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Belém/PA
2018
Albino José Eusébio
Belém/PA
2018
DA VIOLÊNCIA COLONIAL À VIOLÊNCIA DO DESENVOLVIMENTO: UMA
ANÁLISE SOCIOANTROPOLÓGICA SOBRE DESLOCAMENTOS
COMPULSÓRIOS PROVOCADOS PELO GRANDE PROJETO DE MINERAÇÃO
DA VALE EM MOÇAMBIQUE
Banca Examinadora:
- Prof.ª. Dra. Sônia Maria Simões Barbosa Magalhães Santos Sónia - PPGSA/UFPA
(Orientadora)
_________________________________________________________________
- Prof.ª. Dra. Rosa Acevedo Marin – NAEA/UFPA (Examinadora externa)
__________________________________________________________________
- Prof.ª. Dra. Voyner Ravena Cañete – PPGSA/UFPA (Examinadora interna)
___________________________________________________________________
- Prof. Dr. William Santos de Assis – PPGAA/UFPA (Examinador externo)
___________________________________________________________________
- Prof.ª. Dra. Luciana Carvalho– PPGSA/UFPA (Examinadora interna)
___________________________________________________________________
- Prof.ª. Mônica Conrado – PPGSA/UFPA (Examinadora interna suplente)
___________________________________________________________________
- Profa. Dra. Nírvia Ravena – NAEA/UFPA (Examinadora externa suplente)
__________________________________________________________________
Belém/PA
2018
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À memória dos meus avôs
À minha mãe Helena Francisco Canze
Ao meu pai Eusébio Augusto Gemo
Aos meus irmãos e a toda a minha família.
-4-
AGRADECIMENTOS
A história da elaboração dessa tese começa com a minha chegada no Pará, Amazônia
Brasileira, no âmbito do Programa PEC-PG do Governo Brasileiro para cursar Mestrado
em Ciências Sociais no PPGSA da UFPA. Por isso quero em primeiro lugar agradecer
ao Governo Brasileiro e particularmente ao CNPq por me ter dado essa oportunidade e
ao PPGSA por me ter aceitado como estudante do Mestrado e de Doutorado. O apoio da
minha família foi imprescindível para a decisão de continuar os estudos, por isso,
nyingu mi bhonga. No âmbito do Mestrado, não só tive a oportunidade de mergulhar
com um pouco mais de profundidade na teoria sociológica, como também de aceder às
discussões socioantropológicas sobre os efeitos sociais dos diversos projetos
desenvolvimentistas nas diversas populações tradicionais e povos indígenas da
Amazônia Brasileira. Essas discussões me inspiraram a refletir sobre os efeitos sociais
dos grandes projetos de mineração em Moçambique. Desde o primeiro momento, a
Profa. Sônia Barbosa Magalhães, minha orientadora, apoiou o projeto e agradeço
imensamente pelas orientações dadas que foram imprescindíveis para a elaboração da
presente tese. O curso de doutorado teve o apoio financeiro da Capes a quem endereço
desde já o meu obrigado. Nos finais de 2015, parti de Belém para a primeira fase da
pesquisa de campo em Moatize em Moçambique. Essa viagem teve auxílio em
passagem aérea do Ministério de Interior de Moçambique (MINT). O mesmo aconteceu
com a viagem para a segunda fase da pesquisa de campo realizada nos finais de 2017.
Agradeço imensamente ao MINT, não só por esse apoio, mas também por ter-me
autorizado a dar continuidade aos estudos. Muito obrigado. Nas duas fases da pesquisa
de campo tive apoio de outras pessoas e instituições. Agradeço a Casemiro Adolfo,
amigo e colega que me acolheu na sua residência nos dois períodos que passei pela
cidade Tete. Agradeço também a Américo Rosa pelo apoio prestado. O meu
agradecimento se estende à Administradora Distrital de Moatize, à Chefe da Localidade
de Kambulatsitsi e às lideranças de Cateme por terem prontamente autorizado a
realização do trabalho de pesquisa de campo em Cateme, bem como pelas informações
fornecidas durante o trabalho de campo. Um agradecimento especial vai para as
populações de Cateme por terem compartilhado de forma aberta suas experiências sobre
o processo de deslocamento compulsório e a realidade atual de vida cotidiana.
Tathenda. Agradeço também ao representante dos oleiros do bairro Bagamoyo-Vila e
as populações da comunidade de Catete. Muitas narrativas foram transmitidas em
-5-
Nyungwe por isso agradeço imensamente ao João Romão Sineque (Juas), jovem
poliglota e grande companheiro de pesquisa, pelo processo de tradução das entrevistas.
Com Juas percorri os quatros bairros da comunidade de Cateme, bem como diversos
espaços da vila de Moatize e cidade de Tete. Nas tardes uma cerveja gelada no mercado
de Moatize nos aliviava do calor. Nesses descontraídos ambientes íamos conhecendo
novas pessoas. Obrigado Juas. Quero agradecer também a Jeremias Vunjane e ao Prof.
João Colaço que forneceram informações importantes sobre o processo de deslocamento
compulsório da Vale, informações essas que foram úteis para a elaboração da presente
tese. Agradeço também as Profas. Teresa Cruz e Silva e Inês Macamo Raimundo pelas
análises críticas feitas ao projeto de tese e pelas diversas referências bibliográficas
compartilhadas. Os debates sobre estudos pós-coloniais incentivados pela Profa. Mônica
Conrado, ajudaram a definir a perspectiva teórica e metodológica da tese. Agradeço
muito a Profa. Mônica por suas orientações e sugestões. Agradeço também aos
funcionários e funcionárias da biblioteca da ARPAC em Tete, do Arquivo Histórico de
Moçambique, do Centro de Estudos Africanos e do Centro de Análise Políticas da
Universidade Eduardo Mondlane, que sempre estavam lá, prontos para ajudar na
localização das referências bibliográficas quando fosse necessário. Tive momentos de
tensão e esgotamento, mas as sociabilidades cotidianas permitiram a renovação das
forças. Quero terminar agradecendo aos colegas da Turma de Doutorado 2015 do
PPGSA-UFPA, aos amigos e todos aqueles que direta ou indiretamente contribuíram
para concretização dessa aventura.
Obrigado.
Nyingu mi bhonga.
Tathenda
-6-
Vieram nos deitar aqui como se fossemos lixo,
enquanto somos humanos, tínhamos nossos bens e
nossas próprias condições de vida lá nas nossas
casas onde nos tiraram. Estão a nos tratar como se
fôssemos refugiados. Nós não somos refugiados
somos donos dessa província. Um estrangeiro vem
explorar aqui e enriquecer lá no país dele e nós
ficarmos pobres assim como estamos. Faz-se isso?
(Sr. M.A.Z. Bagamoyo, 2016)
RESUMO
-7-
RESUMO
-8-
ABSTRACT
In this present work, we intend to analyze the process of compulsory displacement and
daily life of displaced populations in Moatize’s district, in the Zambezi's Valley region,
in Tete province, Mozambique, of the large operation project of coal mining by the
Brazilian multinational Vale. The study is theoretically and methodologically inspiring
in developmental anthropology, postcolonial studies and sociology of daily life. The
empirical research that bases the thesis was carried out in Moatize in two periods (first
quarter of 2016 and from November to December of 2017) and we looked for among
several points to explore the practices that characterized the process of displacement and
the reality of daily life in the "new place". Throughout the elaboration of the thesis, we
established, on the one hand, a deep dialogue between the empirical data and the
historical literature on the Zambezi's Valley region, and from other hand, with
ethnographic approaches to Vale practices in other sociocultural contexts (Canada and
the Brazilian Amazon). Two theses we seek to defend: first, that the practices of
compulsory displacement in Moatize show that there are more continuities - the
centrally planned compulsory displacement, the distiny kidnapping of the “local
communities” and the social suffering - of "violent colonial practices" than the schisms
or ruptures in the current processes of implementation development projects in
Mozambique. Second, that the violence of compulsory displacement is an intrinsic
characteristics of large mining projects which independent of the political and legal
contexts of each locus in which they are being implemented. Vale has authoritarian,
violent and "colonial" practices that are independent of the context of its
implementation. This leads us to conclude that there is a global hegemonic model of
"big mining project" that has violence and expropriation as an inseparable part, as
"another part of the same coin"
-9-
LISTA DOS MAPAS
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LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS
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CID Cooperação Internacional para o Desenvolvimento
CLN Corredor Logístico de Nacala
CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
CPLP Comunidade dos Países de Língua Portuguesa
CPRM Companhia de Pesquisa em Recursos Minerais
CSN Companhia Siderúrgica Nacional
CSS Cooperação Sul-Sul
CVRD Companhia Vale do Rio Doce
DUAT Direito de Uso e Aproveitamento da Terra
EDM Eletricidade de Moçambique
ELN Exército de Libertação Nacional da Colômbia
EMBRAPA Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária
Emocha Empresa Moçambicana de Chá
EN1 Entrada Nacional n° 01
ENI Ente Nazionale Idrocarburi S.p.A.
Eximbank The Export –Import Bank of China
FAO Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura
FARC Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia
FDS Forças de Defesa e Segurança
FGV Agro Centro de Agronegócio da Fundação Getúlio Vargas
FIR Força de Intervenção Rápida, grupo de elite da Polícia da
República de Moçambique
FLONA Floresta Nacional Sacará-Taquera
FMI Fundo Monetário Internacional
FNLA Frente Nacional de Libertação de Angola
FOCAC Fórum de Cooperação China-África
FRELIMO Frente de Libertação de Moçambique
GD Grupos Dinamizadores
GFPZ Gabinete de Fomento e Povoamento do Zambeze
GPZ Gabinete do Plano do Zambeze, atualmente denominado Agência
do Zambeze
HCB Hidrelétrica de Cahora-Bassa
HRW Human Rights Watch
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IBAMA Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis
ICOMI Indústria e Comércio de Minérios S.A
ICVL International Coal Ventures Private Limited
IDE Investimentos Diretos Estrangeiros
IDP´s Internally Desplaced Persons
INE Instituto Nacional de Estatística
INGC Instituto Nacional de Gestão de Calamidades
JA Justiça Ambiental
JICA Japanese Internacional Cooperation Agency
MAE Ministério de Administração de Estatal
MFPZ Missão de Fomento de Povoamento do Zambeze
MINAG Ministério da Agricultura de Moçambique
MNR Mozambique National Resistence
MONAP Mozambique Nordic Agriculture Program
MPLA Movimento Popular de Libertação de Angola
OCDE Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico
ODM Organizações Democráticas das Massas
ONGs Organizações Não Governamentais
ORAM Associação Rural de Ajuda Mútua
OUA Organização da Unidade Africana
PAE Plano de Ação Econômica
PAIGC Partido Africano para Independência da Guiné e Cabo Verde
PEC-G Programa de Estudantes-Convênio de Graduação
PEC-PG Programa Estudantes-Convênio de Pós-Graduação
PGC Programa Grande Carajás
PIDE Polícia Internacional e de Defesa do Estado
PNUD (UNDP) Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
POLAMAZONIA Polos Agropecuários e Agrominerais da Amazônia
PP Plano Prospetivo Indicativo
PPGCS Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais
PPGSA Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia
- 13 -
PRE Programa de Reabilitação Econômica
PRES Programa de Reabilitação Econômica e Social
RDML Rio Doce Moçambique Limitada
REBIO Reserva Biológica de Trombetas
RENAMO Resistência Nacional de Moçambique
UFBA Universidade Federal da Bahia
UFPA Universidade Federal do Pará
UGC União Geral das Cooperativas
UNAC União Nacional dos Camponeses
UNITA União Nacional para a Independência Total de Angola
URSS União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
USAID Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento
Internacional
Zamco Zambeze Consórcio Hidrelétrico Limitada.
ZEE Zonas Econômica Especiais
ZFI Zonas Francas Industriais
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SUMÁRIO
AGRADECIMENTOS................................................................................................... - 5 -
RESUMO ...................................................................................................................... - 8 -
ABSTRACT .................................................................................................................. - 9 -
SUMÁRIO....................................................................................................................- 15 -
- 15 -
4. DESLOCAMENTOS COMPULSÓRIOS E OS DIREITOS TERRITORIAIS DAS
COMUNIDADES LOCAIS ........................................................................................ - 156 -
6.1 “O que fazia lá não consigo fazer aqui”: de um lugar de diversas alternativas de
reprodução social e econômica para um lugar de alternativas limitadas ................. - 217 -
6.2 “Agora sou motoqueiro, a vida não pode parar”: em busca de novos campos de
possibilidade de sobrevivência cotidiana ................................................................. - 235 -
- 16 -
Mapa 01: Localização de Moçambique
- 17 -
Mapa 02: Divisão administrativa de Moçambique
- 18 -
1. PARA ABRIR A NARRATIVA
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mineração no distrito de Moatize, província de Tete, região central de Moçambique; e,
por outro, pela atual tensão político-militar envolvendo o grupo armado da RENAMO e
as Forças de Defesa e Segurança (FDS), dois protagonistas da guerra civil pós-
independência terminada em 1992. Ou seja, o projeto de pesquisa para minha tese foi
construído num contexto “parcialmente diaspórico” – no sentido em que o termo é
abordado pelos teóricos dos estudos pós-coloniais (HALL, 2003, GILROY, 2001) –
num país subalterno (Brasil) sobre uma realidade do terceiro mundo (Moçambique),
onde, usando as palavras de Mignolo (2003), projetos globais inerentes ao avanço do
capital internacional se encontram de forma violenta com histórias das populações da
região.
salvaguarda de interesses comuns através da proteção de áreas habitacionais, áreas agrícolas, sejam
cultivadas ou em pousio, florestas, sítios de importância cultural, pastagens, fontes de água e áreas de
expansão” (MOÇAMBIQUE, 1997). Para uma abordagem mais profund a sobre a ideia de comunidades
locais ver capítulos 03 e 04.
2Mosca e Selemane (2011) denominam de megaprojetos aos empreendimentos que tem recebido
investimentos iniciais não inferiores a 500 mil dólares americanos. Nesta tese grande projeto e
megaprojeto serão utilizados como sinônimos.
3Embora no estado “pós -colonial” moçambicano essa lógica desenvolvimentista comece de fato na
década 80 com a introdução do neoliberalismo econômico baseada na adesão de Moçambique às
instituições de Bretton Woods o que abriu espaço para a entrada nos diversos setores de Investimentos
Diretos Estrangeiros (IDE). As mudanças legislativas realizadas na década 90 acompanhando a nova e
primeira constituição que estabelece o multipartidarismo e democracia neoliberal aos moldes ocidentais,
bem como, a aprovação da lei de petróleo (lei nº03/2001) e da lei de Mineração (lei nº 14/2002)
estabeleceram um contexto jurídico geral para o crescimento rápido dos setores de mineração e do
petróleo, dando espaço para a materialização dessa lógica de desenvolvimento baseada na exploração e
exportação de commodities. Por outro lado, foi a partir de 2000 que começou a se registrar, na área de
mineração e de hidrocarbonetos, um aumento de investimentos, que variam de 400 milhões de dólares em
diante.
- 20 -
Os investimentos na área de hidrocarbonetos estão sendo incentivados pela
descoberta de significativas quantidades de gás natural na Bacia do Rovuma, Região
Norte de Moçambique, que segundo o discurso que paira na arena pública, coloca o país
numa das maiores reservas mundiais. Moçambique conseguiu atrair para este setor
algumas das maiores multinacionais mundiais na área petrolífera como, por exemplo, a
multinacional italiana ENI, bem como as multinacionais americanas Anadarko e
ExxonMobil, esta última considerada a maior multinacional privada do setor de petróleo
e gás no mundo. No que concerne ao agronegócio, destaca-se o programa
ProSAVANA, um projeto de cooperação trilateral entre o Japão, através da Japanese
Internacional Cooperation Agency (JICA), Brasil, através da Agência Brasileira de
Cooperação (ABC), e Moçambique, através do Ministério da Agricultura de
Moçambique (MINAG), que busca alavancar o “desenvolvimento agrícola” do Corredor
de Nacala, Província de Nampula, Região Norte de Moçambique. Do lado brasileiro se
destaca também a participação da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária
(Embrapa), da Associação Brasileira de Assistência Técnica e Extensão Rural
(ASBRAER) e da Fundação Getúlio Vargas (FGV); agora com a sua parceira Vale
(SANTARELLI, 2016). O ProSAVANA se enquadra na iniciativa de Cooperação Sul-
Sul da política externa brasileira. Contudo, tem sido alvo de críticas de diversas
organizações da sociedade civil moçambicana4 como a União Nacional dos Camponeses
(UNAC); a Ação Acadêmica para o Desenvolvimento das Comunidades Rurais
(ADECRU); a Associação de Apoio e Assistência Jurídica às Comunidades (AAAJC); a
Comissão Diocesana de Justiça e Paz de Nacala (CDJPN); bem como a Justiça
Ambiental (JA); que temem um processo de usurpação do território das populações
camponesas5 .
- 21 -
licenças pendentes e as que ainda estavam sendo avaliadas, o percentual territorial de
interesse para as mineradoras alcançou no ano de 2012 aproximadamente 60% de toda a
província de Tete (GALLO, 2016, p. 240). É nesta província, concretamente no Distrito
de Moatize, que se localiza o “Projeto de Moatize” de exploração de carvão mineral
operado pela multinacional brasileira Vale. Em 26 de junho de 2007, a mineradora
assinou, por meio da sua subsidiária Rio Doce Moçambique Limitada (RDML)6 -
entidade de direito moçambicano criada para deter a licença de exploração,
processamento, transporte, armazenamento e comercializado de carvão mineral – um
contrato equivalente a um prazo de 25 anos renováveis por mais 25 anos, para
exploração em mina de céu aberto do carvão de Moatize numa área estimada em 23.780
hectares, incluindo áreas de ocupação imemorial ou datada pelas populações e
comunidades locais (ver mapa 06). Neste contexto, a implementação da primeira fase
do projeto de Moatize, inerente à instalação da mina, obrigou o deslocamento
compulsório de 1.365 famílias7 dos bairros Chipanga, Mithethe, Bagamoyo e Malábue
no distrito de Moatize. Deste número, 714 famílias classificadas como rurais foram
deslocadas para a Comunidade8 de Cateme – nossa principal área de pesquisa – a
aproximadamente 30 km dos seus antigos lugares de moradia e trabalho; e 289
classificadas como urbanas para o bairro 25 de Setembro, na vila sede de Moatize
(GOVERNO DISTRITAL DE MOATIZE, 2015). As famílias restantes foram
deslocadas mediante indenização para reconstruírem pelos seus próprios caminhos suas
vidas em outros locais.
6Detida pela Vale com 95% das ações, a Vale Mocambique Ltda, congrega tambem na suas estrutura
acionista 5% dos investimentos pertencentes ao governo moçambicano; em 2014 a Vale vendeu 15% da
sua participação à Japonesa Mitsui.
7 O número médio de pessoas por família em Moçambique é 5 (INE, 2015).
8 A denominação do que é Comunidade em Moçambique é muito impreciso embora seja um conceito
- 22 -
Km de linha férrea que liga o distrito de Moatize ao distrito de Nacala a Velha,
província de Nampula, Região Norte de Moçambique, passando pela República do
Malawi. Bem como do porto de escoamento de carvão na mesma região. Dentre vários
efeitos sociais e ambientais do projeto, estima-se que milhares de famílias foram
compulsoriamente descolocadas ao longo do Corredor de Nacala (ROSSI, 2015;
SANTARELLI, 2016; NOGUEIRA, 2017; GARCIA; KATO, 2016; KATO; GARCIA,
2017). Ainda na província de Nampula, concretamente no distrito de Monapo, a Vale
encontra-se envolvida em ações de pesquisa para a exploração das recém-encontradas
reservas de fosfato que colocam o país na posição de terceiro maior produtor mundial
abrindo perspectivas para o mercado de fertilizantes (SILVA, 2014, p. 27). A empresa
tem interesses também no campo agroindustrial com destaque para o programa
ProSAVANA (SANTARELLI, 2016).
Uma das consequências diretas da atual violência armada foi, tal como nos
grandes projetos, os deslocamentos compulsórios de diversas populações. Esse é um
dos principais pontos em comum entre eles. Destacam-se no âmbito do atual conflito
duas categorias: as populações que compulsoriamente se deslocaram para outras áreas
fora de risco dentro do território nacional, que na literatura especializada são
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denominados de deslocados internos (internally desplaced Persons “IDPs”) e as
populações que compulsoriamente se deslocaram para fora do país, o que na literatura
especializada se denomina- “refugiados”, refugges (GUICHAOUA, 2004). Atravessar
ou não uma fronteira nacional constitui, do ponto de vista da legislação internacional, a
diferença fundamental entre deslocados internos e refugiados, embora sejam duas
categorias que apresentam caraterísticas sociológicas comuns como, por exemplo, a
experiência de violência, a partida forçada, a perda e o recomeço (VIVET, 2015, p. 13).
9Moçambique subdivide-se em três grandes regiões: a região Norte composta pelas províncias de
Nampula, Cabo-Delgado e Niassa; a região Sul composta pelas províncias de Maputo, Gaza e Inhambane;
e a região central que, além da província de Sofala, é também composta pelas províncias de Manica, Tete
e Zambezia. Não existe uma base legal para essa divisão que paira no imaginário dos moçambicanos. A
Constituição de 2004 prevê a divisão administrativa em províncias, distritos, postos administrativos,
localidades e povoações.
- 24 -
Calamidades (INGC) delegação da província de Inhambane, órgão responsável, dentre
diversas atribuições, pelo acolhimento e assistência aos deslocados internos, indicam
que a movimentação dos guerrilheiros da RENAMO, naquela província 10 , obrigou,
também por medo e incerteza, o deslocamento compulsório de 1 228 (mil e duzentos e
vinte oito) famílias somente no distrito de Homoine, província de Inhambane, região sul
de Moçambique, que foram acolhidas no Centro de Acolhimento de Chinjinguire, no
mesmo distrito11 .
10Inexistem registros sobre ocorrência de confronto direto entre as Forças de Defesa e Segurança e os
Guerrilheiros da RENAMO. Segundo dados oficiais foram os rumores sobre a movimentação de
guerrilheiros da RENAMO na região que fez com que as populações das áreas mais rurais se refugiassem
na vila sede de Homoine em busca de refúgio. Memorias da guerra civil ainda prevalecem na região tal
como destaca o antropólogo Luís Henrique Passador (2016; 2018) e advogamos que elas devem ter
contribuído para decisão de partir mediantes tenebrosos rumores.
11Dados obtidos no informe do INGC de Inhambane sobre o ponto da situação de emergência, março de
2014.
- 25 -
despachado…”, “volta outro dia, o diretor viajou …”, dos servidores do CENOE se
tornaram o discurso comum aos nossos ouvidos.
12Desde a década 60, início dos processos de independência colonial, vários países africanos
experienciaram guerras constantes que não pouparam nenhuma região desde o norte ao sul, de leste a
oeste, desde as guerras na Argelia e Marrocos; a guerra da Libia; as g uerras no Mali e Niger; as guerras
da Ethiopia e Eritreia; a guerra dos Tuaregues; as guerras do Txad, da Somalia, da Liberia, da Serra Leoa,
da Costa do Marfim, da Nigéria, do Congo; as guerras do Rwanda; as guerras das antigas Rodesias, as
guerras de Moçambique, só para citar alguns exemplos, que mataram milhões de africanos, provocaram
milhões de deslocados e minaram e ainda minam a cultura de paz e a construção de nações democráticas
(MUNANGA, 2016).
13Desde a década 60 a Colômbia vive uma guerra civil que já provocou milhões de mortos e deslocados.
Em 26 de setembro de 2016, o governo colombiano e as Farc-Ep chegaram a um acordo de paz, que foi
rejeitado num plebiscito realizado no dia 03 de outubro de 2016. No dia 14 de Novembro de 2016, as
Farc-Ep e o governo colombiano chegaram a um novo acordo para pôr fim a aproximadamente 50 anos
de guerra civil.
- 27 -
os deslocamentos compulsórios das populações. Isso é particularmente visível na
literatura extra-academia, notadamente no Banco Mundial. A literatura do Banco
Mundial categoriza de reassentamentos involuntários (involuntary resettlement) a
mobilidade das populações forçadas pelos grandes projetos de “desenvolvimento” que,
importa frisar, na maioria desses grandes projetos é um dos maiores financiadores,
ignorando ou invisibilizando, desse modo, a “compulsoriedade” e o caráter coercivo do
próprio processo. E utiliza a categoria deslocamento forçado (forced desplacement) para
designar a mobilidade das populações forçada pela violência armada ou guerras cíveis.
Não podemos cometer o erro de reproduzirmos essa postura na academia para não
cairmos ingenuamente na ideologia camuflada dos atores interessados – tendo em conta
que essas categorias refletem um conteúdo político e ideológico de cada ator –,
ignorando os pontos de semelhanças, simetrias e proximidades que dariam uma reflexão
inovadora à problemática dos deslocamentos compulsórios como um todo (EUSÉBIO;
MAGALHÃES, 2018a).
- 28 -
dos deslocamentos compulsórios provocados pela instabilidade política (guerra civil,
conflito político-militar) que são, por sua vez, motivados por medo e incerteza. Ambos
incidiam de forma semelhante na capacidade de reprodução social e econômica das
comunidades atingidas.
- 29 -
geral de analisar o processo de deslocamento compulsório das populações da região em
consequência da implementação do projeto Moatize de mineração, operado pela
multinacional brasileira Vale, bem como a realidade de vida cotidiana das populações
classificadas como rurais compulsoriamente deslocadas à Comunidade de Cateme, a
aproximadamente 30 Km do seu local original de vivência, habitação, produção e
reprodução social, econômica e cultural.
- 31 -
que se contrapõem ao que se pode denominar de uma linha desenvolvimentista e
progressista sobre os grandes empreendimentos. Predominante desde a década de 1930
e suportada pelos engenheiros, economistas, experts de desenvolvimento, oficiais do
estado, representantes das industrias e empresas multinacionais envolvidos na
elaboração dos megaprojetos, a linha “desenvolvimentista e progressista” celebra os
grandes projetos como a base para o desenvolvimento e progresso dos estados
nacionais. Usando o discurso de custo e benefício eles enfatizam o “potencial de
transformação social e econômica” dos grandes projetos, embora reconhecendo algumas
das suas consequências negativas consideradas “não intencionais” (ISAACMAN;
ISAACMAN, 2013).
- 32 -
Os antropólogos Katy Gardner e David Lewis resumem as discussões da
antropologia do desenvolvimento em torno de três temas principais: (i) a análise crítica
sobre o discurso e trabalhos internos da “indústria de ajuda” comandada pelas ONGs;
(ii) os estudos sobre os efeitos sociais e culturais das mudanças econômicas; e (iii) os
estudos sobre os efeitos sociais e culturais dos projetos de desenvolvimento (e porque
eles falham em termos socioculturais) (GARDNER; LEWIS, 1996). Um lócus
privilegiado das discussões que se enquadram nessa linha da antropologia de
desenvolvimento tem sido a Amazônia Brasileira. Destaco a Amazônia brasileira por
dois motivos complementares: (i) o primeiro fundamenta-se no fato de que existe uma
vasta literatura sócioantropológica com viés crítico ao projeto desenvolvimentista da
região; (ii) segundo é a importância dessa literatura para compreender o contexto atual
de Moatize porque apesar de estarem separados espacialmente (e o encontro entre
ambos so é possível através de uma ponte sobre o atlântico), ambos têm em comum o
fato de terem passado por uma experiencia colonial e serem atualmente uma fronteira de
commodities que não se fixa nela, vai para fora para o benefício de outras regiões e
outros povos.
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fizeram e continuam fazendo com que as políticas de desenvolvimento da região, a
cargo seja de organismos nacionais ou regionais se foquem em instrumentos e estímulos
diversos de exploração de recursos, sem cuidado ou distinção alguma, a quaisquer dos
ecossistemas existentes. Nesse contexto, atividades econômicas tão diversas como a
pecuária, a exploração madeireira, a mineração, a garimpagem e outras, que apresentam
diferentes impactos sobre a natureza, vêm sendo desenvolvidas indiferentemente sobre
áreas de florestas densas, nascentes e margens de rios, regiões de manguezais, nas
planícies em encostas, em solos frágeis ou nos raros solos bem estruturados. Muitas
dessas atividades produzem enorme e injustificável desperdício de recursos naturais
(LOUREIRO, 2002).
- 34 -
rurais em geral; a grilagem de terras; as queimadas; a poluição de rios, lagos; e muitos
outros. Efeitos sub-humanos e degradantes que sob a ótica desenvolvimentista e
progressista são entendidos como fenômenos característicos de uma fase inicial do
desenvolvimento amazônico, cuja tendência seria a de desaparecerem, a longo prazo.
Para a autora não restam dúvidas de que essa lógica desenvolvimentista imposta
à Amazônia faliu na sua missão de desenvolver a região; na medida em que é
excludente, compromete e destrói a rica multiculturalidade da Amazônia, leva à
homogeneização cada vez maior das sociedades, dissolvendo num todo comum as
particularidades e especificidades dos grupos sociais. Por outro lado, é concentrador de
renda, gera poucos empregos, espalha miséria em torno dos grandes empreendimentos
onde se implanta e provoca enormes danos ambientais (LOUREIRO, 2012, p. 529).
Como forma de superar esse desenvolvimento ambientalmente degradante e
culturalmente violento, Violeta Loureiro (2012) propõe, inspirada na ideia de
desenvolvimento alternativo de Boaventura de Sousa Santos, uma outra forma de
desenvolvimento na Amazônia que não se contente somente com questões econômicas,
mas que também englobe questões humanísticas. Um novo modelo de desenvolvimento
que: (i) privilegie o social, o local, o regional e os valores éticos, em especial a
solidariedade e a integração; (ii) respeite as populações da Amazônia , seus saberes e
suas identidades culturais, incorporando o conhecimento dos mesmos sobre a região,
especialmente aquele concernente à natureza e às relações com ela, bem como a
incorporação dessas populações como elementos importantes nas transformações
socioeconômicos em curso; (iii) revele o mundo amazônico como um conjunto
multicultural de diferentes grupos sociais, mais vivos e mais ricos culturalmente, ao
conservarem suas individualidades e especificidades; (iv) priorize a inclusão social das
comunidades e a sustentabilidade da natureza; (v) privilegie um diálogo mais
equilibrado, verdadeiro e solidário entre o Estado e as populações tradicionais; (vi)
reconheça que não há necessidade de desmatar nenhum hectare mais; (vii) promova a
mudança da base produtiva regional para completar as cadeias produtivas, até chegar a
finalizar produtos na própria região, contribuindo para que a Amazônia seja, não apenas
um lugar de abundância natural, mas também um lugar de justiça e de bem-estar social
(LOUREIRO, 2012, p. 537). Enfim um desenvolvimento que aproveite os saberes que
inclui grupos esquecidos ou excluídos socialmente e os engaje ativamente na produção
da vida social.
- 35 -
Na mesma linha de reflexão, o antropólogo Horácio de Sant’Ana Junior
demonstra como o avanço de uma lógica capitalista de desenvolvimento que privilegia
aspectos econômicos ignorando as diferenças culturais existentes nas sociedades, vem
transformando a Amazônia brasileira num campo de conflitos entre os atores
econômicos que insistem em transformar o espaço e seus recursos em plena mercadoria
e os povos indígenas e outras comunidades tradicionais, como é o caso das
comunidades quilombolas, as quebradeiras de coco babaçu, os seringueiros, dentre
outros. Para os primeiros, o espaço e seus recursos são passíveis de apropriação privada.
Os segundos resguardam a terra e os recursos como patrimônio coletivo defendido pela
minoria coletiva e por regras de uso e compartilhamento muitas vezes ignorados pelos
planificadores. Estes, em sua maioria são oficiais distantes que têm pouca informação
sobre as condições, recursos e necessidades existentes na área ou comunidade que serão
afetadas pela intervenção dos tais grandes projetos ditos de desenvolvimento. Numa luta
contra hegemônica, essas comunidades se engajam num movimento de resistência e de
afirmação de identidades e de formas tradicionais de vivência e de apropriação dos
recursos. Um movimento “contra hegemônico”, de oposição a uma lógica capitalista de
desenvolvimento caraterizada por usurpação de terra, apropriação dos recursos, relação
degradante com a natureza e que não leva em conta os diferentes modos de vida dos
diferentes grupos sociais. Um exemplo concreto é a implantação de um modelo
genuinamente brasileiro de conservação e apropriação da natureza que são as reservas
extrativistas (SANT´ANA JÚNIOR, 2014). Inspirados no movimento de resistência
liderado por Chico Mendes no Acre, as quebradeiras de coco babaçu da região de Bico
de Papagaio no Maranhão – um estado com inúmeros conflitos de posse e uso dos
territórios provocados pela expansão da pecuária extensiva e a adoção de monoculturas
mecanizadas como soja, milho, eucalipto, incentivadas pelo Projeto Grande Carajás – se
lançaram num movimento de mobilização e resistência. Por um lado, contra os
fazendeiros que, com a aquisição de títulos de terras que até então eram de uso comum
passaram a cercar e impedir o acesso de quebradeiras de coco aos babaçuais que
tradicionalmente exploravam na sua atividade cotidiana de coleta. E por outro contra o
desmatamento dos babaçuais pela pecuária extensiva. Esse movimento de resistência
das quebradeiras de coco babaçu da região de Bico de Papagaio culminou com a criação
da primeira reserva extrativista no Estado do Maranhão (SANT´ANA JÚNIOR, 2014).
- 36 -
Por sua vez a antropóloga Sonia Magalhães (2007) explorando a realidade da
vida das populações camponesas compulsoriamente deslocadas pela Barragem
Hidrelétrica de Tucuruí no rio Tocantins, a cerca de 300 km em linha reta da cidade de
Belém, capital do estado do Pará, denuncia o sofrimento social a elas imposta que se
configura em perdas e danos. Os relatos trazidos pela autora evocam uma “pluralidade
de situações de transformação, traduzidas em perdas, que contemplam desde o espaço
físico, o estranhamento da nova situação vivida até as relações cotidianas e de
proximidade” (MAGALHÃES, 2007, p. 193). O que evidencia que a intervenção sobre
o espaço físico provocado pelos deslocamentos compulsórios atinge violentamente as
relações sociais e desestrutura as formas especificas de organização, produção e
reprodução social das populações atingidas. A violência imposta a essas populações, nas
suas relações e estruturas sociais se manifesta na arena pública por um discurso de
“lamento e dor” (MAGALHÃES, 2007, p. 193). A falta de planejamento, a
improvisação dos procedimentos e a arbitrariedade foram segundo a autora
caraterísticas centrais do deslocamento compulsório em Tucuruí. A arbitrariedade se
manifestou, por exemplo, na classificação e contabilização das pessoas a partir de
critérios que privilegiavam o domínio econômico ignorando outros domínios
específicos das comunidades locais. O estudo de Magalhães (2007) e de vários outros
na mesma linha e que tratam sobre outros grandes projetos hidrelétricos na Amazônia
como Belo Monte (MAGALHÃES; CARNEIRO DA CUNHA, 2017) têm a
particularidade de denunciar os graves custos sociais e ambientais dos projetos
hidrelétricos na vida cotidiana das diversas populações das áreas atingidas.
- 37 -
pontos com a realidade de Moatize, dentre elas a experiência de colonização, a
prevalência de uma lógica de violência e expropriação (SANTOS, 2007), de um
desenvolvimento violento aos moldes coloniais imposta de certa forma pelos mesmos
atores econômicos (o projeto Moatize de exploração mineral é operado pela
multinacional brasileira Vale, a mesma que está, em consórcios ou individualmente, em
várias áreas da Amazônia brasileira de Carajás à Oriximiná, só para citar alguns
exemplos) e porque ambas regiões, e esse é um dos pontos que considero extremamente
relevante, (iii) são uma fronteira de commodities aberta, parafraseando as palavras de
Loureiro (2012, p. 532), para o mundo e influenciada diretamente pelo movimento das
commodities internacionais e menos pelas políticas internas do país - com o estímulo e
apoio do Estado.
- 38 -
A teoria do post-development advoga uma necessidade radical de repensar as
concepções e os objetivos de desenvolvimento entendidos como reflexo, de uma
ideologia cultural ocidental hegemônica que busca impor a homogeneização de valores
materiais, de uma determinada forma de conhecimento e cria um nível sem precedente
de destruição do ambiente (LEWIS, 2005). Na visão dessa teoria, o discurso do
desenvolvimento atua como um novo orientalismo permitindo a invenção do terceiro
mundo (VIOLA, 2000). Essa teoria foi de grande relevância para se pensar o discurso
desenvolvimentista em Moçambique que tem nos grandes projetos de mineração um dos
setores dinamizadores.
- 39 -
A partir do rompimento de um lugar de enunciação hegemônico os estudos pós-
coloniais constroem uma crítica a certa episteme ou forma de produção de
conhecimento que ao privilegiar modelos e conteúdo próprio ao que se define como
cultura nacional ou histórias locais dos países europeus, reproduz em outros termos a
lógica de relação colonial e inferiorizante. Isso nos obriga a rever constantemente os
nossos conceitos. Por exemplo, visto a partir da crítica pós-colonial a modernidade é
colonizante e a colonização é parte constitutiva da modernidade. Diz-nos, por exemplo,
Walter Mignolo que a modernidade não pode ser vista de forma dissociada da
colonialidade, na medida que este pressupõe o seu lado reverso, inevitável e sombrio
(MIGNOLO, 2003). Ou seja, na narrativa pós-colonial a colonização não é apenas um
domínio direto de certas regiões do mundo pelas potências mundiais, “mas sim um
processo inteiro de expansão, exploração, conquista e de hegemonia imperial” (HALL,
2003, p. 112-113). Neste contexto a modernidade não pode ser vista de forma distante
da relação centro e periferia. Essa narração implica, primeiro, deslocar a história da
modernidade do seu centramento europeu para as suas periferias dispersas em todo o
globo. E, segundo, denunciar o seu lado oculto que é a conquista, a exploração, a
inferiorização de outros povos e formas de vivência não inscritas nessa ordem
hegemônica. O que Aníbal Quijano (2005) denomina de colonialidade de poder e do
saber como parte intrínseca. A modernidade é um “processo irracional que se oculta aos
seus olhos” ou ainda a “justificativa de uma práxis irracional de violência” (DUSSEL,
2005, p. 29). Tal como destaca Dussel (2005, p. 29)
- 40 -
Neste contexto, o desenvolvimento é visto, a partir da perspectiva pós-colonial e
estudos subalternos, como um novo discurso hegemônico eurocêntrico de dominação
dos povos. Ou seja, ao contrário do “pretexto salvacionista e civilizacionista”, a lógica
desenvolvimentista revela-se como uma nova forma de dominação e de colonização dos
povos do terceiro mundo (SOUZA PINTO; MIGNOLO, 2015).
Isso significa, em resumo, que “existem discursos hegemônicos que precisam ser
desconstruídos”, na medida em que, determinam e fixam o lugar do lugar do outro.
Advogo ao longo da presente tese, inspirado por essa perspectiva de análise, que no
contexto geopolítico atual o discurso de “desenvolvimento”, “progresso” e “melhoria
de vida”, constituem uma vertente desses discursos hegemônicos, na medida em que,
não só são homogeneizantes e essencialistas e fixam a posição do sujeito, como
também, constituem um discurso de um projeto global que é desvinculado das histórias
locais dos próprios sujeitos (MIGNOLO, 2003). Ou seja, são discursos acoplados numa
- 41 -
colonialidade de poder. Desconstruir esses discursos hegemônicos é promover uma
descolonização epistêmica. E isso é uma das premissas que torna a perspectiva crítica e
desconstrucionista dos estudos pós-coloniais interessante para a presente tese. Não só
porque se trata de um trabalho que está sendo escrito no contexto epistemologicamente
subalterno sobre uma realidade do terceiro mundo, mas principalmente, porque os
estudos pós-coloniais nos permitem problematizar essas categorias como
desenvolvimento e melhoria de vida, que norteiam os grandes projetos e são a principal
justificativa dos deslocamentos compulsórios (expropriação das suas terras ancestrais de
ocupação imemorial ou datada) das comunidades locais. Em outras palavras, nos
permitem interrogar os “sacrifícios necessários ao progresso nacional”, ao evidenciar o
seu lado obscuro e desastroso (MIGLIEVICH-RIBEIRO, 2014, p. 68); como por
exemplo, a violência a intimidação, a destruição das bases originais de reprodução
social, econômica e cultural e o empobrecimento. Ou seja, os estudos coloniais nos
permitem repensar essas ideias dominantes de que os grandes projetos de mineração vão
produzir desenvolvimento e bem-estar para todos, resgatando a perspectiva do outro - a
partir da realidade de vida atual e das narrativas das próprias populações
compulsoriamente deslocadas pelo projeto da Vale em Moatize.
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cotidiana nos novos locais (vide capítulo 06) são algumas dessas contradições
desastrosas.
- 43 -
Tal como destacamos em outro trabalho (EUSÉBIO; MAGALHÃES, 2018a) a
sociologia do cotidiano, interessa-se pelas “pequenas coisas da vida cotidiana”
(EUSÉBIO; MENDONÇA, 2015), pelo “aqui e agora” embora não se esgote nisso
(BERGER; LUCKMANN, 2012), pelo “aqui e hoje, pelo viver intensamente o minuto
desprovido de sentido” (MARTINS, 1998, p. 1); por “pequenos pormenores do
cotidiano, pelos encontros efêmeros, pelos indivíduos (...) pela interpretação [e
compreensão] individual e coletiva dos fatos sociais, pelo detalhe ínfimo que completa
o quebra-cabeças do social” (MACAMO 2002, p. 22). Enfim pelos processos
microssociais e pelo que muitos consideram, equivocadamente, o irrelevante, ordinário,
banal e irracional. Portanto a sociologia do cotidiano pressupõe a reinvenção da própria
sociologia na medida em que viabiliza a “redescoberta da sociologia fenomenológica”
ao mesmo tempo em que sugere uma “crítica nova e renovada à sociologia positivista”
(MARTINS, 1998, p. 2).
Foi inspirado nessa perspectiva que partimos para a pesquisa de campo que foi
realizada em dois períodos: no primeiro trimestre de 2016 e de novembro a dezembro de
2017. No primeiro, o foco foi sobre as populações expropriadas ou compulsoriamente
deslocadas das suas áreas ancestrais de ocupação imemorial ou datada e teve como
lócus principal a comunidade de Cateme, área onde foram reassentadas as populações
classificadas de rurais (ver capítulo 03 e 06) a aproximadamente 30 km do seu lugar
anterior de ocupação imemorial ou datada. No segundo, a pesquisa foi estendida para
outras populações atingidas, concretamente, as “populações remanescentes” do bairro
Bagamoyo e a comunidade de Catete, que tem em comum o fato de viverem e
produzirem nos arredores da área concessionada ao projeto de mineração da Vale.
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Em ambos os períodos priorizamos uma forma artesanal de fazer pesquisa
inspirada em Wright Mills (1975) e Martins (2014), valorizando, por exemplo, a
memória das próprias populações “atingidas”. Explorar a memória é, seguindo a linha
de Paul Ricoeur (2003) aceder ao passado enquanto espaço do acontecido, ou usando as
palavras do próprio autor do “tendo estado”. A memória é vida. É parte integrante dos
grupos vivos. Somos seres de memória que está sempre em constante evolução e aberta
à dialética, não só da lembrança e do esquecimento (NORA, 1993), como também do
silêncio (POLLAK 1989). Refletindo sobre o contexto moçambicano Ungulani Ba Ka
Khosa, o teórico das memórias silenciadas e das memórias perdidas e identidades sem
cidadania (KHOSA, 2013; 2015) destaca a importância da memória para afirmação da
identidade baseada na diversidade étnica e de tradições, caraterísticas típicas da
realidade social moçambicana. A memória seja ela individual ou coletiva
(HALBWACHS, 1990; RICOEUR, 2003 POLLAK, 1989; NORA, 1993; 1999) é o elo
do vivido com o tempo presente. Alimenta-se das lembranças que em alguns casos são
seletivas e que dependem de alguns elementos e lugares que as acionam. Por exemplo,
foi nas ruínas dos antigos edifícios feitos de tijolos queimados, nas árvores, como
Embondeiro (Baobá), e no riacho que passa próximo do local que através deles Fidelis
(meu interlocutor) acionou a memória sobre Chipanga e transmitiu através das
narrativas as suas lembranças sobre o lugar e experiência vivida.
- 45 -
a entrada das populações nas suas antigas áreas de produção. Fato que era comum.
Antes da cerca os oleiros continuavam entrando na área que hoje, em nome de
desenvolvimento já não lhes pertence. Era de lá que se extraía a terra de melhor
qualidade para a produção de tijolos. Algumas populações do bairro Malábue em
Cateme ainda voltam para antigas áreas nas margens do rio Revúbue para cortar caniço,
principal material no processo de construção de esteiras. A cerca visa impedir essas
ações. Através de um Embondeiro que por alguma razão a empresa ainda não destruiu o
Chefe dos Oleiros de Bagamoyo-Vila, acionou a sua memória sobre as antigas áreas de
produção de tijolos e compartilhou comigo informações sobre a localização dos fornos e
a organização espacial das antigas áreas de produção e a relação que se estabelecia entre
os oleiros.
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inspiração a proposta de Veena Das (2008b), compreender como o processo de
deslocamento compulsório foi experienciado e é cotidianamente vivido pelas próprias
populações compulsoriamente deslocadas. Neste contexto, exploramos as narrativas das
experiencias vividas com a intenção de compreender as transformações que ocorreram e
os efeitos sociais das mudanças que lhes foram impostas.
Importa realçar em jeito de conclusão que, tal como lembra Michael Pollak
(1989) as lembranças emergem em função das circunstâncias, dando-se ênfase a um e
outro aspecto. Lembranças de situações tenebrosas e perversas como as que as
populações compulsoriamente deslocadas experienciaram remetem sempre ao presente,
deformando e reinterpretando o passado (POLLAK, 1989). Com isso queremos reiterar
que estamos cientes de que as narrativas colhidas e que nortearam a elaboração da
presente tese, não podem ser vistas como reflexo das experiências em si, mas de como
essas experiências são atualmente interpretadas e vivenciadas. Razão pela qual devem
ser compreendias nessa vertente.
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As entrevistas não se resumiram exclusivamente às populações
compulsoriamente deslocadas para Cateme, nem às populações remanescentes de
Bagamoyo e à população de Catete. Durante a pesquisa em Moatize visitei a Associação
de Apoio e Assistência Jurídica às Comunidades (AAAJC), que tem sua sede na cidade
de Tete. Num diálogo com Dulce Combo integrante do corpo diretivo, tive acesso às
informações sobre as ações que tem desenvolvido em defesa das comunidades afetadas
pela mineração. Dulce compartilhou diversos referenciais jurídicos sobre a mineração e
comunidades locais. Foi a convite dela que visitei Cancope, uma comunidade que se
encontra dentro da área concessionada ao projeto Benga de mineração atualmente
operado pela International Coal Ventures Private Limited (ICVL), mas que sofre efeitos
sociais e ambientais do projeto de exploração mineral da Vale. A experiência dessa
visita foi publicada sob a forma de ensaio etnográfico intitulado “Cancope, a
comunidade onde nutre a esperança: transformações sociais na vida cotidiana de uma
comunidade rural em Moatize, Moçambique”, na Revista Visagem (EUSEBIO, 2016).
Em Maputo, estabeleci um diálogo com Jeremias Vunjane, jornalista e ativista da
UNAC e da ADECRU e que tem atuado na defesa das populações camponesas contra a
usurpação das suas terras pelos grandes empreendimentos agroindustriais com destaque
para o ProSAVANA. Vunjane acompanhou, junto com outros membros da Justiça
Ambiental, a partir de 2009 o processo de deslocamento das populações para Cateme e
25 de setembro. Estabeleci também um diálogo com João Colaço, sociólogo e professor
da Universidade Eduardo Mondlane. O professor João Colaço acompanhou o processo
de deslocamento compulsório empreendido pela Vale e tem desenvolvido analises
sociológicas sobre os seus efeitos sociais. Dialoguei também com Tereza Cruz e Silva,
cientista social, pesquisadora e professora do Centro de Estudos Africanos (CEA). Em
2016, a professora Tereza estava desenvolvendo pesquisas sobre os efeitos sociais do
deslocamento compulsório provocado pela Vale, que culminou com a publicação em
2017, em coautoria com Conceição Osório do livro “Corporações económicas e
expropriação: raparigas, mulheres e comunidades reassentadas no Distrito de Moatize”
(OSÓRIO; CRUZ E SILVA, 2017). Ainda na Universidade Eduardo Mondlane,
dialoguei com Inês Macamo Raimundo, professora e pesquisadora do Centro de
Analises de Políticas (CAP) e uma das principais referências nos estudos sobre
migrações em Moçambique. Ambas fizeram uma análise crítica de minha proposta de
tese e compartilharam uma vasta bibliografia que foi essencial para elaboração dessa
tese.
- 48 -
Nos dois períodos de trabalho de campo em Moçambique (2016 e 2017, acima
mencionados) me dediquei também à pesquisa bibliográfica. Na cidade de Tete visitei o
acervo bibliográfico da delegação local do antigo Arquivo do Património Cultural
(ARPAC), atualmente denominado Instituto de Investigação Socio-Cultural, onde tive
acesso à bibliografia sobre o povo Nyungwe e a sua cultura; sobre a guerra colonial em
Tete; e de um modo geral sobre a história de Moçambique. Em Maputo pesquisei o
acervo da biblioteca do Centro de Estudos Africanos; Centro de Estudos de Políticas e
do Arquivo Histórico, todos da Universidade Eduardo Mondlane. Nas três bibliotecas
tive acesso a uma vasta literatura histórica sobre Moçambique e Vale do Zambeze em
particular. Destaca-se, por exemplo, a bibliografia sobre a ocupação colonial portuguesa
em Moçambique, o processo de aldeamentos coloniais, a guerra colonial, bem como
sobre o período socialista pós-independência, com destaque para a política da
socialização da produção rural, a criação das aldeias comunais, a guerra civil, a
restruturação socioeconômica, entre outros.
- 49 -
implementadas desde a década 90 têm na segurança jurídica do território das
comunidades locais que são as mais diretamente afetadas pelos projetos
desenvolvimentistas. No capítulo cinco descentralizamos a nossa análise do estado para
empresa, explorando a atuação da Vale no Canada e na Amazônia Brasileira. A hipótese
que buscamos defender é que a Vale é uma empresa que apresenta práticas autoritárias e
violentas (seja física ou simbólica) de atuação que independem do contexto de sua
implementação. Ou seja, a violência, a expropriação, dentre outros custos sociais e
ambientais, são parte integrante das suas práticas independente do contexto social,
político e jurídico onde os seus projetos estão sendo implementados. Uma vasta
literatura da Amazônia brasileira já aponta nesse sentido. No sexto capítulo exploramos
a realidade de vida cotidiana das famílias classificadas como rurais e foram
compulsoriamente deslocadas para Cateme, a aproximadamente 30 km do seu lugar
anterior de ocupação imemorial ou datada. No sétimo capítulo apresentamos as
considerações finais.
Boa leitura...
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2. MOATIZE: ENTRE HISTÓRIAS LOCAIS E PROJETOS GLOBAIS
- 51 -
econômica), sendo os deslocamentos compulsórios um denominador comum. Ao longo
do presente capítulo analisaremos também os contextos históricos e políticos que
culminaram com a chegada da Vale à Moatize, primeiro grande projeto de mineração
em Moçambique e que marca a nova encruzilhada de projetos desenvolvimentista na
região do Vale do Zambeze. A chegada da Vale a Moatize foi acompanhada de um
discurso de cooperação sul-sul do Brasil. Na parte final desse capítulo analisamos essa
cooperação apontando alguns desencontros entre o discurso e a prática.
****
15 Os outros são Angônia, Mutarara, Dâo, Tsangano, Zumbu, Chifunde, Chiuta, Macanga e Maravia ao
norte do rio Zambeze; Cahora-Bassa, Changara, Mágoè, Marara e cidade do Tete ao sul do rio Zambeze.
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Mapa 03: Província de Tete com destaque o distrito de Moatize
- 53 -
fato de a maioria dos Nyungwes povoar (no tempo em que fez a sua pesquisa) a margem
esquerda do Zambeze, prolongando-se até o distrito de Chikwana no Malawi16 .
Essa composição, por sua vez, é fruto dos diversos processos migratórios, e
também da própria composição dos estados africanos que por suas heranças coloniais
são resultantes de um processo histórico de invasões e ocupações. Estas acabaram por
produzir, por um lado, a unificação num único território de povos antigamente
independentes e culturalmente diferentes. E, por outro, a separação em territórios
diferentes de um mesmo povo antigamente unido num mesmo território (MUNANGA,
2016). O mapa 04 elucida a riqueza da diversidade étnica e linguística de Moçambique
(o mapa apresenta uma denominação diferenciada. Neste contexto Nyungwe
corresponde ao Cinyungwe). Logicamente que esse mapa não pode ser visto de forma
essencialista, pois está longe de refletir na íntegra a atual estrutura, mas nos permite ter
uma ideia do processo de ocupação e distribuição dos diversos povos que tornam
Moçambique um estado plurinacional. Embora uma cartografia atual sobre possa
evidenciar uma maior percentagem dos Nyungwes na província de Tete, ela também
pode evidenciar que os Nyungwes se encontram espalhados em várias regiões de
Moçambique. E isso logicamente se aplica para outros povos.
16 Para mais informações ver Maia (2015) e História de Moçambique em: Newitt (2012); Serra (2000)
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Mapa 04: Estrutura dos Grupos Étnicos de Moçambique
De acordo com dados do INE (2010), 85% da população de Moatize vive nas
áreas rurais e os restantes 15% nas áreas urbanas - essa é a tendência geral da província
de Tete onde 86,3% da população vive nas áreas rurais e somente 13,7% vivem nas
áreas urbanas. Neste contexto, o distrito é majoritariamente composto por uma
população camponesa na sua forma de organização, produção e reprodução
- 55 -
socioeconômica. A agricultura é a atividade dominante e envolve quase todos os
agregados familiares17 , impulsionada principalmente pelas terras férteis das margens do
rio Zambeze, Revúbue e Moatize. Dados do último Perfil do Distrito de Moatize
publicado em 2005 pelo Ministério de Administração Estatal (MAE) indicam que a
produção agrícola é predominantemente de sequeiro, praticada manualmente em
pequenas unidades familiares em regime de associação de culturas com base em
variedades locais.
17 Conjunto de pessoas que residem no mesmo alojamento, tenham ou não relações de parentesco,
podendo ocupar a totalidade ou parte do alojamento e cujas despesas para a satisfação das necessidades
essenciais são suportadas parcial ou totalmente em conjunto. Considera-se também como agregado
familiar, pessoas independentes ou isoladas que ocupam a totalidade ou parte do alojamento (INE, 2012).
- 56 -
2.1 A encruzilhada dos projetos de exploração e desenvolvimento do Vale do
Zambeze: do tempo colonial ao período pós-colonial
- 57 -
Os portugueses chegaram à região do Vale de Zambeze no século XVI. Desde
então o rio Zambeze – essa imensa “cobra” que nasce no norte da Zâmbia, passa por
Angola, Namíbia, Botswana, Zimbábue e deságua em Moçambique, com
aproximadamente 2800 km – figurou como um elemento estratégico para a colonização
da parte interior de Moçambique e exploração econômica. Antes da chegada dos
portugueses, a região do Vale do Zambeze - que foi por muito tempo dominada pelo
Estado Mutapa e pelos povos tongas ao norte e a oeste - figurava como uma importante
e vibrante rota de comércio de ouro, marfim e de pessoas escravizadas, operada pelos
comerciantes árabes. Desde o primeiro momento, interessava a Portugal o controle
dessa rota de comércio, arrancando o seu controle dos árabes como forma de otimizar
seus lucros com o comércio de produtos como ouro prata e marfim. Na década de 1570,
Portugal estabeleceu assentamentos fortificados ao longo do Vale do Zambeze nas
regiões de Sena e Tete transformando essas áreas em importantes centros administrativo
e militar da região. A região de Sena que se localiza a aproximadamente 200 km da
costa do Oceano Índico era vista como estratégica para o controle da navegação fluvial
entre o rio Zambeze e o rio Shire. E a região de Tete, como um ponto estratégico para a
colonização da área interior da região sul e central do continente Africano. Mais tarde,
Portugal construiu um pequeno posto comercial e militar no interior do atual distrito de
Zumbo, na margem norte do rio Zambeze, na sua confluência com o rio Luangwa, um
afluente do rio Zambeze. Sena, Tete e Zumbo foram por quase trezentos anos o centro
da rede comercial portuguesa (ISAACMAN; ISAACMAN, 2013, BORGES COELHO,
1993; SERRA, 2000).
Até o final do século XVIII ouro e marfim representavam mais de 80% do valor
das exportações do Vale do Zambeze. Essa hegemonia durou até o início do século XIX
quando a natureza do negócio mudou drasticamente e o Vale de Zambeze se tornou
importante área de comercio de pessoas escravizadas. Segundo Isaacman e Isaacman
(2013), se até a década 1750 chegavam à costa do Índico aproximadamente cem
indivíduos capturados prontos para serem vendidos como escravos, no ano de 1821 o
número superava a cinco mil e representava 90% das exportações do Vale do Zambeze.
O comércio de pessoas escravizadas continuou nesta região mesmo depois de Portugal
decretar a abolição oficial da escravatura em 1836. A maioria das pessoas escravizadas
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da região do Vale do Zambeze era enviada para os trabalhos forçados nas plantações de
açúcar em Cuba, nas Ilhas Maurícias e principalmente no Brasil18 .
18 Existeuma vasta literatura que aborda o tráfico negreiro transatlântico e a dinâmica da escravidão no
Brasil. Ver por exemplo, MARQUESE (2006). Recomendo também a leitura do E-book “Do tráfico ao
pós-abolição: trabalho compulsório e livre e a luta por direitos sociais no Brasil” (OSÓRIO; XAVIER,
2018). Bezerra Neto (2001) destaca a prevalência dessa migração forçada de negras e negros
moçambicanos para a Amazônia brasileira no século XVIII. Segundo o autor, a população africana que
desembarcou no porto de Belém, entre os anos 1753 a 1801, para ser escravizada, era proveniente das
praças de escravos de Bissau, atual República de Guiné Bissau; das ilhas Cabo -Verde atual República de
Cabo-Verde; de Luanda Benguela e Cabinda na atual República de Angola; do po rto de Mombaça na
atual República do Quênia, bem como das regiões ao norte e a sul do rio Rovuma nas atuais Repúblicas
de Tanzânia e Moçambique (BEZERRA NETO, 2001). Essa migração forçada foi dinamizada pela
entrada em funcionamento das Companhias do Grão -Pará e do Maranhão, porém alguns desses negros e
negras escravizados foram, também, empregados nas fazendas de cacau, com destaque para as regiões de
Santarém e Óbidos na então província do Grão-Pará. Para mais informações recomendo acessar a Revista
Afro-Ásia do Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia (UFBA), disponível
em http://www.afroasia.ufba.br e ao grupo de pesquisa CNPq “As experiencias dos africanos e seus
descendentes no Brasil”, disponível em: http://www.escravidaoeliberdade.com.br. O livro Casa Grande e
Senzala, apesar das críticas de que é alvo, destaca a importância das negras e negros e logicamente dessa
perversa migração forçada na formação da sociedade brasileira (FREYRE, 2003).
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criminosos condenados em Goa e Portugal em administradores da coroa. Os prazos
eram administrados por portugueses e suas famílias por até três gerações. Comandavam
milhares de exércitos de indivíduos transformados em pessoas escravizadas e viviam
dos impostos e de produtos agrícolas pagos pelos povos “autóctones”, na sua maioria
camponeses, no que concerne a sua forma de produção, organização e reprodução
socioeconômica, que residiam em suas propriedades. Bem como dos lucros que
derivavam do comércio de pessoas escravizadas e de marfim. Até meados do século
XVIII existiam mais de 125 prazos nas margens do vale do Zambeze, entre Tete e a foz
(ISAACMAN; ISAACMAN, 2013).
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destacando o seu papel nas migrações forçadas de diversas populações das áreas
concessionadas. Para já, importa destacar que, com as companhias, estabelecia-se assim
a segunda tentativa de controle político econômico da região do Vale do Zambeze.
Essas concessões a empresas e investidores privados surgiram, por exemplo, como uma
segunda tentativa de promoção da agricultura na região depois do fracasso da mesma
política no sistema de prazos. Ora vejamos, por muito tempo as autoridades portuguesas
acreditavam que a agricultura seria a âncora do sistema de prazos. Por isso não só
incentivavam a sua prática, como determinavam periodicamente as culturas a serem
produzidas: arroz, café, açúcar e outras culturas de rendimento. Contudo, apesar dos
esforços ela nunca vingou. Em 1806, apenas vinte mil quilos de alimento foram
exportados de toda a região. Em 1821, a quantidade da exportação diminuiu em 90%
(ISAACMAN; ISAACMAN, 2013). O fracasso da agricultura era cimentado dentre
vários fatores pelos rendimentos elevados que eram obtidos no comércio de pessoas
escravizadas e de marfim.
Nos finais do século XIX Portugal abriu a região para o comércio internacional e
a crescente demanda europeia por óleo vegetal para a fabricação de sabão e vela
estimulou a produção agrícola baseada na produção camponesa. Porém, ainda no
mesmo período, Portugal voltou a incentivar e subsidiar a agricultura de plantação desta
vez através dessas empresas concessionarias denominadas de sistema de companhias
(ISAACMAN; ISAACMAN, 2013; ANDRADE, 2016). As companhias empregavam
povos autóctones. Muitos trabalhavam para pagar impostos por habitarem na área de
jurisdição da companhia. Em 1899, a promulgação de um código trabalhista nativo, que
legitimava o sistema já existente de trabalho forçado em Moçambique, conhecido como
“chibalo”19 , assegurou às empresas concessionárias um amplo suprimento de força de
trabalho. Esse cruel e desumano sistema de trabalho forçado permitiu amplo
crescimento da produção agrícola e assegurou a rentabilidade das plantações de copra e
sisal que surgiram no final do século XIX ao longo da costa.
- 61 -
Como forma de estimular a produção agrícola e mineral na região, os
colonialistas portugueses construíram em 1922 a ferrovia Trans-Zambezia. Em 1935, a
construção da ponte ferrovia sobre o rio Zambeze em Sena, permitiu a ligação entre a
região de Moatize, rica em carvão mineral e o porto da Beira. Dados apresentados
recentemente pelo antropólogo Inácio de Andrade (2016), evidenciam que a construção
foi viabilizada pela companhia de Moçambique, em conjunto com o consorcio inglês
Trans-Zambezia Railway, dominada pela British South Africa Company com a intenção
de escoar a produção inglesa em Niassalândia, atual República de Malawi. A construção
dessa linha férrea permitiu a abertura de oportunidades para a entrada, por exemplo, de
novos projetos em Tete cuja antiga ligação precária por terra e a navegação pelo rio
Zambeze não permitiam; bem como estabelecer-se como um escoadouro de mercadorias
de países vizinhos como Niassalândia e Rodésia atual República do Zimbábue. Em
função dessa linha férrea, a região de Tete passou a receber um imenso fluxo de brancos
de todas as nacionalidades, principalmente os de nacionalidade inglesa.
