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A História de Mitra

2008 - Este
estudo buscará enfocar o tema Mitra em cinco partes: a) as origens antigas do
Deus; b) o culto e a liturgia do mitraísmo; c) a derrota frente ao cristianismo; d)
resquícios mitraícos e sua influência sobre a maçonaria e e) como seria um mundo
moderno mitraíco à guisa de conclusão. Utilizamos, para este trabalho,
enciclopédias e diversos textos da Internet, principalmente o texto de Jean-Louis
dB no “La parole circule”.

I – As Origens Antigas do Deus Mitra.


Existe muita controvérsia sobre a etimologia de Mitra. Na Índia védica, Mitra
significava ‘amigo’, no persa avéstico era traduzido como ‘contrato’. Esta última
definição é a que prevalece nos nossos dias, sendo pois Mitra a personificação do
contrato. Segundo os etimologistas, Mit(h)tra é composto de um sufixo
instrumental – “tra” – que significa instrumento de trabalho e de um prefixo “mi” que
é encontrado em todas as línguas indo-européias sob diferentes raízes. “Mei” pode
significar ainda “lugar, encontro”. Em sânscrito “mitram” significa “amigo”. Mitra
significando, pois, ‘contrato’ e ‘amigo’ não se opõem realmente, visto que não
existe amizade sem um engajamento mútuo. Não se fala em ‘pacto de amizade’?
Mitra se encontra sob diferentes ortografias: Mihr, Meher, Meitros, etc.
Os trabalhos clássicos de Mircea Eliade e principalmente os de Georges Dumézil
sobre a Índia védica demonstram uma estrutura fundamental da sociedade e da
ideologia das diferentes sociedades indo-européias. A sociedade é dividida em três
classes: sacerdotes, guerreiros e agricultores que correspondem a uma ideologia
religiosa trifuncional: a função da soberania mágica, da sacrificadora e da jurídica
(Varuna-Mitra, Rômulo-Júpiter e Odin); a função dos deuses da força guerreira
(Indra, o etrusco Lucumão-Marte e Thor) e, finalmente, a das divindades da
fecundidade e da prosperidade econômica (os gêmeos Nâsatya ou os Asvins,
Tatius [e os sabinos]-Quirino e Freyr).
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Encontra-se o Deus Mitra no Panteão Védico da Índia desde 1380 a. C. Este
Proto-Mitra estaria associado a Varuna e forma uma dualidade antitética e
complementar. Mitra seria a face jurídico-sacerdotal, conciliadora, luminosa,
próxima da terra e dos homens enquanto Varuna seria o aspecto mágico violento,
terrível e tenebroso. Mitra torna-se, pois, a garantia do compromisso, a força
deliberante, enquanto Varuna o respeito ao bom direito pela força atuante. A
antítese Mitra-Varuna encontra-se também em Roma com a oposição dos dois
primeiros reis: Rómulo (Varuna-Júpiter), semi-deus violento e Tatius (ou Numa-
Mitra), ponderado e sábio, instituidor das questões sagradas e das leis, ligado
igualmente aos deuses da fertilidade e do solo. Mitra é o Deus soberano sob seu
aspecto racional, claro, regrado, calmo, benevolente, sacerdotal. Seu papel é
secundário quando esta isolado de Varuna, mas compartilha com este todos os
atributos da soberania. O Sol é seu olho, nada lhe escapa. A conclusão de um
acordo se fará através de um sacrifício ao Deus Mitra, mas um sacrifício incruento,
pelo menos no início, pois, mais tarde, terminará por aceitar sacrifícios sangrentos.
Esta evolução é metaforizada pelo papel de Mitra na história dos Deuses, pois
terminará por ser associado à morte do Deus Soma. Na origem, Mitra recusa-se a
participar da morte ritual, sendo amigo de todos, pois prestará sua ajuda para, no
final, ser um ator ativo na morte ritual.
O Mitra avéstico, encontrado na religião iraniana, é o Mitra mais conhecido e
divulgado e precede o monoteísmo zoroastriano. A influência da antiga religião
iraniana para a formação religiosa do Ocidente é bastante significativa: o tempo
linear, a articulação dos diversos sistemas dualistas – sejam cósmicos, éticos ou
religiosos -, o mito do Salvador; a elaboração de uma escatologia ‘otimista’ que
proclama o triunfo do Bem sobre o Mal; a salvação universal; a doutrina da
ressurreição dos corpos; certos mitos gnósticos; a mitologia dos Magos etc.
Na religião dos aquemênidas, a oposição entre Aúra-Masda (o Bem) e os daêvas
(o Mal) sempre foi presente, já que na Índia védica aconteceu o contrário: no
conflito entre os devas e os asura, aqueles foram vencedores, pois tornaram-se os
verdadeiros deuses, ao triunfarem sobre as divindades mais arcaicas – os asura –
que nos textos védicos são considerados figuras ‘demoníacas’. Processo similar,
ainda que com sinal trocado, aconteceu no Irã: os antigos deuses, os daêvas,
foram demonizados (ai, dos perdedores!). Eliade argumenta que “pode-se
determinar em que sentido se efetuou essa transformação: foram sobretudo os
deuses de função guerreira – Indra, Saurva, Vayu – que se tornaram daêvas.
Nenhum dos deuses asura foi ‘demonizado’. Aquele que, no Irã, correspondia ao
grande asura proto-indiano, Varuna, torna-se Aúra-Masda”.
Aqui, a antítese Varuna-Mitra é substituída pelo duo Mitra-Aúra sendo que a
função continua a mesma. Mitra é um deus da luz, da aurora, guardião que socorre
as criaturas, onisciente e vitorioso. Aúra, tornando-se progressivamente Aúra-
Masda, transforma, também, a significação de Mitra, metamorfoseando-o
paulatinamente num deus guerreiro. Mitra continua deus do contrato e do acordo e
assegura uma ligação entre os diferentes níveis da sociedade da qual é garantidor
da ordem, representada pelo gado e a fecundidade. Interessante notar que aquela
trilogia de Dumézil – sacerdote, guerreiro e agricultor – começa a ser baralhada.
