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Grupo de Trabalho: DESIGN E ECONOMIA CRIATIVA

Design Audiovisual: análise fílmica efetuada a partir de técnicas de


visualização de dados

Vinicius Augusto Carvalho


ESPM-Rio | PPGCINE (UFF)
Resumo
O presente trabalho busca promover uma interseção entre processos de Interação Humano-
Computador e Estudos de Análise Fílmica com o intuito de oferecer um processo
metodológico-analítico alternativo para investigações em obras imagético-sonoras no campo
dos estudos de cinema. Inspirado na teoria da “Análise Textual Perceptiva” do francês
Christian Metz e no projeto de “Visualização de Dados” do russo Lev Manovich, o trabalho
examina as transições imagéticas na montagem cinematográfica em busca de materialidades
estéticas, estruturais e rítmicas. A estratégia que aqui se sugere visa minimizar obstáculos
enfrentados ao se trabalhar com um produto audiovisual finalizado e propõe, por meio de
softwares e técnicas de organização das imagens, uma abordagem diversa. O filme escolhido
como objeto para ilustrar esta investigação é o longa-metragem Acossado (1960), de Jean-Luc
Godard. O procedimento de desconstrução em conjunto com o método de rearranjo na
sexagenária obra fílmica francesa possibilita uma observação do material em outra perspectiva
e pode propiciar um novo olhar sobre a concepção da narrativa fílmica.
Palavras-chave: Design audiovisual; Visualização de dados; Montagem; Edição; Transições.

Abstract
The present work seeks to promote an intersection between Human-Computer Interaction
processes and Film Analysis Studies in order to offer an alternative methodological-analytical
process for investigations in films in the field of cinema studies. Inspired by the theory of
“Perceptual Textual Analysis” by the French Christian Metz and the project of “Data
Visualization” by the Russian Lev Manovich, the work examines the visible transitions in the
cinematographic montage looking for aesthetic, structural and rhythmic materiality. The
strategy that is suggested aims to minimize the obstacles that exist when working on a finished
audiovisual product and proposes, through software and visualization techniques, a different
approach. The chosen movie as an object to illustrate this investigation is the feature film
Breathless (1960), by Jean-Luc Godard. The deconstruction procedure in partnership with the
rearrangement method in the sexagenarian French film enables an observation of the material
from another perspective and can provide a new look at the design of the film narrative.
Key words: Audiovisual design; Data Visualization; Punctuation; Film editing; Visual transitions.
Introdução
Ciências que podiam ser consideradas distintas, como a da Computação e a da Comunicação,
convergiram e neste cenário, a aproximação entre a Interação Humano-Computador (IHC) e os
Estudos de Análise Fílmica podem oferecer resultados bastante interessantes. Com este
objetivo e tendo como base teórica os estudos de Lev Manovich (2010), este trabalho propõe
uma metodologia para investigar filmes que relaciona técnica de visualização de dados com
conteúdo audiovisual. Trata-se de um modelo que permite analisar produções fílmicas
finalizadas a partir de uma interface capaz de representar o longa-metragem em uma “única
tela”. Com a utilização de softwares e fundamentos de Análise Fílmica obtêm-se como
resultado uma maneira alternativa para se estudar obras cinematográficas e assim minimizar
os obstáculos que existem ao se trabalhar com produtos audiovisuais acabados.

É importante destacar que o que está sendo proposto parte de uma definição ampla de
“design” com foco na busca de soluções para uma questão levantada e que se pauta nas
seguintes etapas: definição do problema, mapeamento, execução e análise de resultados. O
design aplicado ao audiovisual conta com a contribuição da área de IHC no processo de
materialização da ideia de um “filme em única tela” com base em quatro fases que modelam o
processo: a peça audiovisual digitalizada, o software de edição não linear Adobe Premiere, o
aplicativo de código aberto ImageJ1 e o programa computacional de edição de imagens Adobe
Photoshop.