Tal como aconteceu com o estabelecimento dos prazos da coroa, mesmo com o
estabelecimento das “companhias” o desenvolvimento econômico da região do Vale do
Zambeze continuava uma ilusão (ISAACMAN; ISAACMAN, 2013). Depois da
Segunda Guerra Mundial, os planejadores coloniais concluíram que outros grandes
projetos eram necessários para promover a modernização no Zambeze. Dentro de uma
década, a construção de uma barragem em Cahora Bassa tornou-se a panaceia para a
decolagem econômica. O sistema de companhias foi extinto nos anos 1930 e 1940
revertendo-se o controle das terras para o governo colonial (SERRA, 2000,
ISAACMAN; ISAACMAN, 2013; ANDRADE, 2016).
20 Elisabeth
Colson analisa os efeitos sociais da barragem de Kariba para os povos Gwmbe Tonga
(COLSON, 1971).
- 63 -
o MFPZ publicou vinte e sete estudos preliminares das condições climáticas,
geológicas, topográficas, hidrológicas e econômicas na bacia do rio Zambeze. Em 1966
produziu um relatório final de cinquenta e seis volumes que confirmava a avaliação
prévia de que uma barragem seria altamente benéfica para Moçambique (ISAACMAN;
ISAACMAN, 2013).
- 65 -
também controlada pela Société Generale de Belgique que transferiu os seus ativos no
valor de 8 mil contos para a Carbomoc. No total, o grupo belga da Cominière detinha
60% do capital e a Companhia de Moçambique, que também contava com investidores
belgas, 30%. O Estado português recebeu ações correspondentes aos 10% restantes,
bem como o direito a incluir um seu representante no Conselho de Administração
(ANDRADE, 2016). Da década de 1960 a 70 registra-se um declínio na produção,
provocado, não só pelos altos custos do carvão de Moatize, mas principalmente pela
instabilidade político e militar que se vivia no país. Em 1973 por exemplo, os
investidores belgas passaram todos seus ativos para os ingleses da British South African
Company e para o governo português, que passou a ser o maior acionista.
- 67 -
com, no máximo, 20 kg de bagagem. No Vale do Zambeze foco das últimas políticas de
desenvolvimento do governo colonial, muitos empreendimentos, incluindo as minas de
carvão e as empresas que delas dependiam fecharam, o prédio do GPZ foi abandonado e
seus projetos cancelados, a linha férrea foi paralisada e o comércio sofreu um sério
baque (ANDRADE, 2016, p. 65).
- 68 -
ministro tanzaniano; Tom Mboya, guerrilheiro, intelectual e fundador do Quênia
independente (ANDRADE, 2016). Isso para dizer que essa não era uma posição
exclusiva do regime “pós-colonial” moçambicano.
A socialização dos meios de produção era vista como a base para a criação de
um forte setor estatal agrário e para a transformação da agricultura familiar, com o
enquadramento de milhares de camponeses em cooperativas agrícolas e a emergência de
um operariado agrícola. E, também, para a criação de condições para o aumento da
produtividade no campo. Com essa política, a FRELIMO pretendia substituir
plantações coloniais abandonadas ou disfuncionais por empresas estatais e cooperativas
agrícolas. Tal como destacam Isaacman e Isaacman (2013), o novo regime havia
assumido após a independência quase duas mil propriedades agrícolas abandonadas ou
mal geridas, algumas das quais produziam culturas para exportação, como chá, algodão
e arroz, etc. Em 1981, por exemplo, dezenove das vinte e uma empresas de chá da época
colonial haviam sido colocadas sob a direção da então recém-criada empresa estatal
Emocha (Empresa Moçambicana de Chá) e a maioria das concessionárias de algodão,
com uma longa história de exploração do trabalho forçado, foram nacionalizadas.
- 70 -
de produção agrícola assentada nas aldeias comunais e na produção coletiva era oriunda
da experiencia da FRELIMO nos campos de treinamentos militares na República da
Tanzânia durante a guerra da libertação e na ideia de superação dos tribalismos e
divisionismos para a construção coletiva de uma contra narrativa revolucionária. A
mesma lógica de produção havia sido implementada durante a guerra de libertação
nacional nas zonas libertadas em Cabo Delgado na região norte de Moçambique
(CABAÇO, 2007; CASAL, 1996, ANDRADE, 2016, GALLO, 2017).
problema que deveria ser enfrentado pelo novo estado independente. Na sua visão, o êxodo português
tinha comprometido a agricultura de larga escala e as redes comerciais do campo. Nesse sentido o
fortalecimento da agricultura familiar, setor explorado e negligenciado pelo colonialismo português, era a
chave para a dinamização da economia rural (ANDRADE, 2016).
- 71 -
conta suas diversas condições ecológicas ou ainda as formas históricas de organização,
produção e reprodução social, econômica e cultural.
22 Além do grande projeto agrário do Vale do Zambeze, importa destacar também naquele período, em
nível nacional, o projeto agrário de Limpopo-Incomáti; o projeto Lucheringo; o projeto de 400 mil
hectares em Niassa e Cabo-Delgado; o projeto da região algodoeira de Nampula; o projeto Angônia-
Maravia; o projeto de Lioma; o projeto de Nauela; o projeto Catandica e o projeto de Sussundenga,
Rovué-Vundúzi-Púngoé. A área cultivada por esses projetos agrários era nos finais da década 1970 de
aproximadamente um milhão de hectares (CHICHAVA, 2011a).
- 72 -
Essa postura contraria o posicionamento inicial da FRELIMO, ainda no tempo
da guerra de libertação, que foi diplomaticamente e militarmente hostil à construção da
barragem. A campanha diplomática contra a construção da Barragem de Cahora Bassa
no Vale do Zambeze começou em 1968 quando Eduardo Mondlane, primeiro presidente
da FRELIMO criticou abertamente a aliança entre os colonialistas portugueses e o
regime do apartheid. Para Mondlane se a barragem não fosse destruída ela é que iria nos
destruir e o regime racista branco em África iria definitivamente triunfar (ISAACMAN;
ISAACMAN, 2013). O chamado de Mondlane ajudou a desencadear uma campanha
internacional bem organizada e altamente visível para bloquear o financiamento à
barragem com uma pluralidade de atores.
Um dos objetivos da campanha, tal como nos mostram os autores, era convencer
as grandes corporações ocidentais, tais como o Barclays Bank, a General Electric, a
Siemens, a AEG e a Compagnie de Construtions Internationales a não financiar a
construção da Barragem. Um dos principais porta-vozes internacionais do movimento
contra a barragem de Cahora Bassa foi o então presidente da Zâmbia, aliado histórico de
Moçambique, Kanneth Kaunda. A sua longa oposição ao colonialismo português, a sua
eleição como presidente da Organização da Unidade Africana (OUA) em 1970, bem
como o seu papel como líder do movimento dos não alinhados, deram a Kaunda
estrutura e espaço para argumentar que a barragem era um crime contra a humanidade e
a pressionar embora sem sucesso outros países europeus a impedir que os seus nacionais
investissem no empreendimento. A conferência ministerial da OUA em Adis Abeba
realizada a seguir, reafirmou essa posição, condenando Cahora Bassa como símbolo do
colonialismo e um impedimento para libertação da África. O apelo de Kaunda se
estendeu também, mas sem sucesso, para as Nações Unidas (ISAACMAN;
ISAACMAN, 2013).
- 73 -
GPZ e sequestrando seis portugueses e cinco africanos (ISAACMAN; ISAACMAN,
2013). Em novembro de 1972, a FRELIMO lançou uma bomba contra a base aérea de
Tete e atacou 11 comboios que levavam material sensível para Cahora Bassa, a partir do
porto da Beira. Essa é considerada uma das mais significativas ações militares, embora
não tenha conseguido impedir a construção desse empreendimento que, numa
reviravolta de posicionamento, passou, desde a independência a assumir um papel
central na política desenvolvimentista do estado pós-colonial, bem como, no plano de
modernização do Vale do Zambeze.
- 74 -
Oceano Indico e apoiou logisticamente a guerrilha de resistência colonial no Zimbábue.
No campo geopolítico e geoestratégico Moçambique era membro do movimento dos
países não alinhados - opositores do regime racista sul africano. Essas ações fizeram
com que o regime moçambicano atraísse vizinhos inimigos - o regime segregacionista
de Ian Smith na então Rodésia, bem como o regime do apartheid na África do Sul, que
já não suportava a possibilidade de dividir suas fronteiras com um estado africano
socialista, razão pela qual entendia que tinha que destruí-lo.
- 75 -
instrumentos de trabalho, meios de produção e bens essenciais para a troca no campo,
bem como na forte combinação dos pequenos e grandes projetos para o combate à fome
e o aumento de receitas em divisas para o país. Como forma de materializar as diretivas
do congresso, foi aprovado um Plano de Ação Econômica (PAE), através do qual se
iniciou um processo de liberalização de preços, que, aos poucos, foi marcando os
primeiros momentos da introdução da economia de mercado em Moçambique
(CHICHAVA, 2011b).
Apesar de todas as expetativas, esta opção tem-se mostrado tão cruel quanto foi
a anterior. Por exemplo, passados aproximadamente quatro décadas dessas ações,
- 76 -
Moçambique continua sendo um dos países mais pobres e desiguais do mundo 23 . A
introdução dessa nova ideologia de desenvolvimento econômico e social foi ratificada
com a aprovação da constituição de 1990, que introduz o pluralismo político e o fim do
sistema de partido único, autoritariamente imposto após a independência. Abrir-se-ia
espaço para o avanço de uma lógica democrática de relação e organização social,
econômica e política.
- 77 -
como um estratégico projeto de desenvolvimento e progresso nacional no Vale de
Zambeze.
- 78 -
com a construção das barragens hidrelétricas, e também com a exploração das
importantes reservas de carvão mineral nas bacias carbonífera de Mecanha Vuzi e de
Moatize.
A aprovação da nova lei de minas em 2002 lançou uma nova era da indústria
extrativa mineira em Moçambique, que, em outras bases, voltou a assumir um lugar
estratégico na política de “desenvolvimento” e “progresso nacional”. Em 2004 o
governo moçambicano lançou um concurso internacional para concessionar as minas de
carvão de Moatize - onde concorreram várias empresas, dentre elas a multinacional
australiana BHP Billiton e a multinacional brasileira Vale. Maior multinacional
brasileira, atrás da estatal Petrobrás, a Vale foi criada como uma empresa estatal de
mineração em 1942 durante o governo de Getúlio Vargas. Na época era chamada de
Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), porque o seu foco de atuação era o minério de
ferro da região de Itabira, na bacia do Rio Doce, em Minas Gerais. Na década de 1980
passou a explorar o minério de ferro de Carajás no Pará (PALHETA DA SILVA, 2013).
Em 1997 durante o governo de Fernando Henrique Cardoso foi privatizada por 3,3
biliões de dólares e adquirida por um consorcio denominado Companhia Siderúrgica
Nacional (CSN) do Brasil. Em 2006 comprou a mineradora canadense Inco e se tornou
uma das três maiores empresas mineradoras do mundo, junto com a australiana BHP
Billiton e a Anglo-Australiana Rio Tinto (todas já atuam no mercado moçambicano).
- 79 -
No mesmo ano deixou de ser CVRD e passou a se chamar Vale 24 . Atualmente a Vale é
a segunda maior mineradora do mundo com operações em vários estados Brasileiros e
em mais de trinta países distribuídos nos seis continentes. Contudo até aquele momento
(em 2004) a empresa não operava no território moçambicano e muito menos no
mercado africano de modo geral e aquela era a oportunidade de mudar o curso da
história.
24 Atualmentetem como principal acionista a Valespar S.A que controla o conselho de administração. A
Valespar S.A é composta pela BNDESPAR, com 11.5% das ações, o grupo Mitsui com 18.2%, a
Bradespar com 21.2%, e a Litel com 49% das ações.
- 80 -
Estrangeiro (IDE) Brasileiro em Moçambique. Lembro-me da efervescência criada pelo
anuncio da chegada da Vale em Moçambique. Para o governo moçambicano os grandes
projetos, denominados em nível nacional de “megaprojetos”, são uma espécie de
“salvadores da pátria” rumo ao desenvolvimento e progresso nacional. Já havia existido
essa expetativa com a chegada da Mozal, mas a Vale era, para o governo, como se fosse
o maior dos salvadores. Para as pessoas comuns também os megaprojetos ofereciam
uma “oportunidade de bom emprego”. Trabalhar na Vale, por exemplo, era visto com
uma grande oportunidade de receber um “salário digno”. Era comum ouvir no cotidiano
palavras como: - “se eu conseguir emprego na Vale eu abandono o trabalho no estado”
… “Mas o estado garante reforma” – podia retrucar outra pessoa. … A resposta era
imediata: “lá eu consigo fazer minha reforma”.
- 81 -
O interesse Brasileiro pelas minas de Moatize é anterior ao governo Lula, remete
ao período da ditadura militar no Brasil especificamente no governo militar do João
Figueiredo (1979-1985). Foi no governo de Figueiredo, concretamente no início da
década 1980, que começaram as primeiras negociações para a entrada do investimento
Brasileiro na exploração das minas de Moatize. No entanto essas negociações eram o
corolário de uma política de abertura econômica Brasileira para o mercado africano
iniciada no governo Jânio Quadros (1961-1961), continuada por João Goulart (1961-
1964), abandonada pelos primeiros dois governos da ditadura militar – Castelo Branco
(1964-1969) e Costa e Silva (1967-1969) – e retomada nos três últimos governos
militares: Médici (1969-1974), Geisel (1974-1979) e Figueiredo (ZAMPARONI, 2007;
RIBEIRO, 2009; MUTZEMBERG, 2014; ROSSI, 2015; MEDEIROS DA SILVA,
2017). Foi com a chamada política externa independente de Jânio Quadros que a África
reemergiu como ator determinante na política externa brasileira. Dizia que o Brasil tinha
uma dívida com o continente africano devido à escravidão. Entendia que os problemas
enfrentados pelos dois lados do Atlântico eram semelhantes e, por isso, as respostas
poderiam ser compartilhadas. Via os Brasileiros e africanos como “povos irmãos da luta
contra o subdesenvolvimento” (ROSSI, 2015, p. 69). Em 1961, Quadros abriu a
primeira embaixada no contente africano - em Gana, país que se tornara independente
do colonialismo europeu em 1957. Gana era liderado por Kwane Nkrumah, um dos
fundadores do pan-africanismo (APPIAH, 2014). Segundo Zamparoni (2007) é desse
período a criação no campo acadêmico de três centros de estudos africanos existentes
ainda hoje no Brasil. Nomeadamente o Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO) da
Universidade Federal da Bahia (UFBA); o Centro de Estudos Afro-Asiáticos (CEAA)
do Rio de Janeiro; e o Centro de Estudos Africanos (CEA) da Universidade de São
Paulo (USP).
- 82 -
africano. O Brasil se alinhara aos interesses das grandes potências ocidentais com
destaque para os EUA e subordinou a sua política externa africana aos interesses
colonialistas portugueses (ZAMPARONI, 2007). As pequenas conquistas nas relações
Brasil-África se diluíram. Os embaixadores em Gana e na Nigéria, por exemplo,
voltaram para a sua terra natal, Brasil. Nesse período Moçambique, e outros países
africanos que eram colônias de Portugal, viviam a guerra de libertação colonial. Esses
governos militares apoiaram a repressão de Portugal aos movimentos, como a
FRELIMO, que lutavam pela independência e emancipação nacional. Fato que afetou
negativamente as relações entre Brasil e Moçambique nos primeiros momentos do
estado “pós-colonial” (ROSSI, 2015).
- 83 -
de credito do Banco do Brasil para Moçambique importar produtos da indústria
brasileira. Em 1979, João Figueiredo manteve a política de abertura econômica para o
mercado africano. Nesse período as construtoras brasileiras, como por exemplo, a
Odebrecht, começaram a fazer obras em vários países do continente africano, desde
estradas na Mauritânia, em Camarões e no Congo à hidrelétrica de Capanga em Angola.
Figueiredo foi o primeiro presidente a visitar África em novembro de 1983, tendo
escalado cinco países com exceção de Moçambique - que vivia desde 1976 a guerra
civil “pós-colonial”. Foi também no seu governo que o carvão de Moatize começou a se
tornar um potencial ponto de ligação entre os dois países. Tal como destaca Rossi
(2015), era a maior riqueza que Moçambique podia explorar em curto prazo. O novo
governo “pós-colonial” contava com ele para alavancar a economia nacional. É que a
mineração era uma das atividades econômicas mais importantes de Moçambique e havia
perspectivas de que as reservas das minas carvão de Moatize em Tete colocariam o país
entre os cinco maiores produtores mundiais. Algumas delas eram a céu aberto – tal
como está sendo atualmente – sendo que, poderiam ser exploradas sem a escavação de
tuneis, perigosos e pouco eficientes, tal como estava sendo feito naquele momento pela
Companhia Carbonífera de Moçambique. Faltavam porem investidores tendo em conta
que era um empreendimento de custo mais elevado. O Brasil via no potencial
mineralógico moçambicano uma oportunidade de expandir a sua presença no continente
africano. Empresas Brasileiras começaram a negociar diretamente com o governo
moçambicano. “A construtora Mendes Junior elaborou, por exemplo, propostas na área
de transporte, entre elas a construção da ferrovia de Nacala que está atualmente a cargo
da Vale” (ROSSI, 2015, p. 85). A estatal Companhia de Pesquisa em Recursos Minerais
(CPRM) se instalou em Tete e começou o processo de pesquisa e análise do subsolo em
busca da viabilidade de empreendimentos (ROSSI, 2015).
Na segunda metade dos anos 1980, as relações esfriaram. Influência, (i) do lado
moçambicano, da guerra civil e da grande crise econômica associada ao fracasso de
algumas políticas econômicas do governo socialista. Com a crise econômica e militar o
então governo moçambicano não conseguiu pagar os empréstimos do governo
Brasileiro para a compra de produtos industrializados, débito que até aquela época, já
somava quase 200 milhões de dólares (ROSSI, 2015, p.87). A inadimplência levou à
interrupção de novos créditos. Também foram bloqueadas as discussões sobre a
construção de obras, os projetos agrícolas e de exploração de carvão, afundando desse
- 84 -
modo, a possibilidade de as empresas Brasileiras explorarem as ricas minas de carvão
mineral em Moatize. Do lado brasileiro (ii), também se vivia a derrocada do otimismo
do “milagre econômico” e as contradições da política econômica do regime militar
ficavam exposta. O país estava endividado e em crise inflacionária.
- 85 -
Em 1997, a CVRD foi privatizada e em face da abertura do governo
moçambicano para a entrada de investimento brasileiro na área de mineração, começou
a negociar por conta própria sua entrada na atividade de extração mineral em
Moçambique. O governo de FHC deu impulso nas pretensões da multinacional
Brasileira reabrindo politicamente as negociações com o governo moçambicano para a
exploração das ricas minas de carvão de Moatize, que haviam se esfriado na década de
1980 e anunciou a intenção de perdão da dívida de Moçambique com o Brasil - avaliada
em aproximadamente 300 milhões de dólares - um grande passo para a retomada das
relações econômicas. O perdão, todavia, só foi efetivado com o governo de Luís Inácio
Lula Silva, no âmbito da sua política de ampla abertura e cooperação com o continente
africano, principalmente, com Moçambique. Essa ação é vista por Rossi (2015) como
uma das primeiras ações que culminaram com a vitória da Vale para a exploração
mineral das minas de Moatize deixando para trás empresas como a mineradora BHP
Billiton. Depois da vitória, a Vale começou a fazer estudos minerais que mostraram que
a reserva tinha 1,87 milhões de toneladas de carvão bruto e vida útil de 35 anos, sendo
considerada a segunda maior mina a céu aberto. Em 26 de junho de 2007, a mineradora
assinou, através da sua subsidiária Rio Doce Moçambique Limitada (RDML) 25 -
entidade de direito moçambicano criada para desenvolver o projeto Moatize e deter a
licença de prospecção, pesquisa e concessão mineira. Um contrato equivalente a um
prazo de 25 anos renováveis por mais 25 anos, para exploração em mina a céu aberto do
carvão de Moatize, numa área estimada em aproximadamente vinte cinco mil hectares,
incluindo áreas de ocupação imemorial ou datada pelas comunidades locais.
25 Detida pela Vale com 95% das ações, a Vale Mocambique Ltda, congrega tambem na sua estrutura
acionista 5% dos investimentos pertencentes ao governo moçambicano. Em 2014, a Vale vendeu 15% da
sua participação à Japonesa Mitsui.
- 86 -
Mapa 06: Área de exploração concessionada a Vale
- 87 -
O projeto teve um investimento inicial – inerente à instalação e exploração da
primeira mina a céu aberto – de aproximadamente dois biliões de dólares, sendo o maior
projeto de investimento no setor mineiro no país. Contudo a estimativa era de um
investimento final de aproximadamente 8,5 biliões de dólares, desde a extração e
escoamento do carvão mineral. O valor de investimento estimado torna até então o
“projeto de Moatize”, tal como também é denominado o megaprojeto de exploração
mineral da Vale em Moatize, no maior investimento corrente do Brasil no continente
africano (ROSSI, 2015), bem como, no primeiro grande investimento da Vale no
continente africano. Em 2010, expandiu o seu horizonte de investimentos para a
Zâmbia, para a exploração da mina de cobre de Lubambe através de uma Joint Venture
com a African Raibow Minerals num investimento estimando em 400 milhões de
dólares. Em Moatize a produção começou em 2011. Em 2013 atingiu uma produção de
4 milhões de toneladas, o que corresponde a 40% da capacidade instalada de produção
que é equivalente a 11 milhões de toneladas ao ano. Em 2014 a produção subiu para 5
milhões de toneladas, e 5,5 milhões de toneladas em 2016, sendo 3,5 milhões de
toneladas de carvão metalúrgico e 2 milhões de toneladas de carvão térmico (VALE,
2017). A produção total de carvão de Moatize em 2016, equivaleu a aproximadamente
80% da produção total do carvão da empresa que foi de 7, 2 milhões de toneladas.
- 88 -
sistema integrado de produção - mina, linha férrea e porto - aos moldes de Carajás,
Município de Parauapebas, Estado do Pará, região norte do Brasil. A linha férrea
“Moatize-Nacala” passa pelo distrito de Monapo, também na província de Nampula,
onde a Vale está em processo de prospecção e pesquisa para a exploração das recém-
encontradas reservas de fosfato que colocam o país na posição de terceiro maior
produtor mundial, abrindo perspectivas para o mercado de fertilizantes (SILVA, 2014,
p. 27).
- 89 -
atraídas pela chegada da Vale à Moatize, torna Moçambique um dos principais polos de
negócios brasileiros no continente africano.
- 90 -
Mapa 07: Áreas de pesquisa e exploração mineral na Província de Tete até o ano de 2017.
O Brasil tem muita história com a África nesses 500 anos. Durante muitos
anos teve relações privilegiadas com vários países africanos. Nós queríamos
reaproximar o Brasil com a África. O Brasil teria que adotar uma política
diferente daquela que os africanos estavam habituados. Dos colonizadores que
vão lá para ser donos do país (LULA, 2015)27 .
27 Luís
Inácio Lula da Silva, entrevista realizada pela jornalista Amanda Rossi, publicada no livro
“Moçambique, o Brasil é aqui, uma investigação sobre negócios Brasileiros na África” (ROSSI, 2015).
- 91 -
2.3.1 A atual relevância do “Sul” no campo geoepistêmico e geopolítico mundial
O Sul vem cada vez mais se tornando uma categoria sociológica importante no
campo geoepistêmico e geopolítico mundial. Em ambos os contextos, está em causa a
superação da lógica colonizante “norte-sul”. No campo geopolítico, a cooperação sul-
sul vem cada vez mais assumindo ou se tornando uma alternativa ao caráter violento e
neocolonizante da cooperação norte-sul. No campo geoepistêmico, teóricos da
sociologia contemporânea como Boaventura de Sousa Santos e Maria Paula Meneses;
evidenciam, por exemplo, a importância do Sul na superação do caráter epistemicida e
etnocida do pensamento sociológico ou teoria sociológica contemporânea. Os teóricos
partem da premissa de que existe um centro hegemônico de produção de pensamento
sociológico contemporâneo baseado no “Norte” com tendência monocultural e com
pretensão universalista e colonizadora que invisibiliza outras produções e formas de
saberes de sociedades “não-nortenhas”.
contemporâneos como Hall (1992), Todorov (1993) e Said (1990) através das categorias “West and
Rest”, “nós e os outros” e “ocidente e oriente”, respectivamente. Antes Frantz Fanon (2008) e Aimé
Césarie (1978) já haviam denunciado na década 50 o antagonismo radical entre colonizador e colonizado,
negro e branco, sendo os primeiros “humanos” e os segundos relegados pelos primeiros a “não -
humanos”, bárbaros e inferiores.
- 92 -
No “lado de lá” prevaleceu no tempo colonial e continua prevalecendo no
contexto atual a lógica da regulação e emancipação. E no “lado de cá” a lógica da
apropriação e violência. A prevalência dessa lógica de apropriação e violência em
sociedades não ocidentais é denunciada também por teóricos latino americanos de
estudos pós-coloniais como Aníbal Quijano, Enrique Dussel e Walter Mignolo, em suas
análises críticas à história linear europeia da modernidade que invisibiliza a sua outra
face que é a violência da colonialidade. Diz-nos, por exemplo, Walter Mignolo que a
modernidade não pode ser vista de forma dissociada da colonialidade, na medida em
que este pressupõe o seu lado reverso, inevitável e sombrio (MIGNOLO, 2003). Na
mesma linha, Quijano (2005), reescreve, a partir da perspectiva pós-colonial, a história
da modernidade e do que se denomina de atual sistema mundo colonial/moderno,
denunciando o seu caráter colonial e racista. Por sua vez, Dussel (2005) desconstrói a
visão eurocêntrica da modernidade que o subjaz como um fenômeno intra europeu e,
sendo que, somente precisa da Europa para a sua compreensão. A modernidade é um
“processo irracional que se oculta aos seus olhos” ou ainda a “justificativa de uma
práxis irracional de violência” das sociedades ocidentais para as sociedades não
ocidentais (DUSSEL, 2005, p. 29). A modernidade é colonizante e a colonização é parte
constitutiva da modernidade. Isso implica que a prevalência dessa lógica de regulação e
emancipação na Europa foi e continua sendo à custa do sangue e sofrimento do “lado de
cá”.
No contexto africano ainda persiste, desde o tempo colonial, essa lógica racista,
violenta e colonizante mesmo depois de meio século das primeiras independências. Os
deslocamentos compulsórios dos bairros e comunidades locais e a expropriação das
suas terras ancestrais (num processo que, tal como mostramos nos capítulos 03 e 04, é
caraterizado por falsas promessas, violação de direitos e intimidação) em função da
implementação de grandes projetos ditos de desenvolvimento, operados por grandes
empresas multinacionais de capitais estrangeiros, evidenciam a prevalência dessa lógica
de apropriação e violência no estado pós-colonial moçambicano. E tendo em conta que
Moçambique é um estado que viveu mais de um século de colonização portuguesa e
sendo essa lógica de apropriação e violência que garantia a prevalência da lógica da
regulação e emancipação em Lisboa, a prevalência dessas práticas no estado pós-
colonial reforça a ideia de que há mais continuidades de práticas coloniais do que
cismas no estado “pós-colonial” moçambicano (PINA CABRAL, 2004).
- 93 -
No contexto epistemológico, o “lado de lá” é concebido como o centro da
racionalidade e dos critérios científicos de verdade. Enquanto que o “lado de cá” é visto
como o espaço de conhecimento irreal, de crenças e opiniões mágicas, idolátricas,
entendimentos intuitivos e subjetivos, que na melhor das hipóteses podem tornar-se
objetos ou matéria prima para a inquirição cientifica (SANTOS; MENESES, 2009). Ou
seja, este lado da linha é o universo por excelência das crenças e dos comportamentos
incompreensíveis que, de forma alguma, podem ser considerados conhecimento. São
considerados para além do verdadeiro ou falso, na medida em que congrega apenas
práticas incompreensíveis, mágicas ou idolátricas e, sendo sub-humanos e serviriam
somente como objeto de conhecimento.
- 94 -
colonizados, sendo os segundos determinados a partir do imaginário dos primeiros
através de valores europeus universalistas que os consideram um outro despojado,
oposto e inferior (CURIEL, 2007). Tal como destaca Curiel (2007), Fanon sempre
destacou a desumanização do colonialismo que acarreta fenômenos como racismo,
violência e expropriação de terras ancestrais, pelos brancos europeus, transformando
uma parte da população mundial (negros africanos e povos indígenas) em “os outros
inferiores” através de diversos mecanismos de poder, dominação e subjugação. Neste
contexto, para Fanon a descolonização supunha o “combate a essa visão eurocêntrica e
racista que reduz os colonizados em outros inferiores, marginais e exóticos objetos de
estudos” (CURIEL, 2007, p. 93). Essa tem sido a tendência desse novo movimento
emergente de valorização do Sul no campo geoepistêmico.
- 95 -
gêneros da metrópole, citando a literatura da metrópole e tornando-se parte do discurso
da metrópole. Isso significa por um lado descrever a sua própria sociedade como se
fosse a metrópole - suprimindo a sua especificidade histórica. Por outro, descrevê-la
como em termos comparativos situando as suas especificidades nos parâmetros da
metrópole. Ambos significam tornar-se um “informante nativo para um mundo
intelectual da metrópole” (CONNELL, 2012, p. 11).
Ou seja, o sul vai para além da divisão geográfica hemisfério norte e hemisfério
sul, pois, existem na visão dos autores “suis” no norte geográfico. Estes são os diversos
- 96 -
grupos sociais que foram sujeitos à dominação capitalista e colonial, ao mesmo tempo
em que existem “nortes” no sul geográfico que são pequenas europas marcadas pelas
pequenas elites locais que se beneficiaram da dominação capitalista colonial e que
depois das independências exerceram e continuam exercendo uma dominação
capitalista e colonial contra grupos sociais subordinados. Neste contexto, o Sul é uma
metáfora do sofrimento humano causado pelo capitalismo, pelo colonialismo e pelo
patriarcado, e da resistência a essas formas de opressão (SANTOS; ARAUJO;
BAUMGARTEN, 2016, p. 16). O sul metafórico é o lado dos oprimidos pelas
diferentes formas de dominação colonial e capitalista.
- 97 -
Estes fatos evidenciam que o “Sul” constitui no campo geoepistêmico mundial
uma categoria relevante na descolonização do conhecimento e na luta contra o
imperialismo intelectual, resultante da lógica desigual e colonizante de relação (saber-
poder) norte-sul. De fato, essa superação da lógica desigual e colonizante “norte-sul” é
também a base da relevância que o “Sul” vem assumindo atualmente no campo
geopolítico mundial.