Este Mitra avéstico, mais do que o védico, beneficiará os sacrifícios, notadamente
os do Touro. Seu papel de deus guerreiro, contudo, crescerá à medida que Aúra-
Masda fortifica e torna dominante o seu lugar no Panteão dos Deuses. Tal
‘evolução’ é lógica, pois como deus garantidor da ordem, sempre estará ao serviço
do respeito da lei e do contrato para aqueles que o reverenciam. Com o tempo
metamorfoseia-se num deus violento e cruel. É um deus solar com mil olhos e
orelhas e, como vimos, um deus da fertilidade dos campos e dos rebanhos. Atua,
como Hermes, no papel de psicopompo, ou seja, condutor das almas dos mortos,
pois como senhor dos Céus conduz as almas até o Paraíso.
Mitra foi adorados por quase todos os soberanos persas: Ciro o reverenciava; sob
Dario houve um breve eclipse, pois este, segundo alguns especialistas, era
partidário de Zoroastro; e reaparece com Artaxerxes. Na cerimonial da realeza
persa, o dia de Mitrakana era o único dia em que o rei persa tinha o direito de
embriagar-se, numa clara analogia com a morte védica.
Mitra retorna ao primeiro plano como deus do sol, dos juramentos e dos contratos,
sob a influência dos Magos. Estes foram uma classe de sacerdotes dos antigos
medas com um papel sacrificial importante e que entre os gregos antigos gozavam
de uma reputação de serem depositários de uma sabedoria esotérica. No Panteão
dos Deuses avésticos, Mitra seria filho de Anihata ou Anahita, a gênia feminina do
fogo, uma espécie de Virgem Imaculada, Mãe de Deus. É a única figura feminina
associada a Mitra, pois este permanecerá celibatário por toda a vida, exigindo de
seus admiradores a prática do controle de si, a renúncia e a resistência a toda
forma de sensualidade. Vale salientar que o maior Mithraeum (templo) construído
em Kangavar na Pérsia Ocidental era dedicado a esta deusa. Segundo reza o Mihr
Yasht, o extenso hino em honra a Mitra da saga religiosa persa, a história de Mitra
é a seguinte: após ter sido promovido ao panteão dos Grandes Deuses, Aúra-
Masda mandou construir-lhe uma mansão no cimo do Monte Hara, ou seja, no
mundo espiritual, além da abóbada celeste. Postou-se aí como o protetor de todas
as criaturas e não era adorado como todos os outros deuses menores com preces
rotineiras. Aúra Masda consagrou Haoma como sacerdote de Mitra que o adorava
e lhe oferecia sacrifícios. Aúra Masda cria e prescreve o rito próprio ao culto de
Mitra no paraíso. Mitra, assim, retorna à terra para o combate contra os daêvas
sem, contudo, conseguir vencê-los. Somente quando Mitra se une a Aúra Masda o
destino dos daêvas será selado. Mitra será, a partir daí, adorado como a luz que
ilumina todo o mundo.
No tocante aos babilônios, estes incorporarão o Deus Mitra no seu Panteão e, em
troca, introduzirão, na religião persa, seu culto solar, tendo a astrologia como um
dos seus pontos mais fortes. Convém salientar que a cultura judaica sofrerá uma
influência marcante do dualismo zoroastriano a partir do cativeiro em 597 a.C. No
judaísmo primordial, Iavé era concebido como o único criador do Mundo e do
Universo, ou seja a totalidade absoluta do real, contendo inclusive o mal. O
dualismo Iavé – HaShatan advém de uma crise espiritual que se seguiu ao
cativeiro babilônico, personificando aspectos negativos da vida, sob a forma de
Satã, que se tornará progressivamente também eterno. Satã seria, então, o fruto
de uma cissão da imagem arcaica de Iavé combinado com as doutrinas dualistas
iranianas. Esta tradição impactará fortemente o cristianismo nascente.
O Mitra irano-helenístico tem a sua gênese com as conquistas de Alexandre e a
queda do império persa durante o ano de 330 a. C., pois Alexandre e 10.000 de
seus soldados macedônios se casam com mulheres persas e mais, dentro do ritual
persa. Sabe-se que alguns destes macedônios e seus filhos, iniciados pelas mães
persas, introduziram o culto de Mitra na Macedônia e na Grécia. É deveras
conhecido que a adoração deste Deus Mitra, advindo do inimigo persa, nunca
obteve uma grande popularidade na Grécia, apesar de continuar a manter a
influência junto à aristocracia meda e iraniana. Tanto assim que o nome Mitrídate
(dado a Mitra) é encontrado em diversos reis partos, do Bósforo e do Ponto
Euxino. A arqueologia tem descoberto diversos templos – Mitreas – na Armênia.
Apesar da pouca influência junto ao povo grego, a religião iraniana entrou num
vasto movimento sincrético junto à cultura helênica. Mitra era adorado em todo o
império de Alexandre e os Magos continuavam a ser os sacerdotes sacrificadores.
O culto repousava sobre uma cronologia escatológica de 7.000 anos, cada milênio
sendo governado por um planeta. Daí advém a série dos 7 planetas, dos 7 metais,
das 7 cores etc. Durante os 6 primeiros milênios, Deus e o Espírito do Mal
combatem pela supremacia e, quando o Mal parecia vitorioso, Deus enviou o Deus
solar Mitra (Apolo, Hélio) que domina o sétimo milênio. No fim deste período
setenal, a potência dos planetas cessa e um incêndio universal recobre o mundo.
Curioso nesta época é a biografia do rei Mitrídate VI Eupator, rei do Ponto, anterior
ao nascimento de Cristo. Seu nascimento foi anunciado por um cometa, um raio
caiu sobre o recém-nascido, deixando-lhe uma cicatriz. A educação deste rei é
uma longa série de provas iniciáticas. É visto durante sua coroação como uma
encarnação de Mitra. A biografia real é muito próxima do Natal cristão. Ele será o
último rei de uma longa lista de grandes reis Mitridates. Conquistou quase toda a
Ásia Menor por volta de 88 a. C., mas foi derrotado pelos romanos em 66.
Provavelmente aliou-se aos piratas Cilicianos dos quais falaremos a seguir. Foi,
também, o primeiro monarca a praticar a imunização contra os venenos, a qual,
segundo o Aurélio, se adquire por meio da repetida absorção de pequenas doses
deles, gradualmente aumentadas, daí o nome mitridatismo.
