempo que espalha entre a populagáo está nos partidários da regulamentagáo das casas fortalecidos pelo terror do pe­
ideias mais precisas sobre os efeitos desagradáveis do álcool.» 56 A Sociedade rigo venéreo. No entanto, exprimiram-se oposigóes, dando á saúde uma verten-
busca o efeito da opiniáo: influenciar a sensibilidade; federar as certezas de al­ te política que ela náo tinha.
guns para ponderar melhor as decis5es de todos. A sua acgáo é feita de gestos Outros exemplos confirmam este trabalho de opiniáo: a Uniáo Francesa An­
simbólicos e de slogans encenados: prémios e medalhas recompensam as pes­ tialcoólica que conta em breve com 40 000 membros, criada pelo doutor Le-
soas moderadas ou as obras edificadoras, edigáo de anuncios, difusáo de men- grain em 1891, a Sociedade Protectora Infantil, criada em 1865 por Marjolin e
sagens, financiamento de investigagóes ou de conferencias sobre os perigos do reconhecida de utilidade pública em 1869 61, orientam o argumento «regenera­
alcoolismo. A Sociedade oferece o primeiro exemplo de uma militáncia sanitá­ dor» para uma higiene infantil, que milita pelo recurso ao leite materno e orga­
ria, uma empresa onde sáo discutidos e promovidos os dispositivos de saúde: niza visitas a criangas entregues a amas de leite, o Comité de Defesa Contra a
cartazes afixados ñas salas dos hospitais, conferencias convocadas ñas fábricas, Tuberculose, criado por Léon Bourgeois, ou a Associagáo para o Aumento da
exposigoes eruditas seguidas de acordos gratuitos. A interrogagáo sobre os Populagáo Francesa, criada em 1896 pelo doutor Bertillon, chefe dos trabalhos
meios pedagógicos ocupa as reunióes: as formas de propaganda, a escolha dos estatísticos da cidade de Paris. O seu objectivo: «Atrair a atengáo de todos para
termos e das imagens, o recurso, por exemplo, em 1875, á «fotografía sobre vi- os perigos que a diminuigáo da populagáo faz correr á nagáo francesa, e criar
dro projectada na luz oxídrica para representar os diferentes estados em que sáo medidas fiscais ou outras próprias para aumentar a natalidade.» 62
mergulhados os individuos intemperantes» 57. A Sociedade publica um livro A escola, por fim, nos últimos decénios do século xix está no centro da cam-
Dangers et Abus des boissons alcooliques, de René Picard 58, que procura di­ panha dirigida contra as doengas degenerativas. O ensino de uma higiene pro­
fundir junto do Ministério da Instrugáo Pública, dos conselhos gerais e das cá­ tectora surge ai de uma forma determinante. O decreto de 21 de Junho de 1865
maras municipais. Ela multiplica os pareceres sobre a lei de 1873 e pretende vi­ cria um ensino de higiene ministrado por um médico 63. A lei de 1882 sobre a
giar a sua aplicagáo. A sua finalidade, como se ve, é dupla: transformar os escola pública é mais precisa, indicando ñas materias obligatorias as «aplica-
costumes e ponderar as decisóes sanitárias. góes» das ciéncias «á agricultura e á higiene» 64. É sobre a cruzada antialcoóli­
Náo que o impacto desta Sociedade francesa seja massivo, nos anos de ca que este higienismo escolar está, aliás, mais mobilizado. O Ministério da Ins-
1870: a revista que ela edita náo ultrapassa os 10 000 exemplares 59, as leituras trugáo Pública autoriza em 1877 a difusáo de 30 000 anúncios intitulados
que propóe nos hospitais, feitas publicamente pelos próprios doentes, pouco se «Conselhos sobre os perigos das bebidas alcoólicas» 65, editados pela Socieda­
afasta das prédicas simplistas e repisadas A novidade da Sociedade, todavia, de Francesa da Temperanga. Os manuais, sobretudo os de francés, multiplicam
consiste em dar existencia a uma opiniáo colectiva e em trabalhar a sua in­ os episodios que póem a nu os maleficios do álcool. O convite a Simón pelos
fluencia. A manifestagáo de uma liberdade pública maior, de uma nova mili­ seus companheiros mineiros, em Monsieur Prévót, livro de leitura corrente para
táncia: atitude quase política que só um Estado em vias de democratizagáo po­ o certificado de habilitagóes no final do século xix, é ocasiáo de uma longa nota
día autorizar. .0 debate sobre a prevengáo é ai gradualmente transformado: sobre a intemperanga, classificada como «o maior flagelo da humanidade» .
médicos e poderes públicos, como por exemplo arquitectos, já náo sáo os úni­ O conselho dado aos autores dos manuais é, aliás, o de oferecer «anedotas, his­
cos a forjar as decisóes sanitárias: um novo interlocutor desempenha um papel torias fáceis de compreender» 67, como a frase quotidianamente escrita no qua-
— tem o perfil anónimo da opiniáo. dro negro: «A taberna é um matadouro de homens.» 68 Até ás imagens obsessi-
Exemplo efectivamente limitado, é preciso reafirmá-lo: muitos dos mem­
61 J. C om by, «P hysiologie e t hygiéne de l’enfance», Traité des m aladies de l ’enfance,
bros da Sociedade de Temperanga sáo médicos, muitos dos seus dirigentes sáo direction collective, Paris, 1 8 9 7 ,1 . 1, p. 71.
62 C itado por J.-P. R ioux, op. cit., p. 168.
36 C itado p o r A. B ecquerel, op. cit., p. 696. 63 A. R iant, op. cit., p. 29.
57 La Tem pérance, 1875, p. 384. 64 P. C hevalier et B. G rospérin, L ’E nseignem ent fra n g a is de la R évolution á nos jours,
58 R. Picard, D angers e t A b u s des boissons alcooliques, Paris, 1874. A o bra tirou 9600 Paris, M outon, 1971, t. n, D ocum ents, p. 274.
exem plares. 65 Ver D . N ourrisson, op. cit., p. 247.
59 Ver D. N ourrisson, op. cit., p. 241. “ A. D avid-S auvageot, M o n sie u r Prévót, Paris, 1894, p. 141.
60 «Faire to u ch er du d o ig t tous les bénéfices résultant d 'u n e vie réguliére et calm e», in 67 L a Tem pérance, 1874, p. 292.
La Tem pérance, 1873, p. 362. 68 C itado por J.-P. R ioux, op. cit., p. 207.

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A INVEN^ÁO DA ENERGIA
A FORCA DE SI E A FOR£A DOS OUTROS

vas da pedagogía alcoólica do final do século que entram nesta estratégia, esses O alimento, o pulmao e a energia
fígados desenliados, ñas paredes das salas de água, aqueles de que fala Marcel
Pagnol na La gloire de mon pére, visceras «horríveis», representadas com «as O alimento, em primeiro lugar, é expressamente visto como elemento com-
suas intumescencias verdes e as suas constrigóes violáceas que lhes dao a for­ bustível. Bouchardat mostra-o de forma quase caricata em 1860 quando enu­
ma de tupinandos» 69. mera os ataques sociais da tísica: 233 casos de tísica em 1000 óbitos de gente
pobre, 68 casos de tísica «apenas» em 1000 óbitos de pessoas abastadas 4. A ex-
plicagáo é inédita, focalizada no mecanismo alimentar: os «tubérculos» nasce-
2. A E N E R G IA Q U E P R O T E G E riam no pulmao do pobre porque falta nele uma calorificagáo suficiente. A in­
digencia da alimentagáo provoca a indigencia do fogo, com o seu saldo de
Aos flagelos degenerativos náo se op5em apenas a convicgáo moral e a lei, matérias nao calcinadas. Os tubérculos sáo como carvóes mal queimados. Ex-
depois de 1850-1860, mas ainda uma prática preventiva renovada; um conjun­ plicagáo ilusoria, evidentemente, mas que faz do alimento o combustível do
to de comportamentos transformados por novas representagóes do corpo. E que oxigénio pulmonar. Bouchardat confirma a sua versáo calórica quando sugere
a máquina corporal já náo é simples mecánica, como no século x v i i com os seus uma ligagáo inesperada entre a diabetes e a tísica: o agúcar do diabético, esca­
movimentos aspirantes ou refluentes; já náo é simples entrelagado de fibras, pado dos rins sem ter sido queimado, toma insuficiente de outra maneira a ac-
como no século xvm, com os seus filamentos emaranhados como responsáveis tividade dos pulmóes. A sua perda limitaría o seu fogo, daí o possível nasci-
pelas forgas e pelas resistencias, ou mesmo simples focalizagáo de tensdes mus­ mento de tubérculos. O diabético estaría, mais do que qualquer outro, exposto
culares como no inicio do século xix. É uma máquina produtora de energia, mo­ á doenga pulmonar: «Assisti á autopsia de 19 [diabéticos], nos 19 casos foram
tor criador de rendimento: um equivalente dos engenhos a vapor que animam observados tubérculos nos pulmóes.» 75 Explicagáo ilusoria, ainda neste caso,
as fábricas industriáis de meados do século xix. O seu fólego é comparado ao mas que salienta a insistente ligagáo entre o alimento e a actividade do pulmáo.
das «locomotivas cuja respiragáo poderosa nós ouvimos» 70, o seu calor ao dos Bouchardat sugere entáo a prevengáo da tísica pelo alimento. Ele encoraja o
«combustíveis que a indústria emprega» 71. A sua acgáo ilustra as leis da termo­ recurso regular ao óleo de fígado de bacalhau, sobretudo do escuro, o dos baca-
dinámica teorizadas por Camot, em 1824: uma conversáo do calórico em pos- lhaus da Terra Nova ou da Noruega, cuja densidade e poder calorífero seriam
sibilidades precisas de trabalho 72. Daí a ligagáo nova entre a eficácia e os re­ mais marcantes. Boillet recorre ao espirómetro para o provar. O instrumento que
cursos de calor orgánico. A forga das constituigóes é objecto de medigóes até ai mede o volume pulmonar de cada um: o uso do óleo transformaría a capacidade
desconhecidas: a da «capacidade respiratoria vital», por exemplo, que Hutchin- respiratoria 76, tomando em pouco tempo o fólego mais ampio. Longe de se li­
son avalia com um espirómetro em 1846, pequeña campánula móvel cujo cur­ mitar a amolecer os membros tolhidos, como pensavam alguns velhos utilizado-
sor permite calcular a quantidade de ar propulsionada numa única respiragáo. res do inicio do século xix, o óleo de fígado de bacalhau desperta assim o pul­
«O resultado no espirómetro, que varia conforme a idade, o sexo e o peso do máo. Bebido como uma pogáo, de manhá e á noite, o óleo converte os velhos
corpo» 73 e o vigor de cada um toma-se o sinal da «reserva de oxigénio vital», elixires em principio de energia. Prevengáo útil também aos pobres, uma vez que
aquela que transforma o calor em trabalho. concentra em pouca substáncia «intensas» energias. O seu sucesso é duradouro.
O emprego do gasto «combustivo» e a sua vigiláncia podem entáo ajudar a Os procedimentos, quase industriáis, da sua produgáo multiplicam-se, na segun­
conduta preventiva: uma maneira de combater a degenerescencia, conjunta­ da metade do século xix, em Bergen, na Noruega, na Terra Nova, como em
mente com a empresa de moralizagáo. O conjunto das regras de vida diz-lhes alguns armazéns ocidentais. Sáo enumerados em 1877 uma trintena de importa­
respeito: a arte de se alimentar, que favorece a troca energética, a de respirar, dores franceses 77. O óleo «com um desagradável gosto a peixe» , que o farma­
que participa directamente ñas combustóes, mas ainda a limpeza, tida como fa­ céutico Meynet tenta apresentar em 1875 sob a forma de drageias agucaradas
cilitadora da respiragáo pela manutengáo dos poros. A nova referencia energé­ perfazendo «duas colheradas» ™, toma-se gradualmente um recurso familiar.
tica redefine uma coeréncia entre as práticas sanitárias mais diferenciadas, após Para além do modesto produto, é o papel atribuido ao alimento o que é trans­
1850, todas elas centradas num apoderar do fogo orgánico. Uma energia inédi­ formado. Liebig, em primeiro lugar, renova depois de 1840, as categorías nu­
ta é explorada. tritivas. A química alemá divide os alimentos em respiratorios e plásticos: os
que activam o fogo e os que reconstituem os tecidos 8n. A fórmula impóe-se du-

74 A. B ouchardat, op. cit., p. 648.


69 M . Pagnol, L a G loire d e m on pére, M onte-C ario, Pastorelly, p. 17. 75 Ibidem , p. 651.
70 P. B ert, L a M achine hum aine, B ordéus, 1867, p. 6 . 76 C. B oillet, «L’h uile de foie de m orue», Journal d ’hygiéne, 1877, p. 140.
71 J. M arcy, La M achine aním ale, P aris, 1873, p. 12. 77 C. B oillet. op. cit., p. 140.
72 S. C arnot, R éflexions su r la p u issa n c e m otrice d u f e u e t su r les m achines propres a 78 A. B ouchardat, op. cit., p. 89.
d é ve lo p p e r c ette puissance, Paris, 1824. 79 P ublicité «D ragées M eynet», J ournal d ’higyéne, 1 de O utubro de 1875.
73 M . Lévy, op. cit., 1 . 1, p. 240. 80 J. von Liebig, Traité de chim ie organique, Paris. 1840-1843 (1.a ed. alem a), 3 vols.

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A F O R gA DE SI E A FORQA DOS OUTROS A IN VEN gÁ O DA ENERGIA

rante várias décadas, cultivando a analogía com o motor e orientando as esco- exploragáo calórica e química das matérias consumidas. A ideia de rentabilida-
lhas nutritivas: «Os alimentos estao destinados a manter as combustoes preci­ de orienta o cálculo: «Segundo as obras de mecánica, um servente que trans­
samente como o óleo mantém o calor da fom alha.»81 O objectivo de regime ali­ porte carga ás costas até ao alto de uma rampa ou de uma escada e regressa sem
mentar é completamente renovado, regulando o equilibrio entre as substancias ela, produz um esforgo médio de 65 quilos; a uma velocidade de 0,004 m por
respiratorias e as outras. Mudam também os cálculos, indicando em gramas os segundo, ele trabalha seis horas e produz um trabalho de 56 160 quilográmetros.
alimentos que queimam e os alimentos reconstituintes: «Sáo perdidos diaria­ Como uma caloría, na máquina humana, corresponde a 62 quilográmetros, daí
mente 130 gramas de matérias azotadas e 310 gramas de carbono e é evidente se deduz que 56 160 quilográmetros exigem para se produzir 905 calorías.» 87
que os alimentos deveriam conter exactamente a mesma soma de azoto e de car­ A falta de azoto, contido na carne, favorece, aliás, a degenerescencia: «Vede
bono.» 82As dosagens sáo facilitadas pelas novas tabelas: as de Payen, as de Le- a Irlanda. A Irlanda? Reinaría a Inglaterra pacificamente sobre este povo em
theby ou de Jules Cyr permitem apreciar o valor em carbono e em azoto de cada apuros se náo fosse praticamente a batata a ajudá-la a prolongar-lhes a sua la-
género. Elas indicam que 100 unidades de carne de vaca contém 11 unidades de mentável agonia?» 88A ausencia de carne, obriga, enfim, ao uso de forgas facti­
carbono, enquanto que 100 unidades de chocolate contém 58; as mesmas pro- cias que acentuam o risco degenerativo: «O homem submetido a um regime ali­
porgóes que sáo de 16 para o fígado de vitela e 42 para as favas 83. O gesto do mentar insuficiente encontra-se fatalmente levado a procurar ñas bebidas
regime já náo é o mesmo, sendo composto por números inéditos: aqueles que alcoólicas, náo a forga que elas náo lhe poderiam dar, mas a excitagáo impulsi­
tornam equivalentes uma quantidade de páo e uma quantidade muito diferente va necessária para fomecer, sem muito sofrimento, a sua própria substáncia.» 89
de legumes ou de biscoitos; contando únicamente o seu valor nutritivo e a sua É também por falta de recursos energéticos que os pobres recorrem ás bebidas
quantidade de energia. excitantes: rentabilidade dos alimentos e trabalho da respiragáo sáo entáo con­
siderados convergentes. O empreendimento moral de regeneragáo encontra as
suas correspondencias físicas. A energizagáo do corpo reúne-se durante a se­
Trabalho e carne de cavalo gunda metade do século xix ao empreendimento da vontade.
A carne é, aliás, o primeiro e por assim dizer o único género sobre o qual se
Ao que se acrescentam, evidentemente, as diferengas entre as situagóes de debrugam as reformas da alimentagáo escolar depois de 1850. Um decreto de
trabalho e as de repouso. A intensidade do fogo varia com a intensidade do la- Fortoul impoe, em 1853, 140 gramas de carne para os grandes, 120 gramas para
vor. O modelo energético engendra novas tabelas, aquelas que precisam qual a os médios e 100 gramas para os pequeños, quantidades elevadas, respectiva­
indispensável necessidade de carbono e de azoto originada pelo trabalho. Um mente, para 200 gramas, 160 gramas e 120 gramas em 1889, depois do relató-
primeiro cálculo, efectuado com os operários ingleses e franceses, empregados rio de uma comissáo médica 90. Os ajustamentos sáo ainda mais detalhados no
nos caminhos de ferro da Normandia entre 1840 e 1850, serve de modelo: ele exército: a ragáo de carne elevada de 250 gramas a 350 gramas em 1873, é sub-
atribui a superioridade inglesa aos 660 gramas de carne absorvida por homem dividida, depois de 1890, em ragáo de aquartelamento e ragáo de campo. Neste
diariamente, excedente de matéria azotada que substituí o músculo perdido. Os último caso, os fomecimentos sáo eles próprios modelados segundo a intensi­
operários franceses submetidos ao mesmo regime de carne teriam brevemente dade «forte» ou «fraca» da m anobra91. Hospitais e hospicios sáo igualmente ob­
alcangado a eficácia inglesa84. O cálculo é repetido ñas cámaras de Him: luga­ jectos de novas regulamentagóes depois de uma circular de 27 de Abril de 1864
res herméticos e vedados, onde os homens que efectuam um trabalho sáo sub­ ao preconizar a «distribuigáo, duas vezes por dia, de carne a todos os doentes»
metidos a rigorosas medigóes de todas as «entradas» e «saídas» do seu corpo. e privilegia o assado considerado mais nutritivo, enquanto que a ragáo global
Him, em 1865, certifica-se desta constatagáo: os dejectos azotados destes tra- poderia, em paralelo, ser diminuida 92. É, enfim, em gramas de azoto que sáo
balhadores experimentáis sáo duas vezes mais consideráveis do que se eles ti- calculadas as refeigoes operarías distribuidas em algumas «cooperativas» in­
vessem em repouso 85. A carne e as proteínas impóem-se, sem contestagáo, dustriáis criadas na segunda metade do século. A de Godin, em Guise, é carac­
como alimento de trabalho. Já náo se trata simplesmente da «forga do sangue» terística: os 130 gramas de matérias azotadas «necessárias» sáo obtidas após ri­
como Balzac deixa entender86, mas antes do rendimento energético, um jogo de gorosos cálculos da quantidade de sopa e de legumes frescos, da porgáo de
queijo, dos gramas de caldo de carne e de páo ” . Um cálculo frenético varre
81 L. Figuier, L ’A n n ée scientifique, 1865, p. 346. mesmo as situagóes dos mais variados trabalhos, cerca de 1860, para diferen­
82 G . Le B on, op. cit., p. 117.
83 A . Payen, D es substances alim entaires, Paris, 1853, pp. 353-354; ver tam bém J. Cyr, 87 J. Cyr, op. cit., p. 312
Traite de V alim entation, P aris, 1869, p. 302, e H. Letheby, L e s A lim ents, Paris, 1869, p. 120. 881. Geoffroy Saint-Hilaire, citado por C. Husson, L'Alim entation anímale, Paris, 1881, p. 47.
84 A . P. de G asparin, C ours d ’agriculture, 1846 (1.a ed., 1843), t. v, p. 395, e J. Cyr, op. 89 C. H usson, op. cit., p. 47.
cit., p. 254. 90 J. R ochard, Traite d ’hygiéne p u b liq u e et privée, Paris, 1897, p. 810.
85 G . A. H im , E squisse élém entaire d e la théorie m écanique de la c haleur e t ses consé- 91 Ibidem , p. 893.
q uences philosophiques, Paris, 1865. 92 H. J. D avenne, R égim e d ans les hdpitaux et hospices, Paris, 1 8 6 5 ,1 . 1, p. 292.
86 Ver p. 176. 93 Ver M . R oland, «D étruisons la m isére», J ournal d ’hygiéne, Paris, 1877, p. 423.

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A POR (¡A DE SI E A FO R £A DOS OUTROS A IN V EN £Á O DA ENERGIA

ciar, em cada caso, os regimes alimentares cifrados: «Teceloes que trabalham reconhece-se em certos índices de proveniéncia. Os cameiros das pastagens do
muito», «operários da marinha na Crimeia», ferreiros, pugilistas, engenheiros, Berry e de outras regióes francesas sáo geralmente grandes, copiosos e de uma
soldados e marinheiros 94, mas também situacoes de «repouso», de «exercício came delicada. Os carneiros de importagáo alemá sáo mais pequeños e menos
moderado», de «trabalho activo» ou de «trabalho duro» 95. tenros.» 101
Aumenta a certeza, em meados do século, de que é preciso alterar o merca­
do de carne, deslocar as preferencias e os gostos. A carne de cavalo, até ai ne-
gligenciada ou desprezada está no centro de uma verdadeira campanha de sen­ As metamorfoses da respiragáo
sibilidade. Em 1855, Renault, o director da Escola de Veterinária de Alfort,
convencido do interesse económico do produto, langa-se num vasto trabalho de A perspectiva energética náo pode, aliás, limitar-se apenas ás substáncias
opiniáo. Ele dá a provar a carne de cavalo aos operários de Alfort. Organiza alimentares. A elas se deve acrescentar a atengáo ao fogo, o principio que na
«banquetes hipofágicos» reunindo políticos, jomalistas, eruditos, homens de le­ máquina corresponde á fomalha e no organismo á respiragáo: o oxigénio que
tras, com vista a fazer oscilar a sensibilidade colectiva. Um objectivo domina queima os géneros.
estas campanhas: pór no mercado uma carne mais acessível e menos dispen­ Esta evocagáo da fornalha é retomada inúmeras vezes em meados do sécu­
diosa, procurar instalar-lhe o gosto. Figuier, frequentador destes banquetes hi­ lo para sugerir a prevengáo e a saúde. Rayer cita em 1840 as manadas de renas
pofágicos, elogia o valor do salsicháo de cavalo, o valor do bife e sobretudo o transportadas de norte para sul para ai serem domesticadas, mas regularmente
do caldo: suficientemente gordo para ser «ao mesmo tempo um alimento albu- dizimadas pela tuberculose: os pulmoes tomados menos activos, as tarefas me­
minóide e respiratorio» 96. A iniciativa tem eco: o prefeito do Sena autoriza a nos rudes, provocariam a doenga ao restringir as trocas gasosas l02. Rufz quer
abertura de talhos cavalares a 9 de Agosto de 1867; sáo abatidos todos os anos, provar na Martinica, que a tísica toca em primeiro lugar os menos activos, as
em Paris, 5000 animais, neste novo tipo de negocio; número estimado em crioulas brancas, sobretudo as que tém menor débito respiratorio 103. Lagneau
30 000, em Franga, em 1874, para uma carne que é duas vezes mais barata do explica as tísicas dos distritos industriáis em 1877 pelos trabalhos sedentários
que a de vaca 97. Renault considera ter, enfim, tomado acessível «a milhoes de exigidos pelas fábricas, tarefas fixas com as quais as pressoes físicas limitam «o
homens um alimento reparador» 98. livre funcionamento dos órgáos respiratorios» 104. O exercício, pelo contrário,
A originalidade da campanha é também a de recorrer a novos interlocutores: inverte estas desordens ao tonificar a respiragáo: o seu fogo protege mais do que
jom alistas, homens de ciencia, académicos, «aqueles que tém a missáo de es­ antes. Daí as numerosas propostas de acgóes preventivas: Jaccoud sugere as ele-
clarecer a opiniáo sobre todas as questóes que se ligam á agricultura e á higie­ vagóes no plano inclinado para preservar da tísica; ele exige o uso de um pau
ne» 99. Os debates sobre a saúde, como se viu, já náo se limitam, depois de 1850- «interposto entre a regiáo dorsal e os bragos langados para trás» l05; ele utiliza
-1860 aos políticos e aos médicos: a opiniáo tem o seu papel mesmo que seja, igualmente um pulverizador de ar comprimido, concebido para penetrar melhor
como neste caso, mais orientada do que esclarecida. A campanha é, aliás, a ré­ as anfractuosidades dos bronquios. A técnica visa o aumento do volume intra-
plica directa daquela da empresa contra os flagelos alcoólicos ou sifilíticos. Os toráxico. As estáncias termais recorrem, aliás, ao pulverizador, por volta de
temas correspondem-se, variando apenas do «negativo» ao «positivo»: passar 1860, para langar nos pulmoes vapores e nuvens de água 106.
da degenerescencia á regeneragáo, inverter o enfraquecimento. No centro deste A explicagáo dos efeitos globais do exercício muda, enfim, com esta impor-
retomo: a visáo nova de energia. É preciso dizer que o consumo de carne cres- táncia dada á respiragáo. Bouchardat descreve em 1861 uma prática já designa­
ce regularmente no século xix por razóes mais vulgares, sinal do lento enrique- da como «treino» ’07: um balango subtil entre o exercício e o regime. A prepa-
cimento, evidentemente, aumentando de 67 quilos a 80 quilos por habitante ragáo do pugilista Crible, por exemplo, com vista ao seu combate contra
e por ano em Paris entre 1866 e 1878, e de 52 quilos a 63 quilos por habitante e Molineau, alguns anos antes, que vigia o peso do seu corpo para passar, em trés
por ano em Marselha entre as mesmas datas l0°. É a atengáo fascinada de Xa-
vier-Édouard Lejeune, empregado modesto que acede a um consumo mais ou
101 X .-É . L ejeune, C alicot (1845-1912), Paris, M ontalba, 1984, p. 124.
menos regular de came, por volta de 1865: «A vitela deve estar mais branca do 102 C itado por A. B ouchardat, op. cit., p. 657.
que sanguinolenta e ter uma cor límpida. A pema de cameiro de boa qualidade 103 Ibidem , p. 658.
IM G. L agneau, D es m esures d ’hygiéne p u b liq u e p ropres á d im in u er la fré q u e n c e de la
94 H . Letheby. op. cit., p. 118. phtisie, P aris, 1875, citado p o r L. Figuier, L ’A n n ée scientifique, 1877, p. 334.
95 Ibidem , p. 110. 105 S. Jaccoud, C urabilité et Traitem ent de la p h tisie p ulm onaire, Paris, 1881, p. 119.
96 L. Figuier, «L es nouvelles b oucheries de cheval établies á P aris et l ’alim entation au 106 A rt. «T rom pe», M . D urand-F aradel, E. Le B ret, J. L efort, D ictionnaire g én éra l des
m oyen de la vian d e de cheval», L ’A n n é e scientifique, Paris, 1867, p. 389. eaux m inérales et d ’hydrologie m édicale, Paris, 1860, t. n, p. 858.
97 Ver Le Journal des débats, 1874, citado por L. Figuier, L ’A nnée scientifique, 1874, p. 384. 107 D epois de 1860, as teses de m edicina sobre o tem a sao num erosas: F. J. de France,
98 Idem. D e l ’entrainem ent, tese de M edicina, P aris, 1859; T. A m ourel, E ssai su r l ’en tra in em en t et
99 Ibidem , p. 395. ses applications en m édecine, tese de M edicina, M ontpellier, 1860; A. D am bax, D e Ven-
100 S tatistiq u es de la F rance, nouvelle série, P aris, 1881, t. VIII, p. x x x iv . trainem ent, tese de M edicina, Paris, 1866.

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A F O R gA DE SI E A F O R f A DOS OUTROS A IN V E N fÁ O DA ENERGIA

meses, de 188 para 152 libras, após ensaios e corridas medidos e uma alimen­ da sua primeira página de 22 de Janeiro de 1875: «Náo é verdade que a ginás­
tagáo ajustada 108. A ideia é de manter apenas o «calor útil», criando uma «vita- tica médica e racional faz parte da nova higiene?» 115 Paz é, aliás, o primeiro a
lidade maior dos tecidos» 109. É preciso ver que se trata de uma nova combina- apresentar a sua ginástica como um modelo global de luta contra as doengas:
gáo entre a forga e a purificagáo. O alimento já náo é um simples acumular «Um meio infalível de prevenir as doengas e de prolongar a existencia.» 116
como na representagáo tradicional, e a evacuagáo também já náo é a simples Flaubert descreve a mesma expectativa preventiva em Bouvard e Pécuchet
rejeigáo. A visáo de uma combustáo eficaz tudo mudou: é ao ser queimado que quando, ñas suas buscas heteróclitas e apaixonadas, os mostra a recorrer á gi­
o alimento provoca, ao mesmo tempo, a eliminagáo e a energia. O organismo nástica depois de terem experimentado massivamente regimes, religióes, recei-
purifica-se e reforga-se tanto melhor quanto mais estiver activo. Ele ganha em tas de médicos, leia-se de charlatóes “7.
rentabilidade. A instalagáo de ginásios quase exclusiva na zona oeste de Paris, durante a
A exploragáo pedagógica do exercício é mais insistente depois de 1850- segunda metade do século xix, revela a extensáo limitada desta prática !1S. Ela
-1860. As escolas primárias do Segundo Império sáo expressamente «encoraja­ sugere também a diferenga entre uma ginástica concebida para a escola, com os
das» a criar um ginásio. Hillairet que as visita em nome do Imperador, em 1868, seus movimentos colectivos e cadenciados, e uma ginástica escolhida pela eli­
felicita-se com algumas iniciativas notáveis. Ela cita como um sucesso os te, mais individual, que dispóe de aparelhos caros, feitos com correias, exten­
«242 ginásios... organizados pelas escolas primárias do distrito de Aisne» em 18 sores e de tabuleiros movéis, para desenvolver melhor o desenho das silhuetas.
meses, entre 1867 e 1868 i10. Pequeñas salas, modestas, na verdade, quase limi­ É necessário ver, no entanto, que náo reside ai a verdadeira transformagáo. Ela
tadas aos pátios dos recreios, munidas de alguns pesos, barras e ferros, elas re- prende-se com a imagem de saúde. Os sinais de robustez mudaram. A certeza
cebem uma nova aula. Os exercidos de ordem e a disciplina colectiva sáo uma de Michel Lévy: «calcular a capacidade respiratoria vital é servir-se de precio­
parte importante destes projectos. A República apressa-se a tom ar obrigatórios sas indicagóes para medir a forga dos individuos e a profilaxia da sua forma de
os exercidos bem cadenciados. O objectivo, pela certa, é moral, até na escolha iminéncia mórbida» "9. O índice que combina a elevagáo de estatura com o pe­
dos cánticos que acompanham os movimentos dos alunos. Mas uma insistencia rímetro torácico, utilizado pelo exército francés do final do século para refor­
muito particular está regularmente presente, aquela que faz do «desenvolvi- mar os «maus» recrutas, é disto exemplo concreto. Ele permite obter um «coe­
mento da caixa torácica» 111 um exercício obrigatório. O trabalho do pulmáo ficiente de robustez» 120 desdobrado, neste caso, em cinco graus possíveis.
pertence ao trabalho escolar, nesta segunda metade do século xix: ele desen- A apreciagáo das constituigóes toma-se mais subtil, já náo é imediatamente se-
volve a saúde e toma menos suportável «a atmosfera maléfica do grémio ou da duzida pela forga aparente.
taberna» n2.
Mais vastamente, é a sensibilidade cultural face á ginástica que mudou: Pa­
ris tinha 3 ginásios em 1850, tem 14 em 1860 e 32 em 1880. A prática toma-se Um principio «total»
visível, mesmo que seja modesta, segundo os critérios dos nossos dias. Ela es-
pecializa-se também: neste grupo de estabelecimentos, 4 declaram ter finalida­ É impossível, enfim, compreender, a importancia do principio energético
des higiénicas em 1860, enquanto que sáo já 14 em 1880 "3. O estabelecimen- após meados do século, sem lhe medir a sua cada vez maior extensáo. Ele trans­
to de Paz é um dos mais característicos: uma determinada publicidade forma todos os conselhos higiénicos, depois de 1860. Gallard, por exemplo, a
denomina-o «Grande Ginásio Médico» em 1867, atribuindo-lhe uma frequén­ ele recorre para explicar os efeitos da limpeza: a manutengáo da pele permitiría
cia anual de 600 alunos "4, salientando os cuidados anexos de massagem e de um afluxo de oxigénio que atravessaria os poros. Garantía afirmadas nos pro­
hidroterapia que tem para oferecer. Le Petit Journal consagra-lhe a totalidade gramas oficiáis dados aos professores primários durante a Exposigáo Universal
de 1867: «A pele, bem limpa, é mais macia, funcionando e respirando melhor;
108 A. B ouchardat, op. cit., p. 512. uma vez que a pele respira como os pulmóes e o sono, nestas condigóes, pro­
109 A. P roust, Traite d ’hygiéne p u b liq u e et p rivée, Paris, 1877, pp. 499-500, e J. R o­ duz um repouso infinitamente mais reparador, que dá a todo o organismo um
chará, Traité d ’hygiéne p u b liq u e et privée, Paris, 1897, pp. 829-830. novo vigor e uma nova energia.» 121A manutengáo das superficies corporais me-
110 J.-B . H illairet, R a p p o rt á Son E xcellence le M inistre de l ’ln stru c tio n p u b liq u e su r
lhora a combustáo orgánica. A certeza é idéntica para Yvaren, médico de Avi-
V enseignem ent d e la gym nastique dans les lycées, colléges, écoles n orm ales e t écoles pri-
m aires, Paris, 1869, p. 29.
115 T. Grimm, «La gym nastique médicale», Le Petit Journal, Paris, 25 de Janeiro de 1875, p. 1.
111 Ib id em , p. 47.
116 É o subtítulo do trabalho de E. Paz, op. cit.
112 E. Paz, L a G ym nastique raisonnée, m oyen infaillible de p ré v e n ir les m aladies et de
117 G. F laubert, B ouvard e t P écuchet, Oeuvres, op. cit., t. n, p. 880.
p ro lo n g e r l ’existence, Paris, 1872, p. 45.
1,8 J. D efrance, op. cit., v e r «L a gym nastique dans l ’espace parisién», pp. 106-107.
113 A n n u a ire du com m erce, Paris, 1860 e 1880; ver tam bém J. D efrance, L 'E x ce lle n ce
119 M . Lévy, op. cit; t. II, pp. 238-239.
corporelle, la fo r m a tio n des activités p h y siq u es e t sp o rtives m odernes, 1770-1914, R ennes,
120 E ste coeficiente de P ig n e t é largam ente evocado p o r L. M ayet, L a F iche m édicale des
P resses u n iversitaires de R ennes, 1987, pp. 106-107.
enfants envoyés d a n s les co lo n ies de vacances et la Valeur de robusticité, Lyon, 1906.
114 «L e gran d gym nase dirigé p a r E ug én e Paz», A lm a n a ch fo rm u la ire du contribuable,
121 T. G allard, N otions d ’hygiéne á l ’usage des in stituteurs prim aires, P a ris,1868, p. 28.
Paris, 1867, pág in a de rosto.

198 199
A IN VEN gÁ O DA ENERGIA
A FO R ^A DE SI E A FO R £A DOS OUTROS

gnon que redige auténticas memorias profissionais em 1882, após vários decé­ no século xvm, líquido que corria pelo pavimento para afastar o odor; mas sim
nios de prática: «A pele absorve da mesma forma que respira» l22; ou para Beau- a água que «trabalha», aquela que alimenta «as necessidades da indústria» e
grand, que corrige a sexta edicáo de Traité d ’higiéne de Becquerel em 1877 e que assegura «o desenvolvimento e a prosperidade das cidades» 127. Foi impos­
se congratula com uma multiplicagáo por dez dos banhos públicos parisienses to um novo principio: «Quanto mais a água é abundante mais a indústria se de-
entre 1816 e 1876: «Sao dados por ano 1 815 500 banhos; o que, para uma po­ senvolve.» 128
pulagáo aglomerada de 950 000 habitantes perfaz 2,3 banhos por ano e por ha­
bitante.» 123
O tema termodinámico de controlo das perdas e do cálculo das rentabilida­ A cidade drenada
des conceme, na verdade, ao conjunto dos comportamentos. A actividade se­
xual, por exemplo, até ai confinada a um lugar mais discreto nos conselhos hi­ A nova concepgáo, já inúmeras vezes descrita, é a da drenagem: rede invi­
giénicos, alcanga aqui uma aposta mais notoria. A ansiedade do número e a sível que transporta alimentos e dejectos como a rede sanguínea. «As galerías
preocupagáo com um défice precioso dominam preceitos e recomendagóes. subterráneas, órgáos da grande cidade, funcionam como as do corpo humano,
Uma verdadeira «biblia higiénica» para jovens casais vem acrescentar-se aos sem se exporem á luz do dia.» 129Da captagáo de águas limpas á perda de águas
velhos principios moráis. Debay, por exemplo, num livro editado várias deze- usadas, a totalidade da cadeia hidráulica é repensada por Haussman. As canali-
nas de vezes entre 1850 e 1870, contabiliza o número de actos hebdomadários zagóes sáo enterradas, comunicantes, e concebidas para alcangar cada casa num
«suportáveis» consoante a idade e o temperamento: «Dos vinte aos trinta anos, movimento de fluxo e refluxo. As fontes longínquas, mais «puras», constituem
o homem casado pode exercer os seus direitos de duas a quatro vezes por se­ o incentivo, e já náo o rio. As águas de Vanne e as de Dhuys, captadas ñas pla­
mana. Dos trinta aos quarenta anos o homem deve restringir-se a duas vezes por nicies de Champagne, conduzidas por canalizagáo fechada em 1865 para os al­
semana. Dos quarenta aos cinquenta anos uma vez. Dos cinquenta aos sessenta tos de Paris, opóem-se aos dos velhos reservatórios saídos do Sena onde Bou-
anos uma vez de quinze em quinze dias e menos ainda se náo se sentir necessi­ chut, num relatório á Academia de Medicina em 1860, descrevia, flutuando «em
dade» l24; a «segunda velhice» sendo condenada a uma continencia indispensá- suspensáo, uma inumerável quantidade de seres vivos que se apanham com
vel á sua sobrevivencia. O raciocinio parece ser rigorosamente económico: ge- uma colher como numa sopa» l3°. O reservatório de Ménilmontant ilustra o novo
rir a substancia para manter o calor e favorecer as forgas orgánicas. O líquido dispositivo com as suas duas salas abobadadas e sobrepostas: uma que retém a
precioso faz parte das reservas, das despensas, das eficácias, das quais as práti­ água da fonte destinada ao uso doméstico, a outra que retém a água do rio des­
cas de higiene extraem o sentido depois de 1860. O desejo feminino, julgado tinada ao uso industrial. O rio é já expressamente suspeito. Em 1860, multipli-
mais ávido, mais agitado, pelo homem do século xix, náo teria que se identifi­ cam-se as anedotas sobre homens mortos por «terem provado um gole» 131 de
car com as prescrigóes masculinas: «Ainda que a mulher possa sem inconve­ água do Sena. Só a captagáo das fontes pode evitar a doenga.
niente repetir o acto amoroso mais frequentemente do que o homem, ela terá, A ideia do esgoto colector de ramificagóes invisíveis e radiantes concluí a re­
apesar disso, razáo para ser sobria, pois é reconhecido que as mulheres que dele presentagáo mecánica e orgánica da alimentagáo urbana, a do trabalho «interior»
abusam estáo sujeitas a infelizes infecgóes dos ovários, no útero, e a essa doen­ garantida pelos fluxos: «As secregóes ai se executariam misteriosamente e man-
ga terrível que se designa por cancro.» 125 teriam a saúde pública sem perturbar a boa ordenagáo da cidade e sem ferir a sua
O modelo energético orienta ainda as lógicas sanitárias, das quais limpeza beleza exterior.» 132É em 1860 que comegam os primeiros trabalhos dos esgotos
ou sexualidade náo passam de exemplos entre tantos outros. de dejectos domésticos parisienses. Os números confirmam a extensáo do dis­
positivo entre 1860 e 1880: os contratos de água passam de 8770, em 1875, para
40 596, em 1875; o comprimento dos esgotos passa de 120 quilómetros em 1850
3. A E N E R G IA . A C ID A D E , O T R A B A L H O para 530 quilómetros em 1875 e para 650 quilómetros em 1880 ’33.

126 G . E. H aussm ann, M ém oire su r les eaux de P aris, P aris, t. I, p. 7 5 .


Este cálculo das despesas e das rentabilidades náo transformou apenas a vi­ 127 L. Figuier, Les M erveilles de l ’industrie, Paris, (cerca de 1 87 5 ), t. m , p. 3 3 5 .
sáo das defesas corporais por volta de 1860. Ele transformou a visáo das des­ 128 C . G rim aud de C aux, D es eaux pub liq u es e t de le u r application a u x besoins des g ra n ­
pesas colectivas. Demonstra-o o uso da água, indissociável na mesma altura des villes, des com m unes et des habitations rurales, Paris, 1 8 6 3 , p. 2 9 7 .
das reflexóes sobre o urbano. Já náo se trata da água que refrescava o ar, como 125 G . E. H aussm ann, op. cit., 1 . 1 , p. 5 3.
130 B ouchut, «M ém oire su r les eaux de Paris», com unicado á A cadem ia de M edicina, de
17 de Jun h o de 1 8 6 0 , c itado por L. Figuier, Les M erveilles... op. cit., t. III, p. 3 2 0 .
122 P. Yvaren, E ntretiens d 'u n vieux m édecin su r l ’hygiéne et la inórale, Paris, 1882, p. 56. 131 L e s M ondes, revue hebdom adaire des sciences, 1 8 7 5 , n.° 3 8 , p. 6 3 9 .
123 A. B ecquerel, op. cit., p. 539. O s núm eros, sem dúvida m enos precisos, de A bel 132 A. M eyer, «La canalisation souterraine de Paris», P aris Guide. Paris, 1868, t. n, p. 1614.
H ugo, davam u m a m édia de tres banhos anuais p o r p arisiense em 1835. Ver p. 175. 133 P. C ébron de L isie, «L es eaux et les égouts á Paris, évolutions techniques», P arís et
124 A . D ebay, H ygiéne et P hysiologie du m ariage, Paris, 1873 (1.a ed., 1853), p. 94.
ses réseaux, naissance d ’un m ode de vie urbain, x ix e-x x e siécle, Paris. B ibliothéque histo-
125 Ibidem , p. 73. rique de la V ille de Paris, 1 9 8 0 , p. 116.

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A INVENgÁO DA ENERGIA
A FO R £A DE SI E A FOR?A DOS OUTROS

O apelo á energia, todavia, com as suas drenagens e as suas rentabilidades,


O último avatar da energia nesta rede urbana com intuito sanitário: a ideia
funda o principio dos saneamentos citadinos.
de tom ar produtivas as águas sujas para as tom ar mais inofensivas; fazer traba-
lhar os dejectos. Haussman formula a proposta em 1858. Élie Joliclerc concre-
tiza-a alguns anos mais tarde. Concessionário da Cidade de Paris para as águas
Do trabalho regenerado ao trabalho «protegido»
de esgoto em 1867, ele tenta realizar um duplo objectivo: evitar que a água dos
colectores seja deitada no Sena e explorar as matérias assim derivadas. Joliclerc
Este apelo á energia acompanha, enfim, uma nova relagáo com o trabalho:
utiliza as águas do colector de Asniéres que desaguam no rio abaixo de Paris e
o projecto regenerador reclama uma participagáo de todos. Já náo existe a re-
ameagam Versalhes; ele capta o fluxo, dirige-o para a planicie de Gennevilliers
clusáo ou o afastamento dos menos aptos, como na Franga clássical4:, mas a sua
por meio de uma bomba a vapor de 4 cavalos antes de a fazer aproveitar para
correcgáo e a sua fusáo na máquina industrial. A energia trazida pela primeira
as culturas l34.
industrializagáo tolera mal a perda. Ela impóe a colaboragáo de cada um. E o
A originalidade náo está, evidentemente, na simples aplicagáo do estrame.
sentido das cruzadas contra os perigos degenerativos. É o sentido de uma ges-
Ela está na ligacáo entre a energia e o desaparecimento do perigo; o recurso á
táo das cidades mineiras, cerca de 1860-1870: «O Creusot náo é simplesmente
forga do dejecto para anular a sua ameaga: «A purificagáo pela combustáo das
uma fábrica, é um verdadeiro mundo á parte, uma espécie de império do ferro,
matérias orgánicas no solo é o único procedimento conhecido que dá resultados
que poderia tomar como divisa: “Tudo pelo ferro . 22 000 pessoas estáo única­
satisfatórios.» 135É necessário este retomo á térra, este «círculo que se fecha» 136
mente concentradas nesta ideia dominante: extrair o minério de ferro.» 143 O sa-
onde toda a energia seria despejada para que o dejecto fosse, ele próprio, «pu­
neamento energético concorre para esta totalizagáo. Um ideal de ordem e de
rificado»: «Combustáo lenta, natural pelo mero resultado da passagem das
disposigáo do qual France-Ville, a cidade imaginada por Júlio Veme em Le 500
águas através das moléculas do solo.» 137O principio é adoptado para Paris, em
millions de la Bégun, continua a ser uma referencia enaltecida. O reforgo de
1877, e a exploragáo estende-se ás planicies de Chatou, de Saint-Germain e de
uma policía sanitária com o dever «de amortecer as predisposigóes mórbidas
Argenteuil. Londres, enfim, prolonga os seus esgotos até á beira-mar para tor­
hereditárias» 144 através de uma batería de instragóes colectivas. Como as que
nar, muito simplesmente, «férteis as areias sem valor» 138. Uma rentabilidade
difundem ainda as instragóes de 1850 depois da cólera de 1849: desobstruir, fa­
promovida a principio de purificagáo.
zer circular a água, «trazer a enxada para os bairros pobres» l45.
Este modelo de drenagem das cidades náo se impós de repente. Perduram
Do interior do próprio trabalho é que iria, no entanto, nascer lentamente um
outros modelos na segunda metade do século xix. As águas de Marselha conti­
modo de pensar mais complexo. Foi preciso a confrontagáo com as tarefas in­
núan) a ser captadas na Durance e estagiam durante muito tempo em reservató-
dustriáis, a constatagáo repetida dos riscos, a explosáo das máquinas, a obstru-
rios fechados para perderem as suas impurezas. As águas de Lyon continuam a
gáo das oficinas e os choques. Foram precisas as eventualidades de uma energia
ser captadas no Rhóne e sáo filtradas em bancos de areia 139. Do mesmo modo
que se tornou ameagadora para que a imagem do saneamento náo mais se limi-
a difusáo difícilmente alcanga as habitagóes, no final do século xix. Os núme­
tasse ao tema das limpezas. Reybaud coloca o problema ao visitar Le Creusot
ros revelados por Jean-Pierre Goubert confirmam resistencias e arcaísmos: «Em
nos anos de 1870: «A actividade dos motores é uma ameaga constante para a in-
1892, só 290 vilas, em 691, distribuem água sob pressáo, fazendo-a chegar
tegridade dos membros. Nada de distracgáo nem mesmo de esquecimento sob
aqueles que a contratam. Estas 290 vilas reúnem 4 512 941 habitantes, mas náo
pena de se ser levado por uma correia ou triturado por uma engrenagem.» 146
contam com mais do que 127 318 utentes.» 140Mais desventurada ainda perma­
A previsáo do acídente deve tornar-se uma aposta no saneamento.
nece a rede de águas usadas. O inquérito de Bechman, em 1892, revela que 90
Muito hesitante foi, de inicio, a consciencializagáo. O tema do acidente ori­
vilas, em 691, «dispóem de esgotos aos quais náo estáo ligados mais do que
gina, desde o inicio do século xix, litigios confusos. É que as suas causas sáo
156 054 utentes» 141. A instrumentagáo é dispendiosa e complexa, o que explica
frequentemente numerosas e obscuras, misturando intengóes e determinismos
os vagares da sua instalagáo. O modelo generaliza com tal forga o dominio dos
físicos. Cada episodio trágico conduz á suspeita sobre o operario, aquele que re­
ñuxos que pode parecer irrealizável para muitos.
gula ou dirige a máquina. O acidente continua a ser um drama, certamente, mas
excluido de toda a reparagáo, relatado sem comentários, como indica Le Pris-
134 L. Figuier, L ’A nnée scientifique, 1874, p. 293, e L es M ondes, revue hebdom adaire des
me, em 1841: «Madame Angel é máe de quatro filhos. O seu marido morreu no
sciences, 1875, p. 47.
135 L e s M ondes, revue hebdom adaire des sciences, 1877, n.° 42, p. 410.
142 Ver p. 119.
136 G. T issandier, L ’Eau, Paris, 1869, p. 329.
143 V. T urgan, L es G randes Usines, Paris, t. VI, p. 1.
137 N ote du directeu r des travaux de P aris su la situation du Service des e a u x d'égouts,
144 J. Verne, L es 500 m illions de la Bégum , Paris, H achette, 1966 (1.a ed., 1877),
Paris, 1879, p. 6 8 .
p. 158.
138 L. Figuier, L ’A nnée scientifique, 1868, p. 370.
143 M . N adeau, M ém oires de Léonard, a n d e n gargon magon, P aris, H achette, 1976
139 L. Figuier, L es M erveilles..., op. cit., t. III, pp. 386 e 370.
(1.a ed., 1895), p. 487.
140 J.-P. G oubert, La C onquéte de l ’eau, Paris, L affont, 1986, p. 198.
146 L. R eybaud, Le F er e t la H ouille, Paris, 1874, p. 46.
141 C itado p o r J.-P. G oubert, ibidem, p. 199.

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A FOR ^A DE SI E A FORQA DOS OUTROS A INVEN^ÁO DA ENERGIA

ano passado, colhido pela engrenagem de uma máquina a vapor... Diz-se, na vi- A exigencia de uma seguranga física operária tomou uma forma que náo tinha.
zinhanga, que morreu um operário e que deixava mulher e filhos; a emogáo ai O territorio da higiene pública adquire outros contornos. É uma dupla constata-
se deteve.» 147 gáo que impoe a jurisprudencia do dever patronal de 1850-1860: o Estado arbi­
E, no entanto, reclamada uma nova garanda mais fundamental, cerca de tra a salvaguarda física. Desenha-se um Estado protector ñas regras de assis-
1850-1860, estabelecida na responsabilidade do mestre. E o que mostra a deci­ téncia «teóricamente» acordadas, para com os desfavorecidos. A segunda
sáo do tribunal de Dijon em 1878: um operário da fundigáo move um processo constatagáo incide sobre a própria imagem do operário. Neste caso as exigen­
contra De Wendel por ter sido atingido por partículas de metal em ignigáo. Uma cias deslocam-se. A visáo que espera uma preocupagáo de decisáo e de vonta­
primeira sentenca denega o operário, em nome da sua imprevidéncia. Mas o de por parte do operário para melhor combater a degenerescencia, acrescenta-
operário acusa De Wendel de náo ter imposto aos fundidores as medidas de pro­ -se uma outra visáo, mais igualitária: as atitudes e os comportamentos dos ope­
tecgáo exigidas aos outros operários da fábrica. O tribunal de Dijon considera a rários seriam o resultado directo do meio físico. Muitos médicos e políticos,
acusagáo fundamentada: o patráo ou «director da industria» deve, «sob pena de neste fim de século, comegam a interpretar «o álcool do pobre» como uma con-
culpa, prever as causas náo só habituais, mas simplesmente possíveis de aci- sequéncia da miséria e náo o inverso l54. Muitos comegam a encarar a imprevi­
dentes, e tomar todas as medidas que fossem de natureza a evitá-las» 148. Nasce déncia como uma consequéncia possível da precariedade e das condigóes de
definitivamente uma nova reflexáo sobre as condigóes de seguranga industrial, trabalho: «A imprudencia é forgosa, ela é inevitável, ela resulta do próprio tra­
o ambiente das oficinas e o evitar de quedas e de choques. balho; o operário em laboragáo está exposto a todo o instante a um perigo com
Várias decisóes da jurisprudencia conduzem a novos regulamentos, como o que nem sonha, nem pode sonhar; se o imaginasse náo o enfrentaría.» 155 Daí a
decreto de 1 de Maio de 1880 que impoe a necessidade «de envolver numa cai- necessidade de uma protecgáo precisa, capaz de prevenir até a falta de atengáo
xa de madeira ou com uma grelha, as partes perigosas dos aparelhos com os do próprio operário. É sobretudo o gradual aparecimento de um direito, o da
quais os operários náo estejam a trabalhar» 149, ou ao editar os testes aos quais saúde, independente das intengóes de cada um.
devem ser submetidas as máquinas a vapor para estarem «em conformidade»: E efectivamente a partir da referencia energética que nasce novas imagens do
«Um selo colocado depois do teste indica em quilogramas por centímetro qua- corpo e novas práticas de saúde. É também desta referencia que nasce uma exten­
drado a pressáo que o vapor náo deve ultrapassar.» 150 sáo do territorio sanitário á prevengáo dos acidentes a cargo de medidas estatais.
Faltam ainda os inspectores para aplicar rigorosamente os textos, cerca dos Tomada de consciencia muito lenta, voltamos a dizer, onde os custos finan-
anos 1880. Falta também a vontade de promover a imparcialidade, de um julga- ceiros da protecgáo sáo outras tantas ocasióes de resistencias e de atrasos. O ar­
mento equitativo entre patróes e operários. As estatísticas, neste caso, sáo claras: caísmo é, aliás, por vezes mais confuso, mais latente, nesta segunda metade do
mais de 80% dos acidentes dáo-se por culpa dos operários, por volta de 1880, século xix, no que se refere ao próprio modelo energético. Os antigos modelos
enquanto de 12% a 15% apenas sáo atribuidos aos patróes 15‘. Faltam, enfim, al­ do corpo continuam vivazes. Basta o exemplo das fórmulas publicitárias nos
guns acordos entre as descobertas efectivamente reais dos perigos químicos e a jom áis dos anos de 1860-1880, para o confirmar.
disposigáo das oficinas. A vigilancia das mós de metal, por exemplo, náo é res-
peitada em 1880, quando algumas délas poderiam ser tomadas menos perigosas.
O procedimento de Ancelin permite, desde meados do século, humedecer as mo­ 4. O A R C A ÍS M O D O E L IX IR
las e conter as poeiras metálicas que elas projectam. Um cálculo efectuado em
Inglaterra revela uma esperanga de vida superior em 20 anos nos operários que As formas de publicidade exploradas pela imprensa sáo novas, na segunda
recorrem ao dispositivo húmido em relagáo aos que náo o utilizam 152. metade do século. Os seus cartazes ajudam a financiar os jomáis, que se tornam
Nasce, contudo, uma «higiene industrial» 153nesta segunda metade do século mais numerosos. Estes cartazes dáo espago aos usos preventivos. Ele divulgam
que acrescenta aos acidentes mecánicos os mais variados riscos de intoxicagáo. xaropes, pílulas, cordiais e tónicos, susceptíveis de proteger o corpo, revelando,
de passagem, a cultura do tempo. Vários destes produtos correspondem, é cla­
147 A ndréas, « L a m isére», Le P rism e, E n cyclopédie m orale du x ix e siécle, P aris, 1841, p. ro, á nova expectativa energética.
187. Outros, pelo contrário, sugerem a existencia de referencias sanitárias anti­
148 A rrét de la C our de cassation, 7 de Janeiro de 1878, citado por F.E w ald, op. cit., p. 239. gás. A sedugao do elixir tradicional, por exemplo, ainda muito presente nos jor-
149 A. P roust, op. cit., edigao de 1902, p. 1219. nais populares, ou a dos velhos purificadores dos humores. Coexistem repre-
150 Idem . U m a ordenagao de 23 de O utubro de 1823 im punha sem pre norm as aos m oto­
sentagoes arcaicas do corpo com as da modemidade do século.
res p a ra g arantir a «seguranga pública», com o indica M . E. de C h abrol-C ham éane no seu
D ictionnaire de législation usuelle, Paris, 1835, t. II, p. 135. E xem plo ainda raro, enquanto
que o decreto de 1880 incide sobre o espago global da oficina. 154 E a oposigáo total entre o ju íz o de A. B ouchardat em 1880: «A bebedeira to m o u -se a
151 F. E w ald, op. cit., p. 248. m aior causa de m iséria» (op. cit., p. 310) e o de G. L e B on na m esm a altura: «L am entem os
152 A . Proust, op. cit., edigao de 1877, p. 194. o bébado, m as nao o acusem os... a aguárdente é o opio d a m iséria» (op. cit., p. 115).
153 L. P oincaré, Traité d ’hygiéne industrielle, P aris, 1886. 155 A. de M un, C ham bre des députés, J o u rn a l officiel, 17 de M aio de 1888, p. 1425.

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A F O R gA DE SI E A FORQA DOS OUTROS A IN V E N fÁ O DA ENERGIA

A s pogdes publicitárias A ambiguidade dos tónicos

Quando o Illustration exalta a água de melissa dos Carmelitas em 1864, o As mensagens publicitárias dirigidas expressamente aos médicos náo devem
jornal insiste na seriedade com a qual os austeros religiosos preparam o produ- igualmente enganar, tanto evoquem descobertas novas como medicamentos já
to. Eles aplicaram um segredo muito remoto. Um a fórmula vinda «em linha di­ conhecidos: a quina, o óleo de fígado de bacalhau, «reconstituintes nutrimen-
recta, dos druidas, que a tinham eles próprios obtido dos herdeiros do profeta tais» 162, os extractos de «carne crua», como o elixir Duero, premiado com me-
Elias» l56; tradigáo quase sacralizada por esta presenga do velho profeta. O prin­ dalha de prata na Exposigáo Universal de Paris em 1875 163. A sua modernida-
cipio é o mesmo quando o almanaque do Musée des familles, em 1867, exalta de é, evidentemente, adquirida. O ferro aparece, por vezes, nestes géneros
o chá do conde de Saint-Germain: bebida misteriosa que o «famoso conde da compostos. Adescoberta do ferro que mantém o oxigénio ñas células do sangue
corte de Luís XV» teria utilizado para alcangar a sua «extraordinária longevi- promove o mineral a novo parceiro da respiragáo. Daí a multiplicidade de fór­
dade» 157. A publicidade desta segunda metade do século xix move crengas e mulas publicitárias, cerca de 1870, de «águas ferruginosas», dos sais «arsénico-
convicgóes, e, ao mesmo tempo, o apelo á ciencia nunca tinha estado táo pre­ -férricos naturais» l64, das drageias de «fosfato de ferro tribásico solúvel» ,65.
sente. O tema da «panaceia», desde há muito esquecido pelo erudito, conserva, A característica comum, todavia, de vários destes produtos eruditos é que
neste caso, uma credibilidade. A «Revalesciére du Barry» impede tanto a gas- eles sáo simplesmente misturados no vinho, valorizados pelo acompanhamento
trite como a tísica, os reumáticos, a insónia, as hemorroidas, os humores visco­ alcoolizado. Uma quinzena de vinhos diferentes serve de veículo á quina, ao
sos das mucosas, os atordoamentos 158... ferro ou ao fosfato de cálcio, só no Jounal d'higiene para o ano de 1876. Alguns
M ais revelador é o apelo ás representagóes «antigas» do funcionamento cor­ destes vinhos seriam, aliás, só por si, medicamentosos: o Sao Rafael, por exem­
poral. Um mecanismo orgánico idéntico encontra-se no centro das recomenda- plo, «prescrito exclusivamente como fortalecedor nos Hospitais de Paris» ou
góes e é evocado por mais de dois tergos destas formas publicitárias: a purga. o Málaga, «tónico e digestivo de primeira ordem» 167. A publicidade médica
O papel da água de melissa e do chá do conde Saint-Germain: ambos «purgam prolonga assim a forga das velhas crengas. Ela bebe da tradigáo, lembrando
ligeiramente e sem provocar cólicas» 159. O corpo, para este público predomi­ também ela a atraegáo pelo elixir.
nantemente popular mas também para os leitores mais abastados do Temps ou Uma nova acgáo é reconhecida ao álcool na segunda metade do século xix:
do L ’Univers, mantém-se ainda em grande parte pela acgáo sobre os dejectos. o vinho ajuda a queimar o oxigénio. O produto é energético e também alimen­
A obstipagáo guarda um perigo surdo e reiterante. E contra ela que se acumu- to respiratorio. O seu poder calórico é suficientemente salientado para parecer
lam as pogóes: o «Affecteur» Boyveau, a bolacha Ollivier, a água de Puliría, o necessário tanto á ragáo do soldado como á do estudante l68. Mas a acumulagáo
carváo de Belloc, as pílulas «vegetáis apetitosas» Cauvin, a «podófila» Coirre, de fórmulas publicitárias destes álcoois médicos, a diversidade das suas apre-
o «Tamar indiano», a água Laferriére, a bolacha Caroz, as cápsulas Laroze, o sentagóes e das suas aplicagóes, cerca de 1870-1880, revelam obscuras toleran­
«Apozema de saúde» Lemaire. Os próprios produtos náo purgativos sao mobi- cias na própria linguagem médica. Rochard, severo ferrabrás do alcoolismo,
lizados contra a retengáo de dejectos: o carváo de Beloc, por exemplo, «remé- inspector-geral do Servigo de Saúde da Marinha, em 1880, defende que «a em­
dio por excelencia contra a obstipagáo» ao mesmo tempo que «náo purga» briaguez do vinho é inofensiva e dissipa-se com facilidade através de um sono
Algumas fórmulas lembram as antigas representagóes dos humores, a manu­ prolongado» 169, enquanto que a embriaguez devida á aguárdente, que se toma
tengáo persistente do seu corrimento para aligeirar mais os órgáos: «Emprega- tóxica pela concentragáo de álcool, seria o verdadeiro perigo.
-se ainda o chá de Saint-Germain para estabelecer uma derivagáo suave e pro­ No crazamento do modelo energético e da tradigáo tónica, o vinho mantém
longada para o intestino na sequéncia de congestóes ou apoplexias do cérebro, uma sedugáo perturbadora. A crenga na sua forga sobrevive mesmo entre aque­
nos catarros crónicos, etc.» 161 les que denunciam o alcoolismo. Imagens simultáneamente velhas e renovadas,
O tempo, evidentemente, marcou estes velhos receios. Os produtos de mea­ a sua marca náo é ainda abandonada. Os produtores de vinho e os vendedores
dos do século sáo industrializados, promovidos, por vezes, sob a aparéncia da do final do século chegam ainda, depois de vários processos, a disputar a ven­
própria ciencia: os seus efeitos secundários sáo sempre «medidos», calculados da de vinho de quina, exclusiva dos farmacéuticos. Um julgamento em Lyon,
até ao insensível: a purga perfeita é aquela que náo se sente. A abundancia de
pílulas ou de elixires purgativos confirma, no entanto, como sobrevivem as ex­ 162 Journal d ’hygiéne, Paris, 1875, anúncios, p. 3.
pectativas tradicionais apesar da renovagáo das representagóes. 163 Ibidem , 1876, p. 44.
164 P ublicidade ás drageias D om inique, ibidem , 1875, p. 3.
156 A lm a n a ch de i Illustration, P aris, 1864, p. 65. P ublicidade ao ferro hem ático L.-J. M ichel, idem.
157 A lm a n a ch de F rance e t du M u sée des F am illes, Paris, 1867, p. 155. 166 P ublicidade ao vinho de Saint-R aphaél, G azette hebdom adaire de m édecine e t de chi-
158 Ibidem , p á g in a de rosto. rurgie, Paris, 1876.
159 Ibidem , p. 155. 167 P ublicidade de D usart, ibidem , 1876.
160 A lm a n a ch de F rance, 1868, op. cit., p. 149. 168 J. R ochard, op. cit., p. 897.
161 Ibidem , 1867, op. cit., p. 155. 169 J. R ochard, Q uestions d ’hygiéne sociale, Paris, 1891, p. 6 .

206 207
A F O R £A DE SI E A FOR£A DOS OUTROS

em 1888, autoriza um retalhista de álcool a vender o vinho de quina, conside­


rando que o produto «fortalecedor» náo deve ser «considerado como um com­
posto dependente da farmácia» l70.
Com a coca utilizada em certos vinhos, a manutengáo dos arcaísmos é ain­
da mais notoria. A ciencia, neste caso, parece desencadear tudo. Ela permite con­
centrar a forga da coca, velha pasta regeneradora dos Indios da América do Sul,
pelo isolamento do seu alcaloide, em 1867: a cocaína. Várias firmas farmacéu­
ticas difundem em Franga, nos anos de 1870, o vinho de coca. A publicidade do
vinho de Bain, por exemplo, detém-se na presenga de «folhas de coca perfeita-
mente auténticas e de primeira escolha, provenientes das plantagóes de M. Bol-
CA PÍTU LO III
livian, ex-ministro plenipotenciário da Bolívia em Paris» 171. O vinho Mariani é
mais conhecido gragas ao engenho do seu autor. Mariani multiplica o envió de
ofertas do seu «vinho de coca do Pera»: expede cerca de cem caixas para o
DA HIGIENE DOS LUGARES Á HIGIENE MENTAL
Papa, e quase o mesmo número ao Presidente da República e várias dezenas de
caixas a diversas celebridades. Utiliza de seguida os agradecimentos para com-
Ao descobrir os corpúsculos parasitas que prosperam nos ovos dos bichos-
por álbuns publicitários de um novo género: colecgóes de gravuras onde se jus-
-da-seda e que dizimam as culturas, Pasteur soluciona um drama económico para
tapóem os rostos e os textos de signatários notáveis. Homens de letras, sábios,
os camponeses do Sul: as criagóes de bichos-da-seda devastadas pela epidemia
políticos, elogiam entáo o efeito «mágico» da pogáo do «feiticeiro» Mariani, re-
sáo salvas Mas Pasteur faz também entrar a luta antiepidémica na sua fase
correndo com naturalidade á imagem do antigo elixir: velho néctar do Olimpo,
contemporánea. Tyndal tem uma certeza em 1882: «toda a gente está agora de
cuja receita, perdida no tempo, teria sido encontrada nos arquivos dos Incas pré-
acordo neste ponto, em que certas doengas sáo o produto da vida parasitaria...
-históricos por um sábio que é também um poeta» l72. A publicidade de Mariani
O mau cheiro que exalam os esgotos e as latrinas nem sempre é causa das doen-
prende-se á tradigáo: «O aroma subtil da coca peruana combina-se harmonio-
gas que se lhe atribuem» 2. Um acidente ocorrido ñas águas do Vanne demons­
samente com a generosidade do vinho velho da Franga.» 173Gustave Toudouze,
tra a eficácia da teoria, mesmo que esteja mal explorada ainda em 1890. Este
o autor de Madame Lambelle e de La Séductrice 174, exprime com mais forga
acidente impóe o uso temporário da água do Sena entre 31 de Outubro e 5 de
esta paixáo inédita por este vinho, cujo efeito cocaínico permanece, para ele,
Novembro de 1890, quando o rio transporta o bacilo de Eberth, portador da le-
um mistério: «Verdadeiro filtro mágico, elixir maravilhoso, [que toma] tudo fla-
bre tifóide descoberto poucos anos antes. Rochard prognostica a curto prazo um
mejante de nova juventude, de paixáo e de vida.» 175O tóxico, ainda náo enten­
aumento de mortos com esta febre em Paris, em Dezembro de 1890. A consta­
dido como tal, alimenta por várias décadas o prestigio deste vinho de efeitos
tagáo impóe-se sem novidade: o «percurso da febre tifóide» é ascendente,
pouco explicados em 1870-1880. Produto acessível, enfim, o seu prego de 5
quinze dias depois, para aumentar ainda em Dezembro: o número médio de vi-
francos por garrafa equivalente ao salário diário médio de um operário em 1880
timas hebdomadárias, limitado a 1 1 na altura do acidente, eleva-se para 5 1 en­
(4 francos para um operário da panificagáo, 6,50 francos 176para um operário de
tre 7 e 14 de Dezembro, antes de se «normalizar» por meados de Janeiro. A pre­
alfaiate) toma o seu consumo possível para além da simples burguesía.
visáo é «verificada». O novo prestigio da instrumentagáo erudita dá a esta
O vinho Mariani é o testemunho do progresso da química em 1880 e da pró­
constatagáo do aumento natural o «valor de uma experiéncia em laboratorio» .
pria publicidade, e também testemunho de uma insisténcia surda na magia dos
A descoberta de Pasteur consegue renovar o génio preventivo, mesmo que ele
elixires.
continué, neste caso, estranhamente debilitado. Mas ela prolonga também uma
dinámica cultural estimulada anteriormente: a atengáo ás forgas cada vez mais
escondidas da doenga, a lavagem daquilo que náo se vé, o defender-se contra o
que náo se sente. O trabalho sobre o microbio completa o trabalho sobre o sen-
sível. O tema do microbio favorece, sobretudo, mais mobilizagóes colectivas:
registo inesgotável de referéncias científicas, concisáo de uma pedagogía da
170 A. Périer, L e s Vms de quinquina, Paris, 1890, p. 40.
171 P ublicidade ao vinho de J. B ain, in Journal d ’hygiéne, 1879. saúde, pastoral higiénica em que a nagáo pretende reforgar a sua coeréncia pelo
172 E. G autie, jo rn alista do F ígaro e m 1903, citado por P. E yguesier, Q uand F reud était empenho de cada um na defesa de todos.
drogm an, P aris, N avarin, 1963, pranchas.
173 Idem . 1 F D a < w n e t M éth o d es et D octrine dans l ’oeuvre de Pasteur, P aris, PUF, 1967, p. 171.
174 G . G. T oudouze, M a d a m e Lam belle, Paris, 1880; La Séductrice, Paris, 1882. 2 J.’ Tyndall, L es M icrobes, Paris, 1882 (1.a ed. inglesa, 1880), pp. 10 e 23.
175 C itado p o r P. E yguesier, op. cit., p. 96. 3 J. R ochard, Traité..., op. cit., p. 672.
176 P. Sorlin, La Société frangaise, t. I, 1840-1914, Paris, A rthaud, p. 192. 4 Idem .

209
DA HIGIENE DOS LUGARES Á HIGIENE MENTAL
A FORCEA DE SI E A FOR£A DOS OUTROS

1. « D O E N G A S E V IT Á V E IS » mentar os tempos de contágio conforme cada doenga eruptiva e impor diteren-


tes tempos de ausencia aos estudantes doentes: 40 dias depois do primeiro ata­
Nos anos do final do século, os vestigios de fermentos transmissíveis sao in­ que de escarlatina, 20 dias depois do desaparecimento das tosses da coqueluche,
vestigados como provas tangíveis. Comet pormenoriza as investigagóes feitas no 22 dias «a partir do inicio» da inflamagáo das parótidas ". O que simplifica aín­
quarto do hotel onde morre de tuberculose, em 1890, uma actriz berlinense: re- da a observagáo das comunicagóes e dos contactos. Sáo rigorosamente recen-
colha de partículas da madeira da cama onde repousava a cabega, das molduras e seadas quatro formas de transmissáo para a febre tifóide, por exemplo:
dos quadros, das caixas e das estantes, insistindo no perigo de estas partículas
transmitirem a tuberculose ás cobaias inoculadas 5. O farmacéutico Domet, em directa ¡mediata... contacto com o doente,
1890, em Souillac, reconhece ao microscopio a presenga do penicillium glaucum directa mediata... estadia no quarto do doente,
num petisco estragado de perú que o intoxicara alguns dias antes6. Grancher des­ indirecta imediata... contacto com os objectos doente,
cobre em 1889 o vibriáo séptico ñas partículas do solo ao qual confirma a viru­ indirecta mediata... contacto com as pessoas que se aproximaran! do doente .
lencia pela inoculagáo de cobaias 1. O laboratorio transformou os conhecimentos.
Os microbios observam-se, o seu número é calculado e o seu efeito é previsto. Daí enfim. a diferenciagáo das defesas: os objectos do doente sáo mais pe­
rigosos’nos casos de febre tifóide e de cólera, os produtos da expectoragao sao
mais perigosos nos casos de difteria. Os exemplos abundam com uma eficacia
Os perigos invisíveis de um novo tipo. O uso de água férvida suprime, em 1878, os obitos por desin-
teria no vapor Aveyron quando os mortos ultrapassavam os 20% nestes trans­
Definitivamente, os perigos higiénicos já náo sáo os mesmos no último tergo portes de soldados doentes entre Saigáo e Toulon ,3. O recurso as solugoes anti-
do século. Uma multiplicidade de observancias antigas toma-se inútil ou sem ob­ -sépticas a partir de 1880, em alguns hospitais parisienses, faz cair a mortalidade
jecto: os alertas em relagáo á forga dos ventos, a aridez do solo, a pobreza apa­ provocada pelas «úlceras das grandes articulagóes» 14 de 85% para 16%. O re­
rente ou o cheiro dos objectos, sáo, a maior parte das vezes, reduzidos á anedo- curso ás estufas de desinfecgáo em 1890 no Béarn. paquete francés proveniente
ta. A verdade sanitária enuncia-se menos no recenseamento de qualquer acidente do Rio de Janeiro, póe fim á epidemia de febre amarela que reinava a bordo .
físico ou geográfico do que na identificagáo das colonias de bactérias localizadas O recurso ao leite esterilizado faz cair bruscamente a mortalidade dos lactentes.
e precisas. O perigo restringe-se: basta «simplificar as precaugóes a tomar» 8, diz Os procedimentos industriáis de esterilizagáo; como os de Winter-Vigier, de
muito justamente Bruno Latour, numa análise recente da descoberta do microbio. Monti ou de Gaertner, revolucionam definitivamente o «aleitamento artificial» .
A protecgáo das chagas já náo obriga á prospecgáo sem fim dos miasmas envol­ as mortes de tenra idade devidas ás diarreias infecciosas passam, entre 1903 e
ventes, mas antes á asseptizagáo da parte lesionada. Uma economia de prevengáo 1912 de 1857 para 1203, para as criangas parisienses 17. O que transforma, e ne­
substitui-se á sua profusáo. Existe tanto de insuficiencia como de inédita verda­ cessário insistir, as taxas de esperanga de vida á nascenga. Uma conclusao per-
de na afirmagáo de Koch em 1888: «As doengas infecciosas, especialmente as corre os textos dos higienistas do final do século: objectos perigosos mais «vi-
epidemias militares, náo sáo nunca produzidas pela sujidade, pela viciagáo do ar síveis», ameagas sanitárias mais circunscritas.
proveniente do amontoar de homens, pela fome, pela pobreza, pelas privagóes, Uma certeza percorre também estes textos: a assimilagao da m aiona das
nem soma destes factores. Só os seus germes específicos as podem produzir.» 9 doengas ao modelo infeccioso. O cancro, por exemplo, náo se conseguiría ex­
Daí as diferengas mais agudizadas entre as doengas. Cada microbio tem a plicar de outra forma em 1900: «O microbio, ainda desconhecido, residiría no
sua própria transformagáo, o seu tempo de incubagáo e os seus principios de ac­ solo húmido, na humidade das casas, nos legumes, ñas saladas e nos frutos
gáo. Cada germe é uma espécie. Reproduz-se também de forma distinta como crus.» 18É ao garantir a limpeza que se previne o cancro: «Lavagem meticulo­
o fazem os diferentes animais: «Se semeais a varióla, náo obtendes febre escar­ sa das máos depois de ter tocado um tumor, casa seca em solo seco, desin ec-
latina, mas sempre a varióla e mais nenhuma outra.» 10Os contrastes mórbidos
cruzam-se. O que permite ao Ministério da Instrugáo Pública, em 1889, regula- " «C irculaire du m inistére de lT nstruction publique» (1889-1890), citada pela R evue
d'h vg ién e, 1891, p. 274.
5 L. C om et, «T ransm ission de la tu berculose p a r la p oussiére», R evue scientifique, 1890 12 A. Proust, op. cit., e d ifá o de 1902, p. 193.
1 . 1, p. 2 2 2 . 15 Ver L. Figuier, L ’A n n ée scientifique, Paris, 1878, p. 313. ^
14 P. B ouloum ié, «P rophylaxie des m aladies évitables», R evue d hygiene, 189 , p.
6 «E m po iso n n em en t par u n confit de din d e avarié», R evue sanitaire de B ord ea u x e t de
la p rovince, 1884, p. 23. 15 J. A rnould, op. cit., p. 1161.
16 A. B. M arfan, Traité de / ’allaitem ent et de l ’a lim entation des enfants du p rem ier ag ,
7 A . G rancher e J. R ichard, «A ction du sol sur les germ es pathogénes», C ongrés d ’h y ­
giéne, Paris, 1889, p. 448. Paris 19 0 2 ( 1 .a ed., 1898), p. 376.
17 P. Juillerat e A. Fillassier, «D ix années de m ortalité infantile», R evue philosophique,
8 B. L atour, L e s M icrobes, guerre et paix, Paris, A .-M . M étaillé, 1984, p. 56.
’ R K och, «L es m aladies infectieuses et 1’arm ée », R evue scientifique, 1888, p. 563. Junho de 1914.
10 J. Tyndall, op. cit., p. 10. 18 E. G altier-B oissiére, H ygiéne nouvelle, París, 1909, p. oo.

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210
A FO R ^A DE SI E A PORCIA DOS OUTROS DA HIGIENE DOS LUGARES Á HIGIENE MENTAL

gao do quarto do canceroso.» 19Mais ainda, estas desordens nascidas dos mi- as consciencias. Uma forma de reforgar a imagem da instituigáo sábia e do es­
crorganismos sao bruscamente consideradas «doengas evitáveis». A Academia tatuto do higienista, mas também uma forma de convencer e alertar. Daí as in-
de Medicina afirma-o no seu extenso relatório de 1896: «O microbio, eis o ini- jungóes sobre bactérias que pululam nos mais pequeños volumes de ar e de
migo .»20 Uma crenga totalmente positiva alcanga alguns higienistas no final do água: unidades intangíveis «adormecidas», amontoadas. Duclaux, o director do
século, promissora da possível «extingao» 21 das epidemias. Instituto Pasteur no final do século xix, insiste ñas 15 000 bactérias contadas
O dominio da vacina aumenta, é claro, esta crenga. É o trabalho sobre o ba­ por metro cúbico de ar na sala Michon da Pitié em Outubro de 1896, ou ñas
cilo que constituí toda a originalidade da descoberta de Pasteur: o isolamento 6970 bactérias contadas, na mesma altura e ñas mesmas condigóes, na Cámara
do germe, a sua cultura, o seu tratamento como objecto «manuseável». Um tra­ de Paris 27. Ele insiste ainda ñas 1840 bactérias contadas por centímetro cúbico
balho particular ilustrado pela experiencia da vacina do carbúnculo das galinhas de água, no Invernó de 1888, á saída parisiense das fontes do Vanne, ou ñas
em 1878: o fermento do carbúnculo é primeiro alterado, «preparado» antes de 6565 bactérias contadas, no mesmo momento e ñas mesmas condigóes, á saída
ser injectado; a sua violencia é atenuada por um processo técnico que Duclaux das fontes de Dhuys 2S. A Revue d ’higiene salienta, náo sem alusóes sociais, o
define claramente em 1898: «O carbúnculo e a cólera das galinhas tém a gran­ universo de bactérias que aparecem por centímetro quadrado no cháo das car-
de vantagem da vacina e da incisáo, que permite observar os seus microbios, es- ruagens de Berlim: 12 624 em 4.a classe, 5481 em 3. , 4347 em 2. e 2583 em
tudar as suas propriedades nos seus diversos estados de virulencia e por em con- 1,a 29. Sáo efectuados cálculos para as moedas: 3500 bactérias para cada luís de
flito os seus diferentes poderes, com as sensibilidades e as receptividades de ouro, mas algumas 11 000 no tostáo de bronze, moeda que parece «conter a pro-
animais vacinados de forma diferente.» 22A vacina transforma os fermentos em porgáo mais elevada de microbios» 30. Sáo efectuados cálculos na pele: 20 es-
objectos «dominados»: encerrados numa cultura, limitados nos seus desenvol- pécies diferentes sáo enumeradas na superficie do corpo por correspondente da
vimentos e de efeitos calculados. A ambigao passa entáo a ser a de criar uma va­ Revue d'higiene em 1894 31. Sáo efectuados cálculos nos orificios do corpo:
cina que responda a cada microbio para evitar qualquer infecgao. Vignal afirma ter descoberto na boca do homem sáo microbios até entáo des-
conhecidos, tanto mais temidos quanto ignorados 32.
Daí a proposta de um conjunto de práticas para conter a invasáo. Gestos no­
Uma invasáo? vos cuja eficácia é mais presumida do que verificada: a lavagem da língua cuida­
dosamente limpa com sabáo e «escovada com os dentes» 33para melhor evitar o
A luta contra o microbio dá continuidade á luta empenhada contra a dege­ depósito dos germes ñas papilas; evitar o banho em beneficio do duche para im­
nerescencia. Sao as negligencias e as rusticidades o que, neste caso, os conse- pedir que os microbios estagnem na pele M; a preferencia dada a uma respiragáo
Ihos de higiene perseguem. Nao é verdade que se toma sempre necessário aler­ exclusivamente nasal, tida por fazer melhor obstáculo ás partículas e aos micro­
tar em grande escala? E denunciar a imprudencia dos tres marceneiros de bios do a r 35; a vigilancia preocupada dos insectos e dos moluscos do solo, enfim,
Dieppe, mortos em vinte e quatro horas em 1892, depois de terem comido no lesmas, vermes da térra ou larvas susceptíveis de trazer á superficie microbios pe-
quarto de um colérico, tendo sido advertidos do perigo23; a das familias de Pri­ rigosos; Richard e Grancher dizem ter «inoculado o tétano em animais, inserindo-
vas, que recusam as medidas de isolamento durante a epidemia de angina dif­ -lhes sob a pele partículas de térra ás batatas e a outros legumes» 36.
térica em 1895, quando a difteria se encontrava ainda localizada na Praga Foi- Os «delirios de contágio», anotados por Dauchez, em 1891, náo passam da
ral, no centro da cidade de Ardéche 24; a dos senhorios que omitem qualquer versáo levada ao extremo destas precaugóes insistentes; como a vigilancia de
prática de desinfecgao quando os seus aloj amentos tinham sido ocupados por uma doente parisiense, Madame L„ que «muda de vestuário e se lava com água
familias tuberculosas 25; a das matronas rurais, enfim, que provocam mortes com fenol, cada vez que entra ou sai de casa» 37; como o receio dos proprietá-
por febres puerperais ao assistirem aos partos com as máos infectadas 26. O em-
penho contra o microbio é também o empenho da elite e do saber.
27 É. D uclaux, op. cit., p. 414.
A microbiología consegue assim multiplicar os receios, ao mesmo tempo
28 Ibidem , p. 455.
que tom ara o perigo mais focalizado e mais isolável. Falta-lhe espantar e tocar 29 «W agons et m aladies infectieuses a B erlin», R evue d ’hygiéne, Paris, 1894, p. 566.
30 H. Vincent, «M icrobes existant á la surface des piéces de m onnaie», ibidem, 1895, p. 695.
19 Idem . 31 «L a peau et les m icrobes», ibidem , 1894, p. 717.
20 P. B ouloum ié, op. cit., p. 899. 32 W. V ignal, «R echerche sur les m icro-organism es de la bouche», A rchives de p hysio-
21 S. A rloing, «L’extinction des ép idém ies et les désinfectants», R evue d ’hygiéne, 1891, logie, 1886.
p. 79. ^ 33 «A ntisepsie de la b ouche et du pharynx par le savon», R evue d ’h y g ié n e, P aris, 1894,
22 É. D uclaux, Traité de m icrobiologie, Paris, 1898, 1 . 1 , p. 52. p. 622.
23 P. B ouloum ié, op. cit., p. 898. 34 «L a peau e t les m icrobes», op. cit., p. 717.
24 L. M artin, «E tude de prophylaxie pratique de la diphtérie», R evue d ’hygiéne, 1899, p. 119. 36 A . G rancher e J. R ichard, op. cit., p. 464.
25 P. B ouloum ié, op. cit., p. 898. 37 H. D auchez, «D élire de contagion», R evue g énérale de clinique et de thérapeutique,
26 «Désinfection des instruments et des mains», A nnales de micrographie, 1888, pp. 275 e ss. Paris, 1891. p. 606.