- 98 -
O discurso da CSS dá, de certa forma, sequência às denúncias feitas por
intelectuais da teoria da dependência como Samir Amim, que denunciam a Cooperação
Internacional para o Desenvolvimento (CID). Esta vem sendo implementada pelos
países do “norte” em países do “sul” como uma tentativa de preservação do capitalismo,
servindo como ferramenta de manutenção e legitimação da hegemonia dos países
centrais do sistema internacional. Desse modo, “antigas colônias, agora emancipadas,
poderiam ser mantidas em relações de dependência e de garantia do funcionamento da
economia internacional” (MILANI, 2012, P. 219). A CSS busca, por um lado,
introduzir uma nova visão do desenvolvimento econômico dos países em
desenvolvimento, fundado em alianças entre países do Sul, baseada no princípio da não
intervenção, na defesa da horizontalidade dos programas de cooperação. E, por outro,
garantir uma inserção internacional diferenciada de alguns países do Sul no diálogo com
os países desenvolvidos (MILANI, 2012, p. 227).
- 99 -
Cooperation Organization, G-20) (MILANI, 2012, p. 225). Por exemplo, incorporando
esse discurso de CSS, a China se aproximou do continente africano se tornando o maior
parceiro comercial. A África se tornou o principal destino de importações provenientes
do gigante asiático, o segundo maior mercado para projetos de infraestrutura e o quarto
maior destino de investimentos (MORA, 2016).
31 A forte presença chinesa africana leva a uma guerra discursiva. Os céticos, a incluem no grupo das
outras potencias mundiais e a acusam de neocolonização. Contra essa posição estão muitos países
beneficiários africanos, céticos das relações com os tradicion ais parceiros do Norte, que destacam o
componente cooperativa e as possibilidades de desenvolvimento local trazidas pela China.
- 100 -
conhecido como o projeto de irrigação em Xai-Xai, considerado o maior projeto
agroindustrial da China no continente africano (MORA, 2016).
Foi também como esse discurso de CSS que o Brasil se lançou para o continente
africano e se aproximou de Moçambique. Apesar desse modelo de cooperação ter sido
intensificado pelo governo Lula, seus traços embrionários na política externa brasileira
são, tal como destaca o sociólogo Remo Mutzenberg, anteriores ao governo petista. Tal
como destacamos, sinais dessa lógica de cooperação são visíveis na política de
“multilateridade” assumida de forma explicita nos governos de Jânio Quadros e João
Goulart e retomada pelos governos militares na primeira metade dos anos 1970, baseada
na ampliação dos vínculos internacionais, passando a incluir os eixos Sul-Sul e Sul-
Leste (MUTZENBERG, 2014). A ideia era ampliar os vínculos internacionais para além
da dependência com o Norte que vinha caracterizando o Brasil desde o século XVI, com
a dependência unilateral ao capitalismo mediterrâneo e norte-atlântico. No século 19
essa subordinação deu-se sob a hegemonia inglesa. A partir do final do século 19 a
dependência unilateral brasileira passou a subordinar-se à hegemonia norte-americana,
cuja vinculação estratégica caracterizou o período Vargas e os governos
desenvolvimentistas dos anos 1950. Naquele momento o Brasil buscava status de aliado
privilegiado dos Estados Unidos. A ampliação dos vínculos para o eixo sul e sul-leste
visava superar essa dependência da hegemonia norte americana.
A partir dos anos 1990, a diplomacia brasileira passa a atuar nos 3 eixos, norte-
sul, sul-leste e sul-sul. Contudo, com a chegada de Lula ao poder, o eixo sul-sul passa a
assumir um lugar primordial na política externa para a África e se torna uma das suas
principais estratégias discursivas para aproximação com o continente. Foi no seu
governo que a cooperação com o continente africano foi para além dos países da CPLP,
abrangendo países não falantes da língua portuguesa. E mais, foi, tal como já referimos,
a com o discurso de CSS do governo Lula que o Brasil se aproximou intensamente de
Moçambique. Inspirado nessa lógica de cooperação, o Brasil articula na sua
aproximação com o continente africano um discurso que acentua a solidariedade, as
- 101 -
afinidades histórico-culturais, econômicas e políticas e interesse num conhecimento
produzido pela troca e pela experimentação mediante parcerias (MUTZENBERG,
2014).
- 103 -
século XIX e início de século XX, discurso esse, que se mostrou limitado, excludente e
perverso, tal como o ilustra o aumento das desigualdades socioeconômicas e da
exclusão social no plano mundial (MILANI, 2012). Por isso vale mais uma vez repetir
Pina Cabral (2004), há mais continuidade do que cismas no campo pragmático das
relações norte-sul e sul-sul. Não se justifica a existência de nova forma alternativa de
relação entre os estados, tal como propõe o discurso brasileiro de cooperação sul-sul.
Para Mia Couto essa continuidade se fundamenta no fato de que as forças que
conduzem o Brasil a essa cooperação internacional “são forças que se conduzem por
aquilo que são as linguagens globais do lucro, do mercado, da relação com os interesses
econômicos e financeiros. Não haverá grande mudança” (COUTO, 2015, p. 360).
Advogo que a vantagem da CSS seja a introdução de novos atores com papel
hegemônico na arena internacional, ampliando espaço de negociação e cooperação
internacional para os países pobres como Moçambique do que necessariamente uma
alternativa à relação norte-sul. Além de depender exclusivamente dos doadores do
Norte, Moçambique hoje já negocia intensamente com a China e com o Brasil, Índia,
África do Sul etc. E mais, as práticas da relação “norte-sul” vai se moldando e se
reestruturando no encadeamento dualístico das relações. Apesar de destacar a
horizontalidade, reciprocidade e equidade, existe sempre um superior e inferior nessa
relação, o Brasil e a África do Sul, por exemplo, podem ser o Sul dos euro americanos,
mas são o norte de Moçambique, o mesmo se diz da China e assim sucessivamente. Os
interesses econômicos e a multiplicação do lucro falam mais alto. Nesse contexto, as
práticas das empresas pertencentes a esses países signatários dessa ideologia de
cooperação sul-sul estão longe de se distanciar das práticas das empresas do norte no
sul. No próximo capítulo mergulharemos nas práticas adotadas no deslocamento
compulsório executado pela Vale na sua chegada em Moatize, buscando traçar uma
análise comparativa com outros processos de deslocamentos compulsórios executados
na região no tempo colonial e período socialista do estado “pós-colonial”.
- 104 -
3. A CHEGADA DA VALE E OS DESLOCAMENTOS COMPULSÓRIOS EM
MOATIZE
- 105 -
adotada por antropólogos ligados ao Banco Mundial (CERNEA, 2000, 2003, 2004;
SCUDDER 1973, 1975; COLSON, 1971). Embora evidencie uma sensibilidade para as
questões humanas e para as injustiças sociais33 , a prevalência da categoria
“reassentamento involuntário”, nas suas reflexões, prega implicitamente a
inevitabilidade do deslocamento, legitimando os empreendimentos (em muitas situações
financiadas pelo próprio Banco) e ignorando a compulsoriedade e a violência do
processo de deslocamento. Ou seja, a categoria deslocamento compulsório, adotada no
presente trabalho tem a particularidade de chamar atenção para elementos
implicitamente ignorados nas outras categorias, nomeadamente: a violência e a
compulsoriedade do processo como elementos essenciais de análise e não somente
como consequências posteriores.
33Essa evidência pode-se constatar nos trabalhos de Thayer Scudder pela predominância das palavras
“social ou socio-cultural impacts” (Scudder, 1975; 1973), bem como no título de um dos primeiros e
principais livros organizados no World Bank, editado por Michel de Cernea “Putting people first” (1991).
- 106 -
trabalho buscaremos destacar dois grandes processos: os deslocamentos compulsórios
provocados pela política de controle da população assentada nos aldeamentos coloniais
e os deslocamentos compulsórios provocados pelo programa de modernização rural e
restruturação da lógica de produção e organização social rural desenvolvido nos período
pós-independência (através do programa das aldeias comunais e cooperativas agrícolas).
Com isto buscamos explorar rupturas e continuidades com o processo atual de
deslocamento compulsório provocado pelos projetos de mineração na região. É
importante destacar que, tal como no tempo colonial, os deslocamentos compulsórios na
primeira república pós-independência não se resumiram ao programa de aldeias
comunais e cooperativas agrícolas. O antropólogo Omar Thomaz explora outras formas
de deslocamento compulsório empreendidas pelo regime socialista, com destaque para
os “campos de reeducação” - esse também explorado pelo escritor Ungulani Ba Ka
Khosa no seu livro “Entre Memórias Silenciadas” (2013). E também a “operação
produção” - uma ação policial de natureza repreensiva levada a cabo em grandes
cidades como Maputo e Beira, com o objetivo de enviar para as zonas consideradas de
menor densidade demográfica aqueles que eram considerados “delinquentes”,
“ociosos”, “parasitas”, “marginais”, “vadios” e “prostitutas”. Quer nos campos de
reeducação, quer na operação produção havia o propósito de transformar os visados em
cidadãos uteis, dignos cumpridores de deveres cívicos e merecedores de aceitação social
(THOMAZ, 2008, p. 191). No presente capítulo nos centramos nos programas de
aldeamentos comunais e aldeias comunais em função do seu significativo impacto na
região do Vale do Zambeze. Os trabalhos de João Paulo Borges Coelho (1989; 1993;
1998; 2003), Manuel Araújo (1983; 1988), Adolfo Casal (1996); Alpheus Manghezi,
2003, bem como de Allen e Barbara Isaacman (2013) constituíram referências seminais
para nossa análise sobre os deslocamentos compulsórios provocados pela política de
aldeamentos coloniais e aldeias comunais no Vale do Zambeze.
- 107 -
para as diversas populações atingidas. O nosso objetivo central é a partir dessa análise
explorar rupturas e continuidades com os atuais deslocamentos compulsórios
provocados pela Vale em Moatize. Uma categoria de grande relevância na análise de
deslocamentos compulsórios em Moçambique é de “controle de território”, o que
implica necessariamente um processo de “controle da população”. Existe tal como
destaca Pierre Bourdieu nos seus estudos sobre a Argélia (BOURDIEU; 1979;
BOURDIEU; SAYAD, 2006), uma relação direta entre deslocamento compulsório e
controle ou mudança de domínio sobre o território e consequentemente da população.
- 108 -
As companhias eram obrigadas a se reger por estatutos portugueses e ter sua
sede social em Lisboa; a organizar uma força policial para assegurar o domínio da área
concedida; a zelar pela colonização e proceder à construção de infraestruturas
(CABAÇO, 2007). Gozavam de direitos de cobrar impostos, negociar em concessões a
exploração do solo, do sobsolo e das riquezas marítimas nas costas do território. Bem
como de exclusividade no recrutamento da força do trabalho e na emissão de moeda e
selos postais nos territórios administrados. O acordo obrigava, ainda segundo Cabaço
(2007), que os funcionários públicos fossem de nacionalidade portuguesa e determinava
que o Estado recebesse uma compensação percentual sobre os lucros e dividendos,
mantendo o direito à propriedade dos bens da companhia no fim do período da
concessão. Destacam-se, tal como evidenciamos no segundo capítulo, pela dimensão
territorial ocupada as companhias de Niassa, de Moçambique e da Zambezia. Se as duas
primeiras são denominadas de majestáticas a última é denominada na historiografia de
Moçambique de companhia arrendatária de prazos. Enquadram-se nesta última
categoria outras companhias de menor dimensão comparando com as primeiras, como,
por exemplo, a companhia de Boror, a Société du Mandal e as Propriedades Sena Sugar
(NEWITT, 2012; SERRA, 1980; 2002).
- 109 -
Mapa 08: Os territórios das Companhias (1900-1925)
- 110 -
A companhia de Moçambique ocupou a maior parte da região central de
Moçambique com destaque para a área que corresponde hoje às províncias de Manica e
Sofala. Tal como destaca Carlos Serra (2000), essa companhia começou a ser criada em
1878. Em dezembro de 1888, com um capital subscrito de 200 mil libras, recebeu do
governo português a concessão de direitos mineiros na bacia do Búzi e do Púnguè. Em
1889 elevou o seu capital social para 400 mil libras. Nesse período a sua atividade
centrou-se na organização das comunicações e na pesquisa e exploração mineral. Em
1891, iniciou-se um processo de reestruturação, elevando o seu capital para um milhão
de libras. A partir desse ano foi autorizada por sucessivos decretos, especialmente pelo
decreto de 11 de fevereiro de 1891, que lhe atribuiu poderes majestáticos, a administrar
e explorar uma área de 134.822km2, limitado pelo paralelo 22 a sul, pela Rodésia a
oeste, pelo rio Zambeze a norte e nordeste, e pelo oceano Indico a leste (SERRA, 2000,
p. 304). Os direitos concedidos à Companhia de Moçambique incluíram: o monopólio
do comercio, a exploração exclusiva das concessões mineiras e de pesca ao longo da
costa; o direito de coletar impostos e taxas; o direito de construir e explorar portos e
vias de comunicação; bem como o direito de transferência de terras a pessoas
individuais e coletivas.
- 111 -
exemplo, tal como destaca Carlos Serra, depois da entrega formal dos territórios de
Cabo Delgado e do Niassa à companhia do Niassa, em 1891, essa companhia
programou a sua ocupação para 1899. Com apoio de um corpo de expedicionários do
estado colonial, constituído por 300 solados europeus e 2 800 moçambicanos e de
outras regiões, a Companhia do Niassa tentou ocupar áreas do interior. Entre 1900 e
1902, a companhia ocupou o povoado de Musumba e Metangula, no litoral do Lago
Niassa. Porém a resistência dos camponeses quanto ao processo de ocupação e ao
trabalho forçado que lhes era imposto, acabou retardando o processo de colonização do
território concedido. Só em 1910, com mais aporte monetário, é que a companhia
reinvestiu em ações militares avançando sistematicamente sobre o território concedido
(SERRA, 2000, p. 233).
- 112 -
a prática de agricultura - dos colonos. No região do Vale do Zambeze, por exemplo, a
introdução dessa nova economia baseada em grandes empresas de monoculturas para
exportação de produtos como o sisal, chá, algodão, cana de açúcar, desestruturou
significativamente a agricultura familiar, característica da região, na medida em que os
agricultores eram obrigados a trabalhar mais para pagar os impostos. Estes eram
cobrados em dinheiro, produtos ou trabalho, sob pena de serem convertidos em trabalho
forçado na construção de infraestruturas como estradas, portos e caminhos de ferro
(GALLO, 2017). E foi justamente a imposição brutal do trabalho forçado e os custos
elevados dos impostos que contribuíram naquele período para o deslocamento
compulsório de várias populações autóctones - nas várias áreas concessionadas pelas
companhias - em busca de outros campos de possibilidade de sobrevivência em outras
regiões.
“No período compreendido entre 1921 a 1927, o imposto de palh ota elevou-
se de 2 a 50 escudos, equivalente este montante a um salário de três meses”
(SERRA, 2000, p. 236). “[...]se antes de 1919, cerca de 100 mil pessoas
tinham fugido para Niassalândia [atual Malawi], calcula-se que, entre 1920 e
1930, como reação a brutal política de repressiva da companhia de Niassa,
mais de 300 mil moçambicanos terão emigrado em grupos familiares para o
vizinho Tanganhica [atual Tanzânia] e para Niassalândia [...]” (SERRA,
2000, p. 238).
- 114 -
interesses da colonização, fiscalizando “na base” tudo quanto pudesse
comprometer ou ameaçar a dominação portuguesa, assegurand o a
“fidelidade” e a disciplina dos indígenas [populações negras africanas] e
administrando o cotidiano da esmagadora maioria da população ”.
- 115 -
da Beira e que há bem pouco tempo, antes da construção da linha férrea “Moatize-
Nacala” pela Vale, era a principal linha de escoamento da produção mineral.
****
O controle da população negra moçambicana foi uma das estratégias das forças
portuguesas no combate à guerrilha da FRELIMO, que lutava pela independência de
Moçambique, embora não tenha sido exclusivo daquela realidade sociocultural. O
controle da população foi também adoptada em outros países como Angola, Guiné-
Bissau para frear os movimentos nacionalistas. Essa lógica foi inspirada nas guerras
subversivas Britânicas na China, Malásia e Quênia, bem como nas estratégias do
exército francês na guerra revolucionária da Argélia - cujos efeitos sociais foram muito
bem explorados por Pierre Bourdieu e Abdamalek Sayad no artigo “a dominação
colonial e o saber cultural” (BOURDIEU; SAYAD, 2006). Tal como destacam esses
autores, o deslocamento compulsório das populações das áreas rurais e a criação de
zonas proibidas constituíram-se em uma das estratégias adotadas pelas forças militares
francesas durante a guerra colonial, para evitar o apoio ao exército revolucionário da
Argélia. Na visão das forças francesas, esvaziar uma área não controlada implicava
necessariamente afastar a população da zona de influência rebelde. Nesse contexto, de
1954 a 1957, milhares de camponeses foram expulsos das suas aldeias. Até 1960 um
quarto da população rural da Argélia tinha sido deslocada das suas áreas originais de
vivência. Levando em conta o êxodo para as cidades, Bourdieu e Sayad, (2006) estimam
que metade da população rural argelina se encontrava, até 1960, fora das suas áreas
originais de sobrevivência. Meios brutalmente violentos, como por exemplo o incêndio
a florestas, a destruição de reservas alimentares e gado, foram utilizados para obrigar os
camponeses a abandonar as suas aldeias. A maioria dessas populações foram
- 116 -
reagrupadas em áreas próximas das instalações militares franceses. Essa estratégia tinha
como objetivo por um lado “permitir ao Exército um controle direto sobre elas, de
maneira a impedir que transmitissem informações, fornecessem orientações,
mantimentos ou alojamento aos soldados do Exército de Libertação Nacional (ALN)”.
Por outro lado, “facilitar a repressão, ao autorizar que fossem considerados “rebeldes”
todos aqueles que permanecessem nas zonas proibidas” (BOURDIEU; SAYAD, 2006,
p. 42).
- 117 -
para a Inglaterra para estudar a experiência britânica nas guerras que combatia na
Malásia e no Quênia (CABAÇO, 2007). Partindo dessas experiência, o exército
português definiu que a vitória da guerra contra os nacionalistas quer em Angola e
Guiné-Bissau, quer em Moçambique, dependia de três elementos essenciais: conquistar
a simpatia e a adesão das populações; desmoralizar os militantes e os guerrilheiros,
diminuindo a sua capacidade combativa e atuar sobre as próprias tropas para incentivar
a sua disponibilidade operacional. A conquista da simpatia e adesão das populações
ocupava um lugar primordial. Nesse âmbito foram desenvolvidas nas colônias ações
que iam desde assistência sanitária e educativa, apoio religioso, até a realização, no
campo da economia, de trabalhos em prol da população.
- 118 -
evitar o contato com os guerrilheiros nacionalistas e criar polos de “desenvolvimento”
socioeconômico. Porém tal como destaca João Paulo Borges Coelho (2003, p. 179) na
realidade os aldeamentos eram,
- 119 -
como por exemplo as então circunscrições de Maravia e Bene, e uma parte do conselho
de Macanga. Em 1968, cinco aldeamentos foram estabelecidos em Maravia, com
aproximadamente 2.500 pessoas compulsoriamente deslocadas. Em 1969 foram
construídas também em Maravia e Bene mais 3 aldeamentos respectivamente; e mais 4
aldeamentos em Macanga, totalizado em dois anos (1968-1969) 15 aldeamentos
envolvendo entre 15 a 17 mil pessoal forçadamente deslocadas. Embora os planos de
constituição de aldeamentos que vinham sendo debatidos desde 1966 especificassem,
por exemplo, os critérios como a proximidade com fontes de água, terras adequadas
para agricultura, o estabelecimento desses aldeamentos não seguiu esses critérios,
prevalecendo os critérios estritamente militares (BORGES COELHO, 1993).
- 120 -
guerra caminhava para o fim. Porém, tal como adverte o mesmo autor, se olharmos para
a população de Tete em 1970 (com aproximadamente 500 000 pessoas) e compararmos
com número de pessoas forçadamente reassentadas até 1973/1974 podemos constatar
que aproximadamente 60% da população de Tete foi confinada em aldeamentos. Essa
percentagem pode atingir 70% se olharmos exclusivamente para a população rural. O
atual distrito de Moatize tinha, até o final da guerra em 1974, 44 aldeamentos cobrindo
aproximadamente 50 000 pessoas (BORGES COELHO, 1993). Importa destacar dentre
esses aldeamentos, os aldeamentos de Cateme (atual área onde foram reassentadas a
maioria das populações classificadas como rurais pela mineradora Vale); Mithethe e
Chipanga (onde famílias foram também compulsoriamente deslocadas pela mineradora
Vale); e Benga (uma das áreas onde as famílias foram compulsoriamente deslocadas
pelo projeto de Benga de exploração de carvão mineral - operado atualmente pela joint
venture indiana ICVL). Esses dados nos induzem a pensar na ideia da persistência da
história (CARVALHO; PINA CABRAL, 2004).
- 121 -
dispunham de apenas duas semanas para se dirigir aos aldeamentos e se não o fizessem
eram assassinadas e suas casas destruídas ou queimadas. Em muitas áreas careciam de
infraestrutura básica. Casos há em que as pessoas eram jogadas em determinadas áreas e
ditas para sozinhas construírem as suas próprias residências. Até a conclusão do
empreendimento mais de 280 mil camponeses tinham sido confinadas nos aldeamentos
(ISAACMAN; ISAACMAN, 2013).
[...] nós fomos a pé. Saímos de casa à noite e passamos a primeira noite
caminhando. Dormimos no mato. Como não sabíamos o caminho para a
Rodésia, tivemos que perguntar aos aldeões que encontramos pelo caminho
[...]. Muitas pessoas foram mortas por leões. Quando chegamos à delegacia
de polícia perto da fronteira nos escondemos até termos a certeza que todos
os policiais estavam dormindo. Então nadamos pelo rio [...]34
34 Tradução nossa do: “We went on foot. We left our homes at night and spent the first night walking. We
slept in the bush. Since we did not know the route to Rhodesia, we had to ask villagers we met on the way
[…] Many people were killed by lions. When we reached the police station near the border, we hid until
we were sure that all the police were asleep. Then we swam across the river.”
- 122 -
todos os habitantes dos aldeamentos foram registrados. A partir dos 10 anos de idade
todos tinham que possuir um bilhete de identidade especial emitido pelo administrador
ou pelas autoridades militares. As ruas e as residências dentro de aldeamento foram
nomeadas e numeradas. O movimento das populações para as machambas ou para
outros aldeamentos eram estritamente controlados pela milícia de “proteção” e através
de várias medidas que vão do controle de identidade a contatos regulares de rádio com
outros aldeamentos para verificar chegadas, tempo gasto na viagem, etc. (BORGES
COELHO, 1993, p. 275). Outras medidas adotadas foram o estabelecimento de
perímetros externos de segurança, de torres de controle e holofotes ou luzes de busca
para vigilância noturna, bem como a intensificação da formação das milícias. As
milícias eram compostas por africanos e viviam no aldeamento como pessoas comuns,
fato que evidencia um processo de africanização do conflito.
- 123 -
e integraram se às forças que tempo depois desafiaram as novas autoridades
moçambicanas a partir da Rodésia e África do Sul.
- 124 -
de aldeias serem deslocados para o mesmo aldeamento. A fragilidade das condições de
reassentamento, punham em causa alguns pontos que eram considerados centrais para o
processo: especialmente, viabilidade da terra para produção agrícola e existência de
fontes de água adequadas.
- 125 -
relação e organização social. Para tal, era necessário concentrar espacialmente a
população rural que voltou a se dispersar com o fim da guerra colonial em aldeias
comunais e dinamizar a produção agrícola sob a forma de empresas estatais e
cooperativas agrícolas. Concentrar essas populações em aldeias comunais, rompendo
com a sua lógica dispersa de organização social, tal como fez o colonizador; e
cooperativar a produção agrícola através da socialização dos meios de produção
(principalmente a terra e a força de trabalho) era visto como o único caminho a ser
seguido para vencer o subdesenvolvimento e transformar as relações sociais numa
perspectiva socialista (CASAL, 1996). As aldeias comunais surgem assim assumindo
uma dupla função: (i) concentrar as populações das áreas rurais; e (ii) coletivizar a
atividade econômica rural. Esse novo sistema de povoamento era também visto como o
melhor caminho para garantir o acesso das populações das áreas rurais aos serviços
essenciais, como saúde, educação e transporte, água potável, etc. Neste contexto, fatores
como a extensão de terra suficiente para o desenvolvimento da produção familiar e
cooperativa, fertilidade dos solos, água potável, acesso a recursos naturais eram na visão
dos planificadores imprescindíveis no processo de instalação das aldeias comunais
(ARAUJO 1983; 1988). Segundo Casal (1996) o projeto previa aldear
aproximadamente 80% da população rural moçambicana.
- 126 -
mecanismos ocultos do processo que matinha claras analogias com o programa de
aldeamento colonial francês, acima descrito. Concentrar as populações das áreas rurais
em espaços delimitados, rompendo com a lógica dispersa de vivência, permitiu instituir
um sistema de reprodução de força de trabalho para o setor agrícola e os demais setores
econômicos de produção. Numa lógica de tutela, as populações das áreas rurais foram
colocadas como meros objetos e espectadores do processo, sendo negada a
possibilidade de serem protagonistas do seu próprio destino. O fracasso do projeto levou
ao seu abandono em 1981 (CASAL, 1996).
Tal como destaca Casal (1991), a produção familiar dispersa já era objeto de
crítica de Samora Machel, ainda no período da guerra de libertação nacional. Para ele o
individualismo e espírito de propriedade (privada) era um espírito capitalista que divide
e enfraquece. Abandonar essa lógica e combater a “exploração do homem pelo
homem”, era imprescindível para se assumir uma consciência coletiva de trabalho. Foi
também no período da guerra que a experiência de socialização dos meios de produção
e cooperativização agrícola, baseado nas aldeias comunais, começou a ser
implementado nas zonas libertadas. Nestas zonas a população viu o seu modo de vida
alterado para um socialismo de guerra, no qual o trabalho coletivo nas machambas, a
hierarquia política e a rigidez da organização se mostraram como um embrião da
sociedade que estava por se construir (GALLO, 2017, p. 82). Tal como lembra Cabaço
- 127 -
(2007, p. 400), a direção da FRELIMO tinha a preocupação de integrar em cada unidade
operativa, militares vindos de diferentes regiões e grupos étnico linguísticos distintos
para reduzir “tendências centrífugas e, potenciando novos momentos de
intersubjetividade, estimular dinâmicas sociais e culturais que, de forma criativa,
respondessem aos problemas inéditos que a situação de guerra suscitava”. As
experiencias das zonas libertadas inspiraram o programa de aldeias comunais no estado
“pós-colonial”. Ou seja, esse modelo revolucionário que a FRELIMO tinha concebido e
desenvolvido durante os 10 anos de guerra de libertação nacional, (inspirado nas
experiencias argelina e tanzaniana) nas zonas libertadas passa a ser utilizado em todo
território nacional, provocando um deslocamento maciço das populações, na sua
maioria das áreas rurais.
- 128 -
apresentado nas restantes províncias, essa taxa desceu para 60% nos anos 1982/1983.
De 1976 a 1983 aproximadamente 20% da população moçambicana tinha sido
deslocada compulsoriamente para as aldeias comunais num movimento de
aproximadamente 2 milhões de habitantes (ARAUJO, 1988, p. 209). Cabo Delgado e
Tete eram as províncias que apresentavam maior número de aldeamentos coloniais até o
fim da independência e algumas das aldeias comunais foram resultado da reconversão
automática dos antigos aldeamentos coloniais. No caso de Moatize, por exemplo, em
1974 ano de assinatura do acordo de Lusaka, havia 44 aldeamentos coloniais. Até 1982
dois tinham sido transformados em aldeias comunais, 29 se transformaram em aldeias
informais e 13 desapareceram (BORGES COELHO, 1993, p. 377).
- 129 -
comunais chegaram a albergar mais de 2000 famílias cerca de 15 a 20.000 pessoas
(BORGES COELHO, 1993, p. 336).
Segundo Adolfo Yañez Casal, a luta de libertação nacional e o fato de ter sido
um ator central na independência do país deram a FRELIMO um prestígio, força e
autoridade para tomar nas suas mãos o destino o do povo moçambicano e abriu espaço
para maior aceitação dos seus ideais no processo de mobilização. O discurso de
melhoria de vida, desenvolvimento de infraestruturas, assistência social e
implementação de políticas públicas essenciais para a vivencia foi inicialmente aceito
pela maioria da população, não só em função da sua legitimidade, mas também porque
hospitais, escolas, transporte, abastecimento dos meios de produção já eram
necessidades da maioria das populações das áreas rurais (CASAL, 1996, p. 126).
Porém, em muitos casos a violência e a intimidação foram empregados, tal como na
política dos aldeamentos coloniais, diante de ações de resistência das populações37 .
37 Para
mais informações sobre as ações de resistência das aldeias comunais, ver a tese da antropóloga
Fernanda Gallo, intitulada “Andando à procura dessa vida: dinâmicas de deslocamento na província de
Tete-Moçambique, do colonialismo tardio à mineradora Vale”, fruto de uma pesquisa desenvolvida na
- 130 -
Queimar palhotas das populações para forçar a transferirem-se para as aldeias comunais
não eram ações raras. Outra estratégia agressiva de mobilização foi, por exemplo, de
proporcionar ajuda emergencial somente aos que estão nas aldeias comunais como
forma de cooptação, deixando à própria sorte os que estivessem fora ou se recusavam a
aceitar essa política perversa38 .
mineradora indiana que atua na exploração mineral em Moatize, vem com a anuência do governo
explorando as minas de carvão a céu aberto, próximo das áreas residenciais, numa autentica in diferença à
questão humana e à violação dos direitos humanos. O empreendimento foi inaugurado pelo então
presidente da República de Moçambique Armando Emilio Guebuza. A exposição à poluição ambiental
faz com que as populações desejem ser deslocadas para ou tros locais. Fato que pode ocorrer sem a
garantia integral dos seus direitos.
- 131 -
nos aldeamentos impostos pelos colonizadores portugueses. Tal como destaca Borges
Coelho (1993), embora pudessem ser encontradas escolas em todas as aldeias comunais,
eram frequentemente escolas construídas nos aldeamentos coloniais. Em muitas aldeias
comunais as escolas funcionavam a céu aberto, debaixo das arvores. O problema com os
postos de saúde era particularmente o mesmo. Em Moatize, por exemplo, das 3 aldeias
comunais só uma tinha um posto de saúde.
O acirramento da guerra com a RENAMO em 1980 fez com que, tal como no
tempo colonial, as estratégias militares imperassem sobre todo o discurso social,
político e econômico de legitimação das aldeias comunais. Razão pela qual,
em 1980 a imensa maioria das aldeias eram apenas locais de habitação sem
uma base socioeconômica segura. A degradação do sistema familiar começou
a levantar sérios problemas de reprodução social. Dificuldades de transporte,
problemas das terras e acesso a água, provocaram sérios problemas de
subsistência. O abandono começa a se tornar numa tática de neutralização das
ameaças a sobrevivência. O programa começa a entrar em crise revelando as
incongruências do seu processo de implementação (CASAL, 1996, p. 127).
- 133 -
demonstrar no subcapítulo a seguir, pela expulsão e expropriação em favor da grande
propriedade privada.
****
- 134 -
invisíveis pelos holofotes que preferem fazer jorrar a sua luz sobre o palco?
(p. 96).