A grande popularidade e o apelo do mitraísmo como uma forma refinada e final do
paganismo pré-cristão foi discutida pelo historiador grego Heródoto, pelo biógrafo,
também grego, Plutarco, pelo filósofo neoplatônico Porfírio, pelo herético gnóstico
Orígenes e por São Jerônimo, um dos pais da Igreja.
O contato com o mundo helênico desenvolvia-se essencialmente a partir de
Comageno na Ásia Menor. Daí surgem os primeiros testemunhos sobre Mitra,
como um Deus dos Mistérios no primeiro século a. C., curiosamente, no seio dos
piratas Cilicianos em luta contra os romanos. É dentro deste contexto de
resistência e luta que Mitra pode tornar-se um Deus iniciático. Plutarco diz que
celebravam em segredo ‘os mistérios de Mitra’. Sua capital era Tarso, onde
nasceu S. Paulo, e Perseu era o seu Deus fundador. O símbolo da cidade era o
combate do Leão com o Touro. Paralelamente a isto, os Magos medas se fixaram
na Ásia Menor e na Mesopotâmia, infiltrando-se cultural e religiosamente no
mundo helênico, principalmente, como vimos, na aristocracia. Cita-se que o rei
Tiridate quando veio a Roma para ser coroado rei da Armênia por Nero, dirigiu-se
ao imperador chamando-o por Mitra (Deus Sol).
O Mitra romano faz sua ‘rentrée’ no Império através dos Mistérios. O termo
“mistério” possui um sentido muito preciso. Os mistérios gregos, e depois romanos,
foram numerosos: Dionísio, Elêusis, Cibele, Átis e Deméter. Podem ser ainda
citados os de Ísis, Sarápis, Sabázios, Júpiter Doliqueno etc. Uma certa bruma
enigmática envolvia todos estas cerimônias dos mistérios, mas o comum entre
eles, era o aspecto ‘solar’, apesar de todos esconderem sua identidade essencial.
Desnecessário dizer que, por serem os mistérios, secretos e ocultos, poucos
documentos escritos chegaram até nossos dias. O pouco que se sabe sobre eles
advém da patrística cristã que, na ânsia de combater o mitraísmo, terminou por
nos legar uma série de descrições sobre o mesmo. Alguns autores gauleses
chegam a afirmar que assim como a maçonaria foi a religião clandestina da IIIª
República Francesa, o mitraísmo sustentava subterraneamente a ideologia da
Roma Imperial.
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A inoculação do veneno mitraíco no seio do Império, segundo Plutarco (Vita
Pompeu), foi o transplante, feito por Pompeu em 67 a. C., de 20.000 prisioneiros
Cilicianos (uma província na costa sul oriental da Ásia Menor) que praticavam os
“ritos secretos” de Mitra. Daí, a epidemia mitraíca se alastrou por todo o mundo
romano, reforçada ainda pelos múltiplos contatos das tropas de ocupação romana
com as outras culturas mitraícas, tendo atingido o seu zênite no século III, quando
começou a travar uma luta de vida e morte com o cristianismo. Tanto assim que do
século II ao IV da nossa era, os Mithrae (ou Mithraeum no singular) – templos
dedicados ao culto do deus – chegaram a ser mais de 40 em Roma. Um dos
maiores templos construídos podem ser encontrados hoje nos subterrâneos da
Igreja de São Clemente, perto do Coliseu. Esta adoração não se restringia
somente à capital do Império, mas principalmente às cidades portuárias da atual
Itália: Óstia, Antium, no mar Tirreno; Aquiléia, no Adriático, Siracusa, Catânia,
Palermo etc. Paralelamente, a propagação se dá na Áustria, na Germânia, nas
províncias danubianas, na Polônia, na Hungria e Ucrânia e num movimento de
volta, nas províncias da Trácia e da Dalmácia, num retorno à Grécia e a
Macedônia. No terceiro século, encontram-se traços mitraícos na Criméia, no
Eufrates, no Egito e sobretudo no Maghreb. Curioso é que a Espanha e Portugal
sofreram pouquíssima influência. A Gália oriental, renana e belga, pagou o seu
tributo, assim como também a Aquitânia. Encontram-se vestígios na região
parisiense, como também em Boulogne sur Mer. Na Inglaterra, a concentração se
dá em Londres e na região norte, ao longo do muro de Adriano, até Canterbury.
Locais de adoração mitraíca foram encontrados também, na Bretanha, na
Romênia, na Alemanha, na Bulgária, na Turquia, na Pérsia, na Armênia, na Síria,
em Israel etc. No final do século III, Mitra era adorado da Escócia à Índia,
chegando até a oeste da China, onde era conhecido como Amigo, nome que indica
uma filiação védica.
Mitra passa a ser representado como um general militar. É o Amigo do homem
durante a sua vida e seu protetor contra o mal após a sua morte. Mitra não é só
propagado pelos militares romanos como também pelos funcionários,
comerciantes, artistas, meio jurídico e financeiro e, principalmente nos círculos do
conhecimento. Ao contrário da Grécia, penetra nos meios mais modestos e
populares. Por mais de trezentos anos, os romanos adorarão Mitra.
Em meados do segundo século, seu culto atinge a cúpula militar. Os neófitos
começaram a congregar-se sob os Flávios, espalhando-se o culto na época dos
Antoninos e Severos. Os próprios Imperadores se fizeram iniciar nos mistérios,
havendo suspeitas de que Nero tenha sido um deles. Contudo, é Cômodo (185-
192) que parece ter sido o primeiro a se converter ao culto, seguido por Sétimo
Severo. Caracala (211-217) encoraja o culto do Deus solar sob a forma de Sol
invictus. O culto foi reintroduzido por Aureliano (270-275). O apoio oficial virá,
entretanto, no reinado de Diocleciano em 307. Apesar destas emanações, não
parece que Mitra tenha recebido uma preponderância imperial na corte dos
Césares pagãos. Deve-se notar, ainda, que do mesmo modo que o cristianismo,
sua influência não foi estendida ao meio rural. Alguns autores sugerem que isto se
deveu à exclusão das mulheres nas funções litúrgicas.

