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que julgamos
Thich Nhat Hanh
08
14 28
O GRANDE THAI FALECEU, O MUNDO É o desejo que nos traz inquietude e Partilhamos também ensinamentos do
DEