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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA E ANTROPOLOGIA
DOUTORADO EM SOCIOLOGIA E ANTROPOLOGIA ÊNFASE EM
SOCIOLOGIA

Albino José Eusébio

DA VIOLÊNCIA COLONIAL À VIOLÊNCIA DO DESENVOLVIMENTO: UMA


ANÁLISE SOCIOANTROPOLÓGICA SOBRE DESLOCAMENTOS
COMPULSÓRIOS PROVOCADOS PELO GRANDE PROJETO DE MINERAÇÃO
DA VALE EM MOÇAMBIQUE

Belém/PA

2018
Albino José Eusébio

DA VIOLÊNCIA COLONIAL À VIOLÊNCIA DO DESENVOLVIMENTO: UMA


ANÁLISE SOCIOANTROPOLÓGICA SOBRE DESLOCAMENTOS
COMPULSÓRIOS PROVOCADOS PELO GRANDE PROJETO DE MINERAÇÃO
DA VALE EM MOÇAMBIQUE

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em


Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e
Ciência Humanas da Universidade Federal do Pará,
como requisito parcial à obtenção do título de
Doutor em Sociologia.

Orientadora: Prof.ª. Dra. Sônia Maria Simões


Barbosa Magalhães Santos

Belém/PA

2018
DA VIOLÊNCIA COLONIAL À VIOLÊNCIA DO DESENVOLVIMENTO: UMA
ANÁLISE SOCIOANTROPOLÓGICA SOBRE DESLOCAMENTOS
COMPULSÓRIOS PROVOCADOS PELO GRANDE PROJETO DE MINERAÇÃO
DA VALE EM MOÇAMBIQUE

Banca Examinadora:

- Prof.ª. Dra. Sônia Maria Simões Barbosa Magalhães Santos Sónia - PPGSA/UFPA
(Orientadora)
_________________________________________________________________
- Prof.ª. Dra. Rosa Acevedo Marin – NAEA/UFPA (Examinadora externa)
__________________________________________________________________
- Prof.ª. Dra. Voyner Ravena Cañete – PPGSA/UFPA (Examinadora interna)
___________________________________________________________________
- Prof. Dr. William Santos de Assis – PPGAA/UFPA (Examinador externo)
___________________________________________________________________
- Prof.ª. Dra. Luciana Carvalho– PPGSA/UFPA (Examinadora interna)
___________________________________________________________________
- Prof.ª. Mônica Conrado – PPGSA/UFPA (Examinadora interna suplente)
___________________________________________________________________
- Profa. Dra. Nírvia Ravena – NAEA/UFPA (Examinadora externa suplente)
__________________________________________________________________

Belém/PA
2018

-3-
À memória dos meus avôs
À minha mãe Helena Francisco Canze
Ao meu pai Eusébio Augusto Gemo
Aos meus irmãos e a toda a minha família.

-4-
AGRADECIMENTOS

A história da elaboração dessa tese começa com a minha chegada no Pará, Amazônia
Brasileira, no âmbito do Programa PEC-PG do Governo Brasileiro para cursar Mestrado
em Ciências Sociais no PPGSA da UFPA. Por isso quero em primeiro lugar agradecer
ao Governo Brasileiro e particularmente ao CNPq por me ter dado essa oportunidade e
ao PPGSA por me ter aceitado como estudante do Mestrado e de Doutorado. O apoio da
minha família foi imprescindível para a decisão de continuar os estudos, por isso,
nyingu mi bhonga. No âmbito do Mestrado, não só tive a oportunidade de mergulhar
com um pouco mais de profundidade na teoria sociológica, como também de aceder às
discussões socioantropológicas sobre os efeitos sociais dos diversos projetos
desenvolvimentistas nas diversas populações tradicionais e povos indígenas da
Amazônia Brasileira. Essas discussões me inspiraram a refletir sobre os efeitos sociais
dos grandes projetos de mineração em Moçambique. Desde o primeiro momento, a
Profa. Sônia Barbosa Magalhães, minha orientadora, apoiou o projeto e agradeço
imensamente pelas orientações dadas que foram imprescindíveis para a elaboração da
presente tese. O curso de doutorado teve o apoio financeiro da Capes a quem endereço
desde já o meu obrigado. Nos finais de 2015, parti de Belém para a primeira fase da
pesquisa de campo em Moatize em Moçambique. Essa viagem teve auxílio em
passagem aérea do Ministério de Interior de Moçambique (MINT). O mesmo aconteceu
com a viagem para a segunda fase da pesquisa de campo realizada nos finais de 2017.
Agradeço imensamente ao MINT, não só por esse apoio, mas também por ter-me
autorizado a dar continuidade aos estudos. Muito obrigado. Nas duas fases da pesquisa
de campo tive apoio de outras pessoas e instituições. Agradeço a Casemiro Adolfo,
amigo e colega que me acolheu na sua residência nos dois períodos que passei pela
cidade Tete. Agradeço também a Américo Rosa pelo apoio prestado. O meu
agradecimento se estende à Administradora Distrital de Moatize, à Chefe da Localidade
de Kambulatsitsi e às lideranças de Cateme por terem prontamente autorizado a
realização do trabalho de pesquisa de campo em Cateme, bem como pelas informações
fornecidas durante o trabalho de campo. Um agradecimento especial vai para as
populações de Cateme por terem compartilhado de forma aberta suas experiências sobre
o processo de deslocamento compulsório e a realidade atual de vida cotidiana.
Tathenda. Agradeço também ao representante dos oleiros do bairro Bagamoyo-Vila e
as populações da comunidade de Catete. Muitas narrativas foram transmitidas em
-5-
Nyungwe por isso agradeço imensamente ao João Romão Sineque (Juas), jovem
poliglota e grande companheiro de pesquisa, pelo processo de tradução das entrevistas.
Com Juas percorri os quatros bairros da comunidade de Cateme, bem como diversos
espaços da vila de Moatize e cidade de Tete. Nas tardes uma cerveja gelada no mercado
de Moatize nos aliviava do calor. Nesses descontraídos ambientes íamos conhecendo
novas pessoas. Obrigado Juas. Quero agradecer também a Jeremias Vunjane e ao Prof.
João Colaço que forneceram informações importantes sobre o processo de deslocamento
compulsório da Vale, informações essas que foram úteis para a elaboração da presente
tese. Agradeço também as Profas. Teresa Cruz e Silva e Inês Macamo Raimundo pelas
análises críticas feitas ao projeto de tese e pelas diversas referências bibliográficas
compartilhadas. Os debates sobre estudos pós-coloniais incentivados pela Profa. Mônica
Conrado, ajudaram a definir a perspectiva teórica e metodológica da tese. Agradeço
muito a Profa. Mônica por suas orientações e sugestões. Agradeço também aos
funcionários e funcionárias da biblioteca da ARPAC em Tete, do Arquivo Histórico de
Moçambique, do Centro de Estudos Africanos e do Centro de Análise Políticas da
Universidade Eduardo Mondlane, que sempre estavam lá, prontos para ajudar na
localização das referências bibliográficas quando fosse necessário. Tive momentos de
tensão e esgotamento, mas as sociabilidades cotidianas permitiram a renovação das
forças. Quero terminar agradecendo aos colegas da Turma de Doutorado 2015 do
PPGSA-UFPA, aos amigos e todos aqueles que direta ou indiretamente contribuíram
para concretização dessa aventura.

Obrigado.

Nyingu mi bhonga.

Tathenda

-6-
Vieram nos deitar aqui como se fossemos lixo,
enquanto somos humanos, tínhamos nossos bens e
nossas próprias condições de vida lá nas nossas
casas onde nos tiraram. Estão a nos tratar como se
fôssemos refugiados. Nós não somos refugiados
somos donos dessa província. Um estrangeiro vem
explorar aqui e enriquecer lá no país dele e nós
ficarmos pobres assim como estamos. Faz-se isso?
(Sr. M.A.Z. Bagamoyo, 2016)
RESUMO

-7-
RESUMO

A presente tese analisa o processo de deslocamento compulsório e a vida cotidiana das


populações deslocadas, em consequência da instalação, no distrito de Moatize, na região
do Vale do Zambeze, província de Tete, Moçambique, do Projeto Moatize de
exploração de carvão mineral, operado pela multinacional brasileira Vale. O estudo é
inspirado teórico-metodologicamente na antropologia do desenvolvimento; nos estudos
pós-coloniais e na sociologia do cotidiano. A pesquisa empírica que embasa a tese foi
realizada em Moatize em dois períodos (primeiro trimestre de 2016 e de novembro a
dezembro de 2017) e buscou-se dentre vários pontos explorar às práticas que
caracterizaram o processo de deslocamento e a realidade de vida cotidiana no “novo
lugar”. Ao longo da elaboração da tese estabelecemos um profundo diálogo entre os
dados empíricos e a literatura histórica sobre a região do Vale do Zambeze, de um lado,
e as abordagens etnográficas sobre as práticas da Vale em outros contextos
socioculturais (Canadá e Amazônia Brasileira), de outro. Duas teses buscamos defender:
primeiro, que as práticas do deslocamento compulsório em Moatize, evidenciam que há
mais continuidades – o deslocamento compulsório centralmente planificado, o sequestro
dos destinos das populações atingidas, o sofrimento social – de práticas violentas
coloniais do que cismas nos processos atuais de implementação dos projetos de
desenvolvimento em Moçambique. Segundo, que a violência do deslocamento
compulsório é uma caraterística intrínseca aos grandes projetos de mineração
independente dos contextos políticos e jurídicos de cada lócus em que estão sendo
implementados. A Vale possui práticas autoritárias, violentas e “coloniais” de atuação
que independem do contexto de sua implementação. Isso nos leva a concluir que existe
um modelo hegemônico global de “grande projeto de mineração”, que tem a violência e
expropriação como partes inseparáveis, como “outra parte da mesma moeda”.
Palavras-Chave: Moatize; Vale; deslocamentos compulsórios; vida cotidiana;
megaprojeto de mineração.

-8-
ABSTRACT

In this present work, we intend to analyze the process of compulsory displacement and
daily life of displaced populations in Moatize’s district, in the Zambezi's Valley region,
in Tete province, Mozambique, of the large operation project of coal mining by the
Brazilian multinational Vale. The study is theoretically and methodologically inspiring
in developmental anthropology, postcolonial studies and sociology of daily life. The
empirical research that bases the thesis was carried out in Moatize in two periods (first
quarter of 2016 and from November to December of 2017) and we looked for among
several points to explore the practices that characterized the process of displacement and
the reality of daily life in the "new place". Throughout the elaboration of the thesis, we
established, on the one hand, a deep dialogue between the empirical data and the
historical literature on the Zambezi's Valley region, and from other hand, with
ethnographic approaches to Vale practices in other sociocultural contexts (Canada and
the Brazilian Amazon). Two theses we seek to defend: first, that the practices of
compulsory displacement in Moatize show that there are more continuities - the
centrally planned compulsory displacement, the distiny kidnapping of the “local
communities” and the social suffering - of "violent colonial practices" than the schisms
or ruptures in the current processes of implementation development projects in
Mozambique. Second, that the violence of compulsory displacement is an intrinsic
characteristics of large mining projects which independent of the political and legal
contexts of each locus in which they are being implemented. Vale has authoritarian,
violent and "colonial" practices that are independent of the context of its
implementation. This leads us to conclude that there is a global hegemonic model of
"big mining project" that has violence and expropriation as an inseparable part, as
"another part of the same coin"

Keywords: Mozambique, Vale, compulsory displacements; daily life; mining large


projects

-9-
LISTA DOS MAPAS

Mapa 01: Localização de Moçambique ................................................................. 17


Mapa 02: Divisão administrativa de Moçambique ................................................ 18
Mapa 03: Província de Tete com destaque ao distrito de Moatize ........................ 53
Mapa 04: Estrutura dos Grupos Étnicos de Moçambique ..................................... 55
Mapa 05: Região do Vale do Zambeze ................................................................. 57
Mapa 06: Área de exploração concessionada à Vale ............................................ 87
Mapa 07: Áreas de pesquisa e exploração mineral na Província de Tete até o
ano de 2017 ........................................................................................................... 91
Mapa 08: Os territórios das Companhias (1900-1925) ......................................... 110
Mapa 09: Localização da Comunidade de Cateme em relação à Vila de Moatize
................................................................................................................................ 200
Mapa 10: Comunidade de Cateme vista de cima .................................................. 207

- 10 -
LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

AAAJC Associação de Apoio e Assistência Jurídica às Comunidades


ABC Agência Brasileira de Cooperação
ACNUR (UNHCR) Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados
ADECRU Ação Acadêmica para o Desenvolvimento das Comunidades
Rurais
AEG Allgemeine Elektricitäts-Gesellschaft
AGP Acordo Geral de Paz
ALBRAS Alumínio Brasileiro S.A
ALCAN Aluminum Limited of Canada
ALCOA Aluminum Company of America
ALN Exército de Libertação Nacional da Argélia
ALUMAR Consórcio Alumínio de Maranhão
ANC African National Congress
ARQMO Associação dos Remanescentes de Quilombo do Município de
Oriximiná
ARPAC Arquivo do Património Cultural, atualmente denominado Instituto
de Investigação Socio-Cultural
ASBRAER Associação Brasileira de Assistência Técnica e Extensão Rural
BM Banco Mundial
BNDES Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
CAP Centro de Análises de Políticas
Carbomoc Companhia Carbonífera de Moçambique
Carbomoc-EE Carbono de Moçambique – Empresa Estatal
CDJPN Comissão Diocesana de Justiça e Paz de Nacala
CEA Centro de Estudos Africanos
CEAA Centro de Estudos Afro-Asiáticos
CEAO Centro de Estudos Afro-Orientais
CENOE Centro Nacional Operativo de Emergência
CFM Caminhos de Ferro de Moçambique

- 11 -
CID Cooperação Internacional para o Desenvolvimento
CLN Corredor Logístico de Nacala
CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
CPLP Comunidade dos Países de Língua Portuguesa
CPRM Companhia de Pesquisa em Recursos Minerais
CSN Companhia Siderúrgica Nacional
CSS Cooperação Sul-Sul
CVRD Companhia Vale do Rio Doce
DUAT Direito de Uso e Aproveitamento da Terra
EDM Eletricidade de Moçambique
ELN Exército de Libertação Nacional da Colômbia
EMBRAPA Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária
Emocha Empresa Moçambicana de Chá
EN1 Entrada Nacional n° 01
ENI Ente Nazionale Idrocarburi S.p.A.
Eximbank The Export –Import Bank of China
FAO Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura
FARC Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia
FDS Forças de Defesa e Segurança
FGV Agro Centro de Agronegócio da Fundação Getúlio Vargas
FIR Força de Intervenção Rápida, grupo de elite da Polícia da
República de Moçambique
FLONA Floresta Nacional Sacará-Taquera
FMI Fundo Monetário Internacional
FNLA Frente Nacional de Libertação de Angola
FOCAC Fórum de Cooperação China-África
FRELIMO Frente de Libertação de Moçambique
GD Grupos Dinamizadores
GFPZ Gabinete de Fomento e Povoamento do Zambeze
GPZ Gabinete do Plano do Zambeze, atualmente denominado Agência
do Zambeze
HCB Hidrelétrica de Cahora-Bassa
HRW Human Rights Watch

- 12 -
IBAMA Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis
ICOMI Indústria e Comércio de Minérios S.A
ICVL International Coal Ventures Private Limited
IDE Investimentos Diretos Estrangeiros
IDP´s Internally Desplaced Persons
INE Instituto Nacional de Estatística
INGC Instituto Nacional de Gestão de Calamidades
JA Justiça Ambiental
JICA Japanese Internacional Cooperation Agency
MAE Ministério de Administração de Estatal
MFPZ Missão de Fomento de Povoamento do Zambeze
MINAG Ministério da Agricultura de Moçambique
MNR Mozambique National Resistence
MONAP Mozambique Nordic Agriculture Program
MPLA Movimento Popular de Libertação de Angola
OCDE Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico
ODM Organizações Democráticas das Massas
ONGs Organizações Não Governamentais
ORAM Associação Rural de Ajuda Mútua
OUA Organização da Unidade Africana
PAE Plano de Ação Econômica
PAIGC Partido Africano para Independência da Guiné e Cabo Verde
PEC-G Programa de Estudantes-Convênio de Graduação
PEC-PG Programa Estudantes-Convênio de Pós-Graduação
PGC Programa Grande Carajás
PIDE Polícia Internacional e de Defesa do Estado
PNUD (UNDP) Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
POLAMAZONIA Polos Agropecuários e Agrominerais da Amazônia
PP Plano Prospetivo Indicativo
PPGCS Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais
PPGSA Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia

- 13 -
PRE Programa de Reabilitação Econômica
PRES Programa de Reabilitação Econômica e Social
RDML Rio Doce Moçambique Limitada
REBIO Reserva Biológica de Trombetas
RENAMO Resistência Nacional de Moçambique
UFBA Universidade Federal da Bahia
UFPA Universidade Federal do Pará
UGC União Geral das Cooperativas
UNAC União Nacional dos Camponeses
UNITA União Nacional para a Independência Total de Angola
URSS União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
USAID Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento
Internacional
Zamco Zambeze Consórcio Hidrelétrico Limitada.
ZEE Zonas Econômica Especiais
ZFI Zonas Francas Industriais

- 14 -
SUMÁRIO

AGRADECIMENTOS................................................................................................... - 5 -

RESUMO ...................................................................................................................... - 8 -

ABSTRACT .................................................................................................................. - 9 -

LISTA DOS MAPAS....................................................................................................- 10 -

LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS ....................................................................- 11 -

SUMÁRIO....................................................................................................................- 15 -

1. PARA ABRIR A NARRATIVA ............................................................................- 19 -

1.1 Foco teórico e metodológico.................................................................................- 31 -

2. MOATIZE: ENTRE HISTÓRIAS LOCAIS E PROJETOS GLOBAIS....................- 51 -

2.1 A encruzilhada dos projetos de exploração e desenvolvimento do Vale do Zambe ze :


do tempo colonial ao período pós -colonial.................................................................- 57 -

2.2 A nova encruzilhada dos projetos de exploração e “desenvolvimento” no Vale do


Zambeze: a chegada da Vale em Moatize..................................................................- 79 -

2.3 A chegada da Vale em Moatize e a cooperação sul-sul.........................................- 91 -

2.3.1 A atual relevância do “Sul” no campo geoepistêmico e geopolítico mundial ......- 92 -


2.3.2 O discurso de cooperação sul-sul do governo brasileiro e a chegada da Vale em
Moatize ................................................................................................................ - 101 -
3. A CHEGADA DA VALE E OS DESLOCAMENTOS COMPULSÓRIOS EM
MOATIZE.................................................................................................................. - 105 -

3.1 O ciclo persistente de deslocamentos compulsórios no Vale do Zambeze: dos


aldeamentos coloniais às aldeias comunais .............................................................. - 107 -

3.1.1 A política colonial de controle populacional: os deslocamentos compulsórios para os


aldeamentos coloniais ........................................................................................... - 108 -
3.1.2 A política socialista de modernização rural: os deslocamentos populacionais para as
aldeias comunais................................................................................................... - 125 -
3.2 A atual política de desenvolvimento nacional: megaprojetos de mineração e os
deslocamentos compulsórios para os centros de reassentamento - o projeto Vale em
perspectiva.............................................................................................................. - 139 -

- 15 -
4. DESLOCAMENTOS COMPULSÓRIOS E OS DIREITOS TERRITORIAIS DAS
COMUNIDADES LOCAIS ........................................................................................ - 156 -

4.1 Direitos territoriais e a “subalternização” das comunidades locais em Moçambique. -


160 -

5. UMA PONTE SOBRE O ATLÂNTICO: A ATUAÇÃO DA VALE NO CANADÁ E NA


AMAZÔNIA BRASILEIRA ....................................................................................... - 185 -

6. DESLOCAMENTO COMPULSÓRIO E A VIDA COTIDIANA NOS NOVOS


“LUGARES”: A COMUNIDADE DE CATEME EM PERSPECTIVA...................... - 200 -

6.1 “O que fazia lá não consigo fazer aqui”: de um lugar de diversas alternativas de
reprodução social e econômica para um lugar de alternativas limitadas ................. - 217 -

6.2 “Agora sou motoqueiro, a vida não pode parar”: em busca de novos campos de
possibilidade de sobrevivência cotidiana ................................................................. - 235 -

7. PARA FECHAR A NARRATIVA .......................................................................... - 238 -

8. PRINCIPAIS INTERLOCUTORES....................................................................... - 244 -

9. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................... - 246 -

- 16 -
Mapa 01: Localização de Moçambique

Fonte: Elaborado por Santos Filho. M.H.N. ano de 2015

- 17 -
Mapa 02: Divisão administrativa de Moçambique

Fonte: Elaborado por Santos Filho. M.H.N. ano de 2015

- 18 -
1. PARA ABRIR A NARRATIVA

A presente tese é o corolário de um conjunto de reflexões que venho


desenvolvendo sobre os efeitos sociais dos projetos de mineração em Moçambique. A
história da sua elaboração começa em 2013 com a minha chegada na cidade de Belém,
Estado do Pará, território da Amazônia Brasileira, após ter sido aprovado no Programa
Estudante Convênio de Pós-Graduação (PEC-PG) para cursar Mestrado em Ciências
Sociais, com ênfase em Sociologia no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais
(PPGCS) da Universidade Federal do Pará (UFPA). Logo no primeiro semestre daquele
ano, entrei, no âmbito das aulas do mestrado, em contato com as discussões acadêmicas
sobre a Amazônia brasileira através da disciplina de Tópicos Especiais em Ciência
Humanas: Sociologia de Ação Local e Desenvolvimento Sustentável, então ministrada
pelo professor Pierre Teisserenc e pela professora Maria José Aquino Teisserenc. As
discussões, no âmbito (da) dessa disciplina, sobre território, ambiente, ação local, ação
pública, desenvolvimento sustentável, ambientalização e participação dos atores nas
ações de conservação ambiental e de desenvolvimento do território, bem como sobre
outros pontos ligados à governança, governação e mobilização e estratégias de atores
locais, me inspiraram a lançar um olhar, por meio de dados secundários - relatórios,
matérias de jornais e algumas etnografias - sobre as ações de mobilização e resistências
das populações do distrito de Moatize, Província de Tete, região central de
Moçambique, face ao avanço dos megaprojetos de mineração, naquela realidade
sociocultural.

No segundo semestre daquele mesmo ano, conheci a professora Sonia Barbosa


Magalhães, professora na disciplina de Seminário de Tese e minha atual orientadora.
Esse fato me permitiu ter contato com suas pesquisas - pesquisas essas que vem
marcando, num autêntico diálogo entre teoria e prática, a sua trajetória ou vida
acadêmica e política, no sentido antropológico do termo - sobre os efeitos sociais das
barragens hidrelétricas para as populações camponesas da Amazônia Brasileira. O
diálogo com a professora Sônia, sobre suas produções e pesquisas, me inspirou a pensar
sobre os processos de deslocamento compulsório das populações e “comunidades
locais”1 em Moçambique incentivados, por um lado, pelos grandes projetos de

1Definem-se no âmbito da Lei de Terras como “comunidades locais” o “agrupamento de famílias e


indivíduos, vivendo numa circunscrição territorial de nível de localidade ou inferior, que visa à

- 19 -
mineração no distrito de Moatize, província de Tete, região central de Moçambique; e,
por outro, pela atual tensão político-militar envolvendo o grupo armado da RENAMO e
as Forças de Defesa e Segurança (FDS), dois protagonistas da guerra civil pós-
independência terminada em 1992. Ou seja, o projeto de pesquisa para minha tese foi
construído num contexto “parcialmente diaspórico” – no sentido em que o termo é
abordado pelos teóricos dos estudos pós-coloniais (HALL, 2003, GILROY, 2001) –
num país subalterno (Brasil) sobre uma realidade do terceiro mundo (Moçambique),
onde, usando as palavras de Mignolo (2003), projetos globais inerentes ao avanço do
capital internacional se encontram de forma violenta com histórias das populações da
região.

Desde o início de 2000, vem se registrando em Moçambique um avanço de


megaprojetos2 de desenvolvimento, incentivados por uma política governamental de
desenvolvimento que vem cada vez mais se centrando, tal como acontece na Amazônia
brasileira, na exploração e exportação de commodities3 . O aumento da procura por
recursos minerais, bem como do seu preço no mercado internacional tornaram
Moçambique um “atrativo” para as grandes empresas multinacionais ligadas, não só, à
área de exploração mineral, como também à área de hidrocarbonetos, de exploração
energética e de agronegócio. Tal “atratividade” contribuiu para o aumento de
Investimentos Diretos Estrangeiros (IDE) na área extrativa. De 2009 a 2014, por
exemplo, do total de investimento atraído pelo Estado moçambicano, aproximadamente
70% foi destinado ao sector extrativo (MIMBIRE, 2016).

salvaguarda de interesses comuns através da proteção de áreas habitacionais, áreas agrícolas, sejam
cultivadas ou em pousio, florestas, sítios de importância cultural, pastagens, fontes de água e áreas de
expansão” (MOÇAMBIQUE, 1997). Para uma abordagem mais profund a sobre a ideia de comunidades
locais ver capítulos 03 e 04.
2Mosca e Selemane (2011) denominam de megaprojetos aos empreendimentos que tem recebido
investimentos iniciais não inferiores a 500 mil dólares americanos. Nesta tese grande projeto e
megaprojeto serão utilizados como sinônimos.
3Embora no estado “pós -colonial” moçambicano essa lógica desenvolvimentista comece de fato na
década 80 com a introdução do neoliberalismo econômico baseada na adesão de Moçambique às
instituições de Bretton Woods o que abriu espaço para a entrada nos diversos setores de Investimentos
Diretos Estrangeiros (IDE). As mudanças legislativas realizadas na década 90 acompanhando a nova e
primeira constituição que estabelece o multipartidarismo e democracia neoliberal aos moldes ocidentais,
bem como, a aprovação da lei de petróleo (lei nº03/2001) e da lei de Mineração (lei nº 14/2002)
estabeleceram um contexto jurídico geral para o crescimento rápido dos setores de mineração e do
petróleo, dando espaço para a materialização dessa lógica de desenvolvimento baseada na exploração e
exportação de commodities. Por outro lado, foi a partir de 2000 que começou a se registrar, na área de
mineração e de hidrocarbonetos, um aumento de investimentos, que variam de 400 milhões de dólares em
diante.

- 20 -
Os investimentos na área de hidrocarbonetos estão sendo incentivados pela
descoberta de significativas quantidades de gás natural na Bacia do Rovuma, Região
Norte de Moçambique, que segundo o discurso que paira na arena pública, coloca o país
numa das maiores reservas mundiais. Moçambique conseguiu atrair para este setor
algumas das maiores multinacionais mundiais na área petrolífera como, por exemplo, a
multinacional italiana ENI, bem como as multinacionais americanas Anadarko e
ExxonMobil, esta última considerada a maior multinacional privada do setor de petróleo
e gás no mundo. No que concerne ao agronegócio, destaca-se o programa
ProSAVANA, um projeto de cooperação trilateral entre o Japão, através da Japanese
Internacional Cooperation Agency (JICA), Brasil, através da Agência Brasileira de
Cooperação (ABC), e Moçambique, através do Ministério da Agricultura de
Moçambique (MINAG), que busca alavancar o “desenvolvimento agrícola” do Corredor
de Nacala, Província de Nampula, Região Norte de Moçambique. Do lado brasileiro se
destaca também a participação da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária
(Embrapa), da Associação Brasileira de Assistência Técnica e Extensão Rural
(ASBRAER) e da Fundação Getúlio Vargas (FGV); agora com a sua parceira Vale
(SANTARELLI, 2016). O ProSAVANA se enquadra na iniciativa de Cooperação Sul-
Sul da política externa brasileira. Contudo, tem sido alvo de críticas de diversas
organizações da sociedade civil moçambicana4 como a União Nacional dos Camponeses
(UNAC); a Ação Acadêmica para o Desenvolvimento das Comunidades Rurais
(ADECRU); a Associação de Apoio e Assistência Jurídica às Comunidades (AAAJC); a
Comissão Diocesana de Justiça e Paz de Nacala (CDJPN); bem como a Justiça
Ambiental (JA); que temem um processo de usurpação do território das populações
camponesas5 .

No âmbito da mineração, a maior concentração de Investimentos Diretos


Estrangeiros se encontra na província de Tete, região central de Moçambique. Até o ano
de 2012 eram mais de 245 concessões e licenças de exploração mineira ocupando uma
área de 3,4 milhões de hectares, 34% da província de Tete (HRW, 2013). Somando as

4Ver, por exemplo: https://adecru.wordpress .com/2015/08/17/vale-e-prosavana-simbolizam-o-saque-dos-


recursos-e-violacao-de-direitos-das-comunidades-sobre-a-terra-denunciam-organizacoes-mocambicanas-
no-brasil/. Acesso no dia 18/05/2016.
5As sociedades camponesas possuem uma forma específica de produção e organização socioeconômica
que tem como base a força de trabalho familiar. A produção visa à reprodução socioeconômica dessa
unidade familiar. Além duma forte e estreita relação com o território, a autonomia de produção e a
mínima integração ao mercado constituem uns dos elementos centrais dessa forma específica de produção
e organização social e econômica (CHAYANOV, 1924; VELHO, 1969).

- 21 -
licenças pendentes e as que ainda estavam sendo avaliadas, o percentual territorial de
interesse para as mineradoras alcançou no ano de 2012 aproximadamente 60% de toda a
província de Tete (GALLO, 2016, p. 240). É nesta província, concretamente no Distrito
de Moatize, que se localiza o “Projeto de Moatize” de exploração de carvão mineral
operado pela multinacional brasileira Vale. Em 26 de junho de 2007, a mineradora
assinou, por meio da sua subsidiária Rio Doce Moçambique Limitada (RDML)6 -
entidade de direito moçambicano criada para deter a licença de exploração,
processamento, transporte, armazenamento e comercializado de carvão mineral – um
contrato equivalente a um prazo de 25 anos renováveis por mais 25 anos, para
exploração em mina de céu aberto do carvão de Moatize numa área estimada em 23.780
hectares, incluindo áreas de ocupação imemorial ou datada pelas populações e
comunidades locais (ver mapa 06). Neste contexto, a implementação da primeira fase
do projeto de Moatize, inerente à instalação da mina, obrigou o deslocamento
compulsório de 1.365 famílias7 dos bairros Chipanga, Mithethe, Bagamoyo e Malábue
no distrito de Moatize. Deste número, 714 famílias classificadas como rurais foram
deslocadas para a Comunidade8 de Cateme – nossa principal área de pesquisa – a
aproximadamente 30 km dos seus antigos lugares de moradia e trabalho; e 289
classificadas como urbanas para o bairro 25 de Setembro, na vila sede de Moatize
(GOVERNO DISTRITAL DE MOATIZE, 2015). As famílias restantes foram
deslocadas mediante indenização para reconstruírem pelos seus próprios caminhos suas
vidas em outros locais.

Importa destacar que os interesses da Vale em Moçambique não se resumem


exclusivamente às minas de carvão mineral de Moatize. A multinacional é a maior
investidora do Corredor Logístico de Nacala (CLN), junto com os Caminhos de Ferro
de Moçambique (CFM). O CLN entrou oficialmente em funcionamento em maio de
2017 (NOGUEIRA, 2017). Nesse projeto a multinacional investiu na construção de 912

6Detida pela Vale com 95% das ações, a Vale Mocambique Ltda, congrega tambem na suas estrutura
acionista 5% dos investimentos pertencentes ao governo moçambicano; em 2014 a Vale vendeu 15% da
sua participação à Japonesa Mitsui.
7 O número médio de pessoas por família em Moçambique é 5 (INE, 2015).
8 A denominação do que é Comunidade em Moçambique é muito impreciso embora seja um conceito

muito usado, a exemplo de “comunidades locais”. Em termos espaciais e de ordenamento administrativo


Comunidade de Cateme equivale a Povoação que de acordo com Constituição de 2004 é menor
circunscrição territorial que uma Localidade, que por sua vez é menor que Posto Administrativo, Distrito
e Município assim sucessivamente. De fato, Cateme, pertence a Localidade de Kambulatsitsi, Posto
Administrativo do mesmo nome, distrito de Moatize. Para mais informações sobre a ideia de comunidade
em Moçambique ver capitulo 04.

- 22 -
Km de linha férrea que liga o distrito de Moatize ao distrito de Nacala a Velha,
província de Nampula, Região Norte de Moçambique, passando pela República do
Malawi. Bem como do porto de escoamento de carvão na mesma região. Dentre vários
efeitos sociais e ambientais do projeto, estima-se que milhares de famílias foram
compulsoriamente descolocadas ao longo do Corredor de Nacala (ROSSI, 2015;
SANTARELLI, 2016; NOGUEIRA, 2017; GARCIA; KATO, 2016; KATO; GARCIA,
2017). Ainda na província de Nampula, concretamente no distrito de Monapo, a Vale
encontra-se envolvida em ações de pesquisa para a exploração das recém-encontradas
reservas de fosfato que colocam o país na posição de terceiro maior produtor mundial
abrindo perspectivas para o mercado de fertilizantes (SILVA, 2014, p. 27). A empresa
tem interesses também no campo agroindustrial com destaque para o programa
ProSAVANA (SANTARELLI, 2016).

Após o deslocamento compulsório dessas populações, em 2011 a Vale começou


a produção. Em 2013, atingiu uma produção de 4 milhões de toneladas, o que
correspondia a 40% da capacidade instalada de produção que é equivalente a 11 milhões
de toneladas ao ano. Naquele mesmo ano, a tensão política que era evidente no campo
discursivo – por meio da política de acusações entre os atores políticos na arena pública
– transformou-se numa “tensão político-militar” envolvendo o grupo armado do partido
RENAMO e as FDS do Governo de Moçambique, liderado pelo partido FRELIMO,
dois protagonistas da guerra civil que teve o seu “fim” no ano de 1992 com a assinatura,
em Roma, do Acordo geral de Paz (AGP). Os confrontos entre as partes tiveram
inicialmente epicentro em algumas áreas da província de Sofala, na região central de
Moçambique, principalmente ao longo da Estrada Nacional n° 1 (EN1), embora tenham
existido registros de algumas ações nas províncias de Nampula, na região norte, e
Inhambane, na região sul. Estes confrontos mergulharam o país, duas décadas depois do
fim da guerra civil, numa autêntica violência armada. No ano de 2015, os confrontos se
alastraram para algumas áreas da província de Manica e da Província de Tete, na região
central de Moçambique, incluindo justamente o distrito de Moatize.

Uma das consequências diretas da atual violência armada foi, tal como nos
grandes projetos, os deslocamentos compulsórios de diversas populações. Esse é um
dos principais pontos em comum entre eles. Destacam-se no âmbito do atual conflito
duas categorias: as populações que compulsoriamente se deslocaram para outras áreas
fora de risco dentro do território nacional, que na literatura especializada são

- 23 -
denominados de deslocados internos (internally desplaced Persons “IDPs”) e as
populações que compulsoriamente se deslocaram para fora do país, o que na literatura
especializada se denomina- “refugiados”, refugges (GUICHAOUA, 2004). Atravessar
ou não uma fronteira nacional constitui, do ponto de vista da legislação internacional, a
diferença fundamental entre deslocados internos e refugiados, embora sejam duas
categorias que apresentam caraterísticas sociológicas comuns como, por exemplo, a
experiência de violência, a partida forçada, a perda e o recomeço (VIVET, 2015, p. 13).

Dados numéricos do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados


(ACNUR), sobre as populações que compulsoriamente se deslocaram para fora do país,
indicam que até janeiro de 2016 tinham dado entrada na Vila de Kapise, distrito de
Mwanza, na República de Malawi, devido ao alastramento do campo das ações militares
para a província da Tete, 1.297 (mil e duzentos e noventa e sete) pessoas moçambicanas
das quais dois terços eram mulheres e crianças (UNHCR, 2016a). Esse número subiu
para 6.000 (seis mil) pessoas no mês de fevereiro (UNHCR, 2016b) e para 10.000 (dez
mil) pessoas no mês de março de 2016 (UNHCR, 2016c). A maior parte se encontrava
alojada no Centro de Acolhimento de Kapise. Este Centro surgiu de forma emergencial
em resposta ao aumento do fluxo de deslocados, pela tensão político-militar em
Moçambique. O número de Refugiados abriu a possibilidade de transferência das
populações moçambicanas deslocadas pela tensão político-militar para o campo de
Refugiados de Luwani, também localizado na República de Malawi. Este que outrora
acolhera milhares de refugiados moçambicanos durante a guerra civil terminada em
1992 - e que se encontrava encerrado desde 2007 - foi reaberto em março de 2016 pelo
governo de Malawi (EUSÉBIO; MAGALHÃES, 2018a).

Quanto às populações que compulsoriamente se deslocaram para outras áreas


dentro do território nacional, somente no distrito de Gorongosa, província de Sofala,
região central de Moçambique9 , um dos principais epicentros das ações do conflito
armado, o medo e a incerteza obrigaram o deslocamento compulsório de
aproximadamente 7.000 (sete mil) pessoas até o ano de 2014 (DEUTSCHE WELLE,
2014a). No caso da província de Inhambane, dados do Instituto Nacional de Gestão de

9Moçambique subdivide-se em três grandes regiões: a região Norte composta pelas províncias de
Nampula, Cabo-Delgado e Niassa; a região Sul composta pelas províncias de Maputo, Gaza e Inhambane;
e a região central que, além da província de Sofala, é também composta pelas províncias de Manica, Tete
e Zambezia. Não existe uma base legal para essa divisão que paira no imaginário dos moçambicanos. A
Constituição de 2004 prevê a divisão administrativa em províncias, distritos, postos administrativos,
localidades e povoações.

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Calamidades (INGC) delegação da província de Inhambane, órgão responsável, dentre
diversas atribuições, pelo acolhimento e assistência aos deslocados internos, indicam
que a movimentação dos guerrilheiros da RENAMO, naquela província 10 , obrigou,
também por medo e incerteza, o deslocamento compulsório de 1 228 (mil e duzentos e
vinte oito) famílias somente no distrito de Homoine, província de Inhambane, região sul
de Moçambique, que foram acolhidas no Centro de Acolhimento de Chinjinguire, no
mesmo distrito11 .

O “fechamento institucional” - falamos em concreto de todo o conjunto de


obstáculos formais e informais que impedem o exercício de uma pesquisa em certas
instituições – e o “secretismo institucional” - que se manifesta por uma política
perversa formal ou informal que impede o acesso a algumas informações em algumas
instituições públicas ou privadas (EUSÉBIO, 2015), que caracterizam o INGC, nos
impedem de apresentar dados mais completos e atualizados sobre os Centros de
Acolhimento existentes, número de pessoas ou famílias nos respetivos centros e outras
informações relevantes sobre os deslocados internos pela atual tensão político-militar
em nível nacional. Por exemplo, em 23 de fevereiro 2016 submetemos um requerimento
à Direção Geral do INGC, Maputo, solicitando o acesso a informações sobre: (i) os
centros de acomodação ou de reassentamento existentes ao nível nacional; (ii) pessoas
ou famílias deslocadas pelas calamidades naturais que se encontram nos Centros de
Acomodação; (iii) pessoas ou famílias deslocadas pela tensão político-militar que se
encontram nos Centros de Acomodação; e (iv) pessoas ou famílias que deram entrada
em Moçambique devido à xenofobia na África do Sul, referentes aos anos de 2013 a
atualmente. No mesmo mês, o requerimento foi despachado e remetido para o Centro
Nacional Operativo de Emergência (CENOE) do INGC, para os devidos procedimentos;
contudo, até o encerramento da primeira fase do trabalho de pesquisa em Moçambique -
em junho de 2016 - o documento ainda aguardava neste setor o despacho do respetivo
Diretor (EUSÉBIO; MAGALHÃES, 2018a). As permanentes palavras, “volta amanhã,
hoje o diretor não está…”, “volta na próxima semana, o documento ainda não foi

10Inexistem registros sobre ocorrência de confronto direto entre as Forças de Defesa e Segurança e os
Guerrilheiros da RENAMO. Segundo dados oficiais foram os rumores sobre a movimentação de
guerrilheiros da RENAMO na região que fez com que as populações das áreas mais rurais se refugiassem
na vila sede de Homoine em busca de refúgio. Memorias da guerra civil ainda prevalecem na região tal
como destaca o antropólogo Luís Henrique Passador (2016; 2018) e advogamos que elas devem ter
contribuído para decisão de partir mediantes tenebrosos rumores.
11Dados obtidos no informe do INGC de Inhambane sobre o ponto da situação de emergência, março de
2014.

- 25 -
despachado…”, “volta outro dia, o diretor viajou …”, dos servidores do CENOE se
tornaram o discurso comum aos nossos ouvidos.

Neste contexto, além dos deslocamentos compulsórios atribuídos ao que se


denomina de “desastres naturais” ou “causas climáticas” (cheias e ciclones) - um
fenômeno também contumaz em Moçambique, - registrou-se ocorrência de duas formas
de deslocamentos compulsórios das populações: os provocados por megaprojetos de
“desenvolvimento” e os provocados pela tensão político-militar. Algumas das questões
que surgiram face a esta constatação foram: Como esses dois processos se efetivam?
Quais as suas características? Quais são os seus efeitos socioculturais e econômicos?
Qual tem sido a realidade da vida cotidiana das famílias deslocadas? Quais os prováveis
pontos simétricos entre essas duas formas de deslocamentos compulsórios?

No campo científico, concretamente nas ciências sociais, um fato que é evidente


na literatura sobre os deslocamentos compulsórios é a existência de um “antagonismo
teórico” ou uma dicotomia entre essas duas formas de deslocamentos - inexistindo
estudos, por exemplo, que numa análise comparativa explorem prováveis proximidades
ou semelhanças entre ambas formas de deslocamentos compulsórios – influenciados
principalmente pela distinção causal em função de cada contexto sociocultural. No
Brasil, por exemplo, existe uma forte abordagem sobre os deslocamentos compulsórios
provocados por grandes projetos e atividades de “desenvolvimento” ou de
“modernização”, sejam elas resultantes de grandes obras de barragens hidrelétricas,
como é o caso de Sobradinho (SIGAUD, 1996, DAOU, 1996); de Tucuruí
(MAGALHÃES, 1996; 2007), de Belo Monte, no estado do Pará (MAGALHÃES;
MAGALHÃES, 2012; ZHOURI, 2012b; MELLO, 2013; FLEURY, 2013;
MAGALHÃES; CARNEIRO DA CUNHA, 2017); em Foz de Chapecó, nos estados de
Rio Grande do Sul e Santa Catarina (VARGAS; HASS; AMPOLINI, 2013); em Luís
Eduardo Magalhães, no estado de Tocantins (SANTANA; PARENTE, 2013); em Irapé,
Vale do Jequitinhonha, no estado de Minas Gerais (ZHOURI; ZUCARELLI, 2008); em
Samuel, no estado de Roraima (SIMONIAM, 1996); em Itaparica, no estado da Bahia
(CARVALHO, 1996) e em Balbina (BAINES, 1996), no estado do Amazonas só para
citar alguns exemplos, que foram e continuam sendo campo de vários estudos
socioantropológicos. Além dos deslocamentos compulsórios provocados pelas grandes
obras de barragens hidrelétricas, existem aqueles provocados pelas atividades de
exploração mineral; pelo avanço do agronegócio, bem como pelos planos de
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ordenamento e restruturação urbana (SILVA; PEIXOTO, 2015; PEIXOTO; SILVA,
2016).

Em contrapartida, em vários países africanos assolados por tensões políticos


militares12 , como é o caso de alguns países da África Central, como o Burundi, Uganda
e Ruanda (GUICHAOUA, 2004), as discussões estão mais centradas nos deslocamentos
provocados por tensões políticos militares sejam eles internos ou refugiados. Embora
em vários desses países existam também megaprojetos de desenvolvimento – a
República Democrática do Congo é um dos países da África onde a indústria extrativa
vem convivendo quase que “amigavelmente” com a guerra civil na região norte. O
mesmo se verifica na região do Delta do Níger, na Nigéria, região rica em petróleo e
assolada pela guerra civil desde a década 90, só para citar alguns exemplos—raros são,
por exemplo, estudos socioantropológicos que tracem uma proximidade ou façam uma
análise comparativa ou ainda que busquem explorar pontos simétricos entre as duas
formas de deslocamentos. No caso da América Latina, um dos exemplos é a
Colômbia13 , onde coexistem as duas formas de deslocamentos compulsórios – os
provocados pelos projetos e atividades de mineração e agronegócio, principalmente na
Colômbia do pacífico ocidental e os provocados pela guerra civil , entre, por um lado, as
Forças Militares da Colômbia e, por outro, as Forças Armadas Revolucionárias da
Colômbia (Farc) e o Exército de Libertação Nacional (ELN) (AGIER, 2006;
RAMÍREZ, 2014; CUBIDES; DOMÍNGUEZ, 1999; RUSCHEINSKY; BALTAZAR,
2013; BUILES, ARIAS; MINAYO, 2008; GONZÁLEZ GIL, 2015; IBÁÑEZ;
VELÁSQUEZ, 2008; PIÑEROS, 2012, só para citar alguns exemplos).

Portanto, a primazia na distinção causal cria uma distinção de categorias que,


por sua vez, leva a um dualismo e antagonismo teórico que caracteriza os estudos sobre

12Desde a década 60, início dos processos de independência colonial, vários países africanos
experienciaram guerras constantes que não pouparam nenhuma região desde o norte ao sul, de leste a
oeste, desde as guerras na Argelia e Marrocos; a guerra da Libia; as g uerras no Mali e Niger; as guerras
da Ethiopia e Eritreia; a guerra dos Tuaregues; as guerras do Txad, da Somalia, da Liberia, da Serra Leoa,
da Costa do Marfim, da Nigéria, do Congo; as guerras do Rwanda; as guerras das antigas Rodesias, as
guerras de Moçambique, só para citar alguns exemplos, que mataram milhões de africanos, provocaram
milhões de deslocados e minaram e ainda minam a cultura de paz e a construção de nações democráticas
(MUNANGA, 2016).
13Desde a década 60 a Colômbia vive uma guerra civil que já provocou milhões de mortos e deslocados.
Em 26 de setembro de 2016, o governo colombiano e as Farc-Ep chegaram a um acordo de paz, que foi
rejeitado num plebiscito realizado no dia 03 de outubro de 2016. No dia 14 de Novembro de 2016, as
Farc-Ep e o governo colombiano chegaram a um novo acordo para pôr fim a aproximadamente 50 anos
de guerra civil.

- 27 -
os deslocamentos compulsórios das populações. Isso é particularmente visível na
literatura extra-academia, notadamente no Banco Mundial. A literatura do Banco
Mundial categoriza de reassentamentos involuntários (involuntary resettlement) a
mobilidade das populações forçadas pelos grandes projetos de “desenvolvimento” que,
importa frisar, na maioria desses grandes projetos é um dos maiores financiadores,
ignorando ou invisibilizando, desse modo, a “compulsoriedade” e o caráter coercivo do
próprio processo. E utiliza a categoria deslocamento forçado (forced desplacement) para
designar a mobilidade das populações forçada pela violência armada ou guerras cíveis.
Não podemos cometer o erro de reproduzirmos essa postura na academia para não
cairmos ingenuamente na ideologia camuflada dos atores interessados – tendo em conta
que essas categorias refletem um conteúdo político e ideológico de cada ator –,
ignorando os pontos de semelhanças, simetrias e proximidades que dariam uma reflexão
inovadora à problemática dos deslocamentos compulsórios como um todo (EUSÉBIO;
MAGALHÃES, 2018a).

A inexistência de estudos socioantropológicos que explorem uma análise


comparativa, ou, ainda, que busquem explorar pontos simétricos entre as duas formas de
deslocamentos, em função da prevalência de uma dicotomia na teoria sobre as duas
formas de deslocamentos compulsórios, associado ao fato de se registrar, tal como
destacamos acima, a ocorrência das duas formas de deslocamentos compulsórios em
Moçambique contribuiu para que a nossa proposta de tese fosse direcionada,
inicialmente, no sentido de uma análise comparativa entre essas duas formas de
deslocamento compulsório naquele contexto sociocultural. O contexto moçambicano
nos permitia isso. O nosso objetivo inicial foi “fazer uma análise do estatuto teórico dos
deslocamentos compulsórios provocados pelos projetos de desenvolvimento e por
tensões político-militares, tendo como horizonte espacial reflexivo o contexto de
Moçambique”. A análise se concretizaria, especificamente, em: “descrever os processos
de deslocamento compulsório provocados pelos projetos de exploração mineral, no
distrito de Moatize, e por tensões político-militares no distrito de Gorongosa”; “avaliar a
vida cotidiana, a reprodução social e econômica das comunidades deslocadas em ambos
os processos” e “mostrar as articulações teóricas entre as duas formas de deslocamentos
internos”. A tese que buscávamos defender era a de que os deslocamentos compulsórios
provocados por grandes projetos, embora previamente planificados e executados,
apresentavam os mesmos efeitos sociais – a violência do estado e o sofrimento social –

- 28 -
dos deslocamentos compulsórios provocados pela instabilidade política (guerra civil,
conflito político-militar) que são, por sua vez, motivados por medo e incerteza. Ambos
incidiam de forma semelhante na capacidade de reprodução social e econômica das
comunidades atingidas.

Isso implicaria a realização do trabalho de campo em duas áreas distintas,


nomeadamente na Comunidade de Cateme, distrito de Moatize, na província de Tete,
Região Central de Moçambique, onde foram compulsoriamente deslocadas as
populações classificadas de rural no âmbito da implementação do projeto Moatize,
operado pela multinacional brasileira Vale. E no Distrito de Gorongosa, na província de
Sofala, também na região central de Moçambique, área mais assolada pela violência
armada e onde se registraram, tal como evidenciamos acima, somente no ano de 2014, o
deslocamento compulsório de aproximadamente 5 mil pessoas. As vicissitudes do
campo fizeram com que os objetivos iniciais da pesquisa que tendiam para uma análise
comparativa entre as duas formas de deslocamento compulsório acima descritos
sofressem alterações. É que, depois de uma relativa calma em 2014 – incentivada de
certa forma pelo “Acordo de Maputo” que foi um acordo de “cessação das hostilidades”
ratificado pelo então Presidente da República de Moçambique, Armando Emílio
Guebuza e pelo presidente do partido RENAMO, Afonso Dhlakama, como resultando
de um diálogo que vinha ocorrendo entre partes no Centro de Conferência Joaquim
Chissano, na cidade de Maputo, capital do país, região sul de Moçambique—verificou-
se, desde finais de 2015, o recrudescimento das hostilidades e violência armada entre as
partes beligerantes, na província de Sofala, se alastrando para algumas áreas da
província de Manica e Tete, ambas na região central de Moçambique. Um dos efeitos
diretos desse recrudescimento foi, por exemplo, a dificuldade de circulação de pessoas e
bens na região central de Moçambique, devido aos constantes ataques da RENAMO,
principalmente ao longo da Estrada Nacional Número 1 (EN1). Esse novo cenário
tornava o acesso ao distrito de Gorongosa e concretamente o trabalho de campo com as
populações deslocadas internamente pela tensão político-militar no distrito de
Gorongosa um empreendimento ou aventura de risco, impossibilitando, desse modo, no
contexto atual, a proposta inicial de análise comparativa entre as duas formas de
deslocamento compulsório.

A impossibilidade da análise comparativa nos fez direcionar o nosso olhar


somente para os megaprojetos de mineração no distrito de Moatize, com o objetivo

- 29 -
geral de analisar o processo de deslocamento compulsório das populações da região em
consequência da implementação do projeto Moatize de mineração, operado pela
multinacional brasileira Vale, bem como a realidade de vida cotidiana das populações
classificadas como rurais compulsoriamente deslocadas à Comunidade de Cateme, a
aproximadamente 30 Km do seu local original de vivência, habitação, produção e
reprodução social, econômica e cultural.

Na elaboração da tese, buscamos priorizar as histórias e narrativas individuais ou


coletivas de alguns sujeitos que compõem esse grupo das populações compulsoriamente
deslocadas para Comunidade de Cateme. Como objetivos específicos ao longo da tese
buscamos analisar a (i) encruzilhada dos megaprojetos de desenvolvimento na região do
Vale do Zambeze, bem como os contextos históricos e políticos que culminaram com a
chegada da Vale a Moatize enquanto marco da nova encruzilhada dos projetos de
desenvolvimento e progresso nacional na região do Vale do Zambeze; (ii) descrever,
com base nas narrativas das próprias populações e outros atores que acompanharam o
processo, as práticas e ações desenvolvidas pela Vale no processo de deslocamento
compulsório e explorar pontos de intersecção com outras formas de deslocamentos
compulsórios que foram executados na região desde o tempo colonial; (iii) examinar os
direitos territoriais das populações e comunidades locais perante outros direitos de uso e
aproveitamento da terra em Moçambique desde o tempo colonial e as implicações da
atual cartografia jurídica sobre a terra, não só na segurança jurídica do direito de
propriedade das comunidades locais, como também no processo de deslocamento
compulsório; (iv) explorar a realidade de vida atual na Comunidade de Cateme, local
onde foram “reassentadas” as famílias classificadas de rurais.

Ao longo da elaboração estabelecemos um diálogo com a literatura que analisa


a atuação da Vale em outros contextos socioculturais, com destaque para o Canadá, bem
como com a literatura sobre efeitos sociais dos grandes projetos implementados na
região amazônica para diversas populações tradicionais e povos indígenas. Advogo que
existem vários pontos em comum entre a Amazônia Brasileira e Moatize. O primeiro
deles, o qual consideramos o mais importante, é o fato de ambas as realidades serem
uma fronteira aberta de commodities aberta para o mundo, influenciada diretamente pelo
movimento de commodities internacionais que ocorre com o estímulo e apoio do
Estado, independentemente dos danos sociais – expulsão das populações—e ambientais
(LOUREIRO, 2012). A segunda é a prevalência de um ator em comum, o projeto
- 30 -
Moatize de exploração mineral é operado pela multinacional brasileira Vale, a mesma
que está em várias áreas da Amazônia brasileira de Carajás a Oriximiná. Em ambas as
regiões, os projetos são financiados pelo Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico e Social (BNDES. A primeira tese que buscamos defender surge desse
diálogo. A violência do deslocamento compulsório é uma caraterística intrínseca dos
megaprojetos independente dos contextos políticos e jurídicos de cada lócus em que
estão sendo implementados. Ou seja, existe um modelo hegemônico global de “grande
projeto” que tem a violência e a expropriação como parte inseparável, como “outra parte
da mesma moeda”. Um profundo dialogo foi também estabelecido, por um lado com a
literatura que aborda, por um lado, os efeitos sociais dos projetos exploração econômica
e a política de controle populacional (aldeamentos coloniais) desenvolvida no tempo
colonial, por outro, dos programas de modernização rural, socialização dos meios rurais
e cooperativização agrícola através das aldeias comunais desenvolvidos pelo regime
socialista pós-independência na região do Vale do Zambeze (ISAACMAN;
ISAACMAN, 2013, BORGES COELHO, 1998; 1993; ARAUJO, 1988; CASAL, 1996;
só para citar alguns). A segunda tese que buscamos defender surge desse diálogo. Há
mais continuidades – o deslocamento compulsório centralmente planificado, o sequestro
dos destinos das populações atingidas, o sofrimento social – do que cismas entre as
práticas violentas coloniais e o processo de implementação dos projetos de
desenvolvimento e modernização do estado “pós-colonial” moçambicano. Sendo assim
existe uma persistência de caráter violento do estado moçambicano na sua relação com
as comunidades locais, caráter violento esse que se intercecciona com o caráter violento
e autoritário da Vale.

1.1 Foco teórico e metodológico

A presente tese é teoricamente inspirada na antropologia do desenvolvimento e


nos estudos pós-coloniais. (1) A antropologia do desenvolvimento é resultado de um
engajamento cada vez maior dos antropólogos e outros intelectuais das ciências sociais
e das humanidades no geral para entender as questões ligadas ao colonialismo,
neocolonialismo, globalização, desenvolvimento econômico, sociocultural e político,
principalmente nos países do terceiro mundo. Pressupõe um conjunto de abordagens

- 31 -
que se contrapõem ao que se pode denominar de uma linha desenvolvimentista e
progressista sobre os grandes empreendimentos. Predominante desde a década de 1930
e suportada pelos engenheiros, economistas, experts de desenvolvimento, oficiais do
estado, representantes das industrias e empresas multinacionais envolvidos na
elaboração dos megaprojetos, a linha “desenvolvimentista e progressista” celebra os
grandes projetos como a base para o desenvolvimento e progresso dos estados
nacionais. Usando o discurso de custo e benefício eles enfatizam o “potencial de
transformação social e econômica” dos grandes projetos, embora reconhecendo algumas
das suas consequências negativas consideradas “não intencionais” (ISAACMAN;
ISAACMAN, 2013).

Uma dessas consequências são os deslocamentos compulsórios das populações


em várias realidades socioculturais onde os grandes empreendimentos são impostos,
vistos como um “mal menor para o alcance de um bem maior”. Os deslocamentos
compulsórios são efetivamente um processo impositivo e as empresas multinacionais
acionam segundo o antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almeida, “mecanismos
coercitivos, impondo aos demais o cumprimento dos seus desígnios, invariavelmente
apresentados como obras necessárias ao progresso, modernização e melhoria de vida de
todos” (ALMEIDA, 1996, p. 467). Nesse processo os órgãos governamentais e as
agências financiadoras assumem a “inevitabilidade” dos projetos justificando-os, por
meio de um discurso da sua necessidade e imperiosidade para o “bem-estar de todos”.
Os danos causados seriam vistos “como passíveis de serem reparados monetariamente
[...] mesmo que acarretando problemas morais e redefinições de identidade social, de
certo modo, irreparáveis” (ALMEIDA, 1996, p. 467). Contrariamente a essa lógica
desenvolvimentista e progressista os teóricos da antropologia do desenvolvimento
demostram uma maior preocupação com os efeitos socioculturais de políticas de
desenvolvimento implementados em vários países da América Latina e da África que
favorecem objetivos estratégicos e políticos capitalistas das grandes empresas
multinacionais (SCHRODER 1997). Neste contexto denunciam as perigosas
consequências sociais e ambientais dos empreendimentos, bem como a indiferença
quanto à questão humana e injustiça social, que caracteriza a implementação dos
grandes projetos de desenvolvimento, buscando, desse modo, conter o que Lewis
(2005), denomina de privilégio do domínio dos aspetos econômicos em relação aos
aspectos inerentes às diferenças socioculturais existentes na sociedade.

- 32 -
Os antropólogos Katy Gardner e David Lewis resumem as discussões da
antropologia do desenvolvimento em torno de três temas principais: (i) a análise crítica
sobre o discurso e trabalhos internos da “indústria de ajuda” comandada pelas ONGs;
(ii) os estudos sobre os efeitos sociais e culturais das mudanças econômicas; e (iii) os
estudos sobre os efeitos sociais e culturais dos projetos de desenvolvimento (e porque
eles falham em termos socioculturais) (GARDNER; LEWIS, 1996). Um lócus
privilegiado das discussões que se enquadram nessa linha da antropologia de
desenvolvimento tem sido a Amazônia Brasileira. Destaco a Amazônia brasileira por
dois motivos complementares: (i) o primeiro fundamenta-se no fato de que existe uma
vasta literatura sócioantropológica com viés crítico ao projeto desenvolvimentista da
região; (ii) segundo é a importância dessa literatura para compreender o contexto atual
de Moatize porque apesar de estarem separados espacialmente (e o encontro entre
ambos so é possível através de uma ponte sobre o atlântico), ambos têm em comum o
fato de terem passado por uma experiencia colonial e serem atualmente uma fronteira de
commodities que não se fixa nela, vai para fora para o benefício de outras regiões e
outros povos.

Foco de grandes projetos desenvolvimentistas desde a década de 1980, existe na


e sobre a Amazônia brasileira uma vasta literatura sócioantropológica que se baseia num
olhar crítico sobre a lógica desenvolvimentista e progressista dos grandes
empreendimentos que vem sendo imposto na região desde a ditadura militar,
denunciando os seus efeitos sociais, econômicos, culturais e ambientais, sobretudo para
os povos indígenas e para as populações tradicionais - quilombolas, ribeirinhas,
camponesas14 . A socióloga Violeta Loureiro, por exemplo, denuncia o caráter
preconceituoso da lógica desenvolvimentista e progressista imposta à Amazônia
brasileira, quanto à natureza, à cultura dos povos da região bem como ao capital,
trabalhos e atividades produtivas da região. O preconceito em relação à natureza se
manifesta, por exemplo, nas ideias de que, (i) a Amazônia seria um microssistema
homogêneo de floresta, rios e igarapés em toda a sua extensão; (ii) a natureza em geral,
e a floresta em especial, seriam a expressão do primitivismo e do atraso regionais, razão
pela qual os planos governamentais estimulam, sempre, sua substituição por atividades
ditas racionais, produtivas; (iii) a natureza amazônica seria resistente, superabundante,
auto- recuperável e inesgotável (LOUREIRO, 2002, p. 112). Esses preconceitos
14 Cf.
por exemplo, Magalhães (2007); Magalhães; Magalhães (2012); Loureiro (2002; 2012); Sant’Ana
Junior (2014; 2016); Zhouri (2012a); Marin, (2010).

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fizeram e continuam fazendo com que as políticas de desenvolvimento da região, a
cargo seja de organismos nacionais ou regionais se foquem em instrumentos e estímulos
diversos de exploração de recursos, sem cuidado ou distinção alguma, a quaisquer dos
ecossistemas existentes. Nesse contexto, atividades econômicas tão diversas como a
pecuária, a exploração madeireira, a mineração, a garimpagem e outras, que apresentam
diferentes impactos sobre a natureza, vêm sendo desenvolvidas indiferentemente sobre
áreas de florestas densas, nascentes e margens de rios, regiões de manguezais, nas
planícies em encostas, em solos frágeis ou nos raros solos bem estruturados. Muitas
dessas atividades produzem enorme e injustificável desperdício de recursos naturais
(LOUREIRO, 2002).

Quanto à cultura dos povos da Amazônia o preconceito se centra segundo a


autora, na ideia de que os povos da região viveriam em terras excessivamente vastas e
as ocupariam em atividades pouco rentáveis para o Estado e de forma incompatível com
a economia e a sociedade modernas. A sua cultura é vista como pobre, primitiva e tribal
e, portanto, inferior, nada tendo de positivo para o processo de desenvolvimento. Com
isso, vários grupos étnicos e sociais não têm sido priorizados tronando se invisíveis nas
políticas públicas para a região (LOUREIRO, 2002, p.114). Na mesma linha
preconceituosa os governos federal e estadual têm entendido que o desenvolvimento é
tarefa do grande capital. Assim somente o grande capital, o que exclui o homem da
região, teria o impulso capaz de desenvolvê-la. Atraindo grandes capitais para a região,
haveria como consequência “natural” a riqueza econômica, da qual, a longo prazo,
todos se beneficiariam.

Partindo dessa concepção o capital avançou e continua avançando sobre a região


amazônica através de empreendimentos que estão constituídos à base da produção de
semielaborados (como ferro, alumínio, óleo de palma) e matérias-primas (como gado e
soja), destinados à exportação. E esses empreendimentos não se integram à economia da
região e não produzem efeitos em cadeia, isto é, “não induzem à instalação de novos
empreendimentos decorrentes dos primeiros, porque visam, simplesmente, a exportação
de bens num estágio primário ou de semielaborados” (LOUREIRO, 2002, p. 118). Este
fato torna a região a amazônica um lugar de exploração, abuso e extração de riquezas
que não se fixa nela. Como consequência dessa lógica desenvolvimentista centrada
exclusivamente no grande capital, regista-se segundo Loureiro (2002) a criação e a
recriação do trabalho escravo; a expulsão e a morte de posseiros, índios, trabalhadores

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rurais em geral; a grilagem de terras; as queimadas; a poluição de rios, lagos; e muitos
outros. Efeitos sub-humanos e degradantes que sob a ótica desenvolvimentista e
progressista são entendidos como fenômenos característicos de uma fase inicial do
desenvolvimento amazônico, cuja tendência seria a de desaparecerem, a longo prazo.

Para a autora não restam dúvidas de que essa lógica desenvolvimentista imposta
à Amazônia faliu na sua missão de desenvolver a região; na medida em que é
excludente, compromete e destrói a rica multiculturalidade da Amazônia, leva à
homogeneização cada vez maior das sociedades, dissolvendo num todo comum as
particularidades e especificidades dos grupos sociais. Por outro lado, é concentrador de
renda, gera poucos empregos, espalha miséria em torno dos grandes empreendimentos
onde se implanta e provoca enormes danos ambientais (LOUREIRO, 2012, p. 529).
Como forma de superar esse desenvolvimento ambientalmente degradante e
culturalmente violento, Violeta Loureiro (2012) propõe, inspirada na ideia de
desenvolvimento alternativo de Boaventura de Sousa Santos, uma outra forma de
desenvolvimento na Amazônia que não se contente somente com questões econômicas,
mas que também englobe questões humanísticas. Um novo modelo de desenvolvimento
que: (i) privilegie o social, o local, o regional e os valores éticos, em especial a
solidariedade e a integração; (ii) respeite as populações da Amazônia , seus saberes e
suas identidades culturais, incorporando o conhecimento dos mesmos sobre a região,
especialmente aquele concernente à natureza e às relações com ela, bem como a
incorporação dessas populações como elementos importantes nas transformações
socioeconômicos em curso; (iii) revele o mundo amazônico como um conjunto
multicultural de diferentes grupos sociais, mais vivos e mais ricos culturalmente, ao
conservarem suas individualidades e especificidades; (iv) priorize a inclusão social das
comunidades e a sustentabilidade da natureza; (v) privilegie um diálogo mais
equilibrado, verdadeiro e solidário entre o Estado e as populações tradicionais; (vi)
reconheça que não há necessidade de desmatar nenhum hectare mais; (vii) promova a
mudança da base produtiva regional para completar as cadeias produtivas, até chegar a
finalizar produtos na própria região, contribuindo para que a Amazônia seja, não apenas
um lugar de abundância natural, mas também um lugar de justiça e de bem-estar social
(LOUREIRO, 2012, p. 537). Enfim um desenvolvimento que aproveite os saberes que
inclui grupos esquecidos ou excluídos socialmente e os engaje ativamente na produção
da vida social.

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Na mesma linha de reflexão, o antropólogo Horácio de Sant’Ana Junior
demonstra como o avanço de uma lógica capitalista de desenvolvimento que privilegia
aspectos econômicos ignorando as diferenças culturais existentes nas sociedades, vem
transformando a Amazônia brasileira num campo de conflitos entre os atores
econômicos que insistem em transformar o espaço e seus recursos em plena mercadoria
e os povos indígenas e outras comunidades tradicionais, como é o caso das
comunidades quilombolas, as quebradeiras de coco babaçu, os seringueiros, dentre
outros. Para os primeiros, o espaço e seus recursos são passíveis de apropriação privada.
Os segundos resguardam a terra e os recursos como patrimônio coletivo defendido pela
minoria coletiva e por regras de uso e compartilhamento muitas vezes ignorados pelos
planificadores. Estes, em sua maioria são oficiais distantes que têm pouca informação
sobre as condições, recursos e necessidades existentes na área ou comunidade que serão
afetadas pela intervenção dos tais grandes projetos ditos de desenvolvimento. Numa luta
contra hegemônica, essas comunidades se engajam num movimento de resistência e de
afirmação de identidades e de formas tradicionais de vivência e de apropriação dos
recursos. Um movimento “contra hegemônico”, de oposição a uma lógica capitalista de
desenvolvimento caraterizada por usurpação de terra, apropriação dos recursos, relação
degradante com a natureza e que não leva em conta os diferentes modos de vida dos
diferentes grupos sociais. Um exemplo concreto é a implantação de um modelo
genuinamente brasileiro de conservação e apropriação da natureza que são as reservas
extrativistas (SANT´ANA JÚNIOR, 2014). Inspirados no movimento de resistência
liderado por Chico Mendes no Acre, as quebradeiras de coco babaçu da região de Bico
de Papagaio no Maranhão – um estado com inúmeros conflitos de posse e uso dos
territórios provocados pela expansão da pecuária extensiva e a adoção de monoculturas
mecanizadas como soja, milho, eucalipto, incentivadas pelo Projeto Grande Carajás – se
lançaram num movimento de mobilização e resistência. Por um lado, contra os
fazendeiros que, com a aquisição de títulos de terras que até então eram de uso comum
passaram a cercar e impedir o acesso de quebradeiras de coco aos babaçuais que
tradicionalmente exploravam na sua atividade cotidiana de coleta. E por outro contra o
desmatamento dos babaçuais pela pecuária extensiva. Esse movimento de resistência
das quebradeiras de coco babaçu da região de Bico de Papagaio culminou com a criação
da primeira reserva extrativista no Estado do Maranhão (SANT´ANA JÚNIOR, 2014).

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Por sua vez a antropóloga Sonia Magalhães (2007) explorando a realidade da
vida das populações camponesas compulsoriamente deslocadas pela Barragem
Hidrelétrica de Tucuruí no rio Tocantins, a cerca de 300 km em linha reta da cidade de
Belém, capital do estado do Pará, denuncia o sofrimento social a elas imposta que se
configura em perdas e danos. Os relatos trazidos pela autora evocam uma “pluralidade
de situações de transformação, traduzidas em perdas, que contemplam desde o espaço
físico, o estranhamento da nova situação vivida até as relações cotidianas e de
proximidade” (MAGALHÃES, 2007, p. 193). O que evidencia que a intervenção sobre
o espaço físico provocado pelos deslocamentos compulsórios atinge violentamente as
relações sociais e desestrutura as formas especificas de organização, produção e
reprodução social das populações atingidas. A violência imposta a essas populações, nas
suas relações e estruturas sociais se manifesta na arena pública por um discurso de
“lamento e dor” (MAGALHÃES, 2007, p. 193). A falta de planejamento, a
improvisação dos procedimentos e a arbitrariedade foram segundo a autora
caraterísticas centrais do deslocamento compulsório em Tucuruí. A arbitrariedade se
manifestou, por exemplo, na classificação e contabilização das pessoas a partir de
critérios que privilegiavam o domínio econômico ignorando outros domínios
específicos das comunidades locais. O estudo de Magalhães (2007) e de vários outros
na mesma linha e que tratam sobre outros grandes projetos hidrelétricos na Amazônia
como Belo Monte (MAGALHÃES; CARNEIRO DA CUNHA, 2017) têm a
particularidade de denunciar os graves custos sociais e ambientais dos projetos
hidrelétricos na vida cotidiana das diversas populações das áreas atingidas.

Os trabalhos de Magalhães (2007), Loureiro (2002; 2012) e Sant’Ana Júnior


(2014) são exemplo de uma vasta literatura sócioantropológica que tem como lócus de
análise a Amazônia e que se fundamentam numa crítica à lógica desenvolvimentista e
progressista – foco da antropologia de desenvolvimento – imposta na região. Esta
literatura foi – e agora estou entrando no segundo motivo – de grande relevância para
pensar a realidade atual em Moatize. Não só, pelo fato de (i) a presente tese estar sendo
desenvolvida no contexto amazônico, no âmbito do Doutorado em Sociologia no
Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA) da Universidade
Federal do Pará (UFPA), e a proposta de estudo ser incentivada justamente pelo contato
com essa diversa literatura sócioantropológica. Mas também e principalmente, porque
advogo, tal como destaquei acima, que (ii) a Amazônia brasileira comunga em vários

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pontos com a realidade de Moatize, dentre elas a experiência de colonização, a
prevalência de uma lógica de violência e expropriação (SANTOS, 2007), de um
desenvolvimento violento aos moldes coloniais imposta de certa forma pelos mesmos
atores econômicos (o projeto Moatize de exploração mineral é operado pela
multinacional brasileira Vale, a mesma que está, em consórcios ou individualmente, em
várias áreas da Amazônia brasileira de Carajás à Oriximiná, só para citar alguns
exemplos) e porque ambas regiões, e esse é um dos pontos que considero extremamente
relevante, (iii) são uma fronteira de commodities aberta, parafraseando as palavras de
Loureiro (2012, p. 532), para o mundo e influenciada diretamente pelo movimento das
commodities internacionais e menos pelas políticas internas do país - com o estímulo e
apoio do Estado.

Desse modo, as teorias e discussões da antropologia do desenvolvimento nos


permitem um olhar crítico sobre a caraterística economicista, eurocêntrica e
instrumental do desenvolvimento. É economicista o discurso de desenvolvimento
reduzido ao crescimento econômico, centrando as análises em variáveis quantificáveis
ignorando as questões não quantificáveis tais como, a diversidade sociocultural e as
lógicas específicas de produção, organização e reprodução social das comunidades
locais. Eurocêntrica, quando se baseia exclusivamente no parâmetro ocidental de
sociedade como parâmetro universal de reprodução social, ignorando a variabilidade
dos contextos socioculturais. Instrumental, porque as suas práticas e discursos estão
acoplados aos interesses de grande capital – que ignora a diversidade sociocultural,
homogeneizando, por exemplo, as formas de produção, organização e reprodução social
das comunidades.

As teorias da antropologia do desenvolvimento, nos permitem também um olhar


crítico sobre ideia de que existe uma formula de desenvolvimento e modernização
universal que pode ser aplicada a todos os contextos indiferentes das suas peculiaridades
locais. É por essa razão que dentro das discussões da antropologia do desenvolvimento
demos primazia também, à teoria do post-development de Arturo Escobar (ESCOBAR,
2005a; ESCOBAR, 2005b) na medida em que é nesta linha de abordagem que se
encontram algumas das mais contundentes críticas ao desenvolvimento visto como um
“discurso” ocidental hegemônico e de dominação global.

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A teoria do post-development advoga uma necessidade radical de repensar as
concepções e os objetivos de desenvolvimento entendidos como reflexo, de uma
ideologia cultural ocidental hegemônica que busca impor a homogeneização de valores
materiais, de uma determinada forma de conhecimento e cria um nível sem precedente
de destruição do ambiente (LEWIS, 2005). Na visão dessa teoria, o discurso do
desenvolvimento atua como um novo orientalismo permitindo a invenção do terceiro
mundo (VIOLA, 2000). Essa teoria foi de grande relevância para se pensar o discurso
desenvolvimentista em Moçambique que tem nos grandes projetos de mineração um dos
setores dinamizadores.

