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Introdução
Este texto busca fazer algumas reflexões sobre o papel de redes sociais
digitais na disseminação e comunicação científicas e introduzir o debate da
altimetria enquanto ferramenta que permite avaliar o impacto de um artigo científico
em esferas além da comunidade científica, utilizando de métricas não tradicionais.
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Com todo o meio impresso sendo substituído pelo digital, as revistas científicas
também aos poucos migraram para suas versões online, transformando
gradativamente o modelo clássico de comunicação científica. Porém a mudança
mais drástica pode ser observada somente nos anos 2000, com o surgimento da
web 2.0, uma espécie de “segunda geração” de comunidades e serviços de internet,
marcada pela capacidade do usuário interagir e interferir na informação encontrada
online, como em redes sociais digitais, por exemplo.
A comunidade científica aderiu a web 2.0, e fez dela mais um dos canais de
comunicação informal, porém com um alcance muito maior que o possibilitado por
um encontro físico entre pesquisadores. Essa nova dinâmica de disseminação que
obedece a uma outra ordem de tempo e espaço que as publicações convencionais,
oferece também um diálogo entre aqueles que fazem parte do meio acadêmico e
aqueles que não fazem, interação pouco possível nos meios tradicionais.
As mudanças e novas dinâmicas proporcionadas à comunidade científica são
muitas, como por exemplo a publicação pre-print, sistema de publicação onde o
texto recebe contribuições coletivas em um servidor de pre-prints, antes mesmo da
revisão por pares. O fazer científico adaptou-se ao surgimento das TIC’s de maneira
integral, no ato de desenvolver pesquisas e gerar conhecimento e nas dinâmicas de
publicação e disseminação dos conhecimentos produzidos, sabendo usar dessas
ferramentas para aprimorar o conhecimento, através do intercâmbio entre
pesquisadores. Porém o tema que busco ressaltar nessa interação entre redes
sociais e comunicação científica é o encontro entre acadêmicos e não-acadêmicos
em ambientes digitais, e que papel a informação científica consolidada exerce neste
cenário. Apesar de haver iniciativas como o Researchgate, o Academia.edu, ou
mesmo a plataforma Lattes, redes sociais especializadas em assuntos acadêmicos,
é possível dar algum papel relevante para redes sociais populares na disseminação
da Ciência e mesmo na comunicação entre pares.
Para o propósito deste artigo, farei a seleção de um dos artigos mais
discutidos no ano de 20191 e o analisarei através das ferramentas disponíveis pelo
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Presente neste link: https://www.altmetric.com/top100/2019/
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Altmetrics.com, buscando fazer uma análise individual que me possibilite uma
narrativa demonstrando a participação de redes sociais na comunicação e
disseminação científicas deste artigo em específico.
A partir da lista dos artigos mais discutidos no ano de 2019 selecionei a
publicação intitulada “Measles, Mumps, Rubella Vaccination and Autism: A
Nationwide Cohort Study”, um estudo dinamarquês feito ao longo de mais de 10
anos, envolvendo mais de 650 mil crianças, publicado em abril de 2019, que busca
desmistificar as hipóteses criadas em torno da relação entre vacinação e o
desenvolvimento de autismo em crianças. O artigo obteve um número alto de
menções e citações nas redes devido ao seu clamor público, em sua maior parte por
pessoas interessadas em sublimar por completo as falácias criadas, que fizeram
com que muitos pais deixassem de vacinar seus filhos, trazendo a tona doenças
erradicadas há anos.
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dar algum papel relevante para redes sociais populares na disseminação da Ciência
e mesmo na comunicação entre pares.
Os periódicos científicos, as bases de dados das instituições, as salas de aula
e os eventos acadêmicos são alguns dos espaços legítimos onde a comunicação
científica surgiu e se consolidou, e continua exercendo o protagonismo sempre que
necessita-se saber o estado da arte de uma determinada área acadêmica. Porém, a
entrada em cena das TIC’s vem produzindo sensíveis alterações nos processos
tradicionais de comunicação científica, possibilitando novas formas de produção,
circulação, disseminação, recuperação e uso das informações.