Ao considerar o escopo do GT deste congresso, este ensaio não aprofunda em questões


teóricas da montagem audiovisual e da análise fílmica, por entender que a contribuição
original está em demonstrar o uso da IHC na confecção da interface de análise do produto
imagético-sonoro. Quando o tema é a relação Humano-Computador, o design centrado na
experiência do usuário evita problemas simples e possíveis erros, produzidos por humanos.
Equívocos que podem surgir durante a elaboração e utilização de um produto, conteúdo ou
serviço e que também podem ser percebidos, por exemplo, quando a análise de um filme é
efetuada em mídias físicas (DVD, Blu-ray) que não permitem atingir a precisão cirúrgica de
uma análise em meio digital com ajuda de programas computacionais.

Os estudiosos em cinema Jacques Aumont e Michel Marie afirmam que “tal como não existe
uma teoria unificada do cinema, também não existe qualquer método universal de análise do
filme” (AUMONT; MARIE, 2004, p. 7). Cada filme demanda um tipo de estudo particular e o

1
O programa computacional ImageJ pode ser baixado no link: https://imagej.nih.gov/ij/download.html
pesquisador precisa encontrar a abordagem adequada ao objeto. Embora não se utilize uma
metodologia universal para a análise de um filme, identificam-se na literatura duas etapas
importantes neste processo: a decomposição e a interpretação. Diante disso, na busca por
uma estrutura de análise fílmica singular, optou-se pela “Análise Textual Perceptiva” de
Christian Metz (2014) – que sugere a necessidade de descrever o que se vê (desconstrução
fílmica) antes de se interpretar algum fenômeno. Após o processo de “desmontagem” optou-
se por reordenar o material em uma nova plataforma, uma base alternativa que pudesse
oferecer novas possibilidades à análise. Somou-se, portanto, à metodologia Metziana as
técnicas propostas por Lev Manovich (2010) quanto a “Visualização de Informação” para o
qual os planos de um filme são considerados dados visuais. A conjunção de estratégias
possibilitou estabelecer relações e identificar características particulares à montagem do
longa-metragem Acossado (1960) dirigido pelo francês Jean-Luc Godard.

O resultado foi uma “impressão digital” do filme inteiro. Uma fotografia do filme. Um mosaico,
construído a partir de um frame (quadro, fotograma) de cada plano da obra cinematográfica2.
Acredita-se que este método possa ser importante para as ciências humanas, os estudos de
mídia e para instituições culturais, que eventualmente podem adotá-lo como ferramenta
básica para a pesquisa, o ensino e a exibição de artefatos culturais. A visualização proposta
neste ensaio busca oferecer uma forma para se estudar e ensinar o cinema e conectar campos
que, todavia ainda não dialogam com facilidade: o campo do design, interessado em novas
técnicas de visualização de dados, e as pesquisas dos estudos fílmicos que se utilizam de
gráficos e instrumentos de medição. O uso sistemático de instrumentos de observação para a
pesquisa quantitativa em estudos de cinema pode ajudar a entender padrões ou
características que possam estar presentes ou ausentes em narrativas audiovisuais.

Acossado, o sessentão de Godard


É de suma importância destacar o livro do historiador francês Michel Marie sobre o filme
escolhido como objeto de estudo deste trabalho. Em A Nouvelle Vague e Godard, lançado em
2006, traduzido e publicado no Brasil em 2011, o pesquisador realiza uma análise minuciosa do
filme Acossado (À bout de souffle, 1960) dirigido por Jean-Luc Godard. O longa-metragem é
estudado sob muitos aspectos, desde a gênese e processos de filmagem até a montagem e
recepção da crítica. Entretanto, ainda que o texto de Marie seja referência, acredita-se que

2
O frame captado de cada plano foi o segundo por conta da existência de tomadas com enquadramentos móveis e movimentos
bruscos de câmera executados pelo diretor e também para desviar de possíveis interferências (ruídos) que a justaposição pode
sofrer ao se trabalhar com a cópia digital.
ainda existam abordagens de pesquisa que possam ser lançadas sobre a obra sexagenária de
Godard.