A presente tese foi também teoricamente inspirada nos estudos pós-coloniais


(incluímos nesta linha a teoria decolonial). Os estudos pós-coloniais caracterizam-se,
segundo o sociólogo Sergio Costa, por uma variedade de contribuições e orientações
distintas, mas que apresentam como caraterística comum o esforço de esboçar, pelo
método de desconstrução dos essencialismos, universalismos e absolutismos uma
referência epistemológica crítica às concepções e lógicas dominantes de pensamento, de
ser e de estar (COSTA, 2006). O termo pós-colonial não se restringe a descrever uma
determinada sociedade ou época, mas a reler, por exemplo, a colonização como parte de
“um processo global essencialmente transnacional e transcultural” (HALL, 2003, p.
109). Os estudos coloniais nos permitem ver o mundo numa perspectiva transnacional e
transcultural, questionando ideias hegemônicas de ser e estar. É por essa razão que o
pós-colonial não é uma periodização baseada em estágios temporais ou épocas, mas
uma “leitura que sinaliza a proliferação de histórias e temporalidades, a inclusão das
diferenças e especificidades nas grandes narrativas generalizadoras do pós-iluminismo
eurocêntrico (HALL, 2003, p.111). Isso implica que o pós-colonial além de identificar o
momento posterior à descolonização como momento crítico para um deslocamento nas
relações globais, o termo oferece também outra “narrativa alternativa à narrativa
clássica do que hoje chamamos de modernidade”, fundado numa perspectiva
transcultural. Essa é uma das principais premissas dos estudos pós-coloniais. A outra
consiste na concepção de que “toda enunciação vem de algum lugar”. Com essa
premissa os estudos pós-coloniais buscam romper com a possibilidade de um lugar de
enunciação hegemônico, tendo em conta que qualquer lugar de enunciação é
heterogêneo e toda a pretensão generalizante é sempre arbitrariamente hierarquizada.

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A partir do rompimento de um lugar de enunciação hegemônico os estudos pós-
coloniais constroem uma crítica a certa episteme ou forma de produção de
conhecimento que ao privilegiar modelos e conteúdo próprio ao que se define como
cultura nacional ou histórias locais dos países europeus, reproduz em outros termos a
lógica de relação colonial e inferiorizante. Isso nos obriga a rever constantemente os
nossos conceitos. Por exemplo, visto a partir da crítica pós-colonial a modernidade é
colonizante e a colonização é parte constitutiva da modernidade. Diz-nos, por exemplo,
Walter Mignolo que a modernidade não pode ser vista de forma dissociada da
colonialidade, na medida que este pressupõe o seu lado reverso, inevitável e sombrio
(MIGNOLO, 2003). Ou seja, na narrativa pós-colonial a colonização não é apenas um
domínio direto de certas regiões do mundo pelas potências mundiais, “mas sim um
processo inteiro de expansão, exploração, conquista e de hegemonia imperial” (HALL,
2003, p. 112-113). Neste contexto a modernidade não pode ser vista de forma distante
da relação centro e periferia. Essa narração implica, primeiro, deslocar a história da
modernidade do seu centramento europeu para as suas periferias dispersas em todo o
globo. E, segundo, denunciar o seu lado oculto que é a conquista, a exploração, a
inferiorização de outros povos e formas de vivência não inscritas nessa ordem
hegemônica. O que Aníbal Quijano (2005) denomina de colonialidade de poder e do
saber como parte intrínseca. A modernidade é um “processo irracional que se oculta aos
seus olhos” ou ainda a “justificativa de uma práxis irracional de violência” (DUSSEL,
2005, p. 29). Tal como destaca Dussel (2005, p. 29)

1.A civilização moderna autodescreve-se como mais desenvolvida e superior


(o que significa sustentar inconscientemente uma posição eurocêntrica). 2. A
superioridade obriga a desenvolver os mais primitivos, bárbaros, rudes, como
exigência moral. 3. O caminho de tal processo educativo de desenvolvimento
deve ser aquele seguido pela Europa (é, de fato, um desenvolvimento
unilinear e à europeia o que determina, novamente de modo inconsciente, a
“falácia desenvolvimentista”). 4. Como o bárbaro se opõe ao process o
civilizador, a práxis moderna deve exercer em último caso a violência, se
necessário for, para destruir os obstáculos dessa modernização (a guerra justa
colonial). 5. Esta dominação produz vítimas (de muitas e variadas maneiras),
violência que é interpretada como um ato inevitável, e com o sentido quase-
ritual de sacrifício; o herói civilizador reveste a suas próprias vítimas da
condição de serem holocaustos de um sacrifício salvador (o índio colonizado,
o escravo africano, a mulher, a destruição ecológica, etc.). 6. Para o moderno,
o bárbaro tem uma “culpa” (por opor-se ao processo civilizador) que permite
à “Modernidade” apresentar-se não apenas como inocente, mas como
“emancipadora” dessa “culpa” de suas próprias vítimas. 7. Por último, e pelo
caráter “civilizatório” da “Modernidade”, interpretam-se como inevitáveis os
sofrimentos ou sacrifícios (os custos) da “modernização” dos outros povos
“atrasados” (imaturos) das outras raças escravizáveis, do outro sexo por ser
frágil, etc.

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Neste contexto, o desenvolvimento é visto, a partir da perspectiva pós-colonial e
estudos subalternos, como um novo discurso hegemônico eurocêntrico de dominação
dos povos. Ou seja, ao contrário do “pretexto salvacionista e civilizacionista”, a lógica
desenvolvimentista revela-se como uma nova forma de dominação e de colonização dos
povos do terceiro mundo (SOUZA PINTO; MIGNOLO, 2015).

Os estudos pós-coloniais evidenciam uma operação de reconfiguração de campo


discursivo no qual as relações hierárquicas (centro-periferia) ganham significados, não
simplesmente no sentido cronológico (COSTA, 2006). Por esta razão, outra premissa do
pensamento pós-colonial consiste em romper com a “lógica binária de pensamento” e
com a fronteira cultural definidora do sentido entre o nós (civilizado, adiantado,
desenvolvido,) e eles (selvagem, atrasado, subdesenvolvido) (HALL, 2003). Uma lógica
em cujo interior se desenvolve uma relação que produz e reproduz o outro como inferior
ao mesmo tempo em que permite “definir a nós ou o si mesmo em função desse outro”
(COSTA, 2006, p. 119). A lógica binaria constrói segundo o sociólogo Sergio Costa no
plano discursivo e legitima no âmbito político uma relação assimétrica irreversível entre
ocidente e seu outro, “conferindo ao primeiro um tipo de superioridade que não é
circunstancial ou histórica, mas que se assume como ontológica e total, imutável e
essencializado” (COSTA, 2006, p.120). Essa lógica que também é de fixação do lugar
do outro enquanto inferior a mim é denunciada por outros autores. Por Said no livro o
orientalismo (SAID, 1990) e outras discussões do autor sobre a causa palestina (SAID,
1985). Por Fanon (2008) quanto à posição do negro na relação colonial, quando nos
mostra que o negro é construído no âmbito do discurso de colonização, como o outro
inferior numa lógica hierarquizada e hierarquizante. O negro é inteligível através de
uma gramática hegemônica eurocêntrica branca. É a partir dessa visão que se olha para
África.

Isso significa, em resumo, que “existem discursos hegemônicos que precisam ser
desconstruídos”, na medida em que, determinam e fixam o lugar do lugar do outro.
Advogo ao longo da presente tese, inspirado por essa perspectiva de análise, que no
contexto geopolítico atual o discurso de “desenvolvimento”, “progresso” e “melhoria
de vida”, constituem uma vertente desses discursos hegemônicos, na medida em que,
não só são homogeneizantes e essencialistas e fixam a posição do sujeito, como
também, constituem um discurso de um projeto global que é desvinculado das histórias
locais dos próprios sujeitos (MIGNOLO, 2003). Ou seja, são discursos acoplados numa

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colonialidade de poder. Desconstruir esses discursos hegemônicos é promover uma
descolonização epistêmica. E isso é uma das premissas que torna a perspectiva crítica e
desconstrucionista dos estudos pós-coloniais interessante para a presente tese. Não só
porque se trata de um trabalho que está sendo escrito no contexto epistemologicamente
subalterno sobre uma realidade do terceiro mundo, mas principalmente, porque os
estudos pós-coloniais nos permitem problematizar essas categorias como
desenvolvimento e melhoria de vida, que norteiam os grandes projetos e são a principal
justificativa dos deslocamentos compulsórios (expropriação das suas terras ancestrais de
ocupação imemorial ou datada) das comunidades locais. Em outras palavras, nos
permitem interrogar os “sacrifícios necessários ao progresso nacional”, ao evidenciar o
seu lado obscuro e desastroso (MIGLIEVICH-RIBEIRO, 2014, p. 68); como por
exemplo, a violência a intimidação, a destruição das bases originais de reprodução
social, econômica e cultural e o empobrecimento. Ou seja, os estudos coloniais nos
permitem repensar essas ideias dominantes de que os grandes projetos de mineração vão
produzir desenvolvimento e bem-estar para todos, resgatando a perspectiva do outro - a
partir da realidade de vida atual e das narrativas das próprias populações
compulsoriamente deslocadas pelo projeto da Vale em Moatize.

Apostar nessa perspectiva teórica (e é também epistemológica) implica dar


atenção “à análise das relações de poder, nas diversas áreas da atividade social
caracterizada pela diferença, invisibilidade e invisibilização social”. Nesse caso aqui
em análise, recuperar as lógicas específicas de vivência, produção, organização e
reprodução social, questionando a tendência “hierarquizante da diferença avançada pelo
eurocentrismo" (MATA, 2014, p. 31). É por essa razão que um conceito de grande
relevância abordado na tese é o de “diferença colonial”, abordado por Mignolo (2003)
na medida em que nos permite olhar para Moatize onde esses grandes projetos estão
sendo implementados como um espaço onde se reproduz a subjugação de determinados
grupos sociais por outros grupos sociais que se consideram geopoliticamente e
geoepistêmicamente superiores. Ou seja, onde histórias locais dominantes se encontram
com as histórias locais dominadas e inferiorizadas. E mais, como um espaço onde atua a
colonialidade do poder e onde se inventa o outro e se escancara a violência do
progresso. Isso implica buscar evidenciar as “contradições, camufladas e desastrosas”
(MIGLIEVICH-RIBEIRO, 2014, p. 68). A violência da expropriação e do
deslocamento compulsório, as rupturas e o sofrimento social que caracterizam a vida

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cotidiana nos novos locais (vide capítulo 06) são algumas dessas contradições
desastrosas.

Advogamos que essas “contradições, camufladas, desastrosas” e ocultas do


discurso triunfalista da modernização e da lógica desenvolvimentista como, por
exemplo, o são os deslocamentos compulsórios das comunidades locais, são a evidência
de que o progresso e o desenvolvimento se dão num contato cruel e violento com outras
culturas (CASTRO-GOMEZ, 2005). Evidenciar isso a partir das histórias especificas
das populações compulsoriamente deslocados pelos grandes empreendimentos em
Moatize que são em si “sujeitos subjugados” implica negar ser “árbitro intelectual de
projetos globais desvinculados de histórias locais” (MIGNOLO, 2003). De que
desenvolvimento estamos falando? Melhoria de vida para quem? Essas são algumas
questões que advogamos que devem ser constantemente pensadas e repensadas.

Em termos metodológicos, buscamos dialogar essas premissas dos estudos pós-


coloniais e da antropologia do desenvolvimento com a sociologia do cotidiano,
(MARTINS, 2014) buscando explorar as “histórias especificas” das populações
compulsoriamente deslocados para a Comunidade de Cateme pelo projeto Moatize
operado pela multinacional brasileira Vale. Com isto busca-se evitar a essencialização e
homogeneização, não só dos próprios sujeitos, como também, dos efeitos sociais e
econômicos dos grandes projetos de mineração na sua vida cotidiana. Cientistas sociais
como, Peter L. Berger e Thomas Luckmann (2012), Michel de Certeau (1998), Erving
Goffman (2013), José de Sousa Martins (1998; 2014), Elísio Macamo (2002) e Veena
Das (2008a) nos despertam para a realidade da vida cotidiana como objeto de pesquisa
sociológica e antropológica Berger e Luckmann (2012) se referem à vida cotidiana
como um tecido de significados inerentes à existência da própria sociedade. O mundo
da vida cotidiana se origina, segundo os autores, no pensamento dos homens comuns,
sendo afirmado como real por eles. Dentre as várias realidades que compõem o social a
realidade da vida cotidiana é a realidade por excelência. É em si um mundo
intersubjetivo, estruturado espacial e temporalmente e que os indivíduos nele participam
através da linguagem. A sociologia do cotidiano nos indaga a buscar compreender o
fugaz e o episódico e os disfarces e escamoteações da realidade. É na sutileza desse
campo de mistérios e ocultações da realidade social que de acordo com José de Souza
Martins (2014) a imaginação sociológica encontra seus grandes desafios teóricos e
investigativos.

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Tal como destacamos em outro trabalho (EUSÉBIO; MAGALHÃES, 2018a) a
sociologia do cotidiano, interessa-se pelas “pequenas coisas da vida cotidiana”
(EUSÉBIO; MENDONÇA, 2015), pelo “aqui e agora” embora não se esgote nisso
(BERGER; LUCKMANN, 2012), pelo “aqui e hoje, pelo viver intensamente o minuto
desprovido de sentido” (MARTINS, 1998, p. 1); por “pequenos pormenores do
cotidiano, pelos encontros efêmeros, pelos indivíduos (...) pela interpretação [e
compreensão] individual e coletiva dos fatos sociais, pelo detalhe ínfimo que completa
o quebra-cabeças do social” (MACAMO 2002, p. 22). Enfim pelos processos
microssociais e pelo que muitos consideram, equivocadamente, o irrelevante, ordinário,
banal e irracional. Portanto a sociologia do cotidiano pressupõe a reinvenção da própria
sociologia na medida em que viabiliza a “redescoberta da sociologia fenomenológica”
ao mesmo tempo em que sugere uma “crítica nova e renovada à sociologia positivista”
(MARTINS, 1998, p. 2).

Optar por essa perspectiva metodológica é recusar as certezas enganosas do


convencional, do estruturado e do duradouro. É exercitar um olhar que se afasta de uma
visão seletiva, técnica e cientificista que descarta aquilo que perversamente considera
irracionalidades e irrelevâncias cotidianas e despertar uma prontidão para observar
sociologicamente mesmo as coisas banais. É se permitir no campo de pesquisa mais
tempo de diálogo e interação com o seu interlocutor, demora que implica, segundo José
de Sousa Martins (2014) uma certa recíproca invasão da vida do pesquisador por
aqueles com os quais dialoga e até mesmo sua ressocialização. A sociologia do
cotidiano é – esse é para nós um dos pontos mais relevantes – a valorização sociológica
da memória e do vivencial (MARTINS, 2014).

Foi inspirado nessa perspectiva que partimos para a pesquisa de campo que foi
realizada em dois períodos: no primeiro trimestre de 2016 e de novembro a dezembro de
2017. No primeiro, o foco foi sobre as populações expropriadas ou compulsoriamente
deslocadas das suas áreas ancestrais de ocupação imemorial ou datada e teve como
lócus principal a comunidade de Cateme, área onde foram reassentadas as populações
classificadas de rurais (ver capítulo 03 e 06) a aproximadamente 30 km do seu lugar
anterior de ocupação imemorial ou datada. No segundo, a pesquisa foi estendida para
outras populações atingidas, concretamente, as “populações remanescentes” do bairro
Bagamoyo e a comunidade de Catete, que tem em comum o fato de viverem e
produzirem nos arredores da área concessionada ao projeto de mineração da Vale.

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Em ambos os períodos priorizamos uma forma artesanal de fazer pesquisa
inspirada em Wright Mills (1975) e Martins (2014), valorizando, por exemplo, a
memória das próprias populações “atingidas”. Explorar a memória é, seguindo a linha
de Paul Ricoeur (2003) aceder ao passado enquanto espaço do acontecido, ou usando as
palavras do próprio autor do “tendo estado”. A memória é vida. É parte integrante dos
grupos vivos. Somos seres de memória que está sempre em constante evolução e aberta
à dialética, não só da lembrança e do esquecimento (NORA, 1993), como também do
silêncio (POLLAK 1989). Refletindo sobre o contexto moçambicano Ungulani Ba Ka
Khosa, o teórico das memórias silenciadas e das memórias perdidas e identidades sem
cidadania (KHOSA, 2013; 2015) destaca a importância da memória para afirmação da
identidade baseada na diversidade étnica e de tradições, caraterísticas típicas da
realidade social moçambicana. A memória seja ela individual ou coletiva
(HALBWACHS, 1990; RICOEUR, 2003 POLLAK, 1989; NORA, 1993; 1999) é o elo
do vivido com o tempo presente. Alimenta-se das lembranças que em alguns casos são
seletivas e que dependem de alguns elementos e lugares que as acionam. Por exemplo,
foi nas ruínas dos antigos edifícios feitos de tijolos queimados, nas árvores, como
Embondeiro (Baobá), e no riacho que passa próximo do local que através deles Fidelis
(meu interlocutor) acionou a memória sobre Chipanga e transmitiu através das
narrativas as suas lembranças sobre o lugar e experiência vivida.

Isso se deu entre início de novembro e finais de dezembro de 2017, quando


realizei uma segunda fase da pesquisa de campo. Neste contexto, visitei as populações
“remanescentes” do bairro Bagamoyo nos arredores da vida de Moatize e a comunidade
de Catete (vide capítulo 06). A via de acesso à comunidade de Catete passa pela antiga
área do Bairro Chipanga que, diferentemente de Bagamoyo, foi na sua totalidade
compulsoriamente deslocada. Tal como evidencio no capítulo 06, os dois bairros
(Chipanga e Catete) eram interligados. Os moradores de Catete têm descendência
ancestral em Chipanga. Através de vestígios que ainda permanecem no lugar tendo em
conta que a área ainda não se encontra em exploração, Fidelis morador de Catete que
me acompanhava no trajeto, acionou a sua memória sobre Chipanga e compartilhou as
suas lembranças sobre a organização do local. “Ali ficava a escola, aí era o mercado...”.

Em Bagamoyo nos arredores da vila de Moatize esses vestígios já


desapareceram. A área em que as populações foram deslocadas se encontra dentro da
cerca metálica que cobre toda área concessionada à Vale como forma de impedir e frear

- 45 -
a entrada das populações nas suas antigas áreas de produção. Fato que era comum.
Antes da cerca os oleiros continuavam entrando na área que hoje, em nome de
desenvolvimento já não lhes pertence. Era de lá que se extraía a terra de melhor
qualidade para a produção de tijolos. Algumas populações do bairro Malábue em
Cateme ainda voltam para antigas áreas nas margens do rio Revúbue para cortar caniço,
principal material no processo de construção de esteiras. A cerca visa impedir essas
ações. Através de um Embondeiro que por alguma razão a empresa ainda não destruiu o
Chefe dos Oleiros de Bagamoyo-Vila, acionou a sua memória sobre as antigas áreas de
produção de tijolos e compartilhou comigo informações sobre a localização dos fornos e
a organização espacial das antigas áreas de produção e a relação que se estabelecia entre
os oleiros.

A memória se manifesta através da narrativa, testemunho e oralidade. Ao longo


da pesquisa em Cateme buscamos privilegiar a oralidade - uma caraterística peculiar dos
diversos povos africanos (HAMPATÉ BÂ, 2010), ou usando as palavras de Nataniel
Ngomane (2012) das diversas sociedades e culturas bantu. Hampaté Bâ trabalha com a
ideia de “tradição viva” para destacar a importância da transmissão oral e da escuta na
forma de ser e estar dos diversos povos africanos. Ou seja, em África, a palavra, o
discurso e o conhecimento transmitido de boca para o ouvido ocupa um lugar relevante,
porque de fato somos sociedades de tradição oral (HAMPATÉ BÂ, 2010; NGOMANE,
2012). A palavra se torna o principal agente ativo da vida humana e dos espíritos. Nos
diversos povos africanos ou nas sociedades e culturas bantu (isso não pode ser visto de
forma essencialista) a fala encontra-se em relação direta com a conservação ou a ruptura
da harmonia do homem e do mundo que o cerca (HAMPATÉ BÂ, 2010). No caso de
Cateme, que foi principal campo de pesquisa, buscamos priorizar as narrativas sobre as
experiencias vividas desde o anúncio da chegada da Vale na região; as ações
desenvolvidas após a chegada da empresa; o processo de deslocamento; a chegada em
Cateme e a realidade atual de vida cotidiana. Foi para ouvir esses testemunhos que
nossos ouvidos ficaram abertos. A Comunidade de Cateme é para onde foram
compulsoriamente deslocadas as famílias classificadas de rural no âmbito da
implementação do projeto Moatize operado pela multinacional Vale (ver capítulo 03).
Interessava-nos compreender, não só essas experiencias vividas, mas também o “hoje”
dessas populações, os efeitos sociais do deslocamento compulsório nos seus modos de
produção, reprodução e organização social. E mais: interessava-nos, tendo como

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inspiração a proposta de Veena Das (2008b), compreender como o processo de
deslocamento compulsório foi experienciado e é cotidianamente vivido pelas próprias
populações compulsoriamente deslocadas. Neste contexto, exploramos as narrativas das
experiencias vividas com a intenção de compreender as transformações que ocorreram e
os efeitos sociais das mudanças que lhes foram impostas.

Além da experiencia vivida ao longo da pesquisa, disponibilizamos os nossos


ouvidos para escutar as informações passadas de geração em geração sobre, por
exemplo, as histórias de formação de cada bairro. “Se queres saber da história de
Mithethe tens que ir falar com o Sr. Lapsoni. A família dele foi a primeira a chegar
naquele bairro. O pai dele foi o primeiro régulo e nós só chegamos depois. Só ele é que
pode te contar sobre histórias do bairro Mithethe” – disse-me o senhor Pedro, líder do
Bairro Mithethe quando lhe falamos da nossa intenção de saber mais sobre a história do
bairro. Ou seja, o Sr. Lapsoni é o guardião da memória, ou usando as palavras de
Hampaté Bâ (2010), é o arquivista dos fatos passados transmitidos pela tradição. O Sr.
Raul assume a mesma função no bairro Malábue. O Sr. Daniel Dzimba no bairro
Chipanga. Os três compartilharam informações sobre a formação dos seus respectivos
bairros. Algumas dessas informações foram transmitidas pelos seus ancestrais em
conversas e ensinamentos à “volta da fogueira”. Se o senhor Lapsoni, Sr. Raul e Daniel
Dzimba, são arquivistas da memória dos seus respectivos bairros, cada morador é
arquivista da memória da sua própria trajetória de vida. Vários interlocutores acionaram
as suas lembranças para nos falar sobre como chegaram aos respetivos bairros ou como
os seus ancestrais ocuparam os bairros em que hoje pela força do desenvolvimento
foram obrigados a abandonar. Os nossos ouvidos ficaram abertos para escutar também
essas narrativas.

Importa realçar em jeito de conclusão que, tal como lembra Michael Pollak
(1989) as lembranças emergem em função das circunstâncias, dando-se ênfase a um e
outro aspecto. Lembranças de situações tenebrosas e perversas como as que as
populações compulsoriamente deslocadas experienciaram remetem sempre ao presente,
deformando e reinterpretando o passado (POLLAK, 1989). Com isso queremos reiterar
que estamos cientes de que as narrativas colhidas e que nortearam a elaboração da
presente tese, não podem ser vistas como reflexo das experiências em si, mas de como
essas experiências são atualmente interpretadas e vivenciadas. Razão pela qual devem
ser compreendias nessa vertente.

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As entrevistas não se resumiram exclusivamente às populações
compulsoriamente deslocadas para Cateme, nem às populações remanescentes de
Bagamoyo e à população de Catete. Durante a pesquisa em Moatize visitei a Associação
de Apoio e Assistência Jurídica às Comunidades (AAAJC), que tem sua sede na cidade
de Tete. Num diálogo com Dulce Combo integrante do corpo diretivo, tive acesso às
informações sobre as ações que tem desenvolvido em defesa das comunidades afetadas
pela mineração. Dulce compartilhou diversos referenciais jurídicos sobre a mineração e
comunidades locais. Foi a convite dela que visitei Cancope, uma comunidade que se
encontra dentro da área concessionada ao projeto Benga de mineração atualmente
operado pela International Coal Ventures Private Limited (ICVL), mas que sofre efeitos
sociais e ambientais do projeto de exploração mineral da Vale. A experiência dessa
visita foi publicada sob a forma de ensaio etnográfico intitulado “Cancope, a
comunidade onde nutre a esperança: transformações sociais na vida cotidiana de uma
comunidade rural em Moatize, Moçambique”, na Revista Visagem (EUSEBIO, 2016).
Em Maputo, estabeleci um diálogo com Jeremias Vunjane, jornalista e ativista da
UNAC e da ADECRU e que tem atuado na defesa das populações camponesas contra a
usurpação das suas terras pelos grandes empreendimentos agroindustriais com destaque
para o ProSAVANA. Vunjane acompanhou, junto com outros membros da Justiça
Ambiental, a partir de 2009 o processo de deslocamento das populações para Cateme e
25 de setembro. Estabeleci também um diálogo com João Colaço, sociólogo e professor
da Universidade Eduardo Mondlane. O professor João Colaço acompanhou o processo
de deslocamento compulsório empreendido pela Vale e tem desenvolvido analises
sociológicas sobre os seus efeitos sociais. Dialoguei também com Tereza Cruz e Silva,
cientista social, pesquisadora e professora do Centro de Estudos Africanos (CEA). Em
2016, a professora Tereza estava desenvolvendo pesquisas sobre os efeitos sociais do
deslocamento compulsório provocado pela Vale, que culminou com a publicação em
2017, em coautoria com Conceição Osório do livro “Corporações económicas e
expropriação: raparigas, mulheres e comunidades reassentadas no Distrito de Moatize”
(OSÓRIO; CRUZ E SILVA, 2017). Ainda na Universidade Eduardo Mondlane,
dialoguei com Inês Macamo Raimundo, professora e pesquisadora do Centro de
Analises de Políticas (CAP) e uma das principais referências nos estudos sobre
migrações em Moçambique. Ambas fizeram uma análise crítica de minha proposta de
tese e compartilharam uma vasta bibliografia que foi essencial para elaboração dessa
tese.

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Nos dois períodos de trabalho de campo em Moçambique (2016 e 2017, acima
mencionados) me dediquei também à pesquisa bibliográfica. Na cidade de Tete visitei o
acervo bibliográfico da delegação local do antigo Arquivo do Património Cultural
(ARPAC), atualmente denominado Instituto de Investigação Socio-Cultural, onde tive
acesso à bibliografia sobre o povo Nyungwe e a sua cultura; sobre a guerra colonial em
Tete; e de um modo geral sobre a história de Moçambique. Em Maputo pesquisei o
acervo da biblioteca do Centro de Estudos Africanos; Centro de Estudos de Políticas e
do Arquivo Histórico, todos da Universidade Eduardo Mondlane. Nas três bibliotecas
tive acesso a uma vasta literatura histórica sobre Moçambique e Vale do Zambeze em
particular. Destaca-se, por exemplo, a bibliografia sobre a ocupação colonial portuguesa
em Moçambique, o processo de aldeamentos coloniais, a guerra colonial, bem como
sobre o período socialista pós-independência, com destaque para a política da
socialização da produção rural, a criação das aldeias comunais, a guerra civil, a
restruturação socioeconômica, entre outros.

A presente tese é composta por oito capítulos. O primeiro é introdutório. No


segundo, analisamos a encruzilhada dos grandes projetos de desenvolvimento na região
do Vale do Zambeze - onde o distrito de Moatize se localiza – desde o tempo colonial
até o período atual com a chegada dos grandes projetos de mineração; os contextos
históricos e políticos que culminaram com a chegada da Vale à Moatize, primeiro
megaprojeto de mineração em Moçambique e que marca a nova encruzilhada dos
projetos de desenvolvimento e progresso nacional na região do Vale do Zambeze. A
chegada da Vale a Moatize foi acompanhada de um discurso de cooperação sul-sul do
Brasil. Na parte final desse capítulo analisamos essa cooperação apontando alguns
desencontros entre o discurso e a prática. No terceiro capítulo, exploramos na primeira a
parte o ciclo persistente de deslocamentos compulsórios no vale do Zambeze, centrando
a nossa análise na política colonial de aldeamentos coloniais e no programa de aldeias
comunais desenvolvido no período socialista pós-independência. Na segunda parte,
exploramos os atuais deslocamentos compulsórios provocados pela Vale em Moatize,
destacando as práticas da empresa e do governo moçambicano, bem como algumas
rupturas e proximidades com os anteriores deslocamentos compulsórios. No quarto
capítulo analisamos os direitos territoriais das comunidades locais perante outros
direitos de uso e aproveitamento da terra em Moçambique desde o tempo colonial. Na
parte final desse capítulo exploramos as implicações que as mudanças jurídicas

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implementadas desde a década 90 têm na segurança jurídica do território das
comunidades locais que são as mais diretamente afetadas pelos projetos
desenvolvimentistas. No capítulo cinco descentralizamos a nossa análise do estado para
empresa, explorando a atuação da Vale no Canada e na Amazônia Brasileira. A hipótese
que buscamos defender é que a Vale é uma empresa que apresenta práticas autoritárias e
violentas (seja física ou simbólica) de atuação que independem do contexto de sua
implementação. Ou seja, a violência, a expropriação, dentre outros custos sociais e
ambientais, são parte integrante das suas práticas independente do contexto social,
político e jurídico onde os seus projetos estão sendo implementados. Uma vasta
literatura da Amazônia brasileira já aponta nesse sentido. No sexto capítulo exploramos
a realidade de vida cotidiana das famílias classificadas como rurais e foram
compulsoriamente deslocadas para Cateme, a aproximadamente 30 km do seu lugar
anterior de ocupação imemorial ou datada. No sétimo capítulo apresentamos as
considerações finais.

Boa leitura...

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2. MOATIZE: ENTRE HISTÓRIAS LOCAIS E PROJETOS GLOBAIS

O título desse capítulo é inspirado no livro do Walter Mignolo “Histórias locais


e Projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar”
(MIGNOLO, 2003). Nesse livro Mignolo busca, dentre diversos pontos, questionar a
linearidade do mapeamento geo-histórico da modernidade ocidental ao visibilizar a
relação modernidade/colonialidade como faces da mesma moeda. O livro é também um
diálogo crítico com as ciências sociais no que diz respeito à relação entre conhecimento
e as práticas coloniais. Mignolo advoga, por exemplo, que as ciências sociais e as
humanidades em geral não podem permanecer árbitro intelectual de projetos globais
desvinculados das histórias locais. Uma das formas de superar isso é com a
descolonização e a transformação da rigidez das fronteiras epistêmicas e territoriais
estabelecidas e controladas pela colonialidade do poder durante o processo da
construção do que ele denomina, na esteira do Immanuel Wallerstein, do atual sistema
mundial colonial/moderno. Um dos conceitos chaves do livro é o de “diferença
colonial”. Mignolo considera a diferença colonial como o espaço onde emerge e atua a
colonialidade do poder, onde histórias locais dominantes onde se planejam os projetos
globais encontram-se com as histórias locais dominadas. A diferença colonial é a base
para a compreensão da realidade mundial dentro de um sistema colonial/moderno. Pois,
é na diferença colonial onde se articulou o ocidentalismo como imaginário dominante
do mundo colonial moderno. É no encontro, por exemplo, das histórias locais europeias
transformadas em projetos globais com as histórias locais africanas que nasce a
subjugação das práticas culturais e saberes dessas últimas, o mesmo se diz da América
Latina bem como do sul da Ásia.

Neste contexto, advogo inspirado nas palavras de Mignolo que o distrito de


Moatize é hoje um espaço onde histórias locais dominantes transformadas em projetos
globais representados pelos grandes projetos de mineração interceptam de forma
violenta as histórias das populações que habitam a região Moatize desde os tempos
imemoriais ou datados. Um dos pontos que buscamos demonstrar nesse capítulo é que
essa intercepção violenta entre os atuais projetos de mineração e as histórias das
diversas populações da região marca uma reedição para o tempo presente de lógicas
violentas de relação que marcaram o tempo colonial e a primeira república pós-
independência (marcada pela orientação socialista de organização social, política e

- 51 -
econômica), sendo os deslocamentos compulsórios um denominador comum. Ao longo
do presente capítulo analisaremos também os contextos históricos e políticos que
culminaram com a chegada da Vale à Moatize, primeiro grande projeto de mineração
em Moçambique e que marca a nova encruzilhada de projetos desenvolvimentista na
região do Vale do Zambeze. A chegada da Vale a Moatize foi acompanhada de um
discurso de cooperação sul-sul do Brasil. Na parte final desse capítulo analisamos essa
cooperação apontando alguns desencontros entre o discurso e a prática.

****

O distrito de Moatize localiza-se na região do Vale do Zambeze e a 20 km da


cidade Tete, capital provincial, o distrito de Moatize constitui um dos 15 distritos 15 da
província de Tete, região Central de Moçambique. Possui uma superfície de
aproximadamente 8.455km2 (MAE, 2005). É limitado ao Norte pelos distritos de Chiuta
e Tsangano, a Este pela República de Malawi, a Sul pelos distritos de Tambara, Guro,
Changara e Município de Tete, através do rio Zambeze e Mutarara através do rio
Mecombedzi, a Oeste pelos distritos de Chiuta e Changara (ver mapa 03). Segundo
dados do último censo geral da população publicado em 2007 pelo Instituto Nacional de
Estatística (INE), o distrito possui mais de 217.609 habitantes. Um crescimento de
49.9% em relação ao censo de 1997 antes da chegada dos grandes projetos. Naquele ano
Moatize tinha 109.103 habitantes (INE, 2010). Até 2020 estima-se que a população do
distrito atinja o número de 450.492 habitantes (INE, 2012).

15 Os outros são Angônia, Mutarara, Dâo, Tsangano, Zumbu, Chifunde, Chiuta, Macanga e Maravia ao
norte do rio Zambeze; Cahora-Bassa, Changara, Mágoè, Marara e cidade do Tete ao sul do rio Zambeze.

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Mapa 03: Província de Tete com destaque o distrito de Moatize

Fonte: Elaborado por Santos Filho. M.H.N. ano de 2015

A maioria da população de Moatize é falante da língua Nyungwe. Os Nyungwes


- como geralmente são chamadas as pessoas falantes dessa língua – são um povo
heterogêneo resultante da interação secular de povos de diversas origens. Interação
provocada pelas atividades coloniais portuguesas em Tete e pelos diversos processos
migratórios que caracterizam a região. Segundo Antônio Rita Ferreira (1982), existe na
composição dos Nyungwes muitos elementos dos povos Maraves especialmente os do
grupo étnico Maganja. Os povos Maraves são originários da região de Luba, no Sul da
atual República Democrática do Congo. Num dado momento histórico deixaram o país
sob a direção de um chefe com o título dinástico de Caronga e após um percurso incerto
estabeleceram-se em Choma, provavelmente uma montanha que se localiza no Norte da
atual República de Malawi. Possivelmente devido ao esgotamento dos recursos naturais,
o Caronga II decidiu nova migração, tendo se fixado definitivamente, com o seu povo,
em Mancamba. Anos posteriores os Maraves fragmentaram-se em Nhanjas, Manganjas
e Cheuas antigos súditos. De acordo com aquele autor, a prevalência de elementos dos
povos Maraves especialmente do grupo étnico Maganja justifica-se, por exemplo, pelo

- 53 -
fato de a maioria dos Nyungwes povoar (no tempo em que fez a sua pesquisa) a margem
esquerda do Zambeze, prolongando-se até o distrito de Chikwana no Malawi16 .

Atualmente, embora a maioria da população seja falante da língua Nyungwe,


Moatize se constitui como um distrito etnolinguisticamente plural, influenciado pelas
constantes migrações, incentivadas, por um lado, pelo processo de colonização, pela
guerra de descolonização nacional (1964-1974) e pela guerra civil pós-guerra (1977-
1992). Por outro lado, pela busca de novos campos de possibilidade para sobrevivência
nas diversas empresas que exploravam as minas de carvão desde o tempo colonial.
Importa frisar que o próprio estado moçambicano é etnicamente plural e Moatize é de
certa forma reflexo disso. Ou seja, Moçambique é composta por uma pluralidade de
povos com línguas e culturas que podem ser entendidos pelas suas diferenças, mas
também pelas suas semelhanças - os Nyungwes são alguns desses povos.

Essa composição, por sua vez, é fruto dos diversos processos migratórios, e
também da própria composição dos estados africanos que por suas heranças coloniais
são resultantes de um processo histórico de invasões e ocupações. Estas acabaram por
produzir, por um lado, a unificação num único território de povos antigamente
independentes e culturalmente diferentes. E, por outro, a separação em territórios
diferentes de um mesmo povo antigamente unido num mesmo território (MUNANGA,
2016). O mapa 04 elucida a riqueza da diversidade étnica e linguística de Moçambique
(o mapa apresenta uma denominação diferenciada. Neste contexto Nyungwe
corresponde ao Cinyungwe). Logicamente que esse mapa não pode ser visto de forma
essencialista, pois está longe de refletir na íntegra a atual estrutura, mas nos permite ter
uma ideia do processo de ocupação e distribuição dos diversos povos que tornam
Moçambique um estado plurinacional. Embora uma cartografia atual sobre possa
evidenciar uma maior percentagem dos Nyungwes na província de Tete, ela também
pode evidenciar que os Nyungwes se encontram espalhados em várias regiões de
Moçambique. E isso logicamente se aplica para outros povos.

16 Para mais informações ver Maia (2015) e História de Moçambique em: Newitt (2012); Serra (2000)

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Mapa 04: Estrutura dos Grupos Étnicos de Moçambique

Fonte: NELIMO 1989, apud SOUSA SANTOS; TRINDADE (2003).

De acordo com dados do INE (2010), 85% da população de Moatize vive nas
áreas rurais e os restantes 15% nas áreas urbanas - essa é a tendência geral da província
de Tete onde 86,3% da população vive nas áreas rurais e somente 13,7% vivem nas
áreas urbanas. Neste contexto, o distrito é majoritariamente composto por uma
população camponesa na sua forma de organização, produção e reprodução

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socioeconômica. A agricultura é a atividade dominante e envolve quase todos os
agregados familiares17 , impulsionada principalmente pelas terras férteis das margens do
rio Zambeze, Revúbue e Moatize. Dados do último Perfil do Distrito de Moatize
publicado em 2005 pelo Ministério de Administração Estatal (MAE) indicam que a
produção agrícola é predominantemente de sequeiro, praticada manualmente em
pequenas unidades familiares em regime de associação de culturas com base em
variedades locais.

As principais culturas produzidas são Mapira (Sorghum bicolor), Mexoieria


(Pennisetum glaucum), Milho (Zea mays), Feijão bóer (Cajanus cajan) e em menor
escala a cultura do Amendoim (Arachis hypogaea). As populações do distrito possuem
também ainda em pouca escala a tradição da produção pecuária. As galinhas e os patos
são para o consumo da unidade familiar enquanto que a produção do gado bovino,
caprino, porcos e ovelhas são na sua maioria para a comercialização (MAE, 2005).
Contudo é nos recursos minerais que Moatize se destaca no âmbito nacional e
internacional. De acordo com MAE (2005), Moatize é caraterizada por inúmeras jazidas
de ferro, titânio, vanádio e principalmente por importantes jazidas de carvão mineral,
que cobrem uma extensa área que se estende desde a região de Chingodzi até o rio
Mecombedzi situada ao sul da região montanhosa do distrito. Estima-se que essa área,
também denominada Bacia Carbonífera de Moatize, contém reservas de carvão
siderúrgico consideradas pelos órgãos governamentais uma das maiores e de alta
qualidade no mundo. As potencialidades em carvão mineral colocam o distrito no centro
de uma ampla política de desenvolvimento e progresso nacional que tem os grandes
projetos de mineração como um dos setores dinamizadores. A chegada de grandes
projetos de mineração nessa região do Vale do Zambeze remete ao início da última
década (período pós-2000). Contudo essa região tem sido, tal como exploraremos a
seguir, alvo especial na política nacional de desenvolvimento e progresso desde o tempo
colonial.

17 Conjunto de pessoas que residem no mesmo alojamento, tenham ou não relações de parentesco,
podendo ocupar a totalidade ou parte do alojamento e cujas despesas para a satisfação das necessidades
essenciais são suportadas parcial ou totalmente em conjunto. Considera-se também como agregado
familiar, pessoas independentes ou isoladas que ocupam a totalidade ou parte do alojamento (INE, 2012).

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2.1 A encruzilhada dos projetos de exploração e desenvolvimento do Vale do
Zambeze: do tempo colonial ao período pós-colonial

A região do vale do Zambeze ocupa, desde o tempo colonial, um lugar


estratégico nas políticas de desenvolvimento e progresso nacional que tiveram e
continuam tendo um papel significativo nos deslocamentos compulsórios das
populações da região. No presente subcapítulo analisamos os principais programas de
ocupação e exploração econômica implementados na região no tempo colonial, no
período socialista e na atual conjuntura marcada pela cada vez maior afirmação de uma
lógica neoliberal de orientação social e econômica. Tal como buscamos destacar (e com
maior profundidade no capítulo 03) a seguir, além de possuírem um persistente caráter
violento (físico e simbolicamente) e colonial, os deslocamentos compulsórios enquanto
estratégia de controle da população e mudança de domínio sobre o território, têm sido
um elemento comum dos programas desenvolvidos para a região nesses três períodos.

Mapa 05: Região do Vale do Zambeze

Fonte: GPZ (2013)

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Os portugueses chegaram à região do Vale de Zambeze no século XVI. Desde
então o rio Zambeze – essa imensa “cobra” que nasce no norte da Zâmbia, passa por
Angola, Namíbia, Botswana, Zimbábue e deságua em Moçambique, com
aproximadamente 2800 km – figurou como um elemento estratégico para a colonização
da parte interior de Moçambique e exploração econômica. Antes da chegada dos
portugueses, a região do Vale do Zambeze - que foi por muito tempo dominada pelo
Estado Mutapa e pelos povos tongas ao norte e a oeste - figurava como uma importante
e vibrante rota de comércio de ouro, marfim e de pessoas escravizadas, operada pelos
comerciantes árabes. Desde o primeiro momento, interessava a Portugal o controle
dessa rota de comércio, arrancando o seu controle dos árabes como forma de otimizar
seus lucros com o comércio de produtos como ouro prata e marfim. Na década de 1570,
Portugal estabeleceu assentamentos fortificados ao longo do Vale do Zambeze nas
regiões de Sena e Tete transformando essas áreas em importantes centros administrativo
e militar da região. A região de Sena que se localiza a aproximadamente 200 km da
costa do Oceano Índico era vista como estratégica para o controle da navegação fluvial
entre o rio Zambeze e o rio Shire. E a região de Tete, como um ponto estratégico para a
colonização da área interior da região sul e central do continente Africano. Mais tarde,
Portugal construiu um pequeno posto comercial e militar no interior do atual distrito de
Zumbo, na margem norte do rio Zambeze, na sua confluência com o rio Luangwa, um
afluente do rio Zambeze. Sena, Tete e Zumbo foram por quase trezentos anos o centro
da rede comercial portuguesa (ISAACMAN; ISAACMAN, 2013, BORGES COELHO,
1993; SERRA, 2000).

Até o final do século XVIII ouro e marfim representavam mais de 80% do valor
das exportações do Vale do Zambeze. Essa hegemonia durou até o início do século XIX
quando a natureza do negócio mudou drasticamente e o Vale de Zambeze se tornou
importante área de comercio de pessoas escravizadas. Segundo Isaacman e Isaacman
(2013), se até a década 1750 chegavam à costa do Índico aproximadamente cem
indivíduos capturados prontos para serem vendidos como escravos, no ano de 1821 o
número superava a cinco mil e representava 90% das exportações do Vale do Zambeze.
O comércio de pessoas escravizadas continuou nesta região mesmo depois de Portugal
decretar a abolição oficial da escravatura em 1836. A maioria das pessoas escravizadas

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da região do Vale do Zambeze era enviada para os trabalhos forçados nas plantações de
açúcar em Cuba, nas Ilhas Maurícias e principalmente no Brasil18 .

A presença de assentamentos militares portugueses em Sena, Tete e Zumbo foi


suficiente para proteger o comércio ao longo do rio, mas não o controle político da
região do Vale do Zambeze. Para estabelecer tal soberania, a administração central
portuguesa procurou aliciar os nacionais portugueses que já residiam na região e
transformá-los em agentes do estado. A maioria desses cidadãos eram os comerciantes
aventureiros e exilados criminosos condenados em Portugal que chegaram à região do
Vale do Zambeze, no século XVI, e começaram a acumular grandes extensões de terra
ao longo das margens do rio homônimo, impondo, com auxílio de pessoas escravizadas
armadas, que haviam adquirido através do comércio e de conquistas anteriores, seu
domínio sobre as populações da região. Embora estes indivíduos não estivessem
atuando inicialmente em nome da coroa, Portugal passou a apreciar o seu potencial
como agentes coloniais. Em troca de juramento de fidelidade, pagamento de rendas
anuais e envio de soldados para reforçar as pequenas guarnições em Sena e Tete, esses
portugueses receberam títulos reais de propriedade, denominados prazos estatais ou
prazos da coroa (ISAACMAN, ISAACMAN, 2013, CABAÇO, 2007; BORGES
COELHO, 1993; SERRA, 2000). Estabelecia-se desse modo, com o sistema de prazos,
a primeira tentativa de controle político sobre a região do Vale do Zambeze.

O sistema de prazos retificou o rumo da colonização do Vale do Zambeze das


mãos de particulares invasores portugueses e o colocou nas mãos dos administradores
escolhidos pela coroa, ou seja, transformou particulares invasores, alguns deles exilados

18 Existeuma vasta literatura que aborda o tráfico negreiro transatlântico e a dinâmica da escravidão no
Brasil. Ver por exemplo, MARQUESE (2006). Recomendo também a leitura do E-book “Do tráfico ao
pós-abolição: trabalho compulsório e livre e a luta por direitos sociais no Brasil” (OSÓRIO; XAVIER,
2018). Bezerra Neto (2001) destaca a prevalência dessa migração forçada de negras e negros
moçambicanos para a Amazônia brasileira no século XVIII. Segundo o autor, a população africana que
desembarcou no porto de Belém, entre os anos 1753 a 1801, para ser escravizada, era proveniente das
praças de escravos de Bissau, atual República de Guiné Bissau; das ilhas Cabo -Verde atual República de
Cabo-Verde; de Luanda Benguela e Cabinda na atual República de Angola; do po rto de Mombaça na
atual República do Quênia, bem como das regiões ao norte e a sul do rio Rovuma nas atuais Repúblicas
de Tanzânia e Moçambique (BEZERRA NETO, 2001). Essa migração forçada foi dinamizada pela
entrada em funcionamento das Companhias do Grão -Pará e do Maranhão, porém alguns desses negros e
negras escravizados foram, também, empregados nas fazendas de cacau, com destaque para as regiões de
Santarém e Óbidos na então província do Grão-Pará. Para mais informações recomendo acessar a Revista
Afro-Ásia do Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia (UFBA), disponível
em http://www.afroasia.ufba.br e ao grupo de pesquisa CNPq “As experiencias dos africanos e seus
descendentes no Brasil”, disponível em: http://www.escravidaoeliberdade.com.br. O livro Casa Grande e
Senzala, apesar das críticas de que é alvo, destaca a importância das negras e negros e logicamente dessa
perversa migração forçada na formação da sociedade brasileira (FREYRE, 2003).

- 59 -
criminosos condenados em Goa e Portugal em administradores da coroa. Os prazos
eram administrados por portugueses e suas famílias por até três gerações. Comandavam
milhares de exércitos de indivíduos transformados em pessoas escravizadas e viviam
dos impostos e de produtos agrícolas pagos pelos povos “autóctones”, na sua maioria
camponeses, no que concerne a sua forma de produção, organização e reprodução
socioeconômica, que residiam em suas propriedades. Bem como dos lucros que
derivavam do comércio de pessoas escravizadas e de marfim. Até meados do século
XVIII existiam mais de 125 prazos nas margens do vale do Zambeze, entre Tete e a foz
(ISAACMAN; ISAACMAN, 2013).

Na primeira metade do século XIX, o sistema de prazos começou a declinar na


região do Vale do Zambeze – provocando uma diminuição drástica da presença colonial
portuguesa na região – precipitado por uma pluralidade de fatores, como por exemplo
aumento de proprietários ausentes e abandono de propriedades; severas secas e ataques
de gafanhotos que afetavam negativamente a produção agrícola; constantes ataques dos
povos Ngunis que tomaram de assalto a região e expulsaram grande parte da população
europeia; fuga dos povos autóctones; revolta das pessoas escravizadas provocado pela
tendência dos prazeiros de escravizar seus súditos, bem como pelo incremento do
tráfico negreiro na região. A título de exemplo, até a metade do século XIX somente 20
prazos estatais continuavam funcionando no Vale do Zambeze.

Em 1878 o regime de prazos foi oficialmente abolido e convertido em


Companhias Comerciais ou Companhias Majestáticas – concessões de terra feitas pelo
governo português a investidores privados que as arrendavam com a obrigação de
produzir culturas para o mercado externo, construir alguma infraestrutura e manter a
ordem e a lei em seus territórios. O lucro dos investidores vinha da produção, dos
impostos que cobravam dos habitantes sob sua jurisdição e da negociação da força de
trabalho adulta e masculina para as empresas mineiras da África Austral, atividades para
as quais o governo português também cobrava taxas (SERRA, 1980; 2000, CABAÇO,
2007, BORGES COELHO, 1993; ANDRADE, 2016). Destacavam-se dentre as
companhias a de Niassa, da Zambezia e a Companhia de Moçambique. Em 1881 a
Companhia de Moçambique arrendou todos os prazos da margem sul do rio Zambeze e
em 1903 a companhia da Zambezia ganhou praticamente todos os prazos da região de
Tete com a missão de desenvolver a região e substituir a antiga política de pequenos
arrendatários. No capítulo 03 exploramos esse sistema com maior profundidade,

- 60 -
destacando o seu papel nas migrações forçadas de diversas populações das áreas
concessionadas. Para já, importa destacar que, com as companhias, estabelecia-se assim
a segunda tentativa de controle político econômico da região do Vale do Zambeze.
Essas concessões a empresas e investidores privados surgiram, por exemplo, como uma
segunda tentativa de promoção da agricultura na região depois do fracasso da mesma
política no sistema de prazos. Ora vejamos, por muito tempo as autoridades portuguesas
acreditavam que a agricultura seria a âncora do sistema de prazos. Por isso não só
incentivavam a sua prática, como determinavam periodicamente as culturas a serem
produzidas: arroz, café, açúcar e outras culturas de rendimento. Contudo, apesar dos
esforços ela nunca vingou. Em 1806, apenas vinte mil quilos de alimento foram
exportados de toda a região. Em 1821, a quantidade da exportação diminuiu em 90%
(ISAACMAN; ISAACMAN, 2013). O fracasso da agricultura era cimentado dentre
vários fatores pelos rendimentos elevados que eram obtidos no comércio de pessoas
escravizadas e de marfim.

Nos finais do século XIX Portugal abriu a região para o comércio internacional e
a crescente demanda europeia por óleo vegetal para a fabricação de sabão e vela
estimulou a produção agrícola baseada na produção camponesa. Porém, ainda no
mesmo período, Portugal voltou a incentivar e subsidiar a agricultura de plantação desta
vez através dessas empresas concessionarias denominadas de sistema de companhias
(ISAACMAN; ISAACMAN, 2013; ANDRADE, 2016). As companhias empregavam
povos autóctones. Muitos trabalhavam para pagar impostos por habitarem na área de
jurisdição da companhia. Em 1899, a promulgação de um código trabalhista nativo, que
legitimava o sistema já existente de trabalho forçado em Moçambique, conhecido como
“chibalo”19 , assegurou às empresas concessionárias um amplo suprimento de força de
trabalho. Esse cruel e desumano sistema de trabalho forçado permitiu amplo
crescimento da produção agrícola e assegurou a rentabilidade das plantações de copra e
sisal que surgiram no final do século XIX ao longo da costa.

19 O chibalo foi um sistema de trabalho forçado e degradante empregado em Moçambique no tempo


colonial. Nesse processo os moçambicanos eram perseguidos, capturados e obrigados pela polícia a
trabalhar para firmas dos portugueses, desde as grandes plantações, medias e pequenas empresas agrarias
até o setor de minas, portos e caminhos de ferro (CHICHAVA, 2011a). Tal como nos mostra a
historiadora Jeanne Penvenne, o Chibalo não foi um processo exclusivo do meio rural ou das grandes
plantações agrárias. Algumas cidades como Maputo, atual capital de Moçambique, foram construídas por
essa forma degradante e desumana de trabalho. O Chibalo funcionava em diversas empresas das cidades
como forma de manter salários baixos e reduzir o máximo de benefícios para os trabalhadores em geral,
na medida em que enfraquecia a possibilidade de negociação do trabalhador (PENVENNE, 1981, p. 14).
O Chibalo só foi abolido na década de 1960 no início da derrocada do colonialismo português em África.

- 61 -
Como forma de estimular a produção agrícola e mineral na região, os
colonialistas portugueses construíram em 1922 a ferrovia Trans-Zambezia. Em 1935, a
construção da ponte ferrovia sobre o rio Zambeze em Sena, permitiu a ligação entre a
região de Moatize, rica em carvão mineral e o porto da Beira. Dados apresentados
recentemente pelo antropólogo Inácio de Andrade (2016), evidenciam que a construção
foi viabilizada pela companhia de Moçambique, em conjunto com o consorcio inglês
Trans-Zambezia Railway, dominada pela British South Africa Company com a intenção
de escoar a produção inglesa em Niassalândia, atual República de Malawi. A construção
dessa linha férrea permitiu a abertura de oportunidades para a entrada, por exemplo, de
novos projetos em Tete cuja antiga ligação precária por terra e a navegação pelo rio
Zambeze não permitiam; bem como estabelecer-se como um escoadouro de mercadorias
de países vizinhos como Niassalândia e Rodésia atual República do Zimbábue. Em
função dessa linha férrea, a região de Tete passou a receber um imenso fluxo de brancos
de todas as nacionalidades, principalmente os de nacionalidade inglesa.

A linha férrea Trans-Zambezia dinamizou a exploração sistemática dos recursos


minerais da região. Essa linha continua ativa atualmente. Rebatizada com o nome de
Linha de Sena, foi concluída a sua reabilitação na última década depois de ser
parcialmente destruída no período da guerra civil pós-independência. É por ela que
transitam os vagões cheios de carvão siderúrgico explorado pelos grandes projetos de
mineração que operam em Moatize em direção ao porto da Beira. De lá seguem,
principalmente, para o mercado asiático - principal comprador do carvão mineral
moçambicano.

Tal como aconteceu com o estabelecimento dos prazos da coroa, mesmo com o
estabelecimento das “companhias” o desenvolvimento econômico da região do Vale do
Zambeze continuava uma ilusão (ISAACMAN; ISAACMAN, 2013). Depois da
Segunda Guerra Mundial, os planejadores coloniais concluíram que outros grandes
projetos eram necessários para promover a modernização no Zambeze. Dentro de uma
década, a construção de uma barragem em Cahora Bassa tornou-se a panaceia para a
decolagem econômica. O sistema de companhias foi extinto nos anos 1930 e 1940
revertendo-se o controle das terras para o governo colonial (SERRA, 2000,
ISAACMAN; ISAACMAN, 2013; ANDRADE, 2016).

Em 1957 foi criada a Missão de Fomento de Povoamento do Zambeze (MFPZ)


também denominada de GFPZ (Gabinete de Fomento e Povoamento do Zambeze) com
- 62 -
o objetivo de dinamizar o desenvolvimento da região, procedendo o reconhecimento e
estudo sistemático dos recursos da bacia hidrográfica do rio Zambeze, bem como
organizar planos de desenvolvimento e modernização da região (MUNGÓI, 2008). Na
década de 1970 a missão foi transformada, através do decreto-lei 69/70 de 27 de
fevereiro de 1970, em Gabinete do Plano de Desenvolvimento da Região de Zambeze,
resumidamente denominado Gabinete de Plano de Zambeze (GPZ). Este tinha como
objetivo dar mais celeridade ao “desenvolvimento econômico e social” da região do
Vale do Zambeze, realizando, por exemplo, o reconhecimento sistemático da região e o
inventário dos seus recursos; elaborar planos gerais e parciais e programas de ação para
o desenvolvimento econômico e social e povoamento da região de Zambeze, bem como
as expropriações, aquisições e arrendamentos necessários para execução e exploração
dos empreendimentos (MUNGÓI, 2008).

Com o MFPZ, as autoridades coloniais portuguesas planejavam transformar a


região do vale do Zambeze no novo celeiro de Moçambique. De fato, entre o início dos
anos 60 e o fatídico 25 de abril, quando o regime salazarista português foi derrubado,
Moçambique passou por um surto de crescimento econômico, chegando a ser a oitava
economia da África. “O país tinha-se aberto ao capital internacional e conectado seus
domínios com as demais economias da região” (ANDRADE, 2016, p. 60). O gabinete
elaborou projetos agrícolas para as zonas altas e chuvosas da província de Tete, sob
sistemas de grandes plantações, produzindo chá, fumo, algodão e coco; e estabeleceu
zonas prioritárias para investimento estatal. Ao mesmo tempo em que mapeou minas de
carvão, urânio, vanádio, titânio, ferro, cobre, manganês, níquel, cromo, fluorite e ouro.
Advogamos que são esses mapeamentos e planos do período colonial que vêm guiando
a atual leva desenvolvimentista na região do Vale do Zambeze e principalmente as
atividades de mineração em Moatize.

No entanto, a principal missão do MFPZ e talvez a mais importante delas, foi


desenvolver estudos com o objetivo de viabilizar a construção da então maior
hidrelétrica da África Austral, a Hidrelétrica de Cahora Bassa, localizada a
aproximadamente 650 km à foz do rio Zambeze e também aproximadamente 650 km ao
interior da Barragem Hidrelétrica de Kariba que se localiza na divisa entre a atual
República da Zâmbia e do Zimbabwe, construída pelos Britânicos 20 . Entre 1957 e 1961

20 Elisabeth
Colson analisa os efeitos sociais da barragem de Kariba para os povos Gwmbe Tonga
(COLSON, 1971).

- 63 -
o MFPZ publicou vinte e sete estudos preliminares das condições climáticas,
geológicas, topográficas, hidrológicas e econômicas na bacia do rio Zambeze. Em 1966
produziu um relatório final de cinquenta e seis volumes que confirmava a avaliação
prévia de que uma barragem seria altamente benéfica para Moçambique (ISAACMAN;
ISAACMAN, 2013).

A construção da Barragem Hidrelétrica foi viabilizada em 1969, depois de 3


anos de negociação, quando as autoridades portuguesas assinaram o acordo de 515
milhões de dólares com Zamco (Zambeze Consorcio Hidrelétrico Limitada), um
consórcio dominado por sul africanos e alguns parceiros da Alemanha ocidental, Itália,
França e Portugal (ISAACMAN; ISAACMAN, 2013). Desde o início da sua construção
figurava como fonte barata de exportação de energia para o regime segregacionista sul
Africano. No âmbito do acordo assinado entre o regime do apartheid e o governo
colonial português, cerca de 82% da energia da hidrelétrica de Cahora Bassa seria
exportada para a África do Sul. Esse número tornara a barragem de Cahora Bassa à
época na maior Hidrelétrica do mundo que produz energia para exportação.

A sua construção foi acompanhada de um discurso de desenvolvimento,


progresso nacional e melhoria de vida de milhares de moçambicanos que viviam e
trabalhavam na região de Cahora Bassa, discurso que se assentava na busca de
legitimidade para o empreendimento, invisibilizando os seus efeitos sociais, econômicos
e ambientais. Um dos efeitos sociais diretos da construção de Cahora Bassa foi o
deslocamento compulsório de milhares de populações camponesas, forçadamente
reassentadas no que se denomina de aldeamentos coloniais, causando traumas sociais,
econômicos e ecológicos que permanecem até hoje, passados quatro décadas, na
memória das populações do Vale do Zambeze (ISAACMAN; ISAACMAN, 2013). Ao
longo da tese exploraremos melhor essa questão. Por enquanto importa destacar que a
Barragem Hidrelétrica Cahora Bassa foi um dos últimos grandes empreendimentos de
Portugal na colônia Moçambique, mas não o único. A exploração das minas de carvão
mineral foi também a última política de desenvolvimento do colonialismo tardio
português no Vale do Zambeze (ANDRADE, 2016).

Indícios incipientes de exploração de carvão mineral em Moatize registaram-se


na segunda metade e final do século XIX. A primeira concessionária da licença de
exploração e pesquisa foi a Companhia da Zambezia. Em 1895 a concessão foi
transferida para a Companhia Ulheira da Zambezia que, por sua vez, cedeu os seus
- 64 -
direitos de pesquisa e exploração à Zambezi Mining Development Ltda (MENESES,
2014). As Companhias não eram empresas multinacionais, mas sim um sistema de
exploração do território nacional implementado tal como destacamos acima no tempo
colonial. Quando o governo colonial português constatou a sua incapacidade econômica
para gerir as terras viu nas companhias uma luz que pudesse atrair e estimular o
crescimento económico da colônia e transformar o regime dos prazos que àquela altura
ameaçava os seus interesses coloniais em Moçambique (MIGUEL, 2009, p. 23). O
governo colonial português fez concessões a investidores privados que as arrendavam
com a obrigação de produzir culturas para o mercado externo, construir alguma
infraestrutura e manter a ordem e a lei em seus territórios. Destacavam-se dentre as
várias companhias a de Niassa, da Zambezia e a Companhia de Moçambique. Em 1881
a Companhia de Moçambique arrendou todos os prazos da margem sul do rio Zambeze
e em 1903 a Companhia da Zambezia ganhou, tal como destacamos acima, praticamente
todos os prazos da região de Tete com a missão de desenvolver a região e substituir a
antiga política de pequenos arrendatários. Foi essa companhia que começou a
exploração de forma incipiente as minas de Moatize.

Contudo, a exploração sistemática e relevante das minas de carvão de Moatize


só começou nos meados do século XX. Em 1919, o governo colonial português
concedeu, em substituição a empresa Zambezi Mining Development Ltda, as minas de
Moatize para uma firma Belga denominada Société Miniére et Géologique du Zambéze,
uma subsidiária do grupo Cominière, sediada no Congo Belga, atual República
Democrática do Congo. Esta empresa impulsionou de forma relevante as atividades de
pesquisa e exploração. Em 1925 o carvão de Moatize foi comercializado pela primeira
vez. A conclusão em 1949 da ligação ferroviária entre Moatize e Dona Ana em
Mutarara, fato que permitiu o acesso ao porto da Beira através da conexão com a linha
férrea Trans-Zambezia, lançou um novo dinamismo na produção mineira em Moatize,
aumentando o volume de produção e exportação. Com a entrada em funcionamento
dessa linha, abandonou-se o recurso fluvial para o transporte da produção (MENESES,
2014).

A sociedade belga passou a receber mais aportes financeiros do exterior


possibilitando que o nível de produção anual ultrapassasse as 500.000 toneladas,
exportadas como carvão metalúrgico e energético. Em 1949 foi criada uma nova
empresa de exploração - a Companhia Carbonífera de Moçambique (Carbomoc),

- 65 -
também controlada pela Société Generale de Belgique que transferiu os seus ativos no
valor de 8 mil contos para a Carbomoc. No total, o grupo belga da Cominière detinha
60% do capital e a Companhia de Moçambique, que também contava com investidores
belgas, 30%. O Estado português recebeu ações correspondentes aos 10% restantes,
bem como o direito a incluir um seu representante no Conselho de Administração
(ANDRADE, 2016). Da década de 1960 a 70 registra-se um declínio na produção,
provocado, não só pelos altos custos do carvão de Moatize, mas principalmente pela
instabilidade político e militar que se vivia no país. Em 1973 por exemplo, os
investidores belgas passaram todos seus ativos para os ingleses da British South African
Company e para o governo português, que passou a ser o maior acionista.

Em suma pode-se, seguindo a estrutura proposta por Miguel (2009) e adoptada


também por Andrade (2016), separar a exploração de carvão mineral de Moatize no
tempo colonial em quatro fases distintas: entre 1920 – 1948, ocorrem as primeiras fases
sistemáticas de exploração mineira, ainda limitadas às camadas superficiais do carvão,
devido à falta de capacidade financeira portuguesa de investir em grandes
empreendimentos. Neste período a exploração era feita pela firma Belga Sociétè
Minière et Géologique du Zambeze.

De 1948 a 1954 registra-se um importante incremento e exportação com a


finalização da linha férrea Trans-Zambezia, atual linha de Sena, possibilitando que o
nível de produção anual ultrapassasse as 500.000 toneladas, exportadas como carvão
metalúrgico e energético. A Alemanha, em 1958, chegou a importar 17 mil toneladas de
carvão, e a França, 15 mil toneladas no ano seguinte (ANDRADE, 2016, p. 104,
MIGUEL, 2009). Contudo, o carvão de Moatize era reconhecido internacionalmente
como um carvão de péssima qualidade, que só encontrava mercado no exterior quando a
oferta estava muito baixa e, ainda assim, só poderia ser utilizado pelo comprador após
grandes adaptações nas fornalhas construídas para outros tipos de material. Com este
fato, somado aos altos custos de exportação, devido à distância do mercado consumidor,
o empreendimento dificilmente seria autossuficiente. Em muitos anos, o consórcio
atuou deficitariamente, tendo como único cliente fixo a Trans-Zambezia Railway, que
utilizava o carvão de Moatize em seus trens para garantir sua exportação (ANDRADE,
2016, p. 104-105).

De 1955 a 1960 verificou-se um crescimento acentuado na exploração. A


produção, embora ainda tenha ficado abaixo da capacidade total do complexo, atingiu
- 66 -
188 mil toneladas, superando as necessidades de consumo local e obrigando a
companhia a procurar outros mercados consumidores.

De 1961 a 1969 foi o ápice da produção, atingindo aproximadamente 400 mil


toneladas que abasteciam o parque industrial no sul de Moçambique.

De 1970 a 1973 registra-se o fim da produção em função dos altos custos da


extração do carvão, bem como da instabilidade político-militar decorrente da luta de
libertação nacional (ANDRADE, 2016; MIGUEL, 2009).

De fato, Moçambique vivia desde 1964 uma guerra de descolonização entre o


governo colonizador português e a guerrilha da Frente de Libertação de Moçambique
(FRELIMO) - principal movimento nacionalista de independência em Moçambique. A
FRELIMO, em 1977 após a independência nacional, transformou-se num partido
político e desde então tem sido a principal força política em Moçambique. Em 25 de
abril de 1974 acontece o golpe de estado em Portugal que derrubou o regime de Salazar
e a formação de um governo interino chefiado por Marcelo Caetano. A fragilidade
política desse governo interino português, que se confrontava com a ameaça de um
desastre militar, forçou Portugal a abrir as negociações para independência das colônias
(MENESES, 2015). Em 07 de Setembro de 1974 os colonialistas portugueses e a
FRELIMO, assinaram na cidade de Lusaka, República da Zâmbia, o acordo de Lusaka
que, não só pôs fim a 10 anos de guerra que provocaram inúmeras vítimas mortais e
milhares de deslocados compulsórios, como também a aproximadamente 500 anos de
exploração, subjugação e dominação colonial portuguesa em Moçambique, abrindo
caminho para a independência nacional.

Em 25 de junho de 1975, Moçambique se torna colonialmente independente.


Samora Moises Machel, ícone da luta de libertação nacional que assumira em 1949 a
presidência do movimento de resistência, FRELIMO, após a morte do primeiro
presidente do movimento, Eduardo Mondlane, se torna primeiro presidente da
República Popular de Moçambique. Esta morte foi causada por uma carta-bomba
suspeita de ter sido enviada pela PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado, de
Portugal). Machel ocupou o cargo até a sua morte em acidente aéreo em 19 de outubro
de 1986 - suspeito de ter sido provocado pelo regime do apartheid da África do Sul.
Anos posteriores da subida de Samora Machel ao poder, muitos portugueses foram
enquadrados na Lei do 24/20, isto é, receberam a ordem de deixar o país em 24 horas

- 67 -
com, no máximo, 20 kg de bagagem. No Vale do Zambeze foco das últimas políticas de
desenvolvimento do governo colonial, muitos empreendimentos, incluindo as minas de
carvão e as empresas que delas dependiam fecharam, o prédio do GPZ foi abandonado e
seus projetos cancelados, a linha férrea foi paralisada e o comércio sofreu um sério
baque (ANDRADE, 2016, p. 65).

Um dos poucos empreendimentos do Vale do Zambeze, mantido na posse dos


colonialistas portugueses foi a Barragem Hidrelétrica de Cahora-Bassa. No âmbito da
materialização do acordo de Lusaka, foi criada uma sociedade anônima de
responsabilidade limitada denominada Hidrelétrica de Cahora-Bassa (HCB),
especificamente para a exploração do potencial hidrelétrico da barragem desde a
produção e transporte para a República da África do Sul. Portugal manteve 81.60% das
ações sobre a hidrelétrica e 18.34% ficaram sob posse do novo governo moçambicano.
Só em 2007, depois de várias tentativas frustradas na década de 1990, houve uma
reversão das ações da HCB a favor do Estado Moçambicano passando este a deter 80%
das ações ficando o estado Português com os restantes 20%. Esta operação que habita
na minha memória pelas célebres palavras “Cahora Bassa é nossa”, do ex-presidente
Armando Emilio Guebuza, envolveu o compromisso assumido pelo Estado
Moçambicano de pagamento de 950 milhões de dólares americanos ao governo
português durante um período de 15 anos (MUNGÓI, 2008).

A independência nacional reafirmou autoritariamente a centralidade da


FRELIMO como “único representante do povo”, consolidando-se o regime do partido
único. A FRELIMO transforma-se no que se denomina de partido-estado – caraterizado
por invisível limite entre o Estado e o partido político, chegando ao ponto de o Estado
Moçambicano se confundir dentro do contexto patrimonialista com o partido
FRELIMO,. Esta postura permanece até hoje, apesar da constituição de 1990 ter
introduzido o multipartidarismo e ter dado as bases para o avanço de uma lógica
democrática de relação sociopolítica (BRITO, 2014, FORQUILHA, 2014, MACAMO,
2014a). Importa frisar, tal como destaca Andrade (2016, p. 210), que além de Samora
Machel e outros líderes da FRELIMO, muitos líderes africanos advogavam que o
regime de partido único respondia melhor aos conflitos inerentes às nações africanas,
rasgadas por “clivagens étnicas” e “tribalismos”. Entre os defensores desse regime
encontravam-se figuras políticas de grosso calibre como Julius Nyerere, presidente da
Tanzânia e interlocutor privilegiado dos países nórdicos; Rashidi Kawawa, primeiro

- 68 -
ministro tanzaniano; Tom Mboya, guerrilheiro, intelectual e fundador do Quênia
independente (ANDRADE, 2016). Isso para dizer que essa não era uma posição
exclusiva do regime “pós-colonial” moçambicano.

Nos dias 03 a 07 de fevereiro de 1977, realizou-se em Maputo o terceiro


congresso da FRELIMO, o primeiro após a independência. Este desempenhou um papel
importante no que concerne às orientações relativas à administração do território, à
natureza e orientação política do estado. Foi reafirmada nesse congresso a necessidade
imperiosa de combater os resquícios das mentalidades coloniais (MENESES, 2015).
Esse posicionamento reafirmava a continuidade na construção de um projeto que
ambicionava alcançar a unidade ideológica em nível nacional, como base para o projeto
da nação - fundado na ideia da construção de “um homem novo”, assentado na
igualdade jurídica de todos os cidadãos, independentemente das suas raízes étnicas.
Esse projeto resume-se, tal como nos mostra a socióloga Maria Paula Meneses, nas
célebres palavras de Samora Machel: é preciso “matar a tribo para construir a nação”.
Ou seja, havia uma crença de que as mentalidades tribais deveriam ser transformadas,
para que uma nova sociedade fosse construída, baseada na unidade nacional
(MENESES, 2015).

O “homem novo”, não só era identidade “contraste”, definido, por exemplo, em


oposição ao tribalista, regionalista – que deveria ser sobrepujado para forjar-se uma
unidade nacional – essencializado na figura de “xiconhoca” (MENESES, 2015). Como
também “homogeneizante”, pois o “homem novo” seria um homem despossuído das
marcas do seu contexto sociocultural, o que consubstancia uma política de
silenciamento e invisibilização da diversidade e da diferença social, cultural e étnica que
é típica dos países africanos. , Países que, conforme mencionado, são heranças coloniais
resultantes de um processo histórico de invasões e ocupações caracterizadas, por um
lado, pela “unificação num único território de povos antigamente independentes e
culturalmente diferentes” e por outro pela “separação em territórios diferentes de um
mesmo povo antigamente unido num mesmo território” (MUNANGA, 2016, p. 16). E,
como adverte Meneses (2015, p. 46), “ocultar ou aniquilar a diversidade implica sempre
o retorno da exclusão”.

No terceiro congresso, foi reafirmada também a posição ideológica da


FRELIMO como um partido socialista ao estilo marxista-leninista. Desde então o
regime adotou um sistema econômico de planificação centralizada. Essa linha
- 69 -
ideológica já vinha caracterizando o movimento ainda no período da luta armada,
principalmente após a morte de Eduardo Mondlane em 1969 e ascensão de Samora
Machel em 1970. Neste congresso foi explicitada a estratégia de desenvolvimento
econômico e social de Moçambique, estratégia essa que foi concretizada em 1979 com a
aprovação do que se denominou de Plano Prospetivo Indicativo (PPI) 1980-1990,
(CHICHAVA, 2011b; MOSCA, 2014) - um ambicioso plano cujo objetivo geral era
servir de guia para acabar com o subdesenvolvimento do país em 10 anos. No campo da
agricultura, o plano previa a coletivização e socialização dos meios de produção –
estratégias que já vinham sendo adotadas nas zonas libertadas, no período da guerra
colonial - através da criação das empresas estatais e da cooperativização do campo,
como a espinha dorsal do desenvolvimento. A ideia era a transformação dos
camponeses em operários agrícolas e em cooperativas assentadas na propriedade
coletiva da terra e dos principais meios de produção (MOSCA, 2014).

A socialização dos meios de produção era vista como a base para a criação de
um forte setor estatal agrário e para a transformação da agricultura familiar, com o
enquadramento de milhares de camponeses em cooperativas agrícolas e a emergência de
um operariado agrícola. E, também, para a criação de condições para o aumento da
produtividade no campo. Com essa política, a FRELIMO pretendia substituir
plantações coloniais abandonadas ou disfuncionais por empresas estatais e cooperativas
agrícolas. Tal como destacam Isaacman e Isaacman (2013), o novo regime havia
assumido após a independência quase duas mil propriedades agrícolas abandonadas ou
mal geridas, algumas das quais produziam culturas para exportação, como chá, algodão
e arroz, etc. Em 1981, por exemplo, dezenove das vinte e uma empresas de chá da época
colonial haviam sido colocadas sob a direção da então recém-criada empresa estatal
Emocha (Empresa Moçambicana de Chá) e a maioria das concessionárias de algodão,
com uma longa história de exploração do trabalho forçado, foram nacionalizadas.