Fabrício Marques, em artigo publicado na Revista Fapesp, já em 2012
descreveu algumas das principais ferramentas digitais, citando plataformas como o
Researchgate e a nova dinâmica proporcionada por esses sites2. o Researchgate se
tornou uma importante vitrine para pesquisadores, além de um espaço ideal para o
surgimento de parcerias e troca de informações entre cientistas. Outra ferramenta
mencionada por Fabrício é o Mendeley, que surgiu como um organizador de
bibliografia e aos poucos ganhou moldes de uma rede social, tornando-se uma
ferramenta útil também para saber quais são os artigos mais lidos e mencionados
dentro de pequenas redes científicas, servindo como um filtro dentro do montante de
publicações cada vez maior.
Um outro estudo publicado por Renato Balancieri et al. analisa redes de
colaboração científica através da Plataforma Lattes (Balancieri et al. 2005),
demonstrando algumas das novas possibilidades de interação proporcionadas por
ambientes digitais.
Ainda que essas últimas ferramentas citadas sejam de uso exclusivamente
acadêmico/científico, gostaria de me preocupar neste texto com as redes sociais de
maior alcance, e o seu papel na comunicação e divulgação científicas. Para isso
farei uso de alguns dados coletados que demonstram o papel de redes sociais como
Facebook e Twitter, seja por pesquisadores e acadêmicos que divulgam e discutem
sobre suas pesquisas através das redes, ou seja por entusiastas que debatem um
determinado assunto nas redes baseando-se em um artigo publicado. Com o
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MARQUES, F. Curtir e Compartilhar. disponível em
https://revistapesquisa.fapesp.br/2012/05/11/curtir-e-compartilhar/ (acessado em 10.01.2020)
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crescente papel dessas redes na divulgação e comunicação científicas, surgiram
métricas alternativas que buscam rastrear citações e menções de artigos nas redes
como forma de contabilizar esse impacto, servindo como métrica complementar às
já tradicionais citações bibliográficas na hora de determinar o impacto de um artigo
científico.
Uma das grandes vantagens das redes sociais, e da Internet como um todo, é
a capacidade de potencializar a natural coletividade existente no fazer científico.
Primo (2007) comenta que “a Web 2.03 tem repercussões sociais importantes, que
potencializam processos de trabalho coletivo, de troca afetiva, de produção e
circulação de informações, de construção social de conhecimento apoiada pela
informática”. Outra das maiores vantagens proporcionadas pela Internet é a
capacidade da informação transcender grandes distâncias a baixo custo, minando
aos poucos os “centrismos” que sempre existiram na história da Ciência4.
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Termo usado para definir a segunda geração da Internet, marcada pela interatividade, pelos
conteúdos gerados pelos usuários e pela personalização de serviços.
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Ainda que a barreira linguística exista fortemente no campo científico, obrigando pesquisadores a
publicarem suas pesquisas em inglês caso queiram obter notoriedade.
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PRIEM, J.; HEMMINGER, B. Scientometrics 2.0: New metrics of scholarly impact on the social Web.
2010. disponível em:https://firstmonday.org/ojs/index.php/fm/article/view/2874
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melhor analisar neste texto, é o potencial de avaliar o impacto de um artigo além do
âmbito das comunidades científicas.
Em um texto publicado também em 2010, Altmetric: a manifesto6, Priem em
conjunto com outros autores inicia denunciando a falha dos atuais filtros em
determinar a qualidade da informação científica contida num artigo, baseando-se
somente no número de citações e fator de impacto da revista. A conclusão que os
autores chegam ao final do manifesto é que a solução ideal seria um amálgama de
métricas para determinar o real impacto de uma publicação, já que utilizar um único
dado, como o número de citações por exemplo, seria insuficiente e produziria um
resultado falso sobre o impacto de determinada publicação.
A Altmetria busca portanto rastrear e avaliar o comportamento online em
torno do artigo. Em “The Collection Altmetrics”, Priem et al. (2012) definem Altmetria
da seguinte forma:
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Disponível em: http://altmetrics.org/manifesto/
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ou nível das publicações (calculadas a partir da quantidade de citações em sites de
avaliação por pares) (VANTI, N.; SANZ-CASADO, E. 2016. pg. 353).
Um dos agregadores altmétricos existentes hoje é o Altmetric.com, uma
ferramenta gratuita para qualquer usuário, bastando portar um e-mail institucional e
solicitar o acesso. Por tratar-se de uma métrica diferente das tradicionais, pelo
motivo de as variáveis sobre uma publicação provirem de vários sites e plataformas
diferentes, o Altmetric.com representa o impacto de um artigo por meio de um donut,
onde cada cor representa uma rede social particular, e cada uma dessas redes
possui um peso específico que determina a “nota” final do artigo presente no centro
do donut, como na representação abaixo:
Anualmente o site Altmetrics.com publica um top 100 dos artigos que mais
receberam menções e suscitaram discussões nas redes naquele ano.
Altmetria em ação:
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Outra das informações mais relevantes mostradas pelo Altmetric.com é a
demografia das interações feitas em torno da publicação. Do total de postagens
citando o artigo, 83% (8508 postagens) foram feitas por membros do público, não
ligados à àrea científica de forma direta; 8% (829) das postagens foram feitas por
cientistas; 7% (688) das publicações foram feitas por praticantes (médicos e outros
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profissionais da saúde); e 2% (212 publicações) por jornalistas científicos. O fato de
a grande maioria das postagens serem feitas por não-cientistas demonstra que as
redes sociais são espaços onde informações acadêmicas transcendem à
comunidade científica. Dos mais de 10 mil tweets citando o estudo, uma grande
parte são de pessoas divulgando a pesquisa para seus contatos enquanto
corroboram com os resultados. Entre os tweets que divulgam a pesquisa, é possível
notar alguns perfis representando instituições de ensino e órgãos de saúde.
A ferramenta divide as menções e citações pelas plataformas de onde
surgiram, de forma com que cada rede social possua um peso específico: um tweet,
por exemplo, por ser muito mais frequente, possui um peso menor do que uma
postagem num blog científico referenciando o artigo. É natural que as discussões
encontradas em torno do artigo no Twitter não sejam diretamente sobre os
resultados e conclusões contidos no estudo. Ao invés disso, o artigo é incorporado a
uma discussão que abrange outras áreas que não só a médica.
Na busca por menções ao estudo no Twitter, foquei nos tweets feitos pelos
perfis como maior número de seguidores, justamente pelo alcance maior daquele
compartilhamento. Uma das postagens é feita por Alex Howard, um terapeuta
influenciador que possui um canal no Youtube sobre dicas de saúde mental e física
com mais de 1 milhão de inscritos, e cerca de 250 mil seguidores no Twitter. Howard
posta um tweet direcionado a Jack Dorsey, co-fundador e CEO do Twitter, o
questionando sobre o convite feito a Ben Greenfield para seu podcast. Ben
Greenfield é outra personalidade reconhecida por dar dicas sobre saúde, e uma das
vozes na campanha anti-vacina crescente nos últimos anos. Em fevereiro de 2019,
Ben postou em seu perfil questionando um portal conhecido por fazer checagem de
fatos na Internet, e aproveitou para reafirmar a hipótese de vacinas causarem
autismo:
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Após uma troca de mensagens entre Jack Dorsey e Ben Greenfield pelo
Twitter, comentando sobre a participação de Greenfield no podcast de Jack Dorsey,
Alex Howard então questionou o CEO da rede social sobre o por que colocar
holofotes sobre alguém que contribui ao espalhar boatos prejudiciais, referenciando
o estudo dinamarquês como prova irrefutável:
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Quando analisamos a métrica científica tradicional, de números tirados da
Web of Science, o artigo obteve até então 19 citações, sendo algumas dessas
citações de estudos que aplicam a mesma metodologia em outras regiões,
comprovando os resultados. É possível analisar que um mesmo documento
científico impacta a sociedade e a comunidade científica de maneiras muito
diversas. Uma métrica ideal seria capaz de rastrear o impacto social e científico de
uma publicação combinando técnicas que olhassem para essas duas direções.