II – Representações Litúrgicas e Ritualísticas


do Deus Mitra
Mitra é um Deus de forma humana. É representado sob a forma de um jovem
montado num touro e, com uma das mãos, empunha uma adaga para o degolar.
Alguns afrescos, encontrados na parte mais central do Mithraeum (templo
subterrâneo de adoração), representam Mitra com a cabeça voltada para o alto ou
para o lado, significando desgosto com o que está fazendo. Sincreticamente,
encontram-se ainda imagens de Teseu matando o Minotauro ou Perseu
chacinando a Górgona ou, ainda, Hércules esfolando o Touro. Mitra está vestido
em trajes orientais e muitas vezes circundado por dois meninos ou pastores que
podem simbolizar o levante e o ocaso, o Outono ou a Primavera, as marés –
montante e vazante – e ainda, a vida e a morte. A cena possivelmente se passa
numa gruta. Um corvo, mensageiro do sol, está quase sempre na borda do
rochedo. Vê-se ainda um cão se aproximando para beber o sangue da vítima, uma
serpente enroscada dentro de uma pequena cratera e ao redor de um recipiente,
um leão ameaçador, espigas de trigo sobre o rabo do touro e um escorpião que
pica os testículos do animal morto.
A figura do touro tem sido exaltada através do mundo antigo pela sua força e vigor.
Os mitos gregos falavam sobre o Minotauro, um monstro metade-homem metade-
touro que vivia no Labirinto nos subterrâneos da ilha de Creta e que exigia um
sacrifício anual de seis mancebos e seis donzelas antes de ter sido morto por
Teseu. Peças de arte minóica representavam ágeis acrobatas saltando
bravamente sobre o dorso de touros. O altar, em frente ao Templo de Salomão em
Jerusalém, era adornado com chifres de touros que acreditavam ser portadores de
poderes mágicos. O touro era também um dos quatro tetramorfos, ou seja um dos
símbolos animais associados com os quatro evangelhos. A mística deste poderoso
animal ainda sobrevive atualmente nas touradas da Espanha e do México, no
rodeio dos ‘cowboys’ dos EEUU e agora, também, no Brasil.
Os estudos clássicos do belga Franz Cumont (1913) que provaram ser os
mistérios mitraícos derivados das antigas religiões iranianas explica parcialmente
como a cena da morte do Touro – conhecida como tauroctonia – inexiste na
mitologia iraniana com a figura de Mitra. Cumont responde que teria encontrado
textos que apresentavam o matador do touro como Ahriman, ou seja a força
cósmica do mal na religião iraniana.
Somente a partir do Primeiro Congresso Internacional de Estudos Mitraícos (1971)
levantaram-se novas hipóteses para explicar esta incongruência. A iconografia
tauroctônica seria, na verdade, um mapa astronômico! Tais hipóteses, segundo os
estudos de David Ulansey, baseiam-se em dois fatos: i) cada figura, na tauroctonia
padrão, teria um paralelo com um grupo de constelações ao longo de uma faixa
contínua no céu: o boi tem um paralelo com a constelação do Touro, o cachorro
com o Cão Menor, a serpente com a Hidra, o corvo com o Corvus e o escorpião
com Scorpio; ii) a iconografia mitraíca, em geral, é permeada por imagens
astronômicas explícitas: o zodíaco, os planetas, o sol, a lua e as estrelas são
permanentemente encontrados na arte mitraíca.
A pesquisa de Ulansey sobre cosmologia antiga, principalmente a astronomia
greco-romana, focaliza o seu caráter “geocêntrico” no tempo dos mistérios
mitraícos, no qual a terra era fixa e imóvel no centro do universo e tudo girava à
sua volta. Nesta cosmologia, o universo era imaginado como estando contido
numa grande esfera no qual as estrelas eram fixadas em várias constelações. Hoje
sabemos que a terra tem um movimento de rotação sobre o seu eixo cada dia,
mas na antigüidade acreditava-se que, uma vez por dia a grande esfera das
estrelas fazia a sua rotação sobre a terra, oscilando num eixo que corria da
abóboda do polo norte para o do sul. No seu giro, a esfera cósmica carregava o
sol, explicando assim a oscilação do mesmo sobre a terra.
Além deste movimento, os antigos atribuíam um segundo movimento mais
vagaroso. Enquanto hoje sabemos que a terra gira ao redor do sol durante o ano,
na antigüidade acreditava-se que, durante o ano, o sol – que estava bem mais
próximo do que as outras estrelas – viajava sobre a terra, traçando um grande
círculo no céu tendo como fundo as outras constelações. Este círculo, traçado pelo
sol durante o ano, era conhecido como o zodíaco, uma palavra significando
‘figuras vivas’, pois o sol passeava, durante o ano, sobre doze diferentes
constelações que representavam diversas figuras de animais e formas humanas.
Visto que os antigos acreditavam na existência real de uma grande esfera de
estrelas, suas várias partes – tais como os eixos e os pólos – jogavam um papel
crucial na cosmologia de seu tempo. Particularmente, um importante atributo da
esfera das estrelas era muito mais bem conhecido do que hoje: o equador,
denominado na época de equador celeste. Assim como o equador terrestre é
definido como um círculo ao redor da terra eqüidistante dos pólos, também o
equador celeste era entendido como um círculo ao redor da esfera das estrelas
eqüidistante dos pólos desta mesma esfera. O círculo do equador celeste era visto
como tendo uma importância especial por causa dos dois pontos em que ele
cruzava com o círculo do zodíaco: estes dois pontos eram os equinócios, ou seja,
o local onde o sol, no seu movimento através do zodíaco, cortava-o no primeiro dia
da primavera e no primeiro dia do outono. Assim, o equador celeste era
responsável pela definição das estações e, por esta razão, tinha uma significação
concretíssima ao lado seu significado astronômico mais abstrato.
Um outro fato sobre este equador celeste é decisivo: como não estava fixo,
possuía um movimento lento alcunhado de “precessão dos equinócios”. Este
movimento, sabemos hoje, é causado por uma oscilação na rotação da terra sobre
seu eixo. Como resultante desta leve oscilação, o equador celeste parece mudar
sua posição no curso de milhares de anos. Este movimento é conhecido como a
precessão dos equinócios por que o seu efeito observável mais facilmente é uma
mudança na posição dos equinócios ou seja, os locais onde, como vimos acima, o
equador celeste cruza o zodíaco. Desta maneira, esta precessão resulta num
movimento vagaroso para trás ao longo do zodíaco, passando sobre uma
constelação do zodíaco a cada 2.160 anos e percorrendo todo o zodíaco a cada
25.920 anos. Hoje, por exemplo, o equinócio da primavera está no final da
constelação de Peixes, mas, em algumas dezenas de anos, estará entrando em
Aquário – já se fala muito, atualmente, na Era de Aquário. A grosso modo, o
equinócio da primavera estava em Touro entre 4.000 a 2.000 a.C. mais ou menos;
em Áries de 2000 a.C. até o nascimento de Cristo, ou seja nos tempos greco-
romanos; a Era de Peixes – o cristianismo –, da gênese do mesmo até a nossa
mudança de milênio e de 2000 e poucos em diante, a tão decantada Era de
Aquário.
Ulansey descobriu que, neste fenômeno da precessão dos equinócios, estaria a
chave para desvendar o segredo do simbolismo astronômico da tauroctonia
mitraíca. Para as constelações desenhadas nas tauroctonias mais comuns havia
uma coisa constante: todos eles estavam posicionados no equador celeste como
na época imediatamente precedente à Era de Áries dos tempos greco-romanos.
Durante esta idade anterior, que podemos chamar de Era de Touro (como vimos
durou mais ou menos de 4.000 a 2.000 a.C.), no equador celeste da época
estavam Taurus (Touro, o equinócio da primavera), Canis Minor (o Cão), Hydra (a
serpente), Corvus (o Corvo) e Scorpio (o Escorpião que estava no extremo oposto
do Touro, ou seja, o equinócio do Outono). A coincidência é impressionante, todos
estas constelações estão representadas nas tauroctonias.
Em muitas ilustrações tauroctônicas, a cabeça de Mitra é nimbada de estrelas.
Assim, a morte do Touro representaria, no zodíaco, o fim da Era de Touro e o
começo da Era de Aries no equinócio da primavera e Mitra, o deus Todo-
Poderoso, que poderia reger e mudar todo o sistema cósmico. Nos escritos do
filósofo neoplatônico Porfírio, encontra-se a alusão de que a caverna, onde se
posiciona o Mithraeum e está desenhada a tauroctonia, na sua parte mais
recôndita, seria, na verdade, uma ‘imagem do cosmos’.
Como curiosidade, Freud e Jung tiveram uma divergência básica sobre a
interpretação psicanalítica do morte do touro, sendo um dos pontos básicos de
divergência e conflito entre ambos, resultando, posteriormente, em separação
definitiva.
Mitra, Deus solar, também é representado com a cabeça de um Leão quando é
saudado com o título de Sol invictus. São os afrescos, encontrados em Mênfis,
com as coxas peludas, patas de caprino e a cabeça radiada. Mitra Leoncéfalo,
portando as chaves, é outra imagem lapidar, pois fora das cenas tauroctônicas, ele
é representado em momentos de refeição ou de iniciação.
No tocante ao culto e à liturgia, estes se faziam no interior do Mithraeum e na
presença dos fiéis. A liturgia constava de ofícios e orações; manducação de pão e
sumpção de água e vinho, acompanhadas de fórmulas sagradas; danças de luzes
e fórmulas de êxtase; orações ao nascer do Sol, ao meio-dia e ao ocaso. As festas
realizavam-se no sétimo mês do ano, mas todos os meses se festejava uma
semana inteira, sendo cada dia destinado a um planeta. Comemorava-se, de modo
especial, o dia natalício do deus (Natalis Invicti), a 25 de dezembro. Os ofícios dos
templos faziam-se à luz de velas, com toques de sinos e com hinos, cujo teor não
se conhece, porque se perderam.
O Mithreum típico era uma pequena câmara retangular subterrânea (25x10m) com
um teto arqueado. Um corredor dividia o templo ao meio, com bancos de pedra
dos dois lados de 80 cm de altura no qual os membros do culto podiam descansar
durante suas reuniões. Um mithraeum podia comportar de 20 a 30 pessoas. No
fundo do templo, no final do corredor, havia sempre uma representação –
normalmente um relevo entalhado e algumas vezes uma escultura ou pintura – do
ícone central do mitraísmo: a tauroctonia ou a cena da morte do touro, conforme
descrito acima. Outras partes do templo eram decoradas com várias cenas e
figuras. Deveria ser implantado perto de uma fonte ou curso d’água ou, na falta
destes, de um poço. Havia centenas, talvez milhares, de templos mitraícos no
Império Romano.
Os adeptos de Mitra não se contentavam com um misticismo contemplativo. O seu
culto encorajava a ação e um grande rigor moral. Para os soldados, a resistência
ao mal e às ações imorais representavam uma vitória tão importante quanto as
militares.
Reuniam-se, em pequenos grupos, unidos e solidários pelo ritual iniciático.
Partilhavam o banquete sacramental com os deuses e finalizavam com uma
aliança entre o sol e Mitra. O repasto, sobre os despojos de um touro, era seguido
de um sacrifício, muitas vezes de um touro, ou de animais simbolizando o touro:
cabras, javalis e/ou galináceos.
Consagrava-se o pão e a água, bebia-se o vinho que simbolizava o sangue do
touro e comia-se a carne. O processo da iniciação mitraíca requeria a subida
simbólica de uma escada cerimonial com sete degraus, cada um feito de um metal
diferente para simbolizar os sete corpos celestiais. Simbolicamente galgando esta
escada cerimonial através de sucessivas iniciações, o neófito podia atravessar os
sete níveis do céu. Os sete graus do mitraísmo eram: Corax (Corvo), Nymphus
( Noivo), Miles (Soldado), Leo (Leão), Peres (Persa), Heliodromus (Corrida do Sol)
e Pater (Pai); cada grau era protegido por um planeta (na cosmologia da época):
Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter, a Lua, o Sol e Saturno. Cada dignitário
apresentava a vestimenta e a máscara correspondente ao seu grau. Como todo
rito mitraíco a estrutura hierárquica era setenária. Os adeptos tinham a sua divisão
de papéis: o chefe (pater), o papel de Mitra, o heliodromo (sol), o corvo
apresentavam as carnes e as bebidas aos convivas dentro de uma ordem
hierárquica. A carne era assada sobre os altares dentro da concepção do sacrifício
do mundo greco-romano.