Acossado é um longa-metragem considerado por muitos cineastas e estudiosos da


cinematografia como uma obra de ruptura na história do cinema, classificado por Michel
Marie (2011, p. 235) como um “manifesto” da estética. O filme de Jean-Luc Godard é marcado
por uma série de inovações técnicas e uma linguagem inovadora. É válido ressaltar que o filme
foi também um grande sucesso de público. O longa trata das preocupações de jovens
franceses dos anos 1960 e o diretor francês conta a estória do amor entre um jovem
“marginal” Michel Poiccard (Jean-Paul Belmondo) e uma estudante norte-americana Patricia
Franchini (Jean Seberg) que estuda Jornalismo na Universidade de Sorbonne em Paris.
Acossado é um filme considerado por Marie (ibid., p. 235) “uma radical e provocante
novidade” para a década de 1960, com a caraterística de representar uma mudança de época
marcando o fim dos anos pós-guerra na França.

É também uma obra de explícita competência técnica: a edição curta e instável; a alternância
de planos de longa duração captados com a câmera na mão; longas sequências de diálogos
que beiram o improviso, sem abdicar da intimidade entre os dois personagens, na rua, no
carro ou no quarto do hotel; o ritmo da montagem em sintonia com a estruturação dos planos
e a liberdade tomada por Godard na gestão da continuidade em meio a um roteiro linear
concentrado em três dias e duas noites. A escolha do filme de Godard para este artigo pode
parecer arrojada, haja vista a pluralidade de estudos sobre este exemplar marcante do
movimento cinematográfico francês. Contudo Acossado é inventividade pura, caótica, ainda
criativa 60 anos depois, e por conta disso instigante do ponto de vista da pesquisa aplicada.
Assim, buscou-se adotar uma metodologia e uma abordagem diferentes a fim de obter novas
informações e estimular novas discussões.

Metodologia
Os teóricos de cinema Jacques Aumont e Michel Marie (2004, p. 15) afirmam que cada analista
deve “habituar-se à ideia de que precisará mais ou menos de construir o seu próprio modelo
de análise”, mas alertam que ao mesmo tempo, esse modelo será sempre, tendencialmente,
um possível esboço de modelo geral, ou de teoria. Francis Vanoye e Anne Goliot-lété (2012, p.
139), concordam que “não há receita para se compor uma boa análise ou critérios rígidos que
devam ser seguidos”. Embora não se utilize uma metodologia universal para a análise de um
filme, identificam-se na literatura duas etapas importantes neste processo: a decomposição e
a interpretação. É preciso descrever o que se vê e buscar relações entre os elementos
decompostos. Para Aumont e Marie (2004), é ainda necessário especificar e ajustar o método
em função do objeto tratado. Diante disso, na busca por uma estrutura de análise fílmica
singular para este estudo, conexo com as teorias existentes e, principalmente, com as etapas
de desconstrução e interpretação, optou-se pela “Análise Textual Perceptiva” de Christian
Metz (2014) em parceria com os atributos de “Visualização de Informação” de Lev Manovich
(2010). A partir da soma destas duas formas de abordagem estabeleceram-se relações e
identificação de características particulares à montagem do longa-metragem escolhido.