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A FOR ^A DE SI E A FOR£A DOS OUTROS
DA HIGIENE DOS LUGARES Á HIGIENE MENTAL

nos que recusam alugar consultónos ou exigem que os doentes tomem a esca- Além destas insistencias totalmente pedagógicas, é um verdadeiro traba­
da de servigo 38. O pó torna-se o novo objectivo das inquietagóes domésticas: lho de cultura o que habita a argumentagáo microbiológica. A alusáo aos pe­
aquela que assalta febrilmente «a ponto de se esquecer de preparar as refeigóes»39, rigos microbianos náo fez mais do que avivar uma renovagáo já estimulada
a mulher do velho preceptor descrita por Jules Renard, no seu Journal, em em meados do século, como a das práticas de asseio e a atengáo balbucíante
1892; aquela que varre, com uma batería de espanadores Nadaud, o notário pro­ ás zonas do corpo invisíveis e escondidas. O medo do microbio prolongou,
vincial de um romance de Boylesve em busca de alguma «ordem ideal» 40; ain­ neste caso, a nova mentalidade, tornou mais uma sensibilidade já presente.
da aquela que Baudot teme em vários gabinetes públicos quando recomenda, O lento desenvolvimento dos banhos-lavadouros populares dos quais Liver­
em 1894, que nunca se vana a seco nem se desempoeire uma sala onde traba- pool dá o exemplo em 1842 46, as primeiras experiencias de Dunal, em 1861,
lhe um empregado tuberculoso, mas que se multipliquem antes, em todas as su­ com a instalagáo dos duches dispostos em séries ñas casernas marselhesas, as
perficies, limpezas e lavagens húmidas 41. A contrapartida da revelagao de Pas­ primeiras experiencias de M eny Delabost, em 1873, com as cabinas de duche
teur, uma «microbiomania» 42parece ter nascido. de água quente instalados na prisáo de Rouen 47, náo devem nada, é claro, ás
O pó é o exemplo canónico de um aprofundamento da atengáo higiénica, descobertas de Pasteur. A sua origem está antes no desenvolvimento das redes
que vai do mais visível ao menos visível. Na grande ascensáo da vigiláncia sa­ de água, numa cultura mais íntima do corpo, na vontade de orientar as práti­
nitária, a «promogáo» do pó constitui uma das últimas etapas no caminho da cas populares. Os ananjos sanitários, a individualizagáo das distribuigóes do­
sensibilidade dos nossos dias. O novo dominio sobre a doenga faz surgir, como mésticas, as circulagóes subtenáneas, todos estes pesados trabalhos urbanos
sempre neste caso, outras preocupagóes, mais numerosas, desconhecidas até iniciados em meados do século, náo se explicam pelo alerta microbiano. Eles
entáo.
sáo, pelo contrário, «ajudados» por ele, tornados mais legítimos e mais ur­
gentes.
As metáforas e as imagens sobre os microbios, suscitadas pelas tensóes so-
Os microbios e os hábitos ciais e políticas do final do século, desempenham, aliás, um papel nesta con­
vergencia cultural. E uma «guena» que Adrien Proust conduz, quando é envia­
A vontade de convencer, voltamos a dizer, pesou, sem dúvida, nos receios do para a fronteira dos Pirenéus em 1892, para tomar medidas contra a cólera:
deste fim de século: é para melhor romper com os «enos» do passado que sáo «No ano passado, quando éramos ameagados pelo lado da Espanha, M. Proust
assim acumulados os números «precisos» da presenga microbiana. Ainda que partiu sozinho para enfrentar o exército inimigo que já estava na fronteira e ven-
continuem a ser numerosos, por volta de 1890, os obstáculos á compreensáo das ceu-o.» 48Uma guena que cada individuo e que cada corpo deveria retomar por
situagóes contagiosas. Marie Bashkirtseff demonstra-o de facto involuntaria­ sua conta. A representagáo de fronteiras corporais ameagadas, de um poder or­
mente quando, atingida pela tuberculose, visita médicos que náo ousam con- gánico fragilizado, de inimigos microscópicos mas ferozes, «bárbaros que só
fessar-lhe a sua doenga: «Enervam-me todos estes médicos! Mandei examinar conhecem uma lei, a da multiplicagáo» 49, remetem, consoante a ocasiáo, para
a minha garganta: faringite e catano, nada mais do que isso ...» 43As precaugóes as revoltas sociais da época ou para as intimidagóes prussianas.
profilácticas nunca sáo evocadas na proximidade de Marie, ainda que a doenga Estas imagens, é claro, sáo orientadas pela concepgáo celular do corpo, as
seja ao mesmo tempo pressionante e apagada, lancinante ou negada: «O médi­ quais Virchow foi o primeiro a demonstrar a precisáo e a complexidade em
co pretende que a minha tosse é puramente nervosa. É possível, pois estou cons­ 1858: um corpo feito de corpúsculos inumeráveis, unidades microscópicas con­
tipada.» 44 Marie m one depois de várias estadías em estáncias termais, todas jugadas para formar um «organismo» 50. A visáo é agugada ainda pela deseo-
elas tidas como aptas para lhe tratar a tosse. Sáo estas «ignoráncias», é claro, berta de Metchnikoff em 1882 51: a identificagáo dos fagocitos, as células en-
que movem os higienistas 45, convencidos de as combaterem ao sugerirán a in- canegues de reconhecer e destruir os corpos estranhos aos órgáos. A luta contra
vasáo microbiana.
o microbio domina desde logo os seus agentes interiores, as suas partículas de
vida cujo trabalho o higienista deve favorecer. Sáo elas que focalizam o recur­
38 Idem . so ás metáforas de guena, transferindo a saúde para o teneno da confrontagáo
39 J. R enard, J o u rn a l 1887-1910, P aris, G allim ard, L a Pléiade, 1960 (1.a ed., 1925), e da missáo, «verdadeiro império» 52 com os seus eonflitos, os seus assaltos, a
p. 117.
40 R. B oylesve, L 'E n fa n t á la balustrade, Paris, «10/18», 1988 (1.a ed., 1903), p. 65.
46 A . Proust, op. cit., edi§ao de 1877, p. 492.
41 E . B audot, «R apport aux C hem ins de fer de l ’Est», R evue d ’hygiéne, 1900, p. 1106.
47 J. A rnould, op. cit., p. 693.
42 J. Jousseaum e, Influence des m icrobes su r l ’organism e hum ain, Paris, 1890, p. 4.
48 L e Temps, Paris, 1 de N ovem bro de 1893, p. 2.
43 M . B ashkirtseff, op. cit., t. II, p. 76.
49 G. D u jardin-B eaum etz, L ’H ygiéne prophylactique, Paris, 1889, p. 4.
44 Ibidem , t. II, p. 167.
50 R. V irchow , La P ath o lo g ie cellulaire basée su r l ’étude p h ysio lo g iq u e e tp a th o lo g iq u e
45 E stas v acinas sao ainda pouco n um erosas ain d a no final do século, lim itadas n a m aior
d es tissus, Paris, 1861 (1.a ed. alem a, 1858).
parte ás d a v a n ó la , da raiva ou da difteria, d aí tam bém esta insistencia nos gestos de pre-
51 É. M etchnikoff, L ’Im m u n ité dans les m aladies infectieuses, Paris, 1901.
c a u fa o nos co m portam entos quotidianos.
52 G. D ujardin-B eaum etz, op. cit., p. 2.

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215
A FO RgA DE SI E A FOR£A DOS OUTROS DA HIGIENE DOS LUGARES Á HIGIENE MENTAL

sua polícia e os seus exércitos. O deslizar de termos multiplica-se. Náo toma O «génio sanitário»
Pasteur a ciencia ao seu servigo, contra o perigo do «cancro prussiano», ele pró­
prio «agravado como um tumor maligno?» 53. Daí os dispositivos sanitários Náo que a renovagáo dos instrumentos sanitários nada deva á ciencia de Pas­
apresentados como outros tantos combates: o individuo, mais do que antes, tor- teur, evidentemente. A morte de dois parentes do príncipe de Gales em 1883 é
na-se responsável pela degenerescencia e pelo sobressalto colectivo. O ensina- explicada pela deficiencia das canalizagóes interiores: o mau isolamento de um
mento dos microbiologistas reúne-se ao dos políticos no final do século. É com tubo de saída de esgoto de sua casa teria deixado refluir os odores e as bacté­
um duplo sentido, a do corpo e a do país, que é necessário entender a mobili- rias, dando origem a febres e a contaminagóes59. A descoberta de germes refor-
zagáo individual preconizada por Jules Rochard em 1897: «A mais pequeña so- ga a preocupagáo técnica, tomando mais preciosos a seguranga dos mecanismos
lugáo de continuidade, a mais insignificante erosáo, podem servir de porta de hidráulicos e o isolamento dos circuitos.
entrada ao microbio.» 54 Materiais laváveis, tubagens, aparelhos distribuidores, constituem um novo
Este tema microbiano consegue, aliás, acompanhar o projecto colonial. Era registo técnico para os construtores, cerca de 1880. Aquilo que os arquitectos
na destruigáo dos contágios vindos de fora, das fontes longínquas de abjecgóes qualificam como «bombagem de água» ou que alguns técnicos, com mais
que se deviam aplicar os países do Ocidente. Poincaré preconiza em 1884 um originalidade, qualificam como «génio sanitário»61. Substáncias mais estanques
bloqueio local em torno de toda a doenga exótica 55. A convicgáo cresce com o e mais lisas transformam a decoragáo: primeiro em Inglaterra e também em
finalizar do século: envió de delegagóes sanitárias ñas estagóes do Levante, Franga, onde Jacob chega a envemizar e a esmaltar as argilas de Pouilly-sur-
Constantinopla, Alexandria, Djeddah, Damas, Suez, Fao, Aden, para melhor vi­ -Saóne em 1886, antes de uma dezena de fabricantes difundirem o produto em
giar os perigos que ai reinam e interditar aos doentes o ingresso nos barcos eu- 1890 62. Grés e cerámica substituem-se lentamente ao ferro fundido e á madei-
ropeus 56. Daí a dispensa de quarentenas e a aceleragáo das trocas. A vontade de ra, nos movéis e receptáculos postos em contacto com a água.
dominar o microbio, convergindo, por vezes, com a de aumentar os territorios Um dispositivo particular triunfa na nova instrumentalizagáo: o sifáo, cujo
dominados. contorno encurvado em forma de cotovelo é colocado sob o fundo das tinas, das
cubas e das pias de despejo, interrompendo qualquer comunicagáo com as ma­
térias perigosas. O isolamento que origina é hermético: a água que retém inter-
2. O E S P A D O « S A N IT Á R IO » dita qualquer refluxo. Principio regularmente assimilado ás novas aparelhagens,
o sifáo é o símbolo das práticas hidráulicas do final do século. A sua silhueta
Locáis e arranjos interiores sáo, evidentemente «tocados» pela revolugáo está no centro das imagens publicitárias difundidas pelos fabricantes de objec­
pasteuriana. É o que demonstra Tyndall, o Louis Pasteur británico, quando inau­ tos sanitários durante a Exposigáo Universal de 1889, a ponto de a casa Jeau-
gura o primeiro museu de higiene na Regent Street, no coragáo de Londres em ménil e Rambervillers apresentar o desenho da sua marca, envolvendo-o total­
1883. Ela salienta a criagáo de um universo sanitário com os seus objectos es­ mente com estes motivos de linhas contornadas 63. O sifáo ilustra os dois
pecializados, os seus espagos, os seus fabricantes e o seu mercado 57. A exposi- objectivos dos arranjos interiores: o reforgo dos débitos domésticos por um
gáo sobre a higiene no quartel Lobau de Paris em 1886 explora o mesmo prin­ lado, o isolamento de cada ponto de água, por outro. Só uma forte alimentagáo
cipio: diversos tubos de vidro oferecendo os fluxos ao olhar, fazem ai apreciar líquida permitía evacuar os despejos através deste tubo em cotovelo; mas tam­
o mecanismo dos circuitos, a qualidade das ramificagóes, a forga das alimenta- bém só este processo mantém uma estanquicidade entre o interior e o exterior.
góes e os seus débitos 58. Sáo necessárias as interrogagóes de alguns arquitectos da «velha rotina» 64
E impossível, ainda neste caso, atribuir a mudanga apenas á descoberta mi­ para medir a mudanga. As dos construtores de uma fábrica textil, por exemplo,
crobiana. A instrumentalizagáo da higiene nestes últimos anos do século é tam­ em 1887, afirmando terem sido obligados a estabelecer «casas de banho em sa­
bém o resultado de um trabalho gradual do espago. A intimidade dos corpos, por las de tecelagem para facilitar a vigilancia» e lamentando a «inevitável invasáo
exemplo, conquista ai um lugar que antes náo tinha. de miasmas e odores. A resposta de La Semaine des constructeurs é formal: o

59 S. S. H ellyer, T ra ité p ra tiq u e de la salubrité des m aisons, Paris, 1889, p. 36.


60 Ver «Plom berie d ’eau et sanitaire», E. B arberot, Traité des constructions civiles, Pa­
53 L. Pasteur, «Pourquoi la F rance n ’a pas trouvé d ’hom m e supérieur au m om ent du pé- ris, 1895. p. 501.
ril», R ev u e scientifique, P aris, Julho de 1871, p. 73. 61 L. A. B arré e P. B arré, L e G énie sanitaire, la M aison salubre, Paris, 1898.
54 J. R ochard, op. cit., p. 934. 62 F. R ichard que cita a p ro d u fa o de P ouilly distingue o «grés cerám ico» p a ra os ladri-
55 L. P oincaré, P rophylaxie et G éographie m édicale des p rin c ip a le s m aladies tributai- lhos do chao, o «grés e nvem izado» para os canos, o «grés esm altado» para as pias, cubas e
res d e l ’hygiéne, Paris, 1884, p. 25. banheiras (P récis d ’hygiéne appliquée, Paris, 1891, pp. 16 e 140-141).
56 « L a ligue contre le choléra», Le Temps, 13 de A bril de 1894, p. 1. 63 E xposÍ 9 áo U niversal Internacional, C atálogo G eral O ficial, Paris, 1889, t. ni, pub lici­
57 «L e m usée d ’hygiéne á L ondres», La Sem aine des constructeurs, 1883, p. 44. dade de Jeaum énil e R am bervillers.
58 J. A m ould, op. cit., p. 947. 64 La Sem aine des constructeurs, P aris, 1886, p. 556.

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A F O R £A DE SI E A FORCEA DOS OUTROS
DA HIGIENE DOS LUGARES A HIGIENE MENTAL

uso do sifáo teria evitado o desagrado e o perigo — ele permite colocar pela pri­
meira vez «as casas de banho ao lado de um aposento normalmente habitado» 65. microbiano. Espago ainda raro, como salienta a nota acerca de Rostin no Journal
Toda a diferenga em relagáo ás certezas de meados do século que obrigavam de Jules Renard, ou como salienta o arranjo da prefeitura de Oran, em 1880, res-
ainda a «localizagáo das latrinas longe dos quartos de dormir e do centro das ca­ tringindo a casa de banho apenas ao apartamento do prefeito 72, mas espago novo
sas» 66. O sifáo tem de sobejo uma eficácia sanitária: ele preserva o corpo, iso- e totalmente específico: ladrilhamento de grés, paredes ladrilhadas, bidé, bacia
lando-o das matérias. É preciso ainda que a água chegue em quantidade sufi­ para os pés, banheira, suporte para toalhas e lavabo dispostos para que os instru­
ciente aos andares. O sifáo doméstico faz presumir os restos de cada habitagáo mentos da água, bem fomecidos e alimentados, estejam ao alcance da máo e que
ou de cada aparelho. A sua difusáo está ligada ao lento encaminhamento da nenhuma presenga estranha venha perturbar a intim idade73. Até ao mundo animal,
água instalada no final do século, aquela que é descrita por Siegfried Giedon ou enfim, cujos comportamentos sáo, por vezes, remterpretados á luz das novas exi­
Jean-Pierre Goubert: «A água corrente faz a sua aparigáo inicialmente ñas ca­ gencias. Victor Rendu. em 1880, faz do ninho da argironeta, minúscula aranha de
ves, depois nos andares e finalmente em cada apartamento. As palavras sáo es­ água, o próprio exemplo de uma intimidade elaborada: «um domicilio muito es­
táticas. Só a projecgáo de um filme poderia dar conta do encaminhamento da pecial», espagoso e fechado, que preserva um habitáculo individual do «globo
água através dos próprios organismos da cidade, o seu salto para níveis mais prateado» de uma gota de ar, «concha oval toda de seda», de onde irradiam, no
elevados, a sua distribuigáo na cozinha e, para terminar, na casa de banho.» 67 entanto, gragas a ños invisíveis, inumeráveis ligagóes com a superficie 74; o mo­
E necessária a lei, enfim, para reforgar esta alimentagáo: o texto sobre higiene delo de uma bolha tanto mais dominada quanto se alimenta de circuitos.
pública de 15 de Fevereiro de 1902, por exemplo, que consagra o seu primeiro
artigo ao encaminhamento da água e obriga o presidente de cada comuna a «de­
Habitagao e iniciativas públicas
terminar as prescrigóes relativas á alimentagáo de água potável das casas» 68.
Mas é também a expectativa muito particular do «conforto» e náo apenas a
influencia do microbiologista que comanda estes dispositivos. A exigencia é pre­ A privatizagáo dos locáis sanitários orienta ainda a campanha conduzida nos
cisa e claramente indicada em La Semaine des Constructeurs em 1888 quando alojamentos dos operários, nos anos de 1880. A disposigáo interior da coopera­
esta revista insiste na «independencia necessária de cada um dos compartimen­ tiva de Guise, por exemplo, vasto conjunto de apartamentos fundados por Go-
tos ou de cada um dos aposentos afectos a este ou áquele membro da familia» m. din perto da sua fábrica de mobiliário á beira do Oise em 1860, considerada de
A qualidade dos novos locáis de habitagáo prende-se com as suas possibilidades inicio salubre, é, pelo contrário, considerada «deplorável em relagáo á higiene»,
de isolamento tanto quanto com a sua liquidagáo á rede. É o que afirma a baro­ em 1891 15. Está em causa a concepgáo da construgáo. O «palácio social», ape­
nesa Staffe em 1892 quando pretende «transfigurar» o gabinete de toillete, for- sar da sua imensa fachada de 180 metros e das suas 1200 portas e janelas, é de­
necido com água corrente e melhor concebido para os cuidados íntimos: «A mu­ finitivamente condenado: os seus espagos sanitários estáo demasiado afastados
lher fez do seu gabinete de toillete um santuário no qual ninguém nem mesmo dos apartamentos, as suas tubagens muito pouco numerosas; «a promiscuidade
o esposo amado, sobretudo o esposo amado, náo transpóe o limiar.» 70 das casas de banho, a sua localizagáo sob as escadas, colocadas nos ángulos dos
Cria-se uma nova intimidade, facilitada pela flexibilidade das condutas de edificios sáo as causas de insalubridade evidente» 76. Críticas mais corrosivas
água, a sua diversidade, a sua aproximagáo dos quartos. Combinam-se vários apa- aínda ás pensóes parisienses visitadas por Du Mesnil e Martin Nadeau em 1883:
relhos, facilitando a supressáo de trabalhos domésticos intermediários. Como o «A escassez de canos e de casas de banho», a presenga «de matérias fecais no
rebordo das janelas e nos patamares» 11.
novo apartamento de Edmond Rostand, evocado por Jules Renard, em 1896:
«Com Les Romanesques, ele ofereceu a si próprio um belo gabinete de toillete, Em compensagáo, impóe-se um modelo para um novo alojamento operário,
banheiras, bidé e lavabo.» A imagem da casa de banho contemporánea toma for­ por volta de 1890: a experiencia de Marselha no bairro dos Cataláes ou a de Pa­
ma com a sua água corrente, os seus instrumentos combinados, a sua clausura, os rís, na avenida Grenelle. Este modelo é inspirado nos exemplos ingleses: «Cada
seus gestos limpos que náo sáo, evidentemente, consequéncia apenas do medo apartamento está isolado, tem a sua porta aberta para a escada, com um núme­
ro indicador, tem a sua casa de banho aparte, condigáo capital tanto para a hi­
giene como para os costumes.» 78 O isolamento, sobretudo o sanitário, permite
65 F. R ichard, op. cit., p. 167.
66 A . B ecquerel, op. cit., p. 425.
67 S. G iedon, L a M écanisation a u pouvoir, París, C entre G eorges Pom pidou, 1980 72 «L a préfecture d ’O ran», L a Sem aine des constructeurs, Paris, 1880, p. 480.
(1.a ed. em N o v a Iorque, 1948), p. 556; ver tam bém «U ne diffusion de m asse» in J.-P. G ou­ 73 S. Strasser, N e ve r D one, a H istory o f A m erican H ousew ork, N ova Iorque P antheon
bert, L a C onquéte..., op. cit., p. 111. B ooks, 1982 (1.a e d „ 1948), pp. 101-102.
68 L ei de 15 de Fevereiro de 1902, art. 1.°, citada por E. M acé e E. Im beaux, A. Bluzet, 7’ V. R endu, M o eu rs p ittoresques des insectes, Paris, 1880, p. 288.
75 J. R ochard, op. cit., p. 348.
P. A dam , H ygiéne genérale des villes e t des agglom érations com m unales, Paris, 1910, p. 221.
76 Idem.
69 L a Sem aine des constructeurs, 1888, p. 414.
70 B aronne Staffe, Le C abinet de toilette, Paris, 1892, p. 4. 77 O. D u M esnil, L 'H yg ié n e á Paris, l ’habitation du pauvre, Paris, 1890, p. 55; ver tam -
71 J. R enard, op. cit., p. 318. m «D es logem ents insalubres», M . N adeau, op. cit., p. 485.
71 J. R ochard, op. cit., p. 346.

218
A FOR^A DE SI E A F O R fA DOS OUTROS DA HIGIENE DOS LUGARES Á HIGIENE MENTAL

aliar duas ambigoes: «a do asseio e a da moral» 79. A transformagáo dos costu- cidade 85. A lei de 1894 é o primeiro exemplo de uma ajuda pública ao aloja­
mes, mais uma vez, fortalece a constatagáo do microbiologista. mento e á higiene privados, o simples exemplo de uma resposta a uma «petigáo
E que a insistencia no alojamento individualizado, o espago «decente» re­ sanitária do Estado» 86.
servado a cada um é uma empresa imperativa neste final de século; uma tenta­ Os números mostram a lentidáo destas ajudas, no virar do século, elas pró-
tiva de regular os hábitos operários intervindo ñas misturas e ñas promiscuida­ prias combatidas pelo interesse dos proprietários. É necessário o primeiro in-
des. A detengao do habitat é projectada em pedagogia de comportamento como quérito pedido em 1906 pelo «Conselho Superior das Habitagóes Económicas»
nunca até ai tinha sido: «Sem alojamento nao há familia; sem familia náo há para apreciar a miséria real: em Concarneau, 60% dos habitantes vivem em alo­
moral; sem moral náo há homens; sem homens náo há pátria.» 80 Espiral inevi- jamento de um compartimento; em Bordéus, 743 alojamentos de um comparti­
tável da pedagogia nacional. mento náo tém janela; em Saint-Etiénne, o número de habitagóes tomecidas
Mas a originalidade da campanha dos alojamentos operários, no final do sé- com saída de esgoto náo alcanga os 8%; em Lille, esse mesmo número náo al-
culo xix, prende-se ainda com uma interrogagáo inédita sobre a iniciativa do Es­ canga os 5% 87. A avaliagáo de Bertillon, efectuada entre 1906 e 1908 é, tam­
tado. Será preciso ajudar estas familias que o saneamento das cidades e a revo- bém, totalmente abrupta: em cada 1000 franceses, 260 habitam em alojamentos
lugáo dos bairros centráis empurraram para as periferias durante a segunda sobrelotados (mais de duas pessoas por compartimento, sendo a cozinha conta­
metade do século xix? Será preciso financiar, ainda que parcialmente, a recons- da como compartimento); 360 habitam em alojamentos insuficientes; 168 habi­
trugáo de pardieiros sórdidos á volta de Paris, em Saint-Denis, em Aubervilliers, tam em alojamentos suficientes (uma pessoa por compartimento); 167 habitam
quando Colin ai vaticina, em 1883, o aumento de casos de cólera e de febre ti­ em alojamentos grandes; 45 habitam em alojamentos muito grandes (uma pes­
fóide? 81. A resposta é negativa para alguns liberáis: as derrotas da miséria e os soa para mais de dois com partim entos)88.
obstáculos da hereditariedade parecem náo poder ser ultrapassáveis. Só a re- O principio de uma ajuda do Estado é decisivo em 1894. Sáo necessários vá-
pressáo e náo a assisténcia lhes sáo adequadas: «Tudo o que a sociedade pode rios decénios, em compensagáo, para que os seus resultados se tornem visíveis
fazer, no seu próprio interesse é exercer uma vigilancia severa sobre os seus par­ e, sobretudo, para que se pensem melhor sob a forma de garantías sociais, por
dieiros, saneá-los e desinfectá-los quando o caso o exija, sem consultar [as fa­ exemplo, a participagáo de cada um.
milias], da mesma forma como se limpam os esgotos sem se preocupar com os
ratos que ai elegeram o seu domicilio.» 82É inútil, neste caso, utilizar a finanga.
Muitos, pelo contrário, no final do século, esperam uma intervengáo do Es­ 3. O « E N F E Z A D O » E O « E N C O R P A D O »
tado. Eles aguardam o empenho de uma política social para melhor garantir a
paz civil: visáo moderna de um Estado mediador. Bouloumié propóe em 1899 O cálculo sobre a quantidade de microbios presentes consoante as alturas at­
a criagáo de um imposto sobre a higiene pública do qual uma parte poderia fi­ mosféricas alcangadas, a avaliagáo regularmente efectuada pelos aeronautas do
nanciar a construgáo de alojamentos operários 83. Gradualmente, a fungáo do final do século xix, mostra o quanto o conjunto do espago está inscrito na nova
Estado, que da «interdigáo» passa á «iniciativa», modifica-se. O seu papel, no visáo sanitária: náo só a cidade, náo só o alojamento, mas também o meio, a at­
final do século, já náo é só o de controlar, mas ainda o de redistribuir, ainda que mosfera e a geografía. Christiani, cujo aeróstato sobrevoa Genebra em 1891,
parcialmente, as riquezas. Transigáo lenta, é preciso repeti-lo. A ajuda do fi- confirma a observagáo de Pasteur acerca das montanhas: o desaparecimento dos
nanciamento dos alojamentos náo é visível nem directa, num primeiro tempo. microbios com o aumento da altitude. É efectivamente a partir dos 1700 metros
A lei de 30 de Novembro de 1894 concede pela primeira vez «vantagens ás so­ que desaparecem as colonias de m icrobios89. Imp5e-se uma certeza no final do
ciedades que se constituam com o fim de construir casas higiénicas a bom pre­ século, a de uma assepsia garantida pelo ar livre. Daí a vantagem das vilegiatu-
go» 84: empréstimos com taxas reduzidas e isengáo de impostos. Nestes supor­ ras: o afastamento da doenga pelo sol, pelo vento, pela luz, o reforgo das defe-
tes ainda discretos desenha-se a imagem do Estado providéncia, a sua tomada a sas pelas estadias á beira-mar, na montanha, pelos exercícios naturais. O tema
cargo de uma «ajuda á saúde», a transferéncia de uma protecgáo colectiva em focaliza, em resumo, inúmeros comentários sobre a saúde: o ar livre que «mata»
política de governo. Com alguns resultados na duragáo de vida no final do os agentes infecciosos, os exercícios que «trazem» resisténcia e energia, a via-
século xix: as comparagoes no Havre realizadas em 1890 indicam uma morta­ gem que «extermina» o esgotamento e o estiolamento. Este tema das vilegiatu-
lidade de 27 por 1000 ñas novas casinhas operarías construidas pela sociedade
do Havre das cidades operarías e de 50 por 1000 nos bairros insalubres da 85 J. R ochard, op. cit., p. 349.
86 O tem a é m ais am plam ente o de um a «procura social do E stado», de que fala, P. Ro-
79 A. R affalovitch, Le L ogem ent de l ’ouvrier, P aris, 1887, p. 339. sanvallon em La C rise de l 'E tat-P rovidence, Paris, É d. du Seuil, col. «Points Politique»,
80 J. S im ón citado por L. M urard e P. Z ylberm an, op. cit., p. 59. 1984 (1.a ed., 1981), p. 113.
81 L. C olin, París, étude hygiénique et m édicale, Paris, 1885, p. 151. 87 J. B. D uroselle, La F rance et les F rangais, 1900-1914, Paris, Richelieu, 1972, p. 65.
82 J. R ochard, op. cit., p. 347. 88 Ibidem , p. 6 6 ; ver tam b ém o livro fundam ental sobre o tem a: R. G uerrand, L es O ri­
83 «L ogem ents insalubres», R evue d ’hygiéne, 1900, p. 1102. gines du logem ent social en F rance, Paris, É ditions ouvriéres, 1966.
84 L ei de 30 d e N ovem bro de 1894, citada p o r L. A. B arré e P. B arré, op. cit., p. 23. 89 É. D uclaux, op. cit., 1 . 1 , p. 423.

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A FO R £A DE SI E A FO R £A DOS OUTROS
DA HIGIENE DOS LUGARES Á HIGIENE MENTAL

ras é um tema federativo. Conjuga práticas higiénicas e novos lazeres. Faz con­ lientam os fatos de banho concebidos para a natagáo e para o banho de ar tor-
vergir o aparecimento social das férias e a explicagáo erudita de defesas micro­ nam caducas as gravuras de Bertall que ilustram, alguns anos antes, o banho de
bianas. Dirige mesmo um novo espago ñas doengas psicológicas. É uma aten- lama e os grupos de frequentadores temíais, vestidos ñas praias 96. As teorías da
gao totalmente inédita sobre a fadiga e sobre o esgotamento físico e mental que exposigáo ao sol transformam-se neste fim de século: Monteuuis náo se conten­
origina, entre outras coisas, as estadías em contacto com o ar livre e uma ma­ ta em lembrar a acgáo da luz sobre as bactérias quando arranja, no seio estabe-
neira de «escutar» como nunca, as desordens íntimas. Até á assisténcia pública, lecimento de Nice, uma área para os banhos de sol. Ele pretende explorar uma
enfim, que ai encontra novos investimentos: o envío dos mais «enfezados», por nova forma de energia: o sol permitiría a acumulagáo de forgas, como o con­
exemplo, para vilegiaturas adaptadas. densador permite acumular a electricidade. As técnicas da época impóem as suas
analogías: «Vendo bem a luz é uma fonte de forga muito mais natural e fácil de
transformar em energia vital do que um bife.» 97 Multiplicam-se as experiencias
Elegancias e desnudagdes sobre os efeitos do sol: nelas os embrióes expostos ganhariam em crescimento,
a actividade respiratoria em amplitude, o corpo humano em densidade98. Os no­
O número de residentes de Arcachon, 7910 durante o Invernó, duplica nos vos lazeres náo nascem, evidentemente, apenas das convicgóes médicas. Expli-
meses de Verao, quando, a partir de 1860, a linha do caminho de ferro é pro­ cam-se prioritariamente por um lento enriquecimento social. O argumento sa­
longada desde La Teste 90. As cidades do litoral da picardía, mais ingratas con- nitário, em contrapartida, contribuí para a sua justificagáo. Dá-lhes dignidade e
tudo, sáo igualmente transformadas em estancias balneares, quando, a partir dos legitimidade. M ar e montanha sugerem muito simplesmente energias ainda des-
anos de 1870, o eixo Paris-Boulogne prolongou gradualmente o comprimento conhecidas, desenhando inesgotáveis indicagóes de defesa e de protecgáo.
da costa até Le Tréport ou Cayeux 9I. Bilhetes especiáis para os banhos de mar, Todas estas mudangas explicam o brusco inflacionamento da aparéncia
distribuidos de 1 de Maio a 31 de Outubro, designagáo de «comboios aprazí- corporal e a sua manutengáo. A «ligeireza» dos fatos de banho do final do sé-
veis» com horários e trajectos adaptados aos «turistas», facilitam mais ainda o culo xix, o desnudar das pemas e dos bragos, os tecidos mais justos, acentuam
acesso ás estancias durante o final do século xix 92. O guia publicado pelo Le a silhueta como nenhum traje tinha feito até entáo. Jules Renard sugere-o, ao
Petit Journal, a partir de 1897, com as «pequeñas casas baratas», confirma a descrever as banhistas do Veráo de 1893 «que se batem entre as ondas em cu­
existencia de uma frequentagáo balnear que náo se limita á alta burguesía. Este lotes» Hugues Rebell, mais ainda, nos seus romances ávidos de sensagóes
texto do Petit Journal, o primeiro a ser concebido tanto para a economia como físicas, jogando com a revelagáo e a nudez dos corpos. As banhistas de Biar-
para a viagem, sublinha que em Luc-sur-Mer, por exemplo, uma familia mo­ ritz, por exemplo, revelam o corpo que o Invernó escondía: «Mais do que as
desta pode vi ver por menos de 8 a 10 francos por dia quando o salário de um festas do Casino, o banho era o triunfo de belezas jovens e perfeitas. As mu­
operário é de 6 francos por dia em 1897 93. Novas bolsas acedem assim aos ba­ lheres que náo estavam seguras dos seus encantos náo ousavam arriscar-se
nhos de mar, revelando uma mobilidade social associada á mobilidade das via- nela. E aquelas que se tinham feito notar no Invernó anterior através de uma
gens. As «praias familiares, estimadas por comerciantes, gentes da bolsa e ad­ fisionomía expressiva, langorosa, travessa ou apaixonada; pela arte de bem
ministradores cujas mulheres e criangas sorvem o ar marinho» 94, tomam-se vestir e usar com desafogo uma toillete sumptuosa, véem-se com espanto, des-
gradualmente uma componente da paisagem balneária. denhadas, deixadas no esquecimento a favor de criaturas de nome, figura e
Uma aproximagáo mais sensual das paisagens e dos lugares inventa também portes menos nobres, mas de uma sólida e harmoniosa constituigáo, de uma
novas defesas corporais. O banho por emersáo na lama, o gesto do banhista pro- carne rica e clara que regozija o tacto e a vista» 10°. Le Charivari indica mais
fissional que precipita o frequentador das termas na espuma, cedem o lugar a simplesmente ainda o novo papel desenhado pela praia na apreciagáo das for­
práticas menos brutais e mais matizadas: as do banho de ar e do banho de sol, mas do corpo: «Já viram, á beira-mar, os homens calvos de panga exuberante?
por exemplo. A luz que enfraquece os microbios leva vantagem sobre os velhos Estáo ali a pavonear-se; ostentam ao sol as suas adiposidades reluzentes sem
enteirigamentos impostos pelo frió. Os anúncios balneares de 1900 95 que sa- terem consciencia da repugnancia dos outros.» 101A carne «gorda» pende para
os valores negativos.
90 J. B renot, C ent c inquante ans de chem in d e fe r de B ordeaux á L a Teste e t á A rcachon
L e B ouscat, «L’esprit du tem ps», 1991, p. 84. 96 C. A. d ’A m oux, conh ecid o com o B ertall, op. cit., «L e baig n eu r d ’É tretat», p. 5.
91 É. Flam ent, «La naissance de l ’activité touristique su r le littoral picard», O isiveté et 97 A. M onteuuis, L ’Usage ch ez soi des bains de lum iére e t de soleil, N ice, 1911, p. 41.
L o isirs dans les sociétés o ccidentales au x ix ‘ siécle, C oloquio pluridisciplinar, A m iens 19 e 98 «D es expériences p robantes dém ontrent que les rad iatio n s lum ineuses d éterm inent un
20 de N ovem bro de 1982, A bbeville, Paillart, 1983, p. 211. développem ent plus rapide des em bryons et des différents organes», E. O nim us, L ’H iver
9j «C hem in de fer du N ord, saison balnéaire», anúncio de 1900, Paris, M usée de 1’afFiche. dans les A lpes-M aritinies, P aris, 1891, pp. 300-301.
” A . L a F are e M. S erpeille, Les P etits Trous p a s chers, Paris, 1895, p. 116. 99 J. R enard, op. cit., p. 168.
94 C. A. d ’A m oux, dit B ertall, Les P lages de France, Paris, 1886, «Veules-en-Caux», p. 17. 100 H. R ebell, L es N uits chaudes du C ap frangais, P aris, «10/18», 1985 (1.a ed., 1901),
V er em particu lar o cartaz de G ray p a ra Le Tréport-M ers, citado p o r J. D u rry L e Sport P- 420.
a l ’affiche, Paris, H oébeke, 1988, p. 134. 101 Le C harivari, 20 de Ju lh o de 1876.