Com isso Macamo (2014b) quer dizer que o aparato teórico conceitual sobre o
mundo social normaliza o que supostamente existe e esse processo de normalização
invisibiliza e silencia “outros mundos possíveis os mundos sacrificados para que este
que existe exista” (p. 96).
Isso não implica – voltando para a crítica de Pina Cabral - recusar a existência de
rupturas entre o colonialismo e o pós-colonialismo, mas que essas rupturas estão abertas
a continuidades. Advogamos que essa não seja uma caraterística exclusiva de estados
africanos. A realidade da vida cotidiana das comunidades quilombolas amazônicas39
(destacamos essa região porque é donde esta tese está sendo escrita) são um exemplo
dessas rupturas que guardam consigo muitas continuidades. Tal como destacamos num
outro trabalho (CONRADO; EUSÉBIO; CASTRO, 2017) de escravizados, violentados
e perseguidos no período escravocrata, invisibilizados40 até a redemocratização do
Brasil, os negros e as negras afro-amazônidas, enfrentam novos desafios inerentes a
uma política ambiental governamental violenta na medida em que impede a titulação
das suas terras tradicionalmente ocupadas – o conflito entre a Floresta Nacional Sacará-
Taquera (FLONA) e a Reserva Biológica de Trombetas (REBIO) por um lado; e as
comunidades quilombolas de Oriximiná por outro, é um exemplo emblemático
(FARIAS JÚNIOR, 2010). Assim como a violência da indústria extrativa com destaque
para a mineração. O avanço da indústria extrativa vem sendo acompanhado pela
39 Embora os primeiros quilombos sejam resultado de fugas de negros e negras escravizadas, a identidade
quilombola não se resume a isso. Berno de Almeida (2002) trabalha com a categoria de “autonomia” para
destacar que quilombo, em verdade, descarnou -se dos geografismos, tornando-se uma situação de
autonomia que se afirmou fora ou dentro da grande propriedade. Para o autor, a situação de quilombo
existe onde há uma “[...] produção autônoma que não passa pelo grande proprietário ou pelo senhor de
escravos como mediador efetivo” (p. 62). Ao destacar a questão da autonomia a definição de quilombo
passa a abranger uma diversidade de situações e uma pluralidade de práticas e auto definições dos agentes
sociais que viveram e constituíram essas situações, hoje, designadas por quilombos, inclusive àqueles
relativos à compra de terras por famílias de negros escravizados alforriados (ALMEIDA, 2002). Ou seja,
a categoria quilombo, consiste em grupos que desenvolveram práticas cotidianas de resistência na
manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos e na consolidação de um território
próprio” (O`DWYER, 2010, p 43). Nesse contexto, a identidade desses grupos se define pela expe riência
vivida e as versões compartilhadas de sua trajetória comum e da continuidade enquanto grupo
(CONRADO, EUSEBIO, CASTRO, 2017).
40 Uma invisibilização que é, tal como destacamos anteriormente (CONRADO; EUSEBIO; CASTRO,
2017) a expressão máxima de uma ordem jurídica hegemônica e expõe uma forma de violação simbólica
(LEITE, 2010). A primeira lei de terras, redigida após a abolição tardia da escravatura, contribuiu
substancialmente para tornar invisíveis os negros e as negras quilombolas e seus descendent es no
processo de ordenamento jurídico-territorial do país. Ao negar-lhes a condição de brasileiros, segregando-
os a categoria de libertos esta lei inaugura, segundo Ilka Boaventura Leite (2010, p. 19), um dos mais
“hábeis e sutis mecanismos de expropriação territorial”
- 135 -
lentidão da demarcação das suas terras41 - um processo que daria mais segurança
jurídica sobre os seus direitos territoriais. Essa lentidão tem como uma das
consequências diretas a expropriação. No período escravocrata, a perseguição aos
quilombolas era tal como na política de aldeamentos coloniais e aldeias comunais em
Moçambique, para a sua agregação e reintegração à propriedade. Hoje a luta das elites
econômicas é pela expulsão, “[...] botar para fora ou tirar dos limites físicos da grande
propriedade” (ALMEIDA, 2002, p. 59). Em função disso não se torna um equívoco
reiterar que de populações escravizadas, perseguidas e historicamente sofridas, as
comunidades quilombolas se tornaram populações espoliadas em seus direitos e na sua
condição humana (LEITE; OLIVEN, 2002; CONRADO; EUSÉBIO; CASTRO, 2017).
Essa perseguição e espoliação de direitos e condição humana dos negros se verifica
também nas cidades. Segundo Jakson Silva da Silva (2017) em Belém, por exemplo,
“inferiorizados os pretos, pobres e pardos são obrigados a sair para dar espaço à
“destruição criadora” que orienta uma concepção de urbanismo que sistematicamente
substitui o lugar de vida popular pelo espaço de valorização do valor [capitalista]” (p.
1144). A questão que importa fazer agora é a seguinte: seria o Brasil uma sociedade
“pós-colonial” ou “pós-escravocrata”?
41 Os passos de tramitação da titulação se rendem e se submetem à cultura cartorial, que foi montada pelos
donatários e para atender a seus interesses. O percurso é incerto e não é definido pela legislação, mas pelo
jogo de forças e poderes há muito solidamente institucionalizados. “[...] Não há nenhuma garantia de que
os atuais procedimentos administrativos consigam transpor as armadilhas instituídas pela máquina
cartorial em seus tramites regulares” (LEITE, 2010, p. 31).
- 136 -
também na continuada exportação de força de trabalho moçambicana para as minas da
África do Sul (PINA CABRAL, 2004). Elísio Macamo encontra continuidades de
práticas coloniais no estado pós-colonial moçambicano na prevalência de uma lógica
instrumental de cidadania que o autor denomina de cidadania de tutela centrada na
subordinação da liberdade dos indivíduos às vontades particularista do estado
(MACAMO, 2014a).
- 137 -
branco, nessa vertente semântica, não implica só a consciência das relações de
assimetria entre o mundo rural e os elementos do mundo do poder urbano. Ela também
denuncia uma estranheza: essa relação agora se dá com a gente que não sendo branca, se
comporta como tal, ou seja, estabelece velhas e cruas relações de dominação. A
denúncia implícita na mera extensão do termo branco não deixa de ser explícita na
recorrente acusação de que esses “pensam como brancos, julgam que são brancos ou
andam como os brancos, afirmações ilegitimadoras, não só das condutas alheias, mas
fundamentalmente, das relações sociológicas que as antecedem” (p. 315). Isso demostra
- continua Teixeira (2004),
- 138 -
3.2 A atual política de desenvolvimento nacional: megaprojetos de mineração e os
deslocamentos compulsórios para os centros de reassentamento - o projeto Vale em
perspectiva
- 139 -
mineira). Este também tem a obrigatoriedade legal de acautelar aspetos sociais,
econômicos e culturais; (iv) o programa de controle de situação de risco e emergência
que é parte integrante do estudo de impacto ambiental, acima definido; e (v) a auditoria
ambiental que é considerada um instrumento de gestão e avaliação sistemática,
documentada e objetiva do funcionamento e organização do sistema de gestão e dos
processos de controle e proteção do ambiente (MOÇAMBIQUE, 2004).
- 140 -
transferência do direito do uso e apropriação das comunidades para a empresa era
obrigatório e irreversível. Não tinham escolha. Já estavam condenadas à expropriação.
Primeiro porque a mineração tem prioridade sobre todas as formas de uso e apropriação
da terra e recursos. Segundo porque o direito já havia sido concedido. Isso para dizer
que, desde o primeiro momento as comunidades estavam condenadas ao deslocamento
compulsório. O passo seguinte era saber em que condições. Neste contexto não constitui
um equívoco afirmar que mais do que negociar as condições de possibilidade de
implementação do empreendimento no seu território, as ditas consultas comunitárias
foram mais para imposição das condições da irreversível saída do lugar (retomamos
essa discussão no capítulo 04).
- 141 -
que iriam continuar a desenvolver aquelas suas atividades normalmente.
Prometeram criar condições para isso e criar projetos como de criação de
frangos, dentre outros, para ajudar a desenvolver atividades que dê algum
rendimento .
O lócus da nossa pesquisa foi Cateme. Por essa razão a nossa análise sobre os
procedimentos adotados no atual processo de deslocamento se centra nas narrativas
dessas populações classificadas perversamente como rurais e compulsoriamente
deslocadas, dialogando com outras fontes secundarias e primarias, com destaque para as
- 142 -
narrativas de alguns ativistas das ONGs e pesquisadores acadêmicos que de certa forma
acompanharam o processo.
Não é para me entregar. Mas acho que era entre finais de 2004 início de
2005, já não me lembro bem, mas na altura quem estava na presidência de
república era [Joaquim Alberto] Chissano. Ele veio com representantes da
empresa Vale e fez um comício ali mesmo na Estação dos Caminhos de Ferro
[da vila de Moatize], acho que o próprio presidente da Vale estava e uma
equipe do governo. O presidente Chissano apresentou a empresa e nos
perguntou durante o comício. Vocês querem trabalhar? Nós dissemos
sim. Depois ele disse. Trouxemos essa empres a Vale do Rio Doce. Se
querem trabalhar está aqui a empresa. Ela vai se instalar aqui para
explorar carvão. Depois desse comício começaram a chegar lá no bairro
representantes da Vale para fazer pesquisas. Chegavam com máquinas e
furavam para fazer pesquisas. O lugar do furo era indicado por GPS. Quando
eles chegavam podia ser no meio do quintal da residência ou na machamba
eles furavam para fazer pesquisa. Mas depois eles compensavam. A
compensação era muitas vezes em alimentação. Avaliavam o espaço e diziam
quanto custava e pagavam. As vezes era cinco sacos de milho de 50 Kg, óleo
e amendoim. Quando coincidia numa casa afastavam o furo para o lado. Mas
nas machambas furavam mesmo. No quintal também. Isso foi em entre 2007
e 2008. Foi nesse período que comecei a trabalhar na Gondwana, uma
- 143 -
empresa de geologia. Nós é que levávamos as amostras de carvão que era
tirado nas perfurações para a Vale para as res pectivas análises.
Foi nesse período que alguns discursos de cooptação, com vista a minimizar a
resistência das populações que seriam posteriormente deslocadas começou
informalmente a ser avançado.
fiquei sabendo que vamos sair de Malábue através do líder. O líder é que veio
nos informar que iriamos sair de lá. Inicialmente não sabia quem de fato ia
nos tirar. Só sabia que íamos sair. Não sabia quem de fato estava de frente
dessa decisão. Então após de ter essa informação com o senhor líder, dias
depois vieram os da empresa Vale, e nos disseram que vamos ser transferidos
para Cateme, e de tudo que vocês precisarem vocês vão encontrar lá. E nós
aceitamos e cedemos os espaços. Depois da empresa se apresentar
começaram a vir com aquelas palestras, usando teatro para nos explicar como
iriamos viver em Cateme e como a transferência se faz.
- 144 -
observou, na sua maioria, as fronteiras definidas pela administração colonial sobre
regulados e povoações (JOSSIAS, 2016).
Logicamente que essa legitimidade não pode ser vista de forma essencialista, ela
varia em função dos contextos. Porém, reconhecendo a prevalência dela, a partir da
década 90 o governo moçambicano buscou capitalizá-la a seu favor, mobilizando as
autoridades tradicionais como veículo de penetração e expansão do controle das
populações das áreas rurais e legitimação do próprio estado em nível local
(principalmente em áreas que durante a guerra civil estiveram sob o controle da
RENAMO). Em 1994, através das ações de aproximação e reconhecimento das
autoridades tradicionais, o então presidente da República Joaquim Chissano manteve
diversos encontros com autoridades tradicionais de várias províncias do país. Desde
então o governo central passou, de acordo com Florêncio (2003; 2008), a destacar no
seu discurso a importância das autoridades tradicionais no processo de formação do
estado, sobretudo em nível distrital.
- 146 -
fornecimento de informação relevante à resolução dos problemas das comunidades,
manutenção da saúde e prevenção de epidemias e doenças contagiosas, prevenção de
incêndios, de caça e pescas ilegais, proteção do meio ambiente, preservação da floresta
e fauna bravia, do patrimônio físico e cultural, promoção da atividade produtiva, são
algumas das funções a serem exercidas nesse novo contexto de relações pelas
autoridades tradicionais em colaboração com os órgãos distritais (MOÇAMBIQUE,
1994; FLORÊNCIO, 2003, p. 136). Para Francisco Florêncio, essas novas áreas de
colaboração entre o estado e as autoridades tradicionais traduzem uma reposição quase
que integral da função exercida por estas entidades no regime colonial (FLORÊNCIO,
2003; 2008). Período em que predominou o sistema do indirect rule caraterizado por
uma,
- 147 -
conceitual e integração dos outros atores em posição de igualdade com as autoridades
tradicionais evidencia que a corrente modernista está ganhando predomínio.
- 148 -
podíamos fazer nada. Quando a Diagonal queria falar com a população, os
lideres reuniam a comunidade para o efeito. Mas agora já não aparecem aqui
(SR. P.A.S. MITHETHE, 2016).
os do governo nos diziam para não resistir nem negar vir para aqui. Diziam:
é um programa do governo vocês não podem negar. Os brancos querem tirar
daqui carvão para vossos filhos trabalharem também. Nós precisamos desse
lugar para o branco fazer seu serviço. Não tivemos como negar, acabamos
vindo para aqui.
- 149 -
Eu comecei a acompanhar o reassentamento de Cateme em 25 de setembro
nos finais 2009, nestas alturas estava-se nas vésperas do verdadeiro
reassentamento, tendo em conta que as primeiras famílias foram transferidas
em outubro de 2009 e o processo se alastrou até 2010. Eu quando estive em
Cateme e 25 de setembro foi em agosto de 2009 e nessa altura o nível de
descontentamento já estava presente, as pessoas já estavam a protestar.
Existia um grupo de famílias que não concordavam com a forma como o
processo estava sendo conduzido porque as famílias diziam que muitos dos
acordos alcançados verbalmente com o governo não estavam a ser
cumpridos. Em parte, tinham a ver com o modelo das casas, com a questão
da terra, o número de hectares que a empresa iria conceder a cada família.
Mas por outro tinha a ver com as compensações, a forma como o governo e
empresa estavam a proceder os cálculos das compensações para aquelas
famílias que não quiseram ir nem para Cateme, nem para 25 de setembro e
preferiram aquela opção de compensação assistida. Para as famílias
deslocadas para Cateme e 25 de setembro havia a penumbra quanto as
compensações sobre as machambas, culturas e outras benfeitorias . As
famílias não concordavam com a tabela de compensação feita pelo Ministério
de Agricultura e que a empresa estava a seguir. Nessa altura já havia
correspondência de cartas feitas pelas famílias através dos seus líderes,
enviadas para o governo provincial antecipando a comunicação desse
descontentamento antes mesmo que o reas sentamento acontecesse (J.V.
MAPUTO, 2016).
- 150 -
Por outro lado, o governo assumiu, segundo J.V. Maputo (2016), o projeto da
Vale como sendo de grande prioridade e salvador da pátria. A solução para os
problemas do país. Neste contexto, as poucas organizações da sociedade civil que
estavam em ação em Moçambique tiveram o cuidado de não serem conotadas como
organizações que estivessem contra o governo ou responsáveis por inviabilizar as
soluções que o governo estava encontrando para resolver os problemas do país. Então
qualquer pressão ou assessoria neste contexto seria vista como algo contra o
desenvolvimento. É por essa razão que J.V. reafirma que a falta de assessoria e
aconselhamento pelas organizações da sociedade civil fragilizou a capacidade e
amplitude de resistência e reivindicação social das populações deslocadas, bem como a
pressão que era necessária ao governo e à empresa para minimizar a violação dos
direitos das famílias deslocadas.
Mas olhando agora. É verdade que teria sido importante a pressão, as críticas
e a assessoria, porém tenho dúvidas se de fato teria melhorado alguma coisa,
olhando para o poder e a influência que a Vale exerce ou exercia naquela
altura dentro do governo moçambicano, mas também para sua forma de
atuação no próprio Brasil. Agora, é importante deixar claro que as
comunidades sempre resistiram, diversas cartas assinados pelas famílias,
pelos representantes dos bairros, e das comunidades foram entregues ao
governo provincial, distrital, ao município e ao parlamento . Quer dizer
mesmo com a pouca atuação das organizações da sociedade civil e com
pouca assessoria, aquelas famílias já tinham um embrião de cidadania e de
reivindicação social em defesa dos seus direitos que se consolidou quando
chegaram em Cateme (J.V. MAPUTO, 2016).
Seguindo a estrutura dada pela Sra. A.P.F. Mithethe (2016), pode-se dividir os
processos de expropriação de duas fases distintas, mas complementares: a fase da
comunicação e a fase da persuasão. A Sr. A. P. F. Mithethe, nasceu “lá mesmo” em
Mithethe. Antes do seu nascimento os seus pais moravam no centro da vila de Moatize,
mas mantinham uma casa e machamba em Mithethe onde passavam um determinado
tempo do ano produzindo. Depois da colheita voltavam para a casa principal da vila.
Porém depois de um tempo acabaram fixando definitivamente residência em Mithethe,
tendo a agricultura como a base da sua reprodução social e econômica.
Foi nesse tempo que eu nasci. Morei esse tempo todo em Mithethe. Até que
saímos para aqui. Fiquei sabendo que íamos sair quando uma equipe da
empresa Vale foi para lá no bairro Mithethe contatar os líderes e informar das
atividades que iam desenvolver. Nesse período era só empresa que vinha,
mas no decorrer do tempo no momento que estavam a nos persuadir para sair
é que representantes do governo vinham juntos com os representantes da
empresa. A informação inicial foram os da Vale que deram, sobre o que era
o projeto, depois quando já vinham negociar a nossa saída passaram a esta r
sempre a acompanhados por representantes do governo. Ou seja, apareceram
primeiro para nos falar da existência do projeto e depois para negociar a
- 151 -
nossa saída. Nos sensibilizar para sair. É nessa segunda fase que vinham
sempre acompanhados pelos membros do governo (SR. A. P. F.
MITHETHE, 2016).
Tivemos um kit de comida pela primeira vez e depois foram de vez e não
tivemos nada até agora. Foram sete sacos da farinha de milho por família, um
saco de feijão, amendoim e óleo. Também houve distribuição de fertilizantes
e adubos (SR. R.C.C. MALÁBUE, 2016).
- 152 -
bairro Malábue tinha a peculiaridade de se localizar próximo ao rio Revúbue e em
função disso além da agricultura, praticavam a pesca e a produção de esteiras tendo
como principal material de produção o caniço que cresce naturalmente no rio.
- 153 -
que afetam diretamente as suas vidas Prevalece a lógica colonial de tutela, “nós como
governo sabemos o que é bom para vocês, é so seguirem”.
- 154 -
Para Pierre Bourdieu (1992, p. 14), o poder simbólico é um poder invisível o
qual só pode ser “exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe
está sujeito”. Através do poder simbólico se impõe uma realidade social dissimulando
as desigualdades sociais que lhe são inerentes. É, neste contexto, um instrumento de
imposição e legitimação da dominação de uma classe sobre a outra através da violência
simbólica. É um poder
quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força
física ou econômica [...]. Reside na relação determinada entre os que exercem
o poder e os que lhe são sujeitos [...] na própria estrutura de campo em que se
produz e se reproduz a crença (BOURDIEU, 1992, p. 14-15).
Neste contexto, ele, não apenas varia em função de cada campo de relações
(econômico, religioso, cultural, político) como também é uma forma transformada,
irreconhecível, transfigurada e legitimada de outras formas de poder. E é por ser
transfigurado e dissimulado que oculta o seu caráter violento e arbitrário (BOURDIEU,
1992).
- 155 -
Advogo que essa diferenciação é fruto do caráter democraticamente questionável
do próprio estado moçambicano. Quanto mais democrático, quanto mais fortes forem as
instituições públicas e todo um sistema de justiça, mais simbólica é a violência que
caracteriza o sistema de dominação. A fraqueza das instituições e o caráter autoritário
do estado torna a violência do sistema de dominação menos simbólica ou dissimulada e
mais física. Essa é a situação que se verifica em Moçambique. Isso não implica,
voltando para o processo de expropriação das populações de Malábue, Mithethe,
Bagamoyo e Chipanga, que essas populações tenham sempre ocupado uma posição
passiva no processo. Quer no processo de aldeamentos coloniais, quer no processo de
criação das aldeias comunais e nos atuais deslocamentos compulsórios provocados pela
atual política de desenvolvimento centrada nos megaprojetos, as populações atingidas
desenvolveram, tal como destacamos acima, diversas ações de resistências. Porém, é
preciso reconhecer que essas ações de resistências variam em função do nível autoritário
de cada regime. As ações e as condições de possibilidade de resistência do tempo
colonial diferem das ações e das condições de possibilidade de resistência do período
socialista e logicamente do período atual. O que tem em comum esses períodos é o
caráter autoritário e violento do estado (principalmente na sua relação com as
comunidades locais). Caráter autoritário e violento este que, tal como buscamos
explorar no capítulo a seguir, (i) está acoplado como numa cartografia jurídica que
inferioriza os direitos territoriais das comunidades locais e que (ii) se intercecciona com
o caráter autoritário e violento da própria multinacional Vale.
- 156 -
Distrito e Município sucessivamente. É importante destacar que a ideia de “comunidade
locais” ganha importância jurídica e política na década de 1990 com o processo de
reconhecimento das autoridades tradicionais (FLORÊNCIO, 2003; 2008; JOSSIAS,
2016; ver capítulo 03 desta tese) e com a Lei de Terras de 1997 que estabelece o direito
comunitário de uso e aproveitamento da terra. Definem-se no âmbito da Lei de Terras
como “comunidades locais” o “agrupamento de famílias e indivíduos, vivendo numa
circunscrição territorial em nível de localidade ou inferior, que visa à salvaguarda de
interesses comuns através da proteção de áreas habitacionais, áreas agrícolas, sejam
cultivadas ou em pousio, florestas, sítios de importância cultural, pastagens, fontes de
água e áreas de expansão” (MOÇAMBIQUE, 1997). Pode-se constatar, como já destaca
Jossias (2016), que esse conceito remete a uma forma de vivência que se contrapõe ao
que se pode denominar de forma de vida urbana (ver capitulo 03).
42 O mesmo se verifica entre os moradores de Catete e Cancope, que são outras áreas visitadas durante a
pesquisa de campo e que têm em comum o fato de se localizarem em áreas um pouco mais distantes de
vila a apresentarem caraterísticas rurais de organização social.
- 157 -
Bagamoyo”. Nesse contexto, além da distância, as formas de produção, organização e
reprodução social e econômica das pessoas que moram em áreas que se denominam de
comunidades se diferenciam do modo de vivência urbano
- 158 -
Na mesma linha de análise, a antropóloga Edna Alencar concebe o lugar como
um espaço socialmente significativo, construído e transformado pelo trabalho das
gerações passadas e é nele onde se inscreve a história do grupo. Não existe, segundo a
autora, um grupo social que não tenha alguma relação com o lugar. A relação que o
lugar tem com a memória social e com a história das gerações passadas garante o
vínculo de pertencimento e serve de fator dissuasor—para alguns grupos sociais—da
mobilidade para outros locais. Assim foi constatado pela autora na sua pesquisa em que
buscou compreender o processo de afirmação da identidade dos moradores de São João,
um povoado situado na área da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá,
região de várzea do médio Solimões, Estado do Amazonas, que convive
permanentemente com o fenômeno de “terra caída” (ALENCAR, 2002; 2007; 2013).
- 159 -
4.1 Direitos territoriais e a “subalternização” das comunidades locais em
Moçambique
- 160 -
chamados a submeter-se. O seu lugar no mundo era definido pelo branco europeu ao
mesmo tempo em que era também inteligível através de todo um glossário desse mesmo
branco europeu. É tal como afirma Fanon (2008): o negro é construído como negro no
processo da relação perversa colonial. O negro é o que o branco diz que é. De fato, o
colonialismo foi caracterizado pela desumanização do outro, através do racismo,
violência e expropriação de terras ancestrais, pelos brancos europeus - transformando
uma parte da população mundial (negros africanos e povos indígenas) em “os outros
inferiores” através de diversos mecanismos de poder, dominação e subjugação
(CURIEL, 2007). A colonização descivilizou o colonizado, através da violência e
genocídio; e ao mesmo tempo descivilizou o próprio colonizador que se torna mais
selvagem do que o “seu selvagem” (CEZARIE, 1978). Entre o colono e o colonizado só
havia lugar para “trabalho forçado, intimidação, pressão, policia, roubo e violência,
culturas obrigatórias, desprezo, desconfiança, arrogância, a suficiência, a grosseria,
elites descerebradas e as massas aviltadas” (CEZARIE, 1978, p. 25). Senhor
predestinado, o branco estabeleceu entre ele e o mundo uma relação de apropriação,
colocando o homem negro e o indígena como instrumento de produção (CEZARIE,
1978; FANON, 2008).
Essa lógica dicotômica se refletia na divisão social do espaço físico, entre a zona
habitada pelos colonizadores que não era complementar da zona habitada pelos
colonizados. As duas zonas obedeciam ao princípio da exclusão recíproca sem
possibilidade de conciliação. Segundo Fanon (1968, p. 28-29),
- 161 -
Embora o lócus de reflexão de Fanon tenha sido a Argélia, então colônia
francesa, essa lógica dicotômica de divisão espacial guarda similaridades com a situação
colonial de vários outros estados africanos. Refletindo sobre o contexto sul africano,
Mbembe (2014, p. 143) destaca, por exemplo, que o sistema do apartheid ao delimitar
espaços urbanos especificamente reservados aos não brancos, privava-os de qualquer
direito nas zonas brancas. “[...] como consequência, essa incisão exercia sobre as
próprias populações negras o peso financeiro da sua própria reprodução e circunscrevia
o fenômeno da pobreza a enclaves territoriais racialmente conotados” (MBEMBE,
2014, p. 143). Situação semelhante caracterizava várias cidades de Moçambique no
tempo colonial - de Moatize à Lourenco Marques, atual Maputo. As áreas centrais das
cidades eram destinadas aos brancos e seus arredores aos não brancos. Bairros como o
atual Polana, Central e Alto Maé em Lourenco Marques eram ocupados pelos brancos e
seus arredores como Mafalala, Polana-Caniço e Maxaquene com estruturas precárias
(situação que permanece até no contexto atual) eram destinadas aos negros e aos outros
da colonização (mulatos, monhés, afro chineses, etc.). O mesmo se verificou na cidade
de Moatize. Devido à prevalência de empreendimentos de exploração de carvão mineral
e à linha férrea Trans-Zambezia (atual linha de Sena), concentrou uma população
branca na área central da vila, ficando os arredores com precárias condições de
infraestruturas destinados aos negros. O historiador João Paulo Borges Coelho no seu
romance “Rainhas da Noite” explora algumas dessas ambiguidades entre negros e
brancos em torno da fábrica de exploração de carvão mineral em Moatize no tempo
colonial (BORGES COELHO, 2013).
- 162 -
coloniais que frequentemente a prolongaram (MBEMBE, 2014). Fato que evidencia que
determinadas lógicas coloniais de relação e organização social não foram superadas
pelos estados pós-coloniais africanos. Aliás, a relação dicotômica colonial superior-
inferior, civilizado-bárbaro, West and Rest, ainda caracteriza a estrutura geopolítica e
“geoepistêmica” mundial, sendo a África um continente mais inferiorizado dentro dessa
estrutura hegemônica, conforme mencionado.
Em Moçambique algumas vozes mais sonantes que buscam romper com essa
lógica vêm da literatura. Paulinha Chiziane; Mia Couto; Ungulani Ba Ka Khosa (cf. por
exemplo, CHIZIANE, 2000; CHIZIANE; SILVA, 2012; COUTO, 2007; KHOSA,
2009; 2013) mergulham, por exemplo, no campo das ontologias dos diversos grupos
étnicos que tornam Moçambique um estado plurinacional, visibilizando essas ontologias
e esses grupos enquanto sujeitos históricos e de memórias. Refletindo sobre os escritos
desses autores, o antropólogo Segone Ndangalila Cossa exalta o papel desses escritores
na construção solidária e restaurativa da dignidade do outro (africano em toda sua
complexidade ontológica e sociocultural que lhe é inerente, ou seja, quando falamos de
“africano” nos escusamos de qualquer essencialismo identitário) como sujeito histórico.
Mia Couto, Paulina Chiziane e Ungulani Ba Ka Khosa dão vida – ainda segundo Cossa
(2017) - às coisas, seres, entidades e universos que povoam o imaginário popular
moçambicano e fazem parte da paisagem cotidiana das pessoas, mas que por faltas de
palavras escritas para nomeá-los acabam por se transfigurar em “coisas menores” de
existência “duvidosa e insignificante”. Porém, quando essas coisas, seres, entidades e
universos são trazidas à superfície por esses escritores, lembram-nos com certa
nostalgia, que um dia elas foram demasiadamente reais e atuantes na nossa vida
cotidiana. Baseados em memórias, histórias e no universo circundante de sujeitos
concretos e abstratos com pouca possibilidade de construir narrativas literárias sobre si
mesmos, tendo em conta que boa parte do que tratam é de sociedades ágrafas, esses
autores vão construindo e restaurando a dignidade e o lugar do outro como sujeito
histórico.
Isso não implica que esses autores descartem ou recusem velhas narrativas
mestras ou que assumem uma posição hegemônica. Pelo contrário, “usam a língua do
colonizador, o português, para expor numa montra mais visível e transcultural do que o
nativo pensa de si mesmo, por si mesmo” (COSSA, 2017, p. 70). A questão basilar
nesses autores não é, ainda segundo Cossa (2017), falar em nome desse outro
- 163 -
degenerado pelo conhecimento ocidental, mas sim, produzir leituras outras,
concorrentes, concomitantes ou dialógicas às mais hegemônicas, de modo que se possa
ter um contraditório e um elemento de comparação. É uma tentativa de fuga de qualquer
forma de essencialismo e de fixação de identidades, na medida em que “traz esses
mundos complexos forjados pelas tradições orais através da escrita. [...] sua escrita é um
aceitar de um lugar de contestação, embate, conflito e interação entre culturas diversas e
distintas” (COSSA, 2017, p. 72).
****
Mas, voltando para a questão dos direitos territoriais das populações das áreas
rurais em Moçambique, importa destacar que a população branca que paulatinamente ia
chegando em Moçambique no tempo colonial foi paulatinamente expulsando as
populações negras moçambicanas das áreas mais férteis e superpovoando as áreas
circundantes, práticas que associadas às crises ecológicas acabaram por contribuir para
uma crescente desestruturação da produção camponesa e por acelerar a criação e
expansão de uma força de trabalho para mercado. No vale do Zambeze, os sistemas de
prazos e posteriormente a concessão de grandes extensões de terra à companhia de
Zambeze e as suas subarrendatárias acirraram um processo de expropriação das terras
das populações autóctones colocadas na sua maioria numa situação de escravidão
através de exploração de trabalho forçado e do mussoco. Nas primeiras décadas do
século XX somente o sul de Moçambique e partes das atuais províncias da Zambezia,
Tete e Nampula permaneceram sob a administração portuguesa. A expropriação de
terras foi, nos primórdios da colonização, acelerada pela crescente demanda de produtos
alimentícios para abastecer Lourenco Marques, então capital. A construção dos
caminhos de ferro rumo às minas de Transvaal criou as facilidades de transporte para os
brancos atingirem as terras aluviais dos vales dos rios Matola, Tembe e Umbeluzi que
rodeavam a cidade de Lourenço Marques, bem como do rio Maputo, ao sul da Baía, e
do Incomati e do Limpopo, ao norte, “vales nos quais se concentrava a maior parte da
população e produção camponesa” (ZAMPARONI, 2012, p. 82).