A “Análise Textual Perceptiva” sugere a necessidade de descrever o que se vê (desconstrução


fílmica) antes de se interpretar algum fenômeno. Metz trabalha com a hipótese de que a
“mensagem cinematográfica total” dispõe de níveis de codificação sobre os quais as peças
fílmicas são examinadas. Um deles versa exclusivamente sobre o reconhecimento e a
identificação dos objetos visuais por parte do espectador e vai ao encontro da capacidade de
decompor um filme, dando conta da estrutura e considerando a capacidade do observador em
reconhecer elementos na tela (METZ, 1980; METZ, 2014). Este modelo de estudo é parte da
teoria da “Grande Sintagmática do Filme Narrativo” apresentada em 1966 por Christian Metz
na qual ele descreve que um filme pode ser dividido em segmentos autônomos, mas não
independentes, e ressalta que o sentido definitivo destes segmentos é concebido em relação
ao conjunto do filme. Ao equiparar um longa-metragem de ficção a um texto, este tipo de
estudo enaltece os códigos de cada obra. A palavra “sequência” aqui também é utilizada para
representar o segmento autônomo e designa uma construção propriamente fílmica com
funções dramáticas e posições determinadas na narrativa. Ao compartimentar o filme em
segmentos ou sequências, os quais são concebidos como unidades mínimas de significação –
para usar uma terminologia oriunda da análise estrutural –, define-se que os mesmos são
constituídos de cenas que, por sua vez, são formadas por planos que são repletos de quadros
ou frames.

Os frames de um filme servem de insumo para a “Visualização da Informação” de Lev


Manovich (2010). Os sentidos da palavra “visualizar” incluem “tornar visível” e “produzir uma
imagem mental”. Isso implica que até que “visualizemos” algo, esse “algo” não tem uma forma
visual. “Ele se torna uma imagem por meio de um processo de visualização”. (MANOVICH,
2010, p. 157). Um exemplo deste processo de transformação de dados quantitativos em uma
representação visual pode ser visto no projeto Cinema Redux, de Brendan Dawes, que sugere
uma impressão digital para cada filme. Criado em 2004 e adquirido para a coleção permanente
do MoMA em 2008, o Cinema Redux cria uma única tela a partir de um filme inteiro; cada linha
representa um minuto de tempo de filme, composto por 60 quadros, cada um tirado em
intervalos de um segundo. O resultado é uma visualização única de um filme inteiro, que
surgem de muitos momentos espalhados ao longo do tempo e reúne todos em um único
instante para criar algo novo. (DAWES, 2004)

A imagem resultante pode preservar todos os detalhes do artefato original e abstrair


completamente sua estrutura, mas pode de fato privar o espectador da experiência do filme. A
visualização proposta neste ensaio busca oferecer uma forma para se estudar e ensinar o
cinema e conectar campos que, todavia ainda não dialogam com facilidade: o campo das
humanidades digitais, que está interessado em novas técnicas de visualização de dados, mas
que não costuma estudar o cinema, e as pesquisas dos estudos fílmicos quantitativos que se
utilizam de gráficos e instrumentos de medição de forma ainda, incipiente. A identificação
tradicional dos elementos em um filme, somada à possibilidade de visualizá-los em um
diagrama de tela única, resulta em uma análise mais precisa do tipo de justaposição, da
estética aplicada, da estruturação, do tempo e da posição definida para, por exemplo, às
pontuações imagéticas na narrativa.

Ao se justapor dois planos pode-se tornar possível a comunicação de muita informação num
período reduzido de tempo. É possível, mesmo para o observador não familiarizado com a
gramática fílmica, identificar uma transição entre planos em um filme, mas para que se tenha
precisão ao detectar e tabular as intersecções presentes em uma obra cinematográfica é
preciso contar com a possibilidade de poder parar, voltar e avançar na reprodução da mesma.
Michel Marie (2011, p. 189) destaca que a análise de um filme em planos é difícil de se realizar
pois “ela supõe uma observação microscópica à mesa de edição, fotograma por fotograma, ou
em DVD, lentamente, imagem por imagem. Ainda que se utilizando do disco digital versátil
(DVD), o pesquisador francês, que analisou Acossado em 2005, acabou por não fazer uso de
um software de edição digital ou processo computacional na coleta dos dados. Neste trabalho,
pensando em somar ao estudo de Marie, foram utilizados três programas de computador no
procedimento teórico-metodológico de busca e conferência que orienta a empreitada.