Os rituais iniciáticos constavam da admissão dos fiéis por “inductio”. Antes de
serem admitidos, os candidatos eram interrogados, sondados, informados num
local distinto do templo. Em seguida, eram submetidos a uma série de provas, nus
e com os olhos vendados, marchavam às apalpadelas diante de um mistagogo
para finalizar se ajoelhando diante de um personagem que portava uma tocha
diante de seus olhos. A seguir, com as mãos atadas às costas, colocavam um
joelho no chão ao mesmo tempo que um sacerdote cingia-lhes a cabeça com uma
coroa. No final, prostravam-se como mortos. Tudo isto faz parte da tipologia
iniciática das sociedades secretas em geral: olhos vendados, resistência física,
morte simbólica, etc.
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em 2020
Reprova-se, nos adeptos de Mitra, a propensão aos sacrifícios humanos. Tal
suposição advém de se ter encontrado, nos diversos Mithrae, restos de esqueletos
humanos.
Apesar de todos os estudos antigos e modernos, conhece-se mal a “teodicéia”
mitraíca. Sabe-se, contudo, que os “mistérios” da Antigüidade revelam um mito ou
uma história santa que legitima a liturgia. É uma certa explicação do Mundo e da
passagem do homem sobre o mesmo que dá toda a força aos “mistérios”, sejam
eles de Mitra, de Elêusis, em suma de quase todos. A religião de Mitra se
independentizou de suas origens orientais, agindo como um imã que atraiu
diversos aportes: gregos, babilônicos, romanos etc. Finalizou como um Deus
adaptado ao Império Romano, explicando assim o seu sucesso. Uma das grandes
ironias da história é o fato de que os romanos terminaram por adorar um deus de
um de seus maiores inimigos políticos: os persas. O historiador romano Quintius
Rufus assinala no seu livro História de Alexandre que antes de ir batalhar contra os
“países anti-mitraícos” de Roma, os soldados persas oravam a Mitra pela vitória.
Sem embargo, tendo as duas civilizações inimigas estado em contato de conflito
aberto ou latente por mais de mil anos, os adoradores de Mitra migraram dos
persas, através do frígios da Turquia, até os romanos.
Numa análise simbólica final, o culto de Mitra revela uma história do Mundo.
Saturno (ou Cronos, representando o Tempo) reinava soberano sobre o Mundo,
quando entregou a Júpiter o raio, uma arma letal que serviu para derrotar os
gigantes e gênios do mal. Alguns autores hipotetizam que este gênio do mal
poderia ser o Oceano que cobria a Terra.
Mitra, Deus petrógeno, não descende aqui do Céu, pois surge miraculosamente de
uma rocha com um barrete asiático, tendo em uma das mãos uma tocha luminosa
e na outra, a adaga. Pastores assistem e ajudam este nascimento. Mitra, em
seguida, é encontrado junto de uma árvore ceifando o trigo. Depois é visto atirando
com um arco sobre uma parede rochosa onde jorra uma fonte que sacia os
pastores. Alguns autores concluem que as forças do mal (Oceano?) tentaram
aniquilar os humanos pela fome e pela sede e que Mitra, salvador dos homens e
Deus protetor, interveio para os alimentar e saciar sua sede, não só dos homens
como dos rebanhos. Nota-se, também, que o papel “justiceiro” das tradições
asiáticas não desapareceu, pois Mitra vem em socorro do Mundo para fazer
respeitar a Lei Divina.
Começa, agora, a perseguição ao Touro. O touro está em conjunção com a lua,
seus dois chifres formam o crescente. O touro contem os elementos vivos (o
esperma do touro purificado pelo raio da lua produzirá os espécimens animais).
Mitra tem a missão de subtrair estas forças vivas das tentações maléficas. O touro
se refugia numa construção mas dois pastores ateiam fogo ao local. Mitra alcança
o animal, agarra os seus cornos e consegue cavalgá-lo. Depois, prende as patas
traseiras do animal, arrasta-o até a gruta onde um corvo, mensageiro do Sol,
impõe-lhe a tarefa de matar o animal insubmisso. A morte do touro atrai uma
serpente e um cachorro que se apressam em sugar o sangue que jorra da ferida
enquanto um escorpião (algumas vezes um caranguejo ou um ‘câncer’) fisga os
testículos da vítima para aspirar sua força vivificante.
Cumont afirma que espigas de trigo saem da ferida, juntamente com o sangue que
escorre da calda do touro. Do corpo da vítima moribunda nascem as ervas e as
plantas salutares… De sua medula espinal germina o trigo que dá o pão, de seu
sangue, a vinha que produz a beberagem sagrada dos mistérios. É após a morte
do touro que um conflito se abate entre Hélio e Mitra. O Sol, ajoelhado diante da
tauroctonia, perde sua prerrogativa de astro soberano. Mitra torna-se o verdadeiro
Sol Invictus que vem salvar a criação. O Sol reconhece a preeminência de Mitra
pois se faz iniciar no grau de Soldado (Miles).

III – O Cristianismo Triunfante


O fim do mitraísmo coincide com o seu zênite no século III d.C. e vem
acompanhado da entronização do cristianismo como religião do Império Romano.
Como vimos, o mitraísmo sofria o passivo de praticar uma liturgia elitista em
pequenas sociedades secretas na qual as mulheres eram excluídas. Não se
propunha ser uma reli-gião de massa, aberto a todos, como o cristianismo. Era
uma religião otimista e Mitra teve o grande defeito de não ter morrido para salvar o
mundo.
Como os persas eram inimigos hereditários do Império Romano, os cristãos
fizeram de tudo para ligar o mitraísmo a uma religião “inimiga”, persa por
excelência, pois os romanos não deveriam adorar um deus importado do
adversário. Apesar de tudo parece que Constantino manifestou uma certa simpatia
pelo mitraísmo, principalmente na sua versão de “Sol invictus”. Quando este
primeiro imperador cristão colocou todas as religiões pagãs na clandestinidade,
poupou os mitraístas pois estes possuíam muita influência junto aos militares que
eram o cimento do Império. O ‘punctus saliens’ no qual os cristãos atacavam os
mitraístas era a sua propensão aos sacrifício animais. Quando estes sacrifícios
foram interditados, bloqueou-se um dos fundamentos vitais do culto mitraíco.