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223
A F O R £A DE SI E A FORCEA DOS OUTROS DA HIGIENE DOS LUGARES A HIGIENE MENTAL

A vigilancia das anatomias individuáis toma-se mais frequente no final do O tema das anatomias individuáis, da nudez e da intimidade das formas, tor-
século, mas também a evocacao dos regimes alimentares e dos alimentos con­ na-se apenas um objecto de vigilancia mais edificada, mais confessada por gru­
cebidos para agir muito concretamente sobre as linhas do corpo. A «mulher in­ pos que renovam, no final do século, as práticas de mar e de sol.
quieta» de Jules Bois tenta ordinariamente tirar a prova ao espelho, em 1899,
abismando-se com a imagem das suas «pemas franzinas» e das suas ancas que
se tomaram «menos acentuadas» lü2. Marie Bashkirtseff é mais precisa, ao estu- Os «graus supremos de saúde extrema»"0
dar escrupulosamente a sua silhueta, suputando o perigo de toda a «gulodice
exagerada»: «Aos treze anos eu era demasiado gorda, davam-me dezasseis anos. E impossível, enfim, compreender estas renovagoes sem as associar ao des­
Hoje sou magra, completamente formada, aliás, notoriamente arqueada, talvez porto, prática de desafios mais livres, com os seus clubes e encontros, surgidas
em demasía, comparo-me com todas as estátuas e náo encontro nenhuma táo ar­ ñas últimas décadas do século: impóe-se, ainda neste caso, uma busca de ar e
queada e táo larga de ancas como eu. Será defeito?» 103 de espago, bem como uma descrigáo inédita das formas e dos comportamentos
Os «regimes de emagrecimento» sáo também em maior número e mais ex­ do corpo. É o fascínio de Proust perante os jovens que deambulam pelo dique
perimentados, suscitando conflitos de escola e opgóes individuáis longamente de Balbec: «Seja gragas ao enriquecimento e ao lazer, seja gragas aos novos há­
discutidas pelos mesmos médicos que escrevem sobre os banhos de ar e de sol. bitos de desporto alargados até certos meios populares e de uma cultura física á
Seja, por exemplo, beber pouco durante uma cura de emagrecimento para evitar qual ainda náo se acrescentou a da inteligéncia, um meio social... produz com
a acumulagáo de humidades internas, seja beber muito, pelo contrário, para ex­ naturalidade e em abundancia belos corpos com belas pemas, belas ancas, be-
plorar o poder diluente da água. Os números preconizados por Orstel de 562 gra­ los rostos sáos e repousados, com um ar de agilidade e de astúcia. E náo eram
mas de água em 24 horas sáo radicalmente diferentes daqueles que Hennebouig, nobres e serenos modelos de beleza o que eu via ali, diante do mar, como está­
Kurtz ou Sée preconizam de vários litros de água por d ia 104. Pouco importa, evi­ tuas expostas ao sol ñas margens da Grécia?» 111 O investimento na elegancia é
dentemente, o número retido. O importante é a presenta mais regular do tema o mesmo das descrigóes, certamente mais banais e sumárias das primeiras re­
da obesidade ou da magreza, nos pequeños catecismos de higiene de fim de sé- vistas velocipédicas do final do século xix. Gradualmente nasce um modelo em
culo; é a maneira de combinar as formas corporais com o regime, como faz Paul que a garantía de magreza, sobretudo para as mulheres, se torna uma garantía
Bourget, em 1893, quando, para salientar o magnifico «sangue de loura vigoro­ de elegancia e de saúde: «Nunca esquecerei uma certa tarde de uma festa mun­
sa» da condessa Sténo, lembra a fmgalidade dos seus al mogos: ovo, carnes frías dana no velódromo de Desgrange — o do Invernó — o pelotáo de pequeñas
e chá "’5. mulheres... Entre outras pequeñas magrizelas havia-as de negro, de vermelho,
Nada disto tem a ver ainda com as formas de hoje. Marie Bashkirtseff associa de azul, urnas altas como fusos, outras com veleidades de serem repletas — sem
a vigilancia da alimentagáo á manutengáo de uma morfología «cheia»: «Os om- o conseguirem, de resto» "2.
bros exigem uma linha mais redonda» 106, garante ela ao observar a sua silhueta. Náo que o desporto tenha desde logo obedecido a uma vontade sanitária. As
Um anúncio do Petit Journal do Veráo de 1910 ao Sargol, um alimento energéti­ primeiras corridas em que se aventuram alguns liceais de Condorcet, na sala de
co, denuncia os «magrizelas» e os «insignificantes» que frequentam as praias. espera da gare de Saint-Lazare em 1882, náo se baseia na busca de um benefi­
Nele se opoe um casal jovem esguio e desengragado, a outro casal eloquente, con- cio físico. Simples jogos, elas opóem-se sobretudo ás ginásticas rígidas das es­
fortavelmente sentado numa praia, do qual o corpo «volumoso» e a seguranga colas, aos exercícios colectivos, cadenciados e marcados, inventados pelos pe­
tranquila mostram que náo conhece a «humilhagáo e o embarago que só as pes­ dagogos do século xix. As corridas das primeiras bicicletas, nos anos de 1890,
soas emaciadas tém de sofrer» 107. O receio reside tanto na magreza tuberculosa oferecem, mais ainda. um sentimento de ruptura. É o aturdimento de que fala
como na obesidade. Daí a insistente frase publicitária que hoje náo faria sentido: Audiot em 1897: «A embriaguez da liberdade no prazer, eis o que simboliza a bi­
«Deixem-se engordar.» 108; ou a proposta do doutor Monin, em 1910, de efectuar cicleta» “3; é de vertigem que fala o historiador Isaac quando descobre estas cor­
«injecgoes subcutáneas diárias de 10 a 50 gramas de azeite esterilizado» 109para ridas, no virar do século: «Vejo-me a pedalar voluptuosamente ao alvorecer, por
garantir melhor as redondezas corporais. caminhos florestais... Meu Deus, como era bom a plena natureza, a plena ju-
ventude e esta frescura de alvorada primaveril.» 114A recusa de toda a recriagao
102 J. B ois, L a F em m e inquiéte, P aris, 1897, p. 115.
103 M . B ashkirtseff, op. cit., 1 . 1, p. 257. G. Prouteau, A nthologie des textes sportifs de la littérature frangaise, París, 1948, p. 8 .
104 G. Sée defende vigorosam ente o uso de bebidas abundantes nos «regim es de em a­ 111 M . Proust, A l ’om bre des je u n e s filie s en fle u r s (1918), A la recherche du tem ps per-
grecim ento», v eja-se o seu D u régim e alim entaire, traitem ent h ygiénique des m aladies, Pa­ du, Paris, G allim ard, L a Pléiade, 1 9 6 2 ,1 . 1, p. 791.
rís, 1887, p. 544. 2 L a B icyclette, (1893-1895), citado p o r C. Pasteur, L e s F em m es á bicyclette á la Bel-
105 R B ourget, C osm opolitis, Paris, 1893, p. 152. e E poque, Paris, F rance E m pire, 1986, p. 196.
106 M . B ashkirtseff, op. cit., 1 . 1 , p. 257. 111 G. A udiot, L ettres á m a cousine, París, 1897, p. 75.
107 L e P etit P arisién, 11 de Julho de 1910. 1,4 J. Isaac, E xpérience de m a vie, Péguy, Paris, 1959, p. 126; ver tam bém R. C harreton,
108 Idem . Les F étes du corps, histoire et tendances de la littérature á thém e s p o r tif en F rance,
109 É. M onin, L e Trésor m édical de la fem m e, Paris, M aloine, 1910, p. 100. <0/0-1970, S aint-E tienne, C IE R E C , U niversité de S aint-É tienne, 1985, p. 35.

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A FOR^A DE SI E A FOR^A DOS OUTROS DA HIGIENE DOS LUGARES Á HIGIENE MENTAL

confinada está, aliás, no centro da campanha conduzida para os novos jogos Nenhuma acgáo desportiva de massas, no entanto. Os nadadores inscritos na Fe-
pelo jornal Le Temps em 1888: «Abramos a gaiola... ao ar livre, por vastas su­ deragáo Francesa de Natagáo sáo menos de 1000 em 1920 e os atletas inscritos na
perficies» insiste Georges Rozet numa série de crónicas desenvolvidas ao Federagáo Francesa de Atletismo sáo menos de 15 000 nessa mesma data 122.
longo de vários meses. A prática é suficientemente recente, em contrapartida, para atingir as convic-
A garantía é obscura, evidentemente, toda ela feita de convicgáo, mas traduz góes. Uma garantía que Bergson traduz numa resposta no Gaulois littéraire em
o sentimento novo de mobilidade, o de uma conquista do espago e do tempo, 1912: «O que aprecio acima de tudo no desporto é a confianga que em si oca­
afirmada pela elite do final do século: a performance calculada do desporto é siona... Creio num renascimento da moral francesa.» '23
brevemente interpretada como um aperfeigoamento sanitário. Um modelo de
desenvolvimento que Le Temps comenta no final de cada prova: «Náo só os alu­
nos nadam melhor, mais depressa e durante mais tempo do que nos anos prece­ A assisténcia e o enfezado
dentes, náo só dáo provas de uma resistencia á fadiga que nunca lhes fora antes
conhecida, como também a sua condigáo física é absolutamente diferente do Muito diferentes sáo os exercidos populares: os das sociedades de ginásti­
que tinham há trinta meses.» 116Existencia de um progresso possível, instalado ca constituidos depois da guerra de 1870, com os seus rituais colectivos l24; e
no coragáo das defesas corporais. O desporto toma-se assim demonstrativo, um também os das escolas, com os seus movimentos codificados e constrangidos,
sinal de modernidade, uma garanda de progresso, a ponto de os promotores da aos quais o regulamento de 1892 acrescenta, pela primeira vez, a presenga de
Exposigáo Universal de 1900 o darem por prova de um renascimento físico. jogos recreativos 125. As sociedades de opiniáo do final do século xix, criadas
A exposigáo parisiense fez explodir o símbolo. Ela é a primeira destas mani- para propagar o exercício como para lutar contra o alcoolismo e a tuberculose,
festagóes universais a utilizar a encenagáo desportiva: testes exibidos como o acumulam, aqui, os argumentos peremptórios: «Ocupar-se exclusivamente de
sáo as máquinas a elas associadas, susceptíveis, como elas, de um aperfeigoa­ desenvolver ñas mais diversas escolas a forga e a destreza daqueles que um dia
mento continuo. Os concursos de corrida, de salto, de tiro, de ténis, dispersos deveráo o servigo militar ao país, a saúde e o vigor de que depende o equilibrio
em volta dos pavilhóes expositores e nos bosques periféricos de Paris, sáo oca­ intelectual e moral.» 126O próprio Pasteur náo indica outra perspectiva quando
siáo para comentar a saúde colectiva, o seu avango e o seu declínio possíveis. adere á Liga nacional de Educagáo Física, criada em 1888 para «servir de cau­
A maratona, por exemplo, efectuada á volta das fortificagóes parisienses, torna- sa sagrada á reedificagáo nacional», reunindo-se a Georges Clemenceau, Ale-
-se um indicador, entre outros: «Decididamente, os pessimistas náo tém razáo, a xandre Dumas, Júlio Veme e Émile Zola, explicando a razáo da sua escolha:
raga humana náo degenera coisa nenhuma, pois os nossos contemporáneos con- «Podéis ver-me como um mau exemplo. Mas podéis acrescentar que é isso pre­
seguem completar sem perigo a faganha que custou a vida ao soldado de Ate­ cisamente o que faz de mim um dos aderentes mais compenetrados na utilida-
nas.» 117 As performances dos desportistas americanos, soberanos ñas provas de da vossa liga.» 127A ginástica, e náo o desporto, por várias décadas ainda,
atléticas, causam mais certeza ainda, dando a admirar «a raga jovem e soberba continua a ser a prática destas escolas públicas, aquela que deve «preparar para
que se formou no novo mundo» "8. o futuro geragóes de homens robustos» 128. O Manuel d'exercices physiques et
A originalidade náo está em passar da ausencia de saúde á saúde, em imaginar de jeuz scolaires de 1892 promove esta ginástica a uma evidencia indiscutível:
o seu desenvolvimento indefinido. É o caso do «sanatorio para o bem-estar» "9, «Num país como o nosso, condenado por muito tempo, talvez, a uma continua­
estabelecimento projectado por Pierre de Coubertin numa das suas ficgóes com va­ da vigilia de armas, ela [a ginástica] aparece como uma necessidade patriótica
lor de programa. A imagem é económica, orientada para a «mais-valia física» 12°: e sagrada.» 129
regime, exercidos, levantar ás 7 horas, deitar ás 21 horas e treino continuado
deveriam transfigurar a saúde até á deslocagáo das suas fronteiras. Nunca a nor-
malidade sanitária tinha parecido táo modulável, táo perceptível, nunca se tinha 122 Ver G. D enis, E n cyclopédie générale des sp o rts et sociétés sportives en F rance, Pa­
assim mostrada táo inclinada para o futuro e progresso. ris, 1 946, p. 33 e 5 4 8 .
A certeza é mesmo a de mudanga dos costumes. Georges Saint-Clair fala, em 123 Le G aulois littéraire, 15 de Junho de 1912.
124 O s estad o s sobre este tem a to m aram -se num erosos, ver, entre outros, P. A m au d , Le
1888, de um «movimento repentino, colossal... a favor de exercidos físicos» 121.
M ilita ire, l'É c o lie r, le G y n in a ste, n a issa n c e d e 1 ’é d u c a tio n p h y s iq u e en F ra n c e
(1869-1889), Lyon, P resses u niversitaires de Lyon, 1 9 9 1 , e A. R auch, Le Souci du corps,
115 P. D aryl, «L es jeu x scolaires», L e Temps, 3 de O utubro de 1888. histoire de l ’hygiéne en éducation physique, Paris, PU F, 1983.
116 Le Temps, 16 de M aio de 1891. 125 M anuel d ’exercices physiques et de jeu x scolaires, Paris, M inistére de l ’Instruction
117 L a Vie a u g ra n d air, 1900, p. 570. publique et des B eaux-A rts, 1892.
1,8 Ibidem , p. 582. 126 Le Temps, 28 de N ovem bro de 1888.
119 P. de C oubertin, E ssa is de p sy c h o lo g ie sportive, G renoble, M illón, 1992 (1.a ed., 127 L. Pasteur, C arta á L ig a N acional de E ducagáo Física, Le Temps, 10 de N ovem bro de
1913), p. 44. 1888.
120 Idem . 128 A . C ollineau, La G ym nastique, Paris, 1884, p. 1.
121 G . S aint-C lair, Les Sports athlétiques, Paris, 1889 (1.a ed., 1887), p. vn. 129 «M anuel d ’exercices physiques», op. cit., p. 1.

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A FORCA DE SI E A FORQA DOS OUTROS DA HIGIENE DOS LUGARES Á HIGIENE MENTAL

Outras iniciativas sáo mais reveladoras de um empenhamento público. Cot- os dois últimos, aquelas cujos resultados sáo fracos ou maus 136. A assisténcia
tinet, o director das escolas em 1883, escolhe uma medida original quando pro­ pública é assim obrigada a fixar graus na náo doenga equivalentes a um certo
poe «arrancar os alunos ao seu mórbido meio» para os enviar por algumas se­ número de graus de predisposigáo. A ideia de «terreno», a ideia de «menor re­
manas para «colonias de férias» 13°. Bion tentou já diversas experiencias na sistencia á sementeira microbiana» 137, facilitaram a precisáo destes estados
Alemanha desde 1878. A protecgáo sanitária habita a totalidade do projecto de completamente distintos da doenga e totalmente susceptíveis de a ela conduzi-
Cottinet: limitar o contágio da tuberculose, reforgar o peito pelo ar livre. Um rem. O tema da predisposigáo tornou-se, aliás, suficientemente familiar no ini­
programa defensivo inspirado pela montanha, pelo mar, pelas viagens dos no­ cio do século xx para que Galtier-Boissiére saliente, em 1 9 0 9 , 12 causas que
vos lazeres: «A nossa ideia é puramente a da higiene preventiva. Nós devemos predispóem á tuberculose, entre as quais o «casamento precoce», a «depressáo
subtrair os estudantes estiolados ao mefitismo ambiente.» 131 As colonias cons- moral», o «trabalho excessivo», o «prazer excessivo» e, sobretudo, os períme­
tituem a versáo popular mas também escolarizada, quase disciplinar, dos laze­ tros do tórax que, calculados «ao nivel dos mamilos, fossem inferiores a meta-
res do fim do século, com os seus exercidos respiratorios duas vezes por dia, co­ de da altura mais 2 centímetros» l3S. O trabalho da previsáo acentuou-se até de­
mandados por apito, como no grupo da Associagáo Saint-Suplice em terminar, na própria saúde, os sinais quase cifrados de uma má saúde a ocorrer.
L’Hay-sur-Seine, em 1893, ou os seus cánticos obrigatórios «prolongados e ca­
denciados» para as «esquadras militares» da Obra para o Sol ou de l’Anguille
lionesa na mesma data l32. Lazer do povo, as colonias teriam as virtudes dos la­ 4. C O N C O R R É N C IA E S O L ID A R IE D A D E . P S IC O L O G IA D O F IN A L D O S É C U L O
zeres dos ricos: regenerador e protector. Em contrapartida elas impóem o regi­
me muito vigiado da escola. Já náo é o termo assisténcia, no entanto, que domina ñas práticas sanitárias
Considerado «produtivo ao nivel nacional», o estabelecimento destes grupos do virar do século. Uma outra palavra mobilizadora dos comentários impós-se,
sazonais acelera no final do século: 18 alunos parisienses sáo enviados por 3 se­ a palavra solidariedade. O envió gratuito para colonias de férias, a criagáo de
manas para Haute-Mame em 1883, 100 sáo enviados para os Vosges em 1884, dispensários para melhor despistar a tuberculose l39, a acgáo preventiva sobre os
perto de 5000 sáo dispersados por vários sitios em 1900. As subvengóes au- sujeitos «sáos», nasceram de um novo «contrato social solidário» 14°. Eles con-
mentam: 45 000 francos, por exemplo, para a iniciativa tomada em 1883 e cretizam uma mudanga de cultura: a passagem do tema ainda emocional de
220 000 em 1900 133. A assisténcia funda um projecto: apenas uma dezena de «fratemidade» sobre o qual os revolucionários de 1 8 4 8 afirmam «assentar to­
alunos parisienses paga a sua estadia, dos 4800 que partem em 1900. Trata-se dos os deveres» '41, a um tema mais directamente económico senáo mesmo po­
mesmo de uma nova vertente de assisténcia: a tomada a cargo temporaria, mas lítico. Um projecto idealizado pelos manuais escolares do inicio do século xx:
global, de grupos restritos. O servigo das colonias de férias ainda náo se destina «Deste modo todas as classes sociais sáo solidárias, uma vez que o rico, na sua
a todos. Ele é votado aos mais fracos. A colectividade tenta, com elas, alcangar bela casa, pode ser atingido pela tuberculose que se desenvolve nos pardieiros
a crianga «predisposta para a tuberculose e que se trata de desarreigar» l34. vizinhos.» 142A preocupagáo social pesa mais do que a preocupagáo meramen­
Esta restrigáo conduz a uma originalidade mais marcada ainda: náo será ne­ te moral. O tema do microbio intensificou esta visáo das interdependencias: de-
cessário designar quais as criangas que podem beneficiar da estadia? Náo será fender-se participando na defesa dos outros; proteger-se pela protecgáo de to­
necessário seriar, através délas, os graus de fraquezas? Daí as novas tentativas dos: «Foi Pasteur quem nos fez coir.preender como cada um dos nossos órgáos
de distingáo dos «que náo estáo doentes, mas sim raquíticos» 135, daí esta insis­ individuáis, através do invencível exército dos infinitamente pequeños que en­
tencia em hierarquizar os estados de saúde, seleccionando os enfezados. O que cobre, ergue-se, por assim dizer, no assalto de todos os organismos do mundo.
a municipalidade de Lyon concretiza no inicio do século, utilizando o «coefi­
ciente de robustez» de Mayet: um cálculo que combina as medidas do peso, as
136 Ibidem , p. 9.
da altura e a do perímetro torácico, como no caso dos recrutas. As tabelas de Ma­
137 P. Tissié, La F atigue e t l ’E ntrainem ent physique, Paris,, 1897, pp. 163-164.
yet contém 5 níveis numerados: só váo para as colonias as criangas que ocupam 138 E. G altier-B oissiére, op. cit., p. 46.
139 O dispensário antituberculoso é um centro de d espistes im aginado por R. Philip em
130 C itado p o r E. Plantet e A. D elpy, C olonies d e vacances et O euvres du g ra n d a ir en L ondres em 1887. A in stitu ifáo encarrega-se de « conduzir o inquérito m édico-social no
F rance e t á l ’étranger, Paris, 1910, p. 27. m eio do doente, dar conselhos de higiene e de p rofilaxia» (P. S édaillan e R. Sohier, Précis
131 Ibidem , p. 27. Sobre as colonias d e férias, ver A. R auch, Vacances et P ratiques cor- d ’hygiéne et d ’épidém iologie, Paris, 1949, p. 447). O prim eiro dispensário francés é criado
porelles, Paris, PU F, 1988. por C alm ette em L ille em 1901.
132 E. Plantet e A. D elpy, op. cit., pp. 78 e 129. 140 N. M urard, «G enéses de la protection sociale: l’assurance m aladie», L ’H om m e e t la
133 «C olonies de vacances», R evue d ’hygiéne, 1901, p. 810; ver tam bém E. P lan tet e A. Santé, op. cit., p. 71.
D elpy, op. cit., p. 29. 141 M . O zouf, «L iberté, égalité, fratem ité», L es L ie u x de m ém oire, sob a direcgáo de P.
134 M . E. C heysson, P refácio do livro de L. D elpérier, L es C olonies d e vacances, Paris, N ora, t. m, La F rance, 3, D e ¡'archive á l ’em blém e, P aris, G allim ard, 1992, p. 609.
1908, p. 2. 142 E. C austier e M m e M oreau-B érillon, H ygiéne á l ’usage des éléves de quatriém e et de
135 L . M ayet, L a F iche m édicale, op. cit. cinquiém e année d e l ’enseignem ent secondaire de je u n e s filies, Paris, 1910, p. 168.

228 229
a fo r c ; a d e s i e a f o r ^ a d o s o u t r o s DA HIGIENE DOS LUGARES Á HIGIENE MENTAL

Foi ele que, consequentemente, nos compenetrou do nosso mutuo dever.» 143 seguir o individuo.» 14v Daí a ambiguidade destes controlos que supervisionam
O itinerario do microbio recompós as solidariedades. atitudes e comportamentos em nome de uma defesa colectiva ao mesmo tempo
que o projecto político se toma cada vez mais democrático.
Os 80 sanatorios populares alemáes recebem, aliás, maioritariamente doen­
O seguro de doenga tes, em 1900, e náo os «candidatos á tuberculose» como mostram as estatísticas
de tratamento, de restabelecimento ou de insucesso, regularmente publicadas l5°.
O debate sobre as habi tagnes operarías, por volta de 1890, é também ele per- A realizagáo náo está á altura da implacável teoría: os que entraram já estáo
corrido pelo tema da solidariedade: «As classes abastadas, bem como as classes atingidos pelo bacilo. É também o caso, é claro, dos sanatorios franceses em nú­
pobres, tém interesse em fazer desaparecer as habitagóes insalubres, e seria sábio mero de 12, em 1914 1M.
e previdente da parte do rico impor a si próprio os sacrificios necessários para Outros exemplos ilustram mais concretamente a perspectiva preventiva e
atingir esse fim.» 144O Estado, como se viu, é, pela primeira vez, o garante destes económica dos seguros do final do século. O cerco á anemia dos mineiros do
investimentos. A política do alojamento social, cerca de 1890, concretiza a nova norte, entre outros, dos operários vítimas do ancilóstomo, parasita que prospe­
exigencia: nao se poderia pensar a manutengáo de si sem a manutengáo de todos. ra na humidade das galerías profundas. Uma doenga da qual as companhias de
M ais ainda, é o termo «dever» o que utiliza o projecto solidarista. O seguro seguro seguem os vestigios comparando nos livros de caixa as despesas que va-
obrigatório é disso o último exemplo, o seguro que o Estado alemáo, por exem­ riam de um lugar a outro com as virulencias epidémicas. As companhias brus­
plo, criava em 1883 l45, quando instituí como condigao de contratagáo laboral o camente confessam os seus interesses no desaparecimento da doenga. Elas ne-
acto de se segurar na doenga. Um seguro, cujos efeitos nao se limitam a me- goceiam com os mineiros do carváo até á reivindicagáo da instalagáo de latrinas
lhores cuidados na doenga, mas também á melhor organizagáo na prevengáo. á entrada e no interior das minas: o único meio, segundo os peritos, de levantar
Daí o nascimento de vigiláncias sanitárias ligadas ás economías seguradoras: uma barreira contra os efeitos do parasita propagado pelas dejecgóes espalha-
prevenir o contágio para aligeirar as despesas. É o que os sanatorios populares das pelo solo das galerías. Le Populaire de Liége obtém remodelagóes na bacia
alemáes imaginados em 1885 esbogam: estabelecimentos tanto mais inéditos da Meuse, no inicio do século xx, primeiro exemplo de uma influencia preven­
quando deviam receber «náo os tuberculosos reconhecidos, já quase incuráveis, tiva dos seguros de doenga no quotidiano dos mineiros 152.
mas os candidatos á tuberculose» l46. A luta contra a doenga infecciosa está no É preciso ainda medir a mudanga na própria organizagáo dos seguros, a dos
centro do projecto. A ideia dominante é mesmo o de fazer repertorio priorita­ seus principios jurídicos e administrativos. Nenhuma relagáo, neste caso, com
riamente aos enfezados, os magricelas, aqueles que sáo designados apenas pe­ as primeiras caixas privadas inglesas, aquelas que seguravam os operários de al-
los seus índices torácicos, mais do que os doentes, aqueles que sáo designados faiate no final do século xvm l53. O financiamento náo está dependente de jul-
pela sua reconhecida infecgao. gamentos moráis exercidos sobre os doentes. Náo há nenhuma referencia a
Trata-se «nao apenas de um dever humanitário, mas também de um dever fi- «bons» ou a «maus» operários, ñas apólices de seguro do final do século xix:
nanceiro» l47, indica Duclaux, o director do Instituto Pasteur ao comentar a ex­ o risco é partilhado por segurados igualmente reputados, confrontados com o
periencia alema: criagáo recíproca de uma prática preventiva e de uma estraté- mesmo tipo de riscos. Mudanga por assim dizer, moral que a longa reflexáo so­
gia económica. Daí as visitas regulares impostas aos operários alemáes pela sua bre a reparagáo dos acidentes de trabalho, sem dúvida nenhuma preparou. Foi
companhia de seguros do final do século. O sanatorio tomar-se-ia mesmo du­ o cálculo do risco, no final do século xix, que veio alterar tudo, como mostrou
plamente preventivo: fortalecer os mais fracos e dar uma nova disciplina de Ewald l54; a necessidade de privilegiar a avaliagáo estatística da interminável in-
comportamento, introduzir, de vez, «na vida popular, costumes e precaugóes vestigagáo da responsabilidade; um cálculo que transforma o acidente, episodio
de natureza a prevenir o desenvolvimento de doengas» l4S. Obra extrema, quase individual, acontecimento sempre único, em objecto colectivo, acontecimento
irrealizável por tanto exigir de controlo e de poder de vigilancia e de acolhi- calculável do qual um seguro pode prever «o número provável para o próximo
mento, por tanto exigir também de possibilidade de isolamento social. A pre­ ano, e fixar assim a taxa de quotizagáo necessária para lhe reparar o prejuízo» l55.
vengáo «solidarista» mostra o quanto cresce a necessidade de penetrar nos com­ De forma definitiva, a indemnizagáo toma-se independente da responsabilida­
portamentos privados no interesse de todos: «Já náo seria necessário deixar de de. Está separada das intengóes. Ela corresponde a uma montagem matemática
garantida apenas pelo contrato. O seguro de doenga que a lei de 29 de Junho de
143 L. B ourgeois, La P olitique de la p révoyance, Paris, 1914, t. I, p. 57.
144 E . C au stier e M m e M oreau-B érillon, op. cit., p. 168. 149 L. B ourgeois, op. cit., 1 . 1, p. 32.
145 «L es assurances ouvriéres», A. C. Tartarin, Tuberculose e t Sanatorium , Paris, 1902, 150 «R ésultats obtenus dans les sanatorium s», L e B ulletin m edical, 1 9 0 0 ,1 . 1 , p. 360 ss.
p. 1 0 . 151 J. C ourm ont e A. R ochaix, op. cit., p. 874.
146 P. C ourm ont e A. R ochaix, P récis d ’hygiéne, Paris, 1932 (1.a ed., 1912), p. 870. 152 É. D uclaux, L ’H yg ién e sociale, op. cit., pp. 94 ss.
147 E. D uclaux, L ’H ygiéne sociale, P aris, 1902, p. 144. 153 Ver p. 162.
148 H. L andouzy, Cure d e sanatorium sim ple e t associée, Paris, 1899, citado p o r A. C. 154 F. E w ald, op. cit., p. 336.
T artarin, op. cit., p. 4. 155 N . M urard, op. cit., p. 69.

230 231
A F O R gA DE SI E A FORgA DOS OUTROS DA HIGIENE DOS LUGARES Á HIGIENE MENTAL

1894 torna obligatorio em Franga, no principio apenas para os mineiros 156, obe­ em 1902 algumas respostas a problemas jurídicos desde há muito debatidos:
dece ao mesmo principio: a quotizagáo acarreta a certeza de ser indemnizada. «Tomado a cargo pelo Estado» 161 dos saneamentos locáis em caso de epidemia
Há apenas uma exigencia: a quota-parte, uma obrigagáo individual com valor ou de penúria comunal, vacinagáo e revacinagáo obrigatórias, declaragáo obri-
prorrogativo e emissáo de títulos. gatória de doengas infecciosas.
A outra alteragáo em relagáo ás caixas antigas é que a mediagáo já náo é Mas esta afectagáo da higiene pública ao Ministério do Interior é ela própria
privada, mas sim pública. É o Estado que se toma segurador. Deslocagáo funda­ reveladora, salientando o vigor sempre presente da visáo «armada», a vontade
mental cujas consequéncias sáo sempre actuais: uma maneira também de dese­ de submeter a totalidade da saúde a um poder policial e de obrigagáo: esta co-
nliar o Estado providencia a partir das práticas de saúde: «Havia o Estado auto- laboragáo sempre laboriosa entre a vigilancia higiénica e a disciplina e a auto-
ridade; haverá agora náo só o Estado que reparte os seus lucros e as cargas sociais, ridade. Foi «só» em 1919 na Inglaterra e em 1920 em Franga, que se criou o
o Estado garante de igualdade dos cidadáos perante os cargos públicos.» 157 Nes- Ministério da Saúde, completando a lenta elaboragáo de uma especificidade ad­
tas primeiras leis do virar do século encontra-se o fundamento da Seguranga So­ ministrativa.
cial elaborada durante as décadas seguintes, sobretudo daquela que depois de Este desenvolvimento da higiene pública revela uma dupla face, no virar do
1946 alarga os riscos tomados em conta e os públicos indemnizados. século, duas visóes de saúde colectiva diferentes, quase opostas e todavia in-
dissoluvelmente ligadas: a da mobilizagáo autoritária, uma defesa tanto mais
pesada quanto se refere ao absoluto da nagáo, ao seu porvir, ao seu «sangue»,
O apertar da rede senáo á sua sobrevivéncia. A higiene pública obedece, neste caso, garante Léon
Bourgeois num discurso de 1889, «ás necessidades do patriotismo, uma vez que
E desde logo impossível fugir ao debate sobre a reorganizagáo dos servigos ela tem por fim e por efeito conservar e aumentar este capital humano do qual
de saúde no final do século xix. A rede sanitárias, por exemplo, foi reforgada náo pode ser perdido a mínima parcela sem atentar contra a seguranga nacional
durante a segunda metade do século xix. Um comité nacional consultivo de hi­ e contra a grandeza da pátria» 162. Esta higiene pesa entáo como uma forga ex­
giene pública possui, desde o decreto de 18 de Dezembro de 1848, os seus agen­ terior, pendendo sobre os individuos, perseguindo um sentido para além deles:
tes locáis espalhados pelos arredores: os conselhos de higiene pública. Cada um o cumprimento de um destino colectivo onde dominam a nagáo e o sangue, o
deles compreende de 7 a 15 membros, nomeados por 4 anos pelo prefeito. A sua «crescimento da pátria, da raga e da humanidade» l63.
competencia compreende a propagagáo da vacina, a salubridade das oficinas, o Uma outra visáo em simultáneo com o saneamento é a ideia de uma partici-
saneamento das localidades, os grandes trabalhos de utilidade pública, «os pagáo muito particular no colectivo. Ela faz do Estado um enorme prestador de
meios de melhorar as condigóes sanitárias das populagóes industriáis e agríco­ servigos, mediador prioritariamente encarregue de proteger melhor o individuo,
las» l58... Mas o seu funcionamento mostra o atraso da prática administrativa em de prolongar a sua vida e de prevenir as suas doengas. Uma forma de compro­
relagáo á evolugáo das ideias. Náo é verdade que as decisóes tomadas neste sec­ meter um interesse, por assim dizer egoísta na mutualidade ao cingir a pers­
tor dependem do Ministério do Comércio? O que indica o quanto a preocupa- pectiva social ao mero desenvolvimento da vida. O objectivo deste Estado re­
gáo administrativa se mantém concentrada na circulagáo de coisas e pessoas, na distribuidor, repartidor de lucros e encargos, é entáo o de salvaguardar a
circulagáo de objectos portadores de germes e na de pessoas contaminadas. manutengáo dos seus membros, a perfeigáo da saúde pública que se torna no
A polícia sanitária, em 1880, é ainda a polícia das trocas, da vigilancia das fron- «fundamento onde assenta a felicidade do povo» 1M; ambigáo já náo transcen­
teiras, do controlo de passagens e de trajectos. dente mas imánente, aquela que legitima o social para a defesa de cada um, um
É preciso o decreto de 5 de Janeiro de 1899 para que se opere a transparen­ sentido procedente dos individuos e já náo de uma forga pendente. A própria ex­
cia para o Ministério do Interior. Operagáo de grande envergadura que centrali­ pressáo «saúde pública» que gradualmente substituí a expressáo «higiene pú­
za a higiene pública numa unidade administrativa única: a da «assisténcia e hi­ blica», no inicio do século xx, salienta a mudanga: a insisténcia no capital físi­
giene pública» l59. O que encerra directivas e conselhos que reforgam o seu co individual e colectivo l65. E efectivamente o destino das sociedades
impacto. Uma rede de médicos inspectores de escolas aumenta, desde 1886, as democráticas o que ilustram estes projectos de solidariedade, estas fórmulas so-
possibilidades de visitas e de prevengáo: inspectores nomeados por concurso
para cobrir comunas e departamentos l6ü. Uma lei de saúde pública, enfim, dá 161 A rt. 8.° da lei de 15 de F evereiro de 1902 «ralativa á protecijáo d a saúde pública», c i­
tado p o r J. C ourm ont e A. R ochaix, op. cit., p. 41.
156 F. N etter, L a S écurité sociale et ses principes, Paris, Sircy, 1959, p. 17. 162 L. B ourgeois, D iscours au com ité c o n su lta tif d ’hygiéne p u b liq u e de la F rance (14 de
157 F. E w ald, op. cit., p. 344. Junho de 1889), citado por H. M onod, La S anté publique, législation sanitaire de la F ran­
158 A rt. 6.° do decreto de 18 de D ezem bro de 1848, citado por A. Palm berg, Traité d ’h y ­ ce, Paris, 1904, p. 9.
giéne publique, P aris, 1891, p. 292. 163 L. B ourgeois, op. cit., t. II, p. 178.
139 A . Filassier, D éterm ination des p o u v o irs p u b lic s en m atiére d ’hygiéne, P aris 1899, 164 H. M onod, op. cit., p. 8.
p. 136. 165 La S anté publique, o título do livro de H. M onod, op. cit., exem plifica-o, d a m esm a
160 L . D ufestel, G uide p ra tiq u e du m éd ecin -in sp ecteu r des écoles, Paris, 1910. form a que o título da lei de 1902 sobre a «saúde pública».

232 233
A FORCEA DE SI E A FOR£A DOS OUTROS DA HIGIENE DOS LUGARES Á HIGIENE MENTAL

ciáis onde certamente se pode ver «o desaparecimento constante e progressivo nica de Sarcey que evoca o criado de quarto analfabeto entregue a inultrapas-
da nogáo de soberanía» ,66: a saúde e a protecgáo de cada um projectadas no sáveis esforgos intelectuais para aprender a 1er: «Ele escutava-me com uma pro­
centro de objectivos colectivos, em detrimento de ambigoes afirmadas aparte digiosa intensidade de atengáo, e eu via inchar-se-lhe sob o esforgo, a veia das
dos individuos. Seguros de doenga, seguros contra acidentes, desenham, no fi­ suas témporas e o suor a reluzir-lhe na fronte... Oito dias depois teve uma febre
nal do século xix, os dispositivos, por assim dizer, actuais, aqueles que renovam cerebral» 17°; ou as récitas de Mosso acerca de soldados «muito robustos... que
o projecto político ao renovar as expectativas de saúde. empalidecem e caem de fraqueza depois de cada exame» criado para lhes ava­
har o nivel 171; ou as de Guyau acerca das «cefaleias violentas», as lassidóes e
os abatimentos de que parecem ser vítimas os liceais esgotados m.
Concorréncia e prevengáo psicológica Mosso é um dos primeiros, em 1896 a tentar medir estas fadigas físicas. Ele
calcula-as com o ergógrafo, o instrumento que regista a tensáo do músculo fle­
Uma doenga espreita, todavia, esta certeza inédita no final do século; uma xor do dedo. Ele permite observar uma baixa de tensáo ao cabo de um dia de
doenga directamente ligada ao lugar conquistado pelos individuos, percorridos trabalho intelectual. Mosso acompanha os graus de enfraquecimento atribuidos
pelo sentimento de serem repentinamente «concorrentes», entregues a um mun­ á intensidade do esforgo mental. Ele compara os resultados de uma aprendiza-
do considerado também repentinamente mais técnico: solidariedade perfeita- gem de versos rimados com os do estudo de um texto, da redacgáo de cartas, da
mente voluntária, sem dúvida, concorréncias que se revelam cada vez mais direcgáo de uma conferéncia l73. Pouco importa, é claro, o valor das compara-
pressionantes. Dúvidas, interrogagoes sobre as forgas íntimas, receios de insu­ goes e menos ainda o método de cálculo. A novidade consiste em designar esta
cesso, a ponto de se desenhar, pela primeira vez, o territorio de uma sociedade fadiga psíquica, de lhe imaginar a medida e de propor a sua prevengáo. Surge
psicológica. um objecto de higiene que náo tinha sido levado em conta. «Higiene do neu­
Uma experiencia de Fleury em 1898 indica a via destas inquietagóes. Fleury rasténico» afirma, á sua maneira, Antonin Proust num livro várias vezes reedi­
compara dois esforgos: quando aperta com a máo o dinamómetro depois de ter tado depois de 1895 l74.
fechado os olhos, efectúa uma pressáo de 55 quilos; quando aperta com a máo Outras tantas explicagóes sobre a origem possível destas indisposigoes
o mesmo dinamómetro depois de ter olhado para um «vermelho vivo» ou para complicam-se no final do século. Torna-se necessário repetir o quanto o senti­
um «verde brilhante», ele efectúa uma pressáo de 65 quilos. O alerta dos senti­ mento de um confrontamento generalizado, a certeza de uma struggle fo r Ufe
dos aumenta o poder e a mobilizagáo. Mas este alerta, definitivamente, aumen­ cuja expressáo se banaliza em Franga, se repetem regularmente nestes textos de
ta também a fadiga. Daí o esgotamento possível proveniente de excitagóes vocagáo psicológica: «Um grande número de individuos impóem ao seu cére­
intensas e repetidas, um trago que Fleury diz ser contemporáneo. O enfraqueci- bro um trabalho para além da sua forga.» 175 Spencer legitima mesmo a necessi-
mento íntimo, segundo Fleury, o da forga interior, teria aumentado neste final dade de uma «cultura competitiva», por volta de 1880, para que se afirmem «to­
de século, causado por um meio material mais complexo, de trocas mais rápi­ das as profissóes e todos os negocios» l76. Convicgáo que é favorecida ainda
das, um acumular de sinais e de apelos, uma brusca aceleragáo das competigóes pelo desenvolvimento das escolas hierárquicas e pelo crescimento do espectro
sociais: «Numa cidade como Paris, cada dia, cada um de nós atravessa uma pro­ social. A Companhia dos Caminhos de Ferro do Norte constituí o melhor exem­
digiosa quantidade destas vibragóes.» 167 A vontade dos cidadáos parece estar plo em 1900, desdobrando uma vasta gradagáo de postos intermediários, a
ameagada pela fraqueza, pelo excesso de estimulagáo, de promiscuidades, de maior parte dos quais sáo trepados anos após ano pelo empregado consciencio-
rivalidades. Sáo forjadas novas palavras para designar as perturbagóes: excesso so: 28 escalóes de qualificagóes e de tratamento nos «trabalhos e vias»; 43 nos
de trabalho, neurastenia, cansago excessivo, esgotamento nervoso, neurose de «materiais e tracgóes»; 64 na exploragáo, o que diversifica como nunca os es-
esgotamento. O Des Esseintes de Huysmans ilustra esta terminología em 1884, calóes e os graus, acentuando a esperanga de sucesso e de promogáo l77. Sáo
ao duvidar da sua própria forga, atingido por obsessóes que lhe «anulam os pro­ estas as tensóes que as novas vilegiaturas tém em perspectiva, sáo também os
pósitos, destroem as suas vontades e dirigem um desfile de sonhos que ele su­ esgotamentos físicos e mentáis o que visam as excursóes escolares, as partidas
porta passivamente, sem mesmo a eles se tentar subtrair» 168. O neurasténico de anuais por alguns dias para fora da cidade que se efectuam nos liceus abasta-
Mirbeau caí, igualmente, no abismo de um «enfraquecimento mental» 169 que
nenhuma viagem consegue dissipar. 170 C itado p o r P. Tissié, L a F atigue et V E ntrainem ent physique, Paris, 1897, p. 121.
Um a curiosidade inédita expóe os «excessos» do trabalho escolar, os obstá­ 171 Ver ibidem, p. 122.
172 M . G uyau, E ducation e t H érédité, Paris, 1889, p. 103.
culos das aprendizagens esgotantes e do acumular de tarefas; a descrigáo canó-
173 A. M osso, La F atigue intellectuelle et physique, Paris, 1896, pp. 185 ss.
174 A . P roust et G. B allet, H ygiéne du neurasthénique, Paris, 1895.
166 L. D uguit, Traité de d ro it constitutionnel, Paris, 1924, t. III, p. 459. 175 Ibidem , p. 10.
167 M . de Fleury, Introduction á la m édecine de l ’esprit, Paris, 1898, p. 210. 176 C itado por M. G uyau, op. cit., p. 95.
168 J.-K . H uysm ans, op. cit., p. 169. 177 Y. L equin, «L es chances inégales d ’une nouvelle sociéte», in H istoire des Frangais,
169 O. M irbeau, Les Vingt e t Un J o u rs du neurasthnénique, Paris, 1901, p. 201. op. cit., t. ii, p. 329.