De acordo com Albert Farré (2014) a carta lei de 1901 foi a primeira tentativa de
organizar a legislação relativa à propriedade da terra em todo o então território
- 164 -
português do ultramar. A carta declarava nulos todos os contratos e acordos feitos com
chefes “indígenas” (negros africanos) por particulares sem conhecimento ou
confirmação da autoridade administrativa. Havia nela um artigo que tratava da
propriedade indígena, reconhecendo o direito a terras habitualmente ocupadas ou
cultivadas, porém o título de propriedade seria conferido ao fim de 20 anos de cultivo e
residência comprovada ininterrupta. As imensas dificuldades técnicas de provar 20 anos
de ocupação e cultivo continuado, tornavam a obtenção de título de propriedade uma
pretensão impossível. Ou seja, a lei dissimulava uma preocupação com os indígenas,
porém a cultura cartorial foi montada para seguir os interesses coloniais que passavam
por criar condições de possibilidade de expropriação das terras das populações negras
africanas.
- 166 -
machambas das populações negras ocupantes; destruindo sua produção, seja espancando
com cavalo marinho como forma de “convidar o miserável a abandonar o privilégio que
o decreto lhe conferia expulsado desse modo o morador indígena da área cobiçada” (p.
87). Na maioria dos casos esses negros e negras africanos, na sua condição de
expropriados eram obrigados a cultivar a mesma terra ancestral, como assalariados ou
rendeiros do novo dono branco europeu e pagando taxas para morar no local.
43 No sul do país, o colonato de Limpopo, considerado o mais importante, foi devidamente explorado pela
historiadora Claudia Castelo no seu artigo “ O branco do mato de Lisboa: a colonização agrícola dirigida
e os seus fantasmas” (CASTELO, 2012), publicado no livro “Os outros da colonização: ensaios sobre o
colonialismo tardio em Moçambique” (CASTELO, et al, 2012). Alpheus Manghezi realizou em 1980
entrevistas interessantes com alguns anciãos de Guijá sobre este colonato. As entrevistas foram
publicadas no livro “Trabalho forçado e cultura obrigatória do algodão: o colonato de Limpopo e o
reassentamento pós-independência c. 1895-1981” (MANGHEZI, 2003).
- 167 -
mais urgentes substituir as importações por produtos coloniais adquiridos p o r
preços abaixo dos praticados no mercado internacional e o algodão tornou-se
a peça chave desta política, pois a crescente indústria têxtil metropolitana
importava mais de 95% da matéria-prima utilizada. Para minimizar os custos
desta dependência o governo metropolitano passou a incentivar o cultivo e
principalmente a lançar as bases para uma política de cultivo compulsório,
que veio a se concretizar, de fato, em 1938 e durou até 1961. [...] O cultivo
obrigatório pelos camponeses pareceu às autoridades portuguesas ser mais
viável do que o sistema de plantation, pois não exigia investimentos e
subsídios estatais e a rudimentaridade e a baixa produtividade do cultivo
seriam compensadas pelo grande número de cultivadores africanos que, tendo
muito menor poder de pressão que os agricultores brancos, seriam forçados a
arcar com os principais prejuízos decorrentes das cíclicas crises ecológicas
(ZAMPARONI, 2012, p. 105, grifos do autor).
- 168 -
primórdios da colonização) era também outra alternativa. Nas cidades como Lourenco
Marques lhes esperava violência, prisões arbitrárias e um estrutural sistema de
discriminação racial no acesso ao mercado do trabalho, com os negros ocupando
trabalhos mais baixos na hierarquia da época (ZAMPARONI, 2004; 2012). Nas minas
de Transvaal lhes esperavam condições precárias e desumanas de exploração mineral
com graves consequências para a sua saúde e da sua família, tendo em conta que
contraíam doenças contagiosas que depois passavam às famílias - quando regressavam à
casa (ZAMPARONI, 2016). Importa realçar que se o trabalho nas minas era uma forma
de fugir às condições da colonização portuguesa, por outro ocupava um lugar central na
política portuguesa de exploração da força do trabalho. Portugal garantia a forca do
trabalho negra às minas e em troca recebia o pagamento diferido de parte do salário dos
mineiros. Em seguida o estado colonial entregava aos mineiros retornados o seu salário
em escudos e ficava com as libras-ouros que tinham mais potência monetária no
mercado internacional (FARRÉ, 2014, p. 252).
- 169 -
origem. No Sul as pessoas buscavam ocupar as melhores terras que eram deixadas vagas
pelos brancos portugueses que partiam da colônia. Tal como destaca Borges Coelho
(1993, p, 328) nas terras férteis do regadio de Chokwé onde havia 2.600 camponeses
moçambicanos em 1974, esse número aumentou para 3.175 em 1975 e chegou a
aproximadamente 6000 em 1976.
- 170 -
produção para a reprodução social da sua condição camponesa, a política governamental
pressionava e forçava as pessoas a dedicar uma importante parte do seu tempo às
cooperativas. Na província de Tete, de 14 cooperativas agrícolas com 733 membros em
1978, passou para 31 num total de 1.202 membros em 1982. (BORGES COELHO,
1993). Em Moatize foram, tal como destacamos no capítulo 03, criadas até 1982 três
cooperativas agrícolas, nomeadamente: 25 de setembro integrada a aldeia comunal
Capirizange, M´condezi integrada a aldeia comunal do mesmo nome e Samora Machel,
integrada a aldeia comunal Samôa. As teses de João Paulo Borges Coelho, “Protected
villages and communal villages in the Mozambican province of Tete (1968-1982)
(BORGES COELHO, 1993)” e de Inácio Dias de Andrade, “Tem um espirito que vive
dentro dessa pele: feitiçaria e desenvolvimento em Tete, Moçambique” (ANDRADE,
2016) trazem uma abordagem mais profunda sobre as cooperativas em Tete e processos
de implementação e alguns elementos do seu funcionamento. As discussões são
retomadas, embora com menor incidência, na tese de Fernanda Gallo, “Andando a
procura dessa vida: dinâmicas de deslocamento na província de Tete-Moçambique, do
colonialismo tardio à mineradora Vale” (GALLO, 2017).
- 171 -
que se materializava na subalternização da produção camponesa e assalto às terras
camponesas (para criação de cooperativas e machambas estatais) e às suas lógicas
especificas de produção e reprodução social e econômica.
- 172 -
Para já, importa destacar que o processo de socialização do campo começou a
entrar em crise na década 1980 (vide capítulo 02). A acreditada certeira direção já se
mostrava equivocada (COUTO, 2007). O governo socialista começou a desenvolver
novas ações que sinalizavam mudança na sua orientação política e econômica. Ações
essas, frutos das decisões do IV congresso da FRELIMO realizado em 1983. Embora o
congresso tenha mantido a orientação política e econômica socialista, ela passou a
assumir uma posição menos radical ao reconhecer o papel do setor privado no
desenvolvimento econômico e social, ainda que sob vigilância do estado.
Reformularam-se os modelos de gestão das empresas estatais, abrindo-se possibilidades
de autonomia em relação ao poder central estatal, descentralizando a sua administração
e assumindo uma preocupação com o lucro. No contexto rural admitiu a importância do
setor familiar na agricultura (MATOS, 2016, p. 105). Essas ações, visavam responder as
exigências do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional para a concessão da
ajuda internacional que culminou com a introdução do PRE, em 1987 (vide capítulo
02). É importante destacar que nesse período da década 1980 o Banco Mundial e a
Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) estavam
impondo reformas agrárias e leis de terras em vários países africanos, na intenção de
modernizar os sistemas costumeiros de posse de terras. Partiam da ideia de que eram
incompatíveis com a promoção de investimentos privados, razão pela qual defendiam a
privatização da terra enquanto solução adequada para o aumento do investimento em
África. Estas propostas partiam, segundo Jossias (2016), da consideração de que os
sistemas costumeiros de posse de terra comunitários eram tradicionalistas e arcaicos,
razão pela qual era necessária e imperiosa sua modernização - assentada na titulação
individual da terra. (JOSSIAS, 2016, p. 33). O Banco Mundial acreditava que a
privatização da terra incentivaria as pessoas a procurarem a terra com fins produtivos.
Necessitando de ajuda para superar a grande crise econômica provocada pelo fracasso
das políticas socialistas, pela guerra civil e pelo fim da guerra fria e a desestruturação de
tradicionais aliados como a URSS, Moçambique não ficou imune às ações do Banco
Mundial e de outras organizações internacionais como a Organização das Nações
Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) e o Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD). Estes agiam como os únicos detentores da solução mágica
para a eliminação dos problemas dos países africanos com destaque para a pobreza e o
subdesenvolvimento.
- 173 -
Sob pressão das reformas impostas por essas organizações internacionais, em
1984 o estado moçambicano aprova a lei do investimento estrangeiro e fixa as
condições concretas da sua concretização, ao mesmo tempo em que garante a proteção
de bens e direitos compreendidos no investimento e a retribuição justa do seu capital
(MATOS, 2016, p. 105). Em 1986, o partido realiza a revisão da lei de terras de 1979
ampliando o número de anos de DUAT para fins de apropriação privada da terra,
passando a ser de cinquenta anos com possibilidade de renovação. Um ano depois foi
aprovado o regulamento (MOÇAMBIQUE, 1987) da lei de terras de 1979, não só dando
as diretrizes das suas condições de aplicabilidade, como também ampliando os sujeitos
que podiam ser titulares do DUAT.
- 174 -
competia ao estado assumir a tutela daqueles que por razões “civilizacionais” não
estavam em condições de assumir responsabilidades por si próprios. No período pós-
independência essa concepção de relação política não mudou significativamente, pois, o
- 175 -
apoio ao empresariado nacional, visto como preponderante para o desenvolvimento
social e econômico do país. Em 1993 é aprovado o regulamento das zonas francas
industriais (ZFI) e zonas econômicas especiais (ZEE) destinadas a projetos de capital
intensivo. Um dos objetivos das ZFI e ZEE era atrair investimentos diretos estrangeiros
e divisas através da produção destinada para exportação. As empresas que operam
nessas áreas recebem tratamento especial no que diz respeito às responsabilidades
fiscais e aduaneiras. Os privilégios vão desde intenções aduaneiras na importação de
matérias primas e equipamentos para a sua produção até a isenção de determinados
impostos como o de rendimento sobre as pessoas coletivas e sobre a produção. Moatize
é atualmente uma dessas ZFI razão pela qual a Vale opera com enormes isenções fiscais
e taxas aduaneiras. As outras são a ZFI de Beluluane, província de Maputo, na região
sul, onde opera o projeto de fundição de alumínio da MOZAL; a ZFI da Beira,
província de Sofala na região central; criada para instalação de uma fábrica de ferro e
aço; a ZFI de Moma, na província de Nampula, região norte, onde opera o projeto de
exploração de áreas pesadas; a ZEE de Nacala, também na província de Nampula, com
uma pluralidade de interesses econômicos centrados na indústria portuária 44
44 Parauma abordagem profunda sobre as zonas francas industriais e econômicas especiais e corredores de
desenvolvimento ver: Langa (2001); Matsinhe (2011); Garcia; Kato (2016); Kato; Garcia (2017). Os dois
últimos trabalhos têm a peculiaridade de explorar os interesses econômicos brasileiros na zona econômica
especial e corredor de desenvolvimento de Nacala. Um do s intelectuais mais críticos as isenções e
incentivos fiscais na zonas econômicas especiais e zonas francas industriais é o economista moçambicano
Carlos Nuno Castel-Branco. Ver: Castel-Branco (2008; 2015).
- 176 -
A preocupação com as condições e contornos de acesso à terra em Moçambique,
se fossem acatadas as exigências do Banco Mundial, levou à formação do movimento
Campanha Terra (NEGRÃO, 2002). O movimento agregava diversos grupos de
interesse sociais heterogêneos tais como líderes religiosos, associação e cooperativas
ligadas a questões de terra, ONGs, acadêmicos e políticos e empresários. O grupo teve
consenso nos seguintes pontos: i) não aos “sem terra”; ii) não aos latifúndios ausentes e
ao aluguel de terras como condição de sobrevivência; iii) inclusão da prova oral em pé
de igualdade com a prova formal (escrita) para fins de reconhecimento do direito de uso
e aproveitamento da terra; iv) a incorporação do que eles denominavam de direitos
costumeiros na lei de terras (NEGRÃO, 2002; MATOS, 2016; EUSÉBIO; 2016).
- 177 -
posse da terra, acesso à terra, do controle e autoridade sobre a terra e recursos
naturais, que cobriam o período pré-colonial e o pós-independência [...].
Entre 1992 e 1997 os autores difundiram as suas propostas de
regulamentação e de implementação das políticas, e apontaram soluções e
alternativas para as reformas que estavam em curso e as que eles próprios
identificaram como prioritárias [...]. Os principais pesquisadores que
lideraram os trabalhos em Moçambique, nomeadamente Christopher Tanner,
Gregory Myers, Harry West e José Negrão, abraçaram as propostas de Bruce
e de Terence Ranger e argumentaram que as instituições costumeiras,
definidas como instituições políticas, legais e culturais das áreas rurais, não
são estáticas e muito menos atrasadas, o que constituía uma crítica às ideias
sobre a ineficiência e atavismo dos mesmos [...]. Eles foram igualmente
críticos da posição de alguns sectores do governo que não viam com bons
olhos o apelo dos organismos internacionais para a integração das leis
costumeiras na legislação de terras (JOSSIAS, 2016, p. 35, grifos de autor).
- 178 -
de localidade ou inferior, que visa à salvaguarda de interesses comuns através da
proteção de áreas habitacionais, áreas agrícolas, sejam cultivadas ou em pousio,
florestas, sítios de importância cultural, pastagens, fontes de água e áreas de expansão”
(MOÇAMBIQUE 1997). Refletindo sobre o próprio conceito de “comunidades locais”,
Elísio Jossias (2016) considera que ao colocar as comunidades como titulares de
DUAT, a lei de terra as confere um estatuto de pessoas singulares agrupadas e
localizadas numa circunscrição territorial, espaço circunscrito e limitado. Ao adotar essa
categoria o estado entende que a população que habita em áreas rurais orienta-se por
normas ou práticas costumeiras de acesso à terra que a distingue dos habitantes das
áreas urbanas.
Um fato que é importante destacar, voltando para a lei de terras, é que a falta de
titulação – documento emitido pelos serviços Públicos de Cadastro, gerais ou urbanos,
que serve de comprovativo do direito de uso e aproveitamento da terra - ou de registro,
não prejudica o direito de uso e aproveitamento da terra adquirido pelas comunidades
locais por ocupação, desde que essa ocupação possa ser comprovada. E essa
comprovação pode ser feita, por exemplo, pela prova testemunhal dos membros,
homens e mulheres, das comunidades locais (MOÇAMBIQUE, 1997). O
reconhecimento dado às comunidades locais ao uso e aproveitamento coletivo da terra
implica, por um lado, a consagração pela Lei de Terras dos direitos costumeiros de
- 179 -
acesso à terra e recursos (CAMBAZA, 2009) e consequentemente do pluralismo
jurídico. Diríamos que a lei de terras antecipou essa lógica, pois tal como vimos ela só
teve respaldo constitucional com a constituição de 2004. Por outro lado, o
reconhecimento dos direitos territoriais inerentes à ocupação tradicional e histórica,
garante os direitos que as comunidades locais têm sobre suas áreas tradicionais.
a lei aparentou ser mais benévola aos mais desfavorecidos e que viviam
nelas. Isto é, a lei reconheceu o direito por ocupação, através das normas e
práticas costumeiras e por residirem no local por pelo menos dez anos. [...]
reconheceu, também, a existência de grupos linhageiros que ocupavam uma
área que, por diversas razões, quer seja cultural, a terra era de pertença do
grupo e não apenas de cada família. Dessa forma foi introduzido o conceito
de comunidade local para responder a esse fato. Garantido a pose e o acesso
às comunidades locais e às famílias, era também importante garantir o acesso
e a posse aos investidores, quer sejam nacionais como estrangeiros. O Estado
apenas criaria as condições para que os intervenientes pudessem negociar o
acesso à terra. Para a aquisição da terra por ocupação, o registro não era
fundamental, excetuando os casos em que a terra fosse do interesse dos
investidores. Aí o investidor negociaria com os ocupantes da terra e depois
registraria e adquiriria o DUAT. Considerava-se que assim estavam criadas
as bases para que as comunidades locais não fossem expulsas das suas terras
sem que cedessem ou negociassem a sua aquisição. O Estado desempenharia
o papel de mediador e regulador, se abstendo de qualquer responsabilidade
sobre a perda de terra das comunidades locais. Ao Estado, era apenas lhe
permitido a sua intervenção quando a posse da terra fosse para efeitos de
especulação ou, quando os direitos dos cidadãos entrassem em risco ”.
Para Elísio Jossias esse caráter neutro do estado era reflexo das exigências dos
organismos internacionais (Banco Mundial, FAO, USAID e PNUD), que defendiam no
âmbito dessa reformulação legislativa pouca interferência do Estado no processo de
alocação das terras. Havia uma ideia generalizada de que desde o fim da guerra civil em
1992 as elites políticas estavam se aproveitando da fragilidade da legislação para se
apropriar das terras mais férteis. Face a isso, se propunha que o papel do estado se
concentrasse apenas na tarefa da administração de processos formais, implementação e
fiscalização da legislação. Essa concepção é que justifica, segundo Jossias (2016), o
maior protagonismo dado a ONGs nacionais - com destaque para a Associação Rural de
Ajuda Mutua (ORAM); a União Geral das Cooperativas (OGC); e a União Nacional dos
Camponeses (UNAC) - não só no processo de divulgação da lei de terras, como
também, no apoio das comunidades locais na legalização das suas terras - um processo
financiado pela USAID e pelo PNUD. Esses organismos estiveram também, segundo
- 180 -
Jossias (2016), ligados ao processo de criação do Centro de Formação Jurídica
Judiciaria, uma instituição moçambicana de formação de magistrados judiciais. O centro
começou a funcionar em 2001 e durante um significativo tempo da sua história dedicou-
se a pesquisas ligadas à dimensão legal de aplicação da atual legislação sobre a terra e à
formação de magistrados em aspectos específicos ligados à atual lei de terras, com
destaque para a demarcação de terras comunitárias, o registro de DUAT e as
modalidades de negociação com investidores.
Com isso queremos dizer - na esteira de Matos (2016) e Jossias (2016) - que a
aprovação da atual lei de terras e toda legislação subsequente tinha como interesse
primordial garantir as condições de possibilidade de acesso e posse de terra e recursos
para investidores nacionais e estrangeiros. Ampliando a apropriação capitalista da terra
e efetivando a política e estratégia de desenvolvimento nacional centrada na atração de
investimentos internacionais materializados nos megaprojetos. Garantir a ocupação
coletiva da terra através de direitos costumeiros dissimulava esse interesse primordial, o
que em si, abria espaço para subalternização de outras formas de uso e apropriação da
terra. A nova lei de minas (MOÇAMBIQUE, 2002) tornou essa subalternização
explícita, ao definir a exploração mineral como tendo prioridade sobre qualquer outro
tipo de uso e apropriação da terra, incluindo nesse caso o uso da terra para a reprodução
social e econômica camponesa. Ou seja, se a lei de terras não se apresentava explícita
quanto a sua ampla inclinação à atração do capital estrangeiro a legislação de minas
vem deixar clara essa situação.
- 181 -
A terra é resumida a fonte de recurso. Ignorando-se todo o investimento
material, social, cultural e simbólico feito por populações que a ocupam e que se
exprime por um sistema de representações e princípios de organização social,
econômica, política e cultural, específicos de cada grupo social e geridos, por exemplo,
por uma lógica de “pertencimento e de parentesco”. Tal como destacamos na introdução
desse capítulo, mais do que fonte de recursos as terras das comunidades locais são um
produto histórico e se referem a uma organização do espaço carregada de história e não
pode ser entendido fora desse contexto. Se é um produto histórico, então é um espaço
socialmente significativo, construído e transformado pelo trabalho das gerações
passadas e é nele onde se inscreve a história do grupo (GODOI, 2014; BAINES; 2014;
ALENCAR, 2002; 2007; 2013). Antônio Braço destaca no seu estudo etnográfico sobre
os simbolismos de gênero nas narrativas orais do povo Sena, do vale do Zambeze, no
distrito de Marromeu, na província de Sofala, região central de Moçambique a
importância da terra, por exemplo, no processo de construção e afirmação da identidade
feminina requerida às mulheres (BRAÇO, 2017; 2018):
Maria Paula Meneses na sua pesquisa sobre a questão do acesso, uso e gestão
dos recursos naturais em Lucuáti, distrito de Matutuíne, província de Maputo região sul
de Moçambique – destaca a importância não só econômica, mas social, cultural e
espiritual da floresta para as populações daquela região. Nesta área vem sendo
implementada uma perversa política ambiental de conservação de recursos (um
ambientalismo empresarial que mobiliza um discurso de preservação de recursos, mas
que na verdade so serve para construir instancias turísticas para os que têm dinheiro de
sobra passarem final semana45 ) que interfere na vida cotidiana das populações daquele
contexto sociocultural, o que abriu espaço para o surgimento de conflitos
45 Elísio
Jossias constata a prevalência da mesma lógica ambiental no processo de criação em 2007 de uma
área de conservação de recursos naturais (denominada Manda Wilderness) no posto administrativo de
Cobué, região do lago Niassa, norte de Moçambique. Ver especificamente o capítulo 04 (JOSSIAS,
2016).
- 182 -
socioambientais (ACSELRAD, 2004; ZHOURI; LASCHEFSKI, 2010). Segundo
Meneses (2003, p. 453),
- 183 -
nacional. Este fato evidencia um processo de permanência de um sistema de dominação
que subalterniza ou inferioriza as populações das áreas rurais.
Foi nesse contexto jurídico sobre a terra que a Vale chegou a Moatize em 2004.
Foi neste contexto jurídico que também realizou o processo de expropriação de terra das
populações dos bairros Chipanga, Mithethe, Malábue, Bagamoyo (compulsoriamente
deslocadas para dar lugar à instalação da mina de exploração de carvão) bem como de
milhares de populações que foram compulsivamente deslocadas para a construção da
linha férrea “Moatize-Nacala-Velha”. Expropriação e deslocamentos compulsórios
esses, marcados por violência e indiferença. O interesse era expulsá-los a todo custo.
Conforme vimos, falsas promessas e intimidação foram algumas das estratégias
adotadas para conter ações de resistências (vide capítulo 03).
- 185 -
O Canadá é um país desenvolvido que comparado com Moçambique possui,
segundo Lamas (2017) um contexto institucional e regulatório de mineração muito mais
consolidado e desenvolvido e que inclui uma série de mecanismos para assegurar uma
exploração menos evasiva e socio ambientalmente mais harmoniosa (LAMAS, 2017).
Pelo menos em tese. Classificado pelo Banco Mundial como um país de alto
rendimento, o Canadá foi ao longo da sua história colônia da França e da Inglaterra. A
partir de 1967 se tornou domínio autônomo do Império Britânico e perdurou até 1931,
quando se tornou estado independente a partir do estatuto de Westminster. Atualmente é
uma monarquia constitucional. Segundo maior país do mundo em área geográfica,
apresenta alto índice de desenvolvimento humano, ocupa a decima (10) posição num
ranking em que Moçambique ocupa a posição cento e oitenta e um (181), num universo
de cento e oitenta e oito (188) países. O país também é membro do G7 grupo que
congrega as sete economias que se consideram as mais avançadas do mundo. O último
encontro desse grupo foi justamente no Canadá, ocorrido nos dias 08 e 09 de julho de
2018 na cidade de Quebec, marcado por uma tensão devido à tendência que alguns
analistas consideram nacionalista e isolacionista do atual governo estadunidense.
46 O filme “O Caderno de Sara” que está disponível na distribuidora online de filmes Netflix nos indaga a
não olhar, exclusivamente, como conflito interno e a fazer uma reflexão sobre os interesses do grande
capital internacional que estão integrados ao conflito de Kivu do Norte (O CADERNO DE SARA, 2018)
- 186 -
Um dos principais complexos de operações minerais do Canadá se localiza na
cidade de Sudbury no nordeste da província de Ontário. Como o Canadá é um país
federativo composto por 10 províncias (Alberta, Colúmbia Britânica, Saskatchewan,
Manitoba, Ontário, Quebec, New Brunswick, Nova Escócia, Ilha do Príncipe Eduardo,
Terra Nova e Labrador) e três territórios (Yukon, Territórios do Noroeste, Nunavut), a
indústria de mineração é governada majoritariamente pelas leis da província ou do
território onde a exploração está localizada. Isso inclui, não só decisões relacionadas
com o uso e apropriação de terras e recursos, como também, questões operacionais
(LAMAS, 2017). Contudo, o governo federal possui jurisdições que se sobrepõem às
províncias em algumas áreas como a proteção ambiental, política monetária e fiscal e
direitos aborígenes. Segundo Lamas (2017), em Ontário o Mining Act é a legislação
provincial responsável pela governança e regulação da mineração desde o século XIX.
A modernização feita recentemente esteve relacionada ao reconhecimento dos direitos
aborígenes e a minimização dos impactos ambientais. As comunidades aborígenes, por
exemplo, passaram desde 2012 a ter o direito de reivindicar áreas de importância
cultural para que estas não sejam objeto de atividades de exploração.
- 187 -
unidades em Kranou, (Saskatchewan), Port Colborne (Ontário), Thompson (Manitoba),
Long Harbour, Saint Johns e Voisey´s Bay (Terra Nova e Labrador), bem como, o
escritório da Diretoria de Metais Básicos em Toronto (AGUIAR, 2018).
- 188 -
advogamos que a Vale é um dos atores reprodutores dessas lógicas violentas e precárias
de trabalho tal como demonstra Judith Marshall no seu trabalho “megaprojetos de
mineração e trabalho: trabalhar para a Vale a ‘pior empresa do mundo’: casos de
Canadá, Brasil e Moçambique” (MARSHALL, 2012). A cooptação dos sindicatos,
(instrumentos importantes para os trabalhadores nas suas lutas pelo respeito, salários
dignos e por locais de trabalhos seguros) se soma a uma pluralidade de consequências
sociais e ambientais que a empresa espalha por onde passa devido a sua devoção focada
unicamente em elevados lucros (MARSHALL, 2012; 2015).
- 189 -
A contratação da Hicks Morley, um escritório de advocacia de recursos humanos
considerada pró-patronal, para negociar com os trabalhadores, bem como de uma equipe
de segurança, AFI International (uma empresa especialista em segurança de grave),
conhecida segundo Lamas (2017) por ser uma roupagem profissional de quebra greve,
para vigiar os trabalhadores grevistas, reforçava a política autoritária da empresa. Mas
contribuiu também para o prolongamento da greve. A conexão com empresas de
segurança privada é, ainda para Lamas (2017), um padrão da Vale que vem se
reproduzindo nas suas operações ao redor do mundo. A contratação de trabalhadores
terceirizados temporários para manter a parte da produção e manutenção das minas foi
visto pelos trabalhadores como uma forma de desmoralização no sentido de aceitar as
perversas condições de trabalho impostos. A lógica autoritária da empresa assentava-se
também na intimidação de famílias de grevistas (AGUIAR, 2018, p. 7).
- 190 -
Distanciamos-nos dessa conclusão. Advogamos que mais do que uma questão de
“múltiplas Vales” o que os dados do Canadá, trazidos por Lamas (2017), Aguiar (2018),
bem como por Judith Marshall (2012, 2015, 2017) evidenciam é a Vale apresenta ou
possui práticas autoritárias e violentas (seja elas físicas ou simbólicas) de atuação que
independem do contexto social, cultural, político e jurídico de sua implementação. Ou
seja, independente do contexto em que está sendo implementado (logicamente que isso
não exclui especificidades) o trabalho de mineração da Vale envolve dominação,
violência, expropriação, de entre outros custos sociais e ambientais.
Estudos sobre as práticas e os efeitos sociais das ações da Vale e outros projetos
de mineração na Amazônia Brasileira corroboram nessa tese. Tal como já destacamos
em outro trabalho (CONRADO; EUSÉBIO; CASTRO; 2017) a região da Amazônia
Brasileira tem um território natural único com diversas reservas de recursos minerais. O
processo de valorização industrial dos recursos minerais da Amazônia brasileira iniciou-
se, segundo Monteiro (2005), com exploração das reservas de minério de manganês da
serra do navio no atual território do Amapá, executado por uma joint-venture formada
pela empresa brasileira Indústria e Comércio de Minérios S.A (ICOMI) e a Bethlehem
Stell que era naquele período a maior corporação norte-americana de produção de aço.
Tal mina foi edificada em uma conjuntura marcada pelo estabelecimento no Brasil de
um novo regime político e pela reorientação das relações estabelecidas entre o estado e
a economia. [...] “Era o fim da ditadura de Getúlio Vargas e a nova constituição de 1946
estava fortemente inspirada em princípios do liberalismo econômico” (MONTEIRO,
2005, p. 187). Em 1957, foi efetivado o primeiro embarque do minério, atividade que se
estendeu por quatro décadas.
A cientista social Rosa Acevedo Marin (2010) mostra, por exemplo, como a
instalação, em 2004, no território quilombola de Jambuaçu, no município de Moju,
estado do Pará, de parte da infraestrutura da Vale para o transporte de bauxita, provocou
uma série de transformações irreversíveis nas condições de uso e disponibilidade de
recursos pelas comunidades quilombolas. Estas experimentaram a perda de terras
cultivadas e aráveis devido à expropriação, à destruição dos recursos florestais e à
poluição de recursos hídricos. A ignorância e o desconhecimento dos direitos territoriais
e étnicos dos quilombolas; pressões e intimidações para o recebimento de indenizações
mínimas e individuais caracterizaram a atuação e as práticas da empresa, abrindo espaço
- 192 -
para a prevalência de tensos momentos de conflitos entre a empresa e os quilombolas,
estes últimos que se engajam em ações de resistência em defesa dos seus direitos.
- 193 -
efeitos derrames da mineração de ferro do Pará, e tem “causado consequências
expressivas nos modos de vida das comunidades rurais do município de São Luís,
especialmente aquelas localizadas nas proximidades do Complexo Portuário”. As ações
de resistência conseguiram inviabilizar a criação do polo siderúrgico. Pelo menos por
enquanto. A luta pela criação de uma Reserva Extrativista na área onde o polo
siderúrgico seria criado tem sido a solução encontrada pelas comunidades para defesa
dos seus direitos territoriais. Porém tal como destacam Sant´Ana Júnior e Alves (2018)
a mudança radical de orientação da política ambiental do governo federal nos últimos
anos tem atrasado o processo de criação. Neste contexto,
após oito anos sem obter a assinatura do Decreto Presidencial para a criação
da Resex, no dia 17 de maio de 2015, lideranças das comunidades apoiadas
por movimentos sociais em assembleia popular na comunidade do Taim, de
forma politicamente autônoma, declararam criada a Resex de Tauá-Mirim,
quando também foi eleito e instituído o seu Conselho Gestor composto por
representantes das comunidades, de movimentos sociais e instituições
acadêmicas (SANT´ANA JÚNIOR; ALVES, 2018, p. 277).