As empresas estatais e as cooperativas agrícolas seriam as formas organizadas de


produção agrícola sobre as quais se assentariam as aldeias comunais21 . Essa concepção

21 Segundo o antropólogo Inácio Andrade, a implementação dessa nova política de desenvolvimento


agrário assentada nas aldeais comunais e nas cooperativas agrícolas teve um grande apoio dos países
nórdicos (Suécia, Dinamarca, Noruega, Finlândia e Islândia) históricos aliados da FRELIMO du rante a
guerra de descolonização, através de um programa de desenvolvimento rural denominando MONAP
(Mozambique Nordic Agriculture Program). O objetivo do MONAP era mitigar o impacto da saída da
força de trabalho qualificada portuguesa do país ao mesmo tempo que reconstruiria as zonas rurais
atingidas pela guerra de libertação nacional, assumindo que a retomada da produção rural era o principal

- 70 -
de produção agrícola assentada nas aldeias comunais e na produção coletiva era oriunda
da experiencia da FRELIMO nos campos de treinamentos militares na República da
Tanzânia durante a guerra da libertação e na ideia de superação dos tribalismos e
divisionismos para a construção coletiva de uma contra narrativa revolucionária. A
mesma lógica de produção havia sido implementada durante a guerra de libertação
nacional nas zonas libertadas em Cabo Delgado na região norte de Moçambique
(CABAÇO, 2007; CASAL, 1996, ANDRADE, 2016, GALLO, 2017).

A FRELIMO e os seus planejadores governamentais entendiam que não era


possível um crescimento econômico sustentável com 90% da população a viver em
comunidades rurais dispersas e a praticar a “agricultura tradicional”, vista por eles como
caótica e ineficiente. Neste contexto, havia uma necessidade de modernizar a produção,
reorganizando os camponeses em cooperativas agrícolas apoiadas por insumos agrícolas
e técnicos, como forma de revolucionar as relações de produção e elevar a consciência
política. As aldeias comunais eram vistas como o caminho para a melhoria de vida dos
moçambicanos que habitavam as áreas rurais, que teriam assim acesso à eletricidade,
água potável, cuidados de saúde, educação e outros serviços sociais básicos (CASAL,
1996, ARAUJO, 1988; BORGES COELHO, 1993). Essas justificativas sobre os
benefícios das aldeias comunais se assemelham, ainda de acordo com Isaacman e
Isaacman (2013), às justificativas dos planejadores coloniais sobre os benefícios dos
aldeamentos coloniais - um massivo processo de deslocamento compulsório para áreas
controladas, que no período da guerra figuraram como estratégia para frear o suposto
apoio a FRELIMO. De fato, a maiorias das aldeias comunais foram criadas em áreas
dos antigos aldeamentos comunais.

De 1982 a 1983 existiam 1362 aldeias comunais em Moçambique, reunindo 2


202 756 habitantes, que correspondia a 20% da população naquele período (ARAUJO,
1988). As aldeias comunais foram implementadas através de uma política de
deslocamento compulsório das populações das áreas rurais, para as áreas previamente
determinadas pelos planificadores centrais como propícias para a agricultura. Tal como
no contexto colonial, os planejadores centrais da FRELIMO raramente consultavam as
populações atingidas antes de organizá-las em aldeias comunais e não levavam em

problema que deveria ser enfrentado pelo novo estado independente. Na sua visão, o êxodo português
tinha comprometido a agricultura de larga escala e as redes comerciais do campo. Nesse sentido o
fortalecimento da agricultura familiar, setor explorado e negligenciado pelo colonialismo português, era a
chave para a dinamização da economia rural (ANDRADE, 2016).

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conta suas diversas condições ecológicas ou ainda as formas históricas de organização,
produção e reprodução social, econômica e cultural.

No capítulo 03 exploramos melhor esse processo de deslocamento compulsório.


O importante a destacar nesse momento é que essa política modernizante de produção
rural - assentada na coletivização e socialização dos meios de produção e criação das
aldeias comunais - foi a primeira forma de intervenção desenvolvimentista do governo
socialista no Vale do Zambeze. Desde então a região do Vale do Zambeze passou a
ocupar um lugar de determinada relevância na política de desenvolvimento, progresso e
modernização nacional do governo socialista. Esta política dar-se-ia no âmbito do PPI
(Plano Prospetivo Indicativo), aprovado em 1979, que visava, tal como afirmamos
acima, a materialização das diretrizes tomadas no terceiro congresso da FRELIMO e
primeiro após a independência. Diretrizes essas centradas, dentre vários pontos, na
adoção de um sistema centralizado de planificação econômica, coletivização e
socialização dos meios de produção; criação de empresas estatais; e cooperativação do
campo agrícola; como espinhas dorsais para o desenvolvimento nacional. Neste
contexto, foram aprovados grandes projetos agrários que representavam 75% dos
investimentos e da produção agrícola comercializada no setor estatal. Um desses
grandes projetos foi implementado nas terras férteis do Vale do Zambeze 22 .

No campo energético, o novo regime passou a destacar o “potencial libertador”


da Barragem de Cahora Bassa, expressando a total confiança de que a barragem jogaria
um papel essencial na revolução socialista de Moçambique, na busca pelo
desenvolvimento e prosperidade econômica. A barragem permaneceu jogando o papel
central na estratégia de desenvolvimento de Moçambique pós-colonial, mesmo depois
do abandono da ideologia socialista em 1987. A eletricidade era vista como elemento
central para o sucesso da política das aldeias comunais para as quais se previa a
eletrificação e modernização da produção agrícola. Dizia-se que era preciso domesticar
o “elefante branco” (ISAACMAN; ISAACMAN, 2013), neste caso a hidrelétrica de
Cahora Bassa, para atender as necessidades do povo moçambicano.

22 Além do grande projeto agrário do Vale do Zambeze, importa destacar também naquele período, em
nível nacional, o projeto agrário de Limpopo-Incomáti; o projeto Lucheringo; o projeto de 400 mil
hectares em Niassa e Cabo-Delgado; o projeto da região algodoeira de Nampula; o projeto Angônia-
Maravia; o projeto de Lioma; o projeto de Nauela; o projeto Catandica e o projeto de Sussundenga,
Rovué-Vundúzi-Púngoé. A área cultivada por esses projetos agrários era nos finais da década 1970 de
aproximadamente um milhão de hectares (CHICHAVA, 2011a).

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Essa postura contraria o posicionamento inicial da FRELIMO, ainda no tempo
da guerra de libertação, que foi diplomaticamente e militarmente hostil à construção da
barragem. A campanha diplomática contra a construção da Barragem de Cahora Bassa
no Vale do Zambeze começou em 1968 quando Eduardo Mondlane, primeiro presidente
da FRELIMO criticou abertamente a aliança entre os colonialistas portugueses e o
regime do apartheid. Para Mondlane se a barragem não fosse destruída ela é que iria nos
destruir e o regime racista branco em África iria definitivamente triunfar (ISAACMAN;
ISAACMAN, 2013). O chamado de Mondlane ajudou a desencadear uma campanha
internacional bem organizada e altamente visível para bloquear o financiamento à
barragem com uma pluralidade de atores.

Um dos objetivos da campanha, tal como nos mostram os autores, era convencer
as grandes corporações ocidentais, tais como o Barclays Bank, a General Electric, a
Siemens, a AEG e a Compagnie de Construtions Internationales a não financiar a
construção da Barragem. Um dos principais porta-vozes internacionais do movimento
contra a barragem de Cahora Bassa foi o então presidente da Zâmbia, aliado histórico de
Moçambique, Kanneth Kaunda. A sua longa oposição ao colonialismo português, a sua
eleição como presidente da Organização da Unidade Africana (OUA) em 1970, bem
como o seu papel como líder do movimento dos não alinhados, deram a Kaunda
estrutura e espaço para argumentar que a barragem era um crime contra a humanidade e
a pressionar embora sem sucesso outros países europeus a impedir que os seus nacionais
investissem no empreendimento. A conferência ministerial da OUA em Adis Abeba
realizada a seguir, reafirmou essa posição, condenando Cahora Bassa como símbolo do
colonialismo e um impedimento para libertação da África. O apelo de Kaunda se
estendeu também, mas sem sucesso, para as Nações Unidas (ISAACMAN;
ISAACMAN, 2013).

Internamente, a FRELIMO começou os seus ataques militares visando à


construção da barragem em 1971, emboscando os caminhões que levavam suprimentos
e equipamentos essenciais, criando sérios prejuízos ao empreendimento que precisava
diariamente de mais de 300 toneladas de alimentos e material para sustentar os
trabalhadores e o projeto. Com o tempo, a guerrilha da FRELIMO passou a controlar as
principais vias de acesso, atacando o tráfego entre o atual distrito de Songo e a costa do
Índico. As ações envolviam também sabotagem de trens. Ainda em 1971 a guerrilha da
FRELIMO atacou o local da construção do empreendimento matando 9 funcionários da

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GPZ e sequestrando seis portugueses e cinco africanos (ISAACMAN; ISAACMAN,
2013). Em novembro de 1972, a FRELIMO lançou uma bomba contra a base aérea de
Tete e atacou 11 comboios que levavam material sensível para Cahora Bassa, a partir do
porto da Beira. Essa é considerada uma das mais significativas ações militares, embora
não tenha conseguido impedir a construção desse empreendimento que, numa
reviravolta de posicionamento, passou, desde a independência a assumir um papel
central na política desenvolvimentista do estado pós-colonial, bem como, no plano de
modernização do Vale do Zambeze.

No campo da mineração, as ricas minas de carvão de Moatize continuaram em


operação após a independência. Em 1978, seguindo a política de nacionalização iniciada
em julho de 1975, a Companhia Carbonífera de Moçambique, que continuava
explorando o carvão de Moatize, foi nacionalizada através do decreto nº 11/78 de 12 de
maio. Foi criada uma empresa estatal denominada Empresa Nacional de Carvão de
Moçambique, abreviada em Carbono de Moçambique – Empresa Estatal (Carbomoc-
EE). Dois grandes acontecimentos antecederam a nacionalização da Companhia
Carbonífera de Moçambique que explorava as minas de Moatize desde os anos finais do
período colonial, a saber: (i) o acidente no interior da mina denominada Chipanga VI
em 16 de setembro de 1976, no qual perderam a vida aproximadamente 96
trabalhadores moçambicanos e 02 portugueses. (ii) o acidente no interior da mina que se
denominava Chipanga III, em 02 de agosto de 1977, onde morreram 63 moçambicanos
e um português. Esse segundo acidente desencadeou uma revolta no seio dos
trabalhadores moçambicanos, amigos e familiares das vítimas, que resultou na morte de
quase toda a direção técnica-administrativa da companhia carbonífera de Moçambique
(MENESES, 2014).

Na década 1980, a produção entrou em declínio em função da crise econômica


que assolava o país, provocada pelo fracasso das políticas de desenvolvimento
econômico e social imposto pelo regime socialista. A partir de 1983, por exemplo,
devido à incapacidade de manter os níveis de produção o governo se viu na
contingência de suspender a produção em 3 das 5 minas da empresa estatal Carbomoc-
EE (MENESES, 2014). O declínio da produção, bem como a crise econômica, foi
também influenciado pela guerra civil que assolava o país desde 1977. É que, após a
independência, o novo Estado moçambicano passou a apoiar oficialmente o ANC sul-
africano, cortou as ligações terrestres da Rodésia segregacionista de Ian Smith com o

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Oceano Indico e apoiou logisticamente a guerrilha de resistência colonial no Zimbábue.
No campo geopolítico e geoestratégico Moçambique era membro do movimento dos
países não alinhados - opositores do regime racista sul africano. Essas ações fizeram
com que o regime moçambicano atraísse vizinhos inimigos - o regime segregacionista
de Ian Smith na então Rodésia, bem como o regime do apartheid na África do Sul, que
já não suportava a possibilidade de dividir suas fronteiras com um estado africano
socialista, razão pela qual entendia que tinha que destruí-lo.

De 1976 a 1980 as forças militares da Rodésia atacaram as zonas fronteiriças


matando civis e destruindo infraestruturas. Ao mesmo tempo o governo segregacionista
da Rodésia encorajou a formação e financiou uma organização militar formada por
dissidentes da FRELIMO denominada Mozambique National Resistence (MNR) e que
mais tarde foi rebatizada em RENAMO (Resistência Nacional de Moçambique).
Eclodia assim no país uma guerra civil pós-independência entre o governo da
FRELIMO e a guerrilha da RENAMO. Com a independência do Zimbabwe, em 1980, a
RENAMO passou a receber o apoio direto do regime do apartheid na África do Sul. O
quartel general da guerrilha foi transferido de Rodésia para a província de Transvaal na
África do Sul. O conflito durou 16 anos e só terminou em 1992 com a assinatura do
acordo geral de paz no dia 24 de outubro em Roma, mediado pela igreja católica.
Deixando um saldo de milhões de mortos, aproximadamente 1,7 milhões de refugiados
(RAIMUNDO, 2010) e 3,5 milhões de deslocados internos (VIVET, 2015).

A crise da década de 1980 obrigou a um reexame das políticas de


desenvolvimento econômico e social adotadas pelo governo socialista. O campo
geopolítico e geoestratégico mundial não era dos melhores para o regime socialista.
Assistia-se o fim da guerra fria e o consequente processo de desintegração da URSS
(União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), mentor ideológico e parceiro estratégico
do governo socialista moçambicano desde a guerra de libertação colonial. Assistia-se à
vitória da ideologia capitalista, da democracia liberal ocidental e o triunfo do
liberalismo econômico, posteriormente celebrado por Francis Fukuyama no seu célebre
livro “The End of History and the Last Man”, publicado no início da década 1990. Foi
nesse âmbito que a FRELIMO se reuniu em 1983 no seu IV congresso com o intuito de
analisar a crise econômica e social que o país estava passando e decidiu adotar novas
diretivas econômicas e sociais. Desta feita, apoiadas no setor de produção familiar, em
especial na atividade agropecuária, assegurando os recursos necessários em

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instrumentos de trabalho, meios de produção e bens essenciais para a troca no campo,
bem como na forte combinação dos pequenos e grandes projetos para o combate à fome
e o aumento de receitas em divisas para o país. Como forma de materializar as diretivas
do congresso, foi aprovado um Plano de Ação Econômica (PAE), através do qual se
iniciou um processo de liberalização de preços, que, aos poucos, foi marcando os
primeiros momentos da introdução da economia de mercado em Moçambique
(CHICHAVA, 2011b).

Buscando implementar as decisões do IV Congresso, e superar a crise


econômica e o fracasso das políticas socialistas de “desenvolvimento”, o governo
moçambicano desencadeou uma ofensiva diplomática para abrir as portas ao ocidente e
negociar a ajuda ao desenvolvimento nacional. Em 1983 Samora Machel, então
presidente de Moçambique, visitou os Estados Unidos da América e o Reino Unido. No
mesmo ano, começaram as negociações com as instituições de Bretton Woods e em
1984, Moçambique foi aceito como membro do Fundo Monetário Internacional (FMI) e
do Banco Mundial (BM), o que permitiu ao país começar a receber uma significativa
assistência bilateral das instituições internacionais de ajuda ao desenvolvimento
(CHICHAVA, 2011b, p. 16). Em 1987, começa a implementação de um Programa de
Reabilitação Econômica (PRE) imposto pelo FMI e Banco Mundial com os objetivos de
reverter a queda da produção nacional; assegurar à população das zonas rurais receitas
mínimas e um nível de consumo mínimo; reinstalar o balanço macroeconômico através
da diminuição do déficit orçamentário; reforçar a balança de transações correntes e a
balança de pagamentos (CHICHAVA, 2011b).

Um dos principais propósitos do PRE foi liberar a economia para as regras do


mercado e isso passava, segundo Chichava (2011b), pela restruturação e privatização
das empresas estatais; introdução de critérios rígidos de rentabilidade em toda gestão
econômica; incentivo à agricultura privada, de pequena escala e familiar, através de
melhores termos de troca e de um aumento da oferta de bens; liberação do comércio e
abolição dos preços fixos. Em 1989 integrou a sua componente social o PRES. Ou seja,
o PRE marcou a virada do sistema econômico centralizada para a economia de mercado
ou ideologia do liberalismo econômico.

Apesar de todas as expetativas, esta opção tem-se mostrado tão cruel quanto foi
a anterior. Por exemplo, passados aproximadamente quatro décadas dessas ações,

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Moçambique continua sendo um dos países mais pobres e desiguais do mundo 23 . A
introdução dessa nova ideologia de desenvolvimento econômico e social foi ratificada
com a aprovação da constituição de 1990, que introduz o pluralismo político e o fim do
sistema de partido único, autoritariamente imposto após a independência. Abrir-se-ia
espaço para o avanço de uma lógica democrática de relação e organização social,
econômica e política.

O liberalismo econômico abriu espaço para a chegada do amplo investimento


estrangeiro em Moçambique e somado às inúmeras ONGs que chegaram ao país com o
fim da guerra civil pós-colonial em 1992, trouxe novas expectativas, não só, de
“crescimento e revitalização comercial e de acesso a bens e produtos de consumos
ocidentais” (ANDRADE, 2016, p. 66), como também, de desenvolvimento,
modernização e progresso nacional.

O Vale do Zambeze continuou ocupando um lugar estratégico na nova política


de desenvolvimento e progresso nacional. No início da década 90, por exemplo, o
governo de Moçambique começou uma campanha para apoderar-se do controle da
Barragem de Cahora Bassa e retirar a produção de energia das mãos de Portugal. Porém
o governo português continuou rejeitando todas tentativas de eliminação ou redução dos
custos de aquisição da Barragem, que era estimado no âmbito de acordo de Lusaka em
550 milhões de dólares. Para aumentar o poder de persuasão, o governo moçambicano
ameaçou reviver um antigo plano colonial de construção de uma segunda barragem no
rio Zambeze a 60km da barragem de Cahora Bassa, em Mpanda Nkuwa, como forma de
reduzir a rentabilidade da hidrelétrica de Cahora Bassa (ISAACMAN; ISAACMAN,
2013).

A reversão de Cahora Bassa para o controle moçambicano só aconteceu, tal


como destacamos acima, em 2007. No entanto, Mpanda Nkuwa que começou como
uma ameaça e persuasão na tentativa de arrebatar o controle de Cahora Bassa, passou a
figurar, com maior intensidade nos governos de Armando Emilio Guebuza (2005-2010;
2010-2015) – com a entrada do capital chinês através do financiamento do Eximbank
(The Export –Import Bank of China) e de empresas brasileiras como é o caso da
Camargo Correa, empresa responsável pela construção da nova Barragem Hidrelétrica –

23 Porexemplo, segundo dados do Relatório de Desenvolvimento Humano do Programa das Nações


Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), Moçambique ocupa 181° posição no Índice de
Desenvolvimento Humano (IDH) no total de 188 países, uma das piores posições. Ver: UNDP (2016).

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como um estratégico projeto de desenvolvimento e progresso nacional no Vale de
Zambeze.

Em 1995, o governo moçambicano reativa a GPZ uma agência criada pelo


governo colonial na época de Salazar para promover o desenvolvimento exploração e
modernização do Vale do Zambeze, que havia sido extinta logo após independência, no
âmbito da política de distanciamento de qualquer lógica de desenvolvimento,
organização e produção sócio econômica colonial. Rebatizada com o nome de
“Gabinete do Plano de Desenvolvimento Região do Zambeze”, mas mantendo a
abreviatura GPZ. Com a criação deste gabinete, o governo moçambicano voltou a
colocar a região do Vale do Zambeze num lugar estratégico, não só para o
desenvolvimento econômico e social do país, como também, de toda a região da África
Austral. Advogo que a reativação do GPZ e do projeto de criação da barragem de
Mpanda Nkuwa evidencia um amplo processo de implementação de projetos do
governo colonial no Vale do Zambeze. Isso inclui os projetos de exploração mineral,
pois tal como já afirmamos o GPZ colonial criado por Salazar, realizou através do
MFPZ, um processo de mapeamento e inventário de recursos minerais do Vale do
Zambeze, incluindo as ricas minas de carvão mineral. E mais, a construção da barragem
de Mpanda Nkuwa visa dar resposta à demanda de energia nos países vizinhos, mas
também nas atividades de exploração mineral na região.

O novo GPZ assenta, segundo Mungói (2008), em cinco eixos essenciais e


complementares: (i) a valorização da água tendo em conta que o vale do Zambeze
concentra a maior reserva da região austral; (ii) a produção de cereais, fibras têxteis,
oleaginosas, proteínas vegetais, florestas renováveis com espécies nativas ou exóticas.
A ideia é que o Vale do Zambeze possa responder a demanda dos países da África
austral que se encontram em situação de esgotamento dos seus solos; (iii) a exploração
dos recursos minerais ferrosos e não ferrosos. Existem, segundo Mungói (2008) dados
sobre a existência na região de reservas de ferro, titânio-magnetites, ilmenites, cobre,
níquel, potenciais de ouro e platina, zircão, carvão, nefelitas, sienites, fosfatos, barites,
fluorites, bauxita e grafites; (iv) o (suposto) desenvolvimento comunitário, através da
valorização dos recursos de solo e água e implementação de projetos destinados ao
desenvolvimento da agricultura familiar, com o intuito de reverter o baixo índice de
desenvolvimento humano das populações da região, resultante de situações estruturais e
conjunturais, algumas das quais herdadas do período colonial; (v) a produção de energia

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com a construção das barragens hidrelétricas, e também com a exploração das
importantes reservas de carvão mineral nas bacias carbonífera de Mecanha Vuzi e de
Moatize.

Como forma de materializar esse objetivo e dinamizar a atividade de pesquisa e


exploração mais sistemática dessas importantes reservas de carvão mineral em Moatize
e outros recursos minerais no país, um leque de restruturação legislativa foi
desenvolvido desde a década 1990, culminando com a aprovação no ano de 2002 de
uma nova lei de minas (lei 14/2002 de 24 de julho). Essa lei criou um contexto jurídico
específico que permitiu na prática a possibilidade de um crescimento rápido do setor de
mineração no país dando espaço para a materialização de uma lógica
desenvolvimentista baseada na exploração e exportação de commodities.

2.2 A nova encruzilhada dos projetos de exploração e “desenvolvimento” no Vale


do Zambeze: a chegada da Vale em Moatize

A aprovação da nova lei de minas em 2002 lançou uma nova era da indústria
extrativa mineira em Moçambique, que, em outras bases, voltou a assumir um lugar
estratégico na política de “desenvolvimento” e “progresso nacional”. Em 2004 o
governo moçambicano lançou um concurso internacional para concessionar as minas de
carvão de Moatize - onde concorreram várias empresas, dentre elas a multinacional
australiana BHP Billiton e a multinacional brasileira Vale. Maior multinacional
brasileira, atrás da estatal Petrobrás, a Vale foi criada como uma empresa estatal de
mineração em 1942 durante o governo de Getúlio Vargas. Na época era chamada de
Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), porque o seu foco de atuação era o minério de
ferro da região de Itabira, na bacia do Rio Doce, em Minas Gerais. Na década de 1980
passou a explorar o minério de ferro de Carajás no Pará (PALHETA DA SILVA, 2013).
Em 1997 durante o governo de Fernando Henrique Cardoso foi privatizada por 3,3
biliões de dólares e adquirida por um consorcio denominado Companhia Siderúrgica
Nacional (CSN) do Brasil. Em 2006 comprou a mineradora canadense Inco e se tornou
uma das três maiores empresas mineradoras do mundo, junto com a australiana BHP
Billiton e a Anglo-Australiana Rio Tinto (todas já atuam no mercado moçambicano).

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No mesmo ano deixou de ser CVRD e passou a se chamar Vale 24 . Atualmente a Vale é
a segunda maior mineradora do mundo com operações em vários estados Brasileiros e
em mais de trinta países distribuídos nos seis continentes. Contudo até aquele momento
(em 2004) a empresa não operava no território moçambicano e muito menos no
mercado africano de modo geral e aquela era a oportunidade de mudar o curso da
história.

Diferentemente da Vale, a multinacional BHP Billiton já se encontrava em


operação no mercado moçambicano desde 1998. É a principal investidora do
megaprojeto Mozal, uma empresa de fundição que produz lingotes de alumínio a partir
de bauxita importado da Austrália, com 47%. Os investimentos restantes pertencem à
Mitsubishi Corporation, uma multinacional de origem japonesa, que possui 25%; a
Industrial Development Corporation of South Africa, pertencente ao banco público de
desenvolvimento industrial do governo sul-africano com 24% e os restantes 4%
pertencem ao governo de Moçambique (LANGA; MANDLATE, 2013). A Mozal foi o
primeiro grande projeto de Investimento Direto Estrangeiro (IDE) do estado pós-
colonial moçambicano, com investimento orçado em 2,26 biliões de dólares (LANGA;
MANDLATE, 2013).

A BHP Billiton e a Vale são “concorrentes amigos” ou seria “amigos


concorrentes”, no mercado mineralógico mundial. Enquanto em Moçambique foram
rivais no concurso para as minas de Moatize e atualmente cada uma possui
empreendimentos distintos, no Brasil são sócios em vários empreendimentos incluindo
a mineradora Samarco, responsável pelo “desastre ambiental de Mariana”, considerado
o maior desastre ambiental na história do Brasil, causado pelo rompimento no dia 15 de
novembro de 2015, da barragem de Fundão, propriedade da mineradora, no município
de Mariana em Minas Gerais. Este desastre matou imediatamente 19 pessoas e despejou
cerca de 50 milhões de metros cúbicos de resíduos minerários sobre o Rio Doce, que
percorreram aproximadamente 600 km até o litoral do Espírito Santo no sudeste do
Brasil (ZHOURI, et al, 2016; MARSHAL, 2017).

O concurso internacional para a concessão das Minas de Moatize foi vencido


pela multinacional brasileira Vale, constituindo o primeiro grande Investimento Direto

24 Atualmentetem como principal acionista a Valespar S.A que controla o conselho de administração. A
Valespar S.A é composta pela BNDESPAR, com 11.5% das ações, o grupo Mitsui com 18.2%, a
Bradespar com 21.2%, e a Litel com 49% das ações.

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Estrangeiro (IDE) Brasileiro em Moçambique. Lembro-me da efervescência criada pelo
anuncio da chegada da Vale em Moçambique. Para o governo moçambicano os grandes
projetos, denominados em nível nacional de “megaprojetos”, são uma espécie de
“salvadores da pátria” rumo ao desenvolvimento e progresso nacional. Já havia existido
essa expetativa com a chegada da Mozal, mas a Vale era, para o governo, como se fosse
o maior dos salvadores. Para as pessoas comuns também os megaprojetos ofereciam
uma “oportunidade de bom emprego”. Trabalhar na Vale, por exemplo, era visto com
uma grande oportunidade de receber um “salário digno”. Era comum ouvir no cotidiano
palavras como: - “se eu conseguir emprego na Vale eu abandono o trabalho no estado”
… “Mas o estado garante reforma” – podia retrucar outra pessoa. … A resposta era
imediata: “lá eu consigo fazer minha reforma”.

A efervescência da chegada da Vale a Moçambique não foi exclusiva do


governo moçambicano ou de alguns moçambicanos que viam naquela uma
“oportunidade de emprego e salário digno”. Ela tomou conta também do governo
Brasileiro, tendo em conta que, simbolizava a vitória na política econômica do governo
Inácio Lula da Silva (2003-2013), “amigo de África”, caraterizada por uma ampla
abertura para o continente africano e em particular para Moçambique. Abertura essa,
assentada no discurso da cooperação sul-sul, como alternativa à relação hegemônica
mundial norte-sul baseada, na visão dos defensores da cooperação sul-sul, numa lógica
de exploração e dominação. Neste contexto, o anuncio da vitória da Vale foi destacado
pelo governo Brasileiro como um grande dia nas relações do Brasil com o continente
africano, para as quais o governo Lula se empenhara com maior força. Segundo a
jornalista Amanda Rossi (2015), a vitória não coroava apenas os esforços da própria
Vale, mas as ações da máquina pública do então governo Brasileiro que atuara em favor
da multinacional, reforçando o poder de negociação da mineradora e aumentando “a boa
vontade” das autoridades moçambicanas que escolheriam o vencedor para as ricas
minas de Moatize. A suposta garantia de participação do BNDES no projeto Moatize,
bem como a formalização em 2004, no auge das discussões sobre o concurso
internacional para concessão das minas de Moatize, do perdão da dívida moçambicana
com o Brasil avaliada em 315 milhões de dólares, anunciada por Fernando Henrique
Cardoso (1995-2002) em 2000, são apontados pela jornalista como elementos que
acabaram de certa forma favorecendo a vitória da multinacional Brasileira para a
exploração das minas de Moatize.

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O interesse Brasileiro pelas minas de Moatize é anterior ao governo Lula, remete
ao período da ditadura militar no Brasil especificamente no governo militar do João
Figueiredo (1979-1985). Foi no governo de Figueiredo, concretamente no início da
década 1980, que começaram as primeiras negociações para a entrada do investimento
Brasileiro na exploração das minas de Moatize. No entanto essas negociações eram o
corolário de uma política de abertura econômica Brasileira para o mercado africano
iniciada no governo Jânio Quadros (1961-1961), continuada por João Goulart (1961-
1964), abandonada pelos primeiros dois governos da ditadura militar – Castelo Branco
(1964-1969) e Costa e Silva (1967-1969) – e retomada nos três últimos governos
militares: Médici (1969-1974), Geisel (1974-1979) e Figueiredo (ZAMPARONI, 2007;
RIBEIRO, 2009; MUTZEMBERG, 2014; ROSSI, 2015; MEDEIROS DA SILVA,
2017). Foi com a chamada política externa independente de Jânio Quadros que a África
reemergiu como ator determinante na política externa brasileira. Dizia que o Brasil tinha
uma dívida com o continente africano devido à escravidão. Entendia que os problemas
enfrentados pelos dois lados do Atlântico eram semelhantes e, por isso, as respostas
poderiam ser compartilhadas. Via os Brasileiros e africanos como “povos irmãos da luta
contra o subdesenvolvimento” (ROSSI, 2015, p. 69). Em 1961, Quadros abriu a
primeira embaixada no contente africano - em Gana, país que se tornara independente
do colonialismo europeu em 1957. Gana era liderado por Kwane Nkrumah, um dos
fundadores do pan-africanismo (APPIAH, 2014). Segundo Zamparoni (2007) é desse
período a criação no campo acadêmico de três centros de estudos africanos existentes
ainda hoje no Brasil. Nomeadamente o Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO) da
Universidade Federal da Bahia (UFBA); o Centro de Estudos Afro-Asiáticos (CEAA)
do Rio de Janeiro; e o Centro de Estudos Africanos (CEA) da Universidade de São
Paulo (USP).

João Goulart que assumiu após a renúncia de Quadros deu continuidade à


Política Externa Independente ao conflito ideológico da guerra fria e de abertura
econômica com o continente africano. Até 1964, período da derrubada de Goulart e
início da ditadura militar no Brasil, foram abertas embaixadas na Nigéria e no Senegal e
consulados em Moçambique e Angola, que ainda não estavam independentes. Nos
primeiros anos do governo militar, sob o comando rígido do Castelo Branco, até 1967, e
do Costa e Silva até 1969, não só se interrompeu a Política Externa Independente ao
conflito ideológico da guerra fria, como também, o Brasil se fechou para o continente

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africano. O Brasil se alinhara aos interesses das grandes potências ocidentais com
destaque para os EUA e subordinou a sua política externa africana aos interesses
colonialistas portugueses (ZAMPARONI, 2007). As pequenas conquistas nas relações
Brasil-África se diluíram. Os embaixadores em Gana e na Nigéria, por exemplo,
voltaram para a sua terra natal, Brasil. Nesse período Moçambique, e outros países
africanos que eram colônias de Portugal, viviam a guerra de libertação colonial. Esses
governos militares apoiaram a repressão de Portugal aos movimentos, como a
FRELIMO, que lutavam pela independência e emancipação nacional. Fato que afetou
negativamente as relações entre Brasil e Moçambique nos primeiros momentos do
estado “pós-colonial” (ROSSI, 2015).

A posição hostil à África dos governos militares sofre uma reviravolta no


governo Médici (1969 a 1974), incentivada pela consciência de irreversibilidade das
independências em África e pela busca de novos mercados para a sua produção
industrial. O Brasil vivia o dito “milagre econômico” e “já não importava a cor física ou
ideológica dos parceiros desde que comprassem os produtos brasileiros”
(ZAMPARONI, 2007, p. 48). Foi, por exemplo, nesse período, que a Petrobras
começou a se expandir para o continente africano. Gestada por Médici, essa lógica de
política externa foi seguida também por Geisel e por Figueiredo. Com Geisel o Brasil
passou para a ofensiva, reconhecendo por exemplo a declaração unilateral da
independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde, proclamada pelo Partido Africano para
Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) e foi um dos primeiros países
ocidentais a reconhecer o governo do MPLA (PIMENTEL, 2000; ZAMPARONI, 2007,
ROSSI, 2015). Vale realçar que o MPLA governa Angola desde a independência de
Portugal em 1975 e foi junto com a UNITA e o FNLA, um dos principais protagonistas
internos da guerra civil “pós-colonial” angolana que só teve término de fato em 2002,
deixando um saldo de milhões de mortes e deslocados compulsórios internos e
refugiados.

A ação de reconhecimento do governo brasileiro foi, segundo Amanda Rossi


(2015), determinante para a reaproximação das relações entre Brasil e Moçambique que
se haviam esfriado com a ditadura brasileira. Em função disso, quatro dias depois da
independência de Angola, no dia 15 de novembro de 1975, Moçambique assinou um
acordo de relações diplomáticas com o Brasil e foi criada uma embaixada oficial do
Brasil em Maputo, capital de Moçambique. Desde então o governo Geisel abriu linhas

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de credito do Banco do Brasil para Moçambique importar produtos da indústria
brasileira. Em 1979, João Figueiredo manteve a política de abertura econômica para o
mercado africano. Nesse período as construtoras brasileiras, como por exemplo, a
Odebrecht, começaram a fazer obras em vários países do continente africano, desde
estradas na Mauritânia, em Camarões e no Congo à hidrelétrica de Capanga em Angola.
Figueiredo foi o primeiro presidente a visitar África em novembro de 1983, tendo
escalado cinco países com exceção de Moçambique - que vivia desde 1976 a guerra
civil “pós-colonial”. Foi também no seu governo que o carvão de Moatize começou a se
tornar um potencial ponto de ligação entre os dois países. Tal como destaca Rossi
(2015), era a maior riqueza que Moçambique podia explorar em curto prazo. O novo
governo “pós-colonial” contava com ele para alavancar a economia nacional. É que a
mineração era uma das atividades econômicas mais importantes de Moçambique e havia
perspectivas de que as reservas das minas carvão de Moatize em Tete colocariam o país
entre os cinco maiores produtores mundiais. Algumas delas eram a céu aberto – tal
como está sendo atualmente – sendo que, poderiam ser exploradas sem a escavação de
tuneis, perigosos e pouco eficientes, tal como estava sendo feito naquele momento pela
Companhia Carbonífera de Moçambique. Faltavam porem investidores tendo em conta
que era um empreendimento de custo mais elevado. O Brasil via no potencial
mineralógico moçambicano uma oportunidade de expandir a sua presença no continente
africano. Empresas Brasileiras começaram a negociar diretamente com o governo
moçambicano. “A construtora Mendes Junior elaborou, por exemplo, propostas na área
de transporte, entre elas a construção da ferrovia de Nacala que está atualmente a cargo
da Vale” (ROSSI, 2015, p. 85). A estatal Companhia de Pesquisa em Recursos Minerais
(CPRM) se instalou em Tete e começou o processo de pesquisa e análise do subsolo em
busca da viabilidade de empreendimentos (ROSSI, 2015).

Na segunda metade dos anos 1980, as relações esfriaram. Influência, (i) do lado
moçambicano, da guerra civil e da grande crise econômica associada ao fracasso de
algumas políticas econômicas do governo socialista. Com a crise econômica e militar o
então governo moçambicano não conseguiu pagar os empréstimos do governo
Brasileiro para a compra de produtos industrializados, débito que até aquela época, já
somava quase 200 milhões de dólares (ROSSI, 2015, p.87). A inadimplência levou à
interrupção de novos créditos. Também foram bloqueadas as discussões sobre a
construção de obras, os projetos agrícolas e de exploração de carvão, afundando desse

- 84 -
modo, a possibilidade de as empresas Brasileiras explorarem as ricas minas de carvão
mineral em Moatize. Do lado brasileiro (ii), também se vivia a derrocada do otimismo
do “milagre econômico” e as contradições da política econômica do regime militar
ficavam exposta. O país estava endividado e em crise inflacionária.

Depois de vários anos de resistência, a ditadura foi democraticamente derrubada


no Brasil e depois da morte de Tancredo Neves que nem chegou a assumir de fato a
presidência do país, o então vice Jose Sarney (1985-1990) assume. Embora na política
externa, Sarney tenha de certa forma mantido a política de abertura econômica para o
continente africano, as relações com Moçambique continuaram esfriando. A
possibilidade de entrada do capital Brasileiro para a exploração das minas de Moatize
continuava cada vez mais distante. Porém o governo moçambicano continuava
insistindo na parceria com o Brasil e tentava atrair a nova república Brasileira a
embarcar na exploração do carvão. O governo Sarney foi se mostrando aberto. Na
sequência, o governo moçambicano destinou para o Brasil a área noroeste do rio
Revúboe atual área onde se encontra instalada a mina da Vale (ROSSI, 2015, p. 101),
para pesquisa e prospecção mineral. Foi nesse período que a então empresa estatal
Companhia do Vale do Rio Doce (CVRD) entrou em jogo e assinou em 1989 – mesma
época em que estava se implantando em Carajás – um contrato com Moçambique para
produzir um estudo de viabilidade de um projeto integrado de carvão - mina de
exploração, ferrovia e porto, aos moldes do que está sendo implementado atualmente.
Contudo sem nenhum avanço significativo (ROSSI, 2015). O esfriamento se manteve
no governo de Fernando Collor (1990-1992), bem como nos governos de Fernando
Henrique Cardoso (1995-2003) que sucedera a Itamar Franco (1992-1995). Franco foi
vice-presidente de Fernando Collor e assumira a presidência do Brasil após o
impeachment de Collor em 1992. No governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC)
foram fechados diversos postos diplomáticos em vários países africanos como por
exemplo, na Etiópia, Tanzânia, Camarões, República Democrática do Congo, Togo e
Zâmbia. Tal como afirma Pimentel (2000, p. 8) no Governo Fernando Henrique
Cardoso, as relações com Estados Unidos e Europa atingem níveis qualitativos
excepcionais “e, enquanto se avança em direção ao aprimoramento das relações com a
Ásia, o sucesso do Mercosul faz as atenções do empresariado convergirem para os
vizinhos continentais. Nesse contexto, a posição relativa da África perde atrativos”.

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Em 1997, a CVRD foi privatizada e em face da abertura do governo
moçambicano para a entrada de investimento brasileiro na área de mineração, começou
a negociar por conta própria sua entrada na atividade de extração mineral em
Moçambique. O governo de FHC deu impulso nas pretensões da multinacional
Brasileira reabrindo politicamente as negociações com o governo moçambicano para a
exploração das ricas minas de carvão de Moatize, que haviam se esfriado na década de
1980 e anunciou a intenção de perdão da dívida de Moçambique com o Brasil - avaliada
em aproximadamente 300 milhões de dólares - um grande passo para a retomada das
relações econômicas. O perdão, todavia, só foi efetivado com o governo de Luís Inácio
Lula Silva, no âmbito da sua política de ampla abertura e cooperação com o continente
africano, principalmente, com Moçambique. Essa ação é vista por Rossi (2015) como
uma das primeiras ações que culminaram com a vitória da Vale para a exploração
mineral das minas de Moatize deixando para trás empresas como a mineradora BHP
Billiton. Depois da vitória, a Vale começou a fazer estudos minerais que mostraram que
a reserva tinha 1,87 milhões de toneladas de carvão bruto e vida útil de 35 anos, sendo
considerada a segunda maior mina a céu aberto. Em 26 de junho de 2007, a mineradora
assinou, através da sua subsidiária Rio Doce Moçambique Limitada (RDML) 25 -
entidade de direito moçambicano criada para desenvolver o projeto Moatize e deter a
licença de prospecção, pesquisa e concessão mineira. Um contrato equivalente a um
prazo de 25 anos renováveis por mais 25 anos, para exploração em mina a céu aberto do
carvão de Moatize, numa área estimada em aproximadamente vinte cinco mil hectares,
incluindo áreas de ocupação imemorial ou datada pelas comunidades locais.

25 Detida pela Vale com 95% das ações, a Vale Mocambique Ltda, congrega tambem na sua estrutura
acionista 5% dos investimentos pertencentes ao governo moçambicano. Em 2014, a Vale vendeu 15% da
sua participação à Japonesa Mitsui.

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Mapa 06: Área de exploração concessionada a Vale

Fonte: VALE (2006).

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O projeto teve um investimento inicial – inerente à instalação e exploração da
primeira mina a céu aberto – de aproximadamente dois biliões de dólares, sendo o maior
projeto de investimento no setor mineiro no país. Contudo a estimativa era de um
investimento final de aproximadamente 8,5 biliões de dólares, desde a extração e
escoamento do carvão mineral. O valor de investimento estimado torna até então o
“projeto de Moatize”, tal como também é denominado o megaprojeto de exploração
mineral da Vale em Moatize, no maior investimento corrente do Brasil no continente
africano (ROSSI, 2015), bem como, no primeiro grande investimento da Vale no
continente africano. Em 2010, expandiu o seu horizonte de investimentos para a
Zâmbia, para a exploração da mina de cobre de Lubambe através de uma Joint Venture
com a African Raibow Minerals num investimento estimando em 400 milhões de
dólares. Em Moatize a produção começou em 2011. Em 2013 atingiu uma produção de
4 milhões de toneladas, o que corresponde a 40% da capacidade instalada de produção
que é equivalente a 11 milhões de toneladas ao ano. Em 2014 a produção subiu para 5
milhões de toneladas, e 5,5 milhões de toneladas em 2016, sendo 3,5 milhões de
toneladas de carvão metalúrgico e 2 milhões de toneladas de carvão térmico (VALE,
2017). A produção total de carvão de Moatize em 2016, equivaleu a aproximadamente
80% da produção total do carvão da empresa que foi de 7, 2 milhões de toneladas.

A Vale é, tal como destacamos na introdução, também o maior investidor do


Corredor Logístico de Nacala (CLN), junto com os Caminhos de Ferro de Moçambique
(CFM) que oficialmente entrou em funcionamento em maio de 2017 (NOGUEIRA,
2017). Nesse projeto a multinacional investiu na construção de 912 Km de linha férrea
que liga o distrito de Moatize ao distrito de Nacala à Velha, na província de Nampula,
Região Norte de Moçambique, passando pela República do Malawi. Investiu também,
na construção do Porto de escoamento de carvão na mesma região. Dentre vários efeitos
sociais e ambientais do projeto, estima-se que mais de duas mil famílias foram
compulsoriamente deslocadas ao longo do corredor de Nacala. Do total da linha férrea,
o primeiro trajeto de 230Km, partindo da área da mina de Moatize à Cuamba, passando
pela república de Malawi foi construído do zero. No segundo trajeto de 682km que
segue de Cuamba até a cidade portuária de Nacala, já existia uma linha férrea em
operação que foi reformada. A construção dessa linha férrea e do porto de escoamento
em Nacala tinha como objetivo diminuir a dependência, no escoamento de carvão, pela
Linha de Sena e Porto da Beira, região central de Moçambique. A ideia é criar um

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sistema integrado de produção - mina, linha férrea e porto - aos moldes de Carajás,
Município de Parauapebas, Estado do Pará, região norte do Brasil. A linha férrea
“Moatize-Nacala” passa pelo distrito de Monapo, também na província de Nampula,
onde a Vale está em processo de prospecção e pesquisa para a exploração das recém-
encontradas reservas de fosfato que colocam o país na posição de terceiro maior
produtor mundial, abrindo perspectivas para o mercado de fertilizantes (SILVA, 2014,
p. 27).

A chegada da Vale em Moçambique abriu também espaço para a entrada no


mercado moçambicano de outras grandes empresas Brasileiras. A multinacional levou
consigo algumas das maiores construtoras Brasileiras para erguerem as primeiras obras
do projeto de carvão, como a Odebrecht, Camargo Correa e OAS. Quando o trabalho
acabou, as empresas continuaram fazendo novos negócios. Também foi a Vale que
levou para Moçambique a organização FGV Agro, ligada à Fundação Getúlio Vargas,
para estudar o potencial regional de produção de agro combustíveis. Hoje a FGV Agro
conduz um projeto que pode expandir o agronegócio Brasileiro no continente africano
(ROSSI, 2015). Grande parceira na primeira fase do projeto inerente a instalação da
primeira mina, a Odebrecht é atualmente responsável pelas obras da segunda fase do
projeto, inerentes à construção da segunda mina. Foi a Odebrecht que construiu o
Aeroporto Internacional de Nacala, na província de Nampula, orçado em 125 milhões
de dólares financiados pelo BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico
e Social)26 .

De acordo com Rossi (2015), o BNDES está também financiando a construção


da barragem de Moamba Major, voltada para o abastecimento de água potável para a
região metropolitana de Maputo, capital do país, estimado em 466 milhões de dólares.
Essa obra está sendo executada pela empresa brasileira Andrade Gutierrez. Por sua vez,
a Camargo Correa ergueu junto com a Odebrecht a primeira fase de empreendimento da
Vale. Em 2010, ganhou a concessão para a construção e operação do projeto da
hidrelétrica de Mphanda Nkuwa, outro grande empreendimento de desenvolvimento e
progresso nacional, no Vale do Zambeze. A OAS é a única empresa brasileira
participou nas obras de construção da linha férrea e porto de escoamento de carvão na
região de Nacala, junto com empresas chinesas. Essa avalanche de empresas brasileiras,

26 Estamos acompanhando as notícias de jornais referentes a supostos mecanismos de corrupção entre


estas empresas e o BNDES em investimentos no estrangeiro, porém as informações ainda são incipientes.

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atraídas pela chegada da Vale à Moatize, torna Moçambique um dos principais polos de
negócios brasileiros no continente africano.

A Vale foi a única mineradora concessionada através de um concurso


internacional. Desde então diversas licenças de pesquisa e exploração foram emitidas
para a bacia carbonífera de Moatize através de um processo normal de licenciamento
mediante requerimento à luz da legislação mineira moçambicana (MENESES, 2014).
Até o ano de 2012, por exemplo, o governo moçambicano, tinha aprovado cerca de 250
concessões mineiras e licenças de exploração mineira na província de Tete, cobrindo
34% de toda sua área, algumas das quais, na verdade a grande maioria, foram
destinados à bacia carbonífera de Moatize (HRW, 2013). Destaca-se dentre esses
contratos de exploração, o projeto de Benga, operado atualmente pela ICVL
(International Coal Ventures Private Limited), um consórcio de empresas estatais
Indianas (Steel Authority of India Limited, Coal India Limited, RashtriyaIspat Nigam
Limited, National Minerals Development Corporation Limited e National Thermal
Power Corporation Limited), que comprou no ano de 2014 o total da percentagem das
ações da mineradora anglo-australiana Rio Tinto. Uma das maiores mineradoras do
mundo, a Rio Tinto havia, por sua vez, comprado em 2012 o total das ações da
mineradora Riversdale Mining, primeira concessionaria que assinou em 2009, com o
governo moçambicano, um contrato de exploração das minas de Benga, numa área
equivalente a 4.560 hectares com duração de 25 anos, avaliado em aproximadamente
850 milhões de dólares.

O projeto de Benga foi naquele momento o segundo maior projeto de exploração


de carvão mineral em Moatize, no Vale do Zambeze, atrás somente do “projeto
Moatize” operado pela Vale. Atualmente aproximadamente 80% do território do distrito
e município de Moatize são ocupadas pela mineração. Além do projeto de Moatize e de
Benga, se encontram, atualmente, em operação no distrito, outros grandes projetos de
mineração, nomeadamente; Minas de Revúboe, operando por um conglomerado de
empresas internacionais (Talbot Group e Nippon Steel & Sumitomo Metal Corporation)
e Minas de Moatize operado pela empresa britânica Beacon Hill Ressources, só para
citar alguns. Ou seja, a chegada da Vale, marca o início de uma nova era de exploração
de carvão mineral das ricas minas de Moatize no Vale do Zambeze, com a presença de
grandes empresas multinacionais e de altos investimentos estrangeiros.

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Mapa 07: Áreas de pesquisa e exploração mineral na Província de Tete até o ano de 2017.

Fonte: Portal do Cadastro Mineiro de Moçambique. 2017

– Mas EUSÉBIO, Moatize é tudo concessão! Indagava-se o geógrafo Mário


Hélio Filho ao constatar que as licenças e concessões de exploração abrangiam quase a
totalidade da área do distrito de Moatize. De fato, as ricas minas de Moatize na região
do Vale do Zambeze são hoje o centro de uma nova lógica desenvolvimentista em
Moçambique, que tal como acontece na Amazónia brasileira, vem cada vez mais se
centrando na exploração e exportação de commodities. A chegada dessas empresas
mineradoras implica, entre várias consequências, a expropriação das terras de diversas
populações que habitam as áreas concessionadas. Expropriação essa que para as
empresas multinacionais e atores governamentais são como um “sacrifício necessário”
para o desenvolvimento e progresso nacional.

2.3 A chegada da Vale em Moatize e a cooperação sul-sul

O Brasil tem muita história com a África nesses 500 anos. Durante muitos
anos teve relações privilegiadas com vários países africanos. Nós queríamos
reaproximar o Brasil com a África. O Brasil teria que adotar uma política
diferente daquela que os africanos estavam habituados. Dos colonizadores que
vão lá para ser donos do país (LULA, 2015)27 .

27 Luís
Inácio Lula da Silva, entrevista realizada pela jornalista Amanda Rossi, publicada no livro
“Moçambique, o Brasil é aqui, uma investigação sobre negócios Brasileiros na África” (ROSSI, 2015).

- 91 -
2.3.1 A atual relevância do “Sul” no campo geoepistêmico e geopolítico mundial

O Sul vem cada vez mais se tornando uma categoria sociológica importante no
campo geoepistêmico e geopolítico mundial. Em ambos os contextos, está em causa a
superação da lógica colonizante “norte-sul”. No campo geopolítico, a cooperação sul-
sul vem cada vez mais assumindo ou se tornando uma alternativa ao caráter violento e
neocolonizante da cooperação norte-sul. No campo geoepistêmico, teóricos da
sociologia contemporânea como Boaventura de Sousa Santos e Maria Paula Meneses;
evidenciam, por exemplo, a importância do Sul na superação do caráter epistemicida e
etnocida do pensamento sociológico ou teoria sociológica contemporânea. Os teóricos
partem da premissa de que existe um centro hegemônico de produção de pensamento
sociológico contemporâneo baseado no “Norte” com tendência monocultural e com
pretensão universalista e colonizadora que invisibiliza outras produções e formas de
saberes de sociedades “não-nortenhas”.

Segundo Boaventura de Sousa Santos, o pensamento científico moderno é um


“pensamento abissal” baseado, por um lado, na instituição de antagonismo radical entre
“o lado de lá28 ” (contexto ocidental ou euro americano), espaço de experiências, saberes
e atores sociais uteis, inteligíveis e visíveis e o “lado de cá” (contexto não ocidental ou
o resto do mundo) espaço de experiências, saberes e atores inúteis, perigosos,
ininteligíveis e objetos de supressão de conhecimento. E por outro pela impossibilidade
de “co-presença” entre ambos os lados da linha radical (SANTO, 2007; SANTOS;
MENESES, 2009; SANTOS, 2016; SANTOS; ARAUJO; BAUMGARTEN, 2016) 29 .
Essa lógica de pensamento abissal é produto do colonialismo e do capitalismo global
fundado numa relação extremamente desigual de saber-poder, que conduziu à supressão
de muitas formas de saber próprias dos povos e nações colonizadas, relegando muitos
outros saberes para um espaço subalterno (SANTOS; MENESES, 2009).
28 Opteiem inverter a ordem em função da minha posição nesse dicotómico contexto geopolítico mundial,
contrariamente a Boaventura de Sousa Santos, falo de “lado de lá” para me referir ao contexto ocidental
ou euromericano, ou ainda hegemónico e dominante, p orque a minha posição enquanto sujeito se
encontra do “lado de cá” sempre periodicamente descentrado entre o Brasil e Moçambique. O lado contra
hegemónico e dos oprimidos. Contudo acredito que não altera a essência da crítica que Sousa Santos nos
propõe.
29 Um antagonismo radical também denunciado com as devidas peculiaridades por outros pensadores

contemporâneos como Hall (1992), Todorov (1993) e Said (1990) através das categorias “West and
Rest”, “nós e os outros” e “ocidente e oriente”, respectivamente. Antes Frantz Fanon (2008) e Aimé
Césarie (1978) já haviam denunciado na década 50 o antagonismo radical entre colonizador e colonizado,
negro e branco, sendo os primeiros “humanos” e os segundos relegados pelos primeiros a “não -
humanos”, bárbaros e inferiores.

- 92 -
No “lado de lá” prevaleceu no tempo colonial e continua prevalecendo no
contexto atual a lógica da regulação e emancipação. E no “lado de cá” a lógica da
apropriação e violência. A prevalência dessa lógica de apropriação e violência em
sociedades não ocidentais é denunciada também por teóricos latino americanos de
estudos pós-coloniais como Aníbal Quijano, Enrique Dussel e Walter Mignolo, em suas
análises críticas à história linear europeia da modernidade que invisibiliza a sua outra
face que é a violência da colonialidade. Diz-nos, por exemplo, Walter Mignolo que a
modernidade não pode ser vista de forma dissociada da colonialidade, na medida em
que este pressupõe o seu lado reverso, inevitável e sombrio (MIGNOLO, 2003). Na
mesma linha, Quijano (2005), reescreve, a partir da perspectiva pós-colonial, a história
da modernidade e do que se denomina de atual sistema mundo colonial/moderno,
denunciando o seu caráter colonial e racista. Por sua vez, Dussel (2005) desconstrói a
visão eurocêntrica da modernidade que o subjaz como um fenômeno intra europeu e,
sendo que, somente precisa da Europa para a sua compreensão. A modernidade é um
“processo irracional que se oculta aos seus olhos” ou ainda a “justificativa de uma
práxis irracional de violência” das sociedades ocidentais para as sociedades não
ocidentais (DUSSEL, 2005, p. 29). A modernidade é colonizante e a colonização é parte
constitutiva da modernidade. Isso implica que a prevalência dessa lógica de regulação e
emancipação na Europa foi e continua sendo à custa do sangue e sofrimento do “lado de
cá”.

No contexto africano ainda persiste, desde o tempo colonial, essa lógica racista,
violenta e colonizante mesmo depois de meio século das primeiras independências. Os
deslocamentos compulsórios dos bairros e comunidades locais e a expropriação das
suas terras ancestrais (num processo que, tal como mostramos nos capítulos 03 e 04, é
caraterizado por falsas promessas, violação de direitos e intimidação) em função da
implementação de grandes projetos ditos de desenvolvimento, operados por grandes
empresas multinacionais de capitais estrangeiros, evidenciam a prevalência dessa lógica
de apropriação e violência no estado pós-colonial moçambicano. E tendo em conta que
Moçambique é um estado que viveu mais de um século de colonização portuguesa e
sendo essa lógica de apropriação e violência que garantia a prevalência da lógica da
regulação e emancipação em Lisboa, a prevalência dessas práticas no estado pós-
colonial reforça a ideia de que há mais continuidades de práticas coloniais do que
cismas no estado “pós-colonial” moçambicano (PINA CABRAL, 2004).

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No contexto epistemológico, o “lado de lá” é concebido como o centro da
racionalidade e dos critérios científicos de verdade. Enquanto que o “lado de cá” é visto
como o espaço de conhecimento irreal, de crenças e opiniões mágicas, idolátricas,
entendimentos intuitivos e subjetivos, que na melhor das hipóteses podem tornar-se
objetos ou matéria prima para a inquirição cientifica (SANTOS; MENESES, 2009). Ou
seja, este lado da linha é o universo por excelência das crenças e dos comportamentos
incompreensíveis que, de forma alguma, podem ser considerados conhecimento. São
considerados para além do verdadeiro ou falso, na medida em que congrega apenas
práticas incompreensíveis, mágicas ou idolátricas e, sendo sub-humanos e serviriam
somente como objeto de conhecimento.

O efeito nefasto do colonialismo no campo cientifico e na sub-humanização do


outro, já havia sido denunciada também por intelectuais como Frantz Fanon e Aimé
Césarie, acima citados, teóricos que podem ser considerados, não só pioneiros do que se
denomina de estudos pós-coloniais, como também advogo, desse novo movimento
emergente que tem o “sul” como um espaço importante de luta contra hegemônica.
Fanon (2008) e Césarie (1978), traçaram algumas críticas ao mundo moderno ocidental
colonial, antecipando nos seus próprios termos, reflexões do que hoje se denomina de
colonialidade de poder, colonialidade do saber (QUIJANO, 2005); ou pensamento
decolonial e diferença colonial (MIGNOLO, 2003); violência e racismo epistêmicas,
(CASTRO-GOMEZ, 2005; GOSFROGUEL, 2007); bem como a crítica ao
universalismo absoluto e à alteridade inferiorizante que cria o eu europeu superior e o
outro (colonial) inferior. Estes são de certa forma alguns pontos centrais do debate
daquilo que hoje denominamos estudos pós-coloniais e do pensamento pós-abissal de
Boaventura de Sousa Santos (SANTOS, 2007; SANTOS; MENESES, 2009; SANTOS,
2016; SANTOS; ARAUJO; BAUMGARTEN, 2016).

Fundador, com Léopold Senghor, da negritude, Césarie já sustentava o racismo e


o colonialismo como vetores fundantes da modernidade ocidental o que não se estende
somente às relações econômicas, mas também ao pensamento cientifico antecipando o
que, com nuances de diferenças, Lander (2005) e Quijano (2005) denominam
atualmente de colonialidade de saber, Santos e Meneses (2009) de epistemicídio das
outras formas de saberes, Grosfoguel (2007) e Castro-Gomez (2005) de racismo e
violência epistêmica respetivamente. Na mesma linha de pensamento, Frantz Fanon já
fazia referência nas suas reflexões de um mundo dividido entre colonizadores e

- 94 -
colonizados, sendo os segundos determinados a partir do imaginário dos primeiros
através de valores europeus universalistas que os consideram um outro despojado,
oposto e inferior (CURIEL, 2007). Tal como destaca Curiel (2007), Fanon sempre
destacou a desumanização do colonialismo que acarreta fenômenos como racismo,
violência e expropriação de terras ancestrais, pelos brancos europeus, transformando
uma parte da população mundial (negros africanos e povos indígenas) em “os outros
inferiores” através de diversos mecanismos de poder, dominação e subjugação. Neste
contexto, para Fanon a descolonização supunha o “combate a essa visão eurocêntrica e
racista que reduz os colonizados em outros inferiores, marginais e exóticos objetos de
estudos” (CURIEL, 2007, p. 93). Essa tem sido a tendência desse novo movimento
emergente de valorização do Sul no campo geoepistêmico.

A negação dessa humanidade foi e continua, para Boaventura de Sousa Santos,


sendo essencial à constituição da própria ciência moderna uma vez que é condição para
que “o lado de lá” possa afirmar a sua universalidade (SANTOS; ARAUJO;
BAUMGARTEN, 2016, p. 16). Porém toda a pretensão de universalidade é, usando as
palavras de Abu-Lughod (2012), sempre arbitrariamente hierarquizada tendo em conta
que é por um lado uma linguagem de poder distanciada da realidade concreta que diz
descrever. Por outro lado, é homogeneizante, coesivo e atemporal. A lógica abissal e
universalizante da ciência moderna faz, ainda de acordo com Sousa Santos, com que os
saberes e as práticas do outro lado da linha desapareçam ao espelho do cânone
monocultural definido do “lado de cá”, ocidental. Esse “desaparecimento” é assegurado
pelas cinco monoculturas do pensamento moderno: a monocultura do saber e do rigor
do saber cria o ignorante; a monocultura do tempo linear determina o residual; a
monocultura da naturalização das diferenças legitima a classificação do inferior; a
monocultura do universalismo abstrato demarca o que é local e estabelece a sua
irrelevância; e a monocultura dos critérios de produtividade capitalista decreta o
improdutivo (SANTOS; ARAUJO; BAUMGARTEN, 2016, p.17).

Essa lógica monocultural e universalizante e a consequente subalternização de


conhecimento foram também colonialmente inculcadas nas sociedades colonizadas.
Sociedades essas onde o prestigio intelectual converte-se, parafraseando as palavras do
sociólogo brasileiro Marcelo Rosa, “em muitos casos, na capacidade de demonstrar usos
eficazes das teorias/modelos produzidos em outros contextos para classificarmos a nós
mesmos” (ROSA, 2015, p. 314). Essa é a exigência de publicação. Escrever seguindo

- 95 -
gêneros da metrópole, citando a literatura da metrópole e tornando-se parte do discurso
da metrópole. Isso significa por um lado descrever a sua própria sociedade como se
fosse a metrópole - suprimindo a sua especificidade histórica. Por outro, descrevê-la
como em termos comparativos situando as suas especificidades nos parâmetros da
metrópole. Ambos significam tornar-se um “informante nativo para um mundo
intelectual da metrópole” (CONNELL, 2012, p. 11).

Porém, com muita frequência as teorias/modelos produzidos em outros


contextos vem, usando as palavras de Eric Wolf (2003, p. 308) “sobrecarregados de
conotações e implicações dos contextos passados que lhes deram origem”, razão pela
qual sendo ocidentais nem sempre são generalizáveis para outras realidades sociais não
ocidentais. Ignorar esse fato, não só é reforçar uma posição hegemônica e dominante de
conhecimento, tendo em conta o seu lócus de origem, como também, é recusar pensar
os fenômenos sociais de forma “flexível e aberto em termos de relações engendradas,
construídas, expandidas, revogadas, em termos de interseções e sobreposições, em vez
de entidades sólidas, limitadas, homogêneas, que perduram [em todos tempos e lugares]
sem questionamentos e sem mudanças” (WOLF, 2003, p. 321). E mais, é deixar, me
inspirando nas palavras de Roy Wagner (2010), que suposições culturais do Norte se
tornem parte da forma “como as coisas são”, da forma como toda a humanidade
independente do seu contexto sociocultural pensa e age, o que consubstancia uma
violência nas formas de pensar doutras realidades sociais não ocidentais.

A superação dessa tendência na visão de Boaventura de Sousa Santos vem do


“Sul” e concretamente na valorização das “epistemologias do Sul” (SANTOS, 2007;
SANTOS; MENESES, 2009; SANTOS, 2016; SANTOS; ARAUJO; BAUMGARTEN,
2016). Apreender que existe o Sul, apreender a ir para o Sul e aprender a partir do Sul e
com o Sul. O Sul não pode – e esse tem sido um posicionamento unânime de outros
teóricos desse emergente movimento socioantropológico (COMAROFF; COMAROFF,
2012; CONNEL, 2012; ROSA, 2014a, 2014b, 2015) – ser entendido no sentido de sul
geográfico ou hemisfério sul, embora em determinadas situações, e acredito que na
maioria delas, se sobreponham. Santos e Meneses (2009) por exemplo concebem o Sul
metaforicamente como um campo de desafios epistémicos que procuram repensar os
danos e impactos historicamente causados pelo capitalismo na sua relação colonial.

Ou seja, o sul vai para além da divisão geográfica hemisfério norte e hemisfério
sul, pois, existem na visão dos autores “suis” no norte geográfico. Estes são os diversos
- 96 -
grupos sociais que foram sujeitos à dominação capitalista e colonial, ao mesmo tempo
em que existem “nortes” no sul geográfico que são pequenas europas marcadas pelas
pequenas elites locais que se beneficiaram da dominação capitalista colonial e que
depois das independências exerceram e continuam exercendo uma dominação
capitalista e colonial contra grupos sociais subordinados. Neste contexto, o Sul é uma
metáfora do sofrimento humano causado pelo capitalismo, pelo colonialismo e pelo
patriarcado, e da resistência a essas formas de opressão (SANTOS; ARAUJO;
BAUMGARTEN, 2016, p. 16). O sul metafórico é o lado dos oprimidos pelas
diferentes formas de dominação colonial e capitalista.

As epistemologias do Sul são, para Santos e Meneses (2009) um conjunto de


intervenções epistemológicas que denunciam a dominação epistemológica do
capitalismo caraterizada por uma relação extremamente desigual e saber-poder que, por
um lado, conduziu à supressão de muitas formas de conhecimento próprias dos povos e
noções colonizadas. E, por outro, elevou à posição dominante as epistemologias
“nortenhas”. São em si, uma proposta epistemológica subalterna, insurgente, resistente,
alternativa contra um projeto de dominação capitalista, colonialista e patriarcal, que
continua a ser hoje um paradigma hegemônico. A ideia é expandir a imaginação política
para lá da exaustão intelectual e política do “Norte”, “traduzida na incapacidade de
enfrentar os desafios deste século, que ampliam as possibilidades de repensar o mundo a
partir de saberes e práticas do sul global e desenham novos mapas onde cabe o que foi
excluído por uma história de epistemicídio” (SANTOS; ARAUJO; BAUMGARTEN,
2016, p. 15). A valorização das epistemologias do “sul” é uma forma de pensamento
pós-abissal que se fundamenta no reconhecimento do pluralismo e diversidade
epistemológicas, bem como na ecologia, não só, dos saberes como também de
temporalidades, reconhecimentos e de produtividades.

A ecologia dos saberes substitui a monocultura do saber e do rigor


científicos, confrontando-a com outros saberes e outros critérios de rigor; a
ecologia das temporalidades mostra que a lógica do tempo linear é uma entre
múltiplas concepções de tempo possíveis e reivindica a co -presença radical; a
ecologia dos reconhecimentos submete à crítica a sobreposição entre
diferença e desigualdade, bem como os critérios que definem diferença, e cria
novas exigências de inteligibilidade recíproca; a ecologia das trans -escalas
denuncia o falso universalismo e a despromoção do local, mostrando que o
universalismo existe como pluralidade de explorações universais alternativas,
parciais e competitivas, todas elas ancoradas em contextos particulares; e a
ecologia das produtividades recupera os sistemas alternativos de produção
que o capitalismo ocultou ou descredibilizou. (SANTOS; ARAUJO;
BAUMGARTEN, 2016, p. 17)

- 97 -
Estes fatos evidenciam que o “Sul” constitui no campo geoepistêmico mundial
uma categoria relevante na descolonização do conhecimento e na luta contra o
imperialismo intelectual, resultante da lógica desigual e colonizante de relação (saber-
poder) norte-sul. De fato, essa superação da lógica desigual e colonizante “norte-sul” é
também a base da relevância que o “Sul” vem assumindo atualmente no campo
geopolítico mundial.

A cooperação sul-sul (CSS) se assume, pelo menos ideologicamente, tal como


acontece no campo geoepistêmico como uma alternativa à superação das tradicionais
relações norte e sul, vistas como desiguais, de exploração e neocoloniais. Aqui também
o Sul assume uma posição metafórica. Enquadram-se nesse sul metafórico países
identificados no contexto geopolítico mundial como emergentes como é o caso do
Brasil e os países subdesenvolvidos ou pobres como é o caso de Moçambique. A
cooperação sul-sul é um discurso concebido e desenvolvido por países como o Brasil,
China, México, Índia, Turquia, África do Sul, países emergentes que eram antigamente
beneficiários da cooperação internacional para o desenvolvimento e como tal se
encontravam na periferia do sistema econômico mundial. No entanto, devido ao
ativismo multilateral dos países em desenvolvimento, dos processos de transformação
do sistema internacional desde os anos 1990, e igualmente em função das necessidades
de ajuste por que passa o capitalismo, passam a definir sua agenda como países
doadores (MILANI, 2012).

Neste cenário, Brasil, Rússia, China e Índia emergem na cena internacional


como protagonistas, aliados na busca por mudanças na ordem internacional pós-guerra
fria, baseados na CSS. Da articulação destes países surgiram, no campo econômico, os
chamados BRICS, que tenderam a avançar no sentido da maior concertação e unificação
do Sul30 . Com a entrada dos BRICS no palco internacional, a cooperação para o
desenvolvimento ganhou novos ímpetos, na medida em que esses países se afirmam
cada vez mais como vetores das tecnologias, ideias e produtos. Comparecem, assim,
como novos protagonistas no cenário internacional, criando e fortalecendo redes de
intercâmbio Sul-Sul, sobretudo aquelas voltadas para a realização de investimentos
diretos nas economias do referido eixo, notadamente nos países africanos (SILVA,
2014, p. 41).
30 Em 2001, as quatro grandes economias em crescimento do Brasil, Rússia, Índia e China foram reunidas
sob a sigla “BRIC”. No fim de 2010, após a realização de duas reuniões de cúpula, a África do Sul
juntou-se ao grupo, passando a designar “BRICS”.

- 98 -
O discurso da CSS dá, de certa forma, sequência às denúncias feitas por
intelectuais da teoria da dependência como Samir Amim, que denunciam a Cooperação
Internacional para o Desenvolvimento (CID). Esta vem sendo implementada pelos
países do “norte” em países do “sul” como uma tentativa de preservação do capitalismo,
servindo como ferramenta de manutenção e legitimação da hegemonia dos países
centrais do sistema internacional. Desse modo, “antigas colônias, agora emancipadas,
poderiam ser mantidas em relações de dependência e de garantia do funcionamento da
economia internacional” (MILANI, 2012, P. 219). A CSS busca, por um lado,
introduzir uma nova visão do desenvolvimento econômico dos países em
desenvolvimento, fundado em alianças entre países do Sul, baseada no princípio da não
intervenção, na defesa da horizontalidade dos programas de cooperação. E, por outro,
garantir uma inserção internacional diferenciada de alguns países do Sul no diálogo com
os países desenvolvidos (MILANI, 2012, p. 227).

O argumento político que sustenta a CSS se fundamenta no pressuposto de que


países em desenvolvimento podem e devem cooperar a fim de resolver os seus próprios
problemas políticos, econômicos e sociais com base em identidades compartilhadas (ex-
colônias, status econômico, experiência histórica, etc.), esforços comuns,
interdependência e reciprocidade (MILANI, 2012, p. 227). A partir dessa visão a CSS
seria uma modalidade que busca se afastar do tradicional esquema vertical e
unidimensional de relações norte sul - que vem sendo questionado desde década 70 pela
sua incapacidade promover desenvolvimento e abordar as causas primordiais da pobreza
(BANCO MUNDIAL; IPEA, 2011) - por se apoiar em horizontalidade, consenso e
equidade (MORA, 2016).

A CSS congrega desde projetos de financiamento e cooperação técnica em áreas


desde a saúde pública, educação fundamental e não formal, intercâmbio universitário,
meio ambiente, desenvolvimento agrícola, cooperação tecnológica e desenvolvimento
científico, gestão pública, “até projetos de desenvolvimento produtivo, industrial e de
infraestruturas” (MILANI, 2012, p. 224). A relevância no cenário internacional da CSS
é concomitante ao papel que passa a desempenhar na agenda política e econômica
internacional, particularmente nos processos de reforma da governança global (Banco
Mundial, FMI, OMC, G-20 financeiro) e de reconfiguração de alianças regionais e
coalizões inter-regionais (SADC/Southern African Development Community,
UNASUL/União das nações sul americanas, Fórum IBAS, grupo BRICS, Shanghai

- 99 -
Cooperation Organization, G-20) (MILANI, 2012, p. 225). Por exemplo, incorporando
esse discurso de CSS, a China se aproximou do continente africano se tornando o maior
parceiro comercial. A África se tornou o principal destino de importações provenientes
do gigante asiático, o segundo maior mercado para projetos de infraestrutura e o quarto
maior destino de investimentos (MORA, 2016).

As relações entre a China e a África ganharam um novo dinamismo a partir dos


anos 2000. Destaca-se no âmbito dessa aproximação a criação do Fórum de Cooperação
China-África (FOCAC), espaço projetado para organizar e fortalecer as atividades de
cooperação Sino-Africano e levar ao estabelecimento de uma parceria estratégica. A
concentração dos fluxos de comércio e investimentos em setores ligados à extração de
matérias-primas modificou a posição insignificante que a China anteriormente ocupava
no setor de recursos naturais africanos, tornando-se um “jogador-chave”. Pois, tendo em
conta que para sustentar seu crescimento econômico, a China depende do fornecimento
de minerais, energia e recursos alimentares do exterior, o país se tornou no maior
destino de recursos minerais e energéticos do continente africanos (MORA, 2016) 31 .

A China articula no seu discurso de aproximação com África diversos pontos de


simetria histórica com o continente. (i) O fato de ambos terem sido destinatários de
ajuda ao desenvolvimento e outros conceito esboçados para o continente, o que lhe dá
uma autoridade moral para criticar modelos de doadores tradicionais; (ii) a história de
amizade enraizada na experiência de dominação europeia e apoio da China nas lutas de
libertação nacional; (ii) a China define-se como um país em desenvolvimento, que dá
suporte ao continente africano, com base em interesses, necessidades e preocupações
comuns.

No contexto moçambicano, a presença chinesa está diversificada em várias


áreas, desde a cooperação em infraestrutura (foi a China que construiu o Estádio
Nacional do Zimpeto, o maior e mais moderno estádio de futebol em Moçambique;
modernizou o aeroporto internacional de Maputo; está construindo a ponte de Catembe
que liga as duas margens da baía de Maputo - considerada a maior ponte do país, só
para citar alguns exemplos), até os projetos de cooperação na área da agricultura.
Destaca-se nesse último caso o projeto de irrigação no Vale do baixo Limpopo, mais

31 A forte presença chinesa africana leva a uma guerra discursiva. Os céticos, a incluem no grupo das
outras potencias mundiais e a acusam de neocolonização. Contra essa posição estão muitos países
beneficiários africanos, céticos das relações com os tradicion ais parceiros do Norte, que destacam o
componente cooperativa e as possibilidades de desenvolvimento local trazidas pela China.

- 100 -
conhecido como o projeto de irrigação em Xai-Xai, considerado o maior projeto
agroindustrial da China no continente africano (MORA, 2016).