234 235
A F O R gA DE SI E A FORQA DOS OUTROS

dos; aquele que a escola alsaciana instituí, por exemplo, a partir de 1890: cinco
dias em Julho nos Vosgues á volta do lago Gérardmer com marchas de 18 qui­
lómetros por dia em 2 etapas 178.
No desenvolvimento das doengas a temer e a prevenir, as indisposigóes psi­
cológicas adquirem uma profundidade que nao tinham antes. Elas sao designa­
das, descritas, avahadas até á tentativa de lhes sugerir a quantificagáo e a expli-
cagao. Pouco importa a precisáo desta explicagao. O resultado é uma extensáo
do territorio da higiene, a tomada em conta das desordens íntimas, o lugar maior
dado ás divagagóes do Eu.

QUINTA PARTE
BEM-ESTAR?
SÉCULO XX

178 Le Temps, 26 de Julho de 1890.

236
CA PÍTU LO I

BEM-ESTAR?

Luke, o personagem de uma novela de Edmund White, em 1988, entrega-se


a uma experiencia psicológica: ele «visualiza células sas tragando células doen­
tes» 1 para adiar o momento em que a sua seropositividade se transforma em
sida. Ele espera do seu estado imaginário um efeito sobre o seu estado celular,
manifestando uma espantosa confianca na sua forga interior; sinal do crescente
lugar dado ao registo psicológico e á sua suposta eficácia: «Chego a formar no
meu espirito a imagem de glóbulos brancos, formando uma espécie de nuvem
de salubridade.» 2
Mais ainda, os personagens de White indicam uma nova relagáo com a
doenga: a atengáo aos índices sanguíneos e ás taxas globulares; uma busca que
ritma os seus gestos quotidianos; a possibilidade de comentar interminavel-
mente os quadros numéricos indicadores do seu estado de resistencia. É a maior
iniciativa de actores que salientam estes textos, com esta fórmula repetida como
um leitmotiv: «Deves tomar-te responsável.» 3A sida revela nestes casos as úl­
timas deslocagóes dos polos preventivos: responsabilizagáo, individualismo,
precisáo de cálculo de risco, sofisticagáo de técnicas de despiste.
Mas a sida revela também novas zonas de sombra: a importancia duradoi-
ra para discernir a originalidade da seropositividade descoberta em 1981. o pa­
pel pouco transparente da industrializagáo da saúde que permitiu sem dúvida a
manutengáo de sangue contaminado no mercado de transfusáo ou que pode fa­
vorecer a negligencia de testes por razóes de custos. Único pelo mal que re­
presenta, combinando como nenhuma outra epidemia até aqui, o sangue, o
sexo e a morte, a sida é-o também pelo que nos ensina sobre as nossas socie­
dades.

1 E. W hite e A. M ars-Jones, L'É charde, París, «10-18», 1988 (1.a ed. am ericana 1987)
p. 335.
2 Ib id em , p. 11.
3 Ibidem , pp. 321 e 335.

239
BEM-ESTAR? BEM-ESTAR?

1. A SID A , A P R E V E N g Á O E A R E S P O N S A B IL ID A D E gáo francesa, confessando, em 1991, fazer da sida «a preocupagáo essencial» ,


a súplica contida no relatório de 1987, por outro lado, é pertinente e precisa.
E preciso voltar ás primeiras informagóes do flagelo dadas por volta de «Continuemos nesta via e provaremos a nossa incapacidade de reagir perante
1981-1983, particularmente as da Imprensa, as quais aproximaram a nova in- uma urgencia que póe em perigo a nossa sociedade» l2; a frase mais concisa ins­
fecgáo das catástrofes antigas 4. O título do Liberation de 13 de Novembro de crita na base de um cartaz de 1988 é a seguinte: «A Franga náo quer morrer de
1981: «A Peste nos EUA»; o do Nouvel Observateur a 26 de Abril de 1985: Sida.» A imagem proposta, longínqua, confusa mas insistente, é a do «fim», a
«Sida, a nova peste»; os comentários do Quotidien de Paris, a 28 de Abril de derrota de todos, a imagem da queda, global, implacável.
1983: «Face ao flagelo que seria o equivalente da peste e da lepra da Idade Mé­ As gradagóes sáo, evidentemente, numerosas. Um consenso para conjurar
dia, as reacgóes tomam-se irracionais e irreflectidas.» A comparagáo peca, é um pánico colectivo teve lugar na grande imprensa, alguns anos depois da to­
claro, pela sua desproporgáo com a realidade. A mortalidade só por si é dife­ mada de consciencia da epidemia em 1981. Os títulos revelam-no; o do Ex­
rente daquela das velhas epidemias, mesmo se o universo de 20 250 casos de press, de 26 de Julho de 1985 diz: «É preciso ter medo da Sida?»; o do Point,
sida, declarados em Franga entre 1981 e 1992 5 é considerável, bem como o de a 16 de Setembro de 1985: «Psicose ou realidade. sida: é necessário ter medo
100 000 mortos pela doenga nos Estados Unidos da América entre 1981 e 1991 6 do sexo?» Um inquérito nacional em 1991 ao dar aos números uma precisáo
ou, mais ainda, o número do seu alcance em Paris: primeira causa de mortali­ que náo tinham, contribuí, entre muitos outros trabalhos, para uma maior ob-
dade desde 1992, entre os homens parisienses entre os 25 e os 44 anos 7. jectividade: 100 000 a 200 000 pessoas contaminadas em Franga no final de
1989, enquanto que previsóes anteriores designavam, sem base científica real,
300 000 pessoas contaminadas e, por vezes, mesmo 500 000 13. Daí, para mui­
O cenário do mais importante flagelo tos, a urgencia de informar sem paixáo: «A sida náo é a peste, é simplesmente
a sida e isso é suficiente.» 14
Numerosas e inesperadas crengas e ilusóes multiplicam-se durante muito Ainda que menos evocado, o cenário do perigo mais importante, no entan­
tempo; como mostra, em 1992, o processo movido em Franga contra a venda to, náo desaparece: um subtítulo do Monde recorda-o a 20 de Junho de 1990.
de toalhetes muito particulares, reputados para apagarem o «virus da sida» de «Devemo-nos considerar em estado de guerra»; um título do Parisién Liberé a
um «aparelho telefónico, da pega de um carro de supermercado ou de uma sa- 20 de Julho de 1992: «Previsóes catastróficas»; ou algumas frases de celebri­
nita» 8; como mostra também o inquérito que Jean-Paul Moatti, em 1990, ao re­ dades que assimilam a epidemia á «doenga mais devastadora e ao problema so­
velar que 34% dos franceses inquiridos consideram possível a comunicagáo do cial mais importante da nossa época» '5. Estas fórmulas sugerem uma necessi­
virus ñas casas de banho públicas 9; ou como mostram ainda alguns comporta­ dade muito específica das sociedades contemporáneas: a alarmante encenagáo
mentos próximos das velhas desconfiangas contra os «primeiros» microbios: o do declínio para melhor o conjurar. Uma forma de evitar o «impossível», se-
despedimento de médicos que recebem pacientes atingidos pela sida pelos se- guindo-o de perto. Conduta característica de comunidades que se tomaram mais
nhorios nova-iorquinos 10. O medo alimenta as divagagóes mesmo que, mais de técnicas, mais democráticas, sobretudo, e irreligiosas, aquelas que, mais do que
dez anos após a descoberta da epidemia, algumas de entre elas estáo hoje mais outras, devem fabricar os seus sentidos e alimentar a sua coesáo. O cenário
dominadas. apocalíptico acelera programas e desafios. O horror da degenerescencia refor-
Mais característica ainda é uma outra manifestagáo de inquietagáo; aquela gava, no século xix, as ambigóes do tempo: a encenagáo do progresso e as afir-
que projecta um possível desabamento social, a evocagáo de um risco de desa- magóes nacionais. O cenário do cataclismo conserva hoje uma forga federativa,
parecimento colectivo pela doenga: a resposta de 30% dos inquiridos na popula- mesmo se as práticas autoritárias já náo tém a mesma legitimidade, nem a ideia
de progresso a mesma transparencia. A sida junta-se, por outro lado, a outros cé­
nanos de «final» como sugeriu Susan Sontag numa enumeragáo cumulativa e
4 «O n avait oublié l ’existence de tels fléaux», M . G rm ek, H istoire du sida, Paris, Payot, variegada, que mostra como o sentido do risco se alargou ñas nossas socieda­
1989, p. 82.
des mediáticas e sobreinformadas: «Á morte dos océanos, dos lagos e das flo­
5 L e M onde, 4 e 5 de O utubro de 1992.
6 L e M onde, 26 de Jan eiro de 1991. restas; ao incontrolável aumento das populagóes nos países pobres do mundo,
7 L e Q uotidien du m édecin, 21 de S etem bro de 1992. A m ortalidade anual pela sida
re p resen ta em 1991, em F ranca, 1,1% de m ortes entre os hom ens e de 0,2% en tre as m u­ 11 Inquérito do C R E D O C , 1990, citado por M. H ouvenaeghel, A utrem ent, n.° 130, L 'H o-
lheres (ibidem ). M as as baixas entre m ulheres aum enta, elevando-se em 1993 a um quarto m ine contam iné, M aio de 1992, p. 161.
dos caso s de sida (L ibération, 5 de A g o sto de 1993). 12 C. G ot, R a p p o rt su r le sida, Paris, F lam m arion, 1989, p. 17.
8 Le M onde, 20 de F evereiro de 1992. 13 J.-B . B runet e J.-P. L évy, «Les véritables chiffres du sida», Le M onde, 9 de Janeiro de
9 E va lu er la p ré v en tio n d u sida en France, un inventaire des données disponibles, 1991.
Paris, A gence nationale de recherche su r le sida, N ovem bro de 1990, p. 25. 14 Idem .
10 C .-B . B louin, É. C him ot, J. L aunére, Sida Story, Paris, É ditions universitaires, 1986, 15 N . N ixon, fotógrafo que registou m es após m es as tr a n s f o rm a r e s físicas de um doen­
p. 23. te atingido pela sida, citado em SID A, L ibération collection, n.° 3, N ovem bro de 1989. p. 32.

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BEM-ESTAR? BEM-ESTAR?

aos acidentes nucleares como o de Tchemobyl; ao enfraquecimento e aos bura­ revela uma última deslocagáo de relagáo entre o individuo e a comunidade.
cos na camada de ozono; á velha arneaca da confrontagáo nuclear entre super- Os gestos a respeito das pessoas infectadas, por exemplo, mostra como a doen­
poténcias, ou de um ataque nuclear por um dos Estados rebeldes, que escapam ga pertence a um universo cultural diferente do das antigas epidemias. O com-
ao controlo das superpoténcias — a todos estes perigos é preciso, de hoje em portamento preventivo marca o cumear de um longo trajecto histórico, que gra­
diante, acrescentar a sida.» 16 dualmente inverte as defesas contra a doenga: menor rejeigáo do portador de
Uma outra razao, mais sumária, pode explicar «a desmedida das reacgóes da risco, por exemplo, e menor elaboragáo das defesas individuáis, menor acgáo
opiniao pública» 17 perante a nova epidemia. É o hábito inteiramente contem­ sobre o outro e mais acgáo sobre si próprio. A reversáo opera-se tanto melhor
poráneo de multiplicar as prevengóes eficazes: a tuberculose, por exemplo, cuja com a sida quanto a epidemia concerne práticas eminentemente individuáis, a
mortalidade de 150 por 100 000 habitantes franceses, em 1935, passa a ser de sexualidade e a toxicomania.
menos 7 para 100 000 em 1970 ,8; a sífilis, cujos 15 000 casos declarados, em Várias vozes, numa primeira fase, náo hesitaram certamente a sugerir a co-
1945, passam a ser 3000 em 1970 19; ou certos cancros, como os do estómago, locagáo do doente em quarentena, assimilando a pessoa infectada ao perigo que
cuja mortalidade de 20 para 100 000 em 1950, passa a ser de 5 para 100 000 em é preciso afastar. Imagem inteiramente tradicional do assalto «exterior», a das
1980 20. E, efectivamente, o sentimento de uma maior empresa sobre as patolo­ invasóes, com o seu cortejo de repressóes e de rejeigóes. Existem exemplos de
gías, sobretudo a de um estancamento das infecgóes, que toma, de repente, as isolamento: instalagáo, em 1985, num edificio separado, dos 139 detidos porta­
doengas menos aceitáveis. Daí esta instalagáo de um dispositivo sem preceden­ dores do virus numa prisáo modelo de Limestone, no Alabama 24; a insistencia
tes contra a sida: a criagáo, desde Fevereiro de 1982, de um grupo de trabalho das autoridades de Besangon, em 1992, em achar «antinómico em relagáo á vo-
em Paris com os representantes de diferentes especialidades médicas; a cele- cagáo climatérica da cidade» 25 a implantagáo de um centro reservado aos doen­
bragáo de conferencias mundiais anuais pesadamente mediatizadas, das quais a tes de sida; ou mesmo a recente exclusáo pelos orgulhosos membros de um clu-
de Amesterdáo, em 1992, que reúne mais de 11 000 participantes, perto de 1000 be holandés de bilhar de um dos socios que apresenta a seropositividade 26.
oradores para 5000 comunicagóes 21; a criagáo, entre 1988 e 1989, em Franga, Medidas náo discriminatórias impuseram-se, no entanto, mesmo se os Esta­
de vários organismos de responsabilidades complementares e determinadas: a dos Unidos da América continuam a recusar a permissáo de estadia aos porta­
Agencia Nacional de Investigagáo da Sida, para seleccionar e coordenar as ac- dores do viras, salientando assim a diferenga entre um puritanismo americano
góes de investigagáo; a Agencia de Luta contra a Sida, para coordenar as acgóes e outros comportamentos mais liberáis. Uma «única arm a»27, na verdade, é hoje
govemamentais; o Conselho Nacional da Sida para propor recomendagóes éti­ considerada eficaz, pregada mais do que nunca pelas campanhas públicas: a
cas e sociais. Todos estes organismos de uma evidente utilidade, mas que mos- mudanga dos gestos íntimos e náo o entrincheiramento das pessoas infectadas.
tram o tratamento «particular» que a doenga beneficia, dando um peso comple­ O debate sobre a reabertura das casas encerradas mostrou-o em 1990. A pro­
tamente novo a certas comparagóes: «É preciso “sideisar” as outras patologías... posta de isolar as prostitutas náo teve eco: um acto considerado táo indigno
Poderíamos imaginar uma saúde pública que seguisse todas as patologías com como perigoso; medida que podia desencadear todas as estratégias transgresso-
tanta atengáo, tantos estudos económicos, epidemiológicos, sociológicos, fa- ras, o desejo das «excluidas» de fugir á vigilancia, por exemplo, e, definitiva­
zendo o ponto, semestre após semestre, da evolugáo da situagáo.» 22 mente, o de fugir tanto aos gestos preventivos como aos de cuidado. Também é
demasiado arriscado o nascimento de um falso sentimento de seguranga: a im-
pressáo de solucionar o problema, enterrando-o no segredo das casas encerra­
«Responsabilizar» das, enquanto que o alerta deve incidir sobre cada comportamento individual2S.
Está consumada uma mudanga: o retrocesso inteiramente teórico da sífilis nos
A sida tomou-se o «flagelo do século xx » 2\ aquele que, num decénio, in- dominios da prostituigáo pertence ao século xix.
vadiu todas as consciencias, mas também aquele que, pelas defesas propostas, A recusa em alargar a obrigagáo dos testes de despiste mostra também a
nova insistencia na responsabilizagáo. Estes testes, cujo resultado pode reco-
nhecer súbitamente a existencia de uma seropositividade, sáo obrigatórios em
16 S. Sontag, L e Sida et se s m étaphores, Paris, B ourgois, 1989 (1 .a ed. am ericana, 1988),
p. 113. Franga, desde Junho de 1985, para os doadores de sangue; sendo, neste caso, o
17 C .-B . B louin. É. C him ot, J. L aunére, op. cit.. p. 167. risco massivo. A Academia de Medicina quis alargar-lhe o principio. Ela reco-
18 J. B oyer, P ré cis de m édecine p ré v en tiv e et d ’hygiéne, Paris, B aillére, 1973, p. 586. menda a 11 de Fevereiro de 1992 a sua aplicagáo obligatoria ás grávidas, bem
19 Ibidem , p. 619.
20 B. A sselain, «C ancers», Santé pub liq u e, sob a d ire c ja o de G. B rucker e D. Fassin, Pa­ 24 «E n A labam a, le sida fait prison á part», Libération, 8 de F evereiro de 1988.
ris, E llipse, 1989, p. 369. 25 Le M onde, 19 de O utubro de 1992.
21 Libération, 20 de Jan eiro de 1992. 26 Ibidem , 10 de Setem bro de 1992.
22 C. G ot, La Santé, Paris. F lam m arion, 1992, p. 159. 27 M . Pollak, Les H o m o sexu els et le Sida, sociologie d ’une épidém ie, Paris, A .-M . M é-
23 M arc H ouvenaeghel, «L e dernier des fléaux», A utrem ent, n.° 130, L ’H om m e conta­ taillé, 1988, p. 178.
miné, op. cit. 28 «L e confort bourgeois des m aisons closes», L e M onde, 13 de Junho de 1990.

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BEM-ESTAR?
BEM-ESTAR?

a fórmula francesa difundida em 1989, «a sida, cada um de nós pode encontrá-


como a sua presenga obligatoria nos certificados pré-nupciais: uma forma de re-
-la» 37. As sugestóes sáo directas, despojadas, os comportamentos nao sáo jul-
ferenciar os doentes para os controlar m elhor29. Mas, mal o voto foi conhecido,
gados nem comentados, para melhor levar o público o mais próximo possível
multiplicaram-se as opini5es indignadas. Em primeiro lugar, em relagáo ao efei­
do perigo «real». O prolongamento de uma dinámica cultural iniciada desde há
to contraproducente de uma obrigagáo geral: «Todos aqueles que saibam da sua
muito, a do individualismo baseado na racionalidade.
seropositividade sem terem feito o teste voluntariamente iráo recusar durante
A vigilancia económica é outra vertente desta política pedagógica, tomar os
algum tempo a tomada a cargo de precaugóes» 30; em seguida, sobre o efeito
conselhos «concretizáveis» para os tomar mais credíveis, lacilitar o acesso aos
psicológico muito particular desta obrigagáo, que dá a cada um uma falsa im-
testes de despiste, por exemplo, ou aumentar a difusáo de seringas e de preser­
pressáo de estar protegido pelo controlo dos outros: «Qualquer medida siste­
vativos. É claro que surgem obstáculos inesperados que salientam o quanto a
mática de despiste tem um efeito de desmobilizagáo e de desresponsabilizagáo,
saúde de hoje se tomou num mercado. Náo sáo os testes desenvolvidos ao rit­
cada pessoa náo infectada conta com as pessoas infectadas para garantir a se­
mo das tensóes financeiras? A concorréncias entre empresas francesas e ameri­
guranga de todos.» 31 Um comunicado ministerial encerra o debate em Margo de
canas que exploram as patentes abrandou a sua aplicagáo em 1985 e 1986, en­
1992: os testes de despiste permanecem náo obrigatórios, com exclusáo dos
quanto que para os doadores de sangue sáo obrigatórios 38. Do mesmo modo, a
doadores de sangue32. Atitude que confirma uma preocupagáo dominante: a de­
criagáo de «centros de despistes anónimos e gratuitos» preconizada pela Direc-
fesa contra a sida prende-se com a atitude de cada um.
gáo-Geral de Saúde, em 1985, é ainda pouco alargada por meras razóes de or-
gamento. Daí, a queixa da directora do Centro de Lariboisiére, em 1992: «Te­
mos, no mínimo, entre 5 a 10 consultantes por hora; por vezes podemos deparar
Educar
com 30 pessoas á espera.» 39
Muito mais grave ainda: as contaminagóes tém lugar em condigóes obscu­
É entáo a educagáo que está na base das práticas defensivas. Daí a impor­
ras em que a vontade de preservar os interesses médicos e financeiros parece ter
tancia decisiva das campanhas e das mensagens públicas. Daí, sobretudo, o pa­
pel específico atribuido ao Estado: contribuir para a pedagogia mais do que para dominado.
a repressáo. Náo que os resultados obedegam automáticamente a esta perspec­
tiva oficial. Os inquéritos revelam o quanto a compreensáo da mensagem nem
sempre implica a sua posta em prática. Numerosos sáo os inquiridos que afir- Zonas de sombra
mam, em 1990, que as campanhas melhoraram os seus conhecimentos sobre a
Diversos julgamentos na Justiga do negocio do «sangue contaminado» re­
prevengáo da sida (66%), mais raros sáo os que afirmam que eles tenham mo­
velam um trágico paradoxo: o investimento excepcional na prevengáo da doen­
dificado a sua conduta pessoal (1 2 % )33, números difícilmente aumentados no
ga náo impediu «o esquecimento das regras de deontologia médica» 4" no ma-
inquérito de 1992 34. A afinagáo da mensagem é entáo a tarefa constante, inter-
nuseamento do sangue. O que provocou a contaminagáo de 50% dos 4000
minável, da marcha preventiva. hemofílicos franceses. Uma «falha» tomada, contudo, possível por um avango:
Pelo menos o trabalho de hoje náo tem relagáo com o do século xix. As fór­
a técnica de concentragáo do factor vm coagulante que transformou a vida dos
mulas empregues, o sentido das imagens, confirma o desaparecimento das ve-
hemofílicos depois de 1970. O pó fácilmente transportável, utilizável em pou-
lhas propagandas. A mensagem toma-se informagáo minimalista, e já náo reco-
cos minutos em qualquer momento, revolucionou a independéncia física destes
mendagáo moral; como no caso da jovem, despida e cúmplice á qual um cartaz
doentes; o uso de ampolas de 20 mililitros que lhes permite multiplicar as ín-
alemáo atribuí uma confidencia precisa: «Estou, confiadamente, ao vosso dis-
jecgóes e prevenir as micro-hemorragias internas. Contudo, em 1983, é revela­
por, mas com um preservativo» 35; ou o casal dinamarqués, inclinando a ima­
do um risco: basta um único dador seropositivo para contaminar um lote intei-
gem de um preservativo sublinhado com um breve conselho: «Tenha um pou­
ro; perigo tanto mais sério porque é necessário misturar de 4000 a 5000 doagóes
co de bom senso nos seus encontros ocasionáis.»36 Inteiramente realista é ainda
individuáis para fabricar industrialmente um lote. O exame clínico de 3 hemo­
fílicos, no final de 1983, revela que estáo contaminados. Os lotes postos em cir-
29 Liberation, 12 de F evereiro de 1992.
culagáo sáo potencialmente perigosos.
30 E n trev ista de C atherine B retón, d irectora de um centro de despiste anónim o e gratui­
Desde Maio de 1983, um processo de aquecimento no fabrico de concen-
to, Libération, 1 de A bril de 1992.
31 E n trev ista de W illy R ozenbaum , U nidade de doengas infecciosas, hospital de R oths-
37 E va lu er la p ré v en tio n du sida en France..., op. cit; 1991, p. 14.
child, S anté-M agazine, A g o sto de 1992, p. 47. 38 «Le gou v em ern en t a freiné en 1985 et 1986 le dépistage du virus du sida», Le M on­
32 Libération, 1 de A bril d e 1992.
de, 19 de O utubro de 1991. .
33 É va lu er la p ré v en tio n du sida en F rance... op. cit., 1991, p. 15.
39 «Sida: les effets pervers du dépistage obligatoire», Libération, 14 de Fevereiro de 1992.
34 Ibidem , 1992, p. 42.
40 E ste texto, que data de 1993, náo foi m odificado. Ver, p o r outro lado, a adenda á p re ­
35 Ver «D es im ages de troisiém e type», SIDA, L ibération collection, op. cit., p. 77.
sente edi§ao: «Procés, réform es, responsabilités, les interrogations d ’a u jo u rd ’hui», p. 317.
36 Ibidem , p. 76.

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trados permite desactivar o virus da sida. Os produtos aquecidos sao vendidos dos seus filhos hemofílicos: «Nós náo sabíamos o que aquilo quería dizer. Di-
e difundidos pela firma americana Travenol-Hyland 41. Náo sáo utilizados em zia-se na altura que o facto de ter anticorpos protegia contra a sida, como na he­
Franga: hesitagóes e inércia parecem atingir as autoridades de transfusáo san­ patite. Nós náo nos preocupámos.» 47Uma reacgáo que confirma de que modo
guínea. E no inicio de 1985 que a prova é trazida: só sáo reconhecidos como a intensidade do medo se adaptou aos conhecimentos truncados. A dificuldade
protectores os produtos aquecidos; vários centros franceses estimulam o seu fa­ em abandonar as velhas referencias de microbiología tradicional com as suas
brico. O escándalo, contudo, está para vir: o Centro Nacional de Transfusáo transmissóes por contacto e as suas defesas por anticorpos. A epidemia assus-
sanguínea considera «demasiado» dispendiosa, em Maio de 1985, a perda dos tou como nunca, mesmo quando «ninguém, até ao Veráo de 1985, mediu ver­
lotes náo aquecidos. O raciocinio económico da rentabilidade de uma «verda- daderam ente a sua gravidade» 48 com clareza e rapidez. A condenagáo de al­
deira fábrica de sangue» 42 é mais importante do que o raciocinio epidemiológi­ guns responsáveis poderia entáo disfargar as falhas menos transparentes. Ele
co. O que toma terrível a injungáo do director do Centro, a 7 de Maio de 1985, poderia, ao estigmatizar as falhas individuáis, dispensar uma reflexáo sobre as
quando o risco parece estabelecido: «Isto pressupóe naturalmente que o stock responsabilidades e sobre as crengas colectivas. E efectivamente o que trans­
de produtos «contaminadores» seja distribuido na totalidade antes de oferecer mite um dos episodios mais trágicos da infecgáo pelo virus da sida: a tecnolo­
os produtos aquecidos em substituigáo.»43 É conhecida a difusáo infecciosa que gía e a exigencia de rentabilidade puderam ocultar a deontologia entre os que
daí resultou e a condenagáo penal de 23 de Outubro de 1992, confirmada na tinham conhecimento, mas também as velhas nogóes epidémicas, além do medo
apelagáo de 13 de Julho de 1993 44. difuso, puderam manter inúmeras ilusóes entre aqueles que deveriam ter tido
O exemplo náo se limita á Franga: sáo contaminados 44% dos hemofílicos conhecimento; incluindo os médicos que confessam hoje ter sido surpreendidos
na Grá-Bretanha; 60% a 90% nos Estados Unidos da América; 48% a 61% na pela nova epidemia, reconhecendo «a formidável miopia do inicio dos anos 80» 49
Alemanha; 40% a 70% na Irlanda; 72,4% no B rasil45. O mais difícil, é com- e a dificuldade em medir a importancia da transmissáo pelo sangue. Confissáo
preender como puderam «ser aceites por outrem os riscos de morte» 46, quando de um anestesista, entrevistado pelo Le M onde, em Fevereiro de 1993: «Só te­
a doenga estava qualificada como «peste do século xx» e os compromissos es- mos uma maneira de nos livrarmos: a humildade.» 50
tatais se tinham largamente reforgado. Uma falha na saúde pública no momen­ Persistem, é claro, outras zonas de sombra: a diferenga nos danos entre re-
to em que as expectativas de seguranga nunca tinham sido táo urgentes? O re­ gióes e continentes, por exemplo. O medo ocidental conforma-se, neste caso,
cuo de bata branca perante o cálculo do lojista? O negocio do sangue com uma ignoráncia relativa: os países do Terceiro Mundo reúnem actualmen­
contaminado constituí, em primeiro lugar, esta impossibilidade de abandonar te mais de 80% de casos de sida, as mortes africanas representam só por si 75%
uma lógica industrial, a instalagáo de produtos táo eficazes e dispendiosos que das mortes devidas á epidem ia51. Diferenga nos modos de transmissáo em que
os seus perigos potenciáis conseguiram parecer «secundários». O episodio lem- a infecgáo por contacto heterossexual pode variar de 1 0 % na América do Nor­
bra ainda a quantidade de riscos que a sofisticagáo médica fez surgir, mesmo te a 70% na Africa subsaariana52. Diferengas nos modos de vida em que certas
onde náo eram nem pensados nem entendidos, impondo uma vigiláncia nova colectividades do Terceiro Mundo assimilam as campanhas para o uso do pre­
cuja evidencia pode tardar a impor-se. servativo á invengáo de colonizadores perigosos 53. Diferengas no equipamento
M as o negocio do sangue contaminado constituí outro desconhecimento, onde certos hospitais africanos, como o de Kinshasa náo dispóem «nem de di-
mais obscuro e mais colectivo: a dificuldade em compreender rápidamente a nheiro nem de material» 54. Diferenga, enfim, nos investimentos, em que, de 1,5
originalidade muito particular de cada epidemia, a duradoura substimagáo de bilióes de dólares despendidos para a prevengáo mundial, apenas 6% váo para
transmissáo de sida pelo sangue, entre outros, ou a duradoura incompreensáo do os países em vias de desenvolvim ento55. A epidemia é, efectivamente, múltipla,
sentido preciso da seropositividade. Muito reveladora é, neste caso, a reacgáo variando segundo os continentes.
do casal Mailloc quando se apercebe, em Julho de 1984, da seropositividade
47 C itado por A .-M . C asteret, op. cit., p. 100.
48 Le M onde, 15 de O utubro de 1991.
41 A .-M . C asteret, L ’A ffa ire du sang, Paris, L a D écouverte, 1992, p. 73.
49 «L e silence des m édecins», Le M onde, 16 de F evereiro de 1993.
42 L e M onde, 23 de Junho de 1992. É necessário insistir no facto de que a técn ica criou
50 Idem.
esta situagáo até a i desconhecida: o fabrico de derivados de sangue, portadores de virus d u ­
Ver ainda sobre esta «hum ildade» o R apport de la com m ission d ’enquéte su r l ’état des
rante m u ito tem po nao revelados. U m a nota intitulada «M orbidité virale transfusionnelle»
connaissances scien tifiq u es e t des actions m enées á l ’égard de la transm ission du sida (P a­
em anada do C entro N acional d e T ransfusáo S anguínea, a 11 de A gosto de 1989, c ifra o nú­
ris, U G E , coll. «10/18», 1993) e o livro de M ichel Setbon, P ouvoirs contre sida. D e la
m ero d e c ontam ina 9 oes p ós-transfusao sobrevindas antes que alguns testes de d espiste fos-
transfusión sanguine au dépistage: décisions et p ra tiq u es en France, G rande-B retagne et
sem instalados (o teste contra a hepatite, entre outros, em 1988) em v árias cen ten as de m i­
Suéde (Paris, Ed. du Seuil, 1993).
litares (L e M onde, 22 de O utubro de 1991).
51 «L’A frique seule face au sida», Libération, 12 e 13 de D ezem bro de 1992.
43 C itad o p o r L e M onde, idem .
52 Idem.
44 Ver nota 40.
53 «A G isenyi, les m orts en douce d ’un sida sans nom », Libération, 6 de Janeiro de 1993.
45 L ibération, 22 de Jun h o de 1992.
54 «L a course folie des sidéens de K inshasa», Libération, 7 de F evereiro de 1991.
46 E xcerto do julgam ento de 23 de O utubro de 1992, Libération, 24 e 25 de Outubro de 1992.
55 Libération, 12 e 13 de D ezem bro de 1992.

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BEM-ESTAR?
BEM-ESTAR?

A cena sanitária é, mais do que nunca, discordante. A partilha entre os pró­


panhado de fotografías de homens e mulheres anónimos tiradas em diferentes
vidos e os nao providos alargada ás relagóes entre países transformou a luta an­
idades da vida propóe a aquisigáo de uma minúscula caixa: o produto permite
tiepidémica: o combate ñas fronteiras, aquele que levava Adrien Proust em efectuar um teste muito preciso, «conhecer a sua taxa de colesterol... em tres
1889 a deter a cólera ñas cristas pirenaicas 56já nao tem valor universal. Os flu­
minutos, em casa, a qualquer momento, em jejum » “ ; avahar a presenga deste
xos contemporáneos de circulagáo como o desenvolvimento «galopante» 57 da
álcool asteroide cujo possível excesso se deposita lentamente ñas artérias até as
epidemia em Africa ou na Ásia deslocaram o problema. As trocas impóem o pe­
enfraquecer e romper. O número obtido designa o risco de acidente cardíaco.
rigo, mesmo se na ocorréncia a ameaga incide menos na sida do que ñas in­ Daí, o objectivo do teste: orientar melhor os regimes e os modos de vida.
fecgóes oportunistas que ela desenvolve: «É de recear que a existencia de uma
E preciso uma primeira revolugáo preventiva para tornar este cálculo possí­
populagáo de vários milhóes de individuos com as defesas imunitárias enfra- vel: a extensáo de doengas pouco ou nada evocadas pelos higienistas do inicio
quecidas favorega o ressurgir de doengas altamente contagiosas, que se acredi-
do século, doengas cardíacas, cancros, aquelas cuja importáncia surge no segui-
tava já exterminadas no nosso mundo desenvolvido.» 58 Nenhuma defesa dos mento das doengas infecciosas do século xix. Daí a aceleragáo de estudos para
países industrializados parece entáo estar segura sem a intervengáo preventiva sinalizar a origem destas doengas «novas». Keys, um dos primeiros também, por
junto dos mais pobres. Daí, esta ambiguidade muito contemporánea: os doentes volta de 1950, salienta a ligagáo estatística entre a cardiopatia coronária e a in-
proliferam ñas zonas deserdadas, relegados, como as guerras, para as periferias gestáo excessiva de ácidos gordos saturados produtores de colesterol63. A car-
da industria e do progresso 59, dramas vagamente ignorados, perdidos nos tex­ reira sanitária do colesterol é entáo desencadeada: substáncia tabú que impóe o
tos televisivos, e o estímulo de novas solidariedades, mal entendidas ainda, im­ cálculo elaborado de taxas consideradas normáis, 2 gramas por litro de sangue
postas para além do simples humanismo para com estas regióes «afastadas». para as pessoas entre os 20 e os 30 anos, 2,4 para as de mais de 40 anos.
As atitudes face á sida sáo um espelho das práticas de saúde de hoje, pela Mas é preciso uma segunda revolugáo preventiva para que o teste assim au-
responsabilizagáo de cada um que elas parecem favorecer, dando ás decisóes in­ toministrado se tome possível. É preciso que os instrumentos até entáo reser­
dividuáis um lugar que elas náo tinham; também pela existencia de zonas de vados aos profissionais de saúde sejam propagados pelo público, simplificados
sombra, que revelam novas resistencias ás medidas sanitárias e apelam, sem dú- e comercializados. E preciso também uma pergunta para que estes autocontro-
vida, á recomposigáo das solidariedades. ios sejam considerados aceitáveis. Nestas condigóes surgem os minúsculos re-
gistadores cuja panoplia se alarga hoje. O teste de gravidez é um dos exemplos
mais correntes. O recurso ao Urimbo é outro: pequeño instrumento que «se ar­
2. A S A Ú D E « IN D E F IN ID A »
ruma fácilmente no seu bolso» 64 e permite conhecer a concentragáo de sais mi-
nerais pelo simples contacto de uma gota de urina. Acende-se um visor colori­
As práticas sanitárias quotidianas parecem favorecer uma nova responsabi­ do (verde, amarelo ou vermelho) para «indicar o seu risco de cálculo renal» 65.
lizagáo. A prevengáo a respeito da sida revela-o. O modelo alarga-se a um con­ Consequéncia: uma avaliagáo imediata do regime alimentar adoptado. Outro
junto de gestos de saúde: a vigilancia continua, para cada um, dos seus próprios exemplo, o «tensiómetro digital»: a possibilidade de efectuar «regularmente em
indicadores físicos é um exemplo. O individualismo muitas vezes estudado nos sua casa um acto de prevengáo elementar e indispensável» 66 com um pequeño
anos 1980 “ , com a sua retórica publicitária, as suas fórmulas de consumo e a aparelho que regista a tensáo arterial por índice.
sua intensificagáo das escolhas, dá um tom particular aos preceitos actuais de O emprego destes testes salienta uma forte tendencia das novas medidas pre­
saúde, nos quais as zonas de sombra persistem também.
ventivas: a tentativa de «pilotar» o seu próprio corpo com a ajuda de um apare­
lho individual, seguir a flutuagáo das suas taxas, prever as consequéncias das
suas indicagóes. Á imagem energética inventada no século xix, sempre presen­
«Faga o seu autocontrolo» 61
te na investigagáo das energias calóricas, vem hoje associar-se a imagem de um
corpo informatizado, mantido no equilibrio pela observagáo continua de sinais
Um a publicidade anodina numa publicagáo mensal francesa de 1992 revela numéricos. E o que Atalli evoca ao projectar o uso de sondas colocadas na pró­
a dupla revolugáo das práticas preventivas dos últimos anos. Um texto acom-
pria pele: «numerosos instmmentos de autodiagnóstico utilizaráo em breve mi-
croprocessadores... Um dia todos usaráo no pulso um aparelho que regista per­
56 V er p. 215.
57 L. M ontagner, «Le sid a dix ans apres», Le M onde, 24 e 25 de Jan eiro de 1993.
manentemente o estado do seu coragáo, a sua tensáo arterial, a sua taxa de
58 Idem .
59 O . M ongin, La P eur d u vide, Paris, Éd. du Seuil, 1991 (em p a rticu la r «V iolences d ’ail-
62 Idem.
leurs: l ’obscénité», pp. 175 ss.).
63 A. K eys et a l , «Serum cholesterol to change in the diet», M etabolism , n.° 14, 1965.
60 G . L ipovetsky, L ’Ere d u vide, essa i su r l ’individualism e contem porain, P aris, G alli­
64 «P rotégez-vous avec U rim ho», Santé rama, Paris, n.° 6, 1992, p. 75.
m ard, 1983; L. F erry e A. R enaut, 68-86, Itinéraires de l ’individu, Paris, G allim ard, 1987.
65 Idem.
61 «L e cholestérol, c ’est la vie», Santé-M agazine, Paris, O utubro de 1992, p. 37.
66 Idem .