A investigação no filme através do aplicativo de edição não linear Adobe Premiere, combinado
com a interface de visualização gerada pelo software ImageJ e com as possibilidades de edição
da imagem final proporcionadas pelo Adobe Photoshop permitiram uma desconstrução da
obra e um retorno ao início do processo produtivo cinematográfico. O triplo procedimento foi
capaz de revelar padrões interessantes desde o plano, passando pela sequência até o todo
fílmico. Entretanto, técnicas amparadas em softwares possuem pontos fortes e fraquezas. Um
computador não consegue ter as percepções de significado e de estrutura estética de um filme
como o seu diretor e equipe. No entanto, eles podem ajudar a compreender padrões sutis de
edição, composição, movimento e outros aspectos da cinematografia e da narrativa que
podem passar despercebidos em uma análise que não faça uso de tais procedimentos
tecnológicos.

Desconstrução e decomposição imagética


Com a intenção de explorar detalhes e fazer o “invisível visível” no filme Acossado (1960) de
Jean-Luc Godard, foram realizadas as etapas de desconstrução fílmica no Adobe Premiere e de
ordenamento visual dos planos no software de código aberto ImageJ. Após a importação do
longa-metragem para o programa de edição não linear foi possível demarcar todas as
justaposições presentes no filme, mesmo aquelas consideradas por Marie (2011, p. 188) como
“imperceptíveis à visão contínua”. Um incremento considerável, portanto, ao estudo francês
precedente, haja vista que Marie analisou a obra em DVD e com isso não detectou alguns
saltos na edição. A desconstrução literal do filme em unidades de montagem revelou 477
planos (Figura 1). Este número é absoluto e indiferente ao tempo de cada tomada - o plano
201 de três minutos e trinta segundos ou o plano 42 de dezenove frames contam, ambos,
como um único plano. Na imagem abaixo, além dos planos do filme, é possível notar os
intertítulos inicial e final, não somados à contagem.

Figura 1 - Planos do filme Acossado.

Fonte: compilação de frames elaborada pelo autor (2020).


O total de 477 planos detectados gerou a primeira incongruência com o estudo de Michel
Marie que contabilizou sete planos a menos. A desarmonia entre o total de planos (470)
detectados por Michel Marie e o número (477) constatado nesta investigação revela uma
eficácia maior na desconstrução do filme a partir da decomposição com o auxílio do software
de edição não linear. Saltos como os que acontecem entre os planos 149 e 150 (acendimento
dos postes numa rua de Paris), 293 e 294 (quando Patrícia faz uma pergunta a Parvulesco), ou
ainda entre os planos 405 e 406 (Michel apresentando Patricia para Zumbart) são difíceis de
serem detectados à visão contínua. E não perceber e consequentemente não computar estes
cortes faz com que o resultado apresente planos em número inferior ao final. No software de
edição não linear o filme passa por um processo de marcações (markers), no qual são
efetuados comentários e anotações na própria na linha do tempo (timeline) onde se encontra
posicionado o arquivo de áudio e vídeo (Figura 2).

Figura 2 – Desconstrução de Acossado no Adobe Premiere.

Fonte: print da tela do software Adobe Premiere tirado pelo autor (2020).

Esta espécie de etiqueta, com possibilidade de acesso randômico, e que pode utilizar cores
para facilitar a visualização, agiliza a construção da planilha do filme (Tabela 1). A visualização
e possibilidade de manipulação do arquivo em uma linha do tempo dinamiza também a
decupagem das sequências, método muito comum de divisão do filme em segmentos com o
intuito de facilitar a análise de trechos específicos.
Tabela 1 – Transições e planos no longa-metragem de Godard.

FADE FUSÃO WIPE JUMP CUT CORTES PLANOS

ACOSSADO 9 2 2 64 399 477

Fonte: elaborado pelo autor (2020).