2.3.2 O discurso de cooperação sul-sul do governo brasileiro e a chegada da Vale em


Moatize

Foi também como esse discurso de CSS que o Brasil se lançou para o continente
africano e se aproximou de Moçambique. Apesar desse modelo de cooperação ter sido
intensificado pelo governo Lula, seus traços embrionários na política externa brasileira
são, tal como destaca o sociólogo Remo Mutzenberg, anteriores ao governo petista. Tal
como destacamos, sinais dessa lógica de cooperação são visíveis na política de
“multilateridade” assumida de forma explicita nos governos de Jânio Quadros e João
Goulart e retomada pelos governos militares na primeira metade dos anos 1970, baseada
na ampliação dos vínculos internacionais, passando a incluir os eixos Sul-Sul e Sul-
Leste (MUTZENBERG, 2014). A ideia era ampliar os vínculos internacionais para além
da dependência com o Norte que vinha caracterizando o Brasil desde o século XVI, com
a dependência unilateral ao capitalismo mediterrâneo e norte-atlântico. No século 19
essa subordinação deu-se sob a hegemonia inglesa. A partir do final do século 19 a
dependência unilateral brasileira passou a subordinar-se à hegemonia norte-americana,
cuja vinculação estratégica caracterizou o período Vargas e os governos
desenvolvimentistas dos anos 1950. Naquele momento o Brasil buscava status de aliado
privilegiado dos Estados Unidos. A ampliação dos vínculos para o eixo sul e sul-leste
visava superar essa dependência da hegemonia norte americana.

A partir dos anos 1990, a diplomacia brasileira passa a atuar nos 3 eixos, norte-
sul, sul-leste e sul-sul. Contudo, com a chegada de Lula ao poder, o eixo sul-sul passa a
assumir um lugar primordial na política externa para a África e se torna uma das suas
principais estratégias discursivas para aproximação com o continente. Foi no seu
governo que a cooperação com o continente africano foi para além dos países da CPLP,
abrangendo países não falantes da língua portuguesa. E mais, foi, tal como já referimos,
a com o discurso de CSS do governo Lula que o Brasil se aproximou intensamente de
Moçambique. Inspirado nessa lógica de cooperação, o Brasil articula na sua
aproximação com o continente africano um discurso que acentua a solidariedade, as

- 101 -
afinidades histórico-culturais, econômicas e políticas e interesse num conhecimento
produzido pela troca e pela experimentação mediante parcerias (MUTZENBERG,
2014).

O governo brasileiro passou a reconhecer a dívida histórica e moral em relação à


África. O Brasil chegou em África dizendo que ofereceria ajuda desinteressada para
pagar uma dívida histórica: os três séculos de escravidão, pois os africanos levados à
força pelo Atlântico construíram o Brasil e formaram o seu povo. Agora o Brasil
retribuía cooperando em áreas como educação, saúde e agricultura “sem pedir nada em
troca” (ROSSI, 2015, p. 51). Neste contexto, a política de CSS brasileira passou a ser
difundida e caracterizada por inserir o Brasil como um “novo doador” que se
diferenciava dos doadores tradicionais – EUA e países da OCDE – na medida em que
disponibilizava recursos não reembolsáveis, não vinculava a ajuda externa a
condicionalidades econômicas e/ou políticas; enfatizava o caráter da “horizontalidade”
entre doador e receptor; e a “autonomia” do país receptor (SILVA, 2014).

Aliado a esse discurso evidenciam-se os interesses políticos e econômicos da


política externa brasileira em relação aos países africanos como parte de uma estratégia
para conquistar espaço no quadro institucional internacional (MUTZENBERG, 2014, p.
142). Contudo, o importante a destacar agora é que foi com esse discurso de cooperação
não opressiva ao estilo sul-sul do governo brasileiro, baseada em vantagens mútuas e
valores compartilhados, diferente das antigas potências imperialistas que a Vale chegou
a Moatize.

É ampla a diversidade das áreas de cooperação brasileira em Moçambique - o


Brasil coopera com Moçambique e outros países da África subsaariana em áreas tais
como: agricultura tropical; medicina tropical; ensino técnico (em apoio ao setor
industrial); energia; e proteção social (BANCO MUNDIAL; IPEA, 2011). No plano
acadêmico, importa destacar a os editais das agências de fomento destinados à pesquisa
no e sobre o continente africano, incremento do intercâmbio de pesquisadores, “apoio à
formação de estudantes em nível de graduação e pós-graduação (a exemplo dos
programas PEC-G e PEC-PG), e outros mecanismos de realização de mobilidade
acadêmica nos dois lados do Atlântico” (MUTZENBERG; SOARES, 2014, p. 03). Foi
com o programa PEC-PG que em 2013 cheguei à Amazônia brasileira, concretamente
em Belém do Pará, para cursar o metrado em sociologia e por aqui fiquei cursando o
doutorado. De fato, tal como destacam Mutzenberg e Soares (2014), nunca antes se
- 102 -
pesquisou a respeito das sociedades africanas como ocorre atualmente nas universidades
e centros de pesquisa do Brasil. E isso de certa forma se deve a essa política externa
brasileira assentada na CSS.

Porém, no caso das relações com Moçambique, o projeto de Moatize, operado


pela Vale, continua sendo a cara de um ator determinante da aproximação entre os dois
países. Isso evidencia que para além da promessa inicial, o Brasil está a seguir
primordialmente as estratégias comerciais de investimento com base em interesses
econômicos, na tentativa de obtenção de recursos minerais e acesso ao mercado
comercial moçambicano. Os custos sociais32 e ambientais das práticas da Vale em
Moatize (ver capítulos 03 e 05) nos levam a concluir que no campo econômico é “mais
do mesmo”. As ações da Vale evidenciam a prevalência do que Sousa Santos (2007)
denomina de uma lógica de “apropriação e violência” ou da lógica opressiva dos
projetos de Cooperação Internacional de Desenvolvimento dos países imperialistas que
o Brasil diz no seu discurso sobre CSS procurar superar.

A prevalência dessa lógica de apropriação e violência caracteriza também os


projetos implementados em Moçambique por outro grande ator da CSS, a China,
conforme denunciado por Sol Mora no projeto agroindustrial do Regadio do Vale do
Baixo Limpopo (MORA, 2016). Segundo a autora, o projeto desenvolvido pela empresa
chinesa Wanbao (Wanbao Grains & Oils Co.) é alvo de resistência de aproximadamente
80.000 camponeses que a acusam de grilagem de terras (land grabbing). Para Mora
(2016) o processo de land grabbing é identificável a partir da aquisição pela Wanbao do
controle direto de 20.000 hectares para um período de 50 anos para a produção de arroz
para exportação para o mercado chinês ao invés da produção para o consumo interno.
Estes fatos evidenciam que enquanto no campo discursivo a cooperação sul-sul se
assume como uma alternativa ao caráter violento e neocolonizante da cooperação norte-
sul, no campo pragmático, pelo menos na realidade moçambicana, reproduz as mesmas
práticas da relação “norte-sul” no sul. Isso se pode notar também na reprodução do
discurso de desenvolvimento e progresso que norteia a Cooperação Internacional e
Desenvolvimento dos países do norte e imposto aos países do sul desde os finais do

32 Custossociais esses que desencadearam as manifestações de 2013 onde as famílias reassentadas


bloquearam as estradas de acess o à mina da Vale em Moatize e da ferrovia de escoamento do carvão que
passa a escassos metros da comunidade de Cateme, reivindicando o comprimento dos compromissos
assumidos pela Vale (acesso à água, terra fértil, energia, indenização, bens coletivos de transporte, saúde,
educação etc.).

- 103 -
século XIX e início de século XX, discurso esse, que se mostrou limitado, excludente e
perverso, tal como o ilustra o aumento das desigualdades socioeconômicas e da
exclusão social no plano mundial (MILANI, 2012). Por isso vale mais uma vez repetir
Pina Cabral (2004), há mais continuidade do que cismas no campo pragmático das
relações norte-sul e sul-sul. Não se justifica a existência de nova forma alternativa de
relação entre os estados, tal como propõe o discurso brasileiro de cooperação sul-sul.
Para Mia Couto essa continuidade se fundamenta no fato de que as forças que
conduzem o Brasil a essa cooperação internacional “são forças que se conduzem por
aquilo que são as linguagens globais do lucro, do mercado, da relação com os interesses
econômicos e financeiros. Não haverá grande mudança” (COUTO, 2015, p. 360).

Advogo que a vantagem da CSS seja a introdução de novos atores com papel
hegemônico na arena internacional, ampliando espaço de negociação e cooperação
internacional para os países pobres como Moçambique do que necessariamente uma
alternativa à relação norte-sul. Além de depender exclusivamente dos doadores do
Norte, Moçambique hoje já negocia intensamente com a China e com o Brasil, Índia,
África do Sul etc. E mais, as práticas da relação “norte-sul” vai se moldando e se
reestruturando no encadeamento dualístico das relações. Apesar de destacar a
horizontalidade, reciprocidade e equidade, existe sempre um superior e inferior nessa
relação, o Brasil e a África do Sul, por exemplo, podem ser o Sul dos euro americanos,
mas são o norte de Moçambique, o mesmo se diz da China e assim sucessivamente. Os
interesses econômicos e a multiplicação do lucro falam mais alto. Nesse contexto, as
práticas das empresas pertencentes a esses países signatários dessa ideologia de
cooperação sul-sul estão longe de se distanciar das práticas das empresas do norte no
sul. No próximo capítulo mergulharemos nas práticas adotadas no deslocamento
compulsório executado pela Vale na sua chegada em Moatize, buscando traçar uma
análise comparativa com outros processos de deslocamentos compulsórios executados
na região no tempo colonial e período socialista do estado “pós-colonial”.

- 104 -
3. A CHEGADA DA VALE E OS DESLOCAMENTOS COMPULSÓRIOS EM
MOATIZE

Neste capítulo nos propusemos a explorar os procedimentos ou práticas adotadas


no processo de deslocamento compulsório no âmbito da instalação do projeto Moatize
de mineração. Para a análise, buscamos apoio nos planos de reassentamento e
principalmente nas narrativas das próprias populações compulsoriamente deslocadas.
Essas narrativas foram colhidas durante a primeira fase da pesquisa de campo. O
antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almeida define os deslocamentos compulsórios
como um conjunto de realidades factuais em que determinados grupos sociais são
obrigados a deixar suas moradias habituais, seus lugares históricos de ocupação
imemorial ou datada, mediante constrangimentos (simbólicos ou físicos), sem qualquer
opção de se contrapor ou reverter os efeitos de tal decisão, ditada por interesses
circunstancialmente mais poderosos, associados à ideia de progresso e modernidade. Ou
seja, deslocamento compulsório pressupõe um processo impositivo. As empresas
multinacionais “acionam mecanismos coercivos, impondo aos demais o cumprimento
dos seus desígnios, invariavelmente apresentados como obras necessárias ao progresso,
modernização e melhoria de vida para todos” (ALMEIDA, 1996 p. 467). Nesse
processo, os órgãos governamentais e as agências financiadoras propagam a
“inevitabilidade” dos projetos, justificando-os e legalizando-os, ao assumir o discurso
da sua necessidade e imperiosidade para o bem-estar de todos. Os danos causados
seriam vistos como “passíveis de serem reparados monetariamente [...] mesmo que
acarretando problemas morais e redefinições de identidade social, de certo modo,
irreparáveis” (p. 467).

É importante salientar que, longe de uma categoria descritiva, “deslocamento


compulsório” pressupõe uma categoria analítica—muito adotada na literatura
socioantropológica sobre os efeitos sociais das barragens (SIGAUD, 1996; SIMONIAN,
1996; CARVALHO, 1996, SANTOS, 1996 MAGALHÃES, 1996, BAINES, 1996) e de
outras infraestruturas de desenvolvimento no Brasil (ALMEIDA, 1996), - que tem a
peculiaridade de denunciar a “violência” do próprio processo de deslocamento e, acima
de tudo, o processo de violação dos direitos de território que as comunidades locais têm
por ocupação história imemorial ou datada. Outra categoria analítica e ideologicamente
oposta a essa, é a categoria Involuntary resettlement (reassentamento involuntário),

- 105 -
adotada por antropólogos ligados ao Banco Mundial (CERNEA, 2000, 2003, 2004;
SCUDDER 1973, 1975; COLSON, 1971). Embora evidencie uma sensibilidade para as
questões humanas e para as injustiças sociais33 , a prevalência da categoria
“reassentamento involuntário”, nas suas reflexões, prega implicitamente a
inevitabilidade do deslocamento, legitimando os empreendimentos (em muitas situações
financiadas pelo próprio Banco) e ignorando a compulsoriedade e a violência do
processo de deslocamento. Ou seja, a categoria deslocamento compulsório, adotada no
presente trabalho tem a particularidade de chamar atenção para elementos
implicitamente ignorados nas outras categorias, nomeadamente: a violência e a
compulsoriedade do processo como elementos essenciais de análise e não somente
como consequências posteriores.

Neste capítulo, nos atentamos também para o fato de que os atuais


deslocamentos compulsórios provocados pelos grandes projetos de mineração não são
um fenômeno novo na história da população de Moatize, do Vale do Zambeze, e em
Moçambique no geral. Este fato, associado à realidade do rio Zambeze como zona de
cruzamento de várias outras formas de migrações nacionais e internacionais, torna a
região do Vale do Zambeze, e Moatize em particular, um território caraterizado por uma
população diversificada e com ligações socioeconômicas e culturais intensas,
dificultando a definição de fronteiras estanques entre diversos grupos sociais. No caso
concreto de Moatize, se por um lado, as minas de Moatize bem como os Caminhos de
Ferro de Moçambique (CFM), estes responsáveis pela gestão da linha férrea que liga o
Moatize ao Porto da Beira desde o tempo colonial, foram elementos centrais do
fenômeno da imigração, as guerras de libertação nacional e a civil pós-independência
foram um importante elemento de emigração populacional no distrito. Esse caráter
sociocultural e linguisticamente plural provocado por esses constantes deslocamentos,
compulsórios ou não, ainda caracterizam atualmente a região, acirrada atualmente pelas
imigrações provocadas pela presença de grandes projetos de mineração na região.

No período derradeiro do processo colonial, bem como no período pós-


independência, programas de desenvolvimento e progresso nacional, guerras e desastres
ambientais contribuíram para um deslocamento maciço das populações da região. Neste

33Essa evidência pode-se constatar nos trabalhos de Thayer Scudder pela predominância das palavras
“social ou socio-cultural impacts” (Scudder, 1975; 1973), bem como no título de um dos primeiros e
principais livros organizados no World Bank, editado por Michel de Cernea “Putting people first” (1991).

- 106 -
trabalho buscaremos destacar dois grandes processos: os deslocamentos compulsórios
provocados pela política de controle da população assentada nos aldeamentos coloniais
e os deslocamentos compulsórios provocados pelo programa de modernização rural e
restruturação da lógica de produção e organização social rural desenvolvido nos período
pós-independência (através do programa das aldeias comunais e cooperativas agrícolas).
Com isto buscamos explorar rupturas e continuidades com o processo atual de
deslocamento compulsório provocado pelos projetos de mineração na região. É
importante destacar que, tal como no tempo colonial, os deslocamentos compulsórios na
primeira república pós-independência não se resumiram ao programa de aldeias
comunais e cooperativas agrícolas. O antropólogo Omar Thomaz explora outras formas
de deslocamento compulsório empreendidas pelo regime socialista, com destaque para
os “campos de reeducação” - esse também explorado pelo escritor Ungulani Ba Ka
Khosa no seu livro “Entre Memórias Silenciadas” (2013). E também a “operação
produção” - uma ação policial de natureza repreensiva levada a cabo em grandes
cidades como Maputo e Beira, com o objetivo de enviar para as zonas consideradas de
menor densidade demográfica aqueles que eram considerados “delinquentes”,
“ociosos”, “parasitas”, “marginais”, “vadios” e “prostitutas”. Quer nos campos de
reeducação, quer na operação produção havia o propósito de transformar os visados em
cidadãos uteis, dignos cumpridores de deveres cívicos e merecedores de aceitação social
(THOMAZ, 2008, p. 191). No presente capítulo nos centramos nos programas de
aldeamentos comunais e aldeias comunais em função do seu significativo impacto na
região do Vale do Zambeze. Os trabalhos de João Paulo Borges Coelho (1989; 1993;
1998; 2003), Manuel Araújo (1983; 1988), Adolfo Casal (1996); Alpheus Manghezi,
2003, bem como de Allen e Barbara Isaacman (2013) constituíram referências seminais
para nossa análise sobre os deslocamentos compulsórios provocados pela política de
aldeamentos coloniais e aldeias comunais no Vale do Zambeze.

3.1 O ciclo persistente de deslocamentos compulsórios no Vale do Zambeze: dos


aldeamentos coloniais às aldeias comunais

No presente subcapítulo analisamos dois processos de deslocamento


compulsório que marcaram o período colonial e o período socialista pós-independência,
destacando os mecanismos de sua configuração e implementação e os efeitos sociais

- 107 -
para as diversas populações atingidas. O nosso objetivo central é a partir dessa análise
explorar rupturas e continuidades com os atuais deslocamentos compulsórios
provocados pela Vale em Moatize. Uma categoria de grande relevância na análise de
deslocamentos compulsórios em Moçambique é de “controle de território”, o que
implica necessariamente um processo de “controle da população”. Existe tal como
destaca Pierre Bourdieu nos seus estudos sobre a Argélia (BOURDIEU; 1979;
BOURDIEU; SAYAD, 2006), uma relação direta entre deslocamento compulsório e
controle ou mudança de domínio sobre o território e consequentemente da população.

Tal como o leitor vai constatar no debate a seguir, a história de Moçambique é


marcada, dentre vários pontos, pela prevalência de uma política central de controle de
território que pressiona constantemente o território das populações das áreas rurais e
tem como consequência imediata e direta os deslocamentos compulsórios. Foi assim no
período colonial e no período socialista pós-independência. Está sendo assim também
no atual período marcado por uma tendência neoliberal de organização econômica,
política e social. No contexto atual, o controle de território está significativamente
assentado na política de exploração de recursos. Começaremos a nossa análise pela
política colonial de controle populacional que provocou um maciço deslocamento
compulsório das populações, na sua maioria das áreas rurais, para o que se denomina de
aldeamentos coloniais.

3.1.1 A política colonial de controle populacional: os deslocamentos compulsórios para


os aldeamentos coloniais

A dificuldade de ocupação total do território no início do processo da


colonização, associada à dificuldade de convencer a fraca burguesia para investir nas
colônias africanas, contribuiu para a abertura de Moçambique por parte de Portugal
(então um país periférico no capitalismo europeu, posição que ocupa até os dias de
hoje), para o capital internacional, através da concessão de vastas áreas da região central
e norte para as companhias majestáticas e arrendatárias dos prazos. Estas na sua maioria
dominadas por capitais não portugueses, passaram a ter um grande poder nas ações de
desenvolvimento econômico e administração do território concedido.

- 108 -
As companhias eram obrigadas a se reger por estatutos portugueses e ter sua
sede social em Lisboa; a organizar uma força policial para assegurar o domínio da área
concedida; a zelar pela colonização e proceder à construção de infraestruturas
(CABAÇO, 2007). Gozavam de direitos de cobrar impostos, negociar em concessões a
exploração do solo, do sobsolo e das riquezas marítimas nas costas do território. Bem
como de exclusividade no recrutamento da força do trabalho e na emissão de moeda e
selos postais nos territórios administrados. O acordo obrigava, ainda segundo Cabaço
(2007), que os funcionários públicos fossem de nacionalidade portuguesa e determinava
que o Estado recebesse uma compensação percentual sobre os lucros e dividendos,
mantendo o direito à propriedade dos bens da companhia no fim do período da
concessão. Destacam-se, tal como evidenciamos no segundo capítulo, pela dimensão
territorial ocupada as companhias de Niassa, de Moçambique e da Zambezia. Se as duas
primeiras são denominadas de majestáticas a última é denominada na historiografia de
Moçambique de companhia arrendatária de prazos. Enquadram-se nesta última
categoria outras companhias de menor dimensão comparando com as primeiras, como,
por exemplo, a companhia de Boror, a Société du Mandal e as Propriedades Sena Sugar
(NEWITT, 2012; SERRA, 1980; 2002).

À companhia do Niassa foram, portanto, concedidos, por carta majestática, os


territórios das atuais províncias de Niassa e Cabo Delgado, num território que se
estendia do rio Rovuma ao Lúrio, com uma superfície aproximada de 160 mil
quilômetros quadrados (SERRA, 2000, p. 233). De acordo com Borges Coelho (1993),
essa companhia não só ganhou a exploração dessa imensa área concessionada como
também tinha uma autonomia administrativa, assumindo um papel de estado dentro de
um estado, numa realidade colonial onde o estado português continuava confinado na
costa. Situação diferente se encontrava a região do vale do Zambeze, pois a instalação
da companhia de Zambezia foi acompanhada por uma presença do estado, embora fraca,
através de persistentes esforços militares e administrativos de se chegar ao alto
Zambeze. Esforços esses incentivados também pela pressão britânica na fronteia oeste.

- 109 -
Mapa 08: Os territórios das Companhias (1900-1925)

Fonte: SERRA (2000)

- 110 -
A companhia de Moçambique ocupou a maior parte da região central de
Moçambique com destaque para a área que corresponde hoje às províncias de Manica e
Sofala. Tal como destaca Carlos Serra (2000), essa companhia começou a ser criada em
1878. Em dezembro de 1888, com um capital subscrito de 200 mil libras, recebeu do
governo português a concessão de direitos mineiros na bacia do Búzi e do Púnguè. Em
1889 elevou o seu capital social para 400 mil libras. Nesse período a sua atividade
centrou-se na organização das comunicações e na pesquisa e exploração mineral. Em
1891, iniciou-se um processo de reestruturação, elevando o seu capital para um milhão
de libras. A partir desse ano foi autorizada por sucessivos decretos, especialmente pelo
decreto de 11 de fevereiro de 1891, que lhe atribuiu poderes majestáticos, a administrar
e explorar uma área de 134.822km2, limitado pelo paralelo 22 a sul, pela Rodésia a
oeste, pelo rio Zambeze a norte e nordeste, e pelo oceano Indico a leste (SERRA, 2000,
p. 304). Os direitos concedidos à Companhia de Moçambique incluíram: o monopólio
do comercio, a exploração exclusiva das concessões mineiras e de pesca ao longo da
costa; o direito de coletar impostos e taxas; o direito de construir e explorar portos e
vias de comunicação; bem como o direito de transferência de terras a pessoas
individuais e coletivas.

À companhia de Zambezia foi concedida, através de decreto de 26 de dezembro


de 1878, uma área de aproximadamente 100 mil hectares, que inclui as atuais províncias
da Zambezia e Tete, para a o desenvolvimento de atividades minerais e para a
exploração de recursos florestais. Em 1903 viu o seu poder crescer imensamente através
de decreto do dia 20 de fevereiro que lhe atribuía direitos exclusivos sobre todos os
prazos que existiam na área de concessão. Em Tete, por exemplo, foram
especificamente concessionadas a essa companhia 111 prazos, 92% dos totais
registrados naquela província no início do século 20. Destes, 62 prazos com
aproximadamente 27.623 pessoas, foram administrados diretamente pela companhia
enquanto que 50 com 174.073 pessoas, foram locados pela própria companhia aos
arrendatários. Os arrendatários tinham que seguir a política colonial da época que se
resumia no princípio de pôr o africano a trabalhar (BORGES COELHO, 1993). Tal
como destacamos no capítulo 02 foi essa companhia que começou as ações de extração
de carvão mineral na bacia carbonífera de Moatize.

O processo de ocupação desses territórios pelas companhias foi na maioria das


situações violento em face da resistência constante das populações autóctones. Por

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exemplo, tal como destaca Carlos Serra, depois da entrega formal dos territórios de
Cabo Delgado e do Niassa à companhia do Niassa, em 1891, essa companhia
programou a sua ocupação para 1899. Com apoio de um corpo de expedicionários do
estado colonial, constituído por 300 solados europeus e 2 800 moçambicanos e de
outras regiões, a Companhia do Niassa tentou ocupar áreas do interior. Entre 1900 e
1902, a companhia ocupou o povoado de Musumba e Metangula, no litoral do Lago
Niassa. Porém a resistência dos camponeses quanto ao processo de ocupação e ao
trabalho forçado que lhes era imposto, acabou retardando o processo de colonização do
território concedido. Só em 1910, com mais aporte monetário, é que a companhia
reinvestiu em ações militares avançando sistematicamente sobre o território concedido
(SERRA, 2000, p. 233).

A produção familiar para o mercado, o imposto de palhota e a venda da força de


trabalho para o estrangeiro e para outras regiões do país, construíram a base da
exploração capitalista neste período (1886-1930). O imposto era pago na maioria das
situações monetariamente, salvo algumas exceções. Por exemplo, tal como destaca
Serra (2000, p. 231), em 1903 o governador colonial do distrito de Moçambique
(Província de Nampula) autorizou que se cobrasse o imposto em gêneros nas aldeias
onde os moçambicanos não possuíssem dinheiro suficiente para pagar, à exceção das
povoações costeiras onde o imposto devia ser pago em numerário. Amendoim maduro,
descascado e limpo, são e enxuto; gergelim sazonado, cheio limpo e seco; cera boa e
sem mistura; borracha de primeira, segunda e terceira qualidades; milho grosso ou fino
(mapira); arroz produção local, são alguns dos produtos que na visão do citado governo
poderiam ser aceitos no pagamento do imposto. “Tratava-se, portanto, de produtos de
exportação provenientes da produção familiar, o que mostra bem a nova orientação dada
à produção agrícola camponesa, imposta pelo capitalismo” (SERRA, 2000, p. 231). Na
região do Vale do Zambeze além do dinheiro e de produtos agrícolas, o imposto,
denominado naquela região de mussoco, podia também ser pago em forma de trabalho.
De fato, o trabalho foi junto com o dinheiro a mais comum forma de pagamento de
mussoco.

Com o sistema de companhias, novas formas de produção foram instaladas sob a


forma de grandes empresas de monocultura, com a exploração da força de trabalho
camponesa (plantações) ou de pequenas unidades familiares e do trabalho forçado nas
machambas - designação que se dá em Moçambique à porção de terra que é usada para

- 112 -
a prática de agricultura - dos colonos. No região do Vale do Zambeze, por exemplo, a
introdução dessa nova economia baseada em grandes empresas de monoculturas para
exportação de produtos como o sisal, chá, algodão, cana de açúcar, desestruturou
significativamente a agricultura familiar, característica da região, na medida em que os
agricultores eram obrigados a trabalhar mais para pagar os impostos. Estes eram
cobrados em dinheiro, produtos ou trabalho, sob pena de serem convertidos em trabalho
forçado na construção de infraestruturas como estradas, portos e caminhos de ferro
(GALLO, 2017). E foi justamente a imposição brutal do trabalho forçado e os custos
elevados dos impostos que contribuíram naquele período para o deslocamento
compulsório de várias populações autóctones - nas várias áreas concessionadas pelas
companhias - em busca de outros campos de possibilidade de sobrevivência em outras
regiões.

Muitos homens, por exemplo, preferiram o trabalho em terras distantes, mesmo


no estrangeiro e muitas famílias abandonaram as suas regiões de origem procurando
outras mais afastadas das pressões diretas do colonizador. No caso da companhia do
Niassa, depois da primeira guerra mundial, período em que a procura pela força de
trabalho declinou nos territórios de concessão, a companhia aumentou drasticamente o
imposto de palhota de modo a compensar a perda resultante da baixa do fluxo
migratório e das exportações.

“No período compreendido entre 1921 a 1927, o imposto de palh ota elevou-
se de 2 a 50 escudos, equivalente este montante a um salário de três meses”
(SERRA, 2000, p. 236). “[...]se antes de 1919, cerca de 100 mil pessoas
tinham fugido para Niassalândia [atual Malawi], calcula-se que, entre 1920 e
1930, como reação a brutal política de repressiva da companhia de Niassa,
mais de 300 mil moçambicanos terão emigrado em grupos familiares para o
vizinho Tanganhica [atual Tanzânia] e para Niassalândia [...]” (SERRA,
2000, p. 238).

Essas dinâmicas migratórias impostas pelo sistema de companhias


caracterizaram não só a penetração imperialista na região norte e centro de
Moçambique, com destaque para a penetração imperialista no Vale do Zambeze entre
1890 e 1930, como também dá sequência a diversidade étnico-linguística que compõe
atualmente a região e o distrito de Moatize.

A partir de 1930 se instala o estado novo de Salazar em Portugal. Esse destaca


como prioridade nas colônias a necessidade de uma forte supervisão política e
financeira nas colônias, mais controle sobre os africanos; controle esse assentado, tal
como destaca Borges Coelho (1993, p. 114) no discurso paradoxal de “proteção aos
- 113 -
nativos”. Na perspectiva do estado salazarista, era extremante urgente a normalização
do território colonial para prevenir a repetição de rebeliões e para induzir as
comunidades africanas a produzir matérias primas para alimentar as indústrias da
metrópole. Ou seja, havia necessidade de forte controle das sociedades africanas, que
resultou numa reforma administrativa com a divisão dos então distritos (importa realçar
que toda colônia era designada de província, em paridade com a divisão administrativa
metropolitana), em concelhos, circunscrições e regedorias, os primeiros mais para
brancos, o segundo e terceiro com a predominância dos negros africanos.

Nesse contexto, a colônia Moçambique passou a ser dirigida por um governador


geral cuja autoridade era delegada a governadores distritais. Por sua vez os distritos
foram divididos em circunscrições. Estas assumiam a designação de conselhos, “se na
sua jurisdição vivessem mais de 2000 civilizados” (CABAÇO, 2007, p. 101). As
circunscrições eram dirigidas por um administrador, que concentrava as funções de
governador e Juiz. O território das circunscrições subdividia-se em postos
administrativos que por sua vez englobava regedorias, dirigidas por um regedor,
também designado de régulo. O chefe do posto acumulava por delegação várias
funções:

decidia sobre a vida das populações, administrava a justiça determinando as


penas a aplicar (normalmente castigos corporais ou pequenas penas de
prisão) já que os processos que implicavam a aplicação de penas maiores
eram enviados para a circunscrição ou conselho, cobrava impostos,
controlava a movimentação de pessoas, precedia ao recenseamento d a
população, fiscalizava a orientação o trabalho dos régulos, assegurava a
manutenção das infraestruturas, garantia os serviços postais, supervis ionava
os serviços de saúde, etc. Na sua ação, ele era apoiado por um intérprete, um
africano conhecedor das línguas locais, e por um pequeno corpo de policias
armados, os sipaio, normalmente antigos africanos do exército colonial,
(CABAÇO, 2007, p. 102).

No caso dos regedores a sucessão era hereditária, segundo os costumes locais de


cada grupo social, porém o governo possuía o direito de escolha entre os parentes mais
próximos quando o herdeiro por direito não “agradasse” à administração. As regedorias
eram portanto uma continuação da administração pública, incorporando em sua ação
obrigações legais com o governo da colônia e funções tradicionais para as populações
de sua regedoria. Representavam o último escalão do aparelho administrativo e o
primeiro escalão das populações negras africanas. Tal como destaca Cabaço (2007, p.
106)

“[...] na configuração portuguesa de governação indireta, aos


regedores ficavam, em síntese, atribuídas as responsabilidades de servir aos

- 114 -
interesses da colonização, fiscalizando “na base” tudo quanto pudesse
comprometer ou ameaçar a dominação portuguesa, assegurand o a
“fidelidade” e a disciplina dos indígenas [populações negras africanas] e
administrando o cotidiano da esmagadora maioria da população ”.

Os regedores estavam sob supervisão direta do chefe do posto (branco


português) que no âmbito do seu poder discricionário cabia-lhe a possibilidade de
privação da liberdade pessoal e aplicação de castigos corporais, sem a necessidade de
sansão superior em caso de violação das normas de caráter geral e do “bom senso”. Na
realidade sociocultural da época, as lideranças eram sempre pessoas mais velhas (com a
predominância de gerontocracia) com uma vasta experiencia de vivencia e autoridade
comprovada. O colonizador indicava um jovem chefe com poder de, por sua exclusiva
decisão ou critério, mandar deter ou punir publicamente (o uso de palmatória nas mãos
ou nas nádegas era mais comum) um chefe ancião, legítimo pela tradição e legitimado
nas suas funções pela próprio poder colonial (CABAÇO, 2007).

As mudanças na natureza do poder político em nível local, impostas pela


reforma operada por Salazar, não só contribuiu para a redefinição espacial do território
(foi nesse âmbito que Moatize ascendeu à categoria de conselho) como também para o
deslocamento compulsório das populações “nativas” (quer para dentro dos novos
territórios, quer para fora, repetindo-se as migrações forcadas provocadas pelas
companhias majestáticas e arrendatárias) da região do Vale do Zambeze. Arrancadas,
assim, de suas áreas de vivência consideradas dispersas para próximo das autoridades
recém-criadas. Processo esse incentivado pela destruição das antigas povoações e pela
submissão da sua autonomia política às recém-criadas regedorias (BORGES COELHO,
1993).

A criação de novas aldeias – aldeias essas que foram baseadas no padrão


europeu de família e propriedade e os novos locais definidos pelos administradores
coloniais - estava também assentada na ideologia de “civilizar o nativo”. Isto implicava
na esfera social e econômica na necessidade de concentrar as residências dentro de
limites espaciais definidos, alterando desse modo o tradicional padrão disperso de
residência, com o intuito de tornar a administração mais efetiva e corrigir também o
caráter disperso da economia agrícola local, aproximando a força do trabalho dos
principais empreendimentos econômicos da região do Vale do Zambeze.

Em Moatize essa força de trabalho foi empregada na construção da linha férrea


para o transporte de carvão, a atual Linha de Sena, que liga a vila de Moatize e o porto

- 115 -
da Beira e que há bem pouco tempo, antes da construção da linha férrea “Moatize-
Nacala” pela Vale, era a principal linha de escoamento da produção mineral.

Todas essas transformações, impostas pelo estado novo de Salazar, estavam


assentadas num discurso dualista de desenvolvimento comunitário que buscava
“integrar e modernizar” a economia camponesa através da implementação de projetos
locais de baixo custo nas áreas rurais (BORGES COELHO, 1993). Porém, de 1964 até
1974, esses deslocamentos populacionais para as novas aldeias passaram a fazer parte
de uma ampla estratégia de contra insurgência contra o avanço da guerrilha da Frente de
libertação de Moçambique (FRELIMO) na derradeira guerra contra o colonialismo
português. Esses novos deslocamentos compulsórios atingiram, tal como buscamos
demonstrar a seguir, uma dimensão única que não se compara com os anteriores.

****

O controle da população negra moçambicana foi uma das estratégias das forças
portuguesas no combate à guerrilha da FRELIMO, que lutava pela independência de
Moçambique, embora não tenha sido exclusivo daquela realidade sociocultural. O
controle da população foi também adoptada em outros países como Angola, Guiné-
Bissau para frear os movimentos nacionalistas. Essa lógica foi inspirada nas guerras
subversivas Britânicas na China, Malásia e Quênia, bem como nas estratégias do
exército francês na guerra revolucionária da Argélia - cujos efeitos sociais foram muito
bem explorados por Pierre Bourdieu e Abdamalek Sayad no artigo “a dominação
colonial e o saber cultural” (BOURDIEU; SAYAD, 2006). Tal como destacam esses
autores, o deslocamento compulsório das populações das áreas rurais e a criação de
zonas proibidas constituíram-se em uma das estratégias adotadas pelas forças militares
francesas durante a guerra colonial, para evitar o apoio ao exército revolucionário da
Argélia. Na visão das forças francesas, esvaziar uma área não controlada implicava
necessariamente afastar a população da zona de influência rebelde. Nesse contexto, de
1954 a 1957, milhares de camponeses foram expulsos das suas aldeias. Até 1960 um
quarto da população rural da Argélia tinha sido deslocada das suas áreas originais de
vivência. Levando em conta o êxodo para as cidades, Bourdieu e Sayad, (2006) estimam
que metade da população rural argelina se encontrava, até 1960, fora das suas áreas
originais de sobrevivência. Meios brutalmente violentos, como por exemplo o incêndio
a florestas, a destruição de reservas alimentares e gado, foram utilizados para obrigar os
camponeses a abandonar as suas aldeias. A maioria dessas populações foram
- 116 -
reagrupadas em áreas próximas das instalações militares franceses. Essa estratégia tinha
como objetivo por um lado “permitir ao Exército um controle direto sobre elas, de
maneira a impedir que transmitissem informações, fornecessem orientações,
mantimentos ou alojamento aos soldados do Exército de Libertação Nacional (ALN)”.
Por outro lado, “facilitar a repressão, ao autorizar que fossem considerados “rebeldes”
todos aqueles que permanecessem nas zonas proibidas” (BOURDIEU; SAYAD, 2006,
p. 42).

Inspirados exclusivamente por motivações estratégicas, o exército não tinha


outro objetivo a não ser esvaziar as zonas difíceis de controlar sem se preocupar com a
população evacuada e sem assumir como objetivo essencial a organização da sua
reinstalação e deste modo de toda sua existência. Ou seja, os camponeses arrancados
das suas residências foram reunidos como um rebanho em grandes centros, cuja
localização tinha sido escolhida por razões exclusivamente militares. Dotada de uma
autoridade absoluta, o exército francês decidia tudo, desde a localização das aldeias, o
seu traçado, a largura das ruas até a disposição do interior das casas. Padronizadas e
alinhadas, as casas eram construídas de acordo com normas impostas e em locais
impostos. Ignorando as normas e os modelos tradicionais, pouco preocupados em
consultar a população, os militares impunham a sua ordem, sem considerar o “molestar
e a desordem que suas iniciativas suscitavam” (BOURDIEU; SAYAD, 2006, P. 49). O
efeito desses deslocamentos compulsórios foi catastrófico para o campesinato argelino,
na medida em que, acelerou um processo que já estava em andamento, que é a perda da
condição camponesa e o nascimento de um novo tipo de homens e mulheres que
“podem ser definidos negativamente, pelo que não são mais e pelo que ainda não são,
camponeses descamponeisados” (BOURDIEU; SAYAD, 2006, p. 50). Essa ruptura
com a condição camponesa, não instituiu um novo tipo de relação com a terra e com o
trabalho da terra, mas sim um processo essencialmente negativo que levou a um dilema
entre o abandono da terra e a fuga para as cidades ou a permanência resignada numa
condição desvalorizada e desvalorizante. Neste contexto, o sofrimento social e a
incerteza perante o futuro passaram a caracterizar o futuro dessas famílias camponesas
“descamponeizadas”.

Antevendo o conflito nas colônias, Portugal enviou em 1959 um grupo de


oficiais para se inteirar dessas e de outras brutais estratégias do exército francês na
guerra revolucionária. No ano anterior um primeiro grupo de oficiais tinha sido enviado

- 117 -
para a Inglaterra para estudar a experiência britânica nas guerras que combatia na
Malásia e no Quênia (CABAÇO, 2007). Partindo dessas experiência, o exército
português definiu que a vitória da guerra contra os nacionalistas quer em Angola e
Guiné-Bissau, quer em Moçambique, dependia de três elementos essenciais: conquistar
a simpatia e a adesão das populações; desmoralizar os militantes e os guerrilheiros,
diminuindo a sua capacidade combativa e atuar sobre as próprias tropas para incentivar
a sua disponibilidade operacional. A conquista da simpatia e adesão das populações
ocupava um lugar primordial. Nesse âmbito foram desenvolvidas nas colônias ações
que iam desde assistência sanitária e educativa, apoio religioso, até a realização, no
campo da economia, de trabalhos em prol da população.

As forças armadas [portuguesas] se procuravam juntar, deste modo, à ação do


governo no intuito de melhorar as precárias condições de vida da esmagadora
maioria dos moçambicanos e atenuar o sentimento de desconforto e revolta
que alimentaria a guerrilha (CABAÇO, 2007, p. 348).

Esse foco centrado na conquista da população fundamenta-se numa visão


dicotômica segundo a qual todos africanos eram potenciais “terrorista” e entraves ao
projeto imperialista português. E a única forma de evitar que assim se tornassem de fato
era conquistá-los e comprometê-los ativamente na defesa da ordem colonial (BORGES
COELHO, 2003, p. 178). A prevalência dessa visão dicotômica conjugada com os
ensinamentos provenientes de manuais contra subversão e de experiencias apreendidas
em países, como Franca e Inglaterra, contribuíram para a convicção de que ganharia a
guerra quem tivesse a população do seu lado. Este fator contribuiu para a instalação por
parte das autoridades coloniais portuguesas de estruturas de ação psicossocial que,
operando dentro de determinados parâmetros, “conseguissem transformar as populações
de meros camponeses em defensores ativos da ordem colonial, em combatentes ativos
contra o movimento nacionalista armado” (BORGES COELHO, 2003, p. 178).

Foi nesse âmbito que nasceram as senzalas protegidas em Angola, as tabancas


em Guiné-Bissau e os aldeamentos coloniais em Moçambique, para onde foram
deslocadas as populações das áreas de guerra ou áreas que eram vistas como passíveis
de ação de mobilização por parte dos combatentes da FRELIMO. Através desses novos
aglomerados rurais fortificados e controlados, as autoridades esperavam, tal como
fizeram os franceses na Argélia, irromper com a penetração de combatentes
nacionalistas. Em Moçambique, acredito que o mesmo se verificou em Angola e Guiné-
Bissau, três motivos eram invocados para os aldeamentos: “proteger” a população,

- 118 -
evitar o contato com os guerrilheiros nacionalistas e criar polos de “desenvolvimento”
socioeconômico. Porém tal como destaca João Paulo Borges Coelho (2003, p. 179) na
realidade os aldeamentos eram,

verdadeiros espaços concentracionários de produção de violência. A


aglomeração de pessoas em números até então inéditos implicou a quebra dos
laços com a terra, desde sempre fonte estruturante da coesão comunitária e
recurso base da sua reprodução material e cultural, da sua sobrevivência.
Afetou gravemente as relações políticas e familiares cuja lógica sempre
assentara no território; criou problemas de acesso aos recursos, sobretudo de
terra e água; estabeleceu terreno fértil para a irrupção de surtos e doenças.

Os primeiros aldeamentos enquanto estratégia de contra insurgência começaram


a ser instalados na primeira metade da década 60. À medida que o conflito ia se
acirrando, a sua real face de despovoamento de área operacional, procurando reduzir o
contato entre guerrilheiros e a população foi suplantando o discurso de desenvolvimento
socioeconômico. Tal como na Argélia, quem não vivia nas povoações controladas pelas
autoridades coloniais portuguesas era considerado inimigo. O período de 1964 a 1968
foi caraterizado por um apressado processo de construção de aldeamentos na província
de Niassa e Cabo Delgado, concentrando compulsoriamente 250 mil pessoas em 150
aldeamentos (BORGES COELHO, 1993). A partir de 1968, a província de Tete passou
a ocupar um lugar de destaque na política de aldeamento devido ao lugar central que
passou a ocupar na contraofensiva da FRELIMO às Forças portuguesas. Foi nesse
período que a FRELIMO abriu a frente de Tete com a intenção de cruzar o rio Zambeze,
buscando expandir as suas ações que até então se concentravam no Norte do país para
as regiões centrais de Manica e Sofala. A resposta das forças armadas portuguesas à
entrada da FRELIMO em Tete foi dada em duas vertentes: primeiro o aumento de ações
de terror e violência indiscriminadas contra a população. Pelotões das forças armadas
portuguesas e equipes da Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE) invadiram
as aldeias e missões católicas rurais, em operações de busca e captura, destruindo casas,
reservas de comida, assassinando e encarcerando pessoas, alegando ordens para deter
aquelas que colaboraram com os nacionalistas. A segunda resposta foi a intensificação
do aldeamento das populações.

Segundo Borges Coelho (1993) pode-se dividir o processo de aldeamento


compulsório das populações na província de Tete em 3 períodos:

(i) De 1968 a 1970, a iniciativa dos aldeamentos era inteiramente em nível


provincial, bem como das autoridades dos locais que eram palco das ações militares,

- 119 -
como por exemplo as então circunscrições de Maravia e Bene, e uma parte do conselho
de Macanga. Em 1968, cinco aldeamentos foram estabelecidos em Maravia, com
aproximadamente 2.500 pessoas compulsoriamente deslocadas. Em 1969 foram
construídas também em Maravia e Bene mais 3 aldeamentos respectivamente; e mais 4
aldeamentos em Macanga, totalizado em dois anos (1968-1969) 15 aldeamentos
envolvendo entre 15 a 17 mil pessoal forçadamente deslocadas. Embora os planos de
constituição de aldeamentos que vinham sendo debatidos desde 1966 especificassem,
por exemplo, os critérios como a proximidade com fontes de água, terras adequadas
para agricultura, o estabelecimento desses aldeamentos não seguiu esses critérios,
prevalecendo os critérios estritamente militares (BORGES COELHO, 1993).

(ii) De 1970 a 1972, os planos de deslocamento forçado das populações para os


aldeamentos foram desenvolvidos com um grande suporte do Governo Central em
Lourenço Marques - atual Maputo. Em maio de 1970, foi criada uma Direção Central
subordinada diretamente ao Governador Geral com o objetivo de coordenar os
aldeamentos ao nível central. Essa direção era composta pelos secretários provinciais de
Terra e Assentamento; de Educação e da Saúde, bem como pelas autoridades
responsáveis pelo Ramo das Ações Psicológicas. Foi nesse período que Tete recebeu o
primeiro suporte financeiro central para esse propósito. Suporte esse que era maior se
comparado com qualquer outra província que era palco das ações militares. Por
exemplo, de 3,600,000 escudos investidos pelo governo central incialmente para os
aldeamentos em Tete em 1970, o investimento subiu para 15,850,000 escudos em 1971.
O que evidencia a grande importância dada pelo Governo Central ao programa dos
aldeamentos naquela realidade socioespacial (BORGES COELHO, 1993, p. 222). Em
face desse grande investimento central, os 12 aldeamentos que existiam em 1970 em
toda província de Tete passaram para 81 em 1971. Em 1970, os aldeamentos abarcavam
três áreas, nomeadamente as circunscrições de Bene e Maravia, bem como o conselho
de Macanga. Em 1971, o programa cobriu quase a totalidade dos conselhos e
circunscrições, excluindo Angônia e incluindo Moatize. Em Moatize foram criados em
1971, 17 aldeamentos. Em 1972 foram criados mais 20.

(iii) De 1972 a 1974 Tete criou os seus próprios serviços de aldeamentos,


subordinados ao gabinete do governador local. De 1972 a 1974, foram criados 252
aldeamentos, cobrindo aproximadamente 300.000 pessoas forçadamente deslocadas
(BORGES COELHO, 1993, p. 230). Depois desse período o programa declinou e a

- 120 -
guerra caminhava para o fim. Porém, tal como adverte o mesmo autor, se olharmos para
a população de Tete em 1970 (com aproximadamente 500 000 pessoas) e compararmos
com número de pessoas forçadamente reassentadas até 1973/1974 podemos constatar
que aproximadamente 60% da população de Tete foi confinada em aldeamentos. Essa
percentagem pode atingir 70% se olharmos exclusivamente para a população rural. O
atual distrito de Moatize tinha, até o final da guerra em 1974, 44 aldeamentos cobrindo
aproximadamente 50 000 pessoas (BORGES COELHO, 1993). Importa destacar dentre
esses aldeamentos, os aldeamentos de Cateme (atual área onde foram reassentadas a
maioria das populações classificadas como rurais pela mineradora Vale); Mithethe e
Chipanga (onde famílias foram também compulsoriamente deslocadas pela mineradora
Vale); e Benga (uma das áreas onde as famílias foram compulsoriamente deslocadas
pelo projeto de Benga de exploração de carvão mineral - operado atualmente pela joint
venture indiana ICVL). Esses dados nos induzem a pensar na ideia da persistência da
história (CARVALHO; PINA CABRAL, 2004).

Um ator que foi determinante no processo de deslocamento compulsório das


populações para os aldeamentos coloniais na província de Tete foi a Barragem de
Cahora Bassa. A construção desse empreendimento obrigou ao deslocamento
compulsório de milhares de famílias camponesas que viviam nas margens do rio
Zambeze. Muitas dessas famílias não só perderam o controle sobre o espaço físico, o
acesso a recursos econômicos e culturais importantes para a vivência, o poder de decidir
sobre onde e como viver, como também, viram suas antigas áreas de vivência
submersas no lago provocado pela barragem. Para essas famílias, a independência
nacional, que determinou o fim dessa política perversa e violenta, não significou a
possibilidade de retornar as suas áreas antigas de ocupação. Com essas áreas submersas
a maioria pouca alternativa tinha a não ser permanecer onde estavam (ISAACMAN;
ISAACMAN, 2013). Como dito, a barragem de Cahora Bassa se tornou um ator central
no conflito entre a FRELIMO e as forças coloniais portuguesas em Tete, com os
primeiros tentando evitar a sua construção e os outros buscando a tudo custo protegê-la.
A FRELIMO estabeleceu como objetivo primário impedir a construção da barragem.
Em 1972, as ações da FRELIMO em Tete ultrapassaram as de Cabo Delgado que era o
grande e principal teatro das ações (ver capítulo 02). Neste contexto, os deslocamentos
forçados para os aldeamentos passaram a seguir objetivos estratégicos militares. A
intimidação e a violência passaram a ser a regra. Em alguns casos, as famílias

- 121 -
dispunham de apenas duas semanas para se dirigir aos aldeamentos e se não o fizessem
eram assassinadas e suas casas destruídas ou queimadas. Em muitas áreas careciam de
infraestrutura básica. Casos há em que as pessoas eram jogadas em determinadas áreas e
ditas para sozinhas construírem as suas próprias residências. Até a conclusão do
empreendimento mais de 280 mil camponeses tinham sido confinadas nos aldeamentos
(ISAACMAN; ISAACMAN, 2013).

Diversas formas de resistência aos aldeamentos foram empreendidas. A fuga


para os países vizinhos (atuais Zâmbia e Malawi) era umas delas. Porém essas fugas
envolviam riscos. Normalmente andavam centenas de quilômetros em territórios
desconhecidos e não raras vezes carregando crianças nas costas. A falta de comida e
abrigo, os riscos de ataques de bandidos e animais ou de serem capturados pelos sipaios
(soldados africanos) ou por forças portugueses, com consequências até de morte, eram
frequentes, tal como evidencia a título de exemplo o relato de Lofas Nsampas, citado
por Allen e Barbara Isaacman (2013),

[...] nós fomos a pé. Saímos de casa à noite e passamos a primeira noite
caminhando. Dormimos no mato. Como não sabíamos o caminho para a
Rodésia, tivemos que perguntar aos aldeões que encontramos pelo caminho
[...]. Muitas pessoas foram mortas por leões. Quando chegamos à delegacia
de polícia perto da fronteira nos escondemos até termos a certeza que todos
os policiais estavam dormindo. Então nadamos pelo rio [...]34

Devido a sua função estratégica no conflito militar, os aldeamentos passaram a


ser alvos da guerrilha da FRELIMO deteriorando a situação que já estava crítica em
razão da escassez da terra para produção agrícola, fontes de água, falta de planejamento
adequado. Segundo dados apresentados por Borges Coelho (1993, p. 270), a FRELIMO
realizou de 1972 a 1974, 706 ataques de diversos tipos aos aldeamentos da província de
Tete, desde ataques diretos (223); raptos (134); colocação de minas terrestre (119);
emboscadas (43); roubo de gado (118); roubo de diversas reservas de comida (54). Para
as diversas famílias o deslocamento forçado para os aldeamentos era um deslocamento
para a morte. Os ataques da FRELIMO aos aldeamentos revelam o forte empenho da
guerrilha em lutar pela terra e pelas pessoas. Como resposta a essas ações da FRELIMO
contra os aldeamentos, as forças armadas portuguesas intensificaram o controle dos
movimentos internos das populações e a militarização dos aldeamentos. Neste contexto,

34 Tradução nossa do: “We went on foot. We left our homes at night and spent the first night walking. We
slept in the bush. Since we did not know the route to Rhodesia, we had to ask villagers we met on the way
[…] Many people were killed by lions. When we reached the police station near the border, we hid until
we were sure that all the police were asleep. Then we swam across the river.”

- 122 -
todos os habitantes dos aldeamentos foram registrados. A partir dos 10 anos de idade
todos tinham que possuir um bilhete de identidade especial emitido pelo administrador
ou pelas autoridades militares. As ruas e as residências dentro de aldeamento foram
nomeadas e numeradas. O movimento das populações para as machambas ou para
outros aldeamentos eram estritamente controlados pela milícia de “proteção” e através
de várias medidas que vão do controle de identidade a contatos regulares de rádio com
outros aldeamentos para verificar chegadas, tempo gasto na viagem, etc. (BORGES
COELHO, 1993, p. 275). Outras medidas adotadas foram o estabelecimento de
perímetros externos de segurança, de torres de controle e holofotes ou luzes de busca
para vigilância noturna, bem como a intensificação da formação das milícias. As
milícias eram compostas por africanos e viviam no aldeamento como pessoas comuns,
fato que evidencia um processo de africanização do conflito.

Aliás, a africanização do conflito caracterizou a dominação portuguesa em


Moçambique e todo o processo de guerra colonial. Os achicunda, como era
denominado o exército africano dos prazeiros do Zambeze e mais tarde, com a
decadência dos prazos, dos senhores da terra e da guerra (como também podiam ser
chamados os líderes dos estados militares protegidos com as arringas35 ) viviam do
tráfico de pessoas para a escravidão (NEWITT, 2012; ISAACMAN; ISSACMAN,
2013; SERRA, 2000; GALLO, 2017; KHOSA, 2009). Havia a participação de
numerosos africanos ao lado dos donos das companhias nas lutas de conquistas de
espaços concedidos e dos portugueses nas guerras de resistência à ocupação colonial
(SERRA, 2000), bem como a criação de forças especiais composta por africanos para a
luta contra os nacionalistas durante a guerra pela independência (BORGES COELHO,
1989; 1993; 2003). Para Borges Coelho (2003, p. 191), esse processo de africanização
do conflito contribuiu também para a militarização da sociedade moçambicana e não
pode ser ignorado como um fator determinante para compreender as dimensões
atingidas pelo conflito militar pós-independência em Moçambique. Para o autor, o
destino imposto a esses grupos militares pelo governo socialista da FRELIMO,
assentado na estratégia de transformação dos comprometidos36 resultou numa espécie de
entropia que terá produzido um número indeterminado de antigos combatentes em fuga
da ordem do governo pós-colonial. Evitando entregar-se às novas autoridades ou
fugindo dos campos de reeducação esses antigos combatentes atravessaram as fronteiras
35 Fortalezas cercadas por estacas de madeira.
36 A transformação era baseada na assunção de culpa, arrependimen to, punição e reeducação.

- 123 -
e integraram se às forças que tempo depois desafiaram as novas autoridades
moçambicanas a partir da Rodésia e África do Sul.

A província de Tete chegou a ter aproximadamente 4 mil milícias em 1973,


numa média de 15 milícias por aldeamento (BORGES COELHO, 2003). A sua tarefa
principal era defender as aldeias dos ataques da FRELIMO e patrulhar os arredores dos
aldeamentos. As suas ações eram coordenadas pelo comando das forças militares
portuguesas estacionadas na região. No cotidiano, a relação entre a milícia e as
populações dos aldeamentos tendia a ser tensa e frequentemente violenta. Uma vez que
a guerra foi o principal motivo e passou a ser praticamente o único motivo para o
programa de aldeamentos, a vida de seus habitantes ficou fortemente moldada por esse
fator. O confinamento, as tensões sociais, as dificuldades acrescidas na produção de
subsistência e os riscos de vida diários eram a regra. Tal como destaca ainda Borges
Coelho (2003, p. 180),

para os milhares de camponeses dos aldeamentos, concentrados à força pelas


autoridades coloniais nestes redutos, atacados pelos nacionalistas dentro
deles, era-lhes negada qualquer opção. Não tinham, de fato, nem saída nem
futuro, e neste sentido, a sociedade que se constituía nestas aldeias era uma
sociedade “bloqueada” em que os cada vez mais escassos recursos eram
disputados pelos seus segmentos de forma cada vez mais violenta. São
inúmeros os casos de apropriação de celeiros de reservas alimentares dos
camponeses, de roubo de mulheres, por parte dos grupos de milícias a que
nem os régulos se conseguiam opor e a que as autoridades coloniais
convenientemente fechavam os olhos.

A vida nos aldeamentos era de grande tensão com expectativas permanentes de


ataques, tensão essa que ia piorando à medida que o tempo ia passando. O deslocamento
para os aldeamentos, não só implicou o abandono das terras ancestrais ignorando-se (tal
como os recentes deslocamento compulsórios provocados pelas atividades de
mineração) a sua relação afetiva com o território, como também o abandono dos locais
onde esses ancestrais foram enterrados, bem como suas machambas (muitas delas antes
das colheitas) dentre outros pertences. A vida no aldeamento era caraterizada pela
comparação entre aquilo que perderam com a transferência e o que ganharam nos novos
locais. A pressão demográfica também era maior. Na área central de Moatize, por
exemplo, existiam em 1974, 35 aldeamentos para uma população de aproximadamente
35 mil pessoas, aproximadamente mil pessoas por aldeamento. Esse número é, segundo
Borges Coelho (1993, p. 286) 4 vezes mais do que nas antigas aldeias. À medida que o
processo de concentração das pessoas em aldeamentos foi se tornando intenso, com
vista a conter o avanço da guerrilha, passou a ser comum mais de dois régulos ou chefe

- 124 -
de aldeias serem deslocados para o mesmo aldeamento. A fragilidade das condições de
reassentamento, punham em causa alguns pontos que eram considerados centrais para o
processo: especialmente, viabilidade da terra para produção agrícola e existência de
fontes de água adequadas.

Em 1974, ano da assinatura do acordo de Lusaka que abriu espaço para a


independência de Moçambique alguns aldeamentos de Moatize, como por exemplo, a
aldeia N´cungas devidamente descrita por Borges Coelho (1993) era ocupada por
pessoas doentes, malnutridas, desprovidas de seus meios básicos de subsistência e
muitas vezes dependentes da ajuda externa para a alimentação. A independência
colonial marca a esperança de um novo recomeço. Esperança essa que não tardou se
mostrar ilusória. Pois a população rural moçambicana, do Vale do Zambeze e de
Moatize em particular, se tornaria alvo de mais um processo maciço de deslocamento
compulsório - o maior do estado “pós-colonial” moçambicano: o deslocamento
decorrente da modernização da produção agrícola através da socialização dos meios de
produção e da cooperativação da produção agrícola através da criação das aldeias
comunais.

3.1.2 A política socialista de modernização rural: os deslocamentos populacionais para


as aldeias comunais

Com a assinatura do acordo de Lusaka em 1974, não só os moçambicanos que se


encontravam refugiados em países vizinhos como Malawi e Zâmbia retornam a “pátria
amada”, como também muitas populações começaram a deixar os antigos aldeamentos
onde foram forçosamente reassentados pelos colonialistas portugueses de volta as suas
terras ancestrais ou em busca de melhores terras para agricultura. No campo político, o
governo da FRELIMO que assumiu o poder após a independência definiu a agricultura
como a base do desenvolvimento do país e o socialismo como a base de orientação
político e socioeconômica nacional. A ideia era romper as antigas relações de opressão
colonial e “exploração do homem pelo homem” que eram vistas como inerentes a uma
lógica capitalista de produção, organização e reprodução social e econômica. Na visão
do governo socialista o desenvolvimento rural se inseria plenamente nos planos de
transformações que eram imprescindíveis para se alcançar uma forma socialista de

- 125 -
relação e organização social. Para tal, era necessário concentrar espacialmente a
população rural que voltou a se dispersar com o fim da guerra colonial em aldeias
comunais e dinamizar a produção agrícola sob a forma de empresas estatais e
cooperativas agrícolas. Concentrar essas populações em aldeias comunais, rompendo
com a sua lógica dispersa de organização social, tal como fez o colonizador; e
cooperativar a produção agrícola através da socialização dos meios de produção
(principalmente a terra e a força de trabalho) era visto como o único caminho a ser
seguido para vencer o subdesenvolvimento e transformar as relações sociais numa
perspectiva socialista (CASAL, 1996). As aldeias comunais surgem assim assumindo
uma dupla função: (i) concentrar as populações das áreas rurais; e (ii) coletivizar a
atividade econômica rural. Esse novo sistema de povoamento era também visto como o
melhor caminho para garantir o acesso das populações das áreas rurais aos serviços
essenciais, como saúde, educação e transporte, água potável, etc. Neste contexto, fatores
como a extensão de terra suficiente para o desenvolvimento da produção familiar e
cooperativa, fertilidade dos solos, água potável, acesso a recursos naturais eram na visão
dos planificadores imprescindíveis no processo de instalação das aldeias comunais
(ARAUJO 1983; 1988). Segundo Casal (1996) o projeto previa aldear
aproximadamente 80% da população rural moçambicana.

O programa de aldeias comunais em Moçambique não era inédito em estados


“pós-coloniais” africanos. Experiências semelhantes de deslocamento compulsório
desenvolvidas por novos governos de estados “pós-coloniais” – governos esses
revolucionários e com uma visão socialista de organização política, social e econômica
– foram vividas por populações das áreas rurais argelina e tanzaniana, numa espécie de
repetição de ações análogas perversas dos atores coloniais. De acordo com Casal (1996,
p. 59), em 1972, a Argélia desenvolveu um programa de reordenamento rural com a
intenção de materializar o que se denominou de “socialismo aldeão”. Esse programa
que se enquadrava no plano global de revolução agrária previa a construção de 1000
aldeias socialistas, vistas, não só como essenciais para o desenvolvimento de relações
socialistas no campo, como também, para a integração econômica e política das
populações das áreas rurais ao restante da sociedade. “Integração política” - o projeto
previa também a descentralização administrativa em nível local como forma de
fortalecer a presença do estado. Embora assentado num discurso de melhoria de vida
das populações das áreas rurais argelinas, o controle político continuou sendo um dos

- 126 -
mecanismos ocultos do processo que matinha claras analogias com o programa de
aldeamento colonial francês, acima descrito. Concentrar as populações das áreas rurais
em espaços delimitados, rompendo com a lógica dispersa de vivência, permitiu instituir
um sistema de reprodução de força de trabalho para o setor agrícola e os demais setores
econômicos de produção. Numa lógica de tutela, as populações das áreas rurais foram
colocadas como meros objetos e espectadores do processo, sendo negada a
possibilidade de serem protagonistas do seu próprio destino. O fracasso do projeto levou
ao seu abandono em 1981 (CASAL, 1996).

As aldeias Ujamaa na Tanzânia, pretenderam na mesma linha de concepção do


governo socialista argelino, ser um instrumento fundamental do desenvolvimento rural,
“numa época em que os nacionalismos africanos e o fervilhar das ideologias tornavam
possível o sonho de um desenvolvimento genuinamente africano” (CASAL, 1996, p.
62). A ideologia era a mesma da Argélia, e mais tarde em Moçambique: romper com a
lógica dispersa de vivência que era vista como o maior obstáculo à planificação correta
da economia e do desenvolvimento nacional. Até 1972 foram (através de um processo
que sempre desconsiderou o ponto de vista das próprias populações atingidas,
prevalecendo promessas de desenvolvimento e infraestruturas básicas de vivência, e em
várias situações chantagens e violência) criadas 6.000 aldeias Ujamaa na Tanzânia,
albergando aproximadamente dois milhões de habitantes. Esse número subiu para 9
milhões em 1975, aproximadamente 65% da população rural (CASAL, 1996, p. 66).
Essa experiencia da Tanzânia, bem como da Argélia, pois, serviu de fonte de inspiração
para o programa de aldeias comunais desenvolvido pelo governo da FRELIMO.

Tal como destaca Casal (1991), a produção familiar dispersa já era objeto de
crítica de Samora Machel, ainda no período da guerra de libertação nacional. Para ele o
individualismo e espírito de propriedade (privada) era um espírito capitalista que divide
e enfraquece. Abandonar essa lógica e combater a “exploração do homem pelo
homem”, era imprescindível para se assumir uma consciência coletiva de trabalho. Foi
também no período da guerra que a experiência de socialização dos meios de produção
e cooperativização agrícola, baseado nas aldeias comunais, começou a ser
implementado nas zonas libertadas. Nestas zonas a população viu o seu modo de vida
alterado para um socialismo de guerra, no qual o trabalho coletivo nas machambas, a
hierarquia política e a rigidez da organização se mostraram como um embrião da
sociedade que estava por se construir (GALLO, 2017, p. 82). Tal como lembra Cabaço

- 127 -
(2007, p. 400), a direção da FRELIMO tinha a preocupação de integrar em cada unidade
operativa, militares vindos de diferentes regiões e grupos étnico linguísticos distintos
para reduzir “tendências centrífugas e, potenciando novos momentos de
intersubjetividade, estimular dinâmicas sociais e culturais que, de forma criativa,
respondessem aos problemas inéditos que a situação de guerra suscitava”. As
experiencias das zonas libertadas inspiraram o programa de aldeias comunais no estado
“pós-colonial”. Ou seja, esse modelo revolucionário que a FRELIMO tinha concebido e
desenvolvido durante os 10 anos de guerra de libertação nacional, (inspirado nas
experiencias argelina e tanzaniana) nas zonas libertadas passa a ser utilizado em todo
território nacional, provocando um deslocamento maciço das populações, na sua
maioria das áreas rurais.

O geógrafo Manuel de Araújo agrupa o processo de formação das aldeias


comunais em 4 formas: (i) as aldeias formadas a partir da política da necessidade da
produção coletiva; (ii) as aldeias convertidas dos antigos aldeamentos; (iii) aldeias
formadas em consequência das calamidades naturais; e (iv) aldeias dos “regressados”,
criadas para acomodar o movimento maciço das pessoa que regressavam à terra natal
depois de um período de refúgio nos países vizinhos (ARAUJO, 1983; 1988). A região
norte foi incialmente a mais contemplada pelo programa. Até 1977 tinham sido
compulsoriamente deslocados para as aldeias comunais em Cabo Delgado cerca de 800
mil habitantes, concentrados em 600 aldeias - aproximadamente 90% da população total
da província (CASAL, 1996). Nesse ano de 1977 foi realizado também o terceiro
congresso da FRELIMO que se tornou a primeira oportunidade para analisar as políticas
globais que vinham sendo desenvolvidas desde a independência e simultaneamente o
momento de adoção de modelo político e estratégia econômica para os anos seguintes.
Nesse congresso foi oficialmente adotado o socialismo marxista-leninista como modelo
político e econômico, baseado numa aliança entre os trabalhadores camponeses. Com o
centralismo político e econômico, o estado na sua vertente de poder governamental,
passou a ser dominante e determinante. No âmbito das aldeias comunais, no dia 02 de
março foi criado pelo decreto 1/78 a Comissão Nacional das Aldeias Comunais sob
autoridade direta do presidente da república. Ou seja, o processo passou a ser
centralmente planificado e implementado (BORGES COELHO, 1993). Até 1978, Cabo
Delgado no Norte e Gaza no Sul do país eram as províncias que apresentavam maior
número de pessoas aldeadas, aproximadamente 90% da taxa nacional. Pelo crescimento

- 128 -
apresentado nas restantes províncias, essa taxa desceu para 60% nos anos 1982/1983.
De 1976 a 1983 aproximadamente 20% da população moçambicana tinha sido
deslocada compulsoriamente para as aldeias comunais num movimento de
aproximadamente 2 milhões de habitantes (ARAUJO, 1988, p. 209). Cabo Delgado e
Tete eram as províncias que apresentavam maior número de aldeamentos coloniais até o
fim da independência e algumas das aldeias comunais foram resultado da reconversão
automática dos antigos aldeamentos coloniais. No caso de Moatize, por exemplo, em
1974 ano de assinatura do acordo de Lusaka, havia 44 aldeamentos coloniais. Até 1982
dois tinham sido transformados em aldeias comunais, 29 se transformaram em aldeias
informais e 13 desapareceram (BORGES COELHO, 1993, p. 377).

Os desastres ambientais de 1977 deram uma nova engrenagem ao processo, pois,


as autoridades governamentais aproveitaram, por exemplo, as inundações no rio
Limpopo e Incomati no Sul para concentrar a maioria das pessoas que viviam às
margens daqueles rios em aldeias comunais. O mesmo se verificou nas províncias de
Tete, Manica, Sofala e Zambezia devido as inundações do rio Zambeze em 1978. Foram
criados, devido a essas inundações, 26 aldeias comunais na província de Tete. Segundo
dados de Borges Coelho (1993), aproximadamente 90 mil pessoas foram
compulsoriamente deslocadas para 39 aldeias comunais até 1982 naquela província.
Esse número subiu para aproximadamente 200 mil pessoas em 63 aldeias comunais em
1983. Até 1985, 450 mil pessoas viviam concentradas em 111 aldeias comunais. O
distrito de Moatize tinha 3 aldeias comunais (Capirizange, M´condezi e Samôa) até
1980, concentrando aproximadamente 3 mil habitantes. Esse número subiu para 5
aldeias em 1983 com aproximadamente 21 mil habitantes (ARAUJO, 1988, p. 314).
Este fato evidencia mais um aumento demográfico por aldeia já existente do que
necessariamente o aumento de aldeias. Ou seja, as aldeias já edificadas continuaram
recebendo mais pessoas. Fato que criava uma grande pressão sobre o acesso aos
recursos naturais. A população média das aldeias na província de Tete chegou a atingir
3000 hab./aldeia, com alguns distritos como Mutarara a atingir 5000 hab./aldeia. Das
cinco aldeias que existiam em 1983 em Moatize, duas registraram uma população que
variava de 5 a 10 mil hab./aldeia. Outras duas com variação de mil a 5mil hab./aldeia e
uma de 500 a mil hab./aldeia, ou seja, todos tinham uma população considerada acima
da média que é de 250 a 500 mil/aldeia. Em nível nacional somente 27% das aldeias
comunais nacionais tinham cerca de 500 famílias. Em alguns casos, em Gaza, as aldeias

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comunais chegaram a albergar mais de 2000 famílias cerca de 15 a 20.000 pessoas
(BORGES COELHO, 1993, p. 336).

Subalternizando a agricultura familiar e a produção para a reprodução social da


sua condição camponesa, a política governamental de aldeias comunais pressionou e
forçou as populações das áreas rurais a dedicar uma importante parte do seu tempo às
cooperativas agrícolas. Na província de Tete, por exemplo, foram criados, no âmbito do
programa das aldeias comunais, cerca de 14 cooperativas agrícolas até 1978. Esse
número passou para 31 em num total de 1.202 membros em 1980. As cooperativas
agrícolas eram vistas como a base da organização econômica das aldeias comunais e a
materialização da ideia da socialização dos meios de produção (terra, força de trabalho,
etc.). Neste contexto, a agricultura familiar que era a base da reprodução
socioeconômica da maioria das populações das áreas rurais foi sendo transformada em
agricultura cooperativa. Em Moatize, a cooperativização agrícola começou em 1979
com a criação na aldeia comunal Capirizange da Cooperativa 25 de setembro, com uma
área de 205ha composta por 60 membros. Em 1980 foi criada na aldeia comunal Samôa
a cooperativa Samora Machel, composta por 57 membros e ocupando uma área de 59ha.
Em 1981 mais uma cooperativa agrícola foi criada na aldeia comunal M´Condezi,
composta por 291 membros e explorando uma área de 40ha (BORGES COELHO,
1993, p. 394).

Segundo Adolfo Yañez Casal, a luta de libertação nacional e o fato de ter sido
um ator central na independência do país deram a FRELIMO um prestígio, força e
autoridade para tomar nas suas mãos o destino o do povo moçambicano e abriu espaço
para maior aceitação dos seus ideais no processo de mobilização. O discurso de
melhoria de vida, desenvolvimento de infraestruturas, assistência social e
implementação de políticas públicas essenciais para a vivencia foi inicialmente aceito
pela maioria da população, não só em função da sua legitimidade, mas também porque
hospitais, escolas, transporte, abastecimento dos meios de produção já eram
necessidades da maioria das populações das áreas rurais (CASAL, 1996, p. 126).
Porém, em muitos casos a violência e a intimidação foram empregados, tal como na
política dos aldeamentos coloniais, diante de ações de resistência das populações37 .

37 Para
mais informações sobre as ações de resistência das aldeias comunais, ver a tese da antropóloga
Fernanda Gallo, intitulada “Andando à procura dessa vida: dinâmicas de deslocamento na província de
Tete-Moçambique, do colonialismo tardio à mineradora Vale”, fruto de uma pesquisa desenvolvida na

- 130 -
Queimar palhotas das populações para forçar a transferirem-se para as aldeias comunais
não eram ações raras. Outra estratégia agressiva de mobilização foi, por exemplo, de
proporcionar ajuda emergencial somente aos que estão nas aldeias comunais como
forma de cooptação, deixando à própria sorte os que estivessem fora ou se recusavam a
aceitar essa política perversa38 .

Na aldeia comunal, a unidade base residencial e de produção era o talhão com


uma superfície delimitada de aproximadamente 30X40 metros, uma redução rígida e
violenta do espaço habitacional se olharmos para a lógica dispersa de vivência
(ARAUJO, 1988). A área de produção também era delimitada. Porém, devido à
escassez de terras férteis, ao frágil planejamento que caracterizou o processo e ao
número elevado de populações concentradas, obrigou ao afastamento cada vez maior
das unidades produtivas da área habitacional. Ou à diminuição das parcelas familiares e
cooperativas. Importa realçar também a prevalência, tal como nos aldeamentos
coloniais, de uma lógica de controle populacional materializada pela presença de grupos
de vigilância e corpos de milícia - organização militar que estava encarregada da defesa
e manutenção da disciplina nas aldeias.

Segundo Manuel de Araújo, muitos aspectos inerentes ao desenvolvimento


socioeconômico das populações compulsoriamente aldeadas foram ignorados. Muitas
aldeias se transformaram em apenas concentração das populações das áreas rurais em
lugares distantes da sua anterior área de residência e produção sem encontrar uma
substituição adequada. A produção coletiva foi artificial, forçada e pouco organizada e
resultou em baixa produtividade. Algumas aldeias nunca chegaram de fato a
implementar qualquer forma de produção coletiva (ARAÚJO, 1988). A localização das
residências em muitas aldeias comunais da Província de Tete (e essa era uma
caraterística nacional) foi definida pelas autoridades distritais e ou provinciais sem
participação popular. O acesso às fontes de água era o principal problema nas aldeias
comunais em Tete. Fato que evidencia uma autêntica repetição dos problemas descritos

província de Tete em Moçambique sobre os atuais deslocamentos populacionais provocados pelos


grandes projetos ditos de desenvolvimento nacional (GALLO, 2017).
38 É lamentável notar como praticas perversas semelhantes se verificam atualmente: a Jindal, empresa

mineradora indiana que atua na exploração mineral em Moatize, vem com a anuência do governo
explorando as minas de carvão a céu aberto, próximo das áreas residenciais, numa autentica in diferença à
questão humana e à violação dos direitos humanos. O empreendimento foi inaugurado pelo então
presidente da República de Moçambique Armando Emilio Guebuza. A exposição à poluição ambiental
faz com que as populações desejem ser deslocadas para ou tros locais. Fato que pode ocorrer sem a
garantia integral dos seus direitos.

- 131 -
nos aldeamentos impostos pelos colonizadores portugueses. Tal como destaca Borges
Coelho (1993), embora pudessem ser encontradas escolas em todas as aldeias comunais,
eram frequentemente escolas construídas nos aldeamentos coloniais. Em muitas aldeias
comunais as escolas funcionavam a céu aberto, debaixo das arvores. O problema com os
postos de saúde era particularmente o mesmo. Em Moatize, por exemplo, das 3 aldeias
comunais só uma tinha um posto de saúde.

O acirramento da guerra com a RENAMO em 1980 fez com que, tal como no
tempo colonial, as estratégias militares imperassem sobre todo o discurso social,
político e econômico de legitimação das aldeias comunais. Razão pela qual,

em 1980 a imensa maioria das aldeias eram apenas locais de habitação sem
uma base socioeconômica segura. A degradação do sistema familiar começou
a levantar sérios problemas de reprodução social. Dificuldades de transporte,
problemas das terras e acesso a água, provocaram sérios problemas de
subsistência. O abandono começa a se tornar numa tática de neutralização das
ameaças a sobrevivência. O programa começa a entrar em crise revelando as
incongruências do seu processo de implementação (CASAL, 1996, p. 127).

Os sinais da chegada da guerra civil em Tete começaram a ser observados no


início de 1982. As aldeias comunais e cooperativas agrícolas eram os alvos
privilegiados nas ações da guerrilha da RENAMO, resultando em destruição de
infraestruturas, pilhagem de bens, mortes e raptos das pessoas. Segundo Borges Coelho
(1993), em 1982, metade das aldeias comunais em Tete foram destruídas pela
RENAMO,. Em Moatize, a guerrilha da RENAMO atacou no dia 14 setembro a aldeia
N´cungas - antigo aldeamento colonial, transformado em aldeia comunal - queimando e
saqueando comidas e roupas. No dia 24 repetiu as mesmas ações na aldeia Djente. Em
26 de setembro na aldeia Cateme, atual área onde foram reassentadas as populações
compulsoriamente deslocadas no âmbito da instalação das minas de exploração de
carvão pela multinacional brasileira Vale. No dia 10 de outubro, o alvo foram as aldeias
Canchira e Catipo que são resultado de antigos aldeamentos coloniais. Em 15 de
outubro, a RENAMO atacou a aldeias N´thudzi e no dia 31 a aldeia comunal Samôa,
também queimando e saqueando bens (BORGES COELHO, 1993, p. 421). Em 31 de
outubro de 1982, a cooperativa Samora Machel da aldeia comunal Samôa em Moatize,
sofreu um ataque devastador que a obrigou a encerrar definitivamente as suas
atividades. Os efeitos da guerra civil, associados a outros problemas como dificuldade
de transporte, escassez de terras férteis, acesso a água, pressão sobre recursos naturais,
conduziram ao fracasso do programa. Vale dizer: problemas decorrentes do fraco
planejamento e da negação da participação popular, resultante da prevalência de uma
- 132 -
lógica de tutela, do estilo “nós sabemos o que é bom para vocês, vocês só têm que
seguir”. O que fora discursivamente projetado para ser uma forma de organização da
vida coletiva, visando ao melhoramento das suas condições de vida se transformou num
campo de concentração da miséria e degradação social e econômica.

A restruturação econômica imposta pelas instituições de Bretton Woods nos


finais da década 80, marca o fim de uma lógica centralizada de organização econômica
e do marxismo-leninismo enquanto orientação política e socioeconômica do estado. O
fim das aldeias comunais liberou os camponeses para se dedicar à produção para
reprodução da sua condição camponesa. Algumas populações regressaram às suas áreas
ancestrais. Acreditavam poder agora sonhar com a tão sonhada “liberdade, dignidade e
o amor entre os Homens”, prometida pelo presidente Samora Machel em seus primeiros
discursos e que tinha sido alienada às aldeias comunais. Uma coisa é certa, a liberdade
que já vinham pouco a pouco lutando e conquistando através das diversas ações de
resistência estava se efetivando. Como mencionado, o acordo de Roma em 1992 marca
o fim da guerra civil e o retorno de milhares de moçambicanos que se encontravam
refugiados nos países vizinhos. A estes também o fim da guerra lhes restaurava a
liberdade de decidir onde e como viver. A constituição de 1990 ratifica o liberalismo
econômico em Moçambique abrindo espaço para a chegada de novos atores. Desta vez
eles vieram de “terno e gravata com malas de dinheiro”. A agricultura continuou sendo
a base do desenvolvimento nacional, mas agora seguindo as orientações dos técnicos
dos organismos do capitalismo internacional tais como o Banco Mundial e o Fundo
Monetário Internacional. Para eles existe um caminho a ser seguido rumo ao
desenvolvimento e só eles têm a formula. Na agricultura, a privatização e formação de
grandes latifúndios era o caminho.

Nos anos “pós-2000” um novo setor passa também a se destacar na política de


desenvolvimento nacional. A indústria extrativa mineral. Rica em recurso minerais e
energéticos, a região do Vale de Zambeze volta a estar submersa a um novo processo de
deslocamento compulsório provocado pela instalação de grandes projetos de exploração
mineral com destaque para as minas de carvão mineral em Moatize. Se nos dois
grandes processos de deslocamento compulsório anteriores a lógica que prevalecia era,
usando em analogia as palavras do antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almeida
(2002), a integração às áreas de controle e à grande propriedade coletiva, hoje a luta dos
atores governamentais e dos atores econômicos multinacionais é, tal como buscamos

- 133 -
demonstrar no subcapítulo a seguir, pela expulsão e expropriação em favor da grande
propriedade privada.

****

Antes de entrarmos nos atuais deslocamentos populacionais provocados pela


atual política governamental de desenvolvimento nacional assentada nos grandes
projetos de mineração, sendo a Vale um ator determinante, gostaríamos com a
permissão do leitor destacar alguns pontos teóricos de análise. O caso das aldeias
comunais, dos aldeamentos coloniais e dos processos migratórios originados pela
brutalidade das companhias majestáticas e arrendatárias evidenciam, por um lado, que o
colonialismo e pós-colonialismo se entrelaçam e correspondem a dois períodos de uma
história em que a violência é um dos elementos centrais (PINA CABRAL, 1999). Por
outro, que os atuais deslocamentos compulsórios provocados pelos grandes projetos de
mineração no vale do Zambeze são uma história que se reescreve. Isso nos induz a
repensar a ideia de ruptura quando falamos de estado colonial e estado pós-colonial
enquanto estágios de processos históricos distintos e dentro do próprio estado pós-
colonial quando falamos do regime socialista e do regime neoliberal. O antropólogo
João de Pina Cabral trabalha com a ideia da persistência da história para destacar a
prevalência ou a continuidade de práticas coloniais em vários estados “pós-coloniais”
africanos. Persistências essas, que nos remetem à necessidade de uma reflexão profunda
sobre a própria ideia de “pós-colonial” ou a não usá-la de uma forma acrítica. A
natureza violenta e antidemocrática do estado é uma dessas continuidades.

A excessiva ênfase dada às cismas ou rupturas contribui, segundo o autor, para


silenciamento dessas continuidades de práticas coloniais nos atuais estados africanos.
Os processos que usamos para descrever o mundo tanto iluminam alguns aspetos como
deitam sombra sobre os outros (PINA CABRAL, 2004). É o que nos fala o sociólogo
Elísio Macamo quando questiona: “que zonas de penumbra são criadas pela iluminação
do que [supostamente] existe” (2014b, p. 96).

Não será a visibilidade do que [supostamente] existe resultado do que é


supostamente votado ao esquecimento à morte epistemológica e
metodológica, por assim dizer, à sorte do trabalho de bastidores tornado s

- 134 -
invisíveis pelos holofotes que preferem fazer jorrar a sua luz sobre o palco?
(p. 96).

Com isso Macamo (2014b) quer dizer que o aparato teórico conceitual sobre o
mundo social normaliza o que supostamente existe e esse processo de normalização
invisibiliza e silencia “outros mundos possíveis os mundos sacrificados para que este
que existe exista” (p. 96).

Isso não implica – voltando para a crítica de Pina Cabral - recusar a existência de
rupturas entre o colonialismo e o pós-colonialismo, mas que essas rupturas estão abertas
a continuidades. Advogamos que essa não seja uma caraterística exclusiva de estados
africanos. A realidade da vida cotidiana das comunidades quilombolas amazônicas39
(destacamos essa região porque é donde esta tese está sendo escrita) são um exemplo
dessas rupturas que guardam consigo muitas continuidades. Tal como destacamos num
outro trabalho (CONRADO; EUSÉBIO; CASTRO, 2017) de escravizados, violentados
e perseguidos no período escravocrata, invisibilizados40 até a redemocratização do
Brasil, os negros e as negras afro-amazônidas, enfrentam novos desafios inerentes a
uma política ambiental governamental violenta na medida em que impede a titulação
das suas terras tradicionalmente ocupadas – o conflito entre a Floresta Nacional Sacará-
Taquera (FLONA) e a Reserva Biológica de Trombetas (REBIO) por um lado; e as
comunidades quilombolas de Oriximiná por outro, é um exemplo emblemático
(FARIAS JÚNIOR, 2010). Assim como a violência da indústria extrativa com destaque
para a mineração. O avanço da indústria extrativa vem sendo acompanhado pela

39 Embora os primeiros quilombos sejam resultado de fugas de negros e negras escravizadas, a identidade
quilombola não se resume a isso. Berno de Almeida (2002) trabalha com a categoria de “autonomia” para
destacar que quilombo, em verdade, descarnou -se dos geografismos, tornando-se uma situação de
autonomia que se afirmou fora ou dentro da grande propriedade. Para o autor, a situação de quilombo
existe onde há uma “[...] produção autônoma que não passa pelo grande proprietário ou pelo senhor de
escravos como mediador efetivo” (p. 62). Ao destacar a questão da autonomia a definição de quilombo
passa a abranger uma diversidade de situações e uma pluralidade de práticas e auto definições dos agentes
sociais que viveram e constituíram essas situações, hoje, designadas por quilombos, inclusive àqueles
relativos à compra de terras por famílias de negros escravizados alforriados (ALMEIDA, 2002). Ou seja,
a categoria quilombo, consiste em grupos que desenvolveram práticas cotidianas de resistência na
manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos e na consolidação de um território
próprio” (O`DWYER, 2010, p 43). Nesse contexto, a identidade desses grupos se define pela expe riência
vivida e as versões compartilhadas de sua trajetória comum e da continuidade enquanto grupo
(CONRADO, EUSEBIO, CASTRO, 2017).
40 Uma invisibilização que é, tal como destacamos anteriormente (CONRADO; EUSEBIO; CASTRO,

2017) a expressão máxima de uma ordem jurídica hegemônica e expõe uma forma de violação simbólica
(LEITE, 2010). A primeira lei de terras, redigida após a abolição tardia da escravatura, contribuiu
substancialmente para tornar invisíveis os negros e as negras quilombolas e seus descendent es no
processo de ordenamento jurídico-territorial do país. Ao negar-lhes a condição de brasileiros, segregando-
os a categoria de libertos esta lei inaugura, segundo Ilka Boaventura Leite (2010, p. 19), um dos mais
“hábeis e sutis mecanismos de expropriação territorial”

- 135 -
lentidão da demarcação das suas terras41 - um processo que daria mais segurança
jurídica sobre os seus direitos territoriais. Essa lentidão tem como uma das
consequências diretas a expropriação. No período escravocrata, a perseguição aos
quilombolas era tal como na política de aldeamentos coloniais e aldeias comunais em
Moçambique, para a sua agregação e reintegração à propriedade. Hoje a luta das elites
econômicas é pela expulsão, “[...] botar para fora ou tirar dos limites físicos da grande
propriedade” (ALMEIDA, 2002, p. 59). Em função disso não se torna um equívoco
reiterar que de populações escravizadas, perseguidas e historicamente sofridas, as
comunidades quilombolas se tornaram populações espoliadas em seus direitos e na sua
condição humana (LEITE; OLIVEN, 2002; CONRADO; EUSÉBIO; CASTRO, 2017).
Essa perseguição e espoliação de direitos e condição humana dos negros se verifica
também nas cidades. Segundo Jakson Silva da Silva (2017) em Belém, por exemplo,
“inferiorizados os pretos, pobres e pardos são obrigados a sair para dar espaço à
“destruição criadora” que orienta uma concepção de urbanismo que sistematicamente
substitui o lugar de vida popular pelo espaço de valorização do valor [capitalista]” (p.
1144). A questão que importa fazer agora é a seguinte: seria o Brasil uma sociedade
“pós-colonial” ou “pós-escravocrata”?

Os vínculos da realidade atual de vida das comunidades quilombolas com a


situação colonial – o que Quijano (2005) denomina de colonialidade – evidenciam uma
persistência da história (CARVALHO; PINA CABRAL, 2004). A atribuição automática
e essencialista de uma condição pós-colonial ao Brasil (só para dar sequência ao
exemplo das populações quilombolas da Amazónia brasileira), bem como aos estados
africanos “esconde a continuidade de um aparelho de Estado que não reflete a
constituição histórica, cultural e econômica do país e que portanto não permite formas
orgânicas e legitimadas de autodeterminação” (PINA CABRAL, 2004, p. 390). Ou seja,
“a existência de cismas na vida sociocultural não deve esconder continuidades, pois
ambos aspetos se interpelam no devir histórico, tendo igual valor heurístico” (p. 391).

Pina Cabral encontra continuidade de práticas coloniais no estado “pós-


colonial” moçambicano, não só no seu caráter violento e antidemocrático, como

41 Os passos de tramitação da titulação se rendem e se submetem à cultura cartorial, que foi montada pelos
donatários e para atender a seus interesses. O percurso é incerto e não é definido pela legislação, mas pelo
jogo de forças e poderes há muito solidamente institucionalizados. “[...] Não há nenhuma garantia de que
os atuais procedimentos administrativos consigam transpor as armadilhas instituídas pela máquina
cartorial em seus tramites regulares” (LEITE, 2010, p. 31).

- 136 -
também na continuada exportação de força de trabalho moçambicana para as minas da
África do Sul (PINA CABRAL, 2004). Elísio Macamo encontra continuidades de
práticas coloniais no estado pós-colonial moçambicano na prevalência de uma lógica
instrumental de cidadania que o autor denomina de cidadania de tutela centrada na
subordinação da liberdade dos indivíduos às vontades particularista do estado
(MACAMO, 2014a).

Tereza Crus e Silva encontra rupturas que guardam continuidades na definição


da normalidade religiosa que é sempre determinada no alinhamento entre o campo
religioso e o campo político. Ao longo da dominação colonial, a igreja católica
determinava a normalidade religiosa. Neste contexto o movimento protestante e as
chamadas seitas religiosas nativas (incluindo os movimentos pentecostais) eram tratadas
como um corpo estranho, à margem dos modelos normativo definidos pela igreja
católica. No estado “pós-colonial” as igrejas mais estabelecidas, incluindo as
protestantes, passaram a definir os novos parâmetros de normalização religiosa, num
processo de ruptura com algumas regras anteriores que eram exclusivamente católicas,
mas de continuidade ajustada a um novo contexto, passando assim a determinar as
novas fronteiras que diferenciam o eu do outro no campo religioso. O “eu” determina a
normalidade religiosa em função do alinhamento com o campo político e o outro é
resultado da oposição, isto é, do que o “eu” não “é”. Este último é lugar atribuído, por
exemplo às igrejas Ziones, objeto de estudo da autora (CRUZ E SILVA, 2004). Houve
rupturas, pois, a igreja católica perdeu com a independência o poder exclusivo de
excluir os outros e as igrejas protestantes deixaram de ser o outro. A continuidade é que
a normalidade religiosa prevalece, agora englobando a igreja católica e igrejas
protestantes alinhadas com o campo político que continuam conferindo para si o poder
de excluir os outros.

Na mesma linha de abordagem, Jose Pimentel Teixeira encontra evidências de


continuidades de lógicas coloniais e não somente cismas ou descontinuidades no
deslocamento semântico ou na ressignificação da palavra branco (mkunya na língua
macua, de um dos grupos pesquisados pelo autor) em algumas comunidades locais. O
autor constatou que o termo mkunya é atualmente utilizado para designar elementos da
administração estatal ou indivíduos associados à posse e usufruto de símbolos
correspondentes a uma posição social urbana de algum relevo político ou econômico
(TEXEIRA, 2004, p. 314). Porém, tal como adverte o autor, a utilização desse termo

- 137 -
branco, nessa vertente semântica, não implica só a consciência das relações de
assimetria entre o mundo rural e os elementos do mundo do poder urbano. Ela também
denuncia uma estranheza: essa relação agora se dá com a gente que não sendo branca, se
comporta como tal, ou seja, estabelece velhas e cruas relações de dominação. A
denúncia implícita na mera extensão do termo branco não deixa de ser explícita na
recorrente acusação de que esses “pensam como brancos, julgam que são brancos ou
andam como os brancos, afirmações ilegitimadoras, não só das condutas alheias, mas
fundamentalmente, das relações sociológicas que as antecedem” (p. 315). Isso demostra
- continua Teixeira (2004),

uma relativa similaridade da forma como localmente se recorda o regime


colonial e os seus agentes e de como se conceptualisa os conteúdos das
situações de dominação que aquele mundo rural sofre face ao poder estatal-
urbano. É esta articulação a chave obvia para entender a evolução do
conteúdo semântico de mkunya, abarcando agora a expressão (ante)colonial
“patrão”, um patrão hoje desprovido de cor de [cabrito esfolado], um
patronato assente no poder. (p 315).

O que esses trabalhos demostram é que rupturas que carregam consigo


continuidades se verificam nas várias dimensões: social, religiosa, política e econômica.
Os sujeitos são outros – isso voltando para o nosso objeto central de análise – mas a
história se reescreve. No próximo tópico mergulharemos nos atuais processos de
deslocamento compulsório no vale do Zambeze, particularmente, para os provocados
pela instalação do projeto Moatize de mineração operado pela Vale em Moatize.
Explorando os procedimentos que culminaram com o deslocamento das populações e
refletindo sobre rupturas e continuidades com os anteriores processos de deslocamentos
compulsórios acima descritos. A hipótese que buscamos defender é que os atuais
deslocamentos compulsórios e toda a violência física, simbólica, social, econômica e
política que lhes são inerentes, não só guardam algumas proximidades com os processos
anteriores, como também denunciam o caráter violento da sociedade moçambicana
dissimulado em discurso de democracia e estado de direito. Ou seja, Moçambique é um
estado violento e democraticamente questionável, onde prevalece, apesar da
redemocratização do país em 1990, uma lógica violenta de dominação política e
econômica, que coloca as comunidades locais numa posição subalterna. É em situações
como as que exploramos a seguir que essa lógica violenta de dominação se torna mais
explícita.

- 138 -
3.2 A atual política de desenvolvimento nacional: megaprojetos de mineração e os
deslocamentos compulsórios para os centros de reassentamento - o projeto Vale em
perspectiva

Os anos pós-2000 marcam a afirmação de uma política governamental de


desenvolvimento nacional assentada na indústria extrativa e na exportação de
commodities. Rica em recursos minerais, a região do Vale do Zambeze se torna alvo de
grandes investimentos diretos estrangeiros e da penetração de capital internacional o
que contribuiu para o despertar de uma nova vaga de deslocamento compulsório das
populações da região dentre todas as consequências que essa penetração acarreta, ou
que lhes são associadas. A nossa análise vai se centrar nos deslocamentos compulsórios
provocados pela instalação da primeira fase do projeto de exploração a céu aberto das
minas de carvão mineral no distrito de Moatize, operado pela multinacional brasileira
Vale. Cabe desde logo salientar que em 2002 foi aprovada uma nova lei de minas,
garantindo dentre vários pontos a prevalência das atividades mineiras sobre todas as
formas de uso e apropriação do território (MOÇAMBIQUE, 2002).

Em 2004, foi aprovado pelo Conselho de Ministros o Regulamento Ambiental


para as atividades mineiras que destaca, em primeiro lugar, a imperiosidade da
observância dos padrões de qualidade ambiental e de desenvolvimento ambiental
sustentável nas atividades de exploração de recursos minerais. São destacados como
instrumentos para uma gestão ambiental adequada: (i) o estudo de impacto ambiental,
que é considerado um instrumento de gestão ambiental preventiva que consiste na
identificação e análise prévia qualitativa e quantitativa dos efeitos ambientais benéficos
e maléficos de uma dada atividade mineral proposta; (ii) o plano de gestão ambiental,
que é um documento que deve conter uma análise técnica e cientifica da atividade
mineira e os seus objetivos ambientais. Este deve por obrigatoriedade conter também os
aspetos sociais, econômicos e culturais da área onde a atividade vai ser executada; (iii) o
programa de gestão ambiental que é uma documentação constituída por um conjunto de
métodos e procedimentos para atingir os objetivos ambientais propostos. Deve englobar
o programa de monitoramento ambiental (métodos e procedimentos para controle dos
objetivos ambientais) e o plano de encerramento da mina (métodos e procedimentos que
devem ser executados na desativação da mina com vista à reabilitação e controle
ambiental da área de operação e das áreas adjacentes que forem afetadas pela atividade

- 139 -
mineira). Este também tem a obrigatoriedade legal de acautelar aspetos sociais,
econômicos e culturais; (iv) o programa de controle de situação de risco e emergência
que é parte integrante do estudo de impacto ambiental, acima definido; e (v) a auditoria
ambiental que é considerada um instrumento de gestão e avaliação sistemática,
documentada e objetiva do funcionamento e organização do sistema de gestão e dos
processos de controle e proteção do ambiente (MOÇAMBIQUE, 2004).

Em segundo lugar, esse regulamento destaca a obrigatoriedade de consulta às


“comunidades locais” no caso de área concessionada coincidir com o seu território de
ocupação. Bem como a obrigatoriedade de garantir a participação das comunidades
locais na tomada de decisões que possam afetar os seus direitos (MOÇAMBIQUE,
2004). Dois anos depois é aprovado pelo Conselho de Ministros o Regulamento da Lei
de Minas que incute aos detentores de título mineiro a responsabilidade por qualquer
dano a culturas, construções, qualquer benfeitoria, bem como, o reassentamento e
indenização de qualquer ocupante da área concessionada. (MOÇAMBIQUE, 2006).
Importa frisar que o regulamento sobre o processo de reassentamento só foi aprovado
em 2012, três anos depois da execução do reassentamento da Vale e foi de certa forma
resultado das irregularidades cometidas e da pressão exercida sobre o governo por essas
comunidades compulsoriamente deslocadas e pelas diversas ONGs nacionais e
internacionais (MOÇAMBIQUE, 2012).

Os 35 mil hectares concessionadas pelo Governo de Moçambique à


multinacional brasileira Vale, através da sua subsidiaria Vale Moçambique, para a
exploração das minas de carvão de Moatize englobavam uma área de ocupação
ancestral imemorial ou datada de diversos bairros e comunidades locais. Todos esses
grupos sociais foram reduzidos à categoria de “comunidades locais” com direitos de uso
e aproveitamento coletivo sobre a terra ocupada, razão pela qual a empresa teve que
negociar com elas diretamente o processo de transferência de Direito de Uso e
Aproveitamento da Terra (DUAT) para o desenvolvimento das suas atividades. Um
processo que foi meramente formal pois aconteceu depois do governo já ter assinado o
acordo de concessão. Dito de outra forma: a consulta comunitária é, sob ponto de vista
legal, um procedimento essencial para transferência de DUAT das comunidades locais
para a empresa. Porém, na prática assume-se como uma forma dissimulada de
legalidade do processo de concessão pois, olhando para o caso específico da Vale, essa
fase foi depois do acordo ter sido assinado pelo governo. Querendo ou não, a

- 140 -
transferência do direito do uso e apropriação das comunidades para a empresa era
obrigatório e irreversível. Não tinham escolha. Já estavam condenadas à expropriação.
Primeiro porque a mineração tem prioridade sobre todas as formas de uso e apropriação
da terra e recursos. Segundo porque o direito já havia sido concedido. Isso para dizer
que, desde o primeiro momento as comunidades estavam condenadas ao deslocamento
compulsório. O passo seguinte era saber em que condições. Neste contexto não constitui
um equívoco afirmar que mais do que negociar as condições de possibilidade de
implementação do empreendimento no seu território, as ditas consultas comunitárias
foram mais para imposição das condições da irreversível saída do lugar (retomamos
essa discussão no capítulo 04).

Após a assinatura do acordo com o governo moçambicano, a Vale começou a


desenvolver ações visando ao deslocamento compulsório dessas populações e viabilizar
a exploração do carvão mineral. Nesse processo de expropriação da terra a Vale dividiu,
tal como destacamos no capítulo 02, as famílias em rurais e semiurbanas. Foram
classificadas como rurais as famílias que viviam da agricultura e outras atividades
consideradas “informais” como olaria, produção de esteiras e pesca. E de semiurbanas
as famílias de funcionários e, por exemplo, trabalhadores das diversas empresas que
atuam na área. Tal como podemos constatar, por exemplo, na narrativa do Sr. R.P.B.
Chipanga (2016, grifos nossos) a divisão foi feita de forma perversa e imposta sem ter
em conta as posições das próprias populações.

Lembro que o primeiro contato que tivemos com os representantes da


empresa Vale foi quando a dona Sonia veio ter conosco para nos informar
que iriam explorar carvão. Disseram: nós descobrimos que aqui tem recurso,
tem carvão que vamos explorar e vocês não podem permanecer aqui porque
não é compatível fazer essa exploração com a vossa presença. Porque pode
pôr em causa vossa vida. Então vocês terão que sair para outro lugar.
Inicialmente, eu pessoalmente, pensei que era brincadeira. Mas com o tempo
as coisas começaram a se intensificar. Percebi que não era brincadeira, era
algo realmente sério, quando vieram no segundo momento para nos dizer que
temos que sair. Nos apresentaram duas opções, 25 de setembro e Cateme.
Perguntaram quem quer ir para 25 de setembro. Algumas pessoas aceitaram
outras não. Imediatamente trataram de advertir que 25 de setembro serão
reassentadas as pessoas que trabalham formalmente, para estarem
próximos da vila e de seus locais de trabalho. Então aqueles que não
trabalham formalmente, vivem de machamba, criação de animais,
trabalhos domésticos e outros pequenos negócios devem ir para Cateme
porque lá vão encontrar condições próprias para continuarem a exercerem as
vossas atividades de machamba, criação de animais nos mesmos moldes
daqui. Então quem trabalha e é funcionário fica nesse reassentamento 25 de
setembro que é próximo da vila para não comprometer a sua atividade
laboral. Muita gente optou em vir para aqui porque de fato não tinha trabalho
formal. Todos esses que vieram aqui não exerciam atividade laboral formal.
Trabalhavam por conta própria. Acabaram vindo para cá porque prometeram

- 141 -
que iriam continuar a desenvolver aquelas suas atividades normalmente.
Prometeram criar condições para isso e criar projetos como de criação de
frangos, dentre outros, para ajudar a desenvolver atividades que dê algum
rendimento .

Esta postura da empresa evidencia o caráter autoritário do processo que, tal


como nos anteriores processos de deslocamentos compulsórios, acima explorados,
nunca considerou as comunidades como parte integrante do processo de planejamento e
tomada de decisão. Refletindo sobre essa divisão rural/semiurbana, Tomas Selemane
considera que a Vale usou a estratégia de “dividir para reinar”, buscando minimizar as
ações resistências ao deslocamento compulsório para Cateme, que por estar longe da
cidade, a aproximadamente 40 km, com casas precárias e fragilmente construídas, seria
facilmente rejeitada pelas famílias semiurbanas (SELEMANE, 2010). Na mesma linha
crítica e explorando especificamente a classificação de “populações rurais”, Conceição
Osório e Tereza Cruz e Silva, consideram que a empresa usou como critério
determinante de classificação o trabalho na machamba (durante o processo foi feita uma
pergunta sobre a atividade principal desenvolvida por cada família, na qual a maioria
respondeu que era o trabalho na machamba), ignorando por um lado que aquelas
populações desenvolviam outras atividades, como por exemplo, a venda de carvão, a
produção de tijolos e brita para construção, a pesca, a produção de esteiras e o comercio
do mercado local, que eram essenciais na sua reprodução social e econômica. Por outro
lado, ignorando que viviam não necessariamente em comunidades rurais mas em zonas
periféricas da vila, razão pela qual deviam ser pelo menos caracterizadas como
semiurbanas. Para as autoras, a falta de estudos socioantropológicos que pudessem
definir com maior rigor os perfis das populações deslocadas contribuiu para esse
equívoco de classificação cometido pela empresa e ratificado pelo governo
moçambicano (OSÓRIO; CRUZ E SILVA, 2017). Estudos dessa natureza que
provavelmente tornariam o processo de deslocamento menos violento (ao minimizar a
violação dos direitos das populações atingidas) não interessavam a empresa, que
buscava a todo custo ocupar as suas terras e executar a exploração capitalista dos seus
recursos.

O lócus da nossa pesquisa foi Cateme. Por essa razão a nossa análise sobre os
procedimentos adotados no atual processo de deslocamento se centra nas narrativas
dessas populações classificadas perversamente como rurais e compulsoriamente
deslocadas, dialogando com outras fontes secundarias e primarias, com destaque para as

- 142 -
narrativas de alguns ativistas das ONGs e pesquisadores acadêmicos que de certa forma
acompanharam o processo.

Para a execução da tarefa de expropriação das populações da área


concessionada, a Vale contratou em 2005 a Diagonal, uma empresa brasileira
especializada em negociação, remoção e reassentamento de famílias – com trabalhos
realizados, por exemplo, em Barcarena, no estado do Pará. A sua contratação marcou o
início da sua aventura para o continente africano e a entrada dos seus serviços no
mercado moçambicano. Atualmente, a empresa conta com escritórios em São Paulo e
Recife no Brasil e Maputo em Moçambique. A empresa foi a responsável pelo contato
com as populações da área concessionada, levantamento de infraestruturas e elaboração
do estudo de viabilidade e plano de ação de reassentamento. Foi no âmbito dessas ações
que novos sujeitos, alguns dos quais se distinguem pela sua cor da pele esbranquiçada
passaram a se tornar, de forma intensa, comuns no cotidiano das populações que
habitavam, por exemplo os bairros Chipanga, Mithethe, Malábue e Bagamoyo nos
arredores do distrito de Moatize. Presença essa, que evidenciava que algo iria acontecer.
Eram sopros de uma mudança que já havia sido anunciada anteriormente pelo próprio
presidente moçambicano. Num comício popular realizado na vila de Moatize, nos
derradeiros anos de seu governo, o então presidente da República de Moçambique
Joaquim Alberto Chissano tinha se encarregado pessoalmente de anunciar as “boas
novas” à população de Moatize. Uma empresa de fora estava prestes a chegar para
explorar as minas de carvão de Moatize. Esse comício está na memória do Sr. P.A.S.
Mithethe (2016, grifos nossos), como o marco de anúncio de “novos tempos”.

Não é para me entregar. Mas acho que era entre finais de 2004 início de
2005, já não me lembro bem, mas na altura quem estava na presidência de
república era [Joaquim Alberto] Chissano. Ele veio com representantes da
empresa Vale e fez um comício ali mesmo na Estação dos Caminhos de Ferro
[da vila de Moatize], acho que o próprio presidente da Vale estava e uma
equipe do governo. O presidente Chissano apresentou a empresa e nos
perguntou durante o comício. Vocês querem trabalhar? Nós dissemos
sim. Depois ele disse. Trouxemos essa empres a Vale do Rio Doce. Se
querem trabalhar está aqui a empresa. Ela vai se instalar aqui para
explorar carvão. Depois desse comício começaram a chegar lá no bairro
representantes da Vale para fazer pesquisas. Chegavam com máquinas e
furavam para fazer pesquisas. O lugar do furo era indicado por GPS. Quando
eles chegavam podia ser no meio do quintal da residência ou na machamba
eles furavam para fazer pesquisa. Mas depois eles compensavam. A
compensação era muitas vezes em alimentação. Avaliavam o espaço e diziam
quanto custava e pagavam. As vezes era cinco sacos de milho de 50 Kg, óleo
e amendoim. Quando coincidia numa casa afastavam o furo para o lado. Mas
nas machambas furavam mesmo. No quintal também. Isso foi em entre 2007
e 2008. Foi nesse período que comecei a trabalhar na Gondwana, uma

- 143 -
empresa de geologia. Nós é que levávamos as amostras de carvão que era
tirado nas perfurações para a Vale para as res pectivas análises.

Foi nesse período que alguns discursos de cooptação, com vista a minimizar a
resistência das populações que seriam posteriormente deslocadas começou
informalmente a ser avançado.

Recordo-me que no início desses trabalhos de perfuração e pesquisa vinha lá


um geólogo brasileiro Daniel Travassa. Acho que esse era o nome dele. Foi
um dos primeiros geólogos representantes da Vale que vinha lá. Na altura
vinha até com uns carros da GPZ e hospedava ali na vila. Ele sempre dizia
que nós vamos melhorar de vida. Falava-nos que na Europa e na América
quando alguém é reassentado ficava rico. Vocês quando serem reassentados
vão ficar ricos - dizia ele. Porque muita coisa na vossa vida vai mudar. Mas
realidade é essa que você está a ver aqui, era tudo mentira. Não veio mudar
nada, a realidade é essa que você está a ver aqui (SR. P.A.S. MITHETHE,
2016).

Se para o Sr. P.A.S. Mithethe, o comício do então Presidente da República está


na sua memória como marco do anúncio de novos tempos, para a maioria das
populações compulsoriamente deslocadas para Cateme as “boas novas” foram trazidas
pelas autoridades comunitárias e outras lideranças locais. Esse foi o caso, por exemplo,
da Sra. F.C. Malábue (2016),

fiquei sabendo que vamos sair de Malábue através do líder. O líder é que veio
nos informar que iriamos sair de lá. Inicialmente não sabia quem de fato ia
nos tirar. Só sabia que íamos sair. Não sabia quem de fato estava de frente
dessa decisão. Então após de ter essa informação com o senhor líder, dias
depois vieram os da empresa Vale, e nos disseram que vamos ser transferidos
para Cateme, e de tudo que vocês precisarem vocês vão encontrar lá. E nós
aceitamos e cedemos os espaços. Depois da empresa se apresentar
começaram a vir com aquelas palestras, usando teatro para nos explicar como
iriamos viver em Cateme e como a transferência se faz.

Aliás, as lideranças foram uns dos principais interlocutores da Diagonal na


realização de estudos para a elaboração do plano de ação de reassentamento e em todo
processo de deslocamento compulsório. Essa proximidade pode se fundamentar em dois
fatores complementares.

O primeiro é que a própria matriz de comunidade local que norteou o


dissimulado processo de transferência de DUAT para a empresa, tem nessas estruturas
elementos determinantes tendo em conta que a sua definição corresponde à antiga
categoria de regulado (FLORÊNCIO, 2003). Um exemplo podemos encontrar na
pesquisa etnográfica de Elísio Jossias sobre as demarcações de terras em Cóbuè, região
do lago Niassa província do mesmo nome, região norte do país. Este autor mostra que
no processo de demarcação das terras comunitárias a modalidade que foi seguida

- 144 -
observou, na sua maioria, as fronteiras definidas pela administração colonial sobre
regulados e povoações (JOSSIAS, 2016).

O segundo é a importância que é atualmente dada a essas estruturas pelos órgãos


governamentais no processo de administração local, devido a suposta legitimidade que
essas estruturas possuem entre as populações sob sua jurisdição. Essa proximidade entre
essas autoridades comunitárias e os órgãos governamentais é fruto de mudanças
históricas que importa elucidar. A pesquisa de Fernando Florêncio sobre as Autoridades
Tradicionais VaNdau (FLORÊNCIO, 2003; 2008) nos introduz melhor nesse debate. A
chegada da FRELIMO ao poder, partido que governa o país desde a independência, foi
marcada por uma ruptura na relação entre o estado e as autoridades tradicionais, estas
últimas acusadas de terem sido instrumentos de dominação colonial. O perfil político e
ideológico da FRELIMO e o tipo de sociedade que pretendia construir necessitava de
uma ruptura profunda com as estruturas sociais coloniais. Acusadas de integrar a
estrutura administrativa colonial, as autoridades tradicionais eram vistas pela FRELIMO
como sinônimo de opressão e exploração e símbolos do colonialismo e capitalismo que
deviam ser aniquilados.

Logo no período de transição (em 1974) foram criados os Grupos


Dinamizadores (GD), como instrumentos de mobilização das populações e transmissão
das orientações da nação (do governo central e do comitê central da FRELIMO) em
nível local. Os GD assumiram também um papel determinante na organização social e
política dos bairros e aldeias, incluindo o controle sobre a produção (FLORENCIO,
2003, p. 209). Na mesma linha dos GD foram criadas Organizações Democráticas das
Massas (ODM), uma espécie de poder popular, que desempenhavam também as funções
de doutrinamento ideológico das populações. Ou seja, novas estruturas sociais foram
criadas em nível local para substituir o poder das autoridades tradicionais. Com essas
remodelações – que em alguns casos foi acompanhada por campanhas de intimidação e
humilhação pública - se pretendia, segundo Florêncio (2003), exercer um controle
absoluto sobre todas os aspectos da vida das populações moçambicanas em todas as
suas dimensões, (econômica, política e social), em todos os seus contextos (urbano e
rural), desarticulando as estruturas tradicionais de organização (ver capítulo 02).

Christian Geffray encontra nessa marginalização das autoridades tradicionais um


dos elementos determinantes na constituição de uma base social de apoio a RENAMO
durante a guerra civil pós-independência (GEFRRAY, 1990; FLORÊNCIO, 2002;
- 145 -
2003). Desacreditadas pelo estado, as autoridades tradicionais nunca perderam
totalmente a legitimidade, principalmente nas áreas rurais. A RENAMO buscou
capitalizar isso ao seu favor. O caráter plural das suas ações, que não se resumem à
questão administrativa, mas também, política, cultural simbólica e religiosa – guardiões
da fertilidade, da ordem cosmológica e propriedade – são para Florêncio (2003) alguns
dos elementos que contribuem para a prevalência de sua legitimidade. Tal como afirma
o autor,

a intermediação com os espíritos representa, para as populações, o papel


fundamental das autoridades tradicionais, pois, substantiva o próprio modelo
de reprodução social, pela relação de continuidade que estabelece entre o
passado fundador do grupo, o presente e o futuro (p. 387).

Logicamente que essa legitimidade não pode ser vista de forma essencialista, ela
varia em função dos contextos. Porém, reconhecendo a prevalência dela, a partir da
década 90 o governo moçambicano buscou capitalizá-la a seu favor, mobilizando as
autoridades tradicionais como veículo de penetração e expansão do controle das
populações das áreas rurais e legitimação do próprio estado em nível local
(principalmente em áreas que durante a guerra civil estiveram sob o controle da
RENAMO). Em 1994, através das ações de aproximação e reconhecimento das
autoridades tradicionais, o então presidente da República Joaquim Chissano manteve
diversos encontros com autoridades tradicionais de várias províncias do país. Desde
então o governo central passou, de acordo com Florêncio (2003; 2008), a destacar no
seu discurso a importância das autoridades tradicionais no processo de formação do
estado, sobretudo em nível distrital.

Ademais, no âmbito da descentralização do poder que estava a ser empreendida


com a aprovação da nova constituição em 1990 e a assinatura de AGP em 1992, foi
aprovada a lei 03/1994 de 13 de setembro, que define a criação das autarquias e dos
distritos municipais (MOÇAMBIQUE, 1994). Essa lei traduziu-se no primeiro
reconhecimento formal das autoridades tradicionais no estado “pós-colonial”
moçambicano. Nele destaca-se a necessidade, não so do seu enquadramento na estrutura
político administrativa local, como também a auscultação das suas opiniões e sugestões
no que concerne às atividades que visem à satisfação das necessidades especificas de
sua comunidade (MOÇAMBIQUE, 1994). Gestão de terras, cobranças de impostos,
manutenção da ordem, divulgação e implementação das decisões dos órgãos do estado,
abertura e manutenção das vias de acesso, recenseamento da população, recolha e

- 146 -
fornecimento de informação relevante à resolução dos problemas das comunidades,
manutenção da saúde e prevenção de epidemias e doenças contagiosas, prevenção de
incêndios, de caça e pescas ilegais, proteção do meio ambiente, preservação da floresta
e fauna bravia, do patrimônio físico e cultural, promoção da atividade produtiva, são
algumas das funções a serem exercidas nesse novo contexto de relações pelas
autoridades tradicionais em colaboração com os órgãos distritais (MOÇAMBIQUE,
1994; FLORÊNCIO, 2003, p. 136). Para Francisco Florêncio, essas novas áreas de
colaboração entre o estado e as autoridades tradicionais traduzem uma reposição quase
que integral da função exercida por estas entidades no regime colonial (FLORÊNCIO,
2003; 2008). Período em que predominou o sistema do indirect rule caraterizado por
uma,

duplicidade política e jurídica da sociedade colonial, sendo vedada às


populações indígenas a integração plena, devendo estas continuar a
reproduzir-se segundo os seus modelos tradicionais de organização so cial
(2008, p. 372).

Neste contexto, as autoridades tradicionais passaram a assumir papel relevante


na administração colonial, sendo integradas como funcionários da administração
colonial com regalias e punições em caso de não cumprirem cabalmente as suas
atribuições. A cobrança de impostos e fornecimento de força de trabalho para o trabalho
forçado, resolução de conflitos inerentes à feitiçaria e pequenos delitos locais eram
algumas das suas atribuições. Tal como acontece atualmente ganhavam, por exemplo,
uma percentagem do imposto recolhido e tinham um uniforme e insígnias que lhes
identificava como tais. Foram essas e outras ações que levaram a FRELIMO marxista-
leninista a lhes considerar instrumentos da colonização.

Na lei de terra aprovada em 1997 o conceito de autoridades tradicionais aparece


com uma nova roupagem, com a introdução dos conceitos de “líderes locais” e “líderes
comunitários”, integrando uma pluralidade de outros atores locais, entre os quais os
secretários dos bairros, figuras criadas justamente após a destituição das autoridades
tradicionais após a independência. Essa nova roupagem é o corolário do conflito que
existia e de certa forma ainda persiste, no campo político e acadêmico entre os que
Florêncio (2003) denomina de “tradicionalistas” - defensores da aproximação que o
governo vem exercendo com as autoridades tradicionais; e “modernistas” - críticos a
essa aproximação que alegam dentre vários pontos o caráter antidemocrático e
gerontocrático das autoridades tradicionais. Para Francisco Florêncio, essa mudança

- 147 -
conceitual e integração dos outros atores em posição de igualdade com as autoridades
tradicionais evidencia que a corrente modernista está ganhando predomínio.

Em 20 de junho de 2000 o governo moçambicano promulgou o decreto n°


15/2000 que constituiu o último e dos mais importantes atos de institucionalização das
autoridades tradicionais no estado pós-colonial moçambicano. Nesse decreto os
anteriores conceitos de autoridades tradicionais (MOÇAMBIQUE, 1994) e líderes
locais ou líderes comunitários (MOÇAMBIQUE, 1997) são substituídos pelo conceito
de autoridades comunitárias. Esse novo conceito apresenta peculiaridade e conflitos
muito bem explorados por Florêncio (2003; 2008). O importante a destacar é que essa
lei reafirma a importância das autoridades tradicionais na administração pública local e
o reconhecimento da legitimidade que estas possuem, nos diversos contextos
socioculturais. Desse modo, o estado procura capturar as autoridades tradicionais para
adquirir legitimidade face as populações das áreas rurais, legitimidade essa que, de certa
forma, elas ainda possuem apesar da marginalização no período socialista. Na realidade,
o estado atual, à semelhança do seu congênere colonial,

usa as autoridades tradicionais com os mesmos propósitos e por motivos


análogos: a falta de recursos disponíveis e de legitimidade para gerir e
administrar a maioria do território e população local (FLORÊNCIO, 2008, p.
388).

Advogamos que ao se centrar nas lideranças locais, a Diagonal e a Vale no geral


buscavam enquadrar as suas ações à realidade social e política moçambicana e
capitalizar esse ideário de legitimidade para o alcance dos seus objetivos. Ou seja,
atribuir às lideranças locais um papel central no processo de deslocamento compulsório
é garantir que interesses das empresas seja cabalmente preservado tendo em conta a
proximidade que essas estruturas locais de poder têm atualmente com os órgãos
governamentais. E a legitimidade ou ideário de que eles gozam dela, contribuiria, pelo
menos em tese, para menor resistência e participação cabal de todos integrantes das
comunidades seguindo e ouvindo as suas “estruturas tradicionais”.

A Diagonal é que fazia os contatos com as comunidades, na altura eu era


líder do terceiro escalão. Eles iam para os bairros afetados faziam as reuniões
com os líderes e realizavam levantamento de dados sociais, registro de casas
e números de pessoas. Quando construíram a casa modelo eles nos chamaram
como líderes para ver. Esses da empresa Diagonal é que nos levaram até lá.
Nós reclamamos daquela casa, pedimos que pelo menos a primeira casa que
eles diziam que era tipologia A, fosse de dois quartos e uma sala. Não um
quarto e uma sala. O governo esteve presente nesse encontro e ouviu as
nossas reclamações, mas no final não deu em nada. Nós discutimos muitas
coisas nas reuniões que faziam conosco, mas governo é governo não

- 148 -
podíamos fazer nada. Quando a Diagonal queria falar com a população, os
lideres reuniam a comunidade para o efeito. Mas agora já não aparecem aqui
(SR. P.A.S. MITHETHE, 2016).

Segundo J. V. Maputo (2016), o envolvimento das autoridades comunitárias e


outras lideranças locais, no processo de expropriação das populações que moravam na
área concessionada foi instrumental. As lideranças locais foram instadas a participar
ativamente no convencimento e mobilização das populações no sentido de olharem para
o projeto como uma inciativa do governo. Como um projeto que traria muitos
benefícios e por isso não podiam recusar ou contestar. Não foi numa perspectiva de
envolver as pessoas e as lideranças para o processo de tomada de decisões. Por
exemplo, sobre as condições de deslocamento; as opções do lugar de reassentamento, a
observância das experiencias em termos de prática da agricultura, acesso e uso da terra,
a cultura e o relacionamento com as outras comunidades. A orientação expressa pelo
governo central foi de que os lideres deveriam convencer a sua população para aceitar o
projeto. Razão pela qual para J.V. Maputo (2016), houve um envolvimento mais
instrumental dos líderes comunitários do que no sentido de tomar em consideração as
sugestões que faziam sobre as condições de reassentamento, o tipo de compensação,
bem como sobre a classificação das famílias em semiurbanos e rurais.

Contudo essa orientação não era exclusiva às lideranças comunitárias. As


próprias autoridades dos distritos e do município de Moatize tiveram envolvimento no
sentido de sensibilizar as famílias para olhar o projeto como uma solução para os seus
problemas. Olhar para o projeto como uma inciativa do governo que não se poderia
contestar muito menos impedir, porque era uma iniciativa que visava ao
desenvolvimento do país. A narrativa de J.V. Maputo é reforçada também pela narrativa
do Sr. F. P. D. Mithethe (2016) quando destaca que,

os do governo nos diziam para não resistir nem negar vir para aqui. Diziam:
é um programa do governo vocês não podem negar. Os brancos querem tirar
daqui carvão para vossos filhos trabalharem também. Nós precisamos desse
lugar para o branco fazer seu serviço. Não tivemos como negar, acabamos
vindo para aqui.

Conceição Osorio e Tereza Cruz e Silva, usam a categoria cooptação para


classificar a relação entre o governo moçambicano e as empresas de um lado; e as
lideranças comunitárias, de outro. A cooptação das lideranças tinha como intuito frear a
capacidade de resistência das populações atingidas contra o deslocamento das suas
terras. Pois, segundo J.V. Maputo (2016), as populações compulsoriamente deslocadas
nunca foram necessariamente passivas durante o processo. Elas sempre resistiram.

- 149 -
Eu comecei a acompanhar o reassentamento de Cateme em 25 de setembro
nos finais 2009, nestas alturas estava-se nas vésperas do verdadeiro
reassentamento, tendo em conta que as primeiras famílias foram transferidas
em outubro de 2009 e o processo se alastrou até 2010. Eu quando estive em
Cateme e 25 de setembro foi em agosto de 2009 e nessa altura o nível de
descontentamento já estava presente, as pessoas já estavam a protestar.
Existia um grupo de famílias que não concordavam com a forma como o
processo estava sendo conduzido porque as famílias diziam que muitos dos
acordos alcançados verbalmente com o governo não estavam a ser
cumpridos. Em parte, tinham a ver com o modelo das casas, com a questão
da terra, o número de hectares que a empresa iria conceder a cada família.
Mas por outro tinha a ver com as compensações, a forma como o governo e
empresa estavam a proceder os cálculos das compensações para aquelas
famílias que não quiseram ir nem para Cateme, nem para 25 de setembro e
preferiram aquela opção de compensação assistida. Para as famílias
deslocadas para Cateme e 25 de setembro havia a penumbra quanto as
compensações sobre as machambas, culturas e outras benfeitorias . As
famílias não concordavam com a tabela de compensação feita pelo Ministério
de Agricultura e que a empresa estava a seguir. Nessa altura já havia
correspondência de cartas feitas pelas famílias através dos seus líderes,
enviadas para o governo provincial antecipando a comunicação desse
descontentamento antes mesmo que o reas sentamento acontecesse (J.V.
MAPUTO, 2016).

Além do processo de cooptação das lideranças, a falta de um forte apoio das


organizações da “sociedade civil” afetou de certa forma a capacidade de resistência das
populações. Esse frágil apoio se fundamentou, ainda segundo J.V. Maputo (2016) por
um lado, pela existência (naquela período de 2006 e 2007, durante o qual a Vale
começou os primeiros contatos com as populações) de poucas organizações da
sociedade civil que tivessem maior envolvimento na temática dos megaprojetos e seus
efeitos sociais para as comunidades; que se interessassem sobre as consequências do
deslocamento e que tivessem consciência dos problemas associados a um megaprojeto
de mineração. Tal como destaca ainda o mesmo interlocutor, foi uma época em que a
primeira geração das organizações da sociedade civil com certa independência do
governo ainda estava se afirmando. As grandes organizações da sociedade civil
atualmente em Maputo e com atuação forte na área de estudos de impactos ambientais e
sociais, não estavam ainda tão consolidadas e ainda estavam muito limitadas a participar
do processo de elaboração dos estudos de impacto ambiental e mais em relação às
cidades. Não, na assessoria às comunidades, para orientação sobre os seus
procedimentos e seus direitos perante a lei. Embora a Liga dos Direitos Humanos já
existisse, na visão de J.V. Maputo (2016), não estava muito voltada para as questões dos
grandes projetos, mas para questões da violência doméstica ou outros tipos de violação
de direitos humanos.

- 150 -
Por outro lado, o governo assumiu, segundo J.V. Maputo (2016), o projeto da
Vale como sendo de grande prioridade e salvador da pátria. A solução para os
problemas do país. Neste contexto, as poucas organizações da sociedade civil que
estavam em ação em Moçambique tiveram o cuidado de não serem conotadas como
organizações que estivessem contra o governo ou responsáveis por inviabilizar as
soluções que o governo estava encontrando para resolver os problemas do país. Então
qualquer pressão ou assessoria neste contexto seria vista como algo contra o
desenvolvimento. É por essa razão que J.V. reafirma que a falta de assessoria e
aconselhamento pelas organizações da sociedade civil fragilizou a capacidade e
amplitude de resistência e reivindicação social das populações deslocadas, bem como a
pressão que era necessária ao governo e à empresa para minimizar a violação dos
direitos das famílias deslocadas.

Mas olhando agora. É verdade que teria sido importante a pressão, as críticas
e a assessoria, porém tenho dúvidas se de fato teria melhorado alguma coisa,
olhando para o poder e a influência que a Vale exerce ou exercia naquela
altura dentro do governo moçambicano, mas também para sua forma de
atuação no próprio Brasil. Agora, é importante deixar claro que as
comunidades sempre resistiram, diversas cartas assinados pelas famílias,
pelos representantes dos bairros, e das comunidades foram entregues ao
governo provincial, distrital, ao município e ao parlamento . Quer dizer
mesmo com a pouca atuação das organizações da sociedade civil e com
pouca assessoria, aquelas famílias já tinham um embrião de cidadania e de
reivindicação social em defesa dos seus direitos que se consolidou quando
chegaram em Cateme (J.V. MAPUTO, 2016).

Seguindo a estrutura dada pela Sra. A.P.F. Mithethe (2016), pode-se dividir os
processos de expropriação de duas fases distintas, mas complementares: a fase da
comunicação e a fase da persuasão. A Sr. A. P. F. Mithethe, nasceu “lá mesmo” em
Mithethe. Antes do seu nascimento os seus pais moravam no centro da vila de Moatize,
mas mantinham uma casa e machamba em Mithethe onde passavam um determinado
tempo do ano produzindo. Depois da colheita voltavam para a casa principal da vila.
Porém depois de um tempo acabaram fixando definitivamente residência em Mithethe,
tendo a agricultura como a base da sua reprodução social e econômica.

Foi nesse tempo que eu nasci. Morei esse tempo todo em Mithethe. Até que
saímos para aqui. Fiquei sabendo que íamos sair quando uma equipe da
empresa Vale foi para lá no bairro Mithethe contatar os líderes e informar das
atividades que iam desenvolver. Nesse período era só empresa que vinha,
mas no decorrer do tempo no momento que estavam a nos persuadir para sair
é que representantes do governo vinham juntos com os representantes da
empresa. A informação inicial foram os da Vale que deram, sobre o que era
o projeto, depois quando já vinham negociar a nossa saída passaram a esta r
sempre a acompanhados por representantes do governo. Ou seja, apareceram
primeiro para nos falar da existência do projeto e depois para negociar a

- 151 -
nossa saída. Nos sensibilizar para sair. É nessa segunda fase que vinham
sempre acompanhados pelos membros do governo (SR. A. P. F.
MITHETHE, 2016).

Além da comunicação, nessa primeira fase se enquadram também as ações de


registro de casas, pessoas e bens de cada família.

Me surpreendi – conta Sra. I. Chipanga (2016) – quando vi uma


equipe de pessoas a chegar aqui em casa. Disseram que iam fazer registos
para futuro cadastro de moradores. De imediato procurei saber porque desse
registro. Como resposta me disseram para perguntar ao líder [da comunidade]
que ele sabe. Depois dessa atividade passaram-se quase dois anos até que
apareceram os representantes da Vale para nos dizer que temos que sair.
Porquê. Eu não sabia. Não estava a entender o que estava acontecendo.
Depois houve encontros que nos falaram sobre o que íamos encontrar po r
aqui [Cateme]. Chegou o dia e fomos transferidos para aqui.

A narrativa da Sra. I. Chipanga (2016) desafia-nos a pensar sobre o papel


ocupado pelas mulheres no processo de deslocamento compulsório. No livro
“corporações econômicas: raparigas, mulheres e comunidades reassentadas no distrito
de Moatize” acima citado, Conceição Osório e Tereza Cruz e Silva dedicam especial
atenção a essa questão. O livro tem a peculiaridade de explorar, não só, a participação
da mulher no processo do deslocamento, analisando o antagonismo entre a lei e a
realidade prática, como também, os efeitos sociais da expropriação na sua vida cotidiana
e das raparigas nos “novos lugares” (OSÓRIO; CRUZ e SILVA, 2017).

A segunda fase, a de persuasão, é fase das promessas. Segundo as narrativas das


pessoas deslocadas para Cateme, as promessas variavam desde casas melhoradas e
mobiladas, currais com animais para criação, projetos de produção, escola, hospital,
água, à indenização pela transferência, prioridade no emprego; além de auxilio em
alimentação e insumos agrícolas durantes cinco anos, auxilio esse que só foi canalizado
uma única vez.

Tivemos um kit de comida pela primeira vez e depois foram de vez e não
tivemos nada até agora. Foram sete sacos da farinha de milho por família, um
saco de feijão, amendoim e óleo. Também houve distribuição de fertilizantes
e adubos (SR. R.C.C. MALÁBUE, 2016).

Algumas promessas foram específicas em função das atividades, que além da


agricultura, eram predominantes em cada bairro. No bairro Chipanga onde
predominava, além da agricultura, a atividade oleira (produção de tijolos) foi lhes
prometido indenização e a criação de condições para a continuação integral da
atividade. O mesmo se verificou no bairro Bagamoyo e Mithethe, neste último não so
para a produção de tijolos, mas também para a atividade de produção de carvão. O

- 152 -
bairro Malábue tinha a peculiaridade de se localizar próximo ao rio Revúbue e em
função disso além da agricultura, praticavam a pesca e a produção de esteiras tendo
como principal material de produção o caniço que cresce naturalmente no rio.

Malábue, por estar à beira do rio todas épocas conseguíamos produzir


verduras sem problemas. Fazíamos a pesca. Para além da pesca as pessoas
faziam esteiras para vender na vila de Moatize. Era uma distância de pelo
menos 10 km para a vila de Moatize, não era difícil de chegar (SR. R.C.C.
MALÁBUE, 2016).

Disseram-nos: como vocês vivem à beira do rio onde aproveitam os recursos


que ele dispõe, lá faremos questão de vos reassentar a beira do rio. Quando
chegamos aqui nem a beira do rio e nem machambas férteis prometidas nada,
fomos colocados nas pedras sem condições adequadas para a produção. É u m
sofrimento o que estamos a viver aqui. Lá pelo menos tinham muitos
recursos que nos ajudavam a superar situações de crise. Aqui não tem
nenhum recurso para sobreviver. Por isso é um contínuo sofrimento (SRA.
F.C. MALÁBUE, 2016).

Eu tinha um projeto de produção de esteiras lá em Malábue. Quando a Vale


e o governo chegaram nos garantiram que o que fazíamos lá iriamos
continuar aqui. Diziam que aqui tem espaço para pesca, tinha caniço para a
produção de esteiras. Até diziam que era o mesmo caniço. Eu já conhecia
aqui, porque eu sou curandeiro e vinha aqui as vezes fazer meus trabalhos.
Eu sabia que muita coisa que estavam a falar não era verdade. Eu disse a essa
minha esposa. “sobre caniço é mentira lá não tem”. Diziam que aqui tinha o
mesmo caniço e mesmo material para fazer esteiras, mas não era verdade, só
que eu não queria ser visto como agitador (SR. A.M.D. MALÁBUÉ, 2016).

A intensidade de participação dos membros do governo nessa fase das


promessas variou em função do grau de resistência das populações. Bairros como
Chipanga e Mithethe, onde a resistência ao deslocamento foi maior a participação dos
membros do governo ao lado dos representantes da empresa no processo de
convencimento e persuasão foi mais intensa. Como exemplo, o próprio Governador
Provincial de Tete se deslocou pessoalmente ao bairro Chipanga para auxiliar nas ações.
A mensagem era clara, “vocês estão cagando em cima de dinheiro, vão para outro lugar
para branco fazer serviço”.

Depois dessa segunda fase foi realizado o deslocamento. A escolha de Cateme


para o reassentamento das populações classificadas por rurais foi determinada por uma
comissão de reassentamento composta na sua maioria por membros do governo
provincial e local (distrital e municipal) e imposta às comunidades. O mesmo foi para a
escolha de 25 de setembro para as populações classificadas como semiurbanas. Este fato
reforça, tal como nos outros processos de deslocamento compulsório empreendidos na
região, acima descritos, a prevalência de uma marginalização ou ignorância da
participação das populações afetadas no processo de tomada de decisão sobre aspectos

- 153 -
que afetam diretamente as suas vidas Prevalece a lógica colonial de tutela, “nós como
governo sabemos o que é bom para vocês, é so seguirem”.

O deslocamento começou em outubro de 2009 e durou até abril de 2010, os


primeiros a serem deslocadas foram as populações do bairro Mithethe.

“Quando chegamos aqui encontramos isto”. No capítulo 05 exploraremos os


significados dessas palavras ao abordarmos a realidade de vida cotidiana em Cateme.
Para já importa frisar que, se por um lado esse atual processo de deslocamento
compulsório em Moatize pode ser compreendido através das suas especificidades,
inerentes ao avanço do capital internacional que pressiona grupos e modos de vidas
locais, por outro, ele pode ser compreendido pelas diversas proximidades com os
anteriores processos de deslocamento impostos na região – os aldeamentos coloniais e
as aldeias comunais socialistas inerentes à modernização do campo e cooperativização
agrícola. As decisões tomadas centralmente; a marginalização dos sujeitos afetados, que
não são visto como sujeitos mas como meros objetos, negando-lhes a possibilidade de
serem protagonistas do seu próprio destino; o uso da violência física e simbólica e de
intimidação, fato que reforça o caráter autoritário do estado, e a prevalência de uma
lógica de expropriação e violência são algumas dessa proximidades.

Isso evidencia, conforme mencionado, um processo de cismas que carregam


consigo continuidades (PINA-CABRAL, 2004) ou a prevalência de um sistema de
dominação (BOURDIEU, 1992; 2004; BOURDIEU; PASSERON, 2011) que coloca as
comunidades locais, numa posição marginal. Houve mudanças de regimes e de
ideologia política do estado, mas permanece uma lógica violenta de relação entre o
poder político e as comunidades locais. Contudo, se no contexto francês, lócus de
análise de Pierre Bourdieu, a reprodução de um sistema de dominação é caraterizada por
uma violência simbólica - por um conjunto de mecanismos de dissimulação que faz com
que os dominados não percebam a relação de dominação em que se encontram imersos -
a configuração dessa violência em Moçambique é mais física e exposta. A violência
simbólica pressupõe o poder de impor significações como legítimos, dissimulando as
relações de força que estão na base da sua constituição (BOURDIEU; PASSERON,
2011). A violência simbólica está associada a uma forma de poder que é o poder
simbólico.

- 154 -
Para Pierre Bourdieu (1992, p. 14), o poder simbólico é um poder invisível o
qual só pode ser “exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe
está sujeito”. Através do poder simbólico se impõe uma realidade social dissimulando
as desigualdades sociais que lhe são inerentes. É, neste contexto, um instrumento de
imposição e legitimação da dominação de uma classe sobre a outra através da violência
simbólica. É um poder

quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força
física ou econômica [...]. Reside na relação determinada entre os que exercem
o poder e os que lhe são sujeitos [...] na própria estrutura de campo em que se
produz e se reproduz a crença (BOURDIEU, 1992, p. 14-15).

Neste contexto, ele, não apenas varia em função de cada campo de relações
(econômico, religioso, cultural, político) como também é uma forma transformada,
irreconhecível, transfigurada e legitimada de outras formas de poder. E é por ser
transfigurado e dissimulado que oculta o seu caráter violento e arbitrário (BOURDIEU,
1992).

A violência e poder simbólico envolvem reconhecimento. Sendo assim é um


poder conferido àquele que o exerce, por aquele que lhe está sujeito. Ele existe porque
aquele que lhe está sujeito crê que ele existe (BOURDIEU, 1992, p. 188). Neste âmbito
ele também pressupõe, para quem o exerce, a posse de um capital simbólico. Uma
espécie de “crédito atribuído a aqueles que obtiveram reconhecimento suficiente para
impor reconhecimento” (BOURDIEU, 2004, p. 166). Ao pressupor reconhecimento, ele
também pressupõe o desconhecimento, por quem lhes está sujeito, da violência que se
exerce através dele. É nas relações de poder simbólico que as relações objetivas de
poder tendem a reproduzir-se. A violência, o poder e capital simbólico dissimulam as
relações desiguais entre diversos grupos sociais impondo um ideário de igualdade. As
instituições, quer do sistema escolar, quer do campo político são, por exemplo,
instrumentos determinantes dessa violência simbólica e sendo assim de reprodução de
relações desiguais. A violência simbólica se torna visível com o surgimento dos
conflitos. Porém, se a violência simbólica é elemento determinante na reprodução do
sistema de dominação no contexto francês, a realidade de vida cotidiana em
Moçambique evidencia que o caráter violento do estado está longe de se apropriar
apenas de mecanismos de dissimulação. Ou seja, o sistema de dominação que coloca as
populações das áreas rurais numa posição marginal se baseia (talvez) menos em uma
violência simbólica e mais em uma violência física e explícita.

- 155 -
Advogo que essa diferenciação é fruto do caráter democraticamente questionável
do próprio estado moçambicano. Quanto mais democrático, quanto mais fortes forem as
instituições públicas e todo um sistema de justiça, mais simbólica é a violência que
caracteriza o sistema de dominação. A fraqueza das instituições e o caráter autoritário
do estado torna a violência do sistema de dominação menos simbólica ou dissimulada e
mais física. Essa é a situação que se verifica em Moçambique. Isso não implica,
voltando para o processo de expropriação das populações de Malábue, Mithethe,
Bagamoyo e Chipanga, que essas populações tenham sempre ocupado uma posição
passiva no processo. Quer no processo de aldeamentos coloniais, quer no processo de
criação das aldeias comunais e nos atuais deslocamentos compulsórios provocados pela
atual política de desenvolvimento centrada nos megaprojetos, as populações atingidas
desenvolveram, tal como destacamos acima, diversas ações de resistências. Porém, é
preciso reconhecer que essas ações de resistências variam em função do nível autoritário
de cada regime. As ações e as condições de possibilidade de resistência do tempo
colonial diferem das ações e das condições de possibilidade de resistência do período
socialista e logicamente do período atual. O que tem em comum esses períodos é o
caráter autoritário e violento do estado (principalmente na sua relação com as
comunidades locais). Caráter autoritário e violento este que, tal como buscamos
explorar no capítulo a seguir, (i) está acoplado como numa cartografia jurídica que
inferioriza os direitos territoriais das comunidades locais e que (ii) se intercecciona com
o caráter autoritário e violento da própria multinacional Vale.

4. DESLOCAMENTOS COMPULSÓRIOS E OS DIREITOS TERRITORIAIS


DAS COMUNIDADES LOCAIS

Neste capítulo analisamos os direitos territoriais das “comunidades locais”


inerentes à ocupação histórica e tradicional da terra perante outros direitos de uso e
aproveitamento da terra em Moçambique. Importa destacar que, embora a ideia de
“comunidades locais” seja complexa ela possui existência jurídica. Em termos espaciais
e de ordenamento administrativo pode equivaler ao que se denomina de Povoação que
de acordo com Constituição de 2004 é a menor circunscrição territorial. Acima da
povoação encontra-se a Localidade, que por sua vez é menor que Posto Administrativo,

- 156 -
Distrito e Município sucessivamente. É importante destacar que a ideia de “comunidade
locais” ganha importância jurídica e política na década de 1990 com o processo de
reconhecimento das autoridades tradicionais (FLORÊNCIO, 2003; 2008; JOSSIAS,
2016; ver capítulo 03 desta tese) e com a Lei de Terras de 1997 que estabelece o direito
comunitário de uso e aproveitamento da terra. Definem-se no âmbito da Lei de Terras
como “comunidades locais” o “agrupamento de famílias e indivíduos, vivendo numa
circunscrição territorial em nível de localidade ou inferior, que visa à salvaguarda de
interesses comuns através da proteção de áreas habitacionais, áreas agrícolas, sejam
cultivadas ou em pousio, florestas, sítios de importância cultural, pastagens, fontes de
água e áreas de expansão” (MOÇAMBIQUE, 1997). Pode-se constatar, como já destaca
Jossias (2016), que esse conceito remete a uma forma de vivência que se contrapõe ao
que se pode denominar de forma de vida urbana (ver capitulo 03).

Ao longo desse capítulo retomaremos também esse debate, quando abordamos


as implicações da lei de terras de 1997 e todo ordenamento jurídico criado na década de
1990 e seus efeitos para a segurança jurídica dos direitos territoriais das comunidades
locais. O importante a destacar para já é que além desse sentido jurídico que dá corpo e
substância às comunidades locais, tendo em conta que o ato de nomear dá existência,
existe um sentido social que é importante destacar e está assentado na ideia de
“pertencimento” a um determinado grupo social. Falamos em concreto do fato das
pessoas se sentirem como pertencentes a um determinada comunidade. “Eu sou da
comunidade de Malabue”. “Eu sou da comunidade de Catete”. “Nós daqui da
comunidade de Cateme”. “A nossa comunidade...”. “Aqui na nossa comunidade de
Cancope...”. Foi comum ouvir essas palavras durante o trabalho de campo. Acreditamos
que isso dá relevância socioantropológica ao conceito. Outro ponto importante a
destacar é que as áreas mais próximas da vila de Moatize com características urbanas e
semiurbanas de organização social, são cotidianamente denominadas bairros (e acredito
que isso tem a ver com a própria estrutura administrativa local que assim determina) e
as áreas mais afastadas com tendências mais rurais de organização social é que são
denominados de comunidade. Por exemplo, as populações que viviam em Malabue se
dizem pertencentes à “comunidade de Malabue”42 e as populações que viviam em
Bagamoyo nos arredores da vila se denominam como pertencentes ao “bairro

42 O mesmo se verifica entre os moradores de Catete e Cancope, que são outras áreas visitadas durante a
pesquisa de campo e que têm em comum o fato de se localizarem em áreas um pouco mais distantes de
vila a apresentarem caraterísticas rurais de organização social.

- 157 -
Bagamoyo”. Nesse contexto, além da distância, as formas de produção, organização e
reprodução social e econômica das pessoas que moram em áreas que se denominam de
comunidades se diferenciam do modo de vivência urbano

No que concerne ao território importa realçar que no contexto da presente tese,


concebemos o “território das comunidades locais” como um espaço significado e
transformado através das formas específicas de apropriação, uso, controle e atribuição
de significados das formas de vivência e de identificação com o meio ambiente, por
parte de um determinado grupo coletivo (BAINES, 2014; GODOI, 2014). Acreditamos
que o território das comunidades locais é resultado de um investimento material e
simbólico. Exprime-se por um sistema de representações e princípios de organização
social, econômico, político e cultural, específicos de cada grupo social, e é gerido, por
exemplo, por uma lógica de “pertencimento e de parentesco”. Isso implica que “o
território antes de se exprimir por uma ligação ao espaço é uma relação entre as pessoas
e se refere a uma organização do espaço carregada de história” (GODOI, 2014 p.13) e
não pode ser entendido fora desse contexto. O território das comunidades locais é um
produto histórico.

Dessa forma, a nossa compreensão de “território” se encontra longe da


concepção das empresas multinacionais, das agências de desenvolvimento, bem como
dos órgãos governamentais, que o concebem, exclusivamente, como sinônimo de
espaço, ou simplesmente como “fonte de recursos’ disputados ou, ainda, como
elementar ‘apropriação da natureza” (GODOI, 2014, p. 10). Talvez o nosso
entendimento se aproxime mais para o que o antropólogo Arturo Escobar (2005a; 2010)
e a antropóloga Edna Alencar (2002; 2007; 2013) denominam de “lugar”. De acordo
com Escobar (2005a), o lugar é um espaço vivido com um certo grau de enraizamento,
onde se manifesta a complexa vida social que não está necessariamente oposta à
natureza como prega a ciência moderna. É uma construção histórica. Nele, estão
visíveis práticas de diferenças culturais e ecológicas que podem servir de alternativa
para se pensar categorias como globalização, capitalismo e modernidade enquanto
noções presas ao domínio do espaço e de práticas puramente capitalistas. Para Arturo
Escobar, é no lugar que encontramos, embora “invisibilizadas” pela teoria social,
formas subalternas de pensar modalidades locais e regionais de configuração do mundo.
É por essa razão que o lugar é uma categoria relevante para se pensar formas de pós-
desenvolvimento, não capitalismo e álter-natureza (ESCOBAR, 2005a).

- 158 -
Na mesma linha de análise, a antropóloga Edna Alencar concebe o lugar como
um espaço socialmente significativo, construído e transformado pelo trabalho das
gerações passadas e é nele onde se inscreve a história do grupo. Não existe, segundo a
autora, um grupo social que não tenha alguma relação com o lugar. A relação que o
lugar tem com a memória social e com a história das gerações passadas garante o
vínculo de pertencimento e serve de fator dissuasor—para alguns grupos sociais—da
mobilidade para outros locais. Assim foi constatado pela autora na sua pesquisa em que
buscou compreender o processo de afirmação da identidade dos moradores de São João,
um povoado situado na área da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá,
região de várzea do médio Solimões, Estado do Amazonas, que convive
permanentemente com o fenômeno de “terra caída” (ALENCAR, 2002; 2007; 2013).

Quando o grupo social abandona um lugar, o lugar deixa de existir e se


perdem os fios da história do grupo que lhe deu origem. Portanto é o grupo
social que constrói e dá significado ao lugar, e cada grupo constrói sua
identidade a partir dos vínculos de parentesco que unem as famílias entre si e
estas com o lugar aberto pelos ancestrais. O pertencimento ao lugar, e a um
grupo de parentesco garante o acesso ao território e aos recursos naturais, e
funciona como um mapa cognitivo que orienta as relações entre as pessoas e
entre essas e o ambiente (ALENCAR, 2007, P. 98).

Partindo dessa concepção, entendemos que os deslocamentos compulsórios,


provocados principalmente pelos megaprojetos de extração mineral em Moçambique,
não são, simplesmente, um deslocamento espacial, mas sim um deslocamento dos
vestígios que reforçam a memória coletiva e a história social de um grupo, em seus
aspectos culturais, sociais, simbólicos, econômicos, bem como os aspetos ligados à
lógica própria de produção, organização e reprodução social dessas comunidades
(EUSÉBIO; MAGALHÃES, 2018b). Sendo assim mais do que uma violência física, os
deslocamentos compulsórios são, também uma violência simbólica, social, cultural e
política, principalmente em Moçambique onde a relação entre espaço e identidade
étnica é muito tênue. Como os direitos territoriais das comunidades locais vem sendo
juridicamente tratados desde o tempo colonial? Quais as implicações do atual
ordenamento jurídico sobre as terras na proteção jurídica do território das comunidades
locais? Essas são algumas das questões que buscamos dar resposta no presente capítulo.

- 159 -
4.1 Direitos territoriais e a “subalternização” das comunidades locais em
Moçambique

Até a assinatura do acordo de Lusaka, a maioria das terras férteis e de fácil


acesso era ocupada por brancos colonizadores e grandes latifundiários estrangeiros. Os
negros e os outros da colonização, mestiços, afro-chineses ou sino-africanos, etc.,
(CASTELO et al, 2012) ocupavam as terras mais pobres e de difícil acesso, com
dimensões pequenas onde geralmente praticavam a agricultura familiar e de sequeiro
(ARAUJO, 1983; 1988). Essa dicotomia é corolário de um longo processo de
espoliação das melhores terras, que reflete a violência e o dualismo que caracterizou a
situação colonial em África. Dualismo esse, que colocou as diversas populações negras
africanas numa posição de “resíduos de homens”, ou ainda como representantes de uma
forma “mórbida e degenerada do homem”, “corpos obscuros, inferiores, bárbaros e
selvagens” à espera do auxílio de “homens derradeiro”, brancos europeus detentores da
lei do direito e da civilização. Tal como destaca Achille Mbembe no Epílogo do seu
livro “Sair da grande noite; ensaio sobre a África descolonizada” (MBEMBE, 2014,
191), os homens derradeiros “tentavam promulgar universalmente as condições
propícias à sua sobrevivência”. Caracterizavam-se (e ainda se caracterizam) pela sua
“vontade de dominar e de usufruir, de conquistar e de comandar, pela sua propensão a
desapossar e, caso necessário, a exterminar”. Para tal “evocavam incessantemente a lei,
o direito e a civilização, mas atuavam precisamente como se não existisse lei, direito e
civilização que não os seus”. Assim sendo, nenhum crime que fosse levado a cometer
poderia ser julgado por qualquer moralidade. Neste contexto, “nada poderia pertencer a
qualquer outra pessoa que ele não pudesse aspirar obter para si, pelo recurso à força,
artifícios ou embustes”, fato que traduz – ainda segundo Achille Mbembe – “a
relevância que confere à autopreservação e o receio que cultiva relativamente a qualquer
força suficientemente consistente para proteger o que considera fruto de seu trabalho e
da sua vida” (MBEMBE, 2014, p. 191). Tal como afirmava Fanon (2014, p. 117), “o
branco quer o mundo; ele o quer só para si. Ele se considera o senhor predestinado deste
mundo. Ele o submete, estabelece-se entre ele e o mundo uma relação de apropriação”.

As populações negras africanas e os outros da colonização reduzidos, nessa


relação dicotômica, a “detritos de homens”, “arquétipo dos valores inferiores” – num
processo de inferiorização que é corolário da superiorização do branco europeu - eram

- 160 -
chamados a submeter-se. O seu lugar no mundo era definido pelo branco europeu ao
mesmo tempo em que era também inteligível através de todo um glossário desse mesmo
branco europeu. É tal como afirma Fanon (2008): o negro é construído como negro no
processo da relação perversa colonial. O negro é o que o branco diz que é. De fato, o
colonialismo foi caracterizado pela desumanização do outro, através do racismo,
violência e expropriação de terras ancestrais, pelos brancos europeus - transformando
uma parte da população mundial (negros africanos e povos indígenas) em “os outros
inferiores” através de diversos mecanismos de poder, dominação e subjugação
(CURIEL, 2007). A colonização descivilizou o colonizado, através da violência e
genocídio; e ao mesmo tempo descivilizou o próprio colonizador que se torna mais
selvagem do que o “seu selvagem” (CEZARIE, 1978). Entre o colono e o colonizado só
havia lugar para “trabalho forçado, intimidação, pressão, policia, roubo e violência,
culturas obrigatórias, desprezo, desconfiança, arrogância, a suficiência, a grosseria,
elites descerebradas e as massas aviltadas” (CEZARIE, 1978, p. 25). Senhor
predestinado, o branco estabeleceu entre ele e o mundo uma relação de apropriação,
colocando o homem negro e o indígena como instrumento de produção (CEZARIE,
1978; FANON, 2008).

Essa lógica dicotômica se refletia na divisão social do espaço físico, entre a zona
habitada pelos colonizadores que não era complementar da zona habitada pelos
colonizados. As duas zonas obedeciam ao princípio da exclusão recíproca sem
possibilidade de conciliação. Segundo Fanon (1968, p. 28-29),

a zona habitada pelos colonizados não é complementar da zona habitada pelos


colonos. Estas duas zonas se opõem, mas não em função de uma unidade
superior. Regidas por uma lógica puramente aristotélica, obedecem ao
princípio da exclusão recíproca: não há conciliação possível, um dos termos é
demais. A cidade do colono é uma cidade s ólida, toda de pedra e ferro. É uma
cidade iluminada, asfaltada, onde caixotes de lixo regurgitam de sobras
desconhecidas, jamais vistas, nem mesmo sondadas. Os pés do colono nunca
estão à mostra, salvo talvez no mar, mas nunca ninguém está bastante
próximo deles. Pés protegidos por calçados fortes enquanto que as ruas de
sua cidade são limpas, lisas , sem buracos, sem seixos. A cidade do colono é
uma cidade saciada, indolente, cujo ventre está permanentemente repleto de
boas coisas. A cidade do colono é uma cidade de brancos , de estrangeiros.
[em contrapartida] a cidade do colonizado, pelo menos a cidade indígena, a
cidade negra, a medina, a reserva, é um lugar mal afamado, povoado de
homens mal afamados. Aí se nasce não importa onde, não importa como.
Morre-se não importa onde, não importa de quê. É um mundo sem intervalos ,
onde os homens estão uns sobre os outros, as casas umas sobre as outras. A
cidade do colonizado é uma cidade faminta, faminta de pão, de carne, de
sapatos, de carvão, de luz. A cidade do colonizado é uma cidade ancorada,
uma cidade ajoelhada, uma cidade acuada.

- 161 -
Embora o lócus de reflexão de Fanon tenha sido a Argélia, então colônia
francesa, essa lógica dicotômica de divisão espacial guarda similaridades com a situação
colonial de vários outros estados africanos. Refletindo sobre o contexto sul africano,
Mbembe (2014, p. 143) destaca, por exemplo, que o sistema do apartheid ao delimitar
espaços urbanos especificamente reservados aos não brancos, privava-os de qualquer
direito nas zonas brancas. “[...] como consequência, essa incisão exercia sobre as
próprias populações negras o peso financeiro da sua própria reprodução e circunscrevia
o fenômeno da pobreza a enclaves territoriais racialmente conotados” (MBEMBE,
2014, p. 143). Situação semelhante caracterizava várias cidades de Moçambique no
tempo colonial - de Moatize à Lourenco Marques, atual Maputo. As áreas centrais das
cidades eram destinadas aos brancos e seus arredores aos não brancos. Bairros como o
atual Polana, Central e Alto Maé em Lourenco Marques eram ocupados pelos brancos e
seus arredores como Mafalala, Polana-Caniço e Maxaquene com estruturas precárias
(situação que permanece até no contexto atual) eram destinadas aos negros e aos outros
da colonização (mulatos, monhés, afro chineses, etc.). O mesmo se verificou na cidade
de Moatize. Devido à prevalência de empreendimentos de exploração de carvão mineral
e à linha férrea Trans-Zambezia (atual linha de Sena), concentrou uma população
branca na área central da vila, ficando os arredores com precárias condições de
infraestruturas destinados aos negros. O historiador João Paulo Borges Coelho no seu
romance “Rainhas da Noite” explora algumas dessas ambiguidades entre negros e
brancos em torno da fábrica de exploração de carvão mineral em Moatize no tempo
colonial (BORGES COELHO, 2013).

Assim, as diferenciações de regimes fundiários, a distribuição étnica e


apropriação racial da terra e dos recursos naturais constituíram as marcas caraterísticas
da organização de espaços rurais dos países africanos no tempo colonial. Segundo
antropólogo Albert Farré (2014) dois grandes mitos que acompanharam o colonialismo
europeu em África estavam relacionados com a terra. O primeiro era a crença de que as
terras africanas eram especialmente férteis. O segundo era a crença de que a terra estava
praticamente vazia ou subutilizada devido ao estado de atraso em que os africanos se
encontravam. Neste contexto, a imensa terra africana estava à espera de alguém que
soubesse valorizá-la. Seguindo essa lógica, em vários países africanos se observou a
expropriação de terras mais favoráveis a agricultura para benefício dos brancos. Essa
estruturação colonial dos espaços econômicos não foi abolida pelos estados pós-

- 162 -
coloniais que frequentemente a prolongaram (MBEMBE, 2014). Fato que evidencia que
determinadas lógicas coloniais de relação e organização social não foram superadas
pelos estados pós-coloniais africanos. Aliás, a relação dicotômica colonial superior-
inferior, civilizado-bárbaro, West and Rest, ainda caracteriza a estrutura geopolítica e
“geoepistêmica” mundial, sendo a África um continente mais inferiorizado dentro dessa
estrutura hegemônica, conforme mencionado.

Em Moçambique algumas vozes mais sonantes que buscam romper com essa
lógica vêm da literatura. Paulinha Chiziane; Mia Couto; Ungulani Ba Ka Khosa (cf. por
exemplo, CHIZIANE, 2000; CHIZIANE; SILVA, 2012; COUTO, 2007; KHOSA,
2009; 2013) mergulham, por exemplo, no campo das ontologias dos diversos grupos
étnicos que tornam Moçambique um estado plurinacional, visibilizando essas ontologias
e esses grupos enquanto sujeitos históricos e de memórias. Refletindo sobre os escritos
desses autores, o antropólogo Segone Ndangalila Cossa exalta o papel desses escritores
na construção solidária e restaurativa da dignidade do outro (africano em toda sua
complexidade ontológica e sociocultural que lhe é inerente, ou seja, quando falamos de
“africano” nos escusamos de qualquer essencialismo identitário) como sujeito histórico.
Mia Couto, Paulina Chiziane e Ungulani Ba Ka Khosa dão vida – ainda segundo Cossa
(2017) - às coisas, seres, entidades e universos que povoam o imaginário popular
moçambicano e fazem parte da paisagem cotidiana das pessoas, mas que por faltas de
palavras escritas para nomeá-los acabam por se transfigurar em “coisas menores” de
existência “duvidosa e insignificante”. Porém, quando essas coisas, seres, entidades e
universos são trazidas à superfície por esses escritores, lembram-nos com certa
nostalgia, que um dia elas foram demasiadamente reais e atuantes na nossa vida
cotidiana. Baseados em memórias, histórias e no universo circundante de sujeitos
concretos e abstratos com pouca possibilidade de construir narrativas literárias sobre si
mesmos, tendo em conta que boa parte do que tratam é de sociedades ágrafas, esses
autores vão construindo e restaurando a dignidade e o lugar do outro como sujeito
histórico.

Isso não implica que esses autores descartem ou recusem velhas narrativas
mestras ou que assumem uma posição hegemônica. Pelo contrário, “usam a língua do
colonizador, o português, para expor numa montra mais visível e transcultural do que o
nativo pensa de si mesmo, por si mesmo” (COSSA, 2017, p. 70). A questão basilar
nesses autores não é, ainda segundo Cossa (2017), falar em nome desse outro

- 163 -
degenerado pelo conhecimento ocidental, mas sim, produzir leituras outras,
concorrentes, concomitantes ou dialógicas às mais hegemônicas, de modo que se possa
ter um contraditório e um elemento de comparação. É uma tentativa de fuga de qualquer
forma de essencialismo e de fixação de identidades, na medida em que “traz esses
mundos complexos forjados pelas tradições orais através da escrita. [...] sua escrita é um
aceitar de um lugar de contestação, embate, conflito e interação entre culturas diversas e
distintas” (COSSA, 2017, p. 72).

****

Mas, voltando para a questão dos direitos territoriais das populações das áreas
rurais em Moçambique, importa destacar que a população branca que paulatinamente ia
chegando em Moçambique no tempo colonial foi paulatinamente expulsando as
populações negras moçambicanas das áreas mais férteis e superpovoando as áreas
circundantes, práticas que associadas às crises ecológicas acabaram por contribuir para
uma crescente desestruturação da produção camponesa e por acelerar a criação e
expansão de uma força de trabalho para mercado. No vale do Zambeze, os sistemas de
prazos e posteriormente a concessão de grandes extensões de terra à companhia de
Zambeze e as suas subarrendatárias acirraram um processo de expropriação das terras
das populações autóctones colocadas na sua maioria numa situação de escravidão
através de exploração de trabalho forçado e do mussoco. Nas primeiras décadas do
século XX somente o sul de Moçambique e partes das atuais províncias da Zambezia,
Tete e Nampula permaneceram sob a administração portuguesa. A expropriação de
terras foi, nos primórdios da colonização, acelerada pela crescente demanda de produtos
alimentícios para abastecer Lourenco Marques, então capital. A construção dos
caminhos de ferro rumo às minas de Transvaal criou as facilidades de transporte para os
brancos atingirem as terras aluviais dos vales dos rios Matola, Tembe e Umbeluzi que
rodeavam a cidade de Lourenço Marques, bem como do rio Maputo, ao sul da Baía, e
do Incomati e do Limpopo, ao norte, “vales nos quais se concentrava a maior parte da
população e produção camponesa” (ZAMPARONI, 2012, p. 82).

De acordo com Albert Farré (2014) a carta lei de 1901 foi a primeira tentativa de
organizar a legislação relativa à propriedade da terra em todo o então território

- 164 -
português do ultramar. A carta declarava nulos todos os contratos e acordos feitos com
chefes “indígenas” (negros africanos) por particulares sem conhecimento ou
confirmação da autoridade administrativa. Havia nela um artigo que tratava da
propriedade indígena, reconhecendo o direito a terras habitualmente ocupadas ou
cultivadas, porém o título de propriedade seria conferido ao fim de 20 anos de cultivo e
residência comprovada ininterrupta. As imensas dificuldades técnicas de provar 20 anos
de ocupação e cultivo continuado, tornavam a obtenção de título de propriedade uma
pretensão impossível. Ou seja, a lei dissimulava uma preocupação com os indígenas,
porém a cultura cartorial foi montada para seguir os interesses coloniais que passavam
por criar condições de possibilidade de expropriação das terras das populações negras
africanas.

A implantação da república portuguesa (revolução de 05 de outubro de 1910)


acabou com a ambiguidade em relação à condição do indígena e seus direitos de
propriedades. Segundo Farré (2014), o indígena passou a ser uma categoria legal,
excluída de princípios de cidadania portuguesa e dos direitos cíveis a ele associados. Em
relação à terra era dada a possibilidade de ocupação somente dentro de territórios
classificados como de uso exclusivo das populações indígenas e em nenhum caso lhe
poderiam ser conferidos direitos individuais de propriedade da parcela da terra que
ocupar. As relações entre indígenas passaram a estar reguladas por um direito
comunitário denominado pela administração portuguesa de “uso e costume” (FARRÉ,
2014, p.250). Ao contrário dos direitos de qualquer cidadão, que se sustentavam na
igualdade perante a lei, os direitos do indivíduo indígena derivavam sempre do seu
enquadramento na hierarquia do parentesco e dos usos e costumes.

As áreas de uso exclusivo das populações indígenas tinham sido legalmente


instituídas um ano antes (1909) com a publicação pelo Ministério dos Negócios da
Marinha e do Ultramar de um decreto que aprovava o regime provisório para a
concessão de terrenos do estado na província de Moçambique (ZAMPARONI, 2012). O
regime estabelecia que seriam de domínio público todos os terrenos que não pertenciam
a pessoa coletiva ou singular (sociedades ou indivíduos) excluindo os indígenas. O
decreto abria para estes últimos a possibilidade de criação de reservas de terras nas
quais poderiam cultivar “livremente” sem, contudo, adquirem jamais direitos de
propriedade.

Tal como destaca Zamparoni (2012, p. 84-85, grifos do autor),


- 165 -
fora das reservas, os “indígenas” só poderiam ocupar áreas de terrenos
devolutos, incultos e não demarcados e desde que obtivessem um título de
ocupação, confirmado pelo secretário dos Negócios Indígenas, no qual devia
constar “com o possível rigor”, o nome, idade, estado, filiação, naturalidade,
residência e “quaisquer sinais característicos do indígena, seu
desenvolvimento intelectual e moral”, os nomes, idades e graus de parentesco
das pessoas da família, bem como a situação e descrição do terreno, com seus
limites e área, pelo menos, aproximada. Um anexo ao Regimen era mais
detalhado e exigia que dos “indígenas” se informasse ainda a instrução,
religião, costumes, raça, cor e os nomes e idades dos pais inválidos, das
mulheres e dos filhos menores. Para que os “indígenas” pudessem garantir a
posse sobre os terrenos que já ocupavam quando da publicação do Decreto,
deveriam, no prazo máximo de dois anos, requerer, por escrito ou
verbalmente, o respectivo título aos administradores de concelhos, de
circunscrições civis ou capitães-mores, provando que ocupavam tais terras há
pelo menos dois anos antes do Decreto e que nelas tivessem casas e culturas.
Se fossem terrenos urbanos, poderiam ter no máximo 400m2; e, em se
tratando de terras agrícolas, no máximo dois hectares por adultos da família
do requerente, considerando-se como família, o chefe (homem), mulheres,
filhos menores e pais inválidos. Finalmente, e, talvez, o mais complicado dos
pré-requisitos, era a exigência de que sobre a área a ser titulada não houvesse
qualquer contestação de terceiros. Mesmo tendo sido cumpridas estas etapas ,
não estava assegurada, aos “indígenas”, uma posse mansa e tranquila. Como
as demais, estas terras eram passíveis de serem concedidas por aforamento,
arrendamento ou vendidas, pelo Estado, a particulares, mediante indenização
a ser paga aos “indígenas” e fixada pelo Governador Geral, tendo -se como
base o número de palhotas e o valor das áreas cultivadas. Somente nos casos
previstos de concessões gratuitas de terrenos às “corporações administrativas ,
missões católicas, estabelecimentos de beneficência, piedade e instrução”,
portugueses, cujas áreas não poderiam ser superiores a 1.000 hectares, é que
estava vedada a expropriação das parcelas de terrenos ocupadas por
“indígenas”. O título de propriedade plena só seria concedido aos
“indígenas”, mediante solicitação formal ao Governador Geral, na qual o
requerente provasse vinte anos consecutivos de ocupação efetiva com, pelo
menos, um terço da área permanentemente cultivada.

Para se ter uma ideia do tratamento diferenciado dado às populações negras


basta mencionar, segundo Zamparoni (2012, p. 85-86) que o mesmo decreto permitia ao
estado conceder a particulares portugueses e outros brancos estrangeiros e empresas no
geral por prazos de 19 anos renováveis, terrenos de até 02 hectares em áreas urbanas, 50
vezes maiores do que o máximo permitido ao “indígena”, 05 hectares nos subúrbios; 10
000 hectares no distrito de Lourenco Marques e até 50 000 hectares no resto da colônia,
podendo até requerer mais de uma concessão. O decreto abria a possibilidade de
expropriação das terras das populações negras pelos brancos portugueses mediante
indenização. Porém, este preceito legal de indenização pouco se observava. Tal como
destaca Zamparoni (2012), não raras vezes os brancos procuravam terras que melhor
lhes agradasse e as requeriam à repartição de agricultura como terra vazia. Como tinha
meios para pagar a demarcação, recebia o título de propriedade. Em seguida cercava as
terras já tituladas encurralando os moradores e suas lavouras e gado. Em caso de
resistência, a violência era o recurso mais usado. Seja mandando colocar gado nas

- 166 -
machambas das populações negras ocupantes; destruindo sua produção, seja espancando
com cavalo marinho como forma de “convidar o miserável a abandonar o privilégio que
o decreto lhe conferia expulsado desse modo o morador indígena da área cobiçada” (p.
87). Na maioria dos casos esses negros e negras africanos, na sua condição de
expropriados eram obrigados a cultivar a mesma terra ancestral, como assalariados ou
rendeiros do novo dono branco europeu e pagando taxas para morar no local.

Os colonos e as companhias estrangeiras obtinham facilmente os títulos de


propriedade e créditos agrícolas enquanto às populações negras africanas era proibida
qualquer concessão além de serem escorraçados das terras mais férteis. Isso significa
que varrer para longe o preto foi a caraterística central da política de terras no tempo
colonial (ZAMPARONI, 2012). O estabelecimento de colonatos brancos acirrou essa
lógica dicotômica, “brancos-terras férteis” e “negros-terras pobres” em algumas regiões
de Moçambique. O projeto de colonatos priorizava a migração de populações
camponesas portuguesas para as colônias. O projeto consistia na identificação nas
colônias de áreas de terras agrícolas férteis irrigáveis e drenáveis que pudessem contar
com facilidades de transporte para se instalar, com apoio material da administração
colonial, colonatos de famílias brancas portuguesas. O processo passava pela expulsão
das famílias negras africanas que eventualmente ocupassem as áreas para dar lugar à
ocupação de famílias brancas portuguesas e foi predominante no sul do país. No vale do
Zambeze não há registro dessa forma de ocupação.43 . Embora os colonatos não tenham
dado certo eles são o reflexo da lógica dicotômica que justificava a expropriação das
populações negras camponesas das terras férteis no tempo colonial. Expropriação essa
que tinha também a função de criar condições para a constituição de força de trabalho
para o trabalho forçado.

A partir de 1920 além da expropriação das terras férteis e do trabalho forçado, as


populações negras camponesas passaram a conviver com a imposição do cultivo de
culturas forçadas com destaque para a produção de algodão.

Com o golpe de 1926 em Portugal, emergiu um forte clima nacionalista que


se corporificou no Acto Colonial de 1930 e que teve como uma de suas metas

43 No sul do país, o colonato de Limpopo, considerado o mais importante, foi devidamente explorado pela
historiadora Claudia Castelo no seu artigo “ O branco do mato de Lisboa: a colonização agrícola dirigida
e os seus fantasmas” (CASTELO, 2012), publicado no livro “Os outros da colonização: ensaios sobre o
colonialismo tardio em Moçambique” (CASTELO, et al, 2012). Alpheus Manghezi realizou em 1980
entrevistas interessantes com alguns anciãos de Guijá sobre este colonato. As entrevistas foram
publicadas no livro “Trabalho forçado e cultura obrigatória do algodão: o colonato de Limpopo e o
reassentamento pós-independência c. 1895-1981” (MANGHEZI, 2003).

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mais urgentes substituir as importações por produtos coloniais adquiridos p o r
preços abaixo dos praticados no mercado internacional e o algodão tornou-se
a peça chave desta política, pois a crescente indústria têxtil metropolitana
importava mais de 95% da matéria-prima utilizada. Para minimizar os custos
desta dependência o governo metropolitano passou a incentivar o cultivo e
principalmente a lançar as bases para uma política de cultivo compulsório,
que veio a se concretizar, de fato, em 1938 e durou até 1961. [...] O cultivo
obrigatório pelos camponeses pareceu às autoridades portuguesas ser mais
viável do que o sistema de plantation, pois não exigia investimentos e
subsídios estatais e a rudimentaridade e a baixa produtividade do cultivo
seriam compensadas pelo grande número de cultivadores africanos que, tendo
muito menor poder de pressão que os agricultores brancos, seriam forçados a
arcar com os principais prejuízos decorrentes das cíclicas crises ecológicas
(ZAMPARONI, 2012, p. 105, grifos do autor).

Para Farré (2014), à medida que reavaliava o potencial produtivo dos


camponeses africanos para a economia da colônia, a administração portuguesa ia
construindo um marco legal que afastava as populações negras africanas do título de
propriedade sobre a terra. Isso significa que o maior papel produtivo dos camponeses
africanos foi acompanhado por uma política ainda mais radical dos direitos de
cidadania, assim como a possibilidade de possuir título de propriedade nos moldes do
que era permitido aos brancos e empresas de capital estrangeiro. A prevalência da
definição de um regime de usos e costumes onde os direitos das populações negras
moçambicanas praticamente desapareciam sob esfera do comunitário, serviu também
para o estado justificar, segundo Farré (2014, p. 253), um espaço de produção
doméstico. Ou seja, os costumes afastavam as populações negras camponesas
moçambicanas dos direitos individuais de propriedade, a domesticidade afastava o
cultivo de algodão do mercado do trabalho (da lógica normal de produção capitalista)
(FARRÉ, 2014, p. 253). Nas poucas reservas indígenas, nas terras inférteis em que eram
jogados, com dimensões cada vez mais reduzidas, tinham que produzir para alimentar o
frágil e incipiente mercado capitalista português.

A migração para áreas de menor controle e interferência administrativa foi uma


das formas que as populações negras camponesas encontravam para fugir da
obrigatoriedade da cultura de algodão. Um empreendimento que era em si doloroso,
pois significava abandonar suas terras ancestrais com um significado não apenas
econômico, mas também cultural, social e espiritual. Cozinhar as sementes antes de
plantar, queimar ou enterrar e jogar fora o algodão colhido eram outras estratégias de
resistências das populações negras camponesas à obrigatoriedade de produção da
cultura de algodão (ZAMPARONI, 2012). No Sul do país a migração para as minas de
Transvaal e para Lourenço Marques (dois fenômenos que já eram contumazes desde os

- 168 -
primórdios da colonização) era também outra alternativa. Nas cidades como Lourenco
Marques lhes esperava violência, prisões arbitrárias e um estrutural sistema de
discriminação racial no acesso ao mercado do trabalho, com os negros ocupando
trabalhos mais baixos na hierarquia da época (ZAMPARONI, 2004; 2012). Nas minas
de Transvaal lhes esperavam condições precárias e desumanas de exploração mineral
com graves consequências para a sua saúde e da sua família, tendo em conta que
contraíam doenças contagiosas que depois passavam às famílias - quando regressavam à
casa (ZAMPARONI, 2016). Importa realçar que se o trabalho nas minas era uma forma
de fugir às condições da colonização portuguesa, por outro ocupava um lugar central na
política portuguesa de exploração da força do trabalho. Portugal garantia a forca do
trabalho negra às minas e em troca recebia o pagamento diferido de parte do salário dos
mineiros. Em seguida o estado colonial entregava aos mineiros retornados o seu salário
em escudos e ficava com as libras-ouros que tinham mais potência monetária no
mercado internacional (FARRÉ, 2014, p. 252).

O sistema dual de posse de terra, a expropriação das famílias negras


moçambicanas de melhores terras e a subalternização da produção camponesa pelo
estado colonial durou até a independência de Moçambique em 1975, apesar das diversas
restruturações feitas no colonialismo tardio. A independência era a esperança de
mudança dessa lógica. Algumas famílias camponesas acreditavam na possibilidade de
regressarem as suas antigas terras ancestrais e outras de poderem segui sua vida em
outras áreas férteis que antigamente por serem “negros e negras africanas” so poderiam
ter acesso enquanto trabalhadores explorados. No período de transição (que durou desde
a assinatura dos acordos de Lusaka em 07 de setembro 1974 e a declaração da
independência em 25 de junho de 1975) o medo de represálias provocou um massivo
êxodo dos brancos portugueses para fora da colônia. Em 1975 estima-se que 80.000 dos
120.0000 brancos portugueses deixaram a colônia. Nos meados de julho só havia
restado em Moçambique aproximadamente 10.000 portugueses brancos (BORGES
COELHO, 1993, p. 327). O êxodo foi acompanhado por uma sabotagem de diversas
infraestruturas econômicas, morte de gado, remoção de caminhões, tratores e gado para
os países vizinhos, etc. As áreas do Norte, saindo de uma guerra feroz e duradoura,
eram uma miscelânea desordenada de pessoas anteriormente confinadas em
aldeamentos, pessoas de áreas sob controle da FRELIMO e refugiados de guerra que
fluíam da Tanzânia, Zâmbia e Malawi - geralmente dirigindo-se para suas áreas de

- 169 -
origem. No Sul as pessoas buscavam ocupar as melhores terras que eram deixadas vagas
pelos brancos portugueses que partiam da colônia. Tal como destaca Borges Coelho
(1993, p, 328) nas terras férteis do regadio de Chokwé onde havia 2.600 camponeses
moçambicanos em 1974, esse número aumentou para 3.175 em 1975 e chegou a
aproximadamente 6000 em 1976.

Contudo, conforme mencionado, a FRELIMO apostou na estatização das antigas


fazendas coloniais e na cooperativização da produção agrícola. No vale do Limpopo,
por exemplo, concentrou 87% das terras na mão do Estado, liberando apenas 12% para
as cooperativas agrícolas e 1% para o setor privado. Essa manobra teria frustrado a
expectativa dos camponeses ao acreditar que suas antigas terras de regadio,
transformadas pelos portugueses no Colonato do Limpopo, voltariam para suas mãos
(GALLO, 2017, p. 86). Este fato evidencia que a nacionalização da terra promovida
pelo governo socialista pós-independência não levou à redistribuição das terras, mas à
transformação das propriedades agrícolas privadas, em machambas estatais, com as
famílias camponesas moçambicanas continuando a trabalhar as terras pobres onde
tinham sido jogados pelos colonizadores (VICENTE, 2014). No período socialista, a
agricultura foi considerada a base do desenvolvimento econômico nacional e a produção
pelos camponeses de bens alimentares era uma prioridade. Os investimentos públicos
realizados para esse fim foram centrados no sector estatal em grandes projetos. Em
1979 foi publicada a primeira lei de terras (MOÇAMBIQUE, 1979), que consagrava a
propriedade estatal e as formas de exploração empresarial do tipo socialista, através das
cooperativas agrícolas e machambas estatais. A lei seguia claramente as diretrizes do
terceiro congresso da FRELIMO, citado, ao reafirmar o princípio definido na
constituição popular de Moçambique (constituição de 1975) que consagrava a terra
como propriedade do estado, não podendo ser vendida, alienada, arrendada ou
hipotecada.

Através dessa lei de terras o governo moçambicano consagrava uma política de


desenvolvimento rural integrado que defendia a complementaridade entre a agricultura e
agroindústria, sugando, segundo Vicente (2014), formas de trabalho intensivo dos
camponeses nas grandes machambas estatais. Diversas populações das áreas rurais
foram deslocadas compulsoriamente para novas áreas orientadas para as cooperativas
agrícolas e para concentrar força de trabalho para as empresas estatais. Surgem desse
modo as aldeias comunais (vide capítulo 03). Subalternizando a agricultura familiar e a

- 170 -
produção para a reprodução social da sua condição camponesa, a política governamental
pressionava e forçava as pessoas a dedicar uma importante parte do seu tempo às
cooperativas. Na província de Tete, de 14 cooperativas agrícolas com 733 membros em
1978, passou para 31 num total de 1.202 membros em 1982. (BORGES COELHO,
1993). Em Moatize foram, tal como destacamos no capítulo 03, criadas até 1982 três
cooperativas agrícolas, nomeadamente: 25 de setembro integrada a aldeia comunal
Capirizange, M´condezi integrada a aldeia comunal do mesmo nome e Samora Machel,
integrada a aldeia comunal Samôa. As teses de João Paulo Borges Coelho, “Protected
villages and communal villages in the Mozambican province of Tete (1968-1982)
(BORGES COELHO, 1993)” e de Inácio Dias de Andrade, “Tem um espirito que vive
dentro dessa pele: feitiçaria e desenvolvimento em Tete, Moçambique” (ANDRADE,
2016) trazem uma abordagem mais profunda sobre as cooperativas em Tete e processos
de implementação e alguns elementos do seu funcionamento. As discussões são
retomadas, embora com menor incidência, na tese de Fernanda Gallo, “Andando a
procura dessa vida: dinâmicas de deslocamento na província de Tete-Moçambique, do
colonialismo tardio à mineradora Vale” (GALLO, 2017).

O importante a destacar nesse momento é que as cooperativas, as empresas


estatais e de modo geral as aldeias comunais eram consideradas como a base da
produção econômica. Ao mesmo tempo em que eram, de acordo com Vicente (2014)
um modo de controle da população no quadro de um regime monopartidário de natureza
autoritária, sobretudo quando o conflito militar se alastrou por uma parte do território. A
política das cooperativas agrícolas e das empresas estatais embora, em algumas regiões
como a da província de Tete, no Vale do Zambeze, não tenham chegado a atingir os
objetivos inicialmente definidos com resultados muito a baixo do planificado (BORGES
COELHO, 1993), contribuíram significativamente para a subalternização da produção
camponesa. Ou seja, os camponeses libertos da violência da colonização não viram
concretizadas as suas expectativas de recuperação das terras ocupadas com a
colonização. As empresas estatais e as cooperativas, no quadro da socialização do meio
rural e da coletivização agrária, ocuparam as terras deixadas pelas empresas dos
agricultores que abandonaram o país (MOSCA, 2014, p.13). Essa é na nossa opinião,
uma clara realidade onde cismas carregam consigo continuidades. Diríamos, usando o
quadro teórico de Pierre Bourdieu, que houve mudança de atores, mas permaneceu um
sistema de dominação (BOURDIEU, 1992; 2004; BOURDIEU; PASSERON, 2011)

- 171 -
que se materializava na subalternização da produção camponesa e assalto às terras
camponesas (para criação de cooperativas e machambas estatais) e às suas lógicas
especificas de produção e reprodução social e econômica.

Essas continuidades embora evidenciem dois regimes com ideologias políticas


diferenciadas (o colonial de orientação capitalista e o regime pós-independência de
orientação socialista - marxista leninista) não são em si, paradoxais. Tal como evidencia
o economista Juan Martinez Alier, não existe uma diferença entre os marxistas e os
liberais quanto a racionalidade sobre a terra e acesso e conservação dos recursos
(ALIER, 1997). Embora a reflexão de Alier se enquadre no amplo debate sobre a
problemática ambiental, acreditamos que apresenta elementos importantes para refletir
sobre a questão fundiária em ambas as ideologias (liberal e socialista). A terra é, na
racionalidade de ambas, um recurso de apropriação econômica. A diferença é nas
formas de apropriação: de um lado, temos o empresariado capitalista (o que o autor
denomina de economia mercantil); de outro, o empresariado estatal (administração
estatal). Os segundos criticam os primeiros pela exploração da classe operaria e pelo
crescimento com tendências de acumulação capitalista. Mas a terra é para eles um
recurso de acumulação econômica. Por exemplo, a criação das cooperativas agrícolas
que obrigaram ao deslocamento compulsório de milhares de camponeses em
Moçambique se enquadra, segundo Vicente (2014, p. 295), numa política de
desenvolvimento rural integrado que defendia a complementaridade entre elas -
cooperativas - e a agroindústria usando formas de trabalho intensivo nas grandes
machambas estatais. Este pode ser um dos fatores que justificam a prevalência de
continuidades na subalternização da produção camponesa e dos próprios camponeses.
Para Vicente (2014), as mudanças verificadas com as reformas econômicas
desenvolvidas durante o período após-independência foram introduzidas por razoes de
natureza política, inspiradas e sugeridas a partir do exterior e, na maioria dos casos, com
aplicações que não consideraram as realidades nacionais. Mudaram os atores políticos,
mas manteve-se o sistema de dominação. Por razões ideológicas ou interesses
econômicos sempre existiram diferentes tipos de alianças com as elites políticas locais e
em função disso foram aplicadas políticas nem sempre favoráveis à vida das populações
do meio rural, fato que se verifica, tal como exploraremos mais adiante, no contexto
atual.

- 172 -
Para já, importa destacar que o processo de socialização do campo começou a
entrar em crise na década 1980 (vide capítulo 02). A acreditada certeira direção já se
mostrava equivocada (COUTO, 2007). O governo socialista começou a desenvolver
novas ações que sinalizavam mudança na sua orientação política e econômica. Ações
essas, frutos das decisões do IV congresso da FRELIMO realizado em 1983. Embora o
congresso tenha mantido a orientação política e econômica socialista, ela passou a
assumir uma posição menos radical ao reconhecer o papel do setor privado no
desenvolvimento econômico e social, ainda que sob vigilância do estado.
Reformularam-se os modelos de gestão das empresas estatais, abrindo-se possibilidades
de autonomia em relação ao poder central estatal, descentralizando a sua administração
e assumindo uma preocupação com o lucro. No contexto rural admitiu a importância do
setor familiar na agricultura (MATOS, 2016, p. 105). Essas ações, visavam responder as
exigências do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional para a concessão da
ajuda internacional que culminou com a introdução do PRE, em 1987 (vide capítulo
02). É importante destacar que nesse período da década 1980 o Banco Mundial e a
Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) estavam
impondo reformas agrárias e leis de terras em vários países africanos, na intenção de
modernizar os sistemas costumeiros de posse de terras. Partiam da ideia de que eram
incompatíveis com a promoção de investimentos privados, razão pela qual defendiam a
privatização da terra enquanto solução adequada para o aumento do investimento em
África. Estas propostas partiam, segundo Jossias (2016), da consideração de que os
sistemas costumeiros de posse de terra comunitários eram tradicionalistas e arcaicos,
razão pela qual era necessária e imperiosa sua modernização - assentada na titulação
individual da terra. (JOSSIAS, 2016, p. 33). O Banco Mundial acreditava que a
privatização da terra incentivaria as pessoas a procurarem a terra com fins produtivos.
Necessitando de ajuda para superar a grande crise econômica provocada pelo fracasso
das políticas socialistas, pela guerra civil e pelo fim da guerra fria e a desestruturação de
tradicionais aliados como a URSS, Moçambique não ficou imune às ações do Banco
Mundial e de outras organizações internacionais como a Organização das Nações
Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) e o Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD). Estes agiam como os únicos detentores da solução mágica
para a eliminação dos problemas dos países africanos com destaque para a pobreza e o
subdesenvolvimento.

- 173 -
Sob pressão das reformas impostas por essas organizações internacionais, em
1984 o estado moçambicano aprova a lei do investimento estrangeiro e fixa as
condições concretas da sua concretização, ao mesmo tempo em que garante a proteção
de bens e direitos compreendidos no investimento e a retribuição justa do seu capital
(MATOS, 2016, p. 105). Em 1986, o partido realiza a revisão da lei de terras de 1979
ampliando o número de anos de DUAT para fins de apropriação privada da terra,
passando a ser de cinquenta anos com possibilidade de renovação. Um ano depois foi
aprovado o regulamento (MOÇAMBIQUE, 1987) da lei de terras de 1979, não só dando
as diretrizes das suas condições de aplicabilidade, como também ampliando os sujeitos
que podiam ser titulares do DUAT.

Além de incluir cidadãos nacionais independentemente de terem ou não


domicilio em Moçambique, o regulamento acrescenta que pessoas singulares
ou coletivas estrangeiras podem ser titulares de DUAT (MATOS, 2016, p.
106).

O Regulamento permite, assim, a possibilidade de obtenção do direito de uso e


apropriação da terra por parte de sujeitos individuais e coletivos estrangeiros para a
realização, por exemplo, de atividades econômicas. Admite a possibilidade de
expropriação de populações das áreas que forem atingidas por essas atividades
econômicas ao mesmo tempo em que destaca a imperiosidade de pagamento de
indenizações. O governo central ocupava o papel central no processo, na medida em que
a transferência só podia ocorrer sob expressa declaração de conveniência do estado ou
interesse público do empreendimento. Ou seja, o “interesse público”, “interesse
nacional” ou ainda “vontade popular” tornava e ainda torna o posicionamento das
populações supostamente afetadas irrelevante. Numa realidade social onde prevalecia o
que Macamo (2014a, p. 46) denomina de um “nacionalismo escatológico", esse
silenciamento e invisibilização dos posicionamentos das populações que ocupavam a
área requerida para atividades econômicas não é em si surpreendente. Requerer para si o
destino do povo, uma espécie de um guia místico rumo à luz, caracterizava o governo
da FRELIMO. Essa lógica prevalece atualmente com as devidas peculiaridades. Isso
evidencia a prevalência de uma lógica instrumentalista de cidadania que ajuda a
cimentar uma cultura política autoritária que se verifica até atualmente (MACAMO,
2014a). Para Elísio Macamo essa lógica de pensamento é típica de governos liderados
por partidos que subiram ao poder por via de uma luta armada de libertação nacional
como a FRELIMO o é. Porém as suas bases remetem ao tempo colonial. O regulamento
do trabalho indígena no tempo colonial, por exemplo, fundamentou-se na ideia de que

- 174 -
competia ao estado assumir a tutela daqueles que por razões “civilizacionais” não
estavam em condições de assumir responsabilidades por si próprios. No período pós-
independência essa concepção de relação política não mudou significativamente, pois, o

discurso monolítico da FRELIMO assentou, ainda que com base em razoes


diferentes, na ideia de que o cidadão não tinha maturidade suficiente para
assumir por si próprio a responsabilidade de gerir a sua vida longe da tutela
do Estado. Enquanto o Estado colonial usou a ideia da tradição africana
(direito consuetudinário e identidade étnica) para legitimar a limitação das
liberdades individuais, o poder da FRELIMO usou a ideia de um
nacionalismo escatológico para formular um “projeto nacional” dentro do
qual toda a vontade individual teria expressão, mas dentro de um Projecto
ideológico específico. A substituição do nacionalismo escatológico da
FRELIMO pelo discurso e pelas práticas do auxílio ao desenvolvimento não
alterou esta relação de forma significativa, pois ele também assentou na ideia
de um poder profundamente conhecedor do que é bom para o indivíduo
(MACAMO, 2014a, p. 46 grifos do autor).

A partir desta interpretação, foi – ainda segundo Macamo (2014a) - possível


institucionalizar o exercício do poder em Moçambique como algo que se legitimava
pela capacidade que alguns esclarecidos tinham de interpretar o “interesse nacional” e
colocar essa interpretação a serviço do bem-estar do povo.
A ideia de que alguém possa ser intérprete da vontade do povo funda-se, em
certa medida, na ideia gêmea de que alguém tem competência para definir os
limites da liberdade individual, ao mesmo tempo em que pode também
definir os horizontes do poder legitimo do Estado sobre os seus cidadãos.
Este é o terreno natural da cultura política dos “movimentos de libertação no
poder”, um terreno minado e todo ele baseado na ideia de que o
protagonismo histórico confere qualidades especiais e uma aptidão única para
interpretar a “vontade do povo" (MACAMO, 2014a, p. 48 grifos do autor).

No seguimento das reformas impostas pelos organismos internacionais e da


reformulação da orientação política e econômica nacional, em 1986 foi aprovada a
primeira lei de minas do estado pós-colonial moçambicano, atualizando a exploração
mineral ao novo contexto nacional. Em 1990 é aprovada uma nova constituição que
reafirma a terra como propriedade exclusiva do estado e estabelece o uso e
aproveitamento universais para todos os cidadãos moçambicanos para fins de produção
de riqueza. Para Jossias (2016) essa relação entre terra e “fins de produção de riqueza”
evidencia que a questão fundiária ficou vinculada à dimensão econômica. Questão essa
que, aliás, foi determinante nos debates subsequentes sobre as reformas legais sobre a
terra tal como evidenciaremos mais abaixo.

Para já importa realçar que a constituição de 90 também encorajava os


camponeses a se organizarem “em formas mais avançadas de produção”, porém não
explicita quais sãos essas formas avançadas de produção (MATOS, 2016). Manifestava

- 175 -
apoio ao empresariado nacional, visto como preponderante para o desenvolvimento
social e econômico do país. Em 1993 é aprovado o regulamento das zonas francas
industriais (ZFI) e zonas econômicas especiais (ZEE) destinadas a projetos de capital
intensivo. Um dos objetivos das ZFI e ZEE era atrair investimentos diretos estrangeiros
e divisas através da produção destinada para exportação. As empresas que operam
nessas áreas recebem tratamento especial no que diz respeito às responsabilidades
fiscais e aduaneiras. Os privilégios vão desde intenções aduaneiras na importação de
matérias primas e equipamentos para a sua produção até a isenção de determinados
impostos como o de rendimento sobre as pessoas coletivas e sobre a produção. Moatize
é atualmente uma dessas ZFI razão pela qual a Vale opera com enormes isenções fiscais
e taxas aduaneiras. As outras são a ZFI de Beluluane, província de Maputo, na região
sul, onde opera o projeto de fundição de alumínio da MOZAL; a ZFI da Beira,
província de Sofala na região central; criada para instalação de uma fábrica de ferro e
aço; a ZFI de Moma, na província de Nampula, região norte, onde opera o projeto de
exploração de áreas pesadas; a ZEE de Nacala, também na província de Nampula, com
uma pluralidade de interesses econômicos centrados na indústria portuária 44

A nova orientação política e socioeconômica centrada no liberalismo econômico


obrigava a uma mudança mais profunda na legislação de terra para a sua materialização.
Para os organismos internacionais como Banco Mundial, FMI e FAO, a legislação de
terras continuava distante das suas orientações técnicas para o desenvolvimento do país.
Com a restruturação econômica em 1987 o Banco Mundial e FMI passaram a
determinar a agenda política e econômica moçambicana e ocuparam, junto com a FAO,
um papel determinante nas mudanças de legislação da terra empreendidas na década 90.
O financiamento dessa reforma legislativa veio da cooperação das Nações Unidas
através do Programa das Nações para o Desenvolvimento (PNUD) e do governo dos
EUA através Agencia dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional
(USAID). O Banco Mundial continuava favorável à privatização da terra como forma a
incentivar as pessoas a procurarem a terra para fins produtivos.

44 Parauma abordagem profunda sobre as zonas francas industriais e econômicas especiais e corredores de
desenvolvimento ver: Langa (2001); Matsinhe (2011); Garcia; Kato (2016); Kato; Garcia (2017). Os dois
últimos trabalhos têm a peculiaridade de explorar os interesses econômicos brasileiros na zona econômica
especial e corredor de desenvolvimento de Nacala. Um do s intelectuais mais críticos as isenções e
incentivos fiscais na zonas econômicas especiais e zonas francas industriais é o economista moçambicano
Carlos Nuno Castel-Branco. Ver: Castel-Branco (2008; 2015).

- 176 -
A preocupação com as condições e contornos de acesso à terra em Moçambique,
se fossem acatadas as exigências do Banco Mundial, levou à formação do movimento
Campanha Terra (NEGRÃO, 2002). O movimento agregava diversos grupos de
interesse sociais heterogêneos tais como líderes religiosos, associação e cooperativas
ligadas a questões de terra, ONGs, acadêmicos e políticos e empresários. O grupo teve
consenso nos seguintes pontos: i) não aos “sem terra”; ii) não aos latifúndios ausentes e
ao aluguel de terras como condição de sobrevivência; iii) inclusão da prova oral em pé
de igualdade com a prova formal (escrita) para fins de reconhecimento do direito de uso
e aproveitamento da terra; iv) a incorporação do que eles denominavam de direitos
costumeiros na lei de terras (NEGRÃO, 2002; MATOS, 2016; EUSÉBIO; 2016).

As críticas do movimento Campanha Terra se juntavam a outras críticas que o


Banco Mundial vinha recebendo no campo acadêmico internacional, desde a década 80,
sobre as suas concepções equivocadas sobre o acesso e uso da terra em África.
Destacam-se dentre essas críticas os trabalhos de Terence Ranger “The communal areas
of Zimbabwe (RANGER 1993) e de John Bruce “Do indigenous tenure systems
constrain agricultural development?”(1993) publicados no livro “Land in African
Agrarian Systems” editado por Thomas Basset e Donald Crummey (BASSET;
CRUMMEY, 1993). Os artigos tinham sido apresentados em forma de comunicação
oral em 1988 num simpósio organizado pelo “Center For African Studies”, da
Universidade de Illinois nos EUA (JOSSIAS, 2016). Nos seus trabalhos, Bruce (1993) e
Ranger (1993), recorrem, segundo Jossias (2016, p. 34), à noção de flexibilidade e
conflito para descrever os sistemas costumeiros de posse de terra e rejeitam a ideia do
Banco Mundial de que eles não eram competitivos. Defendem que os sistemas
costumeiros de posse de terra em África são marcados por conflitos internos.
Reafirmam que a terra não era um recurso abundante em África e que os sistemas
costumeiros não eram necessariamente igualitários. Bem como, que a posse coletiva da
terra não excluía o exercício de um direito individual, transferência de propriedade,
através de compra e venda ou transferências de rituais. As propostas de Bruce (1993) e
Ranger (1993) foram abraçadas por pesquisadores que analisaram os sistemas de posse
de terra em Moçambique na década 90.

Entre 1992 e 1994 vigorou um programa conjunto entre o Ministério da


Agricultura de Moçambique e o Land Tenure Center-Mozambique virado
para a reforma da política de terras, tendo sido financiado pelo Banco
Mundial, FAO e USAID. As pesquisas sobre os regimes de posse da terra,
realizadas no quadro deste programa, resultaram na descrição dos sistemas de

- 177 -
posse da terra, acesso à terra, do controle e autoridade sobre a terra e recursos
naturais, que cobriam o período pré-colonial e o pós-independência [...].
Entre 1992 e 1997 os autores difundiram as suas propostas de
regulamentação e de implementação das políticas, e apontaram soluções e
alternativas para as reformas que estavam em curso e as que eles próprios
identificaram como prioritárias [...]. Os principais pesquisadores que
lideraram os trabalhos em Moçambique, nomeadamente Christopher Tanner,
Gregory Myers, Harry West e José Negrão, abraçaram as propostas de Bruce
e de Terence Ranger e argumentaram que as instituições costumeiras,
definidas como instituições políticas, legais e culturais das áreas rurais, não
são estáticas e muito menos atrasadas, o que constituía uma crítica às ideias
sobre a ineficiência e atavismo dos mesmos [...]. Eles foram igualmente
críticos da posição de alguns sectores do governo que não viam com bons
olhos o apelo dos organismos internacionais para a integração das leis
costumeiras na legislação de terras (JOSSIAS, 2016, p. 35, grifos de autor).

A pressão desse movimento associado às críticas que vinha recebendo no


campo acadêmico internacional contribuiu para a mudança de posicionamento do Banco
Mundial sobre os regimes de acesso e uso de terra em Moçambique. As suas propostas
de reformas passaram a incluir a necessidade de incentivar os mecanismos de
participação comunitária e a relevância dos conhecimentos locais na garantia da gestão
dos recursos naturais. Neste contexto, em 1997, foi aprovada a atual lei de terras de
Moçambique que agradou tantos os integrantes da Campanha Terra quanto o Banco
Mundial e investidores estrangeiros e nacionais cada um em função dos seus interesses
a saber:

(i) Foi do agrado dos integrantes da “campanha terra” porque integrou os


direitos costumeiros sobre a posse e uso da terra. Garantiu o direito de ocupação
coletiva da terra e equiparou a prova testemunhal com a prova formal (posse de título
escrito) no processo de reconhecimento dos direitos de uso e aproveitamento da terra. A
Lei de Terras estabelece três formas de ocupação da terra: primeiro a ocupação por
pessoas singulares e pelas “comunidades locais” de acordo com normas e práticas
costumeiras; segundo a ocupação por pessoas singulares nacionais – quaisquer cidadãos
de nacionalidade moçambicana - que, de boa-fé, estejam a utilizar a terra há pelo menos
dez anos; e terceiro mediante autorização pelo Estado, respeito do pedido de uso e
aproveitamento da terra apresentado por pessoas singulares ou coletivas. É nesta terceira
forma que se encontra a única possibilidade de obtenção de DUAT por parte das
pessoas singulares e coletivas estrangeiras, incluindo as empresas multinacionais e em
consonância com as normas específicas de cada atividade de exploração.

Definem-se no âmbito da Lei de Terras como “comunidades locais” o


“agrupamento de famílias e indivíduos, vivendo numa circunscrição territorial de nível

- 178 -
de localidade ou inferior, que visa à salvaguarda de interesses comuns através da
proteção de áreas habitacionais, áreas agrícolas, sejam cultivadas ou em pousio,
florestas, sítios de importância cultural, pastagens, fontes de água e áreas de expansão”
(MOÇAMBIQUE 1997). Refletindo sobre o próprio conceito de “comunidades locais”,
Elísio Jossias (2016) considera que ao colocar as comunidades como titulares de
DUAT, a lei de terra as confere um estatuto de pessoas singulares agrupadas e
localizadas numa circunscrição territorial, espaço circunscrito e limitado. Ao adotar essa
categoria o estado entende que a população que habita em áreas rurais orienta-se por
normas ou práticas costumeiras de acesso à terra que a distingue dos habitantes das
áreas urbanas.

Como o ato de nomear dá existência, as comunidades locais começaram a ter


existência com esse processo de reformulação legislativa sobre a posse e uso da terra.
No âmbito desse processo o estado moçambicano desenvolveu um processo de
descentralização administrativa e de gestão de unidades territoriais que culmina com a
figura das autoridades comunitárias (MOÇAMBIQUE, 2000), já citadas. As autoridades
comunitárias integram, não só, as autoridades tradicionais (régulos no tempo colonial)
como também as autoridades administrativas criadas depois da independência nacional
que são localmente designados de secretários e líderes dos bairros ou de localidades.
Para os primeiros, ser o “dono da terra” no sentido dos “primeiros chegados”
(JOSSIAS, 2016) é um dos principais critérios de legitimidade. Os segundos são de
indicação administrativa sendo em vários contextos a filiação partidária e a proximidade
com o governo local (distrito ou posto administrativo) um elemento determinante. A
dicotomia entre os dois não é essencialista, casos há em que a autoridade tradicional
(régulo) é ao mesmo tempo o secretário do bairro ou localidade.

Um fato que é importante destacar, voltando para a lei de terras, é que a falta de
titulação – documento emitido pelos serviços Públicos de Cadastro, gerais ou urbanos,
que serve de comprovativo do direito de uso e aproveitamento da terra - ou de registro,
não prejudica o direito de uso e aproveitamento da terra adquirido pelas comunidades
locais por ocupação, desde que essa ocupação possa ser comprovada. E essa
comprovação pode ser feita, por exemplo, pela prova testemunhal dos membros,
homens e mulheres, das comunidades locais (MOÇAMBIQUE, 1997). O
reconhecimento dado às comunidades locais ao uso e aproveitamento coletivo da terra
implica, por um lado, a consagração pela Lei de Terras dos direitos costumeiros de

- 179 -
acesso à terra e recursos (CAMBAZA, 2009) e consequentemente do pluralismo
jurídico. Diríamos que a lei de terras antecipou essa lógica, pois tal como vimos ela só
teve respaldo constitucional com a constituição de 2004. Por outro lado, o
reconhecimento dos direitos territoriais inerentes à ocupação tradicional e histórica,
garante os direitos que as comunidades locais têm sobre suas áreas tradicionais.

(ii) A lei de terra também agradou ao Banco Mundial e investidores nacionais e


estrangeiros porque abria amplo espaço e segurança jurídica para a apropriação
capitalista da terra e de seus recursos. Tal como destaca Elmer Matos (2016, p. 113),

a lei aparentou ser mais benévola aos mais desfavorecidos e que viviam
nelas. Isto é, a lei reconheceu o direito por ocupação, através das normas e
práticas costumeiras e por residirem no local por pelo menos dez anos. [...]
reconheceu, também, a existência de grupos linhageiros que ocupavam uma
área que, por diversas razões, quer seja cultural, a terra era de pertença do
grupo e não apenas de cada família. Dessa forma foi introduzido o conceito
de comunidade local para responder a esse fato. Garantido a pose e o acesso
às comunidades locais e às famílias, era também importante garantir o acesso
e a posse aos investidores, quer sejam nacionais como estrangeiros. O Estado
apenas criaria as condições para que os intervenientes pudessem negociar o
acesso à terra. Para a aquisição da terra por ocupação, o registro não era
fundamental, excetuando os casos em que a terra fosse do interesse dos
investidores. Aí o investidor negociaria com os ocupantes da terra e depois
registraria e adquiriria o DUAT. Considerava-se que assim estavam criadas
as bases para que as comunidades locais não fossem expulsas das suas terras
sem que cedessem ou negociassem a sua aquisição. O Estado desempenharia
o papel de mediador e regulador, se abstendo de qualquer responsabilidade
sobre a perda de terra das comunidades locais. Ao Estado, era apenas lhe
permitido a sua intervenção quando a posse da terra fosse para efeitos de
especulação ou, quando os direitos dos cidadãos entrassem em risco ”.

Para Elísio Jossias esse caráter neutro do estado era reflexo das exigências dos
organismos internacionais (Banco Mundial, FAO, USAID e PNUD), que defendiam no
âmbito dessa reformulação legislativa pouca interferência do Estado no processo de
alocação das terras. Havia uma ideia generalizada de que desde o fim da guerra civil em
1992 as elites políticas estavam se aproveitando da fragilidade da legislação para se
apropriar das terras mais férteis. Face a isso, se propunha que o papel do estado se
concentrasse apenas na tarefa da administração de processos formais, implementação e
fiscalização da legislação. Essa concepção é que justifica, segundo Jossias (2016), o
maior protagonismo dado a ONGs nacionais - com destaque para a Associação Rural de
Ajuda Mutua (ORAM); a União Geral das Cooperativas (OGC); e a União Nacional dos
Camponeses (UNAC) - não só no processo de divulgação da lei de terras, como
também, no apoio das comunidades locais na legalização das suas terras - um processo
financiado pela USAID e pelo PNUD. Esses organismos estiveram também, segundo

- 180 -
Jossias (2016), ligados ao processo de criação do Centro de Formação Jurídica
Judiciaria, uma instituição moçambicana de formação de magistrados judiciais. O centro
começou a funcionar em 2001 e durante um significativo tempo da sua história dedicou-
se a pesquisas ligadas à dimensão legal de aplicação da atual legislação sobre a terra e à
formação de magistrados em aspectos específicos ligados à atual lei de terras, com
destaque para a demarcação de terras comunitárias, o registro de DUAT e as
modalidades de negociação com investidores.

A suposta neutralidade do Estado (suposta, pois pelo menos no contexto do


conflito entre a Vale e as populações compulsoriamente deslocadas de Moatize, o
estado, escolheu o lado da multinacional) e a possibilidade de negociar diretamente o
DUAT com as comunidades parece, na visão de Matos (2016), ter sido agradável para o
investidor, porque partindo da posse de terra por ocupação, mais cedo ou mais tarde, se
chegaria à propriedade privada. Neste contexto o campo para a luta pelo acesso e posse
da terra estava criado e o investidor tinha as condições que precisaria para expropriar as
terras dos nativos: a partir do momento em que o projeto de investimento fosse
aprovado pelo governo, como sendo importante para o crescimento econômico, “a
negociação com os detentores da posse de terra iniciaria e, querendo ou não, a terra
passaria para a propriedade do investidor” (MATOS, 2016, p. 113-114).

Com isso queremos dizer - na esteira de Matos (2016) e Jossias (2016) - que a
aprovação da atual lei de terras e toda legislação subsequente tinha como interesse
primordial garantir as condições de possibilidade de acesso e posse de terra e recursos
para investidores nacionais e estrangeiros. Ampliando a apropriação capitalista da terra
e efetivando a política e estratégia de desenvolvimento nacional centrada na atração de
investimentos internacionais materializados nos megaprojetos. Garantir a ocupação
coletiva da terra através de direitos costumeiros dissimulava esse interesse primordial, o
que em si, abria espaço para subalternização de outras formas de uso e apropriação da
terra. A nova lei de minas (MOÇAMBIQUE, 2002) tornou essa subalternização
explícita, ao definir a exploração mineral como tendo prioridade sobre qualquer outro
tipo de uso e apropriação da terra, incluindo nesse caso o uso da terra para a reprodução
social e econômica camponesa. Ou seja, se a lei de terras não se apresentava explícita
quanto a sua ampla inclinação à atração do capital estrangeiro a legislação de minas
vem deixar clara essa situação.

- 181 -
A terra é resumida a fonte de recurso. Ignorando-se todo o investimento
material, social, cultural e simbólico feito por populações que a ocupam e que se
exprime por um sistema de representações e princípios de organização social,
econômica, política e cultural, específicos de cada grupo social e geridos, por exemplo,
por uma lógica de “pertencimento e de parentesco”. Tal como destacamos na introdução
desse capítulo, mais do que fonte de recursos as terras das comunidades locais são um
produto histórico e se referem a uma organização do espaço carregada de história e não
pode ser entendido fora desse contexto. Se é um produto histórico, então é um espaço
socialmente significativo, construído e transformado pelo trabalho das gerações
passadas e é nele onde se inscreve a história do grupo (GODOI, 2014; BAINES; 2014;
ALENCAR, 2002; 2007; 2013). Antônio Braço destaca no seu estudo etnográfico sobre
os simbolismos de gênero nas narrativas orais do povo Sena, do vale do Zambeze, no
distrito de Marromeu, na província de Sofala, região central de Moçambique a
importância da terra, por exemplo, no processo de construção e afirmação da identidade
feminina requerida às mulheres (BRAÇO, 2017; 2018):

há uma relação estrita entre a machamba, âmbito de atuação das mulheres, e


o dos homens [...] em relação à terra, o que se pode afirmar é que se trata de
um espaço culturalmente associado à atuação das mulheres, onde a partir de
suas atividades cotidianas, como a prática da agricultura, constroem seus
processos de identificações de gênero. Por isso, visto sob o ponto da
perspectiva funcionalista, a partir da sua função social, a terra, enquanto
machamba pertence à mulher, pois é o local da construção e afirmação das
identidades femininas, requeridas socialmente às mulheres. Uma mulher Sena
é educada desde a sua infância a tornar-se mulher a partir da prática de
colimar, ou seja, do cuidado com a terra (BRAÇO, 2018, p. 23, grifos do
autor).

Maria Paula Meneses na sua pesquisa sobre a questão do acesso, uso e gestão
dos recursos naturais em Lucuáti, distrito de Matutuíne, província de Maputo região sul
de Moçambique – destaca a importância não só econômica, mas social, cultural e
espiritual da floresta para as populações daquela região. Nesta área vem sendo
implementada uma perversa política ambiental de conservação de recursos (um
ambientalismo empresarial que mobiliza um discurso de preservação de recursos, mas
que na verdade so serve para construir instancias turísticas para os que têm dinheiro de
sobra passarem final semana45 ) que interfere na vida cotidiana das populações daquele
contexto sociocultural, o que abriu espaço para o surgimento de conflitos

45 Elísio
Jossias constata a prevalência da mesma lógica ambiental no processo de criação em 2007 de uma
área de conservação de recursos naturais (denominada Manda Wilderness) no posto administrativo de
Cobué, região do lago Niassa, norte de Moçambique. Ver especificamente o capítulo 04 (JOSSIAS,
2016).

- 182 -
socioambientais (ACSELRAD, 2004; ZHOURI; LASCHEFSKI, 2010). Segundo
Meneses (2003, p. 453),

durante a guerra que assolou Moçambique até inícios da década de 90, a


infraestrutura econômica da zona foi destruída. Porque era necessário
sobreviver, Matutuíne transformou-se num dos principais centros de
produção de carvão vegetal para Maputo. Mas para além da venda de madeira
e carvão, a floresta e os seus recursos cumprem muitas outras funções. [...]
ela fornece vários produtos imprescindíveis à sobrevivência das populações,
incluindo alimentos, medicamentos, material de construção etc. A floresta é
também o local onde outras atividades sociais e rituais ocorrem e, em tempos
de conflito, onde se procura refúgio e proteção. A floresta, a mata, é local do
reencontro contínuo de gerações. As cerimonias, as orações que se realizam
nas matas sagradas têm a finalidade última de manter a terra prenhe de
recursos, honrando os antepassados que, por sua vez, também a haviam
mantido e herdado, e deixa-la depois aos descendentes, pródiga ou árida, mas
viva. A paisagem está em permanente elaboração e as relações sociais
fornecem os recursos, os símbolos, os meios de reflexão utilizados por cada
um e por todos para interpretar, agir, avaliar o ambiente onde se vive e co m o
qual se interage constantemente. Vive-se e luta-se para preservar a terra;
nasce-se filho da terra e deve-se-lhes esse respeito.

O que a etnografia de Antônio Braço, a pesquisa de Maria Paula Meneses e


outras pesquisas, tais como a de Ana Lonforte (2003) desenvolvida entre os pescadores
da Ilha de Moçambique e a de Rafael da Conceição (2003) entre os pescadores e da
zona de Angoche e Moma, ambas na província de Nampula, região norte de
Moçambique, nos permitem compreender é que, além da sua importância na reprodução
social e econômica das diversas comunidades locais existe um conjunto de simbolismos
culturais que perpassam a questão da terra e dos recursos naturais em Moçambique, que
o estado na sua racionalidade capitalista acaba (propositadamente ou não) por
invisibilizar e marginalizar. Permite também compreender a existência de cosmologias
outras e conhecimentos outros (das diversas comunidades locais, camponeses,
pescadores, etc.) sobre uso, apropriação e conservação da terra e recursos naturais que
vão além da racionalidade capitalista do estado. Aliás, essa racionalidade os impede de
enxergá-las. Para as populações das áreas rurais moçambicanas, uma árvore pode ser
avaliada como um marco territorial, um símbolo de pertença; para o estado e
racionalidade empresarial a mesma paisagem é um mero objeto econômico, onde o que
importa é a extração da madeira (MENESES, 2003).

A lei de terra e todo o ordenamento jurídico subsequente sobre a terra (incluindo


a lei de minas de 2002) reforçou a permanência de uma política de subalternização das
populações camponesas e de modo geral das populações das áreas rurais que são as
mais atingidas atualmente por esses empreendimentos econômicos de desenvolvimento

- 183 -
nacional. Este fato evidencia um processo de permanência de um sistema de dominação
que subalterniza ou inferioriza as populações das áreas rurais.

Foi nesse contexto jurídico sobre a terra que a Vale chegou a Moatize em 2004.
Foi neste contexto jurídico que também realizou o processo de expropriação de terra das
populações dos bairros Chipanga, Mithethe, Malábue, Bagamoyo (compulsoriamente
deslocadas para dar lugar à instalação da mina de exploração de carvão) bem como de
milhares de populações que foram compulsivamente deslocadas para a construção da
linha férrea “Moatize-Nacala-Velha”. Expropriação e deslocamentos compulsórios
esses, marcados por violência e indiferença. O interesse era expulsá-los a todo custo.
Conforme vimos, falsas promessas e intimidação foram algumas das estratégias
adotadas para conter ações de resistências (vide capítulo 03).

José Gil Vicente encontra semelhanças entre as atuais concessões de terras às


multinacionais estrangeiras com o processo de concessão de vastas extensões de
território moçambicano às companhias majestáticas e arrendatárias de prazos no tempo
colonial, principalmente no que diz respeito aos privilégios e os modos de atuação.
Essas semelhanças se fundamentam no fato de que as reformas sobre a terra
recuperaram o essencial da política agrária e do modelo de desenvolvimento rural
colonial (VICENTE, 2014). E mais, estão a permitir que seja “o mercado a recuperar o
modelo colonial sem que o Estado tenha uma estratégia de desenvolvimento nem
capacidade para exercer as funções de regulação e fiscalização da economia e dos
agentes económicos” (VICENTE, 2014, p. 300). Neste contexto, embora o conjunto de
leis atuais em Moçambique afirme que a terra é do Estado sempre que há interesses
empresariais de vulto, recorre-se, tal como no tempo colonial, a uma autêntica
expropriação da terra, mesmo quando esta esteja a ser utilizada pelas comunidades
locais para sua reprodução social e econômica. “Acresce ainda que as multinacionais
acabam por ter acesso às terras comunitárias, impedindo assim as famílias de realizarem
as suas atividades agrícolas” (VICENTE, 2014, p. 301). O autor reitera que existe uma
continuidade nos conflitos de terra entre o período colonial e o período pós-
independência. “As comunidades rurais foram tratadas como sujeitos de importância
secundária. Os camponeses continuam desprovidos de instrumentos de defesa face aos
assaltos que ocorrem à sua terra” (VICENTE, 2014, p. 301).

De fato, esses dois períodos históricos (colonial e “pós-colonial”) podem ser


apreendidos através das suas diferenças. Porém eles podem também ser apreendidos
- 184 -
pelas suas semelhanças. E a violência é um elemento determinante. Advogamos que
esse caráter violento e democraticamente questionável do Estado moçambicano se
intercepta com o caráter violento e autoritário da Vale. Para refletir, com mais
profundidade, sobre essa questão vamos, no capítulo a seguir, explorar a atuação da
Vale em outros contextos socioculturais, concretamente no Canadá e Amazônia
Brasileira. A escolha do Canadá, não só, se fundamenta no fato da Vale ter chegado
naquele país dois anos após a sua entrada no mercado moçambicano, como e
principalmente, pelo fato do Canada ser um país desenvolvido com um sistema jurídico
que em tese é mais avançado no que diz respeito à proteção e segurança jurídica das
populações atingidas pelas atividades de mineração, aos trabalhadores e em questões de
proteção ambiental. Tal como o leitor vai constatar, a partir de agora vamos deslocar a
nossa análise do estado para a empresa e suas ações ou práticas. A hipótese que
buscamos defender é que a prevalência de um sistema de dominação que inferioriza as
populações das áreas rurais e todo um ordenamento jurídico sobre a terra que
subalterniza as suas lógicas especificas de uso e apropriação da terra e recursos em
benefício da apropriação capitalista, cria um espaço propício para a violação dos seus
direitos por parte das empresas capitalistas. Porém esse processo de violência e
expropriação não é exclusivo desse fator. Ela é também reflexo do caráter violento que
é intrínseco ao megaprojeto de mineração (ou de um megaprojeto no geral e da atuação
da Vale e particular). Neste contexto, a cultura política autoritária do estado se
intercecciona com a cultura autoritária e colonialista da empresa.

5. UMA PONTE SOBRE O ATLÂNTICO: A ATUAÇÃO DA VALE NO


CANADÁ E NA AMAZÔNIA BRASILEIRA

No presente capítulo descentralizamos a nossa análise do estado para a empresa,


explorando a atuação da Vale no Canada e na Amazônia Brasileira. A hipótese que
buscamos defender é que a Vale é uma empresa que apresenta práticas autoritárias e
violentas (seja física ou simbólica) de atuação que independem do contexto de sua
implementação. Ou seja, a violência, a expropriação, dentre outros custos sociais e
ambientais, são parte integrante das suas práticas independente do contexto social,
político e jurídico onde os seus projetos estão sendo implementados.

- 185 -
O Canadá é um país desenvolvido que comparado com Moçambique possui,
segundo Lamas (2017) um contexto institucional e regulatório de mineração muito mais
consolidado e desenvolvido e que inclui uma série de mecanismos para assegurar uma
exploração menos evasiva e socio ambientalmente mais harmoniosa (LAMAS, 2017).
Pelo menos em tese. Classificado pelo Banco Mundial como um país de alto
rendimento, o Canadá foi ao longo da sua história colônia da França e da Inglaterra. A
partir de 1967 se tornou domínio autônomo do Império Britânico e perdurou até 1931,
quando se tornou estado independente a partir do estatuto de Westminster. Atualmente é
uma monarquia constitucional. Segundo maior país do mundo em área geográfica,
apresenta alto índice de desenvolvimento humano, ocupa a decima (10) posição num
ranking em que Moçambique ocupa a posição cento e oitenta e um (181), num universo
de cento e oitenta e oito (188) países. O país também é membro do G7 grupo que
congrega as sete economias que se consideram as mais avançadas do mundo. O último
encontro desse grupo foi justamente no Canadá, ocorrido nos dias 08 e 09 de julho de
2018 na cidade de Quebec, marcado por uma tensão devido à tendência que alguns
analistas consideram nacionalista e isolacionista do atual governo estadunidense.

O desenvolvimento econômico do Canadá foi e continua sendo marcado pela


extração de recursos naturais. Para Lamas (2017, p. 29) a abertura, transparência,
democracia, clareza e consistência nas regulações, a taxação mineral competitiva, o
impulso à inovação e tecnologia limpa e infraestrutura abundante são alguns dos
princípios atrativos do Canadá para o capital internacional. Embora esses elementos
possam ser considerados importantes, a presença de multinacionais em Kivu do Norte
no Congo46 , no Delta do Níger e em países como Angola, Moçambique, demonstram
que o capital internacional não depende necessariamente deles para se expandir e
dominar outros territórios em nível global. Tal destaca o antropólogo James Ferguson
no seu livro Global Shadows Africa in the neoliberal world order (FERGURSON,
2006): devemos pôr de lado quaisquer discursos sobre investidores de mineração que
precisam de democracias estáveis e de boa governança como pré-condições para suas
operações. Na África, eles alegremente investem em países com guerras violentas e
governos de instabilidade e corrupção notórias (FERGUSON apud MARSHALL,
2012).

46 O filme “O Caderno de Sara” que está disponível na distribuidora online de filmes Netflix nos indaga a
não olhar, exclusivamente, como conflito interno e a fazer uma reflexão sobre os interesses do grande
capital internacional que estão integrados ao conflito de Kivu do Norte (O CADERNO DE SARA, 2018)

- 186 -
Um dos principais complexos de operações minerais do Canadá se localiza na
cidade de Sudbury no nordeste da província de Ontário. Como o Canadá é um país
federativo composto por 10 províncias (Alberta, Colúmbia Britânica, Saskatchewan,
Manitoba, Ontário, Quebec, New Brunswick, Nova Escócia, Ilha do Príncipe Eduardo,
Terra Nova e Labrador) e três territórios (Yukon, Territórios do Noroeste, Nunavut), a
indústria de mineração é governada majoritariamente pelas leis da província ou do
território onde a exploração está localizada. Isso inclui, não só decisões relacionadas
com o uso e apropriação de terras e recursos, como também, questões operacionais
(LAMAS, 2017). Contudo, o governo federal possui jurisdições que se sobrepõem às
províncias em algumas áreas como a proteção ambiental, política monetária e fiscal e
direitos aborígenes. Segundo Lamas (2017), em Ontário o Mining Act é a legislação
provincial responsável pela governança e regulação da mineração desde o século XIX.
A modernização feita recentemente esteve relacionada ao reconhecimento dos direitos
aborígenes e a minimização dos impactos ambientais. As comunidades aborígenes, por
exemplo, passaram desde 2012 a ter o direito de reivindicar áreas de importância
cultural para que estas não sejam objeto de atividades de exploração.

A cidade de Sudbury teve sua origem e crescimento ao longo do tempo


estreitamente associados ao desenvolvimento de atividades minerais de larga escala -
desde o final do século XIX quando foram descobertas reservas de cobre durante a
construção da Canadian Pacific Railway (LAMAS, 2017). Mais tarde foram
descobertas reservas de níquel. Há na região famílias de mineiros há cinco gerações
(AGUIAR, 2018). A cidade foi historicamente lugar de operações de duas das que já
foram as principais empresas de exploração de níquel do mundo: a Falconbridge
estabelecida em 1928; e a Canadian Cooper Company estabelecida em 1886 com
capitais estadunidenses e posteriormente incorporada em 1916 a capitais canadenses,
passando a se designar Inco (LAMAS, 2017). Em 2006, com as suas operações em fase
inicial em Moçambique, depois de ter ganho o concurso internacional em 2004, a Vale
comprou a mineradora canadense Inco num valor estimado em mais de dezoito biliões
de dólares americanos, marcando a entrada de uma companhia de um país emergente
num país desenvolvido, ao mesmo tempo em que tornou a região de Sudbury parte de
um cenário globalizado. Posição também assumida pela região de Moatize. Essa
operação tornou a Vale uma das maiores produtoras de níquel do mundo. Além das
instalações herdadas em Sudbury pela compra da Inco, a Vale possui atualmente

- 187 -
unidades em Kranou, (Saskatchewan), Port Colborne (Ontário), Thompson (Manitoba),
Long Harbour, Saint Johns e Voisey´s Bay (Terra Nova e Labrador), bem como, o
escritório da Diretoria de Metais Básicos em Toronto (AGUIAR, 2018).