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BEM-ESTAR?

colesterol, etc. Outros aparelhos portáteis ou implantados mediráo deste modo meira vez, uma «medicina de predigáo» baseada no «despiste pré-natal e pré-
outros parámetros de saúde» 67. A visáo é quase utópica, a era das sondas gene­ -clínico» 75 deveria designar o perfil sanitário de um individuo, os seus riscos,
ralizadas permanece longínqua. Mas a tendencia está presente, confirmada pe­ as suas doengas por vir. Daí as consequéncias preventivas possíveis: «Quando
los actuais aparelhos de autodiagnóstico. os nossos conhecimentos forem suficientemente avangados, este método pode-
rá, de um modo mais geral, permitir organizar o «habitáculo ecológico de cada
um em fungáo do seu patrimonio genético» 76. Resultados ainda pouco afirma­
Dos factores de risco á individualizando genética dos, é claro, mas o projecto de «mapa genético» confirma efectivamente a ex­
pectativa de uma prevengáo mais individualizada.
A condugáo que cada um pode exercer sobre si próprio está facilitada pela Tendencia assinalável ainda na imprensa que divulga «informagáo médica,
revolugáo da epidemiología: o privilégio dado aos factores de risco é, sobretu­ aquela que pretende náo deixar o consumidor «desarmado na hora da escolha» 77.
do, ao seu possível perfil individual. O recuo das doengas infecciosas depois de
1950 e o desenvolvimento da ferramenta estatística facilitaram a mudanga.
Mais ainda, foi a ignorancia da causa exacta das «novas» perturbagóes, em mea­ Uma saúde «consumida»
dos do século, cancros, doengas cardíacas e respiratorias, que privilegiou a in­
vestigagáo de probabilidades, de coeficientes e de percentagens: as chances es- Um número de revistas especializadas na prevengáo com a sua difusáo em
tatísticas que o individuo corre de ser atingido. O cálculo é pormenorizado, grande escala e a sua exploragáo publicitária, multiplicou-se desde há vinte
individualizado, incidindo no ambiente e ñas atitudes de cada um: o tabaco, por anos: há hoje mais de 15 títulos em Franga (Top Santé, Réponse á tout Santé,
exemplo, que multiplica por 2,7 para o fumador e por 4,1 para o grande fuma­ Santé-Magazine, Santérama, Santé plus, Prévention Santé, Que choisir san­
dor (o que fuma mais de 15 cigarros por dia inalando o fumo) o risco de uma té...), enquanto que nos anos 1970 só havia um ou dois apenas. Aumento de lei-
doenga coronária; ou o diabetes que duplica o risco coronário; ou a taxa de co­ tores também: Santé-Magazine tomou-se, em 1991. o segundo em número de
lesterol diferenciada conforme o «risco moderado» ou «elevado» que exerce6S. leitores (4 285 000) entre as 120 publicagóes mensais francesas mais divulga­
A probabilidade incide sobre os lugares, os públicos e os comportamentos. Os das; Top Santé, o décimo segundo (2 674 000) 78. Progressáo acentuada em
riscos de cancro, por exemplo, aumentam em 100 vezes nos «grandes fumado­ 1992, 4 550 000 leitores para Santé-Magazine e 3 640 000 para o Top Santé que,
res» e nos «grandes bebedores» 69; ou o risco de uma pressáo arterial excessiva definitivamente, se toma a sexta publicagáo mensal 79. O conjunto responde a
aumenta 2 vezes no jovem cujo peso corporal ultrapassa em 20% a norma de uma expectativa. Consumidores solicitados ñas suas preocupagóes individuáis e
referencia, e de 2,5 vezes no jovem que obedece ás mesmas condigóes 70; ou o orientados nos seus índices médicos: «Decifre a sua análise de sangue» 80, «Os
risco de cancro na mama que aumenta 3 vezes com a existencia de um antece­ bons números da tensáo arterial» 81, «Para entender as suas análises biológicas» 82,
dente familiar (máe, tia, irm á)71. «O guia dos exames ginecológicos» 8\ «Os exames no masculino» 84. O projec­
É para o espiar destes factores de risco que se orienta o regime de vida: to está explicitado: tornar o código acessível, ajudar ñas opgóes de cada um.
adaptar o comportamento ás ameagas individuáis e numéricas. Daí a nova for- As revistas revelam ainda uma extensáo inesgotável das doengas levadas em
mulagáo de conselhos de saúde: «Conforme os vossos factores de risco, certos conta: conselhos para fortalecer as unhas, para evitar o peso ñas pemas, para li­
exames concemem-vos particularmente» 72; cercar náo só as causas directas, mitar os zumbidos no ouvido, para lutar contra os «sentimentos de tristeza», a
como os microbios dissimulados no ambiente, mas as causas predisponentes, falta de sono, o stress, mas também para prevenir os cancros ou identificar per­
aquelas que mudam com o presente e o passado de cada um. turbagóes cardíacas. Uma série de recomendagóes prolongadas número após
Mais individualizada ainda é a prevengáo baseada na análise genética: a do
gene DD, produtor de uma enzima vasoconstritora que favorece a obturagáo das
coronárias 73; ou a dos tres genes do diabetes descobertos em 1991 74. Pela pn- 75 M .-J. Im bault-H uart, «L’approche scientifique de la m aladie et de la santé: constitu-
tion du cham p m o d em e de la pathologie», L 'H o m m e et la Santé, op. cit., p. 107.
67 J. A ttali, L ignes d ’horizon, Paris, Fayard, 1990, pp. 153-154. 76 J. R uffié, «Vers une m édecine prédictive», Le M onde, 1 de Fevereiro de 1989.
68 J. F echner e L. G uillevin, «M aladies cardiovasculaires», Sa n té publique, op. cit.; ver 77 Publicidade para a revista Que choisir, Que choisir santé, Paris, Setem bro de 1992, p. 53.
tam bém W. D ab, «A pport et lim ites de l ’épidérm ologie», L ’H onim e e t la Santé, Paris, Ed. 78 L ’A udience de la p re sse m agazine, résultats du cum ul, 5 vagues, m ai 1991-avril 1992,
du S euil et L a V illette, 1992, p. 247. Paris, C entre d ’études des supports de publicité, 2 de Julho de 1992.
69 B. A sselain, op. cit., p. 375. 7 Ib id em , 11 de Fevereiro de 1993 (cum ul de cinq vagues, de Janeiro de 1992 e de D e­
70 J. F ech n er e L. G uillevin, op. cit., p. 392. zem bro de 1992).
71 B. A sselain, op. cit., p. 377. 80 Santé-M agazine, Paris, O utubro de 1992, p. 46.
72 «L es exam ens au m asculin», R ép o n se á to u t santé, Julho de 1992, p. 35. 81 P révention santé, Paris, A gosto de 1992, p. 84.
73 «L a g énétique sur les traces de l ’infarctus», Libération, 15 de O utubro d e 1992. 82 Santé-M agazine, Paris, S etem bro de 1992.
74 H .-J. G archon, P. B edossa, L. E loy, J.-F. B ach, «L es genes du diabéte», Nature, Se- 83 R ép o n se a to u t santé, Paris, A gosto de 1992, p. 8 .
tem bro de 1991 84 R éponse á to u t santé, Paris, Julho de 1992, p. 34.

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ritório como o fizera o mercado dos bens domésticos. Uma expressáo nova o
número indefinidamente renovadas, que se prendem tanto ao agudizamento da imoóe’ «bem-estar». Ele compóe o título das revistas de saude: «Saboreai o pra
semibilidade quanto ás deseobertas médieas. O proeesso cm lizacional desloca do bem-estar» ele compóe o título dos anúncios publicitarios. «Para
do beni estar , J l00. , comp5e o título dos livros de regime.
desde há muito as fronteiras entre o suportável e o nao suportavel, ao aprofu
dar o sensível, tomando menos tolerável o «mal-estar» anteriormente aceite. « o 'b e T e s t I 7 m 0 íquestóes» *»’. Fórmula sem brilho, aparentemente insig­
A exieéncia náo é nova. Ela foi, seguramente, intensificada. ^ nificante esta expressáo muda em profundidade os objectivos sanitarios. Ela
Os inquéritos confirmam este progressivo ganho de conscíencia a pont reúne a nova deñmgáo dada pela organizagáo Mundial de Saúde que evoca «um
salientar a sua recente acelerado. O número de doengas^ d e c l^ a d ^ pe p estadocom pleto de?bem-estar físico, mental e social que
soas inauiridas aumentou mais de tres quartos entre 1970 e 1980, como mos
tram dois questionários idénticos propostos, com dez anos de intervalo, a uma
amostra ela própria idéntica de populado: 37 637 doengas d ^ líu ^ h is pe os -
r ^ r e r 'd e l S X
auiridos em 1970, 60 058 em 1980. A progressao e notoria Ela traduz 1, -
doencas dedaradas por pessoa em 1970 e 2,28 em 1980 ■ Número sem gran­
d e s refagóescotn asrfecgóes reais. A Franga náo está mais doente em 1980 do
aue estava em 1970. Muito pelo contrário, a esperanga de vida passou d busca o bem-estar.
T a 79 anos para as mulheres, entre 1970 e 1980, e de 68 para 71 anos paraos
homens (hoie 82 e 74 anos respectivam ente)86. A vigilancia sobre si, em c
“ d í l m e n 'o u . da r » « s - forma que se deslocou a frontera entr,e stmde As exigencias do «bem-estar»
e doenga, explicando em parte o sucesso destas revistas «cada vez mais uteis
A nrópria maneira como se concretizam as práticas de saúde pode entao mu-
As práticas d Íco n su m o explicam ainda melhor este sucesso recente. Uma d a r ^ tema do prazer que se serve da retórica samtaria: «escolhe, fazer-vos o
saúde promovida a estilo de vida, vendtda como o sao hoje a maror pane dos bem» " «este Veráo, acordai os vossos sentidos.. «case o prazer e o bem
actos quotidianos. «Shopping de saúde. , «Produtos de-aude do •
gos «que nos estimam» ocupam este novo genero de revistas O marketing
orienta as solicitagóes: «amostras grátis»91 de produtos, «jogos de saude» d
marcas concursos que oferecem estadías gratuitas em talassoterapia ou «esc
S a b i o s para os «health clubs» «, os «clubes de boa forma», as ás nrescrigóes minuciosas dos velhos regimes do professorado. Triunfo de
«curas para aíigeirar as pemas» «, os «centros de cuidados mannhos» - os es- individuo mais independente, mais narcisista, sem dúvida, como salientaram o
• t trve r\p 1Q80 a renovacáo do investimento do corpo impos-se
em seduzifque estáo deste modo empenhadas estas estadías «que estimu- “ uma verdade tanto mais tangível quanto sáo deportes os «além ^ o u ^ o
apagadas as «grandes mensagens». A queda das transcendencias
rais religiosas reforga esta importancia da consciencia corpora .
O mercado desta saúde consumida propoe «sempre mais», alargando o seu mélhOT aumentar o registe das sensibilidades, nao en.elhecer. Ela apreseuta o
t ó « 7 fls“ o como último recurso, de duraSao. de certeza, de empenho

« P. A íach, «M orb id ité» , S a n té P“blg “¡e¿ ° £ ^ y ^ P a r n , L a D écouverte, 1992,


86 «T endances dem ographiques», L t t a t d e la t ranee 99 P lante santé, Ju lho-A gosto de 1992, p. 81.

^ 87 «É ditorial», S a n té-M a g a zin e, A gosto de 1992, p. 9. : s e s - s r j2s : ¿ »-


88 S a n té-M a g a zin e, Setem bro de 1992, p. 59. m arión, 1992.
102 Q ue choisir santé, n.° 22, 1992, p. 55.
89 Ibidem , A gosto de 1992, p. 113.
103 Santé-M agazine, Setem bro de 1992, p. 46.
90 S antéram a, n.° 6, 1992, p. 78.
104 Vital, A gosto de 1992, p. 50.
: s a n tfo , U J o -r n a l ~ 105 Santé-M agazine, Julho de 1992, p. 10.
R éponse á to u t santé, Ju lh o de 1992, p. 7.
■“ Í o a g S séjours d a n s des ic o le s * d o s ,. A gosto de ,9 9 2 . p. 38.
I S É Í ; o S v f , “ £ L 3Í » na dans Pangoissece ¿ ™
91 Ibidem , A gosto de 1992, p. 70.
95 Ibidem , Setem bro de 1992, p. 16.
96 Ib id em , F evereiro de 1992, p. 99.
97 Vrai santé, n.° 3, 1992. 1985, p. 302.
98 Ibidem , O utubro de 1992, p. 48. 253

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BEM-ESTAR?
a imagem do sucesso, é claro, que se democratizou, sugerindo a cada um reali-
muito personalizado, instalando um dominio de si totalmente percorrido pela zar-se, nem que fosse ao tornar-se muito simplesmente ele próprio. Daí esta
atengáo ao físico e ás suas qualidades imediatas. ideia de uma excelencia acessível: o desempenho promovido a «auto-reahzagáo
Como nao ver, no entanto, a ambiguidade possível destas «evidencias». de massa» 118; a necessidade de se afirmar transformado em modelo banalizado
A comegar pela vertente hedonista das novas práticas. O emagrecimento é o e já náo em modelo de excepgáo. Perspectiva acabada das nossas sociedades de­
melhor exemplo. O tema ocupa todas as páginas das revistas de saúde, apre- mocráticas onde o «herói vulgar» guia «o seu sucesso» 119 e ocupa os ecrás.
sentado como um imperativo tanto mais obrigatório quanto parece ser definiti­ Uma dupla injungáo contraditória pesa entáo sobre cada um: «Melhorar-se
vamente aceite, tanto mais «descontraído» quanto inevitável («optei por ema- e manter-se fiel a si próprio» 12°, mas também descontrair-se e abandonar-se.
grecer feliz» 109 — a opgáo náo é a de emagrecer mas antes de a fazer com A tensáo para com o corpo ou os «reencontros com o corpo» ; o sucesso ou a
«satisfagáo»). Daí a presenga massiva do tema quando sáo evocadas as formas retirada. Contradigáo das sociedades publicitárias, com o seu consumo de mas­
do corpo, mas também os alimentos, os exercícios, os cuidados ñas férias ou sa, onde uma «filosofía de autodisciplina» 122feita para fabricar os produtos está
muito simplesmente o sono («emagrecer dormindo») "°. A queda dos «além de» indissoluvelmente ligada a uma «filosofía de busca do prazer» 123 feita para os
e o desaparecimento das grandes mensagens entregara, na verdade, o corpo a vender: racionalizar o tempo, explorá-lo, mas também, e contraditoriamente,
um maior rigor de normas, impondo uma deslocagáo de exigencia, uma irra- gozá-lo. O que revela o aumento de produtos psicotrópicos de alvo divergente:
diagáo particular sobre este último objecto de valorizagáo. O que faz do bem- o crescimento tanto dos estimulantes como dos tranquilizantes. Um tergo da po­
-estar uma nova «servidáo» 111. Que estas normas «consumistas» parecem mais pulagáo francesa confessa consumir tranquilizantes, sendo 7% consumidores
sedutoras e mais livres. náo nos restam dúvidas. Também náo nos restam dúvi- regulares ’24; enquanto que aumentam também os cockteis vitamínicos, psico-
das de que as suas obrigagoes e as suas tensoes permanegam bem reais. -estimulantes, Survector e outras amphétamine-like para ter «rápidamente o
Tanto mais que as fórmulas mais insidiosas promovem um modelo de efi- gosto de agir e a vontade de empreender» 125. Os consumos de saúde casam-se
cácia combativa. Trata-se, também, de «testar a sua eficácia» "2, aumentar «o com as contradigóes da cultura.
seu poder de negociagáo» m, «ser o melhor» ,14. Um projecto que o «livro es­ Subsistem zonas de sombra, é claro, nestas práticas de consumo, em que o
candaloso», de 1988, 300 médicaments pour se surpasser physiquement et in- interesse financeiro pode ser, muito simplesmente, mais importante. O uso do
tellectuellement ilustra com insistencia. A obra, proibida por algum tempo Duxil, por exemplo l26: medicamento concebido contra a insuficiencia circula­
por descrever o uso de substáncias consideradas perigosas, representa, melhor toria, comercializado como «oxigenador cerebral», doseado segundo um limiar
do que qualquer outra, a nova perspectiva: acentuar tanto as performances de gravidade de 1 a 5, o Duxil rápidamente foi vendido como substancia
como a sensualidade de cada um. O que os autores deste livro sobre o «excedi- preventiva pela iniciativa de um director de marketing sem que esse efeito pre­
mento» explicam sem disfarce: «Vivemos num mundo impiedoso onde ser o ventivo fosse claramente demonstrado. Uma prevengáo náo provada mas que
mais forte, o mais desembaragado, o mais astucioso, o mais rápido, mas tam­ consegue agitar os números de venda. A campanha publicitária, fortemente or-
bém o mais resistente, tomou-se uma condigáo necessária, senáo suficiente para
existir, para ser bem sucedido ou muito simplesmente para dominar.» ll" Esta
"8 A. E hrenberg, op. cit., p. 203. A. E hrenberg insistiu ju stam en te neste últim o aspecto
explicagáo continua a ser parcial, evidentemente: o strugglefor life nao é uma
do sucesso: «Ter por a m b ifáo tornar-se e m si próprio, e identificar-se consigo e ser o m e­
descoberta dos últimos decénios e o cinismo náo é a priori dominante. Mas a lhor... é salientar tam bém que os m odelos de sucesso que se vos apresentam nao estáo lon­
pressáo para a promogáo de cada um aumenta. O vencedor tem mais legitimi- ge» (ibidem , p. 2 0 0 ).
dade. As revistas que visam «uma atitude mental vitoriosa» 117 também se mul­ 119 D éfis, entreprendre e t réussir, n.° 103, Fevereiro de 1993, p. 24.
tiplicaran!, com os Challenge para Managers e os Défis para Dynasteurs... Foi 120 A. E hrenberg, op. cit., p. 200.
121 Top santé, Junho de 1992, p. 73.
122 D . B ell opoe ju stam e n te o hedonism o consum idor e «a racionalidade funcional» que
109 San té-M a g a zin e, O utubro de 1992, p. 22. o perm ite, ver L es C ontradictions culturelles du capitalisnie, Paris, PUF, 1979 (1. ed. am e­
110 S anté p lu s, Julho d e 1992, p. 19. o , r ricana, 1976), p. 94. , ,
111 J.-J. C ourtine, «L es stakhanovistes du narcissism e», C om m unication, n. 56, Le U ou- 123 « A utoportrait d ’un hédoniste», publicitado p o r H onda, D ynasteurs, D ezem bro
v e m e m e n t du corps, 1993, p. 241. 1991, p. 23.
112 R éponse á tout santé, Julho de 1992, p. 37. 124 «L a France tranquillisée», Le M onde, 9 de Janeiro de 1991.
113 D ynasteurs, D ezem bro de 1991, p. 3. 125 J.-F. Solal, «L es m édicam ents psychotropes ou la d épendance confortable», Individus
114 M a n a g eu rs A frique, F e v e reiro -M a rfo de 1993, p. 16. sous influence, drogues, alcools, m édicam ents psychotropes, sob a d ire e fa o de A. E h ren ­
1,5 300 m édicam ents p o u r se su rp a sse r p h y siq u em en t et intellectuellem ent, P a n s, B - berg, Paris, E ditions E sprit, 1991, p. 212. N o caso dos sedativos e do afastam ento de soli­
land, 1988; ver sobre este tem a o livro de A lam E hrenberg, Le C uite de la perform ance, a- c i t a r e s tornadas opressivas, ver tam bém a análise de O. M ongin, op. cit., (em particular
ris, C alm ann-L évy, 1991, em particular, «L’individu sous perfusión», p. 252. «L a passion extrém e, la grande glissade du toxico», p. 89).
116 Ibidem , p. 15. 126 C itado por R. Issaad e M . G rém illon, La D ictature d ’H ippocrate, París, D enoel,
117 B. L ucchini, «Le m arché de la réussite», C hallenge, O utubro de 1986, citado por 1992, p. 105.
A. E hrenberg, op. cit., p. 211.
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254
B EM -ESTA R ? BEM-ESTAR?

questrada, multiplicou, neste caso, produgóes de vídeo e «congressos» de sen- A leveza dos géneros penetra, aliás, os usos alimentares ao ponto de dois em
sibilizagáo para informar os médicos e multiplicar os compradores. A aposta cada tres franceses considerarem o uso de produtos leves como «uma forma de
comercial excedeu definitivamente a oferta sanitária. Abundam casos deste gé­ ser racional» 137; também ao ponto de se impor uma verdadeira «lipofobia» 138ñas
nero, de sucesso de produtos preventivos com efeitos náo verificados: «o orga- grandes superficies, sem que sejam medidos os seus possíveis efeitos contraditó-
nómetro detector de energia» 127, as «cápsulas de alho gastro-resistentes» 128ou rios: o aumento das quantidades ingeridas, entre outros, para compensar o enfra­
o «dentífrico sem água nem escova de dentes» l29... A saúde consumida promo- quecimento calórico do produto, o que pode, muito simplesmente, anular a leveza.
ve também as suas farmacologías incontroladas l3°. A energia é outro índice intuitivo do saudável e do insano, entendida ainda
de forma muito diferente das expectativas passadas: a «baixa» energia alimen­
tar é mais importante, associando um «alto» dispendio energético pelo exercí­
Unta combinando de modelos cio e práticas tonificantes. A severidade dos regimes expressa-se, aliás, em nú­
meros de baixas calorías: de 1600 a 1300 calorías, por exemplo, para passar de
Náo há dúvida nenhuma: a lógica consumidora do «bem-estar» transformou um «regime suave» a um «regime intenso» 139. Insistencia ñas «calorías nefas­
as práticas preventivas, instaladas mais do que nunca num desenvolvimento in­ tas á saúde», aquelas que, náo sendo queimadas, «se acumulam sob forma de
definido. Alguns modelos impóem-se, neste caso, mais do que outros; algumas gordura» 14°; o cálculo sempre renovado dos montantes necessários, dos que sáo
representagóes valorizadas do corpo, por exemplo. O «bem-estar» possui os queimados pela actividade quotidiana, enquanto sobejos inúteis perturbariam a
seus eixos e as suas opgóes. «caldeira» 141. As novas fórmulas afirmam a forga do modelo: «Limitar o con­
É preciso salientar o quanto permanecem fortes certas polaridades imaginá- sumo de calorías, queimar as gorduras, purificar o organismo e eliminar a celu-
rias. A evocagáo inteiramente crítica de um personagem de Vautrin, numa das lite» l42. A energia deste modo controlada estaría na cruzada de antigas e novas
suas novelas recentes, o Abel Truchant, notário provincial «amigo das artes e da imagens: a cruzada da moderagáo inteiramente tradicional, expressa neste caso
comezaina» com as suas «artérias danificadas pela gordura» e o seu coragáo pelo fomecimento e pela combustáo; a cruzada de uma perspectiva mais vasta,
«bombeando em baixa» 131, indicam bem o sentido de certas imagens: o perigo alertada pelos ambientes náo dominados e pelos dejectos industriáis, sonhando
reside sempre ñas obstrugóes. E o que indicam os inumeráveis conselhos for­ com energías náo poluentes e calculadas. A energia corporal deveria acrescen-
mulados ñas revistas de saúde para «purificar o fígado» ’32, «dissolver as gor­ tar a «suavidade» á «intensidade»: «coragáo sólido, artérias flexíveis, músculos
duras» 133, escolher os óleos «que menos obstruam as artérias» 134. As velhas re­ dinámicos e colesterol equilibrado» 143.
ferencias ás purificagoes do corpo náo desapareceram, antes pelo contrário. Um novo modelo, enfim, vem combinar-se com os precedentes e participar
Elas sáo apenas mais trabalhadas, senáo eufemizadas: ao deslocar as palavras e nos critérios subjectivos de saúde: o de um corpo expressamente alertado para
as imagens, ao evocar as gorduras e náo os dejectos, denunciando os stockages as sensagóes, máquina informativa com circuitos dominados. A «escuta» dos
e náo os apodrecimentos. Depósitos diversos, circuitos impedidos, permanecem sentidos: «tomar consciencia do corpo com todas as suas articulagóes para que
os indicadores intuitivos do corpo malsáo. E a gordura que focaliza as novas ele possa expressar-se livremente» 144. Já náo apenas a forga, mas o sensível, já
aversóes, matéria mais nobre do que os dejectos, mais insidiosa também, que se náo apenas a energia, mas as percepgóes: obter uma «imagem de todas as par­
infiltra nos mínimos espagos e alcanga cada membrana. Uma gordura que se tes do seu corpo» 145, escrutinar tanto as cinestesias como os efeitos musculares,
toma objecto literário, aquele que o comissário Maigret vigia em algumas das «solicitar o sistema nervoso, altamente receptivo, para gerir uma informagáo
suas curas provinciais 135, aquele que obceca Isabelle de Santis num romance de subtil» l46, concentrar-se «no seu movimento pessoal» 147. A imagem de um he-
Catherine R ih o itl36, a ponto de cada dificuldade da sua vida parecer estar liga­
da a um inchago excessivo: «Engordei» e «emagreci» ritmam os amores de Isa­ 137 L. B ichon, «Les produits allégés», in H. D upin et al., A lim entation et N utrition hu-
belle, os seus sucessos e os seus fracassos, misturando indissoluvelmente refe­ maines, Paris, E. S. F., 1992, p. 1117.
138 C. Fishler, L ’H om nivore, Paris, O dile Jacob, 1989, ver «L a société lipophobe», p. 297.
rencias estéticas e referencias sanitárias.
139 Cuisinons, idées recettes, n.° 11, 1992, p. 1.
140 S. et J. de Rosnay, La M albouffe, com m ent se no u rrir p o u r m ieux vivre, Paris, Ed. du
127 P lante santé, Julho-A gosto, 1992, p. 15. Seuil, col. «Points A ctuéis», 1981, pp. 65-66.
128 Ib id em , p. 13. 141 Ibidem , p. 50.
129 P lante santé, S etem bro-O utubro, 1992, p. 16. 142 Top santé, n.° 21, 1992, p. 98.
130 «L es m édicam ents», in C. G ot, L a Santé, op. cit., pp. 314 ss. 143 J. R ousselet-B lanc, op. cit., p. 339.
131 J. V autrin, «R osa, com m ent dire», N o uvelles N ouvelles, n.° 10, 1988, p. 90. 144 M .-J. H ouareau, «Les techniques du corps», L ’E ncyclopédie p o u r m ieux vivre, op. cit.,
132 Top santé, Julho de 1992, p. 15. p. 405.
133 S anté plus, n.° 6 , 1992, p. 15. 145 M . F eldenkrais, L a C onscience du corps, Paris, L affont, 1971 (1.a ed. de Telavive,
134 R éponse á tout santé, A gosto de 1992, p. 84.
1967), p. 57.
146 J. S yer e C. C onnoly, La P réparation p sychique du sportif, le m ental p o u r gagner, Pa­
135 G. Sim enon, M aigret á Vtchy, P aris, G allim ard, 1968.
ris, L affont, 1988 (1.a ed. inglesa, 1984), p. 62.
136 C. R ihoit, L e B al des débutantes, Paris, G allim ard, 1978.
147 Vrai santé, n.° 1, 1992, p. 18.

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BEM-ESTAR? BEM-ESTAR?

rói de Pirsig que atravessa de mota as planicies do Oeste americano escutando cargos colectivos, também, que transforma as apostas sanitárias em conflitos de
cada vibragáo da sua máquina até a experimentar totalmente em si: «Sensibili­ solidariedade.
dade cinestésica profunda que permite apreciar a flexibilidade dos materiais.» 148
As novas expectativas incidem sobre técnicas de relaxe, sobre gestos controla­
dos e «mentalizados»: todos estes exercícios promovem o ajustamento da per- Um conflito de liberdades
cepgáo, «suavidade, dominio e viscosidade dos movimentos» l49, relachamento
elaborado, «conhecimento íntimo de si próprio» 15°, mas também jogos de pilo- O risco do tabaco tomou-se o exemplo mais banal destas oposigóes. A cons­
tagem e de introdugáo de novos engenhos desportivos, surfs, asa delta, skis ou tatagáo dos custos humanos, em primeiro lugar, que fez do tabaco o responsá-
windsurf, em que o trabalho dos sentidos consegue ser mais importante do que vel por cerca de 90% dos cancros do pulmáo e de quase metade das mortes
o dos músculos. anuais por doenga das coronárias 155. Um risco táo importante que é reconheci-
Até aos dietéticos que confirmam a presenga deste modelo «informativo» e do como causa oficial de morte na Grá-Bretanha desde Setembro de 1992 l56.
inventam uma «dietética cerebral» 151: notas inesgotáveis sobre a necessidade de Em seguida o dispositivo de interdigáo, novo em relagáo á tradigáo: náo só a
magnésio, de selénio, de zinco e de cobre; indicagóes eruditas sobre vitaminas, simples acgáo sobre os anúncios e a publicidade como no caso de certas bebi­
o ácido fólico ou os aminoácidos, que revelam, aliás, mais expectativas do que das alcoólicas, mas a intervengáo directa sobre o fumador e a sua intimidade.
resultados. E a tomada em conta do cérebro pela dietética que é, neste caso, mais A Uniáo Europeia impóe, desde 1989, a presenga de uma mengáo sanitária em
original do que o seu conteúdo. É a ligagáo entre a preocupagáo com a saúde e todos os magos de cigarros com o propósito de interpelar o próprio gesto: «Fu­
o «desenvolvimento do sistema nervoso no melhor das suas possibilidades» l52, mar provoca o cancro» ou «Fumar provoca doengas cardiovasculares» 157, o ar­
mais do que a verificagao dos efeitos. Tanto mais que náo existiría expressa- tigo 16 da lei Evin de 10 de Janeiro de 1991 suprime a possibilidade de fumar
mente um «alimento para o cérebro» e que esta dietética particular náo parece em todos os gabinetes de carácter público, ela própria já regulamentada pelo de­
afastar-se de uma dietética geral. As suas conclusóes permanecem sem surpre- creto de 12 de Setembro de 1977; a pressáo sobre o fumador é, enfim, aumen­
sas: «Adaptada, leve e variada, a alimentagáo permitirá que o organismo esteja tada pelo artigo 7.° da mesma lei, que impóe a organizagáo de uma manifestagáo
alerta e que o seu cérebro seja eficaz.» 153 anual intitulada «Dia sem tabaco» submetendo o fumo a uma vindicta implíci­
A dietética reúne, deste modo, o tema da informatizagáo corporal ao tema da ta. A pressáo é acentuada pelo debate sobre «o fumo dos outros» l5S, o fumo de-
purificagáo e da energia. sagradável e perigoso que sofre o vizinho do fumador, avahado em certos casos
a um equivalente de 5 a 25 cigarros por dia 159. O conflito instala-se entáo: «Os
náo fumadores revoltam-se.» 160 E a defesa mais agudizada do espago íntimo
3. O D É F IC E P O L ÍT IC O que se impóe, tanto quanto a consciencia das doengas até ai náo entendidas.
Percebe-se melhor o quanto as medidas sobre o tabaco podem confrontar
As novas normas tém também os seus detractores. O denegrir da sua omni- duas liberdades: a do fumador e a do náo fumador. Daí a iniciativa da associa-
presenga, por exemplo: «Eu fumo e quero que me deixem em paz. E claro e evi­ gáo criada pelos produtores de tabaco reunidos em congresso nacional em Ca-
dente, náo?» 15\ corta J.-J. Brochier num panfleto recente, reactivando o anta­ hors, em Abril de 1989, para assegurar «o respeito pelo fumador e a defesa da
gonismo entre as exigencias sanitárias e a autonomia de cada um. Conflito sua liberdade» 161. Trata-se de uma das actuais saídas das sociedades democrá­
perfeitamente actual entre duas liberdades: o que promove a referencia erudita ticas, tentadas a reforgar a sensibilidade individualista: «Cada um em si e cada
do «bem-estar» e o que promove uma manifestagáo mais imediata visando a um por si: tais sáo as palavras de ordem... Apoteose do espirito burgués: o es­
afirmagáo de si; o fumador perturbado pelos danos do tabaco e que o rejeita e pago público onde cada um pode falar em igualdade desaparece, é o privado que
o fumador que decide sobre «a sua vida» e assume o tabaco. O antagonismo se toma a medida de todas as coisas: cada um náo adere senáo a um partido
pode, aliás, encobrir um outro mais fundamental, mais doloroso para com os en- — o partido de si próprio.» 162Também se percebe melhor como podem outros
receios muito diferentes surgir para além deste «cada um por si»: a desconfian-
148 R. M. P irsig, Traité du zen et d e l ’entretien des m otocyclettes, Paris, É d. du Seuil,
1978 (1.a ed. am ericana, 1974), p. 273. 155 M . R osenheim , «T abagism e», S anté publique, op. cit., pp. 568 e 570.
149 K. Tokitsu, M éthode d es arts m artiaux á m ains núes, Paris, R obert Laffont, 1987, p. 54. 156 L e M onde, 2 de Setem bro de 1992.
150 J.-M . Salétes, «Les techniques de relaxation», L ’E n cyclopédie p o u r m ieux vivre, op. 157 «Ordonnance européenne et cáncer, sida et drogue», Libération, 14 de Novem bro de 1989.
cit., p. 70. 158 A. K. A rm itage et al., L a F um ée des autres, P aris, M anya, 1991.
151 J.-M . B ourre, La D iététique du cerveau, de l ’intelligence et d uplaisir, P aris, O dile Ja ­ 159 J.-F. Lem aire, L e Tabagisme, Paris, PUF, col. «Que sais-je?», 1992 (1.a ed., 1980), p. 58.
cob, 1990. T ítulo do P oint, 24 de Junho de 1985.
152 Ibidem , texto de capa. 161 Libération, 8 de A bril de 1989.
153 « Interview du p rofesseur Jean-M arie B ourre», Top santé, Jun h o de 1992, pp. 20-21. 162 P. B ruckner, La M élancolie dém ocratique, P aris, Ed. du Seuil, «Points R om án»,
154 J.-J. B rochier, J e fu m e e t alors?, Paris, L es B elles-L ettres, 1990, p. 84. 1992, pp. 88-89.

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BEM-ESTAR? BEM-ESTAR?

9a contra uma intolerancia praticada em nome da higiene, por exemplo, ou a arbitragem laboriosa entre liberdades encamadas, neste caso, pelas leis do mer­
desconfianza contra a renovagáo de alguma ordem moral que promova a higie­ cado. E difícil imaginar o aparecimento de um higienismo tentacular.
ne e a virtude cívica; a suspeita contra um rigorismo substituí os valores de
defesa individual aos dos grandes modelos autoritários hoje desaparecidos.
Existem sinais desta empresa nao confessada, facilitados pelo agudizar de sen­ A renovagáo dos riscos e a responsabilidade
sibilidade e pela extrema diversidade das indisposigóes possíveis: mostram-o as
associagoes criadas nos Estados Unidos da América contra o uso de perfume em É preciso retomar, em contrapartida, o confiito das liberdades e a expectati­
público ou contra a música dos rádios portáteis exigindo ao Estado uma im- va sempre crescente da seguranga individual. O exemplo americano mostra até
placável regulamentagáo dos odores e dos ruidos: projectos altaneiros até á ca­ que ponto esta evolugáo pode gerar tensóes. Náo que este exemplo revele o por-
ricatura pretendem preservar o espago de cada um, multiplicando as obrigagóes. vir das nossas sociedades; pode pelo menos indicar-lhe as tendencias. Tudo co-
O que leva Alain Madelin a recear um novo «patemalismo de Estado» 164e leva mega com uma série de acgóes empenhadas por um grupo de legisladores ame­
Pierre Mauroy a uma interrogagao táo perturbada quanto irónica: «Ir-se-á ama- ricanos nos anos de 1970. O seu projecto é explícito: designar os responsáveis
nhá, uma vez que o colesterol é responsável pelas doengas cardiovasculares, nos acidentes ou nos danos físicos provocados por técnicas quotidianas, pelo
proibir a boa came?» 165 A culpabilizagáo seria rasteira. Um novo higienismo meio, pela poluigáo; melhorar a prevengáo, tomar em conta a progressáo de exi­
surgiría ñas nossas sociedades, insinuante e proibitivo, depois do higienismo gencia de seguro, patenteando a renovagáo dos riscos decorrentes do meio am­
autoritário e peremptório do final do século xix. biente técnico e industrial l6tf.
Raciocinio, evidentemente, levado ao extremo. É o confrontar de liberdades Esta tomada de consciencia parece-se com a que teve lugar em 1860 sobre
o que há a reter neste caso, e o crescimento dos objectos considerados amea- os acidentes de trabalho l69. Ela visa a protecgáo do consumidor ou do utiliza-
gadores, mais do que o triunfo de algum patemalismo dissimulado. A iniciati­ dor exactamente como a jurisdigáo sobre os acidentes de trabalho visou a pro­
va do Estado poderia mesmo parecer prudente, sob um exame mais atento. Náo tecgáo dos operários: favorecer a saúde pública ao indemnizar e prevenir os da­
sáo as medidas regulamentares «estranhamente» suspensas quando sáo desde nos; designar uma categoría de prejuízos pouco ou nada tidos em conta pelos
há muito esperadas e aprovadas? Em particular aquelas que poderiam limitar seguros tradicionais: defeitos nos produtos, alteragóes do meio ambiente, im­
fortemente a mortalidade devido ao consumo de álcool e tabaco, ou a mortali­ previstos médicos. Prejuízos que a exigencia seguradora tomou mais sensíveis
dade devido aos acidentes de viagáo. As estatísticas sáo impiedosas: sáo mais e que a renovagáo das técnicas tomou mais variados e mais difundidos.
de 60 000 mortos por ano que podem, em Franga, ser atribuidos ao consumo A iniciativa americana consagra o seu tempo combatendo a renovagáo das
do tabaco, 40 000 ao consumo do álcool e perto de 10 000 aos acidentes de via­ doengas. O resultado, no entanto, é enganador. Uma atitude sistemática de sus­
gáo. Números comparados a uma «catástrofe em migalhas» 166, pouco visível peita bem como a vontade extorquir a qualquer custo a indemnizagáo, revela-
porque dispersa. Esta relativa discrigáo estatal é referenciável: recusa de au­ ram-se táo fortes que favoreceram a deriva do projecto. O sistema jurídico ame­
mentar fortemente o prego do tabaco quando a medida tomaría o seu consumo ricano permitiu uma ilimitada consideragáo de falhas e de defeitos técnicos e
mais largamente dissuasor: reticencias na interdigáo de todas as publicidades sobretudo uma investigagáo inacabável de responsabilidades para obter a in­
ao álcool quando o seu orgamento duplicou entre 1981 e 1985 (460,7 milhóes demnizagáo das vítimas. O que originou a condenagáo de médicos que náo ti­
de francos 837,9 milhóes) l67; reticencias em limitar fortemente a velocidade nham cometido qualquer falta no acidente que, todavia, lhes era recriminado,
dos veículos quando essa velocidade se encontra entre as principáis causas de ou a condenagáo de fabricantes que tinham tomado todas as medidas desejáveis
acidente. para evitar a falha do produto, contudo incriminados. Multiplicaram-se as con-
E preciso constatar a eficiencia de alguns gmpos de pressáo: suficientemen­ dutas processuais, as queixas de todo o género, o encamigamento em designar
te poderosos para alimentar a existencia de práticas consideradas perigosas, su­ um culpado, até ás decisóes caricaturais: «A concordancia fortuita entre o mapa
ficientemente persuasores para atrasar as «proibigóes» que estas práticas deve- das pessoas atingidas pela leucemia e o mapa que desenha a implantagáo das in-
riam impor. O Estado, sem dúvida nenhuma, está condenado ao compromisso: dústrias químicas, por exemplo, foi o suficiente para convencer um júri da per­
tinencia da relagáo assim estabelecida... quando se poderia obter um resultado
163 «abac, cohabitation», Libération, 16 de F evereiro de 1992. similar, sobrepondo o mapa das leucemias ao dos parques nacionais.» 170Daí, a
L e M onde, 5 de Julho de 1990. hesitagáo de certas firmas perante o receio de um processo jurídico e o aban-
165 Idem ; ver tam bém P. R ayaud, «N o sm oking», Le D ébat, N ovem bro-D ezem bro de
1990, e G. L ipovetsky, Le C répuscule d u devoir, l ’éthique indolore des no u vea u x tem ps dé-
m ocratiques, P aris, G allim ard, 1992 (em p articular «L a croisade antitabac», p. 106). U m a 168 p \y. H ubert, Liability, the L egal R évolution a n d its C onsequences, N o v a Iorque,
reflex ao de conjunto é p ro p o sta na Sa n té p u b liq u e e t L ibertés individuelles, sob a direcfáo B asic B ooks Inc. P ublishers, 1988.
de É. M alet, Paris, P assages, 1993. 169 Ver p. 204.
166 L e M onde, 15 de N ovem bro de 1989. 170 L. E ngel, Les N o uvelles F rontiéres de la responsabilité civile, Paris, N o ta da funda-
167 R. M arteau, «A lcoolism e», S anté publique, op. cit., p. 559. gao de Saint-S im on, 1993. O texto de L. E ngel é fundam ental neste tem a.