Estudo de caso
O estudo foi conduzido por Anders Hviid, Jørgen Vinsløv Hansen, Morten
Frisch e Mads Melbye, sendo todos eles pesquisadores do Instituto Statens Serum,
especializado no combate de doenças infecciosas e congênitas na Dinamarca. O
estudo acompanhou 657.461 crianças nascidas na Dinamarca entre 1999 e 2010, e
encontrou 6517 casos de crianças diagnosticadas com autismo. Comparando os
casos entre crianças vacinadas e não-vacinadas não houve qualquer indício de
relação entre as vacinas e desenvolvimento de autismo. O índice é, na verdade,
menor entre as crianças vacinadas regularmente.
O artigo apesar de específico, e conter algumas representações gráficas
pouco claras para grande parte do público, é eficiente ao passar a sua ideia central
para qualquer pessoa que tenha acesso ao estudo, o que contribuiu para as
discussões suscitadas em redes sociais ao redor do artigo.
É válido recordar que a crença na relação entre o autismo e as vacinas MMR
- como são conhecidas as vacinas que previnem sarampo, caxumba e rubéola - tem
origem num outro estudo publicado em 1999 por Andrew Wakefield na revista The
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Lancet7. Nas últimas décadas, com alguma contribuição das redes sociais essa
hipótese ganhou um tom conspiracional, fazendo com que vários pais e mães
deixassem de vacinar seus filhos, ou ao menos ficassem um pouco receosos sob os
efeitos da vacina. Em 2019, 20 anos depois, doenças como o sarampo se tornaram
menos raras, e surgiram casos de doenças consideradas erradicadas pelos
sanitaristas8.
O estudo analisado neste texto integra uma série de outros estudos que
comprovam a inexistência de qualquer relação entre as vacinas e o surgimento de
autismo. O mesmo grupo de pesquisadores já havia feito estudos passados
testando se há ou não relação entre as vacinas e o desenvolvimento de autismo nas
crianças, porém neste último estudo, os cientistas preocuparam-se com todas
variáveis consideradas fatores de risco pela literatura científica da área, como a
idade dos pais da criança, tabagismo durante a gravidez, nascimento prematuro,
fatores que estatisticamente aumentam as chances da criança desenvolver autismo.
Dessa forma, o estudo se tornou um documento sólido frente às contestações e
dúvidas sobre a vacinação.
A dinâmica inerente em ambientes como redes sociais digitais oferece novas
ferramentas para a comunicação científica, fazendo com que diálogos que
usualmente demorariam meses, reféns dos prazos das editoras, possam ao menos
serem colocados à mesa sucintamente numa troca de mensagens entre
pesquisadores e entusiastas numa plataforma online. Tais debates podem ora serem
confundidos com as conversas de corredor, mencionados por Bruno Latour em Vida
de Laboratório, porém fogem às bolhas acadêmicas com muita facilidade, dando
origem a novos debates e perguntas.
Referências:
7
WAKEFIELD, A. MMR Vaccination and Autism.1999.
DOI:https://doi.org/10.1016/S0140-6736(05)75696-8
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http://saude.gov.br/noticias/agencia-saude/45750-cresce-18-numero-de-casos-de-sarampo-no-brasil
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- PRIMO, A. Interação Mediada por computador: comunicação, cibercultura,
cognição. Porto Alegre: Sulina, 2007.
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