A luta pela titulação coletiva das suas terras de ocupação ancestral tem sido
também uma das principais estratégias de luta dos diversos grupos sociais da região do
Trombetas, no município do Pará, contra a expansão violenta de projetos
desenvolvimentistas na região, com destaque para as minas de bauxita da MRN que tem
como um dos principais acionistas a própria Vale. Segundo Rosa Acevedo Marin
(2004), desde a década de 1970, a região do rio Trombetas tem sido palco de grandes
conflitos sociais e ambientais gerados pela intervenção desenvolvimentista do estado e
empresas que interferem nos modos de uso e apropriação de recursos dos diversos
grupos sociais da região.
- 195 -
que impediu o acesso aos castanhais; e pela ELETRONORTE, que implantou uma vila
para a construção da hidrelétrica de Cachoeira Portela.
47 Éimportante destacar que esses casos explorados perpassam diversos períodos da história política do
brasil desde a ditadura militar, redemocratização do país, até ao período do governo progressista de Lula
o que evidência que pelo menos no âmbito dos projetos desenvolvimentistas há mais continuidades do
que cismas nos modos e práticas das empresas nos diversos períodos da história política brasileira.
- 196 -
acordo com Judith Marshall (2017), um relatório produzido a partir de uma inspeção de
2010 já identificava uma série de problemas (rachadura de 10 a 15 metros no perímetro
da parede, instrumentos de medição de pressão defeituosos) que punham em causa a
segurança do armazenamento de rejeitos. Mas foram ignorados pela empresa. Um dos
funcionários que ousou denunciar os problemas ao Ministério local de Minas e Energia
foi despedido pela empresa em 2013. Outro funcionário que foi supervisor de rejeitos
pediu demissão após o governo local não admitir a seriedade de uma fenda identificada
numa inspeção de rotina (MARSHALL, 2017).
- 197 -
O vazamento de Barcarena aconteceu três anos após um dos maiores desastres
ambientais do Brasil. (iii) Em 05 de novembro de 2015, a barragem de Fundão, um
depósito de rejeitos da mineração da Samarco, rompeu no município de Mariana, estado
de Minas Gerais49 . A barragem recebia rejeitos de extração de ferro da empresa
Samarco, uma joint-venture da multinacional brasileira Vale e da mineradora BHP
Billiton com sede na Austrália e possui operações também em Moçambique. Mais de 60
milhões de metros cúbicos contendo diferentes metais causaram a destruição do Rio
Doce afetando a reprodução social e econômica de milhões de pessoas. A lama
percorreu mais de 600 km, inviabilizou o modo de vida do povo indígena Krenak,
atravessou os estados de Minas Gerais e Espirito Santo e atingiu o Oceano Atlântico.
Comprometendo também a reprodução social e econômica dos pescadores tradicionais
da costa capixaba. Aproximadamente 20 pessoas morreram e 1 200 ficaram
desabrigadas.
- 198 -
intrínseco aos projetos de mineração 50 . Com isso queremos dizer que o caráter
autoritário e violento do estado moçambicano na sua relação com as populações das
áreas rurais, que vem desde o tempo colonial e se mantem até atualmente se
intercecciona desse modo com o caráter violento, autoritário e colonial da Vale, que se
expressa, por exemplo, na violência dos deslocamentos compulsórios (expropriação do
território) e de seus efeitos sociais na vida cotidiana. Ou seja, o autoritarismo do estado
moçambicano se intersecciona com o autoritarismo do megaprojeto. Neste contexto, as
mudanças na legislação que estão sendo realizadas em Moçambique são
imprescindíveis, mas a pressão por mudança de atitude das empresas multinacionais de
mineração é também imperiosa. Os organismos internacionais não podem continuar a
ignorar as ações das empresas multinacionais e nem deixar que a questão dos
deslocamentos compulsórios das populações provocados por essas multinacionais,
continue se reduzindo a questões internas de cada estado.
50 Existe uma vasta literatura sobre a Amazônia que evidencia a prevalência dessa lógica violenta,
autoritária e colonial, na atuação da Vale e outros empreendimentos mineralógicos; exploram seus efeitos
sociais e os conflitos que emergem em função disso. Além dos textos acima explorados ver também:
GOMES DOS ANJOS; SANT´ANA JÚNIOR; BRUSTOLIN (2016); TRECCANI (2014); Anais do
Seminário Internacional Carajás 30 anos (2014); o livro “Mineração na Amazônia: estados , empresas e
movimentos sociais (FORUM CARAJÁS, 2010), bem como o livro “Projeto Grande Carajás: trinta anos
de desenvolvimento frustrado” (COELHO, 2015).
- 199 -
6. DESLOCAMENTO COMPULSÓRIO E A VIDA COTIDIANA NOS NOVOS
“LUGARES”: A COMUNIDADE DE CATEME EM PERSPECTIVA
Eram oito horas da manhã quando desci do “chapa” - uma espécie de van que é
o principal meio de transporte público urbano nas grandes cidades em Moçambique - na
Comunidade de Cateme. Optei em descer na paragem que se localiza a escassos metros
do posto policial local, com a intenção de buscar informações sobre a localização das
- 200 -
lideranças das comunidades. Passavam aproximadamente duas semanas depois da
minha chegada à Moatize. Uma chegada que foi repleta de tensão inerente ao que um
trabalho de campo cria e de expectativas quanto ao calor infernal e ao crescimento
econômico que o taxista que me levara ao Aeroporto Internacional de Maputo fez
questão de me alertar. Vais a Tete? Perguntou o taxista. Sim, vou fazer um trabalho de
pesquisa em Moatize - respondi. Muito calor lá, mas Tete cresceu muito nos últimos
anos, está diferente. Só esse gajo (indivíduo) do mato é que está a estragar tudo. Será
que não lhe conseguem? Esse gajo que está a desestabilizar tudo isso?
- 201 -
e a RENAMO – que teria tido o seu “fim” no ano de 1992 com a assinatura, em Roma,
do Acordo Geral de Paz (AGP). Exatamente duas décadas depois do fim guerra civil,
Moçambique se viu mergulhado numa autêntica violência armada – a região central,
concretamente as províncias de Sofala, Manica e abarcando atualmente a província de
Tete, constituem o principal palco das ações que vem se alastrando até os dias de hoje
(EUSÉBIO; MAGALHÃES, 2018a).
52 Relativa
calma incentivada pela assinatura de um “acordo de cessação das hostilidades” ratificado pelo
então Presidente da República de Moçambique, Armando Emílio Guebuza e pelo presidente do partido
RENAMO, Afonso Dhlakama. Acordo esse que foi fruto do diálogo que vinha ocorrendo entre as partes
envolvidas no conflito no Centro de Conferência Joaquim Chissano, na capital do país.
- 202 -
com que conversei antes em Maputo e em Inhambane, região sul de Moçambique, sobre
a minha viagem à Tete destacavam esse fato. Alguns que por Moatize passaram nos
primórdios da implantação dos megaprojetos de mineração chegaram a afirmar que pelo
volume das obras é provável que a paisagem urbana das duas cidades estivesse
interligada. Pelo menos era isso que algumas pessoas que interagi na cidade de Maputo
acreditavam. Destacar o crescimento de Tete era também comum nos discursos
governamentais. Afinal de contas era dia 07/03/2016, 12 anos após a chegada da Vale à
Moatize, província de Tete, primeiro dos megaprojetos de mineração em Moçambique,
um marco da nova lógica desenvolvimentista.
O meu embarque para Tete foi por volta das 7 horas, sem atraso, dentro do
horário programado - a temperatura em Maputo era de aproximadamente 25°. Após
1h30 minutos de voo, a voz do piloto anunciando a aproximação ao Aeroporto de
Chingodzi e o relevo mais montanhoso comparando com a cidade de Maputo, donde
partira. Relevo esse, que tive o privilégio de observar, anunciava a minha chegada a
cidade de Tete. A cidade é rodeada por montanhas. Já tinha ouvido várias vezes essas
palavras. Prontos, já chegamos ao calor – disse a passageira que se encontrava sentada
ao meu lado, quando aterrisamos. Não era a primeira vez que ela visitava a cidade.
Então sabia muito bem do que estava falando. Contou-me que tem feito viagens
- 203 -
constantemente. Conhecia quase todas as províncias de Moçambique, mas Tete era a
que menos tempo tem ficado, por isso não a conhecia tão bem. O calor é que lhe
impedia de viajar para Tete com frequência e de ficar muito tempo. A nossa conversa
foi curta. Mas mais uma vez se anunciava o calor como algo que me esperava. Depois
dessas palavras nos despedimos e nunca mais voltamos a nos ver. O comandante do vôo
não anunciou a temperatura exterior, tal como acontece algumas vezes, porém a
sensação térmica que senti naquelas 8h40 da manhã, não só evidenciava que as palavras
do taxista em Maputo e a passageira ao meu lado durante voo, não eram meras
construções infundadas, como também, que de fato eu me encontrava em Tete. Entre o
calor e a ansiedade, eu me encontrava a caminho do meu campo de pesquisa.
Cheguei a vila de Moatize dois dias depois da minha chegada a Tete. Submeti
expediente ao governo distrital informando sobre a minha pesquisa e pedindo
autorização para a realização do meu trabalho na comunidade de Cateme. Esse pedido é
imprescindível para o acesso ao local, pois depois que Cateme, “ficou tristemente
- 204 -
famoso”, isso usando as palavras da jornalista brasileira Marina Amaral (2016), as
autoridades moçambicanas passaram a exigir que os líderes comunitários e as
populações de Cateme falassem apenas com pesquisadores, jornalistas e ativistas da
sociedade civil que tivessem credenciais para visitar Cateme. De fato, todos as pessoas
com que conversei em Cateme a primeira coisa que pediam era a credencial e se já tinha
falado com o líder do seu bairro. Comprovado isso é que aceitavam iniciar o diálogo.
- Há quanto tempo não nos vemos, não sabia que estavas cá em Tete, há quanto
tempo estás cá? – perguntou ele.
- 205 -
- Cheguei há pouco tempo, há dois dias, vim fazer um trabalho de pesquisa –
respondi.
- 206 -
trabalho, se não vais ter dificuldades se saltares essas hierarquias. É importante seguir –
disse o Sr. Reis enquanto me entregava a credencial.
Ainda dentro do chapa vi, assim que entramos na comunidade, o posto policial,
desci e me dirigi ao local. O posto policial se localiza na estrada principal. Estando na
parte frontal é possível ver a escola secundária (destinada ao ensino médio) a escassos
metros de distância. Da área traseira, também a escassos metros, é visível a escola
- 207 -
primária (destinada ao ensino fundamental). Além dos edifícios onde funcionam as
salas de aulas e a estrutura executiva, as duas escolas contam também com residências
para os professores e outros membros da estrutura executiva. A presença de eucaliptos
(Eucalyptus globulus) e outras árvores nativas complementam a paisagem em ambas as
escolas e conferem uma característica única. A escassos metros de distância da escola
secundária localiza-se a “fazenda modelo”, projetada para auxiliar as populações de
Cateme no processo de produção agrícola e no desenvolvimento de projetos como de
criação de frangos, gado caprino e bovino. No início, a fazendo funcionou como se
fosse uma escola agrária onde se apreendia sobre agricultura, pecuária e conservação da
produção. Foram ministrados também, na fazenda modelo, cursos sobre associativismo
e poupança e crédito. Sr. R.C.C. Mithethe frequentou um desses cursos. “Eu acabei
apreendendo sobre isso de associativismo e isso foi uma das vantagens que tive da
fazenda. Formaram-se grupos de poupanças e credito em dinheiro. Há grupos que ainda
estão em funcionamento e outros que não estão mais em funcionamento ”.
- 208 -
restantes moradores como também, expandiu a iluminação pública para outras vias
públicas. Contudo um novo conflito emergiu entre a comunidade e a delegação distrital
da EDM, esta última, acusada de constantemente substituir os “pontos de
transformação” (PT) e candeeiros originais de iluminação pública implantadas pela
mineradora, por outros de qualidade duvidosa, o que tem afetado atualmente a qualidade
da energia. A consequência são quedas constantes de energia elétrica e problemas de
iluminação nas vias públicas. “Muitos postes já não acendem na noite”. Problemas esses
que não se verificavam (com atual frequência) antes dessas ações consideradas de
“vandalismo”, provocadas por uma entidade pública local.
O mercado local é composto por duas áreas. A área construída pela empresa que,
além do espaço dos boxes de venda, possui a área dos banheiros e um armazém. É
protegida por uma cerca metálica. A segunda é a área de expansão onde foram
construídas novas “bancas”, nome que se dá em Moçambique, a pequenas mercearias e
ou feirinhas, algumas de alvenaria e outras – e são em maior número – de material local.
Algumas dessa bancas pertencem aos “reassentados”, outras a novos moradores que se
deslocaram para Cateme em busca de novos campos de possibilidade de sobrevivência
cotidiana. De fato, as bancas com maiores volumes e diversidade de produtos não são de
- 209 -
“reassentados”, mas sim desses “novos moradores”. Ao redor do mercado verificam-se
também novas tipologias de residências, “estranhos” aos modelos de residências
construídas pela multinacional brasileira. É no mercado onde os chapas terminam o seu
trajeto Moatize-Cateme e retomam o trajeto Cateme-Moatize.
Quando viemos para ver os modelos ninguém realmente sabia qual a casa
seria sua. Só nos mostraram os modelos e disseram: as casas que vão viver
são desse modelo. A tipologia refere A é referente última cabana da zona
rural. Sugerimos que a última cabana fosse a tipologia B, mas não aceitaram
a nossa proposta (SR. R.C.C. MALÁBUE, 2016).
****
- Porque você optou em descer no posto policial – me perguntou João Romão Sineque,
enquanto tomávamos uma cerveja numa das “barracas”, nome que se atribui a alguns
pequenos bares, do mercado de Moatize.
- 210 -
Eu tinha acabado de lhe explicar como tinha sido o meu primeiro dia na
comunidade de Cateme. Engenheiro agrônomo de formação, Juas como carinhosamente
lhe chamo é filho de pai bitonga, natural do distrito de Maxixe, província de Inhambane
e mãe Mandau, natural de Buzi, província de Sofala. O pai do Juas é um dos cinco
filhos da Sra. Isabel Alfeu e o Sr. Augusto Gemo que são também meus avós paternos.
Viveu toda a sua infância e adolescência nas províncias de Sofala e Manica. Cresceu
falando regulamente Ndau e com menor frequência as línguas Shona, chiSena,
chiManhica, maBarue, chiuté e Nyungwe. Quando cheguei em Tete, Juas já lá se
encontrava realizando uma pesquisa do Ministério da Agricultura sobre segurança
alimentar. A pesquisa já estava na sua fase final, razão pela qual Juas foi meu
companheiro de pesquisa em Cateme e foi ele quem fez as traduções de Nyungwe para
português todas as vezes que foi necessário.
- 211 -
e ninguém se encontrava na casa da chefe do posto da localidade. Após contato
telefônico do Sr. C. Mualadzi, que mora próximo do posto da localidade, a chefe nos
informou que se encontrava em Cateme, na zona da tribuna a acompanhar as atividades
de organização da visita do Governador da Província de Tete.
No meu caso ficava, segundo ele, mais fácil porque tinha autorização das
autoridades competentes. Recomendou-me a voltar à 7 horas do dia seguinte, pois eles
tinham uma reunião agendada com o engenheiro da Eletricidade de Moçambique
(EDM), com o propósito de discutir a questão da falta de iluminação pública e outros
vandalismos que vem sendo realizados pela EDM naquele local. A iluminação pública
foi uma conquista das populações perante o governo de Moatize e a empresa Vale.
Porém, segundo Sr. Matola, os agentes da EDM vêm permanentemente substituindo os
“pontos de transformação” instalados pela Vale, sem nenhuma explicação, o que resulta
em deficiências principalmente na iluminação pública.
Aquele dia que encarara com muita expectativa estava caminhando aos poucos
para o fracasso. Concordei com a proposta e informei que era para isso que me
encontrava naquele dia e àquela hora. Admitiu a possibilidade de remarcar para o dia
seguinte, visto que nada podia fazer, pois tudo dependia da decisão que sairia do
encontro com as outras lideranças da comunidade. Ficou de fato para o dia seguinte. Se
aquele dia estava ruim para mim, para o Sr. E.M.T. Chipanga, era de alegria. Um dos
suspeitos de furto do seu milho já tinha, pela sua constante pressão aos órgãos policiais,
sido recapturado. Ele estava naquele momento a empreender diligências para recuperar
o milho. Não bastava para ele o suspeito ser preso, o que ele mais queria era recuperar o
seu milho. Fiquei sabendo que o suspeito não era um “reassentado”, mas fazia parte do
grupo de pessoas que, por conta própria, se instalou em Cateme, em busca de novos
campos de possibilidade para sobrevivência. Não conseguiu me dizer de onde ele vinha.
Posteriormente, fiquei sabendo que casos de furto eram frequentes na comunidade. Por
exemplo, os cabritos do Sr. P.A.S. Mithethe, que trouxera consigo do “antigo
Mithethe”, enquanto uns morreram por falta de pasto e água, outros foram furtados.
Diferentemente do Sr. E.M.T. Chipanga, o Sr. P.A.S. Mithethe, nunca encontrou os
suspeitos.
- 213 -
mas ouvi que ele não foi, eu até lhe disse que assim não vou lhe confiar mais”. Naquele
dia, ele tinha estado na vila de Moatize, a irmã tivera naquela semana dois filhos
gêmeos, mas com complicações de saúde. Por isso foi saber de perto o que tinha
acontecido e dar o seu apoio.
- 214 -
de vida cotidiana dessas populações compulsoriamente deslocadas para Cateme.
Durante o processo de pesquisa, enfrentamos alguma resistência de alguns moradores:
estamos cansados de tanto ser entrevistados sem ver nenhuma mudança nas
nossas vidas, sempre vem pessoas nos entrevistar, falamos, falamos e
falamos, mas nada muda. Continuamos na mesma situação; já estamos
cansados de falar.
Durante a pesquisa, participei a convite dos líderes dos bairros, das reuniões das
lideranças da comunidade, onde se debatiam os problemas enfrentados naquele espaço.
Observei as atividades de preparação da visita do governador da Província de Tete,
Paulo Auade. Foi uma atividade marcante. Era uma visita muito esperada na
comunidade. Por toda semana em que estive em Cateme, estavam sendo realizadas
atividades de limpeza, na tribuna, o que evidenciava que o governador faria um comício
com os moradores. As lideranças viam nesse evento uma oportunidade de apresentar
(nesse permanente processo de busca de soluções) os problemas atualmente enfrentados
na comunidade à liderança máxima da província. Assim, a população teria a
oportunidade de expor as suas preocupações de maneira direta. A expetativa era
generalizada, pelo menos todas as pessoas com as quais dialoguei esperavam ter uma
oportunidade de se pronunciar e de expor os seus problemas ao governante. Os líderes
dos bairros me segredaram que já tinham feito relatório com todas as preocupações e
iriam apresentar ao governador na tribuna. Mas havia também um receio: “vamos falar
tudo, mas eles costumam não nos dar a palavra, às vezes quando chegam costumam
falar e depois vão embora sem dizer nada. Foi assim que fez Cadmiel Muthemba54 ,
quando veio aqui” – disse o Sr. P.A.S. Mithethe. Aquela era para mim a oportunidade
de ver os moradores expressarem as suas preocupações na arena pública. A visita estava
marcada para 8 horas da manhã.
54Cadmiel Muthemba era na altura Ministro das Obras Públicas e Habitação de Moçambique.
- 215 -
Às 7h eu e o Juas já nos encontrávamos no local, a tribuna estava preparada. Os
líderes dos bairros acordaram cedo naquele dia para organizar o local da tribuna para
que “tudo acorresse sem sobressaltos”. Quando cheguei, todos tinham ido para casa para
se arrumar “adequadamente” para o encontro e comício com o governador da Província.
Por volta das 07h16 a comitiva do governador chegou a Cateme e foi imediatamente à
Escola Secundária de Cateme. Em seguida, dirigiu-se à Escola Primária, que fica a
aproximadamente 200 metros da primeira. Fiquei sabendo posteriormente que na escola
primária o governador foi proceder a entrega oficial das novas carteiras para os alunos.
Nenhum morador, exceto os alunos da escola secundária, ainda se encontrava na praça
principal, espaço onde o dirigente é normalmente recebido, nem na tribuna, onde se
realizaria o comício. Depois da visita à escola, o governador saiu com a sua comitiva da
Comunidade de Cateme. Aguardei no local e depois ouvi palavras como: “ele fugiu...”
“...que falta de respeito...”. À medida que os moradores chegavam a indignação
aumentava.
viste? É assim que eles nos tratam; não te falei. É de gente [educada] isso?...
Nós tínhamos o programa. O encontro com a população estava marcado para
8horas, mas agora são 7h35, ele já foi embora e nem disse nada. Você acha
que da próxima vez que eles vierem vão encontrar pessoas aqui mesmo.
Como, nós líderes, vamos explicar a população sobre isso? As pessoas
deixaram de fazer suas coisas para estar aqui na hora marcada e depois é isso
que acontece. Ele não queria falar conosco.
- 216 -
6.1 “O que fazia lá não consigo fazer aqui”: de um lugar de diversas alternativas
de reprodução social e econômica para um lugar de alternativas limitadas
- 217 -
África do Sul. Neste contexto, predomina nessa região a figura de “agricultor-mineiro”,
um sistema dual caraterizado pela correlação de atividades de migração e por atividade
agrícola de subsistência, (MERCANDALLI, 2015; MERCANDALLI; ANSEEUW,
2014).
O meu marido saiu primeiro para Moatize a procura de fazer a vida e depois
voltou para me casar. Após o casamento voltamos juntos para morar cá
[bairro Bagamoyo na vila de Moatize]. Depois é que apareceu a Vale com
todas as suas promessas e nos tirou para aqui [Cateme]. Eu e meu marido
nunca fomos funcionários públicos . Sempre vivemos da machamba e de
negócios particulares. Além da agricultura eu também fazia negócios .
Sempre fiz negócios de venda de lenha e comprava tomate e outros produtos
agrícolas no distrito de Angônia para vender em Moatize. O meu marido é
oleiro. Produzia tijolos queimados. Mas aqui o negócio de tijolo não sai por
causa da falta de matéria prima e da distância para o mercado. Não há poder
de compra para o negócio andar. Com o dinheiro de indenização da segunda
machamba, construí esses quartos para alugar, mas não consigo clientes.
- 218 -
Estão todos vazios. Mandei fazer isso para ver se conseguia alguma renda,
mas não está dando certo. Não consigo clientes para alugar. Continuo
fazendo alguns negócios. Compro milho, este que você está ver aqui, em
Angônia e tento vender aqui no mercado. Costumo comprar também outros
produtos agrícolas em função da época, batata doce, tomate também, para
vender aqui no mercado. A machamba e esses produtos é que garantem
atualmente a nossa sobrevivência. No início eu e meu marido construímos
uma banca ali no mercado onde vendíamos produtos como açúcar, arroz,
óleo, mas encerramos por falta de clientes. Os produtos tinham pouca rotação
por falta de clientes. Esses negócios são necessários porque a machamba que
me deram não me permite um bom rendimento. Diferente de lá, as
machambas daqui não produzem bem; se a vale cumprisse com o que
prometeu-nos não estaríamos a viver nessas condições. A Vale deve cumprir
com o que nos prometeu. A Vale é que nos tirou de lá para aqui a
responsabilidade é dela (SR. R.E.T. BAGAMOYO, 2016).
Foi também o casamento que fez com que a Dona I. Chipanga fosse morar no
Bairro Chipanga. Manyungwe, mãe de oito filhos (dois já casados com família própria e
6 moram com ela), Dona I. Chipanga morava em Chipanga desde 1988. Nasceu em
Magoe e cresceu em Chitima, sede do Distrito de Cahora Bassa. Migrou para Moatize e
passou a morar no bairro Chipanga depois do casamento. “Meu marido era militar e foi
afeto na base militar de Moatize”. Anos posteriores C. Chipanga, seu marido, foi
desmobilizado e passou a se dedicar a negócios particulares.
Ele trabalha no mercado vendendo roupa. Tem uma banca lá [em Moatize]
onde vende roupa. Ele tem que ir lá porque é onde tem movimento de
pessoas e poder de compra aqui não tem nada disso. Todos os dias de manhã
viaja para a cidade fazer negócio e volta de tarde. Meu marido sempre
trabalhou com esse negócio, a diferença é que agora ele tem que pegar chapa
diariamente para lá e isso tem muitos custos. Eu particularmente trabalhei
sempre na machamba e produzia pombe55 . Continuo produzindo pombe, mas
os ganhos não são os mesmos porque aqui não tem movimento [poucos
consumidores]. Por isso aqui a vida é difícil.
Para mim aqui é um bom lugar, porém tem pequenos problemas, esse ano
como não choveu estamos um pouco mal porque dependemos de colimar
[cultivar a terra] lá era nossa zona, tinha diversas alternativas. A lenha e a
produção de carvão complementavam a produção da machamba. Era próximo
da vila então eu produzia também carvão punha na bicicleta para vender na
vila, coisa que aqui é difícil fazer. Mesmo tendo lenha e fazer carvão para
levar vila é muito longe. Aqui a distância dificulta muita coisa. La em
55 Bebida alcoólica local produzida com base em Mapira (Sorghum bicolor) ou Milho (Zea mays).
- 219 -
Mithethe para vila não era longe amarávamos os sacos na bicicleta e íamos
vender. Eles prometeram projetos, mas as pessoas estão aqui vadiando. Até
que houve espaço para trabalhar quando ainda estavam a construir aqui, mas
depois tudo mudou agora so estamos vadiando. Os jovens só ficam em casa.
Para mim nos deixar aqui não é problema, o problema são as condições de
sobrevivência. La nós fazíamos as coisas nossa maneira. Era nossa zona
conhecíamos tudo. Aqui não tem problema enquanto um espaço, mas
trabalho e serviço não tem aqui. Deixamos lá nossos projetos e nossa vida
para vir ficar aqui sem fazer quase nada. Por isso estamos a sofrer aqui. Eu
era oleiro e produzia carvão vegetal. Eles prometeram que aqui iam criar
condições para continuar com atividade, mas desde de 2009 até agora nada se
fez. Agora trabalho mais na machamba. Colimar estamos colimar, mas
carvão, tijolos lenha não tem como fazer para vender. La para ter machamba
era so pedir a outra pessoa, mas aqui é so comprar. É outra zona e tem outros
modos de fazer as coisas. Assim é so desenrascar para viver numa situação
que não fomos nós que criamos. Nós não viemos aqui por vontade própria
foram eles que nos obrigaram. Nos recusávamos nas reuniões vir para aqui.
Mas eles prometeram, prometeram e quando chegamos aqui nada. La a gente
vivia praticamente nos dois sitio Chipanga e Mithethe, tínhamos casa em
Chipanga e Mithethe. Os dois bairros eram muito pertos, Chipanga tinha
fontanária e rio que não acabava água. Não tinha problema de água que
temos aqui.
Atualmente faz se tanta bicha [fila] para ter acesso a água, ou temos que
cavar poços próximo do rio para ter acesso a água e poder fazer algumas
atividades. Neste momento em cada bairro s ó tem uma torneira que está
operacional, as outras estão avariadas. A pessoa tem que ir lá cedo tirar e
ficar todo dia com essa pouca água, para no fim do dia ir fazer outra grande
bicha. As vezes faz-se bicha no meio dia para so chegar a sua vez de cartar
água no fim de tarde (SR. R.P.B. CHIPANGA, 2016).
Alguns cabritos morreram por falta de água. Aqui quando viemos não tinha
cabrito, nos é que trouxemos o que faltou são as condições para criar” (SR. J.
P. CHIPANGA, 2016). Foi a falta de água, associado a prevalência de terra
impropria que fizeram com que o Sr. R.P.B. Chipanga (2016) não insistisse
na sua antiga atividade de oleiro. “Aqui não tem terra própria para fazer
tijolos, o terreno não permite a areia daqui não é própria. Tem também a falta
de água e tijolos requerem muita água. O acesso é muito limitado.
Para o Sr. P.A.S. Mithethe (2016), não há dúvidas que sair de “lá” para “aqui”
foi “um retrocesso e muitas coisas, embora lá tivéssemos casas de pau a pique aqui
temos de alvenaria apesar dos problemas que tem, mas quando vamos para outras coisas
a vida aqui ficou pior”. Continua ele,
- 220 -
outros foram roubados. Voltei no zero. Assim não tenho nenhum animal so
tenho esses cães aqui [risos]. Aqui se rouba muito, não roubam so uma ou
duas cabeças roubam todo curral, ameaçam matar o pastor. Não sabemos
donde vêm os ladrões, mas acredito que muitos vêm da Vila e entram em
coordenação com alguns daqui. Por isso, vão especificamente para maiores
produtores. Este ano estamos mal, tentamos colimar, mas como faltou chuva,
quase toda minha produção secou. Essa imagem que estas a ver aqui na horta
é mesma coisa lá na machamba. Tudo secou. A grande diferença entre aqui
em Cateme e lá [Mithethe] é que em situações como essas que a produção na
machamba não dava o esperado, tínhamos outras alternativas, cortar lenha,
fazer carvão para vender na vila. Eu tinha esses animais que ia vender na vila.
Mas aqui isso é impossível fazer, primeiro, porque tal lenha não tem, nem
material para produção de carvão. Segundo, para quem tenta, o custo de
transporte dificulta muito as coisas. Como carregar carvão para vila, 38 km é
muito difícil. Aqui ninguém compra. No ano passado houve fome, mas
provocado pela chuva. Choveu muito e inundou quase tudo, este ano é a seca,
com essa seca a nossa situação ficou pior. A agricultura é a nossa base. La
onde nos saímos tínhamos nossas machambas que capinávamos mapira e
milho, mas quando viemos aqui deram so uma machamba por cada família, a
outra deram em dinheiro. Foram 119 mil. Mas para dar esse dinheiro foi
grande confusão. Cada machamba que deram tem 1 hectare. Isso para dizer
que cada família tem um hectare. Para aumentar o espaço de produção eu
dividi esse meu quintal para fazer horta aqui. Esse meu quintal mede 80/45.
Na verdade todas as casas têm quintal dessa dimensão. Então aproveito esse
espaço para produzir alguma coisa também.
Aqui vivo uma situação de sofrimento, como já perdi meu marido a situação
fica pior. La pelo menos tinham muitos recursos que nos ajudavam a superar
situações de crise. Se a empresa pelo menos um dia falar para a gente voltar
as nossas terras, eu sou uma das pessoas que voltaria sem nenhum receio,
porque lá estava a viver melhor.
- 221 -
Embora a empresa tenha prometido levar em conta essa localização privilegiada
no rio Revúboe, como critério na distribuição das machambas, na prática não se
efetivou. A maioria das pessoas do bairro Malábue receberam machambas em áreas
com um solo impróprio para produção agrícola. “Áreas cheias de pedras”. Esse foi o
caso da Sra. F.C. Malábue. Algumas poucas pessoas como é o caso do senhor P.C.
Malábue, que recebeu machambas em melhores condições em comparação com a
maioria dos “reassentados”, convivem cotidianamente com o dilema de ser arrancado ou
não pelos “nativos”.
Minha machamba era 75% bom e 25% mau, tem muitos que receberam em
áreas 100% pedra. Tem um [nativo] que vinha aqui dizer que quer sua
machamba porque não foi indenizado pela Vale. Eu disse para ele que já
passava muito tempo desde que recebi aquela machamba em 2010. Mandei-o
ir ter com a Vale. E esses dias não tem vindo.