A chegada da Vale em Sudbury é marcada por um processo de coalizão entre


percepções de conquistas históricas tanto dos trabalhadores mineiros, quanto das
populações aborígenes e o sistema de valores corporativos de uma empresa
multinacional muito centralizada e institucionalizada (LAMAS, 2017). A empresa
assumiu o controle da Inco enquanto estava em vigor o contrato coletivo assinado
anteriormente entre a Inco e o sindicato dos trabalhadores denominado “USW Local
6500”. Segundo Aguiar (2018), esse sindicato é uma secção local do United
Steelworkers (USW), um sindicato internacional estadunidense e canadense que
informa ter mais de um milhão de trabalhadores ativos e aposentados associados.
Considerado o maior sindicato do sector privado da América do Norte e um dos maiores
do mundo, o Steelworkers é o principal sindicato da Federação Sindical dos Estados
Unidos (AFL-CIO) com 55 sindicatos filiados e 12, 5 milhões de trabalhadores
associados (AGUIAR, 2018, p. 4). No Canadá é filiado ao Canadian Labour Congress
(CLC), federação sindical semelhante à AFL-CIO nos EUA. O Steelworkers tem
representação dos trabalhadores em todas as unidades da Vale. Em Sudbury, a
representação é realizada pela USW Local 6500 desde 1965. Segundo Aguiar (2018), a
presença desse sindicato pode estar associada à longa relação comercial que a Inco
estabeleceu com os Estados Unidos. A empresa foi a principal fornecedora de níquel
durante a segunda guerra mundial e até a década de 60 era uma das principais
fornecedoras da indústria bélica estadunidense (AGUIAR, 2018).

A Vale quando chega em Sudbury, portanto, encontra uma cultura sindical e


operária diferente da que aplicava e continua aplicando nas suas operações no Brasil e
Moçambique, marcada pela rotatividade da força do trabalho, baixos salários, e
terceirização. Acompanhadas por um padrão de atuação sindical em que a pulverização
das entidades, o distanciamento do local do trabalho e a burocratização trazem como
consequência o baixo ativismo sindical e a restritiva oposição às iniciativas da empresa
(AGUIAR, 2018, p. 6). O livro “violência e trabalho no Brasil” da iniciativa do
Movimento Nacional de Direitos Humanos e organizado por José Fernando da Silva,
Ricardo Barbosa Lima e Sadi Dal Rosso evidencia de modo geral o quão violentas e
precárias são as relações de trabalho no Brasil (SILVA; LIMA; ROSSO, 2001) e a

- 188 -
advogamos que a Vale é um dos atores reprodutores dessas lógicas violentas e precárias
de trabalho tal como demonstra Judith Marshall no seu trabalho “megaprojetos de
mineração e trabalho: trabalhar para a Vale a ‘pior empresa do mundo’: casos de
Canadá, Brasil e Moçambique” (MARSHALL, 2012). A cooptação dos sindicatos,
(instrumentos importantes para os trabalhadores nas suas lutas pelo respeito, salários
dignos e por locais de trabalhos seguros) se soma a uma pluralidade de consequências
sociais e ambientais que a empresa espalha por onde passa devido a sua devoção focada
unicamente em elevados lucros (MARSHALL, 2012; 2015).

Segundo Judith Marshall, no Canadá, o Acordo Coletivo de Trabalho (ACT)


sempre foi o principal instrumento de estruturação das relações entre trabalhadores e a
administração. A negociação coletiva é consagrada legalmente e está profundamente
enraizada na cultura de trabalho como um ritual, como uma arte, como um jogo de alto
risco, como um momento de testar o poder relativo dos trabalhadores e dos gestores.
Em processos de negociação cada parte vai para a mesa com um conjunto de demandas.
Através de sessões de negociação, comícios de apoio à comunidade, leituras de
indicadores econômicos e tendências do mercado, os dois lados trabalham para a
aproximação. Nesse processo os “itens não econômicos eram tratados em primeiro
lugar” (MARSHALL, 2012, p. 12).

A centralização e o desejo de aumentar produtividade da sua unidade no Canadá


à custa dos direitos dos trabalhadores, tal como tem feito no Brasil, se contrapôs a uma
cultura mais participativa de decisões que era adotada pela Inco. Essa postura autoritária
e produtivista levou a que os trabalhadores de Sudbury entrassem em uma greve geral,
no dia 13 de julho de 2009, que só encerrou (mais por esgotamento dos trabalhadores do
que por uma mudança significativa do comportamento da empresa) no dia 07 de julho
de 2010, 361 dias após o seu início. A diminuição do poder dos trabalhadores, as
mudanças nos planos de pensão para novos trabalhadores, redução de bônus dos
trabalhadores, congelamentos de salários, mudanças nas aposentadorias foram alguns
dos elementos que contribuíram para a rejeição do contrato coletivo proposto pela Vale
e consequente início da greve. Para a empresa, essas restruturações eram necessárias
para a continuidade da viabilidade e da rentabilidade das suas operações no Canadá.
Para os trabalhadores a imposição dessas condições contra conquistas históricas era uma
estratégia da multinacional para enfraquecer o poder do sindicato (LAMAS, 2017).

- 189 -
A contratação da Hicks Morley, um escritório de advocacia de recursos humanos
considerada pró-patronal, para negociar com os trabalhadores, bem como de uma equipe
de segurança, AFI International (uma empresa especialista em segurança de grave),
conhecida segundo Lamas (2017) por ser uma roupagem profissional de quebra greve,
para vigiar os trabalhadores grevistas, reforçava a política autoritária da empresa. Mas
contribuiu também para o prolongamento da greve. A conexão com empresas de
segurança privada é, ainda para Lamas (2017), um padrão da Vale que vem se
reproduzindo nas suas operações ao redor do mundo. A contratação de trabalhadores
terceirizados temporários para manter a parte da produção e manutenção das minas foi
visto pelos trabalhadores como uma forma de desmoralização no sentido de aceitar as
perversas condições de trabalho impostos. A lógica autoritária da empresa assentava-se
também na intimidação de famílias de grevistas (AGUIAR, 2018, p. 7).

Numa análise comparativa entre a atuação da Vale no Canadá e em


Moçambique, Lamas (2017) conclui que “as realidades conflituosas que existem ao
redor dos megaprojetos na área de mineração apontam para uma trans-escalaridade,
onde os níveis de análise local, nacional e global coexistem através da formação de
formas de governança hibrida” (p. 38-39). Para a autora é evidente que a diferença de
qualidade de aparatos legais e regulatórios entre o Canadá e Moçambique produz
resultados distintos na distribuição de riquezas e consequentemente no tipo de
conflitualidade socioambiental que emerge neste contexto (p. 39). À primeira vista –
continua Lamas - a corporação pode parecer uma variável constante na medida em que é
a mesma para todos os contextos estudados, mas ao contrário do que pode parecer, ela é
também uma variável inconstante na análise. Na medida em que há diferenças de
comportamento significativo entre os dois. Isso leva, ainda segundo Lamas (2017), à
ideia da existência de “Vales” no plural, de múltiplas Vales. A emergência destas
múltiplas Vales é contextual, “surge no espaço de encontro entre a sua entrada em um
determinado território, a economia política dos recursos naturais do Estado hospedeiro e
o relacionamento com as populações locais” (p. 39). Neste contexto a Vale se comporta
“seletivamente enquanto ator político que altera substancialmente os contextos onde
está inserida”. Contextos esses “em que a população local participa apenas enquanto
receptores de investimento e não participantes ativos na formulação de soluções para
lidar com a questão indústria extrativa e sociedade” (LAMAS, 2017, p. 40).

- 190 -
Distanciamos-nos dessa conclusão. Advogamos que mais do que uma questão de
“múltiplas Vales” o que os dados do Canadá, trazidos por Lamas (2017), Aguiar (2018),
bem como por Judith Marshall (2012, 2015, 2017) evidenciam é a Vale apresenta ou
possui práticas autoritárias e violentas (seja elas físicas ou simbólicas) de atuação que
independem do contexto social, cultural, político e jurídico de sua implementação. Ou
seja, independente do contexto em que está sendo implementado (logicamente que isso
não exclui especificidades) o trabalho de mineração da Vale envolve dominação,
violência, expropriação, de entre outros custos sociais e ambientais.

Estudos sobre as práticas e os efeitos sociais das ações da Vale e outros projetos
de mineração na Amazônia Brasileira corroboram nessa tese. Tal como já destacamos
em outro trabalho (CONRADO; EUSÉBIO; CASTRO; 2017) a região da Amazônia
Brasileira tem um território natural único com diversas reservas de recursos minerais. O
processo de valorização industrial dos recursos minerais da Amazônia brasileira iniciou-
se, segundo Monteiro (2005), com exploração das reservas de minério de manganês da
serra do navio no atual território do Amapá, executado por uma joint-venture formada
pela empresa brasileira Indústria e Comércio de Minérios S.A (ICOMI) e a Bethlehem
Stell que era naquele período a maior corporação norte-americana de produção de aço.
Tal mina foi edificada em uma conjuntura marcada pelo estabelecimento no Brasil de
um novo regime político e pela reorientação das relações estabelecidas entre o estado e
a economia. [...] “Era o fim da ditadura de Getúlio Vargas e a nova constituição de 1946
estava fortemente inspirada em princípios do liberalismo econômico” (MONTEIRO,
2005, p. 187). Em 1957, foi efetivado o primeiro embarque do minério, atividade que se
estendeu por quatro décadas.

O golpe militar de 1964 estabeleceu um avanço de política de desenvolvimento


na Amazônia que pressupunha a firme articulação de interesses privados e o
estabelecimento de uma ampla política de incentivos fiscais e de créditos para as
grandes empresas, incluindo as minero-metalúrgicas. Os programas de Polos
Agropecuários e Agrominerais da Amazônia (POLAMAZÔNIA), criados em 1974,
previam a criação de diversos polos de desenvolvimento na Amazônia brasileira com
destaque para a mineração (MONTEIRO, 2005, p. 188).

Foi nesse cenário que se desenharam as condições que viabilizaram a extração e


a comercialização de bauxita metalúrgica que havia sido descoberta na década de 1960
pela empresa canadense Aluminum Limited of Canada (ALCAN), nas proximidades do
- 191 -
rio Trombetas, em Oriximiná. A extração é atualmente efetuada pela Mineração Rio
Norte (MRN) que tem na sua cota acionista a multinacional brasileira Vale e a própria
Alcan. Trombetas é atualmente um campo de diversos conflitos entre a Mineração Rio
Norte e as comunidades quilombolas, devido as práticas violentas de atuação por parte
da mineradora. Dentre várias reivindicações, as comunidades quilombolas do
Trombetas se opõem a estratégias violentas de expansão da área de exploração e
consequente ameaça de expropriação dos seus territórios, ao mesmo tempo em que
reivindicam a titulação dos seus territórios de ocupação (FARIAS JÚNIOR, 2010;
WANDERLEY, 2012).

Em 1980, o governo federal criou o Programa Grande Carajás (PGC). No escopo


desse programa implantaram-se na região amazônica empresas voltadas a produção de
alumínio. Foi nesse âmbito que a empresa Alumínio Brasileiro S. A (ALBRÁS) se
instalou em Barcarena, no Pará, em 1985; a Aluminum Company of America (ALCOA)
iniciou a articulação voltada à produção de alumínio em São Luís e a formação do
Consórcio Alumínio do Maranhão (ALUMAR). Foi também no âmbito do PGC que se
implementou o projeto de extração de minério de ferro da serra de Carajás no atual
município paraense de Parauapebas (MONTEIRO, 2005). O PGC teve como marco de
criação o decreto lei 1813 de 24 de novembro de 1980, emitido pelo então presidente
militar Joao Figueiredo (SANT´ANA JUNIOR; ALVES, 2018; SANT´ANA JUNIOR,
2016). Esse programa, bem como os projetos de infraestrutura de energia e transporte
com destaque para a estrada de ferro, minerodutos e portos de escoamento a ele
conectados continuam pressionando de forma perversa e violenta os territórios de
diversos grupos sociais da Amazônia Brasileira, violando seus direitos territoriais e
étnicos, provocando e ampliando espaços de conflitos sociais e ambientais.

A cientista social Rosa Acevedo Marin (2010) mostra, por exemplo, como a
instalação, em 2004, no território quilombola de Jambuaçu, no município de Moju,
estado do Pará, de parte da infraestrutura da Vale para o transporte de bauxita, provocou
uma série de transformações irreversíveis nas condições de uso e disponibilidade de
recursos pelas comunidades quilombolas. Estas experimentaram a perda de terras
cultivadas e aráveis devido à expropriação, à destruição dos recursos florestais e à
poluição de recursos hídricos. A ignorância e o desconhecimento dos direitos territoriais
e étnicos dos quilombolas; pressões e intimidações para o recebimento de indenizações
mínimas e individuais caracterizaram a atuação e as práticas da empresa, abrindo espaço

- 192 -
para a prevalência de tensos momentos de conflitos entre a empresa e os quilombolas,
estes últimos que se engajam em ações de resistência em defesa dos seus direitos.

Segundo Marin (2010, p. 51), os quilombolas constroem formas de mobilização


e ações diversas de resistência, tais como, “introduzir denúncias em diversas instâncias
para tornar públicos os atos da CVRD, provocar a formação de um campo de
negociações, vigiar e exigir o cumprimento de termos de compromisso”. A
criminalização das ações de resistência e a intimidação têm sido algumas das ações de
resposta empreendidas por parte da Vale. Tal como destaca a autora,

no mês de dezembro 2009 os quilombolas fizeram uma tentativa de fechar a


estrada para forçar uma negociação com a CVRD. No período a empresa de
Vigilância Sacramenta fez queixa de que houve violação da Estação da Vale
em São Bernardino pelos quilombolas e foram lavrados Boletins de
Ocorrência, sendo algumas pessoas chamadas a comparecer na polícia em
Moju, também afirmam ter a CVRD introduzido 30 policias no território com
a finalidade de amedrontar (MARIN, 2010, p. 60).

Na mesma linha de análise o antropólogo Horácio Antunes de Sant´Ana Júnior


mostra como o projeto da Vale (em parceria com o Governo Federal Brasileiro e outros
investidores internacionais) de instalação de polo siderúrgico no município de São Luís,
capital do Estado do Maranhão, ameaçou de deslocamento compulsório
aproximadamente 12 comunidades da área de 2.471,71 hectares localizada entre o porto
de Itaqui e a comunidade de Rio Cachorros requerida pelo projeto, ampliando os
conflitos ambientais na região (SANT´ANA JÚNIOR; ALVES, 2018; SANT´ANA
JÚNIOR, 2016; SANT´ANA JÚNIOR; SILVA, 2009). São Luís tem ocupado um lugar
estratégico no plano integrado de produção e escoamento do PGC. É nele onde se
localiza o terminal portuário da Ponta da Madeira (pertencente à Vale) que se conecta
através de aproximadamente 900 km de estrada de Ferro às minas de ferro de Carajás. O
Porto da Ponta da Madeira é um dos três portos que compõem o complexo portuário de
São Luís. Os outros são os Portos de Itaqui, administrado pelo Governo do Estado do
Maranhão; e o Porto da Alumar. A instalação dessas diversas infraestruturas remonta à
década de 1970 e provocou, segundo Sant´Ana Junior e Silva (2009, p. 32), “o
deslocamento compulsório de diversos povoados rurais, fortes impactos ambientais,
alteração dos modos de vida dos moradores e ameaças de novos deslocamentos”.

Buscando ampliar a sua capacidade de escoamento, em 2010 a empresa realizou


atividade de ampliação da área portuária terminada em 2013. Para Sant´Ana Júnior e
Alves (2018, p. 265), o processo de expansão portuária pode ser visto como um dos

- 193 -
efeitos derrames da mineração de ferro do Pará, e tem “causado consequências
expressivas nos modos de vida das comunidades rurais do município de São Luís,
especialmente aquelas localizadas nas proximidades do Complexo Portuário”. As ações
de resistência conseguiram inviabilizar a criação do polo siderúrgico. Pelo menos por
enquanto. A luta pela criação de uma Reserva Extrativista na área onde o polo
siderúrgico seria criado tem sido a solução encontrada pelas comunidades para defesa
dos seus direitos territoriais. Porém tal como destacam Sant´Ana Júnior e Alves (2018)
a mudança radical de orientação da política ambiental do governo federal nos últimos
anos tem atrasado o processo de criação. Neste contexto,

após oito anos sem obter a assinatura do Decreto Presidencial para a criação
da Resex, no dia 17 de maio de 2015, lideranças das comunidades apoiadas
por movimentos sociais em assembleia popular na comunidade do Taim, de
forma politicamente autônoma, declararam criada a Resex de Tauá-Mirim,
quando também foi eleito e instituído o seu Conselho Gestor composto por
representantes das comunidades, de movimentos sociais e instituições
acadêmicas (SANT´ANA JÚNIOR; ALVES, 2018, p. 277).

A luta pela titulação coletiva das suas terras de ocupação ancestral tem sido
também uma das principais estratégias de luta dos diversos grupos sociais da região do
Trombetas, no município do Pará, contra a expansão violenta de projetos
desenvolvimentistas na região, com destaque para as minas de bauxita da MRN que tem
como um dos principais acionistas a própria Vale. Segundo Rosa Acevedo Marin
(2004), desde a década de 1970, a região do rio Trombetas tem sido palco de grandes
conflitos sociais e ambientais gerados pela intervenção desenvolvimentista do estado e
empresas que interferem nos modos de uso e apropriação de recursos dos diversos
grupos sociais da região.

A região de Trombetas apresenta uma ocupação de negras e negros que remete


ao período da escravatura. Segundo Farias Júnior (2008), o Rio Trombetas no atual
município de Oriximiná era o mais famoso destino de negros e negras escravizados nas
constantes fugas contra a escravidão. Esse grupo determinou a segunda territorialização
da região do Vale do Trombetas que já era território de ocupação de indígenas que,
pressionados pela ocupação e perseguição dos colonizadores europeus, fugiram das
proximidades do Baixo Vale do Amazonas. A segunda territorialização do Vale do
Trombetas ocorreu por esses negros e negras, fugidos das senzalas das fazendas de
cacau e gado, localizadas nas proximidades do rio Amazonas. Logo, temendo as
expedições de captura, esses se juntaram aos indígenas nas áreas mais protegidas pelos
sítios acidentados do rio Trombetas (WANDERLEY, 2006). No quilombo, as negras e
- 194 -
negros fugidos da escravidão se organizavam de forma coletiva no uso e apropriação do
território, regidos por leis socialmente construídas, administradas autonomamente e
governadas por representantes eleitos. Foi nesse contexto que surgiu a concretização de
uma territorialidade, cuja ligação entre solo e sociedade é essencial. De espaço vital, da
satisfação das necessidades básicas, o quilombo se transforma em espaço do vivido, das
práticas, dos símbolos, dos mitos, da história e da identidade territorial e étnica
(WANDERLEY, 2006).

A instalação da empresa MRN começa, segundo Marin (2004), em 1967 com a


concessão de uma área de aproximadamente 66 mil hectares. Em 1977, foi feita uma
segunda concessão de aproximadamente 88 mil hectares. Esses se associaram aos 400
hectares que a empresa havia comprado de famílias de uma comunidade local
denominada Boa Vista. Ainda segundo Marin (2004), as promessas de emprego e
melhoria da renda fizeram com que a empresa conquistasse adesão dos moradores,
principalmente, os do espaço urbano. Porém as restrições impostas pela empresa que
afetavam a capacidade de deslocamento e a liberdade de acesso aos recursos abriu
espaço para ações de contestação. Em Boa Vista, por exemplo, a área dos castanhais e
dos lagos usados pelas famílias ficaram totalmente sob domínio da empresa que proibiu
a pesca, a caça e a coleta. Os antigos ocupantes passaram a viver sob a política da
empresa, com punições severas para quem infringisse as normas (MARIN, 2004).
Deslocamentos compulsórios, perda de acesso às áreas de extrativismo, indenizações
míseras, repressão, violência policial e ameaças de prisões caracterizaram a atuação da
empresa, gerando conflitos que se alastram até os dias de hoje (MARIN, 2004;
WANDERLEY, 2012). A luta pela titulação das suas terras tem sido uma das principais
estratégias de resistência adotada pelas comunidades quilombolas e ribeirinhas
atingidas. Segundo Luiz Jardim Wanderley (2012) a comunidade de Boa Vista, em
Oriximiná, foi a primeira a receber uma titulação quilombola, em 1995. Hoje, com
cinco territórios titulados a Associação dos Remanescentes de Quilombo do Município
de Oriximiná (ARQMO) - “detém uma das maiores dimensões territoriais quilombolas
tituladas e um dos maiores contingentes de famílias contemplados do país, com 361,8
mil hectares e 601 famílias” (WANDERLEY, 2012, p. 26). Esta é uma associação que
surgiu justamente em resposta às ameaças e expropriações provocadas pela MRN que
ocupou parte das suas terras; bem como pela Reserva Biológica de Trombetas (REBIO)

- 195 -
que impediu o acesso aos castanhais; e pela ELETRONORTE, que implantou uma vila
para a construção da hidrelétrica de Cachoeira Portela.

Tal como podemos constatar nesses casos, as discussões socioantropológicas


sobre os efeitos sociais da mineração na Amazônia Brasileira têm (embora não se
resuma a isso) em comum o fato de dar mais evidência às estratégias e ações de
resistências dos diversos grupos sociais atingidos. Porém o importante a destacar no
âmbito do nosso debate é que os casos de Jambuaçu; de São Luís e Trombetas – o
mesmo pode se verificar em Juruti Velho (GAVIRIA, 2014; 2013; WANDERLEY,
2012) e Barcarena (CARMO; CASTRO; PATRICIO, 2015) - aqui destacados,
demostram que o autoritarismo, a violência, as ameaças e ações de expropriação, dentre
outros custos sociais e ambientais, caracterizam as práticas da Vale e dos grandes
projetos de mineração em geral, independente do contexto social, cultural, político e
jurídico da sua implementação47 . Ou seja, a violência, a ameaça e as ações de
expropriação, são partes intrínsecas do grande projeto de mineração e independem do
contexto (ver capítulo 03 e 06 para as práticas Vale em Moçambique). O modelo
hegemônico global de “grande projeto de mineração” tem a violência, seja ela física ou
simbólica, e a expropriação como partes inseparáveis, como “outra parte da mesma
moeda”.

Isso se verifica também em outras questões de âmbito técnico como, por


exemplo, as barragens de rejeitos. Ora vejamos:

(i) Em 04 de agosto de 2014 uma barragem contendo rejeitos de tóxicos da


extração de cobre e ouro rompeu-se na província da Colúmbia Britânica, costa oeste do
Canadá. Segundo Judith Marshall (2017, p. 28) a barragem recebia rejeitos da mina
Mout Polley, da empresa Imperial Metals Corporation. Mais de 24 milhões de metros
cúbicos de lama contaminada por metais tóxicos vazou com o rompimento, causando o
maior desastre ambiental da história da mineração do Canadá. Além do lago Polley o
rejeito avançou pelo córrego Hazeltine até atingir o Lago Quesnel. Foram poluídos
sistemas hídricos e destruídos terras e habitats de reprodução de salmão. O Povo
indígena Secwepemc, em cujo território a mina está localizado, perdeu terras e
pequenos negócios afetando suas condições de reprodução social e econômica. De

47 Éimportante destacar que esses casos explorados perpassam diversos períodos da história política do
brasil desde a ditadura militar, redemocratização do país, até ao período do governo progressista de Lula
o que evidência que pelo menos no âmbito dos projetos desenvolvimentistas há mais continuidades do
que cismas nos modos e práticas das empresas nos diversos períodos da história política brasileira.

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acordo com Judith Marshall (2017), um relatório produzido a partir de uma inspeção de
2010 já identificava uma série de problemas (rachadura de 10 a 15 metros no perímetro
da parede, instrumentos de medição de pressão defeituosos) que punham em causa a
segurança do armazenamento de rejeitos. Mas foram ignorados pela empresa. Um dos
funcionários que ousou denunciar os problemas ao Ministério local de Minas e Energia
foi despedido pela empresa em 2013. Outro funcionário que foi supervisor de rejeitos
pediu demissão após o governo local não admitir a seriedade de uma fenda identificada
numa inspeção de rotina (MARSHALL, 2017).

(ii) Entre os dias 16 e 17 de fevereiro de 2018, um depósito de rejeitos da


mineradora Hydro Alunorte no município de Barcarena, a 50 km da cidade de Belém,
estado do Pará, transbordou devido a fortes chuvas, despejando uma quantidade incerta
de rejeitos tóxicos, formados por bauxita e outros elementos tóxicos como cobre. A
Hydro é uma empresa estatal Norueguesa, um país com o melhor índice de
desenvolvimento humano no mundo e que investe em ações de preservação ambiental
na Amazônia. A Noruega é, por exemplo, o maior contribuinte no fundo Amazônia para
a diminuição do desmatamento, e recentemente ameaçou (e cumpriu a promessa) o
governo brasileiro de cortar significativamente a sua contribuição pelo fato de, na visão
daquele país europeu, não estar desenvolvendo ações suficientes para conter o
desmatamento na Amazônia. A empresa é considerada a maior empresa de refinaria de
alumina, matéria-prima para a produção de alumínio e opera em Barcarena desde
199548 . O vazamento colocou em risco de imediato a saúde das comunidades de Bom
Futuro, Vila Nova e Burajuba, ao contaminar sistemas fluviais vitais para a reprodução
social e econômica dessas comunidades que habitam áreas próximas da empresa. A
mineradora já havia sido multada pelo IBAMA por um vazamento semelhante em 2009
(G1-PA, 2018). Vistoria feitas pelo Instituto Evandro Chagas (IEC) ligado ao Ministério
da Saúde do Brasil e à empresa, após o atual vazamento, constatou dentre vários
problemas a existência de um duto clandestino que despejava efluentes contaminados
fora da área industrial (RONCOLATO, 2018). O IEC constatou na sua análise a
contaminação pelo vazamento dos rios Murucupi, Pará, Guajará da Beja, Arapiranga,
bem como dos igarapés Curuperê e Dendê (IEC, 2018).

48 Paramais informações sobre os efeitos sociais da Hydro e outros empreendimentos econômicos em


Barcarena ver: HAZEU (2015); NASCIMENTO; HAZEU (2015); FERREIRA (2015).

- 197 -
O vazamento de Barcarena aconteceu três anos após um dos maiores desastres
ambientais do Brasil. (iii) Em 05 de novembro de 2015, a barragem de Fundão, um
depósito de rejeitos da mineração da Samarco, rompeu no município de Mariana, estado
de Minas Gerais49 . A barragem recebia rejeitos de extração de ferro da empresa
Samarco, uma joint-venture da multinacional brasileira Vale e da mineradora BHP
Billiton com sede na Austrália e possui operações também em Moçambique. Mais de 60
milhões de metros cúbicos contendo diferentes metais causaram a destruição do Rio
Doce afetando a reprodução social e econômica de milhões de pessoas. A lama
percorreu mais de 600 km, inviabilizou o modo de vida do povo indígena Krenak,
atravessou os estados de Minas Gerais e Espirito Santo e atingiu o Oceano Atlântico.
Comprometendo também a reprodução social e econômica dos pescadores tradicionais
da costa capixaba. Aproximadamente 20 pessoas morreram e 1 200 ficaram
desabrigadas.

Tal como no Canadá, os alertas feitos à empresa e ao governo sobre os riscos da


barragem foram ignorados pela empresa, continuando as suas atividades de produção
apesar da consciência dos riscos. Por exemplo, tal como destaca Judith Marshall, o
Ministério Público pediu a Joaquim Pimenta de Ávila, um dos engenheiros responsáveis
pela construção original da barragem, que a inspecionasse como parte de uma
investigação sobre possíveis alterações não autorizadas no projeto inicial. Este notou o
aparecimento de rachaduras parciais que representavam um risco elevado de
rompimento se não fossem profundamente corrigidas. Seus alertas e sugestões foram
ignoradas pela empresa (MARSHALL, 2017, p. 37). Elevada saturação dos rejeitos,
falhas no sistema de monitoramento do nível de água dentro da barragem, número
insuficiente de equipamentos de monitoramento, equipamentos com defeito e
deficiência do sistema de drenagem interno, são alguns dos problemas identificados
pelo inquérito aberto pela Policia Civil de Minas Gerais (MARSHALL, 2017).

Tendo em conta a violência, a expropriação e os custos sociais e ambientais que


os rompimentos provocam, advogamos que as empresas têm consciência deles, a
ignorância dos alertas é reflexo do caráter autoritário, violento e “colonial” que é

49 Olivro “Mineração, violências e resistências: um campo aberto à produção de conhecimento no Brasil,


organizado por Andrea Zhouri, apresenta algumas reflexões socioantropológicas sobre este desastre
(Zhouri, 2017). Ver também a tese recém defendida de Marcos Zucarelli intitulada “A matemática da
gestão e a alma lameada: os conflitos da governança no licenciamento do projeto de mineração Minas -Rio
e no desastre da Samarco” (ZUCARELLI, 2018).

- 198 -
intrínseco aos projetos de mineração 50 . Com isso queremos dizer que o caráter
autoritário e violento do estado moçambicano na sua relação com as populações das
áreas rurais, que vem desde o tempo colonial e se mantem até atualmente se
intercecciona desse modo com o caráter violento, autoritário e colonial da Vale, que se
expressa, por exemplo, na violência dos deslocamentos compulsórios (expropriação do
território) e de seus efeitos sociais na vida cotidiana. Ou seja, o autoritarismo do estado
moçambicano se intersecciona com o autoritarismo do megaprojeto. Neste contexto, as
mudanças na legislação que estão sendo realizadas em Moçambique são
imprescindíveis, mas a pressão por mudança de atitude das empresas multinacionais de
mineração é também imperiosa. Os organismos internacionais não podem continuar a
ignorar as ações das empresas multinacionais e nem deixar que a questão dos
deslocamentos compulsórios das populações provocados por essas multinacionais,
continue se reduzindo a questões internas de cada estado.

50 Existe uma vasta literatura sobre a Amazônia que evidencia a prevalência dessa lógica violenta,
autoritária e colonial, na atuação da Vale e outros empreendimentos mineralógicos; exploram seus efeitos
sociais e os conflitos que emergem em função disso. Além dos textos acima explorados ver também:
GOMES DOS ANJOS; SANT´ANA JÚNIOR; BRUSTOLIN (2016); TRECCANI (2014); Anais do
Seminário Internacional Carajás 30 anos (2014); o livro “Mineração na Amazônia: estados , empresas e
movimentos sociais (FORUM CARAJÁS, 2010), bem como o livro “Projeto Grande Carajás: trinta anos
de desenvolvimento frustrado” (COELHO, 2015).

- 199 -
6. DESLOCAMENTO COMPULSÓRIO E A VIDA COTIDIANA NOS NOVOS
“LUGARES”: A COMUNIDADE DE CATEME EM PERSPECTIVA

Neste capítulo busca-se analisar a realidade atual de vida cotidiana das


populações classificadas como rurais e que foram, tal como destacamos no capítulo 03,
compulsoriamente deslocadas para a Comunidade de Cateme – a aproximadamente 30
km do seu lugar anterior de ocupação imemorial ou datada. Os dados explorados nesse
capítulo são frutos do trabalho de campo realizado em duas fases (no primeiro trimestre
de 2016 e em novembro e dezembro de 2017) em Moatize. A comunidade de Cateme
foi principal lócus da pesquisa.

Mapa 09: Localização da Comunidade de Cateme em relação à Vila de Moatize

Fonte: Elaborado por Santos Filho. M.H.N. ano de 2017

Eram oito horas da manhã quando desci do “chapa” - uma espécie de van que é
o principal meio de transporte público urbano nas grandes cidades em Moçambique - na
Comunidade de Cateme. Optei em descer na paragem que se localiza a escassos metros
do posto policial local, com a intenção de buscar informações sobre a localização das

- 200 -
lideranças das comunidades. Passavam aproximadamente duas semanas depois da
minha chegada à Moatize. Uma chegada que foi repleta de tensão inerente ao que um
trabalho de campo cria e de expectativas quanto ao calor infernal e ao crescimento
econômico que o taxista que me levara ao Aeroporto Internacional de Maputo fez
questão de me alertar. Vais a Tete? Perguntou o taxista. Sim, vou fazer um trabalho de
pesquisa em Moatize - respondi. Muito calor lá, mas Tete cresceu muito nos últimos
anos, está diferente. Só esse gajo (indivíduo) do mato é que está a estragar tudo. Será
que não lhe conseguem? Esse gajo que está a desestabilizar tudo isso?

A indignação do taxista era inerente à instabilidade político-militar que


Moçambique vivia desde o ano de 2013. “O gajo do mato que está a estragar tudo”
refere-se a Afonso Dhlakama, presidente nacional do partido RENAMO, líder histórico
do partido desde que era movimento armado protagonista da guerra civil que assolou
Moçambique, por aproximadamente 16 anos (de 1977 a 1992). Depois de perder mais
uma eleição em 200951 , Dhlakama, em mais um dos seus discursos de fraude eleitoral
que se tornaram comuns aos ouvidos dos moçambicanos, principalmente, nos períodos
pós-eleitorais, se mudou primeiro para Nampula – o maior círculo eleitoral do país e
uma das províncias de maior implantação da RENAMO junto do eleitorado – e depois
para sua antiga base militar em Santungira, distrito de Gorongosa, província de Sofala,
onde começou, segundo órgãos de informação, a treinar antigos veteranos, exigindo
uma nova ordem política. Santungira foi a primeira base fixa militar do então
movimento rebelde da RENAMO em 1980. A data do regresso de Dhlakama a
Santungira, 17 de outubro, coincide com o aniversário do primeiro líder da RENAMO,
André Matsangaissa, morto em 1979 durante a guerra civil (DEUTSCHE WELLE,
2014b).

No dia 22 de outubro de 2013, a RENAMO anunciou o rompimento com o


Acordo Geral de Paz, numa suposta retaliação ao ataque das forças armadas de
Moçambique à essa base militar do partido em Santungira. Esse foi um dos vários
eventos que fizeram com que a tensão política que era evidente no campo do discurso,
através da política de acusações entre os atores políticos na arena pública, se
transformasse numa “tensão político-militar” envolvendo dois protagonistas da guerra
civil pós-independência – o governo de Moçambique, liderado pelo partido FRELIMO
51 Já
havia perdido a primeira eleição multipartidária em 1994, a segunda em 1999, para o candidato da
FRELIMO Joaquim Alberto Chissano; e a terceira de 2004 para Armando Emilio Guebuza, também
candidato da FRELIMO.

- 201 -
e a RENAMO – que teria tido o seu “fim” no ano de 1992 com a assinatura, em Roma,
do Acordo Geral de Paz (AGP). Exatamente duas décadas depois do fim guerra civil,
Moçambique se viu mergulhado numa autêntica violência armada – a região central,
concretamente as províncias de Sofala, Manica e abarcando atualmente a província de
Tete, constituem o principal palco das ações que vem se alastrando até os dias de hoje
(EUSÉBIO; MAGALHÃES, 2018a).

A tensão político-militar frustrou o meu interesse de me deslocar a Moatize via


terrestre, me restando como solução a via aérea, tendo em conta que os ataques às
pessoas e bens, bem como a destruição das vias públicas tem sido o modus operandi da
guerrilha da RENAMO. No final de 201552 , depois de uma relativa calma no ano de
2014, registrou-se um recrudescimento das hostilidades e violência armada entre as
partes beligerantes, fato que dificultava, por exemplo, a circulação de pessoas e bens na
região central de Moçambique. Esse novo cenário tornava a viagem à Moatize via
terrestre numa “aventura” arriscada, um empreendimento de risco, que podia se
confundir – talvez com um pouco de exagero da realidade – com um autêntico
“suicídio”.

A minha conversa com o taxista continuou em torno da instabilidade político-


militar até que foi bruscamente interrompida com a chegada ao Aeroporto Internacional
de Maputo. As palavras do taxista, se por um lado reforçavam a cotidiana preocupação
dos moçambicanos com a tensão político-militar, “uma tensão que vem logo agora que
os megaprojetos estão chegando para desenvolver o país”, por outro, reforçou a ideia do
“calor infernal” e do “crescimento econômico” como duas realidades que caracterizam
atualmente Tete. Ou seja, hoje o calor infernal convive quase que amigavelmente com o
crescimento econômico. A questão do calor e o fato de Tete “estar a crescer” não era
uma novidade aos meus ouvidos. Os serviços nacionais de meteorologia confirmavam
quase que diariamente a hipótese de Tete ser a província mais quente do país.
Pesquisadores que tiveram Tete como lócus de pesquisa também destacam o calor como
um elemento caraterístico e distintivo de outras realidades nacionais que chegaram a
conhecer (ROSSI, 2015; ANDRADE, 2016). A ideia de que Tete “está a crescer” era
também comum no imaginário social dos moçambicanos, pelo menos todas as pessoas

52 Relativa
calma incentivada pela assinatura de um “acordo de cessação das hostilidades” ratificado pelo
então Presidente da República de Moçambique, Armando Emílio Guebuza e pelo presidente do partido
RENAMO, Afonso Dhlakama. Acordo esse que foi fruto do diálogo que vinha ocorrendo entre as partes
envolvidas no conflito no Centro de Conferência Joaquim Chissano, na capital do país.

- 202 -
com que conversei antes em Maputo e em Inhambane, região sul de Moçambique, sobre
a minha viagem à Tete destacavam esse fato. Alguns que por Moatize passaram nos
primórdios da implantação dos megaprojetos de mineração chegaram a afirmar que pelo
volume das obras é provável que a paisagem urbana das duas cidades estivesse
interligada. Pelo menos era isso que algumas pessoas que interagi na cidade de Maputo
acreditavam. Destacar o crescimento de Tete era também comum nos discursos
governamentais. Afinal de contas era dia 07/03/2016, 12 anos após a chegada da Vale à
Moatize, província de Tete, primeiro dos megaprojetos de mineração em Moçambique,
um marco da nova lógica desenvolvimentista.

De fato, no período da minha chegada a Tete, a Vale já se encontrava em


operação e Moatize; a linha férrea Moatize-Nacala-Porto que compõe o sistema
integrado produção-escoamento já estava na fase final. As diversas populações que
ocupavam a área concessionada já tinham sido deslocadas, a maioria para a comunidade
de Cateme, posto administrativo de Kambulatsitsi (a quase 30 km da Vila Sede de
Moatize); outras para 25 de junho (nos arredores da Vila), e um terceiro grupo mediante
indenização. Os confrontos entre as populações compulsoriamente deslocadas e outros
grupos afetados pela instalação da Vale em Moatize, de um lado, e os atores
governamentais e a multinacional, do outro lado, já eram frequentes. Um dos confrontos
marcantes aconteceu em 2013 quando a comunidade de Cateme, reivindicando o
cumprimento das promessas feitas, bloqueou a linha férrea de transporte de carvão.
Cateme era o meu destino final. Meu principal lócus de pesquisa. Interessava-me
compreender com base nas narrativas daquelas populações na sua maioria camponesas,
o processo de deslocamento compulsório e a realidade da vida cotidiana naquele “novo
lugar”.

O meu embarque para Tete foi por volta das 7 horas, sem atraso, dentro do
horário programado - a temperatura em Maputo era de aproximadamente 25°. Após
1h30 minutos de voo, a voz do piloto anunciando a aproximação ao Aeroporto de
Chingodzi e o relevo mais montanhoso comparando com a cidade de Maputo, donde
partira. Relevo esse, que tive o privilégio de observar, anunciava a minha chegada a
cidade de Tete. A cidade é rodeada por montanhas. Já tinha ouvido várias vezes essas
palavras. Prontos, já chegamos ao calor – disse a passageira que se encontrava sentada
ao meu lado, quando aterrisamos. Não era a primeira vez que ela visitava a cidade.
Então sabia muito bem do que estava falando. Contou-me que tem feito viagens

- 203 -
constantemente. Conhecia quase todas as províncias de Moçambique, mas Tete era a
que menos tempo tem ficado, por isso não a conhecia tão bem. O calor é que lhe
impedia de viajar para Tete com frequência e de ficar muito tempo. A nossa conversa
foi curta. Mas mais uma vez se anunciava o calor como algo que me esperava. Depois
dessas palavras nos despedimos e nunca mais voltamos a nos ver. O comandante do vôo
não anunciou a temperatura exterior, tal como acontece algumas vezes, porém a
sensação térmica que senti naquelas 8h40 da manhã, não só evidenciava que as palavras
do taxista em Maputo e a passageira ao meu lado durante voo, não eram meras
construções infundadas, como também, que de fato eu me encontrava em Tete. Entre o
calor e a ansiedade, eu me encontrava a caminho do meu campo de pesquisa.

Quando cheguei, me instalei por um tempo em casa de um colega de graduação


na cidade de Tete. Natural de Gaza, região sul do país mudou-se, depois da formação,
para a cidade de Tete em 2011. Vivenciou na sua chegada as expectativas que rondaram
a instalação da Vale e de outros megaprojetos na província de Tete e algumas mudanças
estruturais que foram acontecendo. Alguns deles como, por exemplo, o aumento
exponencial dos preços de aluguel de casas chegara a lhe afetar diretamente. “Os gajos
da Vale tinham muito dinheiro, os preços de aluguel das casas subiram muito por causa
da chegada da Vale. Eu sofri muito para alugar. As pessoas só queriam alugar para
trabalhadores da Vale, porque tinham muito dinheiro. Todo mundo só queria andar com
camisa ou roupa da Vale porque era visto como sinônimo de dinheiro”.

O período em que fiquei pude observar essas “novas dinâmicas e


transformações” que a cidade de Tete vem sofrendo. Novas, não para mim, mas para os
diversos interlocutores com quem fui interagindo desde Maputo, e que tiveram contato
com a cidade de Tete “antes dos grandes projetos” e “depois dos grandes projetos”.
Aspectos da metropolização são visíveis. Constatei, como me falara um interlocutor,
que Tete “depois dos grandes projetos” agora tem “semáforos”, supermercados, dentre
outros serviços que segundo alguns interlocutores eram quase inexistentes na cidade
“antes dos grandes projetos”. De fato, em comparação com a vila de Moatize, a cidade
de Tete apresenta mais caraterísticas de “metropolização”.

Cheguei a vila de Moatize dois dias depois da minha chegada a Tete. Submeti
expediente ao governo distrital informando sobre a minha pesquisa e pedindo
autorização para a realização do meu trabalho na comunidade de Cateme. Esse pedido é
imprescindível para o acesso ao local, pois depois que Cateme, “ficou tristemente
- 204 -
famoso”, isso usando as palavras da jornalista brasileira Marina Amaral (2016), as
autoridades moçambicanas passaram a exigir que os líderes comunitários e as
populações de Cateme falassem apenas com pesquisadores, jornalistas e ativistas da
sociedade civil que tivessem credenciais para visitar Cateme. De fato, todos as pessoas
com que conversei em Cateme a primeira coisa que pediam era a credencial e se já tinha
falado com o líder do seu bairro. Comprovado isso é que aceitavam iniciar o diálogo.

Foram aproximadamente 20 minutos que levei no “chapa” para chegar a vila de


Moatize. O terminal de chapas Tete-Moatize localiza-se no início da Avenida Julius
Nyerere, próximo do mercado (feira) conhecido como as barracas do Zambeze. Do local
é possível ver a estátua de um dos heróis da luta de libertação nacional contra a
colonização portuguesa e primeiro presidente de Moçambique, Samora Moises Machel,
bem como a ponte, que tem seu nome, sobre o rio Zambeze - esse enorme rio que nasce
em Angola passa por Tete e desagua no Oceano Índico - espaço de diversos encantos e
imaginários alguns muito bem explorados pelo antropólogo Antônio Domingos Braço
(2016; 2017). É ao longo desse rio onde foi construída a Hidrelétrica da Cahora Bassa e
onde se projeta a construção de outra hidrelétrica, a barragem de Mpanda Nkuwa. De
fato, a cidade de Tete localiza-se às margens do rio Zambeze.

Depois que entrou o último passageiro, partimos em direção a Moatize. Já dentro


do chapa um fato me chamou atenção. O motorista e cobrador falavam a língua bitonga,
originalmente falada por alguns povos da província de Inhambane, incluindo o meu
grupo étnico53 . Perguntei em bitonga se eram naturais de Inhambane. Responderam que
sim. Vinham da cidade de Maxixe, província de Inhambane, região sul de Moçambique.
Estavam em Tete há pouco tempo, vieram “procurar fazer vida”. A conversa continuou
em torno de como está sendo a vida em Tete, até que o cobrador me informou que a
minha paragem já estava próxima. Eu tinha lhe informado anteriormente para que me
indicasse uma paragem próxima à sede do governo distrital, porque era a primeira vez
que me dirigia a Moatize. Quando desci do chapa, na vila de Moatize, ouvi uma voz me
chamando. Era um jovem colega do ensino médio na cidade de Maxixe.

- Há quanto tempo não nos vemos, não sabia que estavas cá em Tete, há quanto
tempo estás cá? – perguntou ele.

53 Para mais informações sobre os povos bitongas ver Rita-Ferreira (1982).

- 205 -
- Cheguei há pouco tempo, há dois dias, vim fazer um trabalho de pesquisa –
respondi.

Durante a conversa me falou que morava em Moatize já um tempo e veio


também à “procura de fazer a vida”. Enquanto não encontra um “emprego digno” numa
das várias empresas mineradoras está trabalhando como motorista de chapa.

As notícias de desenvolvimento e “bom emprego” oferecido pelas empresas de


exploração mineral em Tete se espalharam pelo país e atraíram muitas pessoas desde
singulares e coletivas. Tantas pessoas, não satisfeitas em acompanhar os acontecimentos
à distância, saíram, tal como afirma Andrade (2016) de suas terras em busca das
promessas propagandeadas nas rádios e em conversas com familiares e amigos. A
história do jovem colega do ensino médio não era um caso isolado. No período em que
fiquei em Moatize, encontrei, nas noitadas, muitos jovens conhecidos de Inhambane e
Maputo, que estavam em Moatize à “procura de fazer vida”. Alguns com empregos nas
empresas de exploração mineral, como a Vale e a ICVL e nas várias empresas
concessionadas, outros ainda à espera de “pintar” qualquer oportunidade. As
oportunidades de “fazer vida” em Moatize atraíram também cidadãos de outros países
vizinhos. Em certos bares da vila de Moatize a língua inglesa das “malauianas” se
mescla com o português e o Nyungwe língua mais falada na vila de Moatize e na
província de Tete em geral.

Terminada a conversa com o jovem colega do ensino médio, me dirigi ao


governo local. A primeira informação que tinha era de que a autorização era dada pelo
Conselho Municipal da Cidade de Moatize. Mas, chegando ao local, fui informado que
a área onde se localiza o Centro de Reassentamento de Cateme pertencia ao Governo
Distrital, sendo assim, era lá onde eu devia submeter o meu pedido. As estruturas do
Município da Vila do Moatize e do Governo Distrital funcionam no mesmo edifício. O
Governo Distrital era na porta ao lado. Depois de mudar o cabeçalho do requerimento
para endereçar a Governadora submeti-o à Secretaria do Governo Distrital. Dois dias
depois recebi uma ligação telefônica. Era o Sr. Reis, funcionário do governo distrital,
me informando da aprovação do pedido submetido. Imediatamente me dirigi para
Moatize.

- Assim que chegar lá te apresente primeiro à chefe da localidade e depois em


cada bairro que você for apresente-te aos chefes dos bairros antes de começar o teu

- 206 -
trabalho, se não vais ter dificuldades se saltares essas hierarquias. É importante seguir –
disse o Sr. Reis enquanto me entregava a credencial.

A recomendação do Sr. Reis se mostrou crucial durante o processo de pesquisa


em Cateme. Os chapas “Moatize-Cateme” partem do mercado de Moatize, que se
localiza a aproximadamente 200 metros da sede do governo local e ao lado do campo de
futebol de Moatize, construído pela multinacional brasileira no âmbito das ações ditas
de “responsabilidade social”. O trajeto Moatize-Cateme dura aproximadamente 40
minutos, de chapa. A placa “comunidade de Cateme” anunciava a nossa chegada.
Cateme é imenso, preenche toda paisagem até onde a vista alcança (vide mapa 10).

Mapa 10: Comunidade de Cateme vista de cima

Fonte: Elaborado por Santos Filho. M.H.N. ano de 2017

Ainda dentro do chapa vi, assim que entramos na comunidade, o posto policial,
desci e me dirigi ao local. O posto policial se localiza na estrada principal. Estando na
parte frontal é possível ver a escola secundária (destinada ao ensino médio) a escassos
metros de distância. Da área traseira, também a escassos metros, é visível a escola
- 207 -
primária (destinada ao ensino fundamental). Além dos edifícios onde funcionam as
salas de aulas e a estrutura executiva, as duas escolas contam também com residências
para os professores e outros membros da estrutura executiva. A presença de eucaliptos
(Eucalyptus globulus) e outras árvores nativas complementam a paisagem em ambas as
escolas e conferem uma característica única. A escassos metros de distância da escola
secundária localiza-se a “fazenda modelo”, projetada para auxiliar as populações de
Cateme no processo de produção agrícola e no desenvolvimento de projetos como de
criação de frangos, gado caprino e bovino. No início, a fazendo funcionou como se
fosse uma escola agrária onde se apreendia sobre agricultura, pecuária e conservação da
produção. Foram ministrados também, na fazenda modelo, cursos sobre associativismo
e poupança e crédito. Sr. R.C.C. Mithethe frequentou um desses cursos. “Eu acabei
apreendendo sobre isso de associativismo e isso foi uma das vantagens que tive da
fazenda. Formaram-se grupos de poupanças e credito em dinheiro. Há grupos que ainda
estão em funcionamento e outros que não estão mais em funcionamento ”.

Do lado esquerdo do posto policial, também a escassos metros, é visível a praça


destinada para homenagem, por exemplo, aos heróis nacionais em datas com um caráter
histórico nacional ou local e a tribuna de honra destinada, dentre diversas atribuições,
para comícios de diversas entidades locais, provinciais e nacionais em visita à
comunidade. Atrás da tribuna, localiza-se, também a escassos metros, a rádio
comunitária. Depois que desci, o chapa seguiu a estrada principal com destino ao
mercado de Cateme. É lá onde se localiza o terminal local. Casas, fontes públicas de
abastecimento de água e árvores nativas compõem a paisagem ao longo do trajeto. A
rua possui iluminação pública. Na verdade, era a única via com iluminação pública
quando o processo de deslocamento foi efetivado. Segundo narrativas da comunidade,
contrariando o que foi verbalmente acordado no que concerne à alocação de energia
elétrica em todas as casas, no momento em que o reassentamento foi efetivado somente
aquela via pública e as casas que se encontram ao longo dela possuíam energia elétrica.
Foram reassentados nas casas ao longo dessa via as famílias que já tinham energia
elétrica no seu local de origem.

A expansão da eletricidade para outras residências e vias públicas só foi possível


após constantes ações coletivas locais de reivindicação social. Cedendo às
reivindicações da comunidade, a Vale não só recomendou à Eletricidade de
Moçambique (EDM) a celebração de contratos de fornecimento de energia com os

- 208 -
restantes moradores como também, expandiu a iluminação pública para outras vias
públicas. Contudo um novo conflito emergiu entre a comunidade e a delegação distrital
da EDM, esta última, acusada de constantemente substituir os “pontos de
transformação” (PT) e candeeiros originais de iluminação pública implantadas pela
mineradora, por outros de qualidade duvidosa, o que tem afetado atualmente a qualidade
da energia. A consequência são quedas constantes de energia elétrica e problemas de
iluminação nas vias públicas. “Muitos postes já não acendem na noite”. Problemas esses
que não se verificavam (com atual frequência) antes dessas ações consideradas de
“vandalismo”, provocadas por uma entidade pública local.

A interferência de entidades do governo local nas “conquistas” da comunidade


se verifica em outros setores. A ambulância alocada pela empresa ao centro de saúde, no
âmbito das exigências da comunidade nas manifestações de 2013 (em que bloquearam a
linha férrea de transporte de carvão em reivindicação dos seus direitos e cumprimento
das promessas feitas ao longo do processo de reassentamento), foi transferido por ordem
do governo distrital para a unidade de saúde da vila, considerada de grande porte e com
maior demanda que o centro de saúde da comunidade. Localizado a escassos metros da
rua principal, o centro de saúde é, junto com as escolas, considerado pelos moradores de
Cateme como uma das coisas boas do novo lugar. Além dos edifícios onde funcionam
as áreas de triagem e consultórios, o mesmo conta também com uma maternidade e as
respectivas residências para os funcionários da saúde. Do centro de saúde é possível ver,
a escassos metros de distância, o campo de futebol, o centro comunitário e o mercado
local. O centro comunitário é também denominado “estaleiro” porque no processo de
construção do centro de reassentamento era naquele local onde eram armazenados os
diversos materiais de construção. Atualmente, dentre várias atividades, tem sido espaço
de encontros e reuniões entre as lideranças locais e os membros da comunidade.

O mercado local é composto por duas áreas. A área construída pela empresa que,
além do espaço dos boxes de venda, possui a área dos banheiros e um armazém. É
protegida por uma cerca metálica. A segunda é a área de expansão onde foram
construídas novas “bancas”, nome que se dá em Moçambique, a pequenas mercearias e
ou feirinhas, algumas de alvenaria e outras – e são em maior número – de material local.
Algumas dessa bancas pertencem aos “reassentados”, outras a novos moradores que se
deslocaram para Cateme em busca de novos campos de possibilidade de sobrevivência
cotidiana. De fato, as bancas com maiores volumes e diversidade de produtos não são de

- 209 -
“reassentados”, mas sim desses “novos moradores”. Ao redor do mercado verificam-se
também novas tipologias de residências, “estranhos” aos modelos de residências
construídas pela multinacional brasileira. É no mercado onde os chapas terminam o seu
trajeto Moatize-Cateme e retomam o trajeto Cateme-Moatize.

A paisagem habitacional da comunidade de Cateme fica completa com as


diversas casas dos reassentados divididas em quatro bairros: Chipanga, Mithethe,
Malábue e Bagamoyo. Os nomes dos bairros são inerentes a proveniência dos seus
moradores, ou seja, os moradores do Bairro Chipanga foram transferidos
compulsoriamente do Bairro Chipanga em Moatize-Sede para Cateme, assim
sucessivamente. As casas foram divididas pela empresa em cinco tipologias de A a E. A
tipologia A é composta por um quarto e uma sala. Tipologia B, dois quartos e uma sala
e uma varanda. Tipologia C é de 3 quartos uma sala e uma varanda. Tipologia D de 4
quartos uma sala e uma varanda. Tipologia E de cinco quartos uma sala e uma varanda.
A definição das tipologias foi mais impositiva do que consensual.

Quando viemos para ver os modelos ninguém realmente sabia qual a casa
seria sua. Só nos mostraram os modelos e disseram: as casas que vão viver
são desse modelo. A tipologia refere A é referente última cabana da zona
rural. Sugerimos que a última cabana fosse a tipologia B, mas não aceitaram
a nossa proposta (SR. R.C.C. MALÁBUE, 2016).

Embora as casas construídas pela multinacional brasileira estejam em maior


número, novas casas são visíveis nos quatro bairros da comunidade, algumas
construídas por “novos moradores”, outras pelos “reassentados” como casas principais
ou anexos das casas distribuídas pela Vale. Alguns moradores construíram pequenas
“bancas” no seu espaço de residência, onde vendem diversos produtos como arroz,
açúcar, cerveja, refrigerante etc. Foi numa dessas bancas que, por alguns instantes, parei
para tomar uma água gelada e refrigerante, para aliviar o intenso calor, enquanto me
dirigia para o mercado, ao sair do posto policial.

****

- Porque você optou em descer no posto policial – me perguntou João Romão Sineque,
enquanto tomávamos uma cerveja numa das “barracas”, nome que se atribui a alguns
pequenos bares, do mercado de Moatize.

- 210 -
Eu tinha acabado de lhe explicar como tinha sido o meu primeiro dia na
comunidade de Cateme. Engenheiro agrônomo de formação, Juas como carinhosamente
lhe chamo é filho de pai bitonga, natural do distrito de Maxixe, província de Inhambane
e mãe Mandau, natural de Buzi, província de Sofala. O pai do Juas é um dos cinco
filhos da Sra. Isabel Alfeu e o Sr. Augusto Gemo que são também meus avós paternos.
Viveu toda a sua infância e adolescência nas províncias de Sofala e Manica. Cresceu
falando regulamente Ndau e com menor frequência as línguas Shona, chiSena,
chiManhica, maBarue, chiuté e Nyungwe. Quando cheguei em Tete, Juas já lá se
encontrava realizando uma pesquisa do Ministério da Agricultura sobre segurança
alimentar. A pesquisa já estava na sua fase final, razão pela qual Juas foi meu
companheiro de pesquisa em Cateme e foi ele quem fez as traduções de Nyungwe para
português todas as vezes que foi necessário.

Desci com o propósito de procurar informação sobre a localização do posto


administrativo e a respetiva chefe da localidade – assim comecei a minha resposta ao
Juas. Fui recebido pelo chefe do posto policial que depois de conferir toda
documentação (a autorização dada pelo Governo Distrital, o documento identidade,
cartão de estudante, e declaração de vinculo institucional que levava em anexo) me
informou que Cateme, faz parte do posto administrativo de Kambulatsitsi, e a sede e a
respectiva residência da chefe do posto se localiza em Mualadzi, área de reassentamento
da Rio Tinto a aproximadamente 4 km de Cateme. Para chegar lá, me recomendou
pegar um moto taxi no mercado que me levaria e me traria de volta. Foi naquele
momento que o Sr. E.M.T. Chipanga, moto taxista, que estava no mesmo local me
ofereceu os seus serviços. O Sr. E.M.T. Chipanga, se tornara depois o meu “fiel moto
taxista” e companheiro de pesquisa me acompanhando em todos os locais em que a
moto era imprescindível para o acesso.

O deslocamento para Mualadzi durou aproximadamente 30 minutos. Foi naquele


momento que o Sr. E.M.T. Chipanga me contou da sua insatisfação, primeiro por ter
sido roubado uma quantidade significativa de milho e depois pelo fato de a polícia local
ter soltado os suspeitos que ele capturara sem que lhe dessem nenhuma informação.
Aquele caso, segundo ele não ficaria assim, chegaria ao nível distrital ou provincial para
o ver resolvido. A resolução pressupunha a recuperação do seu milho. No final desse
capítulo exploro um pouco mais sobre essa história do Sr. E.M.T. Chipanga. Para já
importa frisar, que quando chegamos a Mualadzi o posto administrativo estava fechado

- 211 -
e ninguém se encontrava na casa da chefe do posto da localidade. Após contato
telefônico do Sr. C. Mualadzi, que mora próximo do posto da localidade, a chefe nos
informou que se encontrava em Cateme, na zona da tribuna a acompanhar as atividades
de organização da visita do Governador da Província de Tete.

Sim, lá em Cateme que acabávamos de sair. De fato, estava lá. Chegando à


tribuna apresentei a credencial dada pelo governo distrital de Moatize. A Sra. Suzana
Marizana, chefe de localidade, concedeu um visto favorável, dando um pontapé de saída
para a realização da minha pesquisa de campo em Cateme. Recomendou-me, tal como o
Sr. Reis o fizera, a contatar antes os líderes de bairro. O Sr. E.M.T. Chipanga, meu fiel
moto taxista, mora no bairro Chipanga razão pela qual me levou para casa do Sr.
Matola. Líder do bairro desde 2015, o Sr. Matola tem 54 anos idade, casado com quatro
filhos (três meninas e um menino) vivia no “antigo Chipanga” desde 1981 quando
começou a trabalhar na Carbomoc (empresa que explorava as minas de carvão de
Moatize naquela época). Saiu da empresa na década 90 e desde lá a agricultura passou a
ser a base da sua reprodução social e econômica. Após conferir a minha documentação,
incluindo a autorização da chefe da localidade, o Sr. Matola falou que sempre que
alguém vai para lá fazer pesquisa na comunidade eles costumam marcar um encontro
entre o visitante e todas as lideranças do bairro para que ele apresente o seu objetivo, só
assim é que se decide sobre a autorização para pesquisar ou “vamos lhe pôr a correr”.

No meu caso ficava, segundo ele, mais fácil porque tinha autorização das
autoridades competentes. Recomendou-me a voltar à 7 horas do dia seguinte, pois eles
tinham uma reunião agendada com o engenheiro da Eletricidade de Moçambique
(EDM), com o propósito de discutir a questão da falta de iluminação pública e outros
vandalismos que vem sendo realizados pela EDM naquele local. A iluminação pública
foi uma conquista das populações perante o governo de Moatize e a empresa Vale.
Porém, segundo Sr. Matola, os agentes da EDM vêm permanentemente substituindo os
“pontos de transformação” instalados pela Vale, sem nenhuma explicação, o que resulta
em deficiências principalmente na iluminação pública.

O encontro estava marcado para o “Centro Comunitário de Cateme”, espaço


constantemente usado para encontro dos líderes com outros representantes da
comunidade, uma espécie de assembleia local. Quando cheguei ao Centro Comunitário,
no horário combinado, nenhum dos líderes se encontrava no local. Um dos responsáveis
pelo centro informou-me que o encontro tinha sido cancelado, porque a viatura que
- 212 -
levaria o engenheiro da EDM de Moatize à Cateme sofreu uma avaria e não teria como
chegar naquele dia. Em função disso decidiu-se pela remarcação da reunião. Expliquei
os motivos da minha presença naquele momento e imediatamente ele ligou para o líder
do bairro Mithethe, Sr. Pedro, falando da minha presença. O Sr. Pedro prontamente veio
ao meu encontro. Depois de conferir o documento de autorização do governo distrital
com o visto de confirmação da chefe da Sra. Suzana Marizana, chefe da localidade, bem
como a minha identidade, informou que já tinha conhecimento das minhas intenções,
mas que não podia sozinho autorizar o início do trabalho, sem um encontro com os
outros líderes dos bairros, incluindo, no âmbito da hierarquia local, os chefes das
unidades residenciais.

Aquele dia que encarara com muita expectativa estava caminhando aos poucos
para o fracasso. Concordei com a proposta e informei que era para isso que me
encontrava naquele dia e àquela hora. Admitiu a possibilidade de remarcar para o dia
seguinte, visto que nada podia fazer, pois tudo dependia da decisão que sairia do
encontro com as outras lideranças da comunidade. Ficou de fato para o dia seguinte. Se
aquele dia estava ruim para mim, para o Sr. E.M.T. Chipanga, era de alegria. Um dos
suspeitos de furto do seu milho já tinha, pela sua constante pressão aos órgãos policiais,
sido recapturado. Ele estava naquele momento a empreender diligências para recuperar
o milho. Não bastava para ele o suspeito ser preso, o que ele mais queria era recuperar o
seu milho. Fiquei sabendo que o suspeito não era um “reassentado”, mas fazia parte do
grupo de pessoas que, por conta própria, se instalou em Cateme, em busca de novos
campos de possibilidade para sobrevivência. Não conseguiu me dizer de onde ele vinha.
Posteriormente, fiquei sabendo que casos de furto eram frequentes na comunidade. Por
exemplo, os cabritos do Sr. P.A.S. Mithethe, que trouxera consigo do “antigo
Mithethe”, enquanto uns morreram por falta de pasto e água, outros foram furtados.
Diferentemente do Sr. E.M.T. Chipanga, o Sr. P.A.S. Mithethe, nunca encontrou os
suspeitos.

A avaliação dos objetivos da pesquisa e a decisão de autorização para o início


das atividades tiveram, no final, que ficar a cargo do Sr. Matola, líder do bairro
Chipanga, e do Sr. Pedro, líder do bairro Mithethe, depois de um encontro na casa do
segundo. Inicialmente, me encontrei com o Sr. Matola na sua residência no Bairro
Chipanga. Logo de imediato disse que tinha sido informado do adiamento do encontro
no centro comunitário: “Eu tinha mandado Ad., chefe da unidade, para me substituir,

- 213 -
mas ouvi que ele não foi, eu até lhe disse que assim não vou lhe confiar mais”. Naquele
dia, ele tinha estado na vila de Moatize, a irmã tivera naquela semana dois filhos
gêmeos, mas com complicações de saúde. Por isso foi saber de perto o que tinha
acontecido e dar o seu apoio.

Em minha presença, ligou para o Sr. Pedro, líder do bairro Mithethe,


informando que eu estava lá e que eles precisavam deliberar sobre a minha situação.
Combinou-se que podíamos nos deslocar para a casa do Sr. Pedro para que os dois, face
a impossibilidade de reunir todos os líderes, pudessem avaliar o meu pedido. O Sr.
Pedro já estava em frente à sua residência a nossa espera quando chegamos. Tal como o
Sr. Matola, ele também recebera uma casa da tipologia A. Um quarto e sala. Ele tem um
aviário construído para o negócio da avicultura que não deu certo. O negócio havia
entrado em falência em 2014. Sentamos na sombra da árvore que se localiza na parte
traseira da residência. Foi decido pelos dois líderes que eu podia começar naquele
momento a fazer a pesquisa e que eles criariam condições para a sua viabilização.
Segundo eles, indicariam, se fosse necessário, um membro de cada bairro para me
acompanhar para evitar qualquer hostilidade, pois tal como eles me segredaram, alguns
residentes andam agastados com as pessoas que vem sempre entrevistar, porque nada
muda.

Pude presenciar várias vezes essas resistências durante a pesquisa. De fato, em


face da difícil situação que vivem cotidianamente, existe aquele anseio de ver os seus
problemas imediatamente resolvidos, mudança essa que, diferentemente da rápida
velocidade dos seus anseios, vem andando lentamente. A impossibilidade de reunir
todos os membros das estruturas político organizativas da comunidade foi causada
principalmente pela preparação da visita do Governador da Província de Tete. Muitos
membros da estrutura hierárquica da comunidade estavam inseridos na coordenação de
grupos de trabalho. Após a aprovação, comecei com o trabalho de pesquisa que na
verdade já havia começado pelo “ver” durante o longo processo de aceitação. De fato, a
pesquisa se centrou em “ver” e “ouvir”, este último por meio de entrevista com os
membros da comunidade. Algumas entrevistas foram realizadas em grupo, outras, sendo
a maioria, de maneira individual, englobando de forma aleatória residentes dos 4 bairros
da comunidade. Durante a pesquisa, buscamos explorar informações sobre o anúncio da
chegada da Vale a Moatize, o processo de deslocamento compulsório e a realidade atual

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de vida cotidiana dessas populações compulsoriamente deslocadas para Cateme.
Durante o processo de pesquisa, enfrentamos alguma resistência de alguns moradores:

estamos cansados de tanto ser entrevistados sem ver nenhuma mudança nas
nossas vidas, sempre vem pessoas nos entrevistar, falamos, falamos e
falamos, mas nada muda. Continuamos na mesma situação; já estamos
cansados de falar.

Foi comum ouvir essas palavras durante a pesquisa de campo. No bairro


Chipanga, a resistência foi mais forte, porém em Mithethe, Bagamoyo e Malábue,
outros três bairros que compõem a divisão administrativa da comunidade de Cateme, a
abertura foi maior. Os moradores prontamente se abriam para contar as suas histórias.
Muitos viam no diálogo uma oportunidade de expressarem os seus sentimentos,
sentimentos mais de indignação do que otimismo, em função da nova realidade da vida
cotidiana.

Durante a pesquisa, participei a convite dos líderes dos bairros, das reuniões das
lideranças da comunidade, onde se debatiam os problemas enfrentados naquele espaço.
Observei as atividades de preparação da visita do governador da Província de Tete,
Paulo Auade. Foi uma atividade marcante. Era uma visita muito esperada na
comunidade. Por toda semana em que estive em Cateme, estavam sendo realizadas
atividades de limpeza, na tribuna, o que evidenciava que o governador faria um comício
com os moradores. As lideranças viam nesse evento uma oportunidade de apresentar
(nesse permanente processo de busca de soluções) os problemas atualmente enfrentados
na comunidade à liderança máxima da província. Assim, a população teria a
oportunidade de expor as suas preocupações de maneira direta. A expetativa era
generalizada, pelo menos todas as pessoas com as quais dialoguei esperavam ter uma
oportunidade de se pronunciar e de expor os seus problemas ao governante. Os líderes
dos bairros me segredaram que já tinham feito relatório com todas as preocupações e
iriam apresentar ao governador na tribuna. Mas havia também um receio: “vamos falar
tudo, mas eles costumam não nos dar a palavra, às vezes quando chegam costumam
falar e depois vão embora sem dizer nada. Foi assim que fez Cadmiel Muthemba54 ,
quando veio aqui” – disse o Sr. P.A.S. Mithethe. Aquela era para mim a oportunidade
de ver os moradores expressarem as suas preocupações na arena pública. A visita estava
marcada para 8 horas da manhã.

54Cadmiel Muthemba era na altura Ministro das Obras Públicas e Habitação de Moçambique.

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Às 7h eu e o Juas já nos encontrávamos no local, a tribuna estava preparada. Os
líderes dos bairros acordaram cedo naquele dia para organizar o local da tribuna para
que “tudo acorresse sem sobressaltos”. Quando cheguei, todos tinham ido para casa para
se arrumar “adequadamente” para o encontro e comício com o governador da Província.
Por volta das 07h16 a comitiva do governador chegou a Cateme e foi imediatamente à
Escola Secundária de Cateme. Em seguida, dirigiu-se à Escola Primária, que fica a
aproximadamente 200 metros da primeira. Fiquei sabendo posteriormente que na escola
primária o governador foi proceder a entrega oficial das novas carteiras para os alunos.
Nenhum morador, exceto os alunos da escola secundária, ainda se encontrava na praça
principal, espaço onde o dirigente é normalmente recebido, nem na tribuna, onde se
realizaria o comício. Depois da visita à escola, o governador saiu com a sua comitiva da
Comunidade de Cateme. Aguardei no local e depois ouvi palavras como: “ele fugiu...”
“...que falta de respeito...”. À medida que os moradores chegavam a indignação
aumentava.

O Sr. P.A.S. Mithethe olhou para mim e disse:

viste? É assim que eles nos tratam; não te falei. É de gente [educada] isso?...
Nós tínhamos o programa. O encontro com a população estava marcado para
8horas, mas agora são 7h35, ele já foi embora e nem disse nada. Você acha
que da próxima vez que eles vierem vão encontrar pessoas aqui mesmo.
Como, nós líderes, vamos explicar a população sobre isso? As pessoas
deixaram de fazer suas coisas para estar aqui na hora marcada e depois é isso
que acontece. Ele não queria falar conosco.

A indignação tomou conta de todos que chegavam à tribuna e eram informados


do sucedido. A frustração foi também visível nas senhoras que moram em áreas
circunvizinhas que chegavam para vender canas-de-açúcar durante o encontro. Enfim, a
visita que era considerada uma grande oportunidade para a exposição dos problemas
enfrentados na comunidade se tornou num autêntico fracasso, pelo menos para as
lideranças. A esperança deu lugar a indignação. Para a maioria dos interlocutores a
atuação do governador era o exemplo claro da forma como as autoridades
governamentais se relacionam com a comunidade.

- 216 -
6.1 “O que fazia lá não consigo fazer aqui”: de um lugar de diversas alternativas
de reprodução social e econômica para um lugar de alternativas limitadas

Dona R.E.T. Bagamoyo começou a morar no bairro Bagamoyo, arredores da vila


municipal de Moatize desde dos finais da década 90 depois do casamento, vindo do
distrito de Mutarara. É manyungwe, nome em que são identificadas as pessoas do grupo
étnico Nyungwe. O marido foi o primeiro a migrar, num processo típico de migração
camponesa semelhante ao analisado por Klaas Woortmann (1990) no seu estudo
etnográfico sobre os sitiantes ou camponeses do Sergipe nordeste do Brasil, bem como
por Sara Mercandalli (MERCANDALLI 2015; MERCANDALLI; ANSEEUW, 2014)
no sul de Moçambique respectivamente. Na sua pesquisa sobre as populações
camponesas da localidade Leonzoane, no distrito de Massinga, a escassos quilômetros
da Maxixe, cidade onde nasci e cresci, província de Inhambane, região sul de
Moçambique, Sara Mercandalli constata que a reprodução social das sociedades
camponesas do sul de Moçambique é extremamente dependente de atividades extra-
agrícolas com maior destaque para o processo de migração para o trabalho nas minas da
África do Sul (MERCANDALLI, 2015; MERCANDALLI; ANSEEUW, 2014). É
normal nas zonas rurais em Moçambique ouvir palavras como “i mu johnny johnny” (é
mineiro) ou a “nuna wa yena i mu johnny johnny” (o marido dela é um mineiro).
Apesar de johnny ser uma expressão que remete à Johanesburgo, principal e maior
cidade da África do Sul, não implica necessariamente uma localização territorial, mas
uma “categoria classificatória” (WOORTMANN, 1990) que nesse contexto identifica e
distingue o trabalhador das minas da África do sul de outras categorias sociais.

A relação entre migração para o trabalho nas minas da África do Sul e o


campesinato na região sul de Moçambique, se fundamenta, tal como destaca
Mercandalli (2015), no fato de que desde o período colonial as famílias rurais do sul de
Moçambique têm adaptado suas estratégias de reprodução social e econômica a um
sistema massivo de exportação de mão-de-obra entre a administração portuguesa e o
regime sul africano para a exploração do setor mineiro, uma política que foi retomada
no período pós-independência (1975), principalmente, com o fim da guerra fria em
Moçambique (1992) e do regime do apartheid na África do Sul (1994) - dois eventos
que foram determinantes no relançamento das relações entre os dois países. Ou seja, sul
de Moçambique transformou-se numa reserva de mão-de-obra para o capital mineiro na

- 217 -
África do Sul. Neste contexto, predomina nessa região a figura de “agricultor-mineiro”,
um sistema dual caraterizado pela correlação de atividades de migração e por atividade
agrícola de subsistência, (MERCANDALLI, 2015; MERCANDALLI; ANSEEUW,
2014).

O processo de migração provoca no âmbito das sociedades camponesas do sul


de Moçambique, uma divisão sexual de trabalho “homem-mulher”. Associando de certa
forma a agricultura a um trabalho de mulheres (MERCANDALLI, 2015). Na medida
em que elas se tornam na maioria dos casos o centro de processo de produção. O papel
determinante da mulher na atividade agrícola se fundamenta primeiro, no fato de a
migração para “África do Sul” ser um processo exclusivamente masculino e predomina
na maioria dos casos a migração do pai de família e ao qual se seguem os filhos
homens. Por ser na maioria dos casos a única fonte de ganhos monetários, os ganhos
obtidos no processo de migração determinam o sistema de acumulação diferenciado
entre as famílias campesinas e constitui uma das formas mais privilegiadas de ganhos
das sociedades camponesas (MERCANDALLI; ANSEEUW, 2014). É por essa razão
que ser mu johnny mu johnny habita no imaginário dos jovens das zonas rurais da região
sul de Moçambique. O processo de migração entre as sociedades do sul de Moçambique
está ligado também a um sistema tradicional de casamento e acesso à terra. Sendo uma
das principais fontes de ganho monetário, o dinheiro ganho pela migração serve, para o
pagamento do lobolo, nome que se dá naquela realidade sociocultural ao casamento
tradicional, e dos presentes para as autoridades tradicionais de linhagem como condição
para o acesso à terra e aos recursos da linhagem para a sua reprodução social e
econômica (MERCANDALLI, 2015). Diferente do Johnny como é típico no sul de
Moçambique desde o tempo colonial, G.M. Bagamoyo, marido da dona R.E.T.
Bagamoyo, migrou para a vila de Moatize em busca de novas possibilidades de
sobrevivência.