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BEM-ESTAR?

dono de in v e stig a re s úteis á prevengáo. Um resultado contrário ao fim pro­ de tres vezes mais elevada do que a do sacrossanto crescimento» 177, tendo as
curado. O número de fabricantes de vacinas foi dividido por mais de 2 entre despesas de seguros com doengas passado de 356 mil milhóes de francos, em
1965 e 1985, o que fez perder ás empresas americanas o ascendente que elas 1988, para 473 mil milhóes de francos em 1992 17S.
anunciavam neste sector 171. Os exames de diagnóstico (entre os quais alguns Várias causas desta aceleragáo estáo identificadas: o envelhecimento da po­
exames arteriais) desapareceram por receio de processo jurídico m. Conse- pulagáo, a oferta médica mais técnica e especializada, que multiplica os actos
quéncia temida pela coronografia, indispensável para conhecer o bom estado farmacológicos e experimentáis; a perspectiva do «bem-estar», enfim, com a
das artérias, mas que pode, de facto, provocar num caso em mil a morte do pa­ sua irresistível ascensáo das doengas vigiadas, esquadrinhadas e comentadas.
ciente. Daí a política de seguranga social regularmente adaptada pelos govemos recen­
A relativa falta de protecgáo social nos Estados Unidos da América favore- tes: «Diminuir a taxa de reembolso e aumentar as quotizagóes para compensar
ceu, sem dúvida, esta procura encamigada de responsáveis e esta corrida á in- a explosáo do consumo de cuidados e manter o défice dentro dos limites su-
demnizagáo no qual vários advogados, muito simplesmente, se especializaram. portáveis.» 179 Daí, ainda, a tentativa de obter um acordo com os parceiros so-
Mas a simples obrigagáo de designar um «culpado» para obter reparagáo susci- ciais acerca dos «dispositivos de previsáo da evolugáo das despesas de saúde»
tou igualmente derivas jurídicas: um risco de confrontagáo crescente entre par­ e da vigilancia instalada em 1992 para sancionar os praticantes que multipli­
ticulares sem que nem o direito nem a prevengáo tenham lucrado com isso. quen! «indevidamente os actos e as prescrigóes» l8°. O aumento das despesas
Uma tendencia idéntica surge gradualmente nos países europeus. O processo do permanece, no entanto, ameagador e náo compensado pela limitagáo regular das
sangue contaminado permitiu vislumbrá-la. Esta tendencia consegue ocultar taxas de reembolso 181.
uma avaliagáo serena dos riscos. Estas obrigagóes de despesa revelam os actuais impasses do Estado provi­
Uma via de desenlace desenha-se talvez com a proposta de Frangois Ewald l73: dencia. Elas causam um conflito de solidariedades e que é necessário avaliar as
fazer com que o prejuízo seja avaliado e reparado independentemente da cul- formas: a necessidade de uma opgáo entre as doengas a prevenir, por exemplo,
pabilidade do médico, do fabricante ou do técnico. É preciso que os riscos so- importa pelos obstáculos financeiros. É a questáo, que dissimula o cinismo, co­
lucionáveis sejam entáo definidos e recenseados, o que é tremendo, mas deixa locada pelo Le M onde: «Pensa que 100 milhóes de francos é uma soma dema­
entrever uma saída. A lei de Margo de 1993, inclui a transfusáo de sangue nes­ siado grande para a prevengáo de uma leucemia?» E a resposta completamente
ta nova categoría de danos indemnizáveis para além de qualquer falta estabele- prosaica de Claude Got: «Sim, porque a mesma soma utilizada de forma dife­
cida l74. Uma dupla lei sobre os riscos médicos ficará por elaborar: a que regu- rente pode evitar um maior número de mortes. Ela representa igualmente uma
lamenta os indemnizados e a que regulamenta as culpabilidades; a primeira ajuda económica quotidiana durante um ano por várias centenas de idosos ¡so­
«esclarecería sobre o papel, a responsabilidade, o lugar do médico e do pacien­ lados. A época da saúde sem prego foi revolucionada. É preciso utilizar da me­
te na relagáo médica», a segunda, «mais prosaica», definiría «a indemnizagáo lhor maneira os nossos meios.» 182 A escolha do investimento, a escolha das
dos riscos terapéuticos ligados ao progresso médico» 175. doengas ou dos danos a prevenir em detrimento de outros considerados por ve­
zes mais graves, tomam exemplos de escola em epidemiología: um modelo
quantificado que pode levar um médico escolar a investir nos seus meios na pre­
Um conflito de solidariedades vengáo dos acidentes de motociclos e menos ñas doengas sexualmente trans-
missíveis 183. E o próprio principio de uma protecgáo geral, e o seu orgamento,
Agudizou-se um último conflito que pode pesar, hoje, sobre as práticas pre­ que obriga a seleccionar e a opor as solidariedades, mesmo quando as doengas
ventivas. Está directamente ligado á expectativa indefinida do bem-estar, mos­ sáo mais numerosas e melhor conhecidas. Daí o privilégio reservado a algumas
trando até que ponto os projectos seguradores promovidos no final do século xix destas doengas e a negligencia voluntária em relagáo a outras; a «solidarieda-
atingem o seu ponto de ruptura. A tensáo é transparente: as despesas de saúde de» face a certas dores e a «náo solidariedade» face a outras. Paradoxo que ex­
aumentam todos os anos, nos países europeus, mais rápidamente que o cresci­ plica hoje os limites do Estado providencia.
mento económico. A sua progressáo média foi de mais de 16%, entre 1970 e Um outro conflito de solidariedades surge da baixa das taxas de reembolso:
1985, em Franga, enquanto que o aumento do produto interno bruto náo ultra- elas penalizam os mais desfavorecidos, os que menos podem investir ñas des­
passou os 6% I76. Os gastos de reembolso voam, «desfiando-se a uma velocida-
177 J. M . N orm and, Les M ains dans le cam bouis p o u r réparer la Sécu, Paris, R égine Des-
171 Ibidem , p. 18. forges, 1992, p. 16.
172 «L es risq u es thérapeutiques re sten t sans loi», Libération, 17 de M argo de 1993. 178 L e M onde, 16 de O utubro de 1992.
173 F. E w ald, Le P roblém e fra n g a is d e s accidents thérapeutiques, en jeu x e t solutions, re- 179 M . L épinay, SECU , fa illite sur ordonnance, Paris, C alm ann-L évy, 1991, p. 233.
latório para M . B e m a rd K ouchner, m inistro da Saúde e da A cgao H um anitária, P aris, 1992. 180 Le M onde, 16 de O utubro de 1992.
174 «U ne société sur la défensive», L e M onde, 19 de M argo de 1993. 181 Ver nota 40.
175 F. E w ald, citado por Libération, 17 de M argo de 1993. 182 C. G ot, entrevista, Le M onde, 17 de Junho de 1992.
176 L ’É ta t d e la F rance e t de ses habitants, Paris, L a D écouverte, 1987, p. 38. 183 W. D ab, «É pidém iologie», Santé publique, op. cit., p. 30.

262
263
BEM-ESTAR?

pesas de saúde. A disparidade aumenta, neste caso, mecánicamente, «incompa-


tível com uma verdadeira solidariedade nacional» 184: as dificuldades dos mais
pobres limitam as suas consultas em gabinete médico; o que provoca o recurso
apenas aos cuidados pesados e dispendiosos do hospital, mas que é definitiva­
mente contrário ás economías colectivas. Duas medicinas, duas práticas de saú­
de sáo deste modo repartidas pelas fronteiras sociais: «Quanto maior for a for-
magáo e a posigáo na hierarquia profissional, quanto mais elevados sáo os
rendimentos, mais cuidados sáo ministrados em consultorio, e menos custa ao
C A PÍTU LO II
hospital.» 185 Inversamente, o encerramento «dos pobres no ghetto hospitalar»
contribuí para «arruinar as receitas públicas » .186Daí as propostas cada vez mais
numerosas de revolucionar as práticas preventivas até transformar o carácter
PROCESSOS, REFORMAS, RESPONSABILIDADES
das consultas médicas; baixar o seu custo e privilegiar um papel de aconselha-
AS IN T E R R O G A L E S DE HOJE 1
mento senáo de educagáo do paciente, visar as populagóes até aqui pouco inte-
ressadas: «Um médico que passe receitas ou baixas custa 4 ou 5 vezes mais á
sociedade do que um médico que náo as prescreva», insiste Lazar, projectando
Algumas das dinámicas evocadas na última parte deste texto foram acen­
uma «renovagáo da medicina laboral» 187. O projecto conduziria a uma mutagáo
dos estudos médicos, da imagem do médico como á do papel dado ao trabalho tuadas: uma sucessáo de processos, entre os quais o do sangue contaminado,
social. Ele obrigaria a orientar as solidariedades para um novo papel preventi­ confirmou a aparigáo de novas atitudes face aos acidentes sanitários e á vonta­
de sistemática de lhes apontar os responsáveis, fossem eles políticos ou admi­
vo do médico. Um projecto táo brutal que permanece ainda prospectivo.
nistrativos; o reconhecimentos pelos textos do «principio de precaugáo» oficia-
Como se compreende, depois da solidariedade do século xix, atenta ao in-
vestimento nos lugares da infecgáo, depois da solidariedade da Seguranga So­ lizou a necessidade de precisar e de avahar os riscos em todas as medidas de
saúde; as decisóes sobre o financiamento público das despesas confirmaram os
cial, atenta á repartigáo das despesas, uma nova solidariedade parece surgir, que
limites do Estado providencia e o agudizar dos conflitos de solidariedade. Sem
aguarda uma prevengáo suportada colectivamente. Mas poderia esta «preven­
gáo solidária», só por si, criar obstáculos ás despesas tomadas hoje insolúveis dúvida, mais do que antes, o discurso preventivo im pós-se2. Algumas destas di­
pelo fervor do «bem-estar»? námicas, em contrapartida, desenvolveram-se tanto nos últimos anos que susci-
tam novos comentários em relagáo aos que foram propostos na última parte des­
te texto: a lei empenha-se em gerir de outra forma as práticas de saúde,
enquanto que a forma repetitiva de «catástrofes» colectivas quase fez aparecer
fenómenos sanitários de um novo género. Uma fonte de conflito é reavivada a
ponto de opor regularmente a opiniáo sobre os responsáveis, dos utentes aos
que decidem. É impossível ignorar esta novidade «das doengas da nossa mo-
demidade» \ tomando próximos os processos das vacas loucas, do amianto, do
sangue ou da hormona de crescimento contaminados: danos colectivos com
consequéncias mal avahadas, por vezes indefinidas, com esta distancia cada vez
mais dolorosamente sentida entre os individuos e os iniciadores de opgóes sa­
nitárias, esta vontade obstinada de lhes sacar as consequéncias das estratégias
preventivas e educativas, enquanto a própria saúde náo constitui ainda um cam­
po totalmente unificado.

1841. C hapelliére, Ou va la p rotection sociale?, Paris, Syros A ltem ative, 1989, p. 126.
185 Ibidem p. 73.
186 S. N ora, «Sécurité sociale: de l ’im passe á la réform e?», Le D ébat, S etem bro de 1983,
p. 144.
' T exto acrescentado p a ra a presente edigáo de 1999.
187 «L e rap p o rt de P. L azar», Le M onde, 16 de N ovem bro de 1990. Ver ainda a constata­
2 Ver M . T ubiana, « D ’une m édecine de soins a une m édecine de santé», L es C hem ins
gáo de A lexandre V atim bella: «A ctualm ente, apesar das declaragoes fracassadas, os pode­
d ’E sculape, histoire de la p e n sé e m édicale, Paris, F lam m arion, 1995, cap. vm.
res púb lico s consagram m enos de 3% do total das despesas de saúde em favor da m edicina
3 J.-F. G irard, com a colaboragáo de J.-M . E ym eri, Q uand la sa n té d evient publique, P a­
preditiva e de p revengáo» (S a n té et E conom ie, P aris, Syros, col. «A ltem ative économ ique»,
1993, p. 122) ris, H achette, 1998, p. 203.

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264
BEM-ESTAR?
PROCESSOS, REFORMAS, RESPONSABILIDADES

1. P R O C E S S O S N O V O S , M O D E L O S V E L H O S
Incumprimento das regras deontológicas por auséncia de precaugáo no acto
realizado, estes comportamentos testemunham «de maneira gravosa uma ce-
O simples proeesso do sangue contaminado, por exemplo, já náo pode ser evo­
gueira colectiva dos profissionais de saúde» 8. Confirmam também a omnipo­
cado em 1999 como o era em 1993 nos parágrafos precedentes. Cada vez mais me­
tencia de uma lógica administrativa onde a confianga confusa nos dispositivos
diático, tomou-se também mais simbólico tanto quanto mais contrastado. Os pro­
técnicos ou institucionais consegue alterar os mais clássicos cuidados de vigi­
cessos sucederam-se, as tomadas de consciencia foram recompostas. Náo que
lancia, originando «este bailado trágico em que os protagonistas sáo os pacien­
esteja tudo por reconsiderar. Pelo menos uma conclusáo parece imutável: «A epi­
tes, os médicos, os administradores, os jomalistas, os juízes e os dirigentes po­
demia aterroriza como nunca que “ninguém até ao Veráo de 1985” pode com ra­ líticos» 9.
pidez e com clareza «avaliar verdaderamente a sua gravidade.» 4Mas aquilo que
O retomo a estas zonas de sombra é, contudo, tanto mais indispensável
estava no centro das preocupagóes jurídicas no inicio dos anos 90, a contaminagáo
quanto revela até que ponto estas disfungóes náo sáo, a priori, unívocos. Foi,
dos hemofílicos, já náo ocupa o mesmo lugar em 1999. A constatagáo progressiva
por exemplo, uma vontade «generosa» que, em Franga, no caso da náo selecgáo
dos efeitos das disfungóes decorrentes da transfusáo, a sua multiplicidade, o avivar
dos doadores, levou á tragédia: a recusa em náo descriminar para evitar estig­
das peritagens e dos debates, transformaram a visáo retrospectiva dos factos, ori­
matizar os grupos de risco em particular. O sentimento claramente expresso por
ginando essas «reconstrugóes permanentes» apontadas por Jean-Baptiste B runet5.
WiUy Rozembaum em 1 9 8 4 : «Com a possibilidade de contágio da sida pelo
As zonas de sombra alargaram-se, tomaram-se retrospectivamente mais som­
sangue, rogámos a catástrofe. Os centros de transfusáo sanguínea, com efeito,
brías em 1999 do que eram em 1993. Aquilino Morelle, por exemplo, foi um dos
estabeleceram em Maio de 1 9 8 3 formulários com o objecdvo de afastar da doa-
primeiros a mostrar o quanto a falta inicial de vigilancia no risco de contamina­
gáo de sangue as populagóes de risco, medida precoce e indelicada... (Ela) ten-
gáo sanguínea se prende com a náo selecgáo dos doadores: mais precisamente, a
de a introduzir a velha ideia racista do contágio dos homossexuais » .10Mais vas­
náo eliminagáo clínica dos grupos de risco nos doadores de sangue, medida que
tamente, é inteiramente a tradigáo da doagáo de sangue, em Franga, que
teria de se impor antes da existencia de testes de despistagem em 1985. A náo
reforgou a diticuldade em suspeitar do doador: a velha imagem virtuosa deste
consideragáo de uma circular da Secretaria de Estado da Saúde, de 20 de Junho
último, a imagem do seu acto anónimo e gratuito, anulando parcialmente a des-
de 1983, dirigida aos centros de transfusáo sanguínea e exigindo a eliminagáo
confianga, tornam o seu gesto alheio a qualquer ideia de impureza.
dos doadores de risco das colheitas de sangue, teve consequéncias hoje quase
contabilizáveis: «Deste modo, no Reino Unido, contam-se apenas com 91 trans- Mas regressar ás zonas de sombra é ainda dimensioná-las no saber do inicio
dos anos 8 0 , lá mesmo onde a nossa visáo retrospectiva náo cessa de as inter­
fusóes contaminadas pelo HIV a 31 de Margo de 1995, ou seja 16,5 vezes do que
rogar, lá mesmo onde a nossa condenagáo precoce se poderia tornar cega.
o nosso país, que registava 1498 casos na mesma data. Ora, no outro lado da
É preciso repetir entáo o quanto a epidemia horrorizou ”, longe da indiferenga
Mancha, a selecgáo clínica dos doadores foi sempre feita com cuidado.» 6A fa-
da qual muitos créem que ela tenha sido objecto. É preciso dizer, sobretudo,
Iha, dito de outro modo, náo é apenas a do uso para os hemofílicos de 1985 de
lotes contaminados, por náo serem aquecidos, ela é também a falta de precaugáo o quanto os saberes sobre ela puderam permanecer enganosos e com lacunas'
Situagáo exemplar precisamente onde a doenga necessitava, para ser com-
no recurso aos próprios doadores, antes da existéncia dos testes de despiste e
quando o risco foi apontado. O que aumentou o número de vítimas e o campo preendida, de uma conversáo de mentalidades. O que Jean Bemard evoca hoje
ao datar esta lenta e difícil demoligáo: «Entre 1 9 8 4 e 1 9 8 6 passou-se progressi-
das responsabilidades. Apareceram ainda outras falhas: a falta de arrolamento
dos lotes contaminados, uma vez generalizado o proeesso de aquecimento dos vamente da nogáo de seropositividade que significa protecgáo e defesa á nogáo
produtos anti-hemofílicos, por exemplo, o náo arrolamento das transfusóes, que significa que o portador do virus náo tem nenhuma protecgáo. É, repito,
quando um relatório de 30 de Maio de 1985 preconizava que se «informasse os uma nogáo nova em medicina que póe em causa as concepgóes pasteurianas,
receptores de produtos sanguíneos» 7para melhor avaliar a sua eventual conta­ urna vez que até ao aparecimento dessa doenga a presenga de anticorpos signi-
minagáo e prevenir a sua eventual contagiosidade. ficava que se estava protegido» 12. A velha referéncia das doengas infecciosas
desempenhou, efectivamente, um papel de obstáculo na compreensáo da novi-
4 V er p. 247 e a nota 48. dade. Daí essa ligáo muito importante ñas primeiras divagagóes na defesa con­
5 L e P rocés d u sang contam iné, Le M onde, edigáo especial, M argo de 1999, p. 8 . Jean tra a sida, o peso dos modelos tradicional mente eficazes, a dificuldade em re­
B aptiste B runet, ep idem iologista, responsável pela sida na D irecgáo d a Saúde em 1985. volucionar os enquadramentos clássicos de referéncia, a aposta das ignorancias
6A . M orelle, L a D éfaite de la sa n té publique, Paris, F lam m arion, 1996, p. 118. Ver tam ­
e falsos saberes durante muito tempo misturados ás faltas indiscutidas.
bém M . Setbon, P o u vo ir contre sida, op. cit. que é o prim eiro a evocar estas consequéncias,
num a o b ra de 1993.
8 J.-F. G irard, op. cit., p. 132.
7 V er «Les cin q grands dossiers de l ’affaire», Le M onde, Le procés op. cit., p. 15. E stes
9 B. K riegel, L e Sang, la Justice, la Politique, Paris, Plon, 1999, p. 1 1 .
cinco casos, recordam os, incidem sobre: 1 ) a selecgáo entre os dadores de sangue, 2 ) o des­
10 W. R ozem baum e t al., Sida, réalités et fa n ta sm e s, Paris, PO L, 1984, pp. 126 e 127.
piste d a s dádivas de sangue, 3) o aquecim ento dos produtos anti-hem ofílicos, 4) a revisáo
11 Ver n esta obra «O cenário do m ais im portante flagelo», p. 288.
dos sto c ks [náo activados ou náo testados] depois d a publicagáo dos decretos d e Julho de
1985, 5) a revisáo das transfusñes. 12 J. B em ard, A udigao perante a C om issáo de Inquérito da A ssem bleia N acional de 2 de
D ezem bro de 1992.

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267
BEM-ESTAR? PROCESSOS, REFORMAS, RESPONSABILIDADES

Mecanismos idénticos repetiram-se com a «doenga das vacas loucas» e a sua correncia interminável ao acontecimento desencadeador, estes inquéritos sem­
equivalente clínica no homem, a doenga de Creutzfeldt-Jakob: a duradoura pre recomegados sobre as causas e os seus efeitos.
crenga, por exemplo, de uma impossível transmissáo ao homem, esta convicgáo
de uma identidade entre a encefalopatía espongiforme bovina e a scrapie, ano-
malia do sistema neurovegetativo dos cameiros, cuja existencia, desde há du- 2. DAS «CATÁSTROFES» SANITÁRIAS AO IMBRÓGLIO JUDICIÁRIO
zentos anos, permanecía sem danos para as populag5es humanas. Foi necessá-
rio, em 1996, dez anos após a descoberta da epidemia animal e de uma longa O caso do sangue contaminado ilustra esta dupla originalidade até ao sim­
série de casos perturbadores, como o dos dois agricultores británicos que ti- bólico. A investigagáo em cadeia das responsabilidades foi interminável, con-
nham passado a sua vida numa exploragáo de lacticinios e que faleceram em duzindo do processo dos dirigentes da transfusáo sanguínea ao processo dos mi­
1993 com a doenga de Creutzfeldt-Jakob, em particular, para que o ministro bri­ nistros. O aprofundamento da inculpagáo foi continuo, conduzindo, a despeito
tánico da Saúde aponte pela primeira vez uma possível ligagáo entre a doenga da autoridade da coisa julgada, da «fraude das qualidades substanciáis de um
das vacas loucas e a de Creutzfeldt-Jakob l3. Ao que se acrescentam as faltas e produto» á de envenenamento ou de cumplicidade de envenenam entoI7. Os fac­
as negligencias em série: uma detecgáo deficiente, por exemplo, em que apenas tos foram requalificados e os inculpados multiplicaram-se '8. A acusagáo cres-
60% das vacas doentes em 1992 e 40% em 1993 e 1994 14 foram identificadas; ceu com a tomada de consciencia das zonas de sombra. Nada de chocante á evi­
uma recriminável frouxidáo internacional também, quando as farinhas animais dencia no empenhamento de perseguigóes sucessivas; nada de chocante na
infectadas, suspeitas de estarem na origem da doenga, puderam ser exportadas obrigagáo feita ás autoridades administrativas e políticas de explicarem as suas
pelos británicos ao mesmo tempo que eram proibidas na Grá-Bretanha l5. decisóes sanitárias. O resultado, sem dúvida nenhuma, foi ter-se dado crédito á
Mas a originalidade destes casos náo se prende nem com a simples oposigáo acusagáo. Em contrapartida, demasiadas paixóes foram conduzidas no proces­
entre o efeito real e o efeito suposto, durante muito tempo, de novos agentes pa­ so, e também se combinaram demasiados géneros jurídicos para melhor res­
togénicos, nem com as meras falhas e negligencias que esses efeitos permitirán) ponder ás vítimas até ai negligenciadas.
revelar. A sua originalidade prende-se ainda com o seu modo de atingir o co­ O envió para tribunal de juízes, a 20 de Maio de 1999, de alguns responsá-
lectivo e ás reacgóes sociais em cadeia que permitiram desencadear16. Uma du­ veis de transfusáo sanguínea sob a acusagáo de crime de envenenamento ou de
pla característica em particular especifica o seu desenvolvimento, da qual a cumplicidade de envenenamento, é perturbador. Ele decorre, em parte, da coi­
mais notoria é esta conexáo com as novas obrigagoes dos sujeitos decisivos e sa julgada 19, o que náo devia ser evidente em direito. Por outro lado, opóe-se á
das técnicas. Os individuos estáo, neste caso, numa posigáo fortemente assimé- declaragáo do Tribunal de Recurso a 2 de Julho de 1998: «O simples conheci-
trica em relagáo aos que decidem: disparidade cada vez mais aceite hoje, cada mento do poder mortal da substancia administrada náo é suficiente para carac­
vez menos compreendida também, que origina numa comunidade este obscuro terizar a intengáo homicida.» 20 Subsistem as discordáncias dos juristas quanto
sentimento de constituir uma sociedade de vítimas. Náo que esta assimetria seja ao próprio objecto de inculpagáo, particularmente quanto á maneira de qualifi-
inédita; ela tornou-se apenas mais opaca senáo mais notoria pela omnipresenga car a intencionalidade; e mantém-se também no que respeita á interpretagáo dos
do universo tecnológico, pelos seus riscos, pela sua complexidade, mais insu- factos: em primeiro lugar a intencionalidade onde, no caso do escoamento de
portável também pelas exigencias individualistas ou pelo credo de uma opiniáo lotes contaminados, a falta corresponde para uns a um homicidio por impru­
cada vez mais informada. É impossível ignorar esta certeza crescente que faria dencia, enquanto para outros corresponde a uma decisáo deliberada de m atar21;
de cada um vítima das decisóes tomadas pelos outros, esta contradigáo entre o em seguida a interpretagáo dos factos em que no caso do atraso ocorrido com
aumento das autonomias e a manutengao das dependencias impostas pelo em- os testes de despiste de sangue, a contaminagáo consequente corresponde, para
prego das redes técnicas e industriáis. Daí esta explosáo de queixas e de pro- uns, á inevitável necessidade de garantir a validade destes testes, enquanto que
cessos, esta constante vontade da revisáo dos factos. para outros, corresponde á vontade deliberada de proteger o teste francés até á
A segunda destas características prende-se com o desfasamento temporal altura em concorréncia com o teste americano e mais tardíamente terminado do
entre a decisáo e o drama causado: cancros desenvolvidos em murmúrio, ger-
mes lentamente incubados, desordens físicas durante muito tempo mal percebi- 17«Un arrét de la Cour de cassation modifie le cours de l’affaire du sang contaminé», Le
das e, no entanto, irremediáveis. Daí estes aumentos dos efeitos pós-factual, a M onde, 4 de Julho de 1998.
revolta cada vez mais exacerbada das vítimas ao descobrirem as negligencias e 18Ver O. Beaud, Le Sang contam iné, Paris, PUF, 1999, entre outros, o cap. «Du drame
os erros ñas suas consequéncias distanciadas e a posteriori. Daí ainda esta re- au procés des ministres».
19Ver os julgamentos de 1992 e 1993 citados nesta obra, p. 246.
13«Chronique d’une négligence d’État», Le M onde, 6 de Abril de 1996. 20 Bull. de la co u r d e cassation, 2 de Julho de 1998.
14 Idem . 21 «O facto de aceitar á partida estas mortes inelutáveis em fungáo do grande de com­
15Ver J.-F. Girard, op. cit., p. 170. pradores destes produtos caracteriza a intengao homicida», afirma o juíz M.-O.
16Ver, entre outros, D. Fassin, L ’E space p o litiq u e de la santé. E ssai de généalogie, Pa­ Bertella-Geffroy na sua ordenado de reenvió de 20 de Maio de 1999, L e M onde, 22 de
ris, PUF, 1996, em particular «L’expansión de la santé publique», p. 256. Maio de 1999.

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BEM-ESTAR?
PROCESSOS, REFORMAS, RESPONSABILIDADES

que este 22. Confrontam-se, como nunca, neste ponto, «procuradores» e «advo- Evidentemente que náo se trata de afastar as responsabilidades individuáis:
gados» 23, confirmando a complexidade dos factos. Mas também se imp5e, negligéncias ou imperativos personalizados em decisóes todavía colectivas.
como nunca um «empolgamento» judicial em que a procura de agravagáo e de Mas estas culpas parecem ser sancionadas com demasiada dureza pela justiga
culpabilizagáo a todo o custo se pretendeu mais á altura do número de mortos penal, em compensagáo ignoradas com demasiada facilidade pela arbitragem
do que á altura de uma fria avaliagáo dos factos. Uma espiral sem fim parece administrativa. Como sancionar claramente o que depende de uma falha pessoal
ter trazido uma vontade de encontrar, custasse o que custasse, uma intengáo ho­ na condugáo de uma política sanitária concertada? O objectivo seria, efectiva­
micida, quando o caso do sangue permanece, em aparéncia, estranho á inten­ mente, o de «atingir a pessoa e a sua capacidade de causar daño ligado ao seu
cionalidade de matar 24. A incapacidade do direito administrativo em qualificar título de intervengáo no espago público» 30. Estaría por inventar uma «respon­
neste caso a culpa e os culpados está, sem dúvida, na origem deste interminá­ sabilidade cívica» 31, como propóe Antoine Garapon, responsabilidade pública
vel processo penal. Mas a abordagem sempre recomegada e sempre rectificada efectivamente particular da qual os casos de sangue revelam toda a importán­
do processo náo teria sido possível sem o duradoiro sentimento das vítimas de cia, responsabilidade pública cujo peso se reconhece por vezes desastroso
náo terem sido ou vidas. Ele náo teria sido sobretudo possível sem esta nova ati- aquando de decisóes tecnológicas de efeitos incontrolados.
tude colectiva em recusar cada vez menos a fatalidade e em procurar cada vez Estes casos, no entanto, desencadeiam um estímulo de uma democracia tec­
mais a responsabilidade, ainda que fosse a custo de algum acomodamento com nológica. Sáo instaladas ou reforgadas instituigóes encarregues de o prevenir:
a verdade. E, efectivamente, «neste contexto onde a lógica da vitimizagáo pode Agéncia Francesa de Sangue 32, Estabelecimento Francés dos Implantes 33, Alto
romper todas as barreiras dos principios do direito democrático» que se toma Comité da Saúde P ública34, Agéncia do medicamento ’5, Rede nacional de Saú­
necessário compreender «o activismo judiciário» 25 do qual estes casos sanitá­ de Pública 36, etc. Uma incriminagáo pela colocagáo em perigo de outrem foi
rios sáo hoje objecto. criada pelo código penal de 1996, permitindo estigmatizar melhor os delitos de
A imagem dada pelo processo dos ministros deixou entender uma deriva imprudéncia. Uma lei «relativa ao reforgo da vigilia sanitária dos produtos des­
idéntica na procura de culpados a todo o prego, tentativa algo exasperada de tinados ao homem» foi promulgada em 1998 37, exclusivamente orientada para
derrabar a assimetria na qual as vítimas se encontraram 26. Náo faltaram as con- o risco epidemiológico. Os limites, em compensagáo, permanecem. Falta en­
fusóes nesta vontade de ir ás fontes aparentemente últimas das decisóes, reve­ contrar uma convergéncia, em particular, entre o conhecimento de novos riscos,
lando o quanto estes dramas sanitários náo tém ainda resposta jurídica adequa- a informagáo a seu respeito e a sua aceitabilidade colectiva. A recusa que os in­
da. Dois tipos de julgamento, em particular, foram amalgamados: o que incide dustriáis da agro-alimentagáo actualmente opóem ao desenvolvimento dos seus
sobre a responsabilidade penal e o que incide sobre a responsabilidade política testes sobre os organismos geneticamente modificados (OGM) lembra o longo
e administrativa. O primeiro conceme a «culpa cometida individualmente e caminho a percorrer na via de uma total claridade 3S.
previamente codificada pelo direito penal» 27, o segundo conceme a culpa co­
metida num dispositivo de dependéncias complexas, feitas de solidariedades e de
decisóes colectivas. Todas estas diferengas foram apontadas de uma forma clara 3. AS DESPESAS DE SAÚDE, REFORMA IMPOSSÍVEL?
por Robert Badinter num comentário ao processo: «A incriminagáo pertence ao
direito comum, mas os factos reprovados procedem dos actos do govemo.» 28 As reformas empenhadas ñas despesas de saúde desde 1996 conduziram
A via penal satisfaz seguramente as vítimas com a sua vertente espectacular, igualmente á renovagáo em 1999 das constatagóes sugeridas em 1993 nos pará­
mas em compensagáo náo lhe faltam riscos nem anomalías, podendo, muito grafos precedentes. A lei de 22 de Fevereiro de 1996 criou uma ruptura, fazendo
simplesmente, levar «o juiz a substituir-se ao eleitor para apreciar o exercício do Parlamento o árbitro das despesas, reportando o seu montante ao mero cres­
do poder norm ativo»29. Falta ainda encontrar um procedimento que permita jul- cimento da riqueza nacional, ao instaurar um contrato público «no termo do qual
gar mais serenamente estas duas responsabilidades. o período de aumento incontrolado das despesas de saúde seria encerrado» 39.
22«Acgao de lobbying em desprezo dos interesses da saúde pública», diz ainda a mes­
ma ordenagáo, ídem. 30 A. G arapon, «P o u r une responsabilité civique», Esprit, M argo-A bril de 1 999, p. 2 4 5 .
23Ver O. Beaud, op. cit., p. 66. 31 Idem.
24Ver P. Mazeaud, «Le sens des mots», Le Monde, 8 de Outubro de 1993. 32 Ver C ode de la sa n té publique, Paris, D alloz, 1 9 9 7 , p. 4 4 6 .
251. Théry, «Sida: l’emballement», Esprit, Agosto-Setembro de 1995, p. 218. 33 Ver ibidem, p. 4 6 1 .
26«O caso do sangue contaminado tornava-se o terreno ideal para a eclosáo de um mo- 34 Ver ibidem , p. 1121.
vimento de diabolizagao», A. Morelle, op. cit.. p. 167. 35 Ver ibidem , p. 3 2 9 .
27B. Kriegel, op. cit., p. 112.
28R. Badinter, Les Ministres d ’avant la justice, Association frangaise pour l’histoire de
36 Ver «Sang contam iné et responsabilité politique», Le M onde, 28 de Julho de 1998.
37 L ei n.° 9 8 -5 3 5 , J o u rn a l ojficiel, 2 de Julho de 1998.
la justice, Paris, Actes Sud, 1997, Préface, p. 15. 38 «Aprés la vache folie les légum e m utants? », Courrier International, n.° 4 3 9 , Abril de 1999
29Procurador-Geral Burgelin, Réquisitoire, Tribunal de Justiga da República, 11 de Mar­ 39 F. Stasse, «C om m ent m aitriser les dépenses de santé?», E ta t providence, argum ents
go de 1997, p. 79. p o u r une réform e, ouvr. col., Paris, G allim ard, col. «L e D ébat», 1 9 9 6 , p. 2 8 1 .

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BEM-ESTAR?
PROCESSOS, REFORMAS, RESPONSABILIDADES

Dispositivo completamente novo, ele detém as despesas por um voto que age
directamente sobre a oferta, constrangendo os cuidados hospitalares, os hono­ servagáo, ele é de 75%.» 45 Uma forma de ajustar a procura, favorecendo a pre-
ven^áo.
rarios médicos e as prescrigóes medicamentosas. O procedimento é tanto mais
marcante quanto os dispositivos precedentes agiram sobre a procura, limitan­ E, aliás, a este reforgo obrigatório de prevengáo que conduzem a maior par­
do as taxas de reembolso, aprofundando deste modo a desigualdade perante os te das comparagóes intemacionais: «O sistema francés é caro, eficaz para a me­
cuidados sem nunca conseguir estrangular o crescimento das despesas. Sem dicina curativa e moroso, e ainda frequentemente falível, no caso da prevengáo.
dúvida nenhuma, as garandas de fiscalizagáo multiplicaram-se, inteiramente Estas conclusóes militam por novas formas de remuneragáo específica, incitan­
centradas numa limitagáo de oferta: recomendagóes de boas práticas, referen­ do ao desenvolvimento simultáneamente de oferta e a procura de prevengáo
cias médicas oponíveis, formagáo médica continua, substituigáo dos cartóes de (subsidio no generalista ou no dentista, capitagáo, prémios nos resultados...).»4'’
seguranga social por cartóes com circuito integrado onde podem ser seguidos E também uma acgáo muito particular na cultura sanitária que deveria conduzir
a totalidade dos actos médicos, panoplia de medicamentos «genéricos» equi­ a necessidade inteiramente pedagógica de «revelar a amplitude das despesas
valentes e menos dispendiosos, desenvolvimento de avaliagáo e do crédito de inúteis, os desperdicios realizados pretensamente em nome do bem -estar»47, fa­
saúde, e tc .40. vorecer as tomadas de consciéncia, habituar ás «precaugóes», cortar mais efi­
Reforma profunda e, no entanto, os seus efeitos náo estáo á altura dos re­ cientemente a maior parte das despesas supérfluas.
sultados previstos. As despesas, durante algum tempo contidas, já náo o sáo, na
verdade, hoje: as despesas urbanas, por exemplo, ultrapassaram os 9 mil mi­
lhóes em 1998, o objectivo que lhes estava fixado, apesar das medidas urgentes 4. UMA CULTURA COM A DOENCA DA DESUNIÁO
tomadas pelo govemo 41; a totalidade dos índices confirma em 1999 a existen­
cia de um «défice importante» em lugar «do espago de equilibrio prom etido»42. Reorientar os polos desta cultura sanitária seria, sem dúvida nenhuma, a me­
E forgoso constatar a náo aplicagáo de vários dispositivos contudo previstos: o lhor forma de assegurar a economía e a racionalidade. As possibilidades, neste
uso do boletim de saúde, por exemplo, ou a mudanga profunda do acto de pres- caso, mostram-se o mais abertas possível uma vez consideradas as despesas ac­
crever e do recurso ao m edicam ento43, todos eles opostos com demasiado peso, tualmente aprovadas: 10 francos por ano e por habitante na educagáo para a saú­
sem dúvida, á actual cultura sanitária. É, sobretudo, forgoso constatar a ausen­ de, em Franga, 250 francos na medicina preventiva, 11 000 francos nos cuida­
cia, no conjunto legislativo de 1996, aquilo que poderia conter mais eficaz­ dos de saúde 48. As margens de um desenvolvimento de um ensino de saúde
mente a procura: náo só o limite imposto á oferta, mas a sua reestruturagáo; a parecem evidentes, como parecem as novas definigóes do seu conteúdo:
reconversáo dos médicos, por exemplo, sobretudo o dos especialistas que se «A “saúde manifestada liga-se á qualidade de vida.» 49 Nunca as apostas na
tomaram demasiado numerosos, se, como pretende a lei, as novas redes de cui­ educagáo para a saúde pareceram táo alargadas, nunca a conta de de definir a
dado fazem do generalista um ponto obrigatório de passagem, uma garantia de saúde «como um todo» 50 foi táo marcada. Os projectos sanitários avangam até
controlo e de aconselhamento; e também a renovagáo qualitativa das medidas ao «modo de vida», até ao healthy-style51, aos grupos coordenados de métodos,
sanitárias, afim de tom ar mais credível o constrangimento exercido sobre a de hábitos e de saberes. Os indicadores váo dos critérios individuáis mais ínti­
oferta, acentuando a sua qualidade. Foi o que Gilíes Johanet revelou com o má­ mos aos critérios ambientáis mais englobantes. Tudo sugere o quanto esta
ximo de clareza: «Nesta situagáo de fiscalizagáo imposta, que é obrigatoria- «aproximagáo global das atitudes e dos comportamentos de saúde» 52 deveria
mente revolucionária, é indispensável um discurso náo apenas económico mas impor um campo de práticas e de referéncias largamente unificadas.
humano, ético, numa palavra, político, sobre a fiscalizagáo. Este discurso náo
45 Ibidem , p. 19.
existe.» 44
46B. Majnoni d’Intignano, «La performance qualitative du systéme de santé frangais»,
Ao que se acrescenta a inevitável necessidade de transformar a procura, Relatório de M. Mougeot, R égulation du systénie de santé, Paris, La Documentation fran-
agindo sobre a sua própria estrutura, principio de responsabilizagáo dos utentes gaise, 1999, p. 112.
por exemplo, do qual vários exemplos confirmam um efeito preventivo muito 47F. Stasse, «Assurance maladie: l’état d’urgence», É ta t providence, argum ents..., op.
previsível: «Na Alemanha, a comparticipagáo de uma coroa dentária é de 40%, cit., p. 363.
mas se o paciente seguiu, durante os dois anos precedentes, os cuidados de con- 48Ver J.F. Girard, op. cit., p. 224.
49 B. Roussille, «Introduction», É ducation p o u r la sa n té p o u r m ieux vivre. Barom étre
40J.-F. Girard, op. cit., p. 223. sa n té adultes, 95-96, sob a dire&jao de F. Baudier e J. Arenes, Vanves, éd. CFES, 1997,
41Ver «Réformer enfin l’assurance-maladie», L e M o n d e des D ébats, Maio de 1999. p. 9.
42 L e s Échos, 14 e 15 de Maio de 1999. 50B. Kouchner, «La santé est un tout», Prefácio, L a S a n té en F rance, 1994-1998, Paris,
43 Ver, entre outros, J.N. Kapferer, «Comportements du consommateur-médecin», La La Documentation franjaise, 1998, p. 4.
1998, n.° 165.
R evue fra n g a ise de m arketing, 51F. Stevens et a!., «Health life-styles, health concern and social position in Germany
44G. Johanet, «Sécurité sociale: une réforme sous condition», E sprit, Fevereiro de 1997, and The Netherlands», E uropean Journal o f P ublic H ealth, 1995, n.° 5, p. 28.
p. 18. 52 J. Arenes, P. Guibert, M.-P. Janvrin, «Approche globale des attitudes et comporte­
ments de santé», E ducation p o u r la sa n té p o u r m ieu x vivre, op. cit., p. 32.
272
273
BEM-ESTAR? PROCESSOS, REFORMAS, RESPONSABILIDADES

Permanece uma dificuldade, no entanto, na difusáo da cultura sanitária e da desencantado, está ainda pouco presente ñas medidas claramente educativas;
educagáo para a saúde. Esta dificuldade, na verdade inteiramente conceptual e largamente explorada ñas revistas de grande difusáo 59, ela ainda é pouco ex­
frequentemente dissimulada, baseia na identidade concreta do tema, na sua uni- plorada ñas pedagogías elaboradas e concertadas.
dade interna, na sua homogeneidade tangível para lá das primeiras aparéncias e Se o mito de uma «saúde perfeita» 60 invade os imaginários, a sua extensáo,
dos discursos convenientes. Como tomar convergentes objectos táo diferentes em contrapartida, a sua diversidade, a sua infinidade mesmo, fazem dele uma
como os do tabagismo, do consumo alimentar e da violencia? Como unificar ac­ totalidade necessariamente pouco ou mal dominada.
tos que tudo concorreria para separar? O risco sanitário nem sempre vai para
além da imagem do esmiugamento. Tanto mais que, a expectativa cultural do
«bem-estar» é ela própria múltipla, unindo as suas exigencias ás das formas de
consumo, á sua dispersáo, aos seus exclusivos individualistas, á sua propensáo
para o «cada vez mais». E como enumerar ainda as práticas «sás» sem abordar
os preceitos simplistas ou náifsl Alguns capítulos de uma nova cultura sanitária
desenham-se, em contrapartida, na evidenciagáo de comportamentos dos riscos 53,
ou na evidenciagáo de atitudes de civismo e de cidadania54. Poderiam ser suge­
ridas algumas categorías de medidas concretas, correlacionando diversos com­
portamentos de saúde 55. Mas falta ainda um programa que faga da saúde públi­
ca um saber totalizado, reflectido, que se possa difundir, quando as velhas
coordenadas da higiene escolar já náo tém validade, uma vez que sáo limitadas
pelas simples referencias microbianas ou pelos meros gestos de interdigáo.
Os temas de acgáo recenseados ao longo de um ano nos estabelecimentos
escolares de um distrito francés ilustram esta dificuldade, justapondo os com­
portamentos mais diversos e os objectos mais variados: «A saúde em geral»,
«corpo, puberdade e adolescéncia, vida amorosa, gravidez e contracepgáo», ali­
mentagáo», «os ritmos da crianga», «os maus tratos e os direitos da crianga»,
«prevengáo oral», «o cancro», «as vacinas», «a asma e as alergias», «a hepatite
B», «desporto, actividade cardíaca e músculos», «os gestos de urgéncia», «a luta
contra os piolhos» 56. Ilustragáo idéntica com os capítulos de uma investigagáo
recente, conjuntamente em onze países, sobre a educagáo para a saúde: «Con­
sumo de tabaco e de outras drogas, exercício e actividades de lazer, nutrigáo, re-
gime alimentar e cuidados dentários, problemas físicos dos medicamentos, inte-
gragáo social.» 57 Daí o consenso difuso em fazer deste novo espago uma
nebulosa um pouco híbrida e indeterminada: um conjunto de referéncias massi-
vas nu curso universitário de saúde pública, sem dúvida, mas difícilmente uni­
ficadas num ensino escolar onde permanecen! sobejamente marginais e pouco
desenvolvidas 5S. A cultura sanitária, tomada cada vez mais central num mundo

53Ver sobre o tema os comportamentos de risco dos jovens e dos adolescentes em particu­
lar, Haut Comité de la santé publique, Santé des enfants, santé des jeunes, Paris, HCSP, 1997.
54Ver «De la nécessité d’une démarche éthique», D. Castiel, E conom ie e t Santé, quel
a v e n ir ?, Paris, éd. Management, 1999, p. 92.
55Ver «Etude globale des interrelations entre les comportements et les attitudes de san­
té», J. Arenes, P. Guibert, M.-P. Janvrin, «Approche globale...», op. cit., p. 51.
56Servijo de promocao da saúde em apoio aos alunos do Val-de-Mame, Créteil, R ap-
p o rt annuel, année 1993-1994, Créteil, 1994, p. 67-68.
57 N o s je u n e s e t leu r santé, opinions, com portem ents des 11, 13 et 15 ans au C añada et
dans 10 autres p a ys, Ministério da Saúde e do Bem Estar Social, Ottawa, 1992.
58Ver G. Vigarello, «L’éducation pour la santé, une nouvelle attente scolaire», Esprit, 59Ver p. 301-302.
Fevereiro de 1997. 60L. Sfez, L a S a n té parfaite, Paris, Seuil, 1995.