O combate mortal entre o cristianismo e o Mitra pagão pode ser lido nos escritos
de Tertuliano (160-220 d.C.) ao afirmar que esta religião utilizava indevidamente o
batismo e a consagração do pão e do vinho. Dizia, ainda, que o mitraísmo era
inspirado pelo diabo que desejava zombar sobre os sacramentos cristãos com o
intuito de levá-los para o inferno. Não obstante, o mitraísmo sobreviveu até o
século Vº em remotas regiões dos Alpes entre as tribos dos Anauni e conseguiu
sobreviver no Oriente Próximo até os dias de hoje.
No curto reinado do imperador Juliano, sobrinho de Constantino, Gibbon afirma
que se assistiu a um retorno temporário ao mitraísmo, tendo este Imperador se
reconhecido até mesmo como adepto e chegando a construir um Mithraeum nos
calabouços de seu palácio em Constantinopla. Seguiu-se um período de tolerância
quando, sob o reinado de Teodósio (375-395), o cristianismo tornou-se religião de
Estado e o paganismo foi definitivamente interditado. O mitraísmo sobreviveu em
Roma até 394 sendo que a Basílica de São Pedro foi construída sobre o local do
último culto mitraíco: o Phrygianum. A partir daí, o cristianismo construiu, boa parte
de seus templos, acima de cavernas que continham Mithrae, seja em Roma seja
nas províncias do Império. A catedral de Canterbury e a de São Paulo em Londres,
o mosteiro do Monte Saint-Michel e algumas catedrais em Paris estão construídas
sobre antigos Mithrae em ruínas.
Os pontos comuns entre o cristianismo e o mitraísmo são inúmeros. O nascimento
de Cristo é anunciado por uma estrela assim como o de Mitridate Eupator. Ambos
são nascidos de uma Virgem Imaculada que toma o nome de Mãe de Deus. A
caverna, a gruta são os locais de nascimentos tanto de Cristo quanto de Mitra. A
presença de pastores e de seu rebanho também estão presentes em ambos os
nascimentos. A gruta de Belém é prenhe de luz e Mitra é um deus solar. Além do
mais, o ouro, símbolo do Sol, tem uma importância crucial na liturgia cristã. Deus é
Amor mas também Luz. O nascimento dos dois deuses foi a 25 de dezembro,
solstício de Verão no Hemisfério Norte. Sabe-se que Cristo não teria nascido no
dia 25 e que, somente com o fim do mitraísmo, a Igreja Cristã, “cristianizou” o dia
como a festa do Natal. Tanto Cristo como Mitra eram castos e celibatários. Todas
as duas religiões são fundadas sobre um sacrifício salvador do Mundo, mas com a
morte de Cristo, o cristianismo tira a sua vantagem e sua superioridade. A morte
do Touro encontra um símile na luta de São Jorge com o dragão. A vontade de
neutralizar as potências do mal, a guerra entre as duas potências e a vitória do
Bem. A consagração do pão e do vinho estão presentes entre os cristãos e os
iniciados de Mitra. No grau de Soldado (Miles), o iniciado é marcado com uma cruz
de ferro em brasa sobre a fronte. A imortalidade da alma e a ressurreição final. As
igrejas antigas possuem criptas subterrâneas que evocam os templos mitraícos. A
fraternidade e o espírito democrático das primeiras comunidades cristãs se
assemelham muito ao mitraísmo. A fonte jorrando da rocha, a utilização de sinos,
os livros e as velas, a água santa e a comunhão, a santificação do Domingo (fora
da tradição judaica do Sábado), a insistência numa conduta moral, o sacrifício
ritual, a angeologia, a teologia da luz, dualidade deus-diabo, o fim do mundo e o
apocalipse são também comuns em ambas as religiões.
Outro símile interessante seria entre Mitra e Papai Noel. Vestimentas vermelhas e
barrete frígio são comuns a ambos como também as velas incrustadas em árvores
(de Natal) nas cerimônias natalinas.

IV – Sobrevivência Mitraíca e sua Influência


na Maçonaria
Encontram-se traços mitraícos nas diversas gnoses e principalmente nas heresias
dualistas cristãs. O esoterismo do gnosticismo cristão foi muito influenciado pelas
religiões egípcias e iranianas. Os segredos, revelados aos “Perfeitos”, referiam-se
aos mistérios da ascensão e descida de Cristo através dos Sete Céus habitados
pelos anjos. Autores modernos chegam a afirmar que o gnosticismo é um
fenômeno pré-cristão de origem iraniana que poluiu o cristianismo nascente. A
influência dos cultos iranianos e especificamente mitraícos sobre a gnose de Mani
são insofismáveis. Desde o século III d. C., o segredo mitraíco força as portas da
barca de São Pedro. A pressão deste dualismo maniqueísta percorre toda a Idade
Média. O bogomilismo da Europa Oriental inicia a sua trajetória a partir do século X
colocando Satã no lugar de Deus, infligindo um poder considerável sobre as
heresias Cátaras e Albigenses no alvorecer do século XII na Europa Ocidental.
Estas heresias gnósticas cristãs professavam a asserção de que Deus não teria
criado o Mundo, estando este sob o domínio de Satã – assimilado ao demiurgo
Yahvista. O verdadeiro Deus estaria tão distante da Terra onde se dão estes
embates entre o Bem e o Mal. Apesar disto teria enviado Cristo para salvar os
homens ao mostrar-lhes o método da libertação.