De fato, Cateme não era uma zona desabitada. Dados históricos indicam que era
um aldeamento colonial. Não foi transformado em aldeia comunal, tal como aconteceu
com alguns aldeamentos coloniais de Moatize, no âmbito da política socialista de
modernização rural (vide capítulo 03). Nesse processo, logicamente que uma parte da
população pode ter se dispersado de volta as suas terras ancestrais ou em busca de viver
a vida do seu modo em outros locais escolhidos ao seu próprio critério. Porém, a área
continuou sendo uma área habitada.
Tudo que a empresa prometeu a eles não comprou também tal como fez
conosco. Tinham dito que iam lhe dar casas, mas depois não deram então eles
levaram machambas deles de volta. Foi nesse contexto que eles arrancaram
as machambas que tinham aceitado ceder para os reassentados.
- 222 -
Você chegava na minha casa dizia sim senhor é casa do Senhor M.A.Z, mas
olha para isto. Viver nessa situação me deixa indignado. O governo deveria
ser a primeira pessoa as nos defender o que não acontece. Esses da empresa
são de fora que estão a vir explorar aqui. Nós somos daqui mesmo. Além de
nos deixarem limpos e desenvolvidos esses estão a nos deixar pobres. Muitas
coisas que eu tinha cumulado estão a acabar por vender. Quando a gent e
reivindica eles so sabem trazer armas. Olha bem nessas casas , vais ver que
casas de banho e latrinas estão sem chapas [de cobertura], as pessoas estão a
tirar para vender, para comprar comida e outras coisas. Vieram nos deitar
aqui como se fossemos lixo, enquanto somos humanos tínhamos nossos
bens e nossas próprias condições de vida lá nas nossas casas onde nos
tiraram. Estão a nos tratar como se fossemos refugiados. Nós não somos
refugiados somos donos dessa província. Um estrangeiro vem explorar
aqui e enriquecer lá no país dele e nos ficarmos pobres assim como
estamos. Faz-se isso? Muitos de nós aqui não temos emprego, por isso está
cheio de gente que não faz nada e de ladrões. A primeira reivindicação que
fizemos foi sobre as machambas que se localizam na sua maioria em
locais com pedras e sem condições adequadas para a produção. Como
reivindicamos e não nos davam a mínima decidimos bloquear a linha
férrea. Não destruímos só bloqueamos para não passar comboio. Era uma
forma de lhes chamar para nos ouvirem. Enviaram seis policias e viram que
era muita gente. Ligaram para a província dizendo que era muita gente. O
governo provincial enviou a uma unidade de intervenção rápida. A força de
intervenção chegou batendo todo mundo indiscriminadamente. Pegaram um
professor de inglês que nem estava lá na manifestação estava em sua casa,
amararam bateram-lhe e levaram para o comando lá no distrito. Mas essa
reivindicação estávamos a falhar mesmo? Se eles não queriam nos ouvir.
Chegamos a aquela ação porque não nos ouviam, nos ignoravam quando
dizíamos que aqui as coisas não estão bem. Ninguém veio para aqui por
vontade própria, foi a empresa em coordenação com o governo que nos
trouxe aqui. Mas eles mandam militares para nos violentar. O que custa
eles virem fazer uma reunião com a população e ouvir as nossas
reivindicações. A gente manda cartas para o governo sobre nossas
preocupações não responde nada. Alguns que vão lá reivindicar são detidos
logo, para intimidar os outros a não se atreverem a fazer isso. Porque o
governo não pressiona. Porque continua ignorando as promessas feitas pela
empresa? Cada vez mais aqui estamos a ficar pobres do que lá onde
estávamos a viver. A minha casa lá era melhor que essa casa aqui. Essa
minha é morfologia C. La eu era oleiro, fabricava tijolos e vendia. Muitos de
Bagamoyo tinham seus projetos de olaria. Aqui mesmo eu continuar com
esse projeto quem vai comprar. Nem carvão nem tijolos, nem lenha. Eu
continuo fazendo, mas desde de 2015 até hoje está aí todo tijolo ninguém está
comprar. As pessoas não vão sair da vila para comprar aqui se podem
comprar lá mesmo. Os custos para levar daqui para lá são altos. Na
machamba a produção está sempre abaixo do esperado, este ano a situação
agravou-se pela seca. Com os 119 mil meticais que nos deram de indenização
da segunda machamba mandei instalar energia elétrica e comprei algun s
eletrodomésticos e mobiliário para casa. Mas com essa seca algumas coisas
estou a vender de novo, para comprar comida e alguns materiais paras as
crianças irem à escola. As pessoas vendem congelador a dois mil que
compraram a cinco e seis [meticais]. Estou a empobrecer” (SR. M.A.Z.
BAGAMOYO, 2016, grifos nossos).
****
- 223 -
A chegada da Vale em Moatize, não só marca uma nova fase na exploração das
consideradas ricas minas de carvão mineral de Moatize, como também, inaugura um
novo período e nova história na vida cotidiana das populações que viviam no bairro
Chipanga, Mithethe, Bagamoyo e Malábue, arredores da vila de Moatize bem como na
vida das diversas famílias que ainda vivem desde os tempos imemoriais ou datados nos
arredores da área concessionada.
56 Existetambém uma certa proximidade entre os efeitos sociais provocados pela construção de pelas
barragens de usinas hidrelétricas e os projetos mineralógicos: os deslocamentos compulsórios, a
desestruturação das lógicas de vivências das diversas populações atingidas, os sofrimentos sociais tem
sido uma das características comum entre ambos. Uma análise comparativa entre o caso de Tucuruí
estudado justamente pela Magalhães (2002; 2007); de Kariba na Zâmbia estudado por Colson (1971); de
Cahora Bassa em Moçambique (ISAACMAN; ISAACMAN, 2013) e recentemente de Belo Monte
(MAGALHÃES; CARNEIRO DA CUNHA, 2017), por um lado e os diversas análises sobre os efeitos da
mineração no Brasil com destaque para o livro “Mineração: violências e resistências: um campo aberto à
produção de conhecimento no Brasil” (ZHOURI, 2018), bem como em Moçambique – ver, por exemplo:
os relatórios da Human Rights Watch “O que é uma casa sem comida? O boom da mineração de carvão e
o reassentamento (2013); da Sekelekani “A minha voz - narração de sofrimento de comunidades
reassentadas em Tete” (MÁRIO, 2015), bem como da OXFAM “Mineração, reassentamento e meios de
vida perdidos: ouvindo as vozes das comunidades reassentadas em Mualadzi, Moçambique”
(LILLYWHITE; KEMP; STURMAN, 2015) - por outro, atesta essa proximidade.
- 224 -
237). Ainda segundo a autora, este antigamente é relatado a partir de trajetórias distintas
e de marcos temporais variados, ou seja, não pode ser visto de forma essencialista e
homogênea, porem apresenta um marco sociológico único que é o tempo da “terra
livre”. Para Magalhães, esse tempo de terra livre diz respeito a um contexto onde,
conforme os seus relatos, “as terras estavam disponíveis e qualquer um podia chegar
fazer a sua roça, plantar em seu sitio e se tornar morador como efetivamente quase todos
fizeram, desde a década de 30 até os anos 70” (p. 238). Neste contexto conclui a autora
que é a partir do “suposto [tempo] da terra livre que [esses camponeses] sentem, vivem
e explicitam como a construção da barragem transformou as suas vidas” (p. 241, grifos
da autora).
“Como a Vale ainda não começou a explorar lá [Malábue], saindo daqui posso
vos indicar onde foi enterrado o meu cordão umbilical” (SRA. F.C. MALÁBUE, 2016).
No contexto sociocultural, por exemplo, a relação efetiva com o lugar, cujo significado
varia em função da trajetória de cada família, e a ruptura com esses espaços de
significância simbólica (tal como esse destacado pela senhora F.C. Malábue) tem sido a
mais sentida.
- 226 -
Essa divisão sexual do trabalho ainda continua atualmente, com alguns homens
assumindo tarefas de motoqueiros como é o caso da família de Sr. E.M.T. Chipanga ou
vendedor do mercado, como é o caso do marido da Sra. R.E.T. Bagamoyo. De fato, são
as mulheres que assumem um papel preponderante nos trabalhos na machamba. Essas e
outras complexidades de relações de atividades poderiam claramente ter sido detectados
se, tal como destacam Osório e Cruz e Silva (2017) estudos socioantropológicos
tivessem sido desenvolvidos.
57 Paraum abordagem teórica e conceitual sobre mobilização social ou coletiva, ação coletiva e protestos
sociais, sua complexidade e mecanismos gerais de sua configuração ver: Daniel Cefai (2009; 2017a;
2017b) e Mutzenberg (2015). Este último tem a particularidade de explorar as especificidades de ações
coletivas e movimentos sociais em África. O importante a reter em termos teóricos e c onceituais é que a
mobilização social ou coletiva “emerge quando os membros de coletividade se sentindo atingidos, direta
ou indiretamente, por um “distúrbio” em que são confrontados, definem-no como uma situação
problemática e resolvem passar a ação” (CEFAI, 2017a, p. 190). O protesto social é uma forma de ação
coletiva e momento de visibilidade de um movimento social (MUTZENBERG, 2015). As mobilizações e
os protestos sociais são um processo de indagação e revolta, mas também “de se envolver em processos
de ação conjunta e de julgamentos político e construir, na pluralidade e conflitualidade, um mundo
comum” (CEFAI, 2017b; p. 141). Outro conceito importante a reter no âmbito desse debate é o de “arena
publica” enquanto “campos de experiencia coletiva”. Para isso ver: Daniel Cefai (2002; 2017a; 2017b).
- 227 -
Um dos confrontos marcantes aconteceu em 2013 quando a comunidade de
Cateme, reivindicando o cumprimento das diversas promessas feitas (acesso à água,
terra fértil, energia, indenização, bens coletivos de transporte, saúde, educação etc.),
bloqueou a linha férrea de transporte de carvão que passa a escassos metros da
comunidade de Cateme numa ação violentamente reprimida pela polícia, o que reforça a
prevalência de uma lógica intimidatória na relação entre o governo e a empresa, de um
lado, e as comunidades afetadas, por outro.
Para o Sr. F.P.D. Mithethe (2016) o governo tem uma grande responsabilidade
na difícil situação atual de vida em Cateme, porque devia ser ele a exigir da empresa o
cumprimento das suas obrigações.
Mas nada disso fazem. Eles defendem a empresa contra nós. Eles podiam
exigir a empresa para cumprir com as promessas feitas. Mas nada fazem. O
governo é culpado por estarem a nos maltratar. Por que estão a defender a
empresa contra nós? Porque estão a comer as nossas custas. Nós não
- 228 -
queríamos vir para aqui. Se tivessem nos deixado lá, não podíamos chatear
ninguém, nem governo, nem a empresa, porque nós vivíamos à nossa
maneira. Mandaram-nos para aqui e não cumprem nada do que prometeram,
eles estão lá na cidade, lá em Maputo e nos aqui a sofrermos. Podiam comer
muito, mas nos dar um pouco também. Meu sentimento é de indignação.
Deviam dar-nos alguma coisa do que prometeram. Só estavam as nos
namorar só. Por isso falaram muita coisa. E diziam que vão fazer isso e
aquilo e quando chegamos aqui não vimos nada disso .
58 Noano de 2015 foram destinados no âmbito do orçamento geral do estado 3 258 740 000.00 Meticais
(MT) via governo distrital para a comunidade de Cateme. Para todo o distrito de Moatize foram 10 878
750 000. 00MT que além da comunidade de Cateme deviam ser canalizados para as comunidades de 25
de setembro, Chipanga II e Benga. Essas duas áreas de reassentamento do projeto de Benga atualmente
operado por um consórcio de empresas Indianas denominada International Coal Ventures Private Limited
(ICVL).
- 229 -
finais de dezembro de 2017 realizei uma segunda fase de pesquisa de campo em
Moatize. Diferentemente da primeira fase da pesquisa (realizada no primeiro trimestre
de 2016) onde o foco foram as populações expropriadas ou compulsoriamente
deslocadas das suas áreas ancestrais de ocupação imemorial ou datada e “reassentadas”
em Cateme, nessa segunda fase estendi o meu olhar para outras populações atingidas,
concretamente, as populações “remanescentes” do bairro Bagamoyo e da comunidade
de Catete, que têm em comum o fato de viverem e produzirem nos arredores da área
concessionada ao projeto de mineração da Vale. Priorizando, tal como na primeira fase,
uma forma artesanal de fazer pesquisa inspirada em Wright Mills (1975) e José de
Souza Martins (2014) ao longo do trabalho campo busquei também mergulhar, através
das narrativas e da observação, nas dinâmicas atuais da vida cotidiana dessas
populações atingidas.
- 230 -
Optei em desistir. Agora, como você viu lá em casa, me dedico a produção de
galinhas. Essa terra daqui de fora da cerca não tem qualidade. Alguns ainda
tentam continuar. Antes de ter a cerca entravamos para tirar terra lá dentro,
mas agora não temos como entrar.
todos que estão nessa área arredor [a escassos metros da cerca metálica
colocada pela empresa] são ou eram oleiros. Tem famílias que todas suas
gerações foram oleiras. Faziam essas atividades, que aprenderam do seu pai,
que por sua vez aprendeu do seu avô, assim em diante. Tem oleiros que
funcionavam como uma empresa. Tinham trabalhadores e vários fornos.
Neste contexto, a mensagem deixada pela empresa foi de que a indenização seria
resultado dos cálculos a serem feitos com os dados coletados, fato que segundo ele não
se verificou.
Eles disseram que a indenização ia ser feita a partir desses cálculos. Não
chegaram a dizer como exatamente seria o cálculo. Como a indenização não é
feita de forma aleatória, nós mesmo começamos a fazer nossos cálculos sobre
como devia ser: quantos blocos cada um produzia, por ano, quanto ganhava,
quanto tempo vai ficar parado. Em 2012 vieram dar um valor de sessenta mil
meticais que inicialmente disseram que era a compensação do tempo que
ficamos sem produção. Mas depois de algum tempo a empresa assumiu
aquele valor como indenização definitiva. Nós recusamos que aquele era o
valor acordado para indenização. Aí começou o problema. Perguntamos que
base de cálculo usaram? Depois desse desentendimento a empresa
recomendou que nós apresentássemos o nosso critério, para que, numa
análise comparativa com o critério deles, se buscasse um consenso sobre qual
o critério a ser seguido. Estamos nessa situação até agora. Há oleiros que
conseguiam produzir duzentos e cinquenta mil tijolos ao ano. Vendendo a um
metical [moeda moçambicana] cada, conseguia arrecadar entre duzentos e
duzentos e quarenta mil meticais tirando as quebras. Para eles darem sessenta
mil e dizer que é indenização? (SR. C.O. BAGAMOYO-VILA, 2017)
- 231 -
encostado num Embondeiro (Baobá) pude ver o constante movimento das máquinas de
extração e dos pesados caminhões que é impossível não sentir a sua presença,
transportando o carvão extraído. As constantes explosões na área de extração, não só,
causam poeira que cobre o céu como uma nuvem que anuncia a chegada da chuva,
como também, provoca rachaduras nas casas que se encontram principalmente a
escassos metros da cerca. Tal como destaca um morador do bairro, se eu tivesse
chegado dois dias antes, teria visto a poeira que saiu quando explodiram.
Estão a sair rachas nas casas, provocadas por essas explosões. Para nós que
estamos perto da cerca o efeito é maior. Aqui fica totalmente escuro parece
uma nuvem de chuva. Aqui já não se estende farinha fora da casa, por causa
disso. Só dentro e por causa disso demora secar. Eles não avisam sobre os
dias e horas de detonação. So explodem. Nos primeiros dias, ao voltar a casa
encontrávamos farinha e roupa cheia de poeira. Então pelo menos farinha
temos que estender dentro porque a roupa podemos lavar de novo .
- 232 -
Aliás, muitos dos atuais moradores têm descendência ancestral em Chipanga. Ou
seja, mantinham residência fixa em Chipanga e outra na comunidade de Catete, esta
última para efeitos de produção agrícola. Num determinado período do ano se
deslocavam de Chipanga para Catete para a produção na machamba. Após a colheita
regressavam para Chipanga. Com o andar do tempo e, principalmente, quando a
agricultura foi se tornando vital para sua reprodução social e econômica, foram
transferindo as suas residências definitivamente para a comunidade.
meu pai me contava que antes vivia lá em Chipanga, mas no tempo de cultivo
vinha para cá. Com o andar do tempo começou a ver que Chipanga era perto
optou em viver aqui definitivamente. Eu nasci aqui mesmo naquele
Embondeiro ali. Os mais velhos sempre comentavam isso sobre a minha
nascença.
primeiro so vinha aqui capinar, tinha casa aqui e em Chipanga, quando minha
casa caiu por causa de um desastre natural decidi viver aqui definitivamente.
A minha primeira sorte [primeira filha] que já casou e mora em Zobue,
nasceu lá [em Chipanga]. Os outros é que nasceram aqui. Todos esses que
moram aqui já tiveram casa lá em Chipanga. Eu sempre fui camponês, não
trabalhei com outra coisa só capinar.
Há informações de que vão fechar até essa estrada que você usou para cheg ar
aqui. O que vai ser de nós. Mais sofrimento. Com essa idade que eu tenho, já
estou na velhice, a minha força é menor. Percorrer essa distância para vila já
é um sacrifício para mim, imagina quando fecharem os corta matos todos e
abrirem esse outro caminho que dá lá na estrada? Como vou fazer? (SRA.
I.M. CATETE, 2017)
- 233 -
Como na comunidade não tem uma escola primária e a comunidade de Chipanga
que era mais próxima foi compulsoriamente deslocada, o acesso à educação formal
passa necessariamente por se deslocar até ao centro da vila. Um processo penoso face à
distância e que tem, por exemplo, como consequência a entrada tardia das crianças ao
universo escolar. “Essas crianças pequenas não estudam, não têm como chegar lá”. A
escassos metros da comunidade, a linha férrea de transporte de carvão possui um ponto
obrigatório de paragem dos comboios antes da entrada na área do carregamento da
empresa. Fazendo uma volta circular de carregamento, o mesmo sai com os vagões
cheios rumo às margens do oceano Índico. “Chega ali e para, depois entra e sai de outro
lado com vagões cheios e vai”. O rio que é a principal fonte de água se encontra na
outra margem da linha férrea. São as mulheres e as crianças maiores que com “lata na
cabeça” buscam a água do rio para a residência – apenas quando o comboio estiver
parado aguardando instruções para a entrada na área de carregamento, fato que acontece
permanentemente. A atividade de “cartar água” deve ser interrompida temporariamente.
Algo extremamente penoso principalmente quando as mulheres estão no caminho de
volta para casa com “lata na cabeça”. A espera pode durar até duas horas no pior dos
casos, menos tempo quando o comboio estiver em movimento. Pude presenciar a
passagem do comboio com os seus longos vagões cheios de carvão à saída e vazios na
volta para a área de carregamento. Tirar a lata da cabeça e aguardar é a única solução
para tornar a espera menos penosa.
A própria água do riacho “está diferente, não está mais a mesma coisa”. A
poeira das explosões que são feitas no processo de extração do carvão está afetando a
qualidade água do riacho que abastece a comunidade.
Quando detonam explosivos lá tudo isso fica escuro, a água fica como café.
A poeira suja as casas e ninguém pode mais estender farinha fora de casa. Por
isso temos agora grandes problemas de acess o à água potável. A poeira deles
sai da mina direto para as casas, para a farinha e para água do rio. Já fizemos
várias cartas. Uma entregamos a Vale. Outra entregamos ao governo [de
Moatize]. Mas não obtivemos nenhuma resposta até agora. Eles por
simplesmente não nos respondem. O governo nem se preocupa em vir aqui
para ver a nossa realidade de vida. Somos moçambicanos porque temos BI
[bilhete de identidade] moçambicano, so isso, mas não temos nenhum direito
(SR. I.H, CATETE, 2017).
- 234 -
lógicas distintas de apropriação da terra e recursos (que têm como consequência a
expropriação do território e o bloqueio ao acesso de áreas vitais para reprodução social,
econômica e cultural das diversas populações que habitam nos arredores da área
concessionada); (ii) os conflitos inerentes à poluição, quer de rios, quer das terras vitais
para a reprodução social e econômicas dessas diversas populações.
6.2 “Agora sou motoqueiro, a vida não pode parar”: em busca de novos campos de
possibilidade de sobrevivência cotidiana
Manyungwe, Sr. E.M.T. Chipanga, é casado, pai de nove filhos, (três mulheres e
seis homens). A maioria dos filhos mora com ele “aqui” em “Chipanga-Cateme”. O
mais velho que é operador de máquinas numa das mineradoras que atua em Moatize,
mora na vila-sede. Também é casado e com filhos. Como Sr. E.M.T. Chipanga diz, ele
já tem sua própria família. Junto com ele mora um dos filhos do Sr. E.M.T. Chipanga,
que é estudante do ensino médio numa das escolas da vila sede de Moatize. Os restantes
sete filhos continuam morando com ele na casa modelo A, composto por um quarto e
sala. A cozinha externa, o banheiro são alguns dos edifícios que completam a paisagem
residencial. O Sr. E.M.T. Chipanga, morava no bairro “Chipanga – Moatize” desde o
seu nascimento em 1962. “Eu nasci lá e cresci lá e so me mudei de lá para aqui em
2010”. Os seus pais são de “lá”, os seus avos também. Foi lá onde casou e todos seus
filhos nasceram. Segundo ele todos seus ancestrais são de Chipanga. Os pais eram
camponeses, “sempre vivemos da machamba”, atividade que ele abraçou também,
porém, tal como afirma, não dependia totalmente dela. “Além da machamba eu também
era oleiro e produzia carvão”. A família do Sr. E.M.T. Chipanga, é uma das 714
- 235 -
famílias - isso segundo dados oficiais do Governo Distrital de Moatize (2015) – dos
bairros Chipanga, Mithethe, Bagamoyo e Malábue que perversamente classificadas
como rurais, foram compulsoriamente deslocadas para Cateme entre os dias 9 de
novembro de 2009 a 21 de abril de 2010.
Tal como destaquei de forma breve acima, me encontrei com o Sr. E.M.T.
Chipanga, no Posto Policial de Cateme no primeiro dia que cheguei àquele local,
durante a primeira fase da pesquisa de campo no primeiro trimestre de 2016. Ele se
deslocara ao Posto Policial naquele dia para se informar das motivações que levaram à
soltura de dois cidadãos que ele capturara - suspeitos de furtarem milho na sua
machamba. Conseguiu encontrar os suspeitos pelo furto com uma quantidade de duas
latas. Eram duas mulheres. Levou-as para o posto policial local. Para o seu espanto,
naquele dia ficou sabendo que as mesmas haviam sido soltas sem que lhe dessem
nenhuma informação. Segundo ele aquilo não ficaria assim. Chegaria ao Administrador
do Distrito e ao Governador Provincial se fosse necessário, para ver restabelecida a
justiça que passava pela recuperação do seu milho. No decorrer das investigações o
marido das duas mulheres, que fiquei sabendo que não era “reassentado”, mas um dos
vários indivíduos que se deslocam para Cateme em busca do que Gilberto Velho
denominou de novos “campos de possibilidade” de sobrevivência cotidiana (VELHO,
2013). Foi o próprio Sr. E.M.T. Chipanga, que com seus amigos mais próximos fez as
diligências para capturar o marido das duas mulheres e o levou para o comando. Este
por sua vez assumiu a autoria da ação e se comprometeu a “pagar 12 latas para
compensação”. Acordo aceito pelo Sr. E.M.T. Chipanga.
- 236 -
encerramento dos seus fornos e os oleiros como compensação pelo tempo em que
ficaram sem produzir até aquele momento. O Sr. E.M.T. Chipanga, também recusa que
aquele era o valor acordado para indenização. Pergunta-se sobre os critérios usados para
o seu cálculo. Defende, tal como os outros oleiros, que uma nova forma de cálculo deve
ser apresentada. Os sessenta mil dados não podem ser assumidos como indenização.
Também recebeu o valor de cento e dezenove mil meticais como indenização do
segundo hectare da machamba.
- 237 -
cotidiano e acionam em função disso ações coletivas locais de resistência num autêntico
processo de afirmação local da cidadania. Ser motoqueiro, carregar pessoas daqui para
ali, criar uma banquinha (feirinha) nos arredores do mercado ou nas vias de maior
circulação na comunidade para vender tomate ou cebola produzido na sua própria
machamba ou comprado (para revender) de outros locais, são também formas de re-
existencia. Eles sabem, à medida que o tempo vai passando que não podem esperar
muito das promessas feitas pela empresa, muito menos do discurso de desenvolvimento,
melhoria de vida (deixem os brancos trabalharem para vossos filhos terem emprego) do
governo e da empresa. Cada dia que passa fica cada vez mais claro que de longe lhes
contempla. Só eles mesmo podem ser sujeitos das suas histórias de vidas. Ser
motoqueiro e ou criar uma feirinha é uma forma de resistência e existência. Você pode
me tirar da minha terra ancestral, me enganar e me abandonar, mas eu vou continuar
existindo. Pelo menos é essa mensagem que eles nos passam.
Depois de uma tentativa frustrada nos finais da década 80, a Vale (privatizada)
venceu um concurso internacional promovido pelo governo em 2004 em Moçambique -
ancorada na aproximação entre o Brasil e África dinamizada pelo governo Lula,
aproximação essa assentada na cooperação sul-sul - para explorar em céu aberto as
minas de carvão mineral da bacia carbonífera de Moatize. Esta, considerada pelos
órgãos governamentais uma das maiores do mundo.
- 238 -
provocou o deslocamento compulsório de milhares de populações camponesas,
forçadamente reassentadas nos aldeamentos coloniais, causando traumas sociais,
econômicos e ecológicos que permanecem até hoje, passados quatro décadas, na
memória das populações do Vale do Zambeze (ISAACMAN; ISAACMAN, 2013). É
nessa região aonde vem sendo cogitada, apesar da resistência de diversas associações
ambientais, a construção de uma nova barragem, também, sobre as margens do rio
Zambeze, a barragem de Mpanda Nkuwa, um antigo projeto colonial que não chegou a
ser efetivado. A insistência nesse projeto, a reativação em 1995 do GPZ, bem como a
atual expansão mineralógica na região, evidencia que há um processo de reativação,
atualização e implementação de programas coloniais projetados para a exploração
econômica da região. Até agora, e principalmente desde a chegada da Vale, a mineração
tem assumido grande relevância nesse processo. A chegada da Vale, não só, abriu
espaço para a entrada do primeiro grande Investimento Direto Estrangeiro brasileiro em
Moçambique como também transformou o distrito de Moatize no espaço onde –
seguindo a concepção de Mignolo (2003) - projetos globais inerentes ao capital
internacional se interseccionam de forma violenta com histórias das comunidades locais
que habitam a região desde os tempos imemoriais ou datados. Reedita-se para o tempo
presente lógicas de expropriação e violência que marcaram o período colonial e a
primeira república pós-colonial (falo concretamente do período socialista, 1975-1990).
- 239 -
passaram a fazer parte de uma ampla estratégia de contra insurgência ao avanço da
guerrilha da Frente de libertação de Moçambique (FRELIMO) na derradeira guerra
contra o colonialismo português. Á medida em que a FRELIMO avançava sobre Tete as
forças portuguesas foram intensificando ações de violência, terror e a intensificação do
aldeamento das populações. O atual distrito de Moatize tinha, até o final da guerra em
1974, 44 aldeamentos cobrindo aproximadamente 50.000 pessoas (BORGES COELHO,
1993). Alguns dos aldeamentos se localizavam nas áreas afetadas hoje com os projetos
mineralógicos que estão sendo implementados na região. Destacamos dentre esses, o
aldeamento de Cateme (atual área onde foram reassentadas a maioria das populações
classificadas como rurais pela mineradora Vale); Mithethe e Chipanga (duas das áreas
onde as famílias foram compulsoriamente deslocadas pela mineradora Vale).
- 240 -
originados pela brutalidade das companhias majestáticas e arrendatárias evidenciam, por
um lado, que o colonialismo e o pós-colonialismo se entrelaçam e correspondem a dois
períodos de uma história que a violência é um dos elementos centrais (PINA CABRAL,
1999).
- 241 -
subalternização se tornou mais acentuada. Todo ordenamento jurídico sobre a terra,
aprovado naquela década, teve como interesse primordial garantir as condições de
possibilidade de acesso e posse de terra e recursos para investidores nacionais e
estrangeiros. Ampliando a apropriação capitalista da terra e efetivando a política e
estratégia de desenvolvimento nacional centrada na atração de investimentos
internacionais materializados nos megaprojetos. Tal como destacamos no capítulo 04,
garantir a ocupação coletiva da terra através de direitos costumeiros dissimulava esse
interesse primordial, o que em si abria espaço para subalternização de outras formas de
uso e apropriação da terra.
- 242 -
“grande projeto” que tem a violência e a expropriação como parte inseparável,
como “outra parte da mesma moeda”. Com isso queremos dizer que o caráter
autoritário e violento do estado moçambicano na sua relação com as comunidades
locais, que vem desde o tempo colonial e se mantem atualmente, se intercecciona desse
modo com o caráter autoritário e violento da Vale. Os procedimentos adotados pela
Vale em Moatize, bem como a realidade de vida cotidiana das populações deslocadas e
outras que habitam nos arredores das áreas de exploração (marcada por desestruturação
significativa nas suas bases originais de reprodução social econômica e cultural)
evidenciam a prevalência dessa lógica violenta, autoritária e colonial de atuação.
Valorizar essas denúncias que emanam das narrativas e das ações coletivas da
população de Cateme é, na esteira de Arturo Escobar (2005a; 2005b), valorizar o lugar
enquanto espaço de contestação da ordem hegemônica. Neste contexto advogamos que
Cateme é um lugar de forças anti-imperialistas, pois as ações coletivas de contestação
que são lá desenvolvidas apresentam narrativas que denunciam o caráter violento,
autoritário e colonial das empresas mineradoras. A realidade atual de vida das
populações de Cateme nos ensina que o discurso de desenvolvimento e melhoria de vida
adotado pelos gestores das empresas multinacionais e atores governamentais não passa
- 243 -
de um discurso de integração. Só eles mesmos podem ser sujeitos das suas histórias. Por
isso que, enquanto lamentam pela realidade atual de vida imposta perversamente pela
empresa, enquanto resistem e se mobilizam coletivamente em defesa dos seus direitos,
também se engajam em novos campos de possibilidade de sobrevivência cotidiana. Seja
como motoqueiro, seja com uma feirinha no mercado ou nas vias mais movimentadas
da comunidade. De uma coisa as populações de Cateme têm certeza: não há muito que
esperar da empresa, muito menos do tal discurso de desenvolvimento e melhoria de vida
que vem acompanhando o avanço desses grandes empreendimentos na região. Só eles
mesmos, só eles, podem ser sujeitos das suas histórias.
8. PRINCIPAIS INTERLOCUTORES
- 244 -
10. Sra. R.E. Bagamoyo – moradora do bairro Bagamoyo: entrevista realizada no dia 17
de março de 2016.
11. Sr. J.P. Chipanga – morador do bairro Chipanga: entrevista realizada no dia 18 de
março de 2016.
12. Sr. M.A.Z. Bagamoyo – morador do bairro Bagamoyo: entrevista realizada no dia
17 de março de 2016.
13. Sr. D.B.X. Chipanga – morador do bairro Chipanga: primeira entrevista realizada no
da 21.03. 2016. Segunda entrevista realizada em novembro de 2017.
18. Sr. J.V. Maputo – entrevista realizada em Maputo no dia 10 de Junho de 2016.
- 245 -
9. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Salvador: EDUFBA, CEAO, 2012.
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