274
275
CONCLUSÁO

O gesto defensivo muda ao longo do tempo como mudam as referencias da


eficácia orgánica. A historia do saudável e do insano, como havíamos pressen-
tido, encena a historia das representagóes do corpo, misturando as suas coorde­
nadas eruditas com as suas coordenadas do imaginário. A referencia aos humo­
res, por exemplo, dominou durante muito tempo a prática preventiva. Matérias
que impregnam os órgáos, elas indicam as qualidades do corpo e sugerem os ac­
tos de manutengáo. A purificagáo e a evacuagáo dominaram entáo as respostas
de defesa, desde os gestos supersticiosos até aos gestos mais instruidos. É ne­
cessária a imagem de uma primeira resistencia orgánica no século xvm, a cer­
teza de que o corpo possui uma potencia própria, para reorganizar as esperan-
gas de saúde. Esta imagem sugere o uso de forgas interiores, o recurso a
principios reactivos até ai desconhecidos ou negligenciados. Ela autoriza a ino­
culagáo da varióla; ela legitima o recurso ao frió, transforma o tema do exercí­
cio, relanga o prestigio de uma rusticidade alimentar concedendo uma confian-
ga obscura a invisíveis energías corporais. Tudo muda ainda com a referencia
mais erudita ás calorías durante o século xix. As primeiras imagens de energia
e de rentabilidade orgánica canalizam o olhar para a potencia «combustível»,
deslocando o valor do alimento, agitando a importancia dada á respiragáo. En­
quanto que as imagens centradas hoje no controlo nervoso e na sensibilidade in­
terna dáo um novo lugar ao trabalho de consciencia, acentuando a aposta da
sensibilidade corporal e da escuta de si mesmo, agugando sempre mais a ver-
tente psicológica da saúde. Esta sucessáo de representagóes mostra, aliás, a pro-
gressiva ascendencia de autonomía corporal, a lentíssima independencia em re­
lagáo aos movimentos cósmicos, o recurso a energías inteiramente individuáis,
até ao gesto completamente actual de recorrer ao capital genético para indivi­
dualizar a saúde.
Os dispositivos colectivos desempenham também um papel determinante
ñas acgóes de manutengáo corporal, como tínhamos esbogado no inicio deste
trabalho. Eles definem limiares de eficácia, o do trabalho, o das forgas popula-
cionais. Eles orquestram gradualmente as defesas epidémicas ou designam as
ameagas que pairam sobre todos. A historia do manutengáo do corpo revela en­
táo os momentos importantes destas estratégias colectivas, salientando as suas

277
HISTORIA DAS PRÁTICAS DE SAÚDE
CONCLUSÁO

ligagóes com as mudangas do poder público: as cidades antigas, por exemplo,


acentuam as suas vigilancias sobre os itinerários da doenga epidémica, focadas Estas deslocagóes váo também contra as opinióes históricas vigentes: o tema
dominante náo é o de um dominio progressivo da doenga. É o territorio do ris­
no isolamento dos doentes, o levantamento dos lugares que cheiravam muito
co que, na verdade, se alarga, ao mesmo tempo que aumenta o saber. Ciéncia e
mal, sem nunca os corrigir verdadeiramente; o Estado «higiénico» do final do
técnica levam ao dominio dos perigos e, ao mesmo tempo, á sua renovagáo.
século xvm e do inicio do século xix que reivindica uma atengáo nova sobre as
Elas ultrapassam as ameagas antigas, mas desvelam novas ameagas. Daí esta
quantidades de populagóes, que ñas reorganizagóes dos espagos, na deslocagáo
certeza de se enfrentar desordens cada vez mais difusas e variadas. É necessá-
dos cemitérios, no transporte de água, na circulagáo de ar, que elaboram caóti­
rio sahentar, por exemplo, a empresa da descoberta microbiana depois de 1870:
camente uma rede administrativa encarregada da saúde, para impor finalidades
controlo mais garantido do corpo, simplificagáo da medida preventiva, reforgo
sanitárias a cidadáos que se queriam «vigorosos»: o Estado «solidário» do final
do século xix que joga com a metáfora microbiana para lembrar como uma fór­ notável da sua eficácia. Mas é necessário também salientar as incapacidades
mula de encantamento repetido que a saúde de cada um deve garantir a de to­ que ela designa: microbios perturbadores, em todo o lado suspeitos e em todo o
dos, inventando as fórmulas quase contemporáneas de seguro de doenga e de lado perseguidos, perigos infiltrados ñas matérias mais secretas, obligando a
seguranga social e que propóe o investimento de cada um numa autovigiláncia um trabalho continuo sobre o que náo é visível nem sensível. Náo sáo apenas
com valor colectivo. as fronteiras entre o que está e o que náo está controlado que se deslocam, é ain­
da a visáo cada vez mais renovada do que constituí risco e infelicidade. Por ve­
A historia mostra, neste caso, já náo o deslocar da individualizagáo, mas o da
zes de uma forma obsessiva, como no caso das senhoras caridosas que brusca­
responsabilizagáo comunitária. Investimento durante muito tempo balbucíante,
mente se recusam a visitar os doentes, no final do século xix, por recearem a
limitado ás medidas de regulamentagáo dos tempos de epidemia, antes de se tor­
nar mais regular, sustido por uma administragáo, aquela que se revela minucio­ presenga de microbios desconhecidos. De uma forma extrema, também, como
a expectativa de seguranga nos nossos dias, que nunca foi táo certa, ao mesmo
samente no século xvm com os primeiros inquéritos sanitários nacionais. Inves-
tempo que suspeita como nunca, de esmiugadas, variadas e náo esperadas doen­
timentos também, durante muito tempo autoritário, que projecta a assisténcia gas.
como uma disciplina indiscutida antes de instaurar solidariedades mais contra-
tuais das quais os seguros do final do século xix sáo os primeiros exemplos. Mais profundamente, enfim, as mudangas incidem sobre o próprio sentido
Mas, para além das influéncias exercidas pelo imaginário corporal ou das dado ao projecto de manutengáo. A visáo tradicional de saúde dá a este projec­
to uma perspectiva estável, senáo transparente: conservar um bem que a doen­
que sáo exercidas pelos dispositivos colectivos, esta historia da manutengáo do
corpo faz existir uma objecto cuja importancia cresceu no decurso da nossa in­ ga ameaga. Trata-se de «manter a sua saúde». Mas uma visáo mais moderna já
náo se satisfaz com este tema estático. É necessário, pelo contrário, «melhorar»,
vestigagáo: o da fronteira entre o sáo e o insano. Uma fronteira suficientemen­
te móvel e suficientemente esclarecedora para se tornar um tema central do per- aperfeigoar um bem cujos limites se revelam mais abertos. Daí, os investimen-
curso histórico. Os limiares daquilo que é físicamente tolerado, o aparecimento tos totalmente inovadores desde o final do século xvm ñas promessas sanitárias:
do doentio ou do perigoso, deslocam-se com a civilizagáo. Os pomos de ámbar um futuro susceptível de mudar os corpos. A expectativa do «bem-estar», hoje
usados no século xvn para tomar mais sáo o ar respirado tomam-se ridículos no reforgada pelas práticas de consumo e pelas preocupagóes com a seguranga,
século xvm; o perigo que se impóe apesar do perfume e o saudável que já náo prolonga esta imagem de uma saúde indefinidamente perfectível. Ela instala,
se limita ao bom odor. O territorio do mórbido, a avaliagáo do risco, a avalia­ sem que a sua consciéncia seja sempre efectivamente clara, a ideia de um cor­
gáo da seguranga e os seus respectivos limites transformaram-se. A consciéncia po susceptível de transformagóes sem fim. É o «aprofundamento» de saúde que
do corpo transforma-se tanto quanto se aprofunda. Ela pode inflectir para sinais se toma um dever e já náo apenas a luta contra a doenga. Empresa da qual o pró­
prio custo está indefinido, que leva, entre outros, a uma actual crise das políti­
doentios, sensagóes durante muito tempo negligenciadas ou mesmo náo prova- cas de saúde.
das. A tísica, sempre descrita no século xvn no seu estado avangado, com ema­
grecimento agudo, opressóes intensas, «escarros purulentos», é muito mais des­
crita, no século xvm, nos seus sucessivos estados; as primeiras fases tornam-se
tanto mais anunciadoras quanto anodinas, incómodos imperceptíveis, tosses li-
geiras e espagadas, fadigas discretas ou negligenciadas. A estratégia preventiva
acha de vez novos objectos de investimento. No século xvm, ela liga-se aos si­
nais precoces das tísicas ao ponto de considerar as morfologías predisponentes.
Um universo de precaugóes ganha consisténcia, ainda que estas fossem objec-
tivamente ineficazes. Os indicadores da doenga conquistam-se ao que até entáo
náo despertava nenhuma inquietagáo. As práticas de previsáo e de manutengáo
encontram entáo o seu objecto nesta recomposigáo constante da fronteira entre
o sáo e o insano.

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279
ÍNDICE REMISSIVO

Abadía, 20, 21, 23, 32. Amianto, 265.


Absinto, 39, 185. Amido, 151, 157.
Acidentes, 23, 64, 124, 130, 157, 203- Antimonio, 84.
-205, 261, 265. Ar, sécs. xiii-xvi, 7, 41, 45, 48, 53, 54,
de viagáo, 260, 263. 57, 62;
de trabalho, 231, 261. séc. xvii, 84, 85, 89, 91, 95, 103;
Acto sexual, 19, 35, 50, 51, 85, 200. séc. xvm, 124,137,147,149,151-158;
Agúcar, 26, 30, 31, 37, 67, 113 séc. xix, 165, 166, 175, 213, 221.
Agua, 31, 32, 46, 69, 90, 121, 136, 143, Arquitectura, 93, 148, 155.
156, 200, 201, 203, 213, 218. Asfixia, 129, 147, 157.
de toilette, 104, 106, 107, 111. Asma, 274.
destilada, 89. Assepsia, 210, 221
mineral, 96, 207. Astrologia, 37-40, 43, 45, 71, 99, 101.
purgativa, 88, 206. Autocontrolo, 36, 64, 162, 248.
Aguárdente (água-de-vida), 31, 32, 72, Autodiagnóstico, 248, 249.
73, 88, 89, 115, 128, 129. Ave, 37, 41, 42, 43, 55, 78.
Alambique, 31, 72-73, 77, 86, 89, 130,
186. Bacilo, 151, 209, 212, 231.
Álcool, 177,181,183-186,190-192, 205, Bactéria, 213.
207, 259, 260. Bálsamo, 24, 25, 28, 89, 106, 153.
Alcoolismo, 185-186, 205-206, 227. Banho, 46, 47, 90, 91, 136, 175, 213.
Aleitamento, 145. de ar, 157.
Alergia, 274. de mar, 222, 223.
Alho, 26, 30, 33, 34, 66, 256. de sol, 222, 223.
Alimento, sécs. xm-xvi, 31, 33, 37, 40- frío, 133, 163, 157;
-42, 54, 56, 57, 59, 60, 61, 67; público, 47, 200.
séc. xvn, 78, 79, 86, 98, 103, 109; Barco, 33, 34, 44, 89, 150, 153.
séc. xviii, 130-142, 151; Batata, 213.
séc. xix, 193, 218. Bexigas (ver também vanóla), 92, 119,
Almanaque, 39, 41, 71, 98, 99. 120, 121, 151, 152, 161, 168.
Alquimia, 24, 31, 68, 72, 73. Burgués, 30, 33, 105, 115, 136.
Aluno, 19, 20, 145.

281
HISTORIA DAS PRÁTICAS DE SAÚDE ÍNDICE REMISSIVO

Cábelo, 36, 98, 145. Convulsáo, 128-129, 132. Espirites vitáis, 27, 36, 59-60, 109-110, Homem, 51, 52, 62.
Caga, 48, 89, 137, 139. Coragáo, 21, 47, 53, 77, 86, 127, 129, 129. Hospital, 18, 34, 42, 51, 52, 54.
Cadáver, 15, 17, 18, 45-46, 69. 148, 159. Estagáo, 19, 37-39, 63, 90, 93, 98. Humidade, 32, 37, 47, 62, 63, 72.
Café, 103, 105, 108-113, 111, 114-116. Cosmo, 35, 37, 38-40, 43, 70-71, 77. Estado, 74, 100. Humor, sécs. x i i i - x v i , 18, 19, 26, 27, 35,
Caldo (ou fervuras), 37, 61-62, 81, 99, Crianga, 78, 120, 122, 124, 129, 130, higienista, 154, 181. 38,39,43,45,48,50,53,55,71,72,73.
105, 138, 141, 196. 138, 142-147. providencia, 220, 232, 265. séc. xvn, 80, 82, 85, 86, 87-90, 95,
Calor, 32, 39, 40, 47, 60, 65, 72, 73, 98, Estimulante, 30, 34. 99-101;
133, 134, 148, 149, 154-155 192. Deboche, 47, 50, 162. Estómago, 31, 36, 60, 62, 63, 66, 78, 85- séc. xix, 206.
Caloria, 257 Dejecto, 37, 46, 86, 87, 201-202, 256. -86, 109, 128, 129, 141. Hypocras, 31, 32.
Camponés, 33, 34, 40, 99, 100. Desinteria, 92, 161, 211. Estufas, 47-48.
Campo, 64, 89, 91, 97-100, 102. Desporto, 226-227, 274. Etiqueta, 36, 64. Idade, 37-40, 144, 159.
Canalizagáo, 148-149, 174-175, 201. Despovoamento, 94, 102, 158. Exercício, sécs. xm-xvi, 35, 36, 47; avangada, 101, 200.
Cardiología, 161. Destilagáo, 25, 31, 48, 72-73, 77.130. séc. xvn, 89-90; de casamento, 101, 146.
Carne, 26, 29, 34, 37, 38, 43, 44, 46, 52, Devastagáo, 40, 65-66, 100, 141, 142. séc. x v i i i , 131, 132, 136-138, 142, primeira, 142, 143, 144, 145, 146.
53, 60, 61, 62, 63, 67, 79, 80, 138- Diabetes, 193, 250. 143, 160, 173-174. Igreja, 40, 41, 70, 100, 155.
-140, 142, 151, 177, 194, 196, 224. Dieta, 42, 62, 67, 71, 79, 99, 157. séc. x i x , 198-199, 226, 227-228. Indigestáo, 96.
Carnívoro, 138-140. Dietética, 56, 63, 64. séc. xx, 254. Infancia, 142-144, 145-146.
Catarro, 17, 18, 80, 185. Diftria, 212, 214. Exército, 120. Intestino, 36, 37, 99, 129.
Cavalo, 89, 100, 137, 152, 153, 194. Digestáo, 20, 26, 27, 37, 108, 109, 114, Expectoragáo (escarro), 23, 95, 151,152. Intimidade, 243.
Cérebro, 95,106,109,111,128, 206, 224. 125. Imundícies, 46.
Chá, 103,105,107,110,113-115,206,224. Dinamómetro, 171, 173. Fadiga, 19, 29, 32, 47, 62, 81, 102. Isolamento, 16, 53, 165, 212, 219.
Chaminé, 82, 148, 149, 150. Duragáo de vida, 43, 54, 146, 172, 185. Farinha, 141.
Charlatáo, 50, 68,122. Febre, sécs. x i i i - x v i , 48; Lavar, 90, 175, 211, 213.
Charope, 99. Educagáo, 36, 110, 138, 143. séc. x v i i , 81, 85, 87, 92, 94, 95; Legume, 62, 211, 213.
Chocolate, 103, 105, 114. Endemia, 92, 120, 144. Fecundidade, 102. Leite, 30, 35, 211.
Choques eléctricos (ou electrizagáo), Energia, 143, 159-160. Fígado, 185, 256 Lepra, 15, 17, 43, 49, 101, 121.
125, 126, 132, 138. Enfermidade, 51, 101. Flor, 58, 61. Leucemia, 261, 263.
Cidade, 44, 45, 51, 92-94, 95, 99, 101, Enterro, 16, 44, 110, 159. Fome, 40, 54-57, 99. Licor, 128-130.
200-203. Elite, sécs. x i i i - x v i , 35, 36, 65, 67, 70; Fossas de latrina, 92. de ouro, 23-35, 64, 67, 68, 69.
Cirurgiáo, 68, 69, 79, 80, 81, 82, 100, séc. x v i i , 79, 87, 89, 99, 111,114; Frió, 32, 38, 39, 48, 61, 64, 72, 73, 99. Limpeza, 47, 90, 199-200.
132, 145, 152, 157, 159. séc. xvm, 128, 136, 144, 146, Fruta, 31, 58, 68, 79, 84, 99, 211. Longevidade, 29, 43, 81, 206.
Citrino, 79, 107. 148, 156-158; Fumador, 250.
Clérigo (ou padre), 36, 40, 43, 66, 145. séc. xix, 212. Magreza, 56, 79, 224.
Clima, (ou condigóes atmosféricas), 38, Elixir, 7, 24, 67, 88, 89, 98, 99, 104, 120, Gangrena, 17, 24, 50, 80. Malária, 92, 94,176.
40,94,95,97,138,139,143,145,166. 193, 205-206. Ginástica, 227, 173, 198-199,.228. Manteiga, 61, 78, 90, 158.
Cemitério, 44, 156, 15 Embriagues, 16, 36, 225. Goludice, 41, 55. Máquina corporal, 72, 73, 74, 77, 81-84,
Cocaína, 208. Epidemia, sécs. x i i i - x v i , 46, 48, 56, 66; Gordura, 81, 115, 151, 256, 257. 86, 95.
Colégio (escola), 19,110. Séc. XVII, 84, 91, 92; Gosto, 25, 26, 28, 43, 62, 64. Mar, 222, 223.
Colesterol, 249, 250. Séc. XVIII, 120, 121, 122, 144, 153- Gráo, 33, 48. Marinheiro, 34, 73.
Cólera, 166, 215, 220. -154, 158-159; Gravidez (parto), 30, 37, 144, 145, 158, Matadouro, 45, 168.
Confeito (ou doce), 27, 103, 104. Séc. XIX, 210, 211. 212, 249, 274. Médico de si mesmo, 63-65, 248-249.
Consciencia Corporal, 62-65, 87. Séc. XX, 239-240, 243, 247, 249. Médico, sécs. x i i i - x v i , 34, 40, 42-44, 50,
Contágio, 49, 50, 51, 52, 53, 106, 121, Equitagáo, 137, 152, 154. Hálito, 50, 66, 85. 63, 64, 66, 68, 73, 74, 78, 79;
125, 151, 155, 211, 247-249. Esgoto, 156, 166, 167, 201, 217. Hemofilia, 246, 266. séc. xvn, 78, 79;
Contaminagáo, 49, 50, 51, 52, 53. Espago, 29, 90, 158, 159-160. Hemorroidas, 19, 206. séc. x v i i i , 128;
Contracepgáo, 102, 146. Especiarías, 25-34, 43, 45, 55, 67, 103- Hepatite, 246, 247, 274. séc. xx, 247, 256, 264.
Conversagáo, 97, 106, 113, 115. -107, 114, 116. Higiene pública, 16, 216, 218, 220, 233. Mendigo, 47, 65, 66, 99.

282 283
HISTORIA DAS PRÁTICAS DE SAÚDE
ÍNDICE REMISSIVO
Miasma, 95, 210, 217. Pó, 214.
Microbio, 92, 209, 210, 212, 214-216, Pobre, sécs. x i i i - x v i , 34, 57, 64, 65-67; séc. XX, 239, 243, 245, 246, 265, 266, Transpiragáo, 47, 48, 79, 84-86, 87, 88-
229, 250. 269. -90, 94;
séc. x v i i , 98, 99, 101
Miséria, 65, 99. Sal, 26, 41, 100. Insensível, 87, 90, 94.
séc. xix, 193, 205, 230.
Moral, 15, 21, 129. séc. xx, 248, 264. Saúde pública, 223, 242. Trigo, 33, 140, 141.
Mortalidade, sécs. x i i i - x v i , 44, 54; Seca, 39. Tuberculose (ver tísica),
Podridáo, 15, 18, 21, 38, 45, 46, 49, 50,
séc. x v i i , 92; 56, 67, 72, 73, 97, 99, 100, 187. Seguranga (ou seguros), 115, 162; Tumor, 186, 210, 227, 228, 229, 230,
séc. xix, 184, 211. Polícia sanitária, 51, 54, 55, 92. Acídente, 204, 224. 242.
séc. xx, 240. Poro, 45, 61, 82, 89, 90, 91, 94. Doenga, 162, 230-232.
Mulher, 50, 58, 62, 96, 102, 249. Povo, 65, 66, 93, 98. Seguranga Social, 232, 271. Urina, 19, 30, 86.
Previsáo, 19. Seropositividade, 243. Útero, 96.
Natalidade, 56, 101. Progresso, 102. Sida, 239, 240-244.
Ñervos, 27, 67, 125, 128-130, 132, 138, Prostituigáo, 51-52, 101, 243. Sífilis, 49, 51-54, 182, 186-187, 188, Vacas loucas (doenga das), 265, 268.
139, 142, 144, 152, 158. 191, 242. Vacina, 168-170, 212, 274.
Protecgáo social, 262.
Nevoeiro, 37, 94, 161. Prisáo, 101. Silhueta, 56, 77, 224. Vagabundo, 53, 91, 101.
Nobreza, 33, 35, 38, 40-41, 62,113, 136. Psicología, 229-230. Sobriedade, 35-37, 39, 59-61, 62, 64, 70, Vapor, 52, 53, 86, 87, 95-97, 197.
Nudez, 244. 98, 200. Varióla (ver bexigas), 92, 119, 120, 121,
Pulmáo, 80, 81, 86, 129, 193, 197-199.
Purga, 26, 27, 36, 45, 79, 81, 84, 87, 88, Soldado, 41, 50, 67, 91, 101. 151, 152, 161, 168.
Obesidade, 55, 224. Sol, 83, 222, 223. Varióla (ver também bexigas), 91-94,
91, 96, 97, 101, 206.
Objecto protector, 20, 23, 35, 64, 68, 89. Sono, 36, 78, 83, 87-88, 199, 254. 121-125, 152, 210, 214
Purificagáo, sécs. x i i i - x v i , 19, 20, 25, 27,
Ociosidade, 66, 101. 28, 38, 40-44, 72-74; Superstigáo, 69, 87, 88. Velhice, 24, 39, 83.
Oculto, 22, 25, 71, 72, 81, 89, 90. séc. x v i i , 79, 81, 82, 87, 97, 99, 100, Vendedor, 97, 98, 100.
Odor (ou cheiro), 19, 21, 25, 28-29, 45, 1 1 0 - 112 ;
Tabaco, 103, 107,110-115, 250, 258, 259, Veneno, 19, 21, 29, 32, 44, 45, 50,53, 85,
53, 64, 67, 93, 94,149,150,153,159, 260, 274. 91, 96, 129.
séc. xvm, 122-123, 132, 133;
217 séc. xix, 198. Talho, 46, 177, 196. Veneno, 69, 70.
Oficina, 153, 158, 165. séc. xx, 256. Temperatura, 19, 38, 39, 40, 60, 64. Vento, 96.
Operário, 90, 159. Tensáo arterial, 249, 250. Ventre, 17, 85, 96, 128.
Óleo, 23, 27, 28, 41. Quarentena, 54, 92. Teste de despistagem, 243, 245, 266. Verme, 17, 213.
Ouro, 21, 23-25, 27, 67, 68, 69. Teriaga, 32, 33. Vestuario, 52-53, 85-86, 89-92.
Ovo, 61, 79, 224. Raiva, 96, 214. Termalismo, 97, 222. Viagem, 93.
Oxigénio, 159, 160. Tifóide, 121, 209, 220. Vinagre, 67, 79, 151.
Regime, sécs. x i i i - x v i , 18, 35-43, 54-57,
61-64, 66, 67, 71; Tísica, 96, 151-154, 160, 193, 197, 206. Vinho, 24, 27, 30-32, 36, 39, 41, 59, 63,
Paludismo, 94. Trabalho, 200-205 67, 73, 78, 84-86, 88, 89, 99,109,113.
séc. x v i i , 78-80, 98-100;
Pantano, 54, 92. séc. xx, 274. Transfusáo sanguínea, 82, 83, 25, 245, Virus, 121, 169, 207, 243.
Páo, 43, 55, 57, 61, 66, 141, 142. 246, 266, 269. Vómito, 37, 84, 85.
Rejuvenescimento, 28, 31, 82-84.
Paraíso terrestre, 28, 60, 61. Reliquia, 20, 26, 27, 69, 70.
Paralisia, 96. Repouso, 48, 91.
Parasita, 49, 50. Rio, 28, 45, 46, 93, 201.
Pele, 10, 46-48, 86, 94, 199-200, 213. Risco, 18, 80-82, 84.
Peito, 83, 85, 86, 96. Roupa, 88, 90-91.
Peixe, 26, 30, 31, 42, 43, 57, 61-63. Rúa, 44, 46, 57, 65, 92.
Perfume, 21, 23, 25, 28, 29, 44, 53, 103,
106-107, 111. Sabor, 25, 28-32, 38, 78.
Peso do corpo, 80, 87, 88, 228, 250. Sangria, 15,19, 20, 38, 39, 45, 80-82, 84,
Peste, 43-48, 53-54, 65, 66, 68, 70, 90- 91, 97, 100.
-94, 97, 101, 121,152. Sangue, sécs. x i i i - x v i , 15, 39, 40, 55, 68.
Pimenta, 24, 28-30, 43. séc. x v i i , 78-84, 88, 97, 99.

284
285
ÍNDICE

Prefácio................................................................................................ 7
Introdugáo.............................................................................................. 9

1.a PARTE — OBEDECER AO COSMOS — Séculos XIII a XVI

Capítulo I — A forga dos contactos...................................................... 15


1. Uma doenga exemplar...................................................................... 15
Do mal assinalável ao mal obscuro.............................................. 16
Analogia do cadáver.......................................................................... 17
Os humores formam o corpo.......................................................... 18
2. As jóias da saúde............................................................................... 20
O contacto protector.......................................................................... 21
Pó de pérola e licor de ouro............................................................. 24
3. Especiarías e aromatizantes............................................................ 25
As especiarías e a purificagáo......................................................... 25
Uma ressonáncia mítica................................................................... 27
A forga do gosto................................................................................ 29
A bebida «extrema».......................................................................... 30
Uma valorizagáo social.................................................................... 33

Capítulo II — A ordem do M u n d o....................................................... 35


1. O Regime e os astros....................................................................... 35
«Moderagáo» e escolha alimentar.................................................. 36
As referencias cósmicas................................................................... 37
A virtude das patuscadas.................................................................. 40
Os dois polos de defesa: densidade e apuramento...................... 42
2. Flagelos e corpos abertos................................................................. 44
O veneno do ar.................................................................................. 44
Os corpos porosos............................................................................. 45

287
HISTORIA DAS PRÁTICAS DE SAÚDE ÍNDICE

C apítulo III — O regim e co n tra o cosm os.......................................... 49 C apítulo II — P lan tas p u rificadoras e consum os aprazíveis 103
1. O ar ou o contágio?........................................................................... 49 1. A «suavizagáo» dos arom as............................................................. 103
O primeiro principio contagioso..................................................... 50 Compotas e xaropes.......................................................................... 104
A escolha do a r................................................................................... 53 Diversidade de perfumes.................................................................. 106
2. A fome abranda?................................................................................ 54 2. As plantas espirituais......................................................................... 107
O peso considerado excessivo........................................................ 54 A fava do Levante............................................................................. 107
A valorizagáo «mínima» do alim ento............................................ 56 A «pitada» e o fum o.......................................................................... lio
3. Moderagáo e amor pela vida........................................................... 57 O resultado sobrepóe-se ao g o sto................................................... 112
A inquietagáo e o efém ero............................................................... 58 3. Do remédio ao agrado...................................................................... 113
Uma temperanga profana................................................................. 59 Consumos instituidos........................................................................ 114
Presenga do regime alim entar......................................................... 61 O excitante e a sociabilidade.......................................................... 115
A medicina de si m esm o.................................................................. 63
4. Um regime dos pobres?................................................................... 65 3.a PARTE — RESISTIR E ENDURECER — Século XVIII
A imagem do pobre........................................................................... 65
Alimentos sórdidos............................................................................ 66 C apítulo I — A forga das fib ra s ............................................................. 119
5. As vias de uma libertagáo................................................................ 67 1. A «coragem» de inocular................................................................. 120
A denuncia das jóias protectoras..................................................... 68 Uma imagem da doenga................................................................... 121
Uma libertagáo do cosm os............................................................... 70 A querela da inoculagáo e oproselitismo....................................... 122
6. Analogías «Mecánicas».................................................................... 72 Um gesto sim bólico.......................................................................... 123
O alambique e a destilagáo.............................................................. 72 2. Um corpo feito de fibras.................................................................. 125
A «república» do corpo.................................................................... 73 A fibra e o hum or.............................................................................. 125
As formas nervosas da inquietagáo............................................... 128
2.a PARTE — EVACUAR OS HUMORES — Século XVII
C apítulo II — E n d u re c e r......................................................................... 13]
C apítulo I — M ecánica corporal e evacuagao................................... 77 1. A consolidagáo e o progresso.......................................................... 131
1. A regulagáo mecánica........................................................................ 78
A evacuagáo e o enfraquecimento................................................. 132
O regime alimentar ou a evacuagáo?............................................. 78
A natureza e o frió............................................................................. 133
A forga e a san g ria............................................................................ 80
Degeneragáo e progresso ................................................................ 134
Máquina e regulagáo......................................................................... 82
O exercício e a fibra.......................................................................... 136
2. Fluxos mais diversos, fluxos mais su b tis...................................... 84
2. A alimento rú stico ............................................................................. 138
A diversifícagáo dos fluxos.............................................................. 84
Frugívoros e carnívoros................................................................... 138
As evacuagóes invisíveis.................................................................. 86
Os feculentos do p o b re .................................................................... 140
Do elixir á roupa interior................................................................. 88
3. Uma pedagogía reactiva................................................................... ] 42
3. A graduagáo das doengas................................................................. 91
O reforgo gradual.............................................................................. 142
Epidemia e representagáo «im óvel».............................................. 91
Idades e vida....................................................................................... 144
O formigueiro do a r .......................................................................... 94
O «estado» dos vapores................................................................... 95
4. A purificagáo dos humildes.............................................................. 97 C apítulo III — As energías do a r ........................ ................................. 147
A saúde dos alm anaques.................................................................. 98 1. Renovagáo do a r............................................................................. 147
Um modelo de pensam ento............................................................ 100 As «com odidades»............................................................................ 148
O peso da vida.................................................................................... 102 O sopro das multidóes...................................................................... 149

288 289
HISTORIA DAS PRÁTICAS DE SAÚDE ÍNDICE

2. Prevenir a tuberculose...................................................................... 151 4. O arcaísmo do elixir....................................................................... 205


A morfologia inquietante................................................................. 151 As pog5es publicitárias.................................................................... 206
O ar preventivo da tísica.................................................................. 153 A ambiguidade dos tónicos.............................................................. 207
3. O triunfo do espago e do ar.............................................................. 154
A diferenga dos lugares.................................................................... 154 C apítulo III — Da higiene dos lugares á higiene m e n ta l............... 209
Os médicos da prevengáo................................................................ 156 1. «Doengas evitáveis».......................................................................... 210
Os médicos do social....................................................................... 158
Os perigos invisíveis........................................................................ 210
O ar que «prolonga a vida»............................................................. 159
Uma invasáo?.................................................................................... 212
4. Garandas e previsoes........................................................................ 160
Os microbios e os hábitos................................................................ 214
Calcular o risc o ................................................................................. 161
2. O espago «sanitário»........................................................................ 216
A seguranga e o operário.................................................................. 162
O «génio sanitário»........................................................................... 217
4.a PARTE — A FO R £A DE SI E A FO R £A DOS OUTROS Habitagáo e iniciativas públicas...................................................... 219
— Século XIX 3. O «enfezado» e o «encorpado»....................................................... 221
Elegáncias e desnudagóes................................................................ 222
C apítulo I — Espado íntim o e espago público................................... 165 Os «graus supremos de saúde extrem a»........................................ 225
1. O Estado «industrial» e a iniciativa pública................................. 165 A assisténcia e o enfezado............................................................... 227
Decisóes de govem o......................................................................... 166 4. Concorréncia e solidariedade, psicología do final do século 229
A vacina e a rede .............................................................................. 168 O seguro de doenga........................................................................... 230
2. A forga vital e o trabalho.................................................................. 170 O apertar da rede............................................................................... 232
A for 5a dos citadinos......................................................................... 171 Concorréncia e prevengáo psicológica ......................................... 234
A «forga» orgánica............................................................................ 173
3. As primicias do conforto.................................................................. 174 5.a PARTE — BEM-ESTAR? — Século XX
Os primeiros objectos do «conforto»............................................. 174
Civilizagáo e «forga» alim entar...................................................... 176 C apítulo I — B em -estar?........................................................................ 239
A saúde rom ántica............................................................................. 177
1. A sida, a prevengáo e a responsabilidade...................................... 240
O cenário do mais importante flag elo ........................................... 240
C apítulo II — A in vengáo d a e n e rg ia ................................................... 181
«Responsabilizar»............................................................................. 242
1. O espectro de uma degenerescéncia.............................................. 181
Educar.................................................................................................. 244
As hereditariedades insanas............................................................ 183
Zonas de som bra............................................................................... 245
Flagelos degenerativos e moral preventiva.................................. 185
2. A saúde «indefinida»......................................................................... 248
Protecgáo de si, protecgáo do E stad o ............................................ 187
Da moralizagáo das doengas á pedagogia.................................... 189 «Faga o seu autocontrolo»............................................................... 248
2. A energia que protege........................................................................ 192 Dos factores de risco á individualizagáo genética....................... 250
O alimento, o pulmáo e a energia................................................... 193 Uma saúde «consum ida»................................................................. 251
Trabalho e carne de ca v alo ............................................................. 194 As exigencias do bem -estar............................................................ 253
As metamorfoses da respiragáo...................................................... 197 Uma combinagáo de m odelos......................................................... 256
Um principio «total»......................................................................... 199 3. O défíce político................................................................................ 258
3. A energia, a cidade, o trabalho........................................................ 200 Um conflito de liberdades................................................................ 259
A c idade drenada............................................................................... 201 A renovagáo dos riscos e a responsabilidade................................ 261
Do trabalho regenerado ao trabalho «protegido»........................ 203 Um conflito de solidariedades........................................................ 262

290 291
HISTORIA DAS PRÁTICAS DE SAÚDE

Capítulo II — Processos, reformas, responsabilidades


As in terrogares de h o je.................................................... 265
1. Processos novos, modelos velhos................................................... 266
2. Das «catástrofes» sanitárias ao imbróglio judiciário................... 269
3. As despesas de saúde, reforma im possível?................................. 271
4. Uma cultura com a doenga da desuniáo........................................ 273

CONCLUSÁO.................................................................................................. 277

ÍNDICE REM ISSIVO....................................................................................... 281

292
IBlixires, pogoes, dietas alimentares — a
arte de prolongar a vida tem as suas raízes
mais tundas na tradigáo. Tratar de si é um
labor constante em todas as épocas, mesmo
se a higiene contemporánea lhe
revolucionou os principios. Este livro
aborda as formas dessa vigilancia do corpo.
a sua presenta, enfim, a sua articulagáo com
a defesa das cidades e a lenta concretizagao
das medidas públicas de saúde.

Jeo rg es Vigarello. professor da


Universidade Paris-V e director de cursos na
École des Hautes Études en Sciences Sociales,
é autor de diversos trabalhos sobre as
representagoes do corpo, nomeadamente
O Limpo e o Sujo (1988)
e Historia Ja Violando (1998).
Neste estudo, ele mostra como a fronteira
entre o sáo e o doente se desloca
ao longo dos tempos.
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