O meu marido saiu primeiro para Moatize a procura de fazer a vida e depois
voltou para me casar. Após o casamento voltamos juntos para morar cá
[bairro Bagamoyo na vila de Moatize]. Depois é que apareceu a Vale com
todas as suas promessas e nos tirou para aqui [Cateme]. Eu e meu marido
nunca fomos funcionários públicos . Sempre vivemos da machamba e de
negócios particulares. Além da agricultura eu também fazia negócios .
Sempre fiz negócios de venda de lenha e comprava tomate e outros produtos
agrícolas no distrito de Angônia para vender em Moatize. O meu marido é
oleiro. Produzia tijolos queimados. Mas aqui o negócio de tijolo não sai por
causa da falta de matéria prima e da distância para o mercado. Não há poder
de compra para o negócio andar. Com o dinheiro de indenização da segunda
machamba, construí esses quartos para alugar, mas não consigo clientes.

- 218 -
Estão todos vazios. Mandei fazer isso para ver se conseguia alguma renda,
mas não está dando certo. Não consigo clientes para alugar. Continuo
fazendo alguns negócios. Compro milho, este que você está ver aqui, em
Angônia e tento vender aqui no mercado. Costumo comprar também outros
produtos agrícolas em função da época, batata doce, tomate também, para
vender aqui no mercado. A machamba e esses produtos é que garantem
atualmente a nossa sobrevivência. No início eu e meu marido construímos
uma banca ali no mercado onde vendíamos produtos como açúcar, arroz,
óleo, mas encerramos por falta de clientes. Os produtos tinham pouca rotação
por falta de clientes. Esses negócios são necessários porque a machamba que
me deram não me permite um bom rendimento. Diferente de lá, as
machambas daqui não produzem bem; se a vale cumprisse com o que
prometeu-nos não estaríamos a viver nessas condições. A Vale deve cumprir
com o que nos prometeu. A Vale é que nos tirou de lá para aqui a
responsabilidade é dela (SR. R.E.T. BAGAMOYO, 2016).

Foi também o casamento que fez com que a Dona I. Chipanga fosse morar no
Bairro Chipanga. Manyungwe, mãe de oito filhos (dois já casados com família própria e
6 moram com ela), Dona I. Chipanga morava em Chipanga desde 1988. Nasceu em
Magoe e cresceu em Chitima, sede do Distrito de Cahora Bassa. Migrou para Moatize e
passou a morar no bairro Chipanga depois do casamento. “Meu marido era militar e foi
afeto na base militar de Moatize”. Anos posteriores C. Chipanga, seu marido, foi
desmobilizado e passou a se dedicar a negócios particulares.

Ele trabalha no mercado vendendo roupa. Tem uma banca lá [em Moatize]
onde vende roupa. Ele tem que ir lá porque é onde tem movimento de
pessoas e poder de compra aqui não tem nada disso. Todos os dias de manhã
viaja para a cidade fazer negócio e volta de tarde. Meu marido sempre
trabalhou com esse negócio, a diferença é que agora ele tem que pegar chapa
diariamente para lá e isso tem muitos custos. Eu particularmente trabalhei
sempre na machamba e produzia pombe55 . Continuo produzindo pombe, mas
os ganhos não são os mesmos porque aqui não tem movimento [poucos
consumidores]. Por isso aqui a vida é difícil.

A falta de alternativas à agricultura é na visão do Sr. F.P.D. Mithethe (2016),


morador do bairro Mithethe – nasceu e cresceu lá mesmo em Mithethe - uma das coisas
que torna a realidade atual de vida “cá” difícil em comparação com a vida “lá”. A
situação fica grave em momentos de falta de chuva (que são comuns em Cateme),
elemento natural imprescindível para o tipo de agricultura praticado na comunidade.

Para mim aqui é um bom lugar, porém tem pequenos problemas, esse ano
como não choveu estamos um pouco mal porque dependemos de colimar
[cultivar a terra] lá era nossa zona, tinha diversas alternativas. A lenha e a
produção de carvão complementavam a produção da machamba. Era próximo
da vila então eu produzia também carvão punha na bicicleta para vender na
vila, coisa que aqui é difícil fazer. Mesmo tendo lenha e fazer carvão para
levar vila é muito longe. Aqui a distância dificulta muita coisa. La em

55 Bebida alcoólica local produzida com base em Mapira (Sorghum bicolor) ou Milho (Zea mays).

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Mithethe para vila não era longe amarávamos os sacos na bicicleta e íamos
vender. Eles prometeram projetos, mas as pessoas estão aqui vadiando. Até
que houve espaço para trabalhar quando ainda estavam a construir aqui, mas
depois tudo mudou agora so estamos vadiando. Os jovens só ficam em casa.
Para mim nos deixar aqui não é problema, o problema são as condições de
sobrevivência. La nós fazíamos as coisas nossa maneira. Era nossa zona
conhecíamos tudo. Aqui não tem problema enquanto um espaço, mas
trabalho e serviço não tem aqui. Deixamos lá nossos projetos e nossa vida
para vir ficar aqui sem fazer quase nada. Por isso estamos a sofrer aqui. Eu
era oleiro e produzia carvão vegetal. Eles prometeram que aqui iam criar
condições para continuar com atividade, mas desde de 2009 até agora nada se
fez. Agora trabalho mais na machamba. Colimar estamos colimar, mas
carvão, tijolos lenha não tem como fazer para vender. La para ter machamba
era so pedir a outra pessoa, mas aqui é so comprar. É outra zona e tem outros
modos de fazer as coisas. Assim é so desenrascar para viver numa situação
que não fomos nós que criamos. Nós não viemos aqui por vontade própria
foram eles que nos obrigaram. Nos recusávamos nas reuniões vir para aqui.
Mas eles prometeram, prometeram e quando chegamos aqui nada. La a gente
vivia praticamente nos dois sitio Chipanga e Mithethe, tínhamos casa em
Chipanga e Mithethe. Os dois bairros eram muito pertos, Chipanga tinha
fontanária e rio que não acabava água. Não tinha problema de água que
temos aqui.

A água é um dos graves problemas enfrentados em Cateme. A empresa optou


por colocar fontes públicas nos quatro bairros, além de um sistema de canalização e
distribuição direta nas casas. Esse seria, segundo alguns interlocutores, um sistema mais
viável. As avarias constantes tornam o acesso a água muito limitado.

Atualmente faz se tanta bicha [fila] para ter acesso a água, ou temos que
cavar poços próximo do rio para ter acesso a água e poder fazer algumas
atividades. Neste momento em cada bairro s ó tem uma torneira que está
operacional, as outras estão avariadas. A pessoa tem que ir lá cedo tirar e
ficar todo dia com essa pouca água, para no fim do dia ir fazer outra grande
bicha. As vezes faz-se bicha no meio dia para so chegar a sua vez de cartar
água no fim de tarde (SR. R.P.B. CHIPANGA, 2016).

O frágil sistema de abastecimento de água vem afetando o processo de criação


de animais.

Alguns cabritos morreram por falta de água. Aqui quando viemos não tinha
cabrito, nos é que trouxemos o que faltou são as condições para criar” (SR. J.
P. CHIPANGA, 2016). Foi a falta de água, associado a prevalência de terra
impropria que fizeram com que o Sr. R.P.B. Chipanga (2016) não insistisse
na sua antiga atividade de oleiro. “Aqui não tem terra própria para fazer
tijolos, o terreno não permite a areia daqui não é própria. Tem também a falta
de água e tijolos requerem muita água. O acesso é muito limitado.

Para o Sr. P.A.S. Mithethe (2016), não há dúvidas que sair de “lá” para “aqui”
foi “um retrocesso e muitas coisas, embora lá tivéssemos casas de pau a pique aqui
temos de alvenaria apesar dos problemas que tem, mas quando vamos para outras coisas
a vida aqui ficou pior”. Continua ele,

por exemplo, eu trazia animais de lá de Mithethe, eu tinha quase 40 cabeças


de cabritos, mas quando cheguei aqui perdi tudo. Muitos deles morreram,

- 220 -
outros foram roubados. Voltei no zero. Assim não tenho nenhum animal so
tenho esses cães aqui [risos]. Aqui se rouba muito, não roubam so uma ou
duas cabeças roubam todo curral, ameaçam matar o pastor. Não sabemos
donde vêm os ladrões, mas acredito que muitos vêm da Vila e entram em
coordenação com alguns daqui. Por isso, vão especificamente para maiores
produtores. Este ano estamos mal, tentamos colimar, mas como faltou chuva,
quase toda minha produção secou. Essa imagem que estas a ver aqui na horta
é mesma coisa lá na machamba. Tudo secou. A grande diferença entre aqui
em Cateme e lá [Mithethe] é que em situações como essas que a produção na
machamba não dava o esperado, tínhamos outras alternativas, cortar lenha,
fazer carvão para vender na vila. Eu tinha esses animais que ia vender na vila.
Mas aqui isso é impossível fazer, primeiro, porque tal lenha não tem, nem
material para produção de carvão. Segundo, para quem tenta, o custo de
transporte dificulta muito as coisas. Como carregar carvão para vila, 38 km é
muito difícil. Aqui ninguém compra. No ano passado houve fome, mas
provocado pela chuva. Choveu muito e inundou quase tudo, este ano é a seca,
com essa seca a nossa situação ficou pior. A agricultura é a nossa base. La
onde nos saímos tínhamos nossas machambas que capinávamos mapira e
milho, mas quando viemos aqui deram so uma machamba por cada família, a
outra deram em dinheiro. Foram 119 mil. Mas para dar esse dinheiro foi
grande confusão. Cada machamba que deram tem 1 hectare. Isso para dizer
que cada família tem um hectare. Para aumentar o espaço de produção eu
dividi esse meu quintal para fazer horta aqui. Esse meu quintal mede 80/45.
Na verdade todas as casas têm quintal dessa dimensão. Então aproveito esse
espaço para produzir alguma coisa também.

A existência “lá” de diversas alternativas, viabilizadas pela existência de “muitos


recursos” (pelo menos em comparação com Cateme) permitiam a Sra. F. C. Mithethe
(2016), superar situações de crises. Que segundo ela são situações em que a produção na
machamba era por diversas razões afetada e não alcançava os resultados esperados.

Aqui vivo uma situação de sofrimento, como já perdi meu marido a situação
fica pior. La pelo menos tinham muitos recursos que nos ajudavam a superar
situações de crise. Se a empresa pelo menos um dia falar para a gente voltar
as nossas terras, eu sou uma das pessoas que voltaria sem nenhum receio,
porque lá estava a viver melhor.

A localização privilegiada nas margens do rio Revúboe tornava a produção


agrícola em Malábue muito mais produtiva em comparação com as machambas
distribuídas em Cateme. Tal como destaca Sr. R.C.C. Malábue (2016),

para parte de agricultura não tínhamos problemas estávamos à beira do rio.


Por estar à beira do rio, todas as épocas conseguíamos produzir verduras sem
problemas. Fazíamos a pesca. Para além da pesca fazíamos esteiras e
vendíamos em Moatize. Era uma distância de pelo menos 10 km para a vila
de Moatize Eu sempre vivi de agricultura, tinha machamba onde produzia as
verduras. Mas também praticava a pesca. Mas aqui está difícil porque não
existe a cultura de segunda época, so primeira época. Enquanto lá era todo
ano. Mas aqui não. A minha população não sabia o que aqui vieram
apreender e são obrigados a aprender como secar as culturas para poder
aguentar até outra época. La não acontecia era tudo fresco. Peixe era fresco
comprado ou pescado direto pela pessoa no rio .

- 221 -
Embora a empresa tenha prometido levar em conta essa localização privilegiada
no rio Revúboe, como critério na distribuição das machambas, na prática não se
efetivou. A maioria das pessoas do bairro Malábue receberam machambas em áreas
com um solo impróprio para produção agrícola. “Áreas cheias de pedras”. Esse foi o
caso da Sra. F.C. Malábue. Algumas poucas pessoas como é o caso do senhor P.C.
Malábue, que recebeu machambas em melhores condições em comparação com a
maioria dos “reassentados”, convivem cotidianamente com o dilema de ser arrancado ou
não pelos “nativos”.

Minha machamba era 75% bom e 25% mau, tem muitos que receberam em
áreas 100% pedra. Tem um [nativo] que vinha aqui dizer que quer sua
machamba porque não foi indenizado pela Vale. Eu disse para ele que já
passava muito tempo desde que recebi aquela machamba em 2010. Mandei-o
ir ter com a Vale. E esses dias não tem vindo.

De fato, Cateme não era uma zona desabitada. Dados históricos indicam que era
um aldeamento colonial. Não foi transformado em aldeia comunal, tal como aconteceu
com alguns aldeamentos coloniais de Moatize, no âmbito da política socialista de
modernização rural (vide capítulo 03). Nesse processo, logicamente que uma parte da
população pode ter se dispersado de volta as suas terras ancestrais ou em busca de viver
a vida do seu modo em outros locais escolhidos ao seu próprio critério. Porém, a área
continuou sendo uma área habitada.

Há pessoas que já viviam aqui antes de nós chegarmos. Lá em frente, na


entrada da comunidade dá para ver essas pessoas. O que acompanhei é que a
Vale prometeu que ia lhes dar os mesmos direitos dos reassentados. O acordo
previa que eles deviam dividir as machambas conosco. Das 45 famílias a vale
so contemplou 21 e daí começou a confusão. As pessoas que receberam
foram espalhadas nos quatro bairros de forma aleatória. Então aqueles que
não foram contemplados se sentiram traídos e arrancaram as machambas de
volta. O problema até agora não está resolvido. Já fizemos carta para o
governo e o processo ainda está em andamento. A chefe da localidade, do
posto administrativo e a administradora já deram visto no documento (SR.
P.A.S. MITHETHE, 2016).
Para o Sr. J.P. Chipanga (2016), não se pode responsabilizar os nativos por
levarem as machambas de volta, mas à empresa que descumpriu os acordos feitos.

Tudo que a empresa prometeu a eles não comprou também tal como fez
conosco. Tinham dito que iam lhe dar casas, mas depois não deram então eles
levaram machambas deles de volta. Foi nesse contexto que eles arrancaram
as machambas que tinham aceitado ceder para os reassentados.

A omissão do governo é para o Sr. M.A.Z. Bagamoyo (2016) a causa dos


diversos problemas que afetam a vida cotidiana em Cateme.

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Você chegava na minha casa dizia sim senhor é casa do Senhor M.A.Z, mas
olha para isto. Viver nessa situação me deixa indignado. O governo deveria
ser a primeira pessoa as nos defender o que não acontece. Esses da empresa
são de fora que estão a vir explorar aqui. Nós somos daqui mesmo. Além de
nos deixarem limpos e desenvolvidos esses estão a nos deixar pobres. Muitas
coisas que eu tinha cumulado estão a acabar por vender. Quando a gent e
reivindica eles so sabem trazer armas. Olha bem nessas casas , vais ver que
casas de banho e latrinas estão sem chapas [de cobertura], as pessoas estão a
tirar para vender, para comprar comida e outras coisas. Vieram nos deitar
aqui como se fossemos lixo, enquanto somos humanos tínhamos nossos
bens e nossas próprias condições de vida lá nas nossas casas onde nos
tiraram. Estão a nos tratar como se fossemos refugiados. Nós não somos
refugiados somos donos dessa província. Um estrangeiro vem explorar
aqui e enriquecer lá no país dele e nos ficarmos pobres assim como
estamos. Faz-se isso? Muitos de nós aqui não temos emprego, por isso está
cheio de gente que não faz nada e de ladrões. A primeira reivindicação que
fizemos foi sobre as machambas que se localizam na sua maioria em
locais com pedras e sem condições adequadas para a produção. Como
reivindicamos e não nos davam a mínima decidimos bloquear a linha
férrea. Não destruímos só bloqueamos para não passar comboio. Era uma
forma de lhes chamar para nos ouvirem. Enviaram seis policias e viram que
era muita gente. Ligaram para a província dizendo que era muita gente. O
governo provincial enviou a uma unidade de intervenção rápida. A força de
intervenção chegou batendo todo mundo indiscriminadamente. Pegaram um
professor de inglês que nem estava lá na manifestação estava em sua casa,
amararam bateram-lhe e levaram para o comando lá no distrito. Mas essa
reivindicação estávamos a falhar mesmo? Se eles não queriam nos ouvir.
Chegamos a aquela ação porque não nos ouviam, nos ignoravam quando
dizíamos que aqui as coisas não estão bem. Ninguém veio para aqui por
vontade própria, foi a empresa em coordenação com o governo que nos
trouxe aqui. Mas eles mandam militares para nos violentar. O que custa
eles virem fazer uma reunião com a população e ouvir as nossas
reivindicações. A gente manda cartas para o governo sobre nossas
preocupações não responde nada. Alguns que vão lá reivindicar são detidos
logo, para intimidar os outros a não se atreverem a fazer isso. Porque o
governo não pressiona. Porque continua ignorando as promessas feitas pela
empresa? Cada vez mais aqui estamos a ficar pobres do que lá onde
estávamos a viver. A minha casa lá era melhor que essa casa aqui. Essa
minha é morfologia C. La eu era oleiro, fabricava tijolos e vendia. Muitos de
Bagamoyo tinham seus projetos de olaria. Aqui mesmo eu continuar com
esse projeto quem vai comprar. Nem carvão nem tijolos, nem lenha. Eu
continuo fazendo, mas desde de 2015 até hoje está aí todo tijolo ninguém está
comprar. As pessoas não vão sair da vila para comprar aqui se podem
comprar lá mesmo. Os custos para levar daqui para lá são altos. Na
machamba a produção está sempre abaixo do esperado, este ano a situação
agravou-se pela seca. Com os 119 mil meticais que nos deram de indenização
da segunda machamba mandei instalar energia elétrica e comprei algun s
eletrodomésticos e mobiliário para casa. Mas com essa seca algumas coisas
estou a vender de novo, para comprar comida e alguns materiais paras as
crianças irem à escola. As pessoas vendem congelador a dois mil que
compraram a cinco e seis [meticais]. Estou a empobrecer” (SR. M.A.Z.
BAGAMOYO, 2016, grifos nossos).

****

- 223 -
A chegada da Vale em Moatize, não só marca uma nova fase na exploração das
consideradas ricas minas de carvão mineral de Moatize, como também, inaugura um
novo período e nova história na vida cotidiana das populações que viviam no bairro
Chipanga, Mithethe, Bagamoyo e Malábue, arredores da vila de Moatize bem como na
vida das diversas famílias que ainda vivem desde os tempos imemoriais ou datados nos
arredores da área concessionada.

No caso das populações de Cateme o deslocamento compulsório provocou, tal


como demonstram essas narrativas, transformações significativas nos seus modos de
viver, habitar e produzir afetando diretamente as bases de sua reprodução
socioeconômica. Está presente nas narrativas uma distinção entre o “aqui” e “lá”, nos
moldes da distinção entre o “hoje” e o “antigamente” constatado pela antropóloga Sônia
Barbosa Magalhães (2002) em um estudo sobre os efeitos sociais dos deslocamentos
compulsórios provocados pela construção da Barragem Hidrelétrica de Tucuruí no rio
Tocantins, no Estado do Pará, Brasil56 . No estudo a autora busca analisar de que modo
os camponeses (com trajetórias vida distintas) mas, que habitavam as margens de
Estrada de Ferro Tocantins que ligava as localidades de Tucuruí e Jatobal e que foram
compulsoriamente deslocados com o alagamento provocado pela construção da Usina
Hidrelétrica de Tucuruí, reconstroem o passado. Magalhães destaca a existência de uma
interferência do hoje na reconstrução narrativa desse passado. O hoje diz, naquele
contexto, “respeito à situação atual vivenciada e tem como marco inicial ‘a construção
da barragem” (p. 236). O hoje se contrapõe ao “antigamente” que na visão daqueles
camponeses diz respeito ao tempo de levantamento que culminou com os
deslocamentos compulsórios. “Da perspectiva dos camponeses é no ‘tempo de
levantamento’, pois que se inicia a construção da barragem; e é a partir do “tempo de
levantamento” que tudo começa a se transformar e se inicia a constituição do ‘hoje” (p.

56 Existetambém uma certa proximidade entre os efeitos sociais provocados pela construção de pelas
barragens de usinas hidrelétricas e os projetos mineralógicos: os deslocamentos compulsórios, a
desestruturação das lógicas de vivências das diversas populações atingidas, os sofrimentos sociais tem
sido uma das características comum entre ambos. Uma análise comparativa entre o caso de Tucuruí
estudado justamente pela Magalhães (2002; 2007); de Kariba na Zâmbia estudado por Colson (1971); de
Cahora Bassa em Moçambique (ISAACMAN; ISAACMAN, 2013) e recentemente de Belo Monte
(MAGALHÃES; CARNEIRO DA CUNHA, 2017), por um lado e os diversas análises sobre os efeitos da
mineração no Brasil com destaque para o livro “Mineração: violências e resistências: um campo aberto à
produção de conhecimento no Brasil” (ZHOURI, 2018), bem como em Moçambique – ver, por exemplo:
os relatórios da Human Rights Watch “O que é uma casa sem comida? O boom da mineração de carvão e
o reassentamento (2013); da Sekelekani “A minha voz - narração de sofrimento de comunidades
reassentadas em Tete” (MÁRIO, 2015), bem como da OXFAM “Mineração, reassentamento e meios de
vida perdidos: ouvindo as vozes das comunidades reassentadas em Mualadzi, Moçambique”
(LILLYWHITE; KEMP; STURMAN, 2015) - por outro, atesta essa proximidade.

- 224 -
237). Ainda segundo a autora, este antigamente é relatado a partir de trajetórias distintas
e de marcos temporais variados, ou seja, não pode ser visto de forma essencialista e
homogênea, porem apresenta um marco sociológico único que é o tempo da “terra
livre”. Para Magalhães, esse tempo de terra livre diz respeito a um contexto onde,
conforme os seus relatos, “as terras estavam disponíveis e qualquer um podia chegar
fazer a sua roça, plantar em seu sitio e se tornar morador como efetivamente quase todos
fizeram, desde a década de 30 até os anos 70” (p. 238). Neste contexto conclui a autora
que é a partir do “suposto [tempo] da terra livre que [esses camponeses] sentem, vivem
e explicitam como a construção da barragem transformou as suas vidas” (p. 241, grifos
da autora).

No contexto do Cateme o “aqui” remete também ao tempo presente, ao “hoje” e


é tal como no caso estudado por Magalhães (2002), sempre narrado e interpretado em
oposição ao “lá”, o “antigamente”. É espacial e temporal. Há, nessas narrativas, duas
fases: a vida antes da chegada dos grandes projetos, portanto, antes do deslocamento
compulsório, e a vida depois da chegada dos megaprojetos, ou seja, depois do
deslocamento para a Comunidade de Cateme. Isso evidencia certa ruptura, que o seu
grau varia em função de cada dimensão (social, econômica e cultural).

“Como a Vale ainda não começou a explorar lá [Malábue], saindo daqui posso
vos indicar onde foi enterrado o meu cordão umbilical” (SRA. F.C. MALÁBUE, 2016).
No contexto sociocultural, por exemplo, a relação efetiva com o lugar, cujo significado
varia em função da trajetória de cada família, e a ruptura com esses espaços de
significância simbólica (tal como esse destacado pela senhora F.C. Malábue) tem sido a
mais sentida.

No contexto socioeconômico o hoje é visto como espaço de alternativas


limitadas de sobrevivência, e sendo tal espaço de “vida dependente” (essa dependência
é inerente também à expetativa criada pelos discursos de melhoria de vida da empresa e
do governo moçambicano) em relação ao antigamente, ou “antigo lugar”, visto como
espaço de “diversas alternativas” de sobrevivência ou espaço de “vida independente”.
Essas “diversas alternativas” não eram homogêneas. Elas variavam em função da
trajetória de cada família e da paisagem ecológica de cada bairro. Em Malábue que se
localiza nas margens do rio Revúboe, além da machamba, produzia-se esteiras e
praticava-se a pesca. Em Mithethe as populações se dedicavam também a produção de
carvão vegetal e corte de lenha. Em Chipanga e Bagamoyo a olaria era uma das
- 225 -
atividades mais praticadas além da machamba, por possuir terra própria para a produção
de tijolos. Essas atividades se complementavam a outras como ser vendedor ou
trabalhador formal. O essencial das “diversas alternativas” é que diferente de “cá” (em
Cateme), permitiam superar as situações de crise: as situações de crise são naquele
contexto, situações em que a produção na machamba, principal atividade na reprodução
socioeconômica, não alcançava a produção previamente planejada.

Embora a produção na machamba seja determinante não significa que as


populações deslocadas para Cateme fossem totalmente e exclusivamente dependentes
dela. Ou seja, não eram conforme demostram as narrativas acimas, exclusivamente,
dependentes da agricultura, de modo que apenas a machamba permitiria a elas seguir
tranquilamente as suas vidas. Advogamos que foi essa racionalidade que prevaleceu na
empresa e nos atores governamentais. “vamos dar casa de cimento, machamba e
assessorar na agricultura e projetos de pecuária que é suficiente para seguirem sua vida
em outro lugar”. Mesmo se fossem populações camponesas essa visão se mostraria
equivocada como mostra a vasta literatura sobre as sociedades camponesas. No caso de
Cateme, o equívoco se tornou mais problemático, pois aquelas populações integravam,
tal como demostram as narrativas acima, uma pluralidade de atividades para sua
reprodução social e econômica e não somente a produção da machamba. Embora haja
casos em que toda família se encontrava integrado no processo de produção na
machamba. Em um número significativo de famílias essa era uma atividade em que a
mulher e as crianças ocupavam um papel determinante. Enquanto a mulher e as crianças
menores se dedicavam (e ainda se dedicam na machamba), a marido trabalhava em
outras atividades como olaria, pesca, pedreiro, carpinteiro, sapateiro, vendedor no
mercado, dentre outros, e ocasionalmente se dedicavam na produção da machamba
(normalmente em períodos da sementeira e da colheita). Muitos homens, por exemplo,
trabalharam no processo de instalação da mina na própria Vale e nas diversas empresas
subsidiarias incluindo na Ceta e Odebrecht, encarregadas de construir e reabilitar,
respectivamente, as casas de Cateme e hoje se identificam como desempregados. Nesse
período, as mulheres é que cuidavam da machamba. Embora haja casos como a do Sr.
J.P. Chipanga (2016), que pelos fracos ganhos, que não compensavam o investimento
que fazia, deixou de ser carpinteiro - “tentei continuar a trabalhar com carpintaria, mas
não está a dar. Então estou focado na agricultura”.

- 226 -
Essa divisão sexual do trabalho ainda continua atualmente, com alguns homens
assumindo tarefas de motoqueiros como é o caso da família de Sr. E.M.T. Chipanga ou
vendedor do mercado, como é o caso do marido da Sra. R.E.T. Bagamoyo. De fato, são
as mulheres que assumem um papel preponderante nos trabalhos na machamba. Essas e
outras complexidades de relações de atividades poderiam claramente ter sido detectados
se, tal como destacam Osório e Cruz e Silva (2017) estudos socioantropológicos
tivessem sido desenvolvidos.

A ruptura é também em função das promessas feitas, mas não cumpridas.


Segundo as narrativas das pessoas deslocadas para Cateme, as promessas variavam
desde casas melhoradas e mobiladas, currais com animais para criação, projetos de
produção, escola, hospital, água, à indenização pela transferência; prioridade no
emprego à auxilio em alimentação e insumos agrícolas durantes cinco anos, conforme
mencionado.

O nível de cumprimento das promessas foi extremamente baixo. O que pode


levar à conclusão de que não havia uma preocupação com o destino das pessoas e a
continuidade integral das suas lógicas de produção, organização e reprodução social e
econômica, mas com a sua saída do local para dinamizar a exploração do carvão e
multiplicação do capital. Isso justifica não somente os constantes lamentos, como
também o processo de mobilização social57 para garantia dos seus diretos, com
resultados incipientemente visíveis como, por exemplo, a eletrificação das vias públicas
e das residências, a reabilitação das casas, a ampliação do sistema de abastecimento de
água, e outros. De fato, a mobilização é a arma dos dominados para tentar impor suas
visões sobre o mundo. “Os dominantes existem sempre, ao passo que os dominados só
existem quando se mobilizam ou se munem de instrumentos de representação”
(BOURDIEU, 2004, p. 189).

57 Paraum abordagem teórica e conceitual sobre mobilização social ou coletiva, ação coletiva e protestos
sociais, sua complexidade e mecanismos gerais de sua configuração ver: Daniel Cefai (2009; 2017a;
2017b) e Mutzenberg (2015). Este último tem a particularidade de explorar as especificidades de ações
coletivas e movimentos sociais em África. O importante a reter em termos teóricos e c onceituais é que a
mobilização social ou coletiva “emerge quando os membros de coletividade se sentindo atingidos, direta
ou indiretamente, por um “distúrbio” em que são confrontados, definem-no como uma situação
problemática e resolvem passar a ação” (CEFAI, 2017a, p. 190). O protesto social é uma forma de ação
coletiva e momento de visibilidade de um movimento social (MUTZENBERG, 2015). As mobilizações e
os protestos sociais são um processo de indagação e revolta, mas também “de se envolver em processos
de ação conjunta e de julgamentos político e construir, na pluralidade e conflitualidade, um mundo
comum” (CEFAI, 2017b; p. 141). Outro conceito importante a reter no âmbito desse debate é o de “arena
publica” enquanto “campos de experiencia coletiva”. Para isso ver: Daniel Cefai (2002; 2017a; 2017b).

- 227 -
Um dos confrontos marcantes aconteceu em 2013 quando a comunidade de
Cateme, reivindicando o cumprimento das diversas promessas feitas (acesso à água,
terra fértil, energia, indenização, bens coletivos de transporte, saúde, educação etc.),
bloqueou a linha férrea de transporte de carvão que passa a escassos metros da
comunidade de Cateme numa ação violentamente reprimida pela polícia, o que reforça a
prevalência de uma lógica intimidatória na relação entre o governo e a empresa, de um
lado, e as comunidades afetadas, por outro.

Naquela manifestação levamos muita porrada com a FIR [Força de


Intervenção Rápida, grupo de elite da Polícia da República de Moçambique],
mas conseguimos alcançar alguns objetivos. Colocaram energia nas casas,
coisas que so tinha lá na avenida principal, aumentaram os furos de água nos
bairros, asfaltaram a estrada de acesso aqui na comunidade. Mas a questão de
emprego ainda não encontramos nada (SR. P.A.S. MITHETHE, 2016).

Para o Sr. D.B.X. Chipanga (2016), a violência policial é injustificável e


incompreensível pois,

nunca fizemos manifestação sem dar comunicação à empresa, ao governo


distrital, aos postos policiais. Só que prontos, nosso governo sempre é assim,
nunca vai aceitar, mesmo que levemos tudo dentro das normas [legais] eles
sempre procuram forma de intimidar as pessoas, o problema do nosso
governo é esse. As nossas manifestações não são contra o governo, mas sim
contra [as ações da] empresa, mas eles chegam com armas e começam a bater
pessoas.

As ações coletivas de reivindicação social em Cateme continuam, pois, os


resultados têm sido incipientes. É comum ouvir palavras como “...a nossa situação é
essa mesma e nada muda, parece que estamos num campo de refugiados...”. A constante
fuga de responsabilidade por parte do governo distrital e a mineradora Vale, sendo que a
Vale remete a solução das demandas das comunidades atingidas ao governo distrital e o
governo, por sua vez, remete à mineradora e vice-versa, reforça o sentimento de
abandono. Abandono esse que é mais imputado ao governo distrital, primeiro porque,
na visão de alguns interlocutores, como um “pai” devia interceder por “seus filhos”;
segundo porque “o governo na verdade é que teve a maior força para nos tirar de lá”
(SRA. A.P.F. MITHETHE, 2016).

Para o Sr. F.P.D. Mithethe (2016) o governo tem uma grande responsabilidade
na difícil situação atual de vida em Cateme, porque devia ser ele a exigir da empresa o
cumprimento das suas obrigações.

Mas nada disso fazem. Eles defendem a empresa contra nós. Eles podiam
exigir a empresa para cumprir com as promessas feitas. Mas nada fazem. O
governo é culpado por estarem a nos maltratar. Por que estão a defender a
empresa contra nós? Porque estão a comer as nossas custas. Nós não

- 228 -
queríamos vir para aqui. Se tivessem nos deixado lá, não podíamos chatear
ninguém, nem governo, nem a empresa, porque nós vivíamos à nossa
maneira. Mandaram-nos para aqui e não cumprem nada do que prometeram,
eles estão lá na cidade, lá em Maputo e nos aqui a sofrermos. Podiam comer
muito, mas nos dar um pouco também. Meu sentimento é de indignação.
Deviam dar-nos alguma coisa do que prometeram. Só estavam as nos
namorar só. Por isso falaram muita coisa. E diziam que vão fazer isso e
aquilo e quando chegamos aqui não vimos nada disso .

A carta enviada para o governo distrital e ONGs denunciando a violação dos


seus direitos; a solicitação de encontro com órgãos governamentais para expor os
problemas da comunidade; o acampamento nas instalações do governo distrital e o
bloqueio, em situações mais extremas, da linha férrea de transporte de carvão mineral
que passa, por exemplo, a escassos metros da comunidade de Cateme, são algumas das
ações coletivas de reivindicação desenvolvidas. O antagonismo entre o prometido e o
cumprido continua no centro das ações coletivas de reivindicação e mobilização social.
As demandas ainda centram-se na questão da canalização da água para as residências;
emprego prometido; os problemas de infiltração e rachaduras nas casas, as quais mesmo
após a primeira intervenção da empresa continuam visíveis; as machambas para um
número de 43 famílias que após terem recebido o primeiro hectare de terra para
agricultura, foram arrancadas pelos nativos devido a negociação mal concluída com a
empresa mineradora e o governo distrital; a situação dos oleiros que ainda reclamam a
indenização prometida devido a destruição dos seus fornos e o fechamento da área de
produção no âmbito da instalação do projeto; o destino dos 2.75% das receitas geradas
pela exploração mineira e petroleira que por lei são canalizadas para o
“desenvolvimento das comunidades” das áreas onde se localizam os projetos. Na visão
de alguns interlocutores, esse valor devia ser usado para melhoria das condições de
infraestrutura “aqui” fato que não vem se verificando58 . “... não queremos o dinheiro só
para nós, mas, pode se usar primeiro esse dinheiro para resolver os nossos problemas e
depois se pode usar para outros planos do governo distrital...” (SR. D.B.X.
CHIPANGA, 2016).

A chegada da Vale provocou rupturas, embora numa intensidade diferenciada,


na trajetória de vida cotidiana de outras populações da área. Do início de novembro à

58 Noano de 2015 foram destinados no âmbito do orçamento geral do estado 3 258 740 000.00 Meticais
(MT) via governo distrital para a comunidade de Cateme. Para todo o distrito de Moatize foram 10 878
750 000. 00MT que além da comunidade de Cateme deviam ser canalizados para as comunidades de 25
de setembro, Chipanga II e Benga. Essas duas áreas de reassentamento do projeto de Benga atualmente
operado por um consórcio de empresas Indianas denominada International Coal Ventures Private Limited
(ICVL).

- 229 -
finais de dezembro de 2017 realizei uma segunda fase de pesquisa de campo em
Moatize. Diferentemente da primeira fase da pesquisa (realizada no primeiro trimestre
de 2016) onde o foco foram as populações expropriadas ou compulsoriamente
deslocadas das suas áreas ancestrais de ocupação imemorial ou datada e “reassentadas”
em Cateme, nessa segunda fase estendi o meu olhar para outras populações atingidas,
concretamente, as populações “remanescentes” do bairro Bagamoyo e da comunidade
de Catete, que têm em comum o fato de viverem e produzirem nos arredores da área
concessionada ao projeto de mineração da Vale. Priorizando, tal como na primeira fase,
uma forma artesanal de fazer pesquisa inspirada em Wright Mills (1975) e José de
Souza Martins (2014) ao longo do trabalho campo busquei também mergulhar, através
das narrativas e da observação, nas dinâmicas atuais da vida cotidiana dessas
populações atingidas.

O bairro de Bagamoyo, um dos quatros bairros compulsoriamente deslocados


pela Vale, não foi contemplado na sua totalidade. Somente os que moravam dentro da
área concessionada. Área essa que se encontra atualmente protegida e bloqueada ao
acesso por uma cerca metálica. Localizado na área municipal, os moradores do bairro
Bagamoyo, apresentam características socio antropológicas urbanas e semiurbanas,
praticam uma pluralidade de atividades formais incluindo a produção de tijolos. De fato,
um número significativo dos moradores atuais do bairro são oleiros que viram sua
atividade ameaçada com a chegada da empresa à Moatize e atualmente com a colocação
da cerca que separa a área concessionada do bairro. Pois, é justamente dentro da cerca
que os oleiros remanescentes do bairro Bagamoyo tinham os seus fornos e praticavam a
atividade de produção de tijolos. Dentro da cerca a terra é de melhor qualidade - dizem
eles. A cerca metálica colocada pela empresa impede o acesso a esse material. Um
grande obstáculo para quem dependia da produção de tijolos para a sua reprodução
social e econômica. A paisagem habitacional, não só do bairro Bagamoyo, mas também
da vila e do distrito de Moatize evidencia a importância dos tijolos na tecnologia de
construção civil local. É raro de fato encontrar uma casa feita de bloco de cimento, um
dos principais materiais na tecnologia de construção civil convencional em algumas
regiões de sul do país.

O Sr. C.O. Bagamoyo-Vila, integrante do movimento local de reivindicação em


defesa dos direitos dos oleiros, ainda tentou continuar com a produção de tijolos, mas
sem nenhum sucesso devido à baixa qualidade da terra que se encontra fora da cerca.

- 230 -
Optei em desistir. Agora, como você viu lá em casa, me dedico a produção de
galinhas. Essa terra daqui de fora da cerca não tem qualidade. Alguns ainda
tentam continuar. Antes de ter a cerca entravamos para tirar terra lá dentro,
mas agora não temos como entrar.

No processo da sua instalação a empresa prometeu indenizar todos os moradores


que tinham os seus fornos de produção dentro da área concessionada. A indenização
incluiria os oleiros compulsoriamente deslocados e os remanescentes do bairro que
desenvolviam a sua produção na área concessionada. Neste contexto, realizou um
conjunto de registro e levantamentos de dados sobre a identificação dos produtores e
incluíam o número de fornos que cada produtor possuía, o número de tijolos que
possuía na hora e o número de trabalhadores. Segundo o Sr. C.O. Bagamoyo-Vila,

todos que estão nessa área arredor [a escassos metros da cerca metálica
colocada pela empresa] são ou eram oleiros. Tem famílias que todas suas
gerações foram oleiras. Faziam essas atividades, que aprenderam do seu pai,
que por sua vez aprendeu do seu avô, assim em diante. Tem oleiros que
funcionavam como uma empresa. Tinham trabalhadores e vários fornos.

Neste contexto, a mensagem deixada pela empresa foi de que a indenização seria
resultado dos cálculos a serem feitos com os dados coletados, fato que segundo ele não
se verificou.

Eles disseram que a indenização ia ser feita a partir desses cálculos. Não
chegaram a dizer como exatamente seria o cálculo. Como a indenização não é
feita de forma aleatória, nós mesmo começamos a fazer nossos cálculos sobre
como devia ser: quantos blocos cada um produzia, por ano, quanto ganhava,
quanto tempo vai ficar parado. Em 2012 vieram dar um valor de sessenta mil
meticais que inicialmente disseram que era a compensação do tempo que
ficamos sem produção. Mas depois de algum tempo a empresa assumiu
aquele valor como indenização definitiva. Nós recusamos que aquele era o
valor acordado para indenização. Aí começou o problema. Perguntamos que
base de cálculo usaram? Depois desse desentendimento a empresa
recomendou que nós apresentássemos o nosso critério, para que, numa
análise comparativa com o critério deles, se buscasse um consenso sobre qual
o critério a ser seguido. Estamos nessa situação até agora. Há oleiros que
conseguiam produzir duzentos e cinquenta mil tijolos ao ano. Vendendo a um
metical [moeda moçambicana] cada, conseguia arrecadar entre duzentos e
duzentos e quarenta mil meticais tirando as quebras. Para eles darem sessenta
mil e dizer que é indenização? (SR. C.O. BAGAMOYO-VILA, 2017)

A luta pelo processo de indenização continua. A carta denúncia e encontros


constantes com o governo local são alguns dos repertórios adoptados. Para os oleiros
remanescentes do bairro de Bagamoyo uma nova forma de cálculo deve ser apresentada.
Os sessenta mil não podem ser assumidos como indenização.

Associado ao problema da produção de tijolos, um novo fenômeno atinge os


remanescentes do bairro Bagamoyo. A área de extração se encontra atualmente a
escassos metros do bairro. Estando numa residência que se localiza próximo da cerca e

- 231 -
encostado num Embondeiro (Baobá) pude ver o constante movimento das máquinas de
extração e dos pesados caminhões que é impossível não sentir a sua presença,
transportando o carvão extraído. As constantes explosões na área de extração, não só,
causam poeira que cobre o céu como uma nuvem que anuncia a chegada da chuva,
como também, provoca rachaduras nas casas que se encontram principalmente a
escassos metros da cerca. Tal como destaca um morador do bairro, se eu tivesse
chegado dois dias antes, teria visto a poeira que saiu quando explodiram.

Estão a sair rachas nas casas, provocadas por essas explosões. Para nós que
estamos perto da cerca o efeito é maior. Aqui fica totalmente escuro parece
uma nuvem de chuva. Aqui já não se estende farinha fora da casa, por causa
disso. Só dentro e por causa disso demora secar. Eles não avisam sobre os
dias e horas de detonação. So explodem. Nos primeiros dias, ao voltar a casa
encontrávamos farinha e roupa cheia de poeira. Então pelo menos farinha
temos que estender dentro porque a roupa podemos lavar de novo .

A carta denúncia encaminhada para o governo com o conhecimento da empresa


foi uma das ações desenvolvida para denunciar o problema. Os moradores de
Bagamoyo tem a consciência que “isso vai nos criar problemas de saúde. Sabemos que
pode não acontecer agora, mas com o tempo vai criar-nos problemas de saúde”59 . A
poeira provocada pelas explosões que, não só afeta a qualidade do ar, como também,
suja as paredes das casas e afeta a qualidade do riacho - principal fonte de
abastecimento de água - tem sido uma das causas de conflito entre a Vale e o governo
de um lado e a comunidade de Catete por outro. Catete se encontra fora da área de
concessão da empresa, mas dentro de todo processo integrado de produção e
escoamento, porque a linha férrea de transporte de carvão passa a escassos metros da
comunidade. Composta na sua maioria por populações camponesas, a comunidade de
Catete tinha uma forte integração com a comunidade de Chipanga que foi na sua
totalidade deslocada compulsoriamente com a chegada da Vale à Moatize. Era em
Chipanga onde, não so comercializavam a sua produção agrícola entre trocas que
envolviam a compra de outros produtos essenciais para a sua reprodução
socioeconômica, como também, tinham acesso ao sistema formal de saúde e de
educação, além de redes de sociabilidade como bares e campo de futebol.

59 Informaçõescompartilhadas no dia 05/10/2018, na rede social Facebook pela Associação de Apoio e


Assistência Jurídica às Comunidades (AAAJC), acompanhadas de imagens das ações, indicam que,
agastadas com a poluição e a degradação das suas casas pelas explosões, moradores e moradoras do
Bairro Bagamoyo-Vila, invadiram no dia 04/10/2018, a área da mina obrigando a empresa a paralisar as
atividades. Ainda segundo a AAAJC, pressionado, o representante da empresa no proce sso de
negociação que contou com a presença da polícia, garantiu aos moradores que as maquinas não voltarão a
funcionar enquanto não foi resolvido o problema.

- 232 -
Aliás, muitos dos atuais moradores têm descendência ancestral em Chipanga. Ou
seja, mantinham residência fixa em Chipanga e outra na comunidade de Catete, esta
última para efeitos de produção agrícola. Num determinado período do ano se
deslocavam de Chipanga para Catete para a produção na machamba. Após a colheita
regressavam para Chipanga. Com o andar do tempo e, principalmente, quando a
agricultura foi se tornando vital para sua reprodução social e econômica, foram
transferindo as suas residências definitivamente para a comunidade.

Tal como destaca o Sr. F.T.M. Catete (2017),

meu pai me contava que antes vivia lá em Chipanga, mas no tempo de cultivo
vinha para cá. Com o andar do tempo começou a ver que Chipanga era perto
optou em viver aqui definitivamente. Eu nasci aqui mesmo naquele
Embondeiro ali. Os mais velhos sempre comentavam isso sobre a minha
nascença.

A história da migração da família do Sr. F.T.M. Catete guarda semelhanças com


a da família do Sr. I.H. Catete (2017),

primeiro so vinha aqui capinar, tinha casa aqui e em Chipanga, quando minha
casa caiu por causa de um desastre natural decidi viver aqui definitivamente.
A minha primeira sorte [primeira filha] que já casou e mora em Zobue,
nasceu lá [em Chipanga]. Os outros é que nasceram aqui. Todos esses que
moram aqui já tiveram casa lá em Chipanga. Eu sempre fui camponês, não
trabalhei com outra coisa só capinar.

Mas a interação com Chipanga se manteve. Neste contexto, o deslocamento da


comunidade de Chipanga marcou uma nova fase na vida dessa comunidade, embora se
encontre fora da área concessionada à Vale para exploração de carvão mineral. Um dos
grandes problemas enfrentados pela comunidade nesse momento é o acesso a esses
serviços que o bairro Chipanga disponibilizava. A atual alternativa é o centro da Vila de
Moatize bem mais distante da comunidade. Aproximadamente duas horas caminhando.
O tempo de caminhada pode vir a aumentar devido ao fechamento dos “corta matos” -
vias de acesso comunitário que permitem um acesso rápido a vila.

Com o deslocamento de Chipanga dependemos agora da vila. Com o


fechamento desses corta matos a distância para a Vila aumenta
drasticamente. Dificultando o acesso a centro de saúdes, escolas , moagens e
ao mercado. Tudo isso era feito aqui em Chipanga, mas com o deslocamento
ficou para lá vila (SR. F.T.M. CATETE, 2017).

Há informações de que vão fechar até essa estrada que você usou para cheg ar
aqui. O que vai ser de nós. Mais sofrimento. Com essa idade que eu tenho, já
estou na velhice, a minha força é menor. Percorrer essa distância para vila já
é um sacrifício para mim, imagina quando fecharem os corta matos todos e
abrirem esse outro caminho que dá lá na estrada? Como vou fazer? (SRA.
I.M. CATETE, 2017)

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Como na comunidade não tem uma escola primária e a comunidade de Chipanga
que era mais próxima foi compulsoriamente deslocada, o acesso à educação formal
passa necessariamente por se deslocar até ao centro da vila. Um processo penoso face à
distância e que tem, por exemplo, como consequência a entrada tardia das crianças ao
universo escolar. “Essas crianças pequenas não estudam, não têm como chegar lá”. A
escassos metros da comunidade, a linha férrea de transporte de carvão possui um ponto
obrigatório de paragem dos comboios antes da entrada na área do carregamento da
empresa. Fazendo uma volta circular de carregamento, o mesmo sai com os vagões
cheios rumo às margens do oceano Índico. “Chega ali e para, depois entra e sai de outro
lado com vagões cheios e vai”. O rio que é a principal fonte de água se encontra na
outra margem da linha férrea. São as mulheres e as crianças maiores que com “lata na
cabeça” buscam a água do rio para a residência – apenas quando o comboio estiver
parado aguardando instruções para a entrada na área de carregamento, fato que acontece
permanentemente. A atividade de “cartar água” deve ser interrompida temporariamente.
Algo extremamente penoso principalmente quando as mulheres estão no caminho de
volta para casa com “lata na cabeça”. A espera pode durar até duas horas no pior dos
casos, menos tempo quando o comboio estiver em movimento. Pude presenciar a
passagem do comboio com os seus longos vagões cheios de carvão à saída e vazios na
volta para a área de carregamento. Tirar a lata da cabeça e aguardar é a única solução
para tornar a espera menos penosa.

A própria água do riacho “está diferente, não está mais a mesma coisa”. A
poeira das explosões que são feitas no processo de extração do carvão está afetando a
qualidade água do riacho que abastece a comunidade.

Quando detonam explosivos lá tudo isso fica escuro, a água fica como café.
A poeira suja as casas e ninguém pode mais estender farinha fora de casa. Por
isso temos agora grandes problemas de acess o à água potável. A poeira deles
sai da mina direto para as casas, para a farinha e para água do rio. Já fizemos
várias cartas. Uma entregamos a Vale. Outra entregamos ao governo [de
Moatize]. Mas não obtivemos nenhuma resposta até agora. Eles por
simplesmente não nos respondem. O governo nem se preocupa em vir aqui
para ver a nossa realidade de vida. Somos moçambicanos porque temos BI
[bilhete de identidade] moçambicano, so isso, mas não temos nenhum direito
(SR. I.H, CATETE, 2017).

Esse caso da comunidade de Catete, das populações remanescentes do bairro


Bagamoyo, bem como das populações da comunidade de Cateme, evidencia que a
chegada da Vale transformou também Moatize num campo de conflitos ambientais que
se configuram em pelo menos duas linhas interligadas: (i) os conflitos que evidenciam

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lógicas distintas de apropriação da terra e recursos (que têm como consequência a
expropriação do território e o bloqueio ao acesso de áreas vitais para reprodução social,
econômica e cultural das diversas populações que habitam nos arredores da área
concessionada); (ii) os conflitos inerentes à poluição, quer de rios, quer das terras vitais
para a reprodução social e econômicas dessas diversas populações.

Advogamos que esses conflitos são frutos do caráter autoritário, violento e


“colonial” que é intrínseco aos trabalhos de mineração da Vale e que independem do
lugar de sua implementação. Outro aspecto que importa destacar é que a realidade atual
de vida cotidiana das populações dessas três áreas (Cateme, Catete e Bagamoyo nos
arredores da vila) denuncia na arena pública (CEFAI, 2002; 2017a; 2017b) as
“contradições desastrosas”, usando as palavras de Miglievich-Ribeiro (2014), da lógica
desenvolvimentista que vem sendo adotada atualmente no contexto dos grandes projetos
em Moçambique.

6.2 “Agora sou motoqueiro, a vida não pode parar”: em busca de novos campos de
possibilidade de sobrevivência cotidiana

Manyungwe, Sr. E.M.T. Chipanga, é casado, pai de nove filhos, (três mulheres e
seis homens). A maioria dos filhos mora com ele “aqui” em “Chipanga-Cateme”. O
mais velho que é operador de máquinas numa das mineradoras que atua em Moatize,
mora na vila-sede. Também é casado e com filhos. Como Sr. E.M.T. Chipanga diz, ele
já tem sua própria família. Junto com ele mora um dos filhos do Sr. E.M.T. Chipanga,
que é estudante do ensino médio numa das escolas da vila sede de Moatize. Os restantes
sete filhos continuam morando com ele na casa modelo A, composto por um quarto e
sala. A cozinha externa, o banheiro são alguns dos edifícios que completam a paisagem
residencial. O Sr. E.M.T. Chipanga, morava no bairro “Chipanga – Moatize” desde o
seu nascimento em 1962. “Eu nasci lá e cresci lá e so me mudei de lá para aqui em
2010”. Os seus pais são de “lá”, os seus avos também. Foi lá onde casou e todos seus
filhos nasceram. Segundo ele todos seus ancestrais são de Chipanga. Os pais eram
camponeses, “sempre vivemos da machamba”, atividade que ele abraçou também,
porém, tal como afirma, não dependia totalmente dela. “Além da machamba eu também
era oleiro e produzia carvão”. A família do Sr. E.M.T. Chipanga, é uma das 714

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famílias - isso segundo dados oficiais do Governo Distrital de Moatize (2015) – dos
bairros Chipanga, Mithethe, Bagamoyo e Malábue que perversamente classificadas
como rurais, foram compulsoriamente deslocadas para Cateme entre os dias 9 de
novembro de 2009 a 21 de abril de 2010.

Tal como destaquei de forma breve acima, me encontrei com o Sr. E.M.T.
Chipanga, no Posto Policial de Cateme no primeiro dia que cheguei àquele local,
durante a primeira fase da pesquisa de campo no primeiro trimestre de 2016. Ele se
deslocara ao Posto Policial naquele dia para se informar das motivações que levaram à
soltura de dois cidadãos que ele capturara - suspeitos de furtarem milho na sua
machamba. Conseguiu encontrar os suspeitos pelo furto com uma quantidade de duas
latas. Eram duas mulheres. Levou-as para o posto policial local. Para o seu espanto,
naquele dia ficou sabendo que as mesmas haviam sido soltas sem que lhe dessem
nenhuma informação. Segundo ele aquilo não ficaria assim. Chegaria ao Administrador
do Distrito e ao Governador Provincial se fosse necessário, para ver restabelecida a
justiça que passava pela recuperação do seu milho. No decorrer das investigações o
marido das duas mulheres, que fiquei sabendo que não era “reassentado”, mas um dos
vários indivíduos que se deslocam para Cateme em busca do que Gilberto Velho
denominou de novos “campos de possibilidade” de sobrevivência cotidiana (VELHO,
2013). Foi o próprio Sr. E.M.T. Chipanga, que com seus amigos mais próximos fez as
diligências para capturar o marido das duas mulheres e o levou para o comando. Este
por sua vez assumiu a autoria da ação e se comprometeu a “pagar 12 latas para
compensação”. Acordo aceito pelo Sr. E.M.T. Chipanga.

O milho roubado não era da machamba dada pela Vale no processo de


“reassentamento”. “Comprei com meu dinheiro”. O Sr. E.M.T. Chipanga, recusou-se a
receber a machamba dada pela empresa por se localizar num local “cheio de pedras” e
sem mínimas condições para produção agrícola. Exigiu que a empresa procurasse uma
machamba num lugar adequado. O processo se alastra desde a sua chegada a Cateme
sem uma solução à vista. “Nem a empresa nem o governo diz alguma coisa”. A falta de
terra “própria e de qualidade”; de clientes; e de água que caracteriza a comunidade de
Cateme e que agrega mais custos à produção, o impediu de dar continuidade à atividade
de produção de tijolos. O mesmo aconteceu com a produção de carvão vegetal. Pelas
suas atividades de olaria recebeu em 2012, tal como todos os oleiros das áreas
deslocadas, o valor de sessenta mil meticais que a Vale assume como indenização pelo

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encerramento dos seus fornos e os oleiros como compensação pelo tempo em que
ficaram sem produzir até aquele momento. O Sr. E.M.T. Chipanga, também recusa que
aquele era o valor acordado para indenização. Pergunta-se sobre os critérios usados para
o seu cálculo. Defende, tal como os outros oleiros, que uma nova forma de cálculo deve
ser apresentada. Os sessenta mil dados não podem ser assumidos como indenização.
Também recebeu o valor de cento e dezenove mil meticais como indenização do
segundo hectare da machamba.

No acordo oralmente estabelecido entre a empresa e as populações antes do


reassentamento, cada família receberia dois hectares de machamba para diversificar a
produção. Enquanto produz mapira numa, em outra produz milho. Essa era a prática nos
seus locais de origem. Porém a empresa concedeu um hectare para cada família optando
por indenizar o outro hectare. É provável que a falta de espaço para o segundo hectare,
reflexo de um frágil planejamento, pode ter contribuído para essa decisão de atribuição
de um hectare e indenização do segundo. Porém, o importante a destacar aqui é que foi
com esse dinheiro que o Sr. E.M.T. Chipanga, que recusara a machamba concedida pela
empresa por se localizar no lugar “cheio de pedras”, comprou dos “nativos” a
machamba em que o milho fora furtado. Foi com uma parte desse dinheiro que também
comprou uma moto, razão pela qual atualmente ele é também um moto-taxista. “Para
viver a pessoa deve desenrascar. Agora sou motoqueiro, a vida não pode parar. Vivo
mesmo desse trabalho que estou a fazer, carregar pessoas daqui para ali” – disse-me ele,
enquanto tomávamos um refrigerante no mercado de Cateme, para refrescar a garganta
depois de tantos movimentos que fizemos primeiro de Cateme para Mualadzi (centro de
reassentamento da Rio Tinto), depois dentro da própria comunidade, de casa de um líder
para o outro.

A mulher e os filhos cuidam da machamba. Enquanto ele se dedica a essa


atividade “carregar pessoas daqui para ali”, assim vai. Ele estava conosco (eu e Juas)
sempre que precisávamos nos mover de um lugar para outro durante a pesquisa. Com o
Sr. E.M.T. Chipanga, acedemos a vários cantos da comunidade de Cateme. Desde que
nos encontramos no Posto Policial de Cateme naquele dia e naquela hora, por motivos
diferenciados, o Sr. E.M.T. Chipanga, e se tornou o nosso “fiel motoqueiro” e “grande
parceiro” durante a pesquisa de campo em Cateme. O que pretendemos demostrar com
essa pequena história de vida do Sr. E.M.T Chipanga, é que os lamentos sobre as
promessas não cumpridas e sobre a violação dos seus direitos fazem parte do seu

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cotidiano e acionam em função disso ações coletivas locais de resistência num autêntico
processo de afirmação local da cidadania. Ser motoqueiro, carregar pessoas daqui para
ali, criar uma banquinha (feirinha) nos arredores do mercado ou nas vias de maior
circulação na comunidade para vender tomate ou cebola produzido na sua própria
machamba ou comprado (para revender) de outros locais, são também formas de re-
existencia. Eles sabem, à medida que o tempo vai passando que não podem esperar
muito das promessas feitas pela empresa, muito menos do discurso de desenvolvimento,
melhoria de vida (deixem os brancos trabalharem para vossos filhos terem emprego) do
governo e da empresa. Cada dia que passa fica cada vez mais claro que de longe lhes
contempla. Só eles mesmo podem ser sujeitos das suas histórias de vidas. Ser
motoqueiro e ou criar uma feirinha é uma forma de resistência e existência. Você pode
me tirar da minha terra ancestral, me enganar e me abandonar, mas eu vou continuar
existindo. Pelo menos é essa mensagem que eles nos passam.

7. PARA FECHAR A NARRATIVA

Depois de uma tentativa frustrada nos finais da década 80, a Vale (privatizada)
venceu um concurso internacional promovido pelo governo em 2004 em Moçambique -
ancorada na aproximação entre o Brasil e África dinamizada pelo governo Lula,
aproximação essa assentada na cooperação sul-sul - para explorar em céu aberto as
minas de carvão mineral da bacia carbonífera de Moatize. Esta, considerada pelos
órgãos governamentais uma das maiores do mundo.

A presente tese buscou analisar os efeitos sociais desse projeto para as


populações da região, com enfoque centrado nos deslocamentos compulsórios das
diversas populações que habitavam na área equivalente a 25 mil hectares concessionada
pelo governo moçambicano à mineradora. A chegada da Vale marcou uma nova fase da
exploração de carvão mineral na bacia carbonífera de Moatize, bem como, uma nova
encruzilhada de projetos desenvolvimentistas na região do Vale do Zambeze. Região
essa, que desde o tempo colonial assume um lugar estratégico nos projetos de
exploração econômica. É nela onde se localiza aproximadamente 650 km à foz do rio
Zambeze a barragem hidrelétrica de Cahora Bassa, um dos principais empreendimentos
econômicos construídos pelos colonizadores portugueses. A construção dessa barragem

- 238 -
provocou o deslocamento compulsório de milhares de populações camponesas,
forçadamente reassentadas nos aldeamentos coloniais, causando traumas sociais,
econômicos e ecológicos que permanecem até hoje, passados quatro décadas, na
memória das populações do Vale do Zambeze (ISAACMAN; ISAACMAN, 2013). É
nessa região aonde vem sendo cogitada, apesar da resistência de diversas associações
ambientais, a construção de uma nova barragem, também, sobre as margens do rio
Zambeze, a barragem de Mpanda Nkuwa, um antigo projeto colonial que não chegou a
ser efetivado. A insistência nesse projeto, a reativação em 1995 do GPZ, bem como a
atual expansão mineralógica na região, evidencia que há um processo de reativação,
atualização e implementação de programas coloniais projetados para a exploração
econômica da região. Até agora, e principalmente desde a chegada da Vale, a mineração
tem assumido grande relevância nesse processo. A chegada da Vale, não só, abriu
espaço para a entrada do primeiro grande Investimento Direto Estrangeiro brasileiro em
Moçambique como também transformou o distrito de Moatize no espaço onde –
seguindo a concepção de Mignolo (2003) - projetos globais inerentes ao capital
internacional se interseccionam de forma violenta com histórias das comunidades locais
que habitam a região desde os tempos imemoriais ou datados. Reedita-se para o tempo
presente lógicas de expropriação e violência que marcaram o período colonial e a
primeira república pós-colonial (falo concretamente do período socialista, 1975-1990).

Tal com evidenciamos no capítulo 03, a restruturação administrativa imposta


pelo Estado Novo de Salazar a partir de 1930, as guerras, a política de controle da
população assentada nos aldeamentos coloniais e o programa de modernização rural e
restruturação da lógica de produção e organização social rural desenvolvido no período
socialista contribuíram para um maciço processo de deslocamento compulsório das
populações da região.

Além de garantir o controle administrativo da então colônia, a restruturação


administrativa imposta por Salazar estava assentada também na ideologia de “civilizar o
nativo”, o que implicava na esfera social e econômica na necessidade de concentrar as
residências dentro de limites espaciais definidos. Alterava-se, desse modo, o tradicional
padrão disperso de residência com o intuito de tornar a administração mais efetiva e
corrigir também o caráter disperso da economia agrícola local, aproximando a força de
trabalho dos principais empreendimentos econômicos da região do Vale do Zambeze.
Porém de 1964 até 1974 esses deslocamentos populacionais para as novas aldeias

- 239 -
passaram a fazer parte de uma ampla estratégia de contra insurgência ao avanço da
guerrilha da Frente de libertação de Moçambique (FRELIMO) na derradeira guerra
contra o colonialismo português. Á medida em que a FRELIMO avançava sobre Tete as
forças portuguesas foram intensificando ações de violência, terror e a intensificação do
aldeamento das populações. O atual distrito de Moatize tinha, até o final da guerra em
1974, 44 aldeamentos cobrindo aproximadamente 50.000 pessoas (BORGES COELHO,
1993). Alguns dos aldeamentos se localizavam nas áreas afetadas hoje com os projetos
mineralógicos que estão sendo implementados na região. Destacamos dentre esses, o
aldeamento de Cateme (atual área onde foram reassentadas a maioria das populações
classificadas como rurais pela mineradora Vale); Mithethe e Chipanga (duas das áreas
onde as famílias foram compulsoriamente deslocadas pela mineradora Vale).

Se a independência nacional era a esperança do fim dessa violência e


expropriação, ela não tardou a se mostrar ilusória, pois a população rural do Vale do
Zambeze e de Moatize em particular, se tornaria alvo de mais um processo maciço de
deslocamento compulsório inerente a uma política governamental de modernização da
produção agrícola através da socialização dos meios de produção e da cooperativação da
produção agrícola através da criação das aldeias comunais. Concentrar essas populações
em aldeias comunais, rompendo com a sua lógica dispersa de organização social, tal
como fez o colonizador, bem como a cooperativação da produção agrícola através da
socialização dos meios de produção (principalmente a terra e a força de trabalho) eram
vistos como o único caminho a ser seguido para, romper com as lógicas coloniais de
produção, vencer o subdesenvolvimento e transformar as relações sociais. As
consequências foram a violência, intimidação e a desestruturação das bases de
organização, produção e reprodução social, econômica e cultural. Muitos aspectos
inerentes ao desenvolvimento social e econômico das populações compulsoriamente
aldeadas foram ignorados. Tal como no período colonial muitas aldeias se
transformaram em campos de concentração das populações das áreas rurais em lugares
distantes da sua anterior área de residência e produção sem encontrar uma substituição
adequada. A localização das casas de habitação em muitas das aldeias comunais na
Província de Tete foi definida, tal como nos atuais deslocamentos compulsórios
provocados pela Vale, pelas autoridades distritais e ou provinciais sem participação
popular. Era assim em todo território nacional onde a política foi implementada. Os
aldeamentos coloniais e as aldeias comunais resultantes dos processos migratórios

- 240 -
originados pela brutalidade das companhias majestáticas e arrendatárias evidenciam, por
um lado, que o colonialismo e o pós-colonialismo se entrelaçam e correspondem a dois
períodos de uma história que a violência é um dos elementos centrais (PINA CABRAL,
1999).

O caso dos deslocamentos compulsórios provocados pela Vale em Moatize


evidencia que a violência e expropriação continuam sendo caraterística marcante da
sociedade moçambicana. De fato, tal como busquei demonstrar no capítulo 03, se por
um lado, o atual processo de deslocamento compulsório em Moatize pode ser
compreendido através das suas especificidades, inerentes ao avanço do capital
internacional que pressiona grupos e modos de vidas locais. Por outro, ele pode ser
compreendido pelas diversas proximidades com os anteriores processos de
deslocamento impostos na região – os aldeamentos coloniais e as aldeias comunais
socialistas. As decisões tomadas centralmente; a subalternização dos sujeitos afetados,
que não são vistos como sujeitos mas como meros objetos, negando a possibilidade de
serem protagonistas do seu próprio destino, bem como de decidir sobre onde e como
viver; os usos da violência física e simbólica e de intimidação são algumas dessa
proximidades. A forma como o próprio processo foi efetivado evidencia o caráter
democraticamente questionável do próprio estado moçambicano, bem como a
prevalência de lógicas coloniais de atuação. Isso evidencia um processo de cismas que
carregam consigo continuidades (PINA-CABRAL, 2004) ou a prevalência de um
sistema de dominação (BOURDIEU, 1992; 2004; 2011) que coloca as comunidades
locais numa posição subalternizada. Houve mudanças de regimes e de ideologia
política do estado, mas permanece uma lógica violenta de relação entre o poder
político e as comunidades locais. Um olhar sobre os direitos territoriais das
comunidades locais desde o tempo colonial atesta essa hipótese. A nacionalização da
terra promovida pelo governo socialista pós-independência não conduziu à
redistribuição das terras, mas à transformação das propriedades agrícolas privadas em
machambas estatais, com as famílias camponesas moçambicanas continuando a
trabalhar as terras pobres onde tinham sido jogadas pelos colonizadores.

A primeira lei de terras do governo socialista consagrava uma política de


desenvolvimento rural integrado que defendia a complementaridade entre a agricultura e
agroindústria, sugando formas de trabalho intensivo dos camponeses nas grandes
machambas estatais e inferiorizando a produção camponesa. Na década de 1990 essa

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subalternização se tornou mais acentuada. Todo ordenamento jurídico sobre a terra,
aprovado naquela década, teve como interesse primordial garantir as condições de
possibilidade de acesso e posse de terra e recursos para investidores nacionais e
estrangeiros. Ampliando a apropriação capitalista da terra e efetivando a política e
estratégia de desenvolvimento nacional centrada na atração de investimentos
internacionais materializados nos megaprojetos. Tal como destacamos no capítulo 04,
garantir a ocupação coletiva da terra através de direitos costumeiros dissimulava esse
interesse primordial, o que em si abria espaço para subalternização de outras formas de
uso e apropriação da terra.

A lei de minas aprovada em 2002, tornou essa subalternização explícita ao


definir a exploração mineral como tendo prioridade sobre qualquer outro tipo de uso e
apropriação da terra, incluindo nesse caso o uso da terra para a reprodução social e
econômica do campesinato. Por interesses ditos de desenvolvimento nacional, as
comunidades locais podem, tal como vem acontecendo, ser expropriados das suas terras
para dar lugar a atividades econômicas sem se ter em conta o seu posicionamento, a
relação afetiva com o território e a importância do lugar para a sua reprodução social,
econômica e cultural. Sem dúvidas que a prevalência de um sistema de dominação que
inferioriza as comunidades locais e todo um ordenamento jurídico sobre a terra que
explicitamente subalterniza as suas lógicas especificas de uso e apropriação da terra e
recursos à apropriação capitalista, cria um espaço propício para violação dos seus
direitos territoriais por parte das empresas capitalistas. Porém, tal como demostramos
ainda no capítulo 04, esse processo de violência e expropriação não é exclusiva a esse
fator, ela é também reflexo do caráter violento que é intrínseco ao megaprojeto de
mineração, tal como evidencia a atuação da Vale em Sudbury no Canadá e na Amazônia
Brasileira, bem como o caso da Hydro em Barcarena e da Samarco em Minas Gerais.

A violência do deslocamento compulsório é uma caraterística intrínseca dos


megaprojetos independente dos contextos políticos e jurídicos de cada lócus em
que estão sendo implementados. Independentemente do local, seja em
Moçambique, no Canadá ou na Amazônia Brasileira a dominação, a violência e
expropriação subjazem as práticas da Vale. Neste contexto concluímos que, a
violência do deslocamento compulsório é uma caraterística intrínseca dos grandes
projetos independente dos contextos políticos e jurídicos de cada lócus em que
estão sendo implementados. Ou seja, existe um modelo hegemônico global de

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“grande projeto” que tem a violência e a expropriação como parte inseparável,
como “outra parte da mesma moeda”. Com isso queremos dizer que o caráter
autoritário e violento do estado moçambicano na sua relação com as comunidades
locais, que vem desde o tempo colonial e se mantem atualmente, se intercecciona desse
modo com o caráter autoritário e violento da Vale. Os procedimentos adotados pela
Vale em Moatize, bem como a realidade de vida cotidiana das populações deslocadas e
outras que habitam nos arredores das áreas de exploração (marcada por desestruturação
significativa nas suas bases originais de reprodução social econômica e cultural)
evidenciam a prevalência dessa lógica violenta, autoritária e colonial de atuação.

No caso dos deslocamentos compulsórios, não havia uma preocupação com o


destino das pessoas e a continuidade integral das suas lógicas de produção, organização
e reprodução social e econômica, mas com a sua saída do local para dinamizar a
exploração do carvão e multiplicação do capital. De fato, para as populações de Cateme,
o deslocamento compulsório e todas as promessas não cumpridas desestabilizaram as
bases originais de reprodução social e econômica. A chegada da Vale transformou
Moatize num campo de conflitos ambientais e de violação de direitos, mas também num
campo de resistência.

É importante assinalar isso, pois, nesse processo de afirmação local da


cidadania, as populações de Cateme, por exemplo, se engajam em ações coletivas em
defesa dos seus direitos e denunciam as práticas e ações desastrosas da empresa. Mas
mais do que isso, denunciam as contradições desastrosas da atual lógica
desenvolvimentista em Moçambique que tem os megaprojetos de mineração como um
dos sectores dinamizadores. Denunciam também as contradições desastrosas de todo
arcabouço ideológico da cooperação sul-sul. No campo econômico essa cooperação não
é alternativa; é mais do mesmo.

Valorizar essas denúncias que emanam das narrativas e das ações coletivas da
população de Cateme é, na esteira de Arturo Escobar (2005a; 2005b), valorizar o lugar
enquanto espaço de contestação da ordem hegemônica. Neste contexto advogamos que
Cateme é um lugar de forças anti-imperialistas, pois as ações coletivas de contestação
que são lá desenvolvidas apresentam narrativas que denunciam o caráter violento,
autoritário e colonial das empresas mineradoras. A realidade atual de vida das
populações de Cateme nos ensina que o discurso de desenvolvimento e melhoria de vida
adotado pelos gestores das empresas multinacionais e atores governamentais não passa
- 243 -
de um discurso de integração. Só eles mesmos podem ser sujeitos das suas histórias. Por
isso que, enquanto lamentam pela realidade atual de vida imposta perversamente pela
empresa, enquanto resistem e se mobilizam coletivamente em defesa dos seus direitos,
também se engajam em novos campos de possibilidade de sobrevivência cotidiana. Seja
como motoqueiro, seja com uma feirinha no mercado ou nas vias mais movimentadas
da comunidade. De uma coisa as populações de Cateme têm certeza: não há muito que
esperar da empresa, muito menos do tal discurso de desenvolvimento e melhoria de vida
que vem acompanhando o avanço desses grandes empreendimentos na região. Só eles
mesmos, só eles, podem ser sujeitos das suas histórias.

8. PRINCIPAIS INTERLOCUTORES

1. Sr. R.P.B. Chipanga – morador do bairro Chipanga: entrevista realizada no dia 18 de


março de 2016.

2. Sr. P.A.S. Mithethe – morador do bairro Mithethe: entrevista realizada no dia 15 de


março de 2016.

3. Sra. F.C. Malábue – moradora do bairro Malábue: entrevista realizada no dia 19 de


março de 2016.

4. Sr. F.P.D. Mithethe – morador do bairro Mithethe: entrevista realizada no dia 19 de


março de 2016.

5. Sra. APF. Mithethe – moradora do bairro Mithethe: entrevista realizada no dia 19 de


março de 2016.

6. Sra. I. Chipanga – moradora do bairro Chipanga: entrevista realizada no dia 18 de


março de 2016

7. Sr. R.C.C. Malábue – morador do bairro Malábue: entrevista realizada no dia 16 de


março de 2016.

8. Sr. A.M.D. Malábue – morador do bairro Malábue: entrevista realizada no dia 19 de


março de 2016.

9. Sr. E.M.T. Chipanga – morador do bairro Chipanga: entrevista realizada no dia 14 de


março de 2016.

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10. Sra. R.E. Bagamoyo – moradora do bairro Bagamoyo: entrevista realizada no dia 17
de março de 2016.

11. Sr. J.P. Chipanga – morador do bairro Chipanga: entrevista realizada no dia 18 de
março de 2016.

12. Sr. M.A.Z. Bagamoyo – morador do bairro Bagamoyo: entrevista realizada no dia
17 de março de 2016.

13. Sr. D.B.X. Chipanga – morador do bairro Chipanga: primeira entrevista realizada no
da 21.03. 2016. Segunda entrevista realizada em novembro de 2017.

14.Sr. C.O. Bagamoyo-Vila – morador do bairro Bagamoyo nos arredores da vila de


Moatize: entrevista realizada em novembro de 2017.

15. Sr. F.J. M. Catete – morador da comunidade de Catete: entrevista realizada em


novembro de 2017.

16. Sra. I.M. Catete – moradora da comunidade de Catete: entrevista realizada em


novembro de 2017.

17. Sr. I.H. Catete – morador da comunidade de Catete: entrevista realizada em


novembro de 2017.

18. Sr. J.V. Maputo – entrevista realizada em Maputo no dia 10 de Junho de 2016.

- 245 -
9. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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