Após o processo de desconstrução e interpretação quantitativa dos elementos presentes na


obra, o seguinte passo é efetuar o procedimento de ilustração, a fim de facilitar a visualização
da informação descrita. O método consiste em “exportar” do Adobe Premiere o frame
desejado de cada plano do filme para uma pasta (folder). Organizar os arquivos em ordem
numérica e, em seguida, agrupá-los com o software ImageJ.

Figura 3 – Interface do software ImageJ.

Fonte: print da tela realizado pelo autor (2020).

O caminho percorrido até o momento incluiu o software Adobe Premiere e na sequência o


aplicativo ImageJ. Para o arremate final acrescenta-se a passagem do arquivo pelo programa
Adobe Photoshop. Nele são inseridos retângulos coloridos na imagem, à título de facilitar a
visualização dos elementos pesquisados. A próxima figura, portanto, apresenta 492
“fotogramas” - 477 planos do filme representados por seu segundo frame, outros dois quadros
ilustrando os títulos de início e fim, e os 13 instantes centrais de cada uma das pontuações
visíveis detectadas (9 fades em vermelho, 2 fusões em azul e 2 wipes em verde). O mosaico
deve ser lido da esquerda para a direita e de cima para baixo, de modo a manter a ordem de
surgimento dos planos no filme.

Figura 4 – Indicação de transições visíveis no filme Acossado.

Fonte: compilação de frames elaborada pelo autor (2020).

Esta estratégia de visualização agrupa o filme em uma tela, uma única imagem, e usa uma
segmentação semântica e visual atrelada a linearidade dos planos. O modelo de visualização
utilizado pode ser comparado a um storyboard do filme elaborado ao contrário – um mapa
virtual reconstruído que pode revelar características da narrativa, gramática, cinematografia e
da montagem.

Sugestão de análise fílmica


Tendo em vista que não contempla o propósito deste trabalho propõe-se aqui uma
apresentação superficial, à título de amostra, de uma exequível observação que pode ser feita
a partir do mosaico sugerido. A decomposição do filme Acossado de Jean-Luc Godard revela
que o corte é o elemento transitivo mais utilizado na montagem do longa-metragem (399
vezes). Por outro lado, a presença de fades, fusões, wipes, e principalmente jump cuts (saltos)
não deixa de chamar a atenção.

Dos quase quatrocentos cortes que não configuram “saltos” na edição, muitos descontínuos é
verdade, a grande maioria deles justapõe planos e preservam a continuidade espacial e
temporal da narrativa. Dentre as pontuações visíveis o fade é o elemento mais adicionado por
Godard e a montadora Cécile Decugis na edição. O escurecimento e clareamento entre
imagens é notável em nove momentos do filme. Destes, em apenas um, o sétimo fade, não
funciona como separador de segmentos autônomos (Metz, 2014). Nesta transição, entre o
plano 377 (Michel e Patricia estão assistindo a um filme na sala escura) e o plano 378 (ambos
do lado de fora do cinema), o diretor opta por efetuar uma elipse de tempo (dentro e fora do
estabelecimento) com a utilização do fade. Este fade especificamente não rompe, mas sim
mantém a relação transitiva entre os planos, se diferenciando estruturalmente das outras oito
adições.

Quanto aos dois wipes aplicados no longa-metragem, ambos simulam um


fechamento/abertura da íris da câmera e mantêm o mesmo propósito de ruptura espaço-
temporal. Chamados também de “iris in e out” eles despertam a curiosidade e levantam
discussões em torno dos motivos por meio dos quais são escolhidos na fase de edição. Por que
optar por um wipe e não por mais um fade? É uma pergunta pertinente. É ingênuo arriscar
uma resposta, mas muitos autores sinalizam uma intenção cômica por trás da utilização desta
pontuação. Por último, mas não menos importante, destacam-se as duas fusões que operam
separando segmentos autônomos na montagem. Godard acaba por equiparar em número o
uso de wipes e fusões em Acossado. Coincidência ou não, em dois momentos ele utiliza a
dissolvência e em ambas não há conformidade com os preceitos descritos em Metz (2014). O
filme francês possui as fusões como pontuações com características espaço-temporais secas,
ou seja, rompendo a relação transitiva entre os trechos envolvidos.