Outra difusão de um mitraísmo mitigado estaria entre os Cavaleiros do Templo,
pois estes sofreram a influência dos maniqueus. No culto a Baphomet, também
conhecido como o filho de Mitra, havia um ícone representado por um Touro
ornado com uma chama entre seus cornos…
O culto de Mitra enquanto sociedade iniciática tem certas semelhanças com a
maçonaria propriamente dita. A fraternidade entre os membros, a exigência de
uma conduta moral, a vontade de defender, de maneira ativa e não contemplativa,
o bem e a virtude são, ao mesmo tempo, padrões maçônicos e mitraícos. A defesa
da ordem política e social, o culto exclusivamente masculino são também pontos
comuns. Ritualisticamente encontram-se os seguintes traços: a mania pelo número
7, a existência de graus iniciáticos, as velas, os altares, a Luz, as palavras de
passe, etc. O templo maçônico pode ser visto como uma gruta mitraíca ou se não
se quiser ir muito longe o símile poderá ser feito com a câmara de reflexões; o teto
estrelado do templo tem profunda semelhança com os mitraícos. Os templários, a
tradição judaica e cristã foram os grandes transmissores de símbolos mitraícos. Os
dois São Joães – de Inverno e de Verão – tem profunda vinculação com os dois
pastores da tauroctonia. O sacrifício ritual fundador de Hiram está muito próximo
do sacrifício ritual do Touro. O corvo no acampamento militar, encontrado nos altos
graus do escocesismo, é uma prova cabal da influência mitraíca.
Outro símile estaria no mais baixo grau de iniciação – o grau de Corvo (Corax) –
simbolizava a morte do novo membro, o qual deveria renascer como um novo
homem. Isto representava a fim de sua vida como um não-crente (ou descrente) e
cancelava pretéritas alianças de outras crenças inaceitáveis. Curioso salientar que
o título de Corax (Corvo) originou-se com o costume zoroástrico de expor os
mortos em elevações funerárias para ser comido pelas aves de rapina. Este
costume continua, até os dias de hoje, sendo praticado pelos Parsis da Índia,
descendentes dos persas seguidores de Zaratustra.
O simbolismo sexual, encontrado em diversos rituais maçônicos, poder ter um
paralelo com o touro, pois este era uma óbvia representação da masculinidade
pela natureza de seu tamanho, de sua força e de seu vigor sexual. Ao mesmo
tempo, o touro simbolizava as forças lunares em virtude de seus cornos e as
forças telúricas em virtude de ter as quatro patas assentadas no solo. O sacrifício
do touro simboliza a penetração do princípio feminino pelo masculino, a vitória da
natureza espiritual sobre a animalidade, tendo um paralelo com as imagens
simbólicas de Marduk destruindo Tiamat, Gilgamesh aniquilando Huwawa (grafia
de Eliade), São Miguel dominando Satã, São Jorge vencendo o dragão, o
Centurião lancetando Cristo e, por que não nos referirmos a um ícone moderno:
Sigourney Weaver lutando contra o Alien?
Finalmente, o mitraísmo era, concomitantemente, um culto dos mistérios e uma
sociedade secreta. Tal como os ritos de Deméter, Orfeu e Dionísio, os rituais
mitraícos admitiam candidatos em cerimônias secretas cujo significado era do
conhecimento somente do iniciando. Como todos os outros ritos de iniciação
institucionalizados do passado e do presente, este culto dos mistérios permitia aos
iniciados ser controlado e posto sob o comando de seus líderes. Ao ser iniciado, o
neófito tinha que provar sua coragem e devoção nadando através de rio
caudaloso, escalando um rochedo íngreme ou pulando através das chamas com
suas mãos atadas e os olhos vendados. Ao iniciado era também ensinado o
segredo das palavras de passe mitraícas que eram usadas para identificação
mútua como também era auto-repetida freqüentemente como um mantra pessoal.

V – Como seria um Mundo Mitraíco à Guisa


de Conclusão
O legado mitraíco resulta em comportamentos usados ainda hoje em dia, tal como
o apertar as mãos e o uso da coroa pelo monarca. Os adoradores de Mitra foram
os primeiros no Ocidente a pregar a doutrina do direito divino dos reis. Foi a
adoração do sol, combinada com o dualismo teológico de Zaratrusta, que
disseminou as idéias sobre as quais o Rei-Sol Luis XIV (1638-1715) na França e
outros soberanos deificados na Europa mantiveram o seu absolutismo
monárquico.
Alguns estudiosos afirmam que, durante o IIº e o IIIº século d.C., nunca a Europa
esteve tão perto de adotar uma religião indo-ariana quando Diocleciano,
oficialmente, reconheceu Mitra como o protetor do Império Romano, nem mesmo
durante as invasões muçulmanas.
Especulações teóricas anglo-saxãs hipotetizam que se um golpe de estado, dado
pelos centuriões adoradores de Mitra, tivesse impedido Constantino de estabelecer
o cristianismo como a religião oficial do Império, o mitraísmo poderia
possivelmente sobreviver através dos séculos seguintes com a assistência
teológica da heresia maniquéia e seus epígonos, assumindo “ipso facto” que os
ensinamentos de Jesus teriam, de alguma maneira, sido simultaneamente
anulados e, talvez, com um número crescente de crucificações. Esta ausência do
cristianismo, devido à continuação do mitraísmo no Ocidente, teria obstado o
crescimento do Islã no século VII e a violência das Cruzadas necessariamente não
teria ocorrido. Assumindo, ainda, que o Islã não teria, assim, conquistado
religiosamente a Pérsia, a adoração de Mitra poderia ter continuado no panteão de
Zaratrusta. Como conseqüência, o mitraísmo poderia ter penetrado com mais força
nos panteões da Índia e da China e, possivelmente, teria aportado nos países do
Extremo-Oriente.
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Continuando com a especulação saxã que resultou na “lenda negra” da dominação
espanhola no Novo Mundo, Colombo realizou os seus descobrimentos em pleno
período da Inquisição, fenômeno este representativo da culminância de mais de
mil anos de uma das maiores religiões monoteístas semítica – o cristianismo. Se o
mitraísmo tivesse sobrevivido o milênio até o ano de 1492, os povos indígenas das
Américas poderiam ter sido expostos à adoração de Mitra no lugar dos
missionários católicos. Imaginaríamos, assim, o Taurobolium – ritual de
regeneração ou sacrifício do touro, no qual o sangue do animal era derramado
sobre o iniciado – sendo sido transposto e sincretizado com o ritual da caça do
búfalo dos índios das planícies do Oeste americano e a cerimônia do sacrifício dos
maias, incas e astecas, e provavelmente, estes impérios não teriam sido
aniquilados pelos brutais conquistadores europeus em nome do Rei e de Cristo.

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