Na busca por uma definição capaz de respaldar o estilo adotado por Godard na estética das
fusões em Acossado o crítico de cinema húngaro Béla Balázs (1952, p. 146) afirma que “a fusão
entre duas tomadas significa uma conexão mais profunda entre elas”. É uma convenção aceita
pela cinematografia quando da mudança de discurso na linguagem do filme. Se duas imagens
se dissolverem lentamente, as duas serão unidas por uma conexão profunda,
dramaturgicamente importante, que pode não ser de natureza capaz de ser expressa por um
corte. Ao confrontar tal definição com a classificação de Metz (2014) percebe-se que as fusões
em Acossado geram hiatos espaço-temporais secos, ou seja, sem relações transitivas.

A primeira fusão justapõe o primeiro segmento do filme, que mostra o roubo de um carro
efetuado por Michel no porto de Marselha, com a sequência dois, da viagem dele pela estrada
Nacional 7. Apesar da linearidade e continuidade da história, as sequências funcionam na
montagem, como segmentos autônomos e independentes na estrutura. A mesma caraterística
pode ser observada no uso da segunda fusão, com o acréscimo de que temos personagens
diferentes nas cenas. A sequência nove pertence a Patricia e a dez a Michel, em tempos e
espaços diferentes. Se a teoria de Metz fosse elevada a regra, Godard deveria ter atribuído
fades a estas duas justaposições entre segmentos autônomos.

Embora possam ser levantadas questões quanto a coerência, principalmente no caso de usar
fade e fusão com mesma relação transitiva, de forma geral, a obra possui uma linguagem
visual coesa do ponto de vista da opção das pontuações e suas significações. A montagem e a
apresentação de Acossado e os aspectos estéticos que envolvem a obra revelam que o centro
da esfera criativa de Godard está apoiado na inserção de elementos clássicos da gramática
cinematográfica para a entrega de uma experiência espectatorial. Entretanto, é inegável que o
impacto visual causado pelos saltos (jump cuts) marcou o movimento fílmico da época (a
Nouvelle Vague) e hoje, 60 anos depois, é referência, atributo, recurso e inspiração sobretudo
para produções digitais em canais como YouTube e Vimeo.

Considerações finais
O estudo das transições que fazem parte da obra cinematográfica pode gerar informações e
produzir reflexões sobre diversos aspectos da produção imagético-sonora. Para tanto, a
possibilidade de estudar estes elementos de montagem numa apresentação espacial plana e
única agiliza a investigação e oferece uma nova forma de se entender o processo de utilização
das pontuações. Dix et al. (2004) apresentam três aspectos do design que guiam o indivíduo
em suas interações com um sistema: ser funcional e usual; proporcionar experiências
melhores, simples de manusear sem dúvidas ou confusão; e criar um apelo visual que motive o
usuário a usar o produto ou o serviço. Utilizando outras palavras, é possível dizer que o design
incorporado à Interação Humano-Computador, foca na identificação de problemas, demandas
ou necessidades, com estudo analítico da situação e desenvolvimento de uma solução, e a
partir da correta aplicação alcançar resultados satisfatórios.

Para tanto, aqui se propõe o uso de novas tecnologias de comunicação em busca de uma
convergência entre homem e máquina nas análises fílmicas. A edição digital, bem como os
aplicativos que oferecem novas possibilidades de visualização de dados, podem acrescentar
inúmeras vantagens aos estudos ligados às ciências humanas.
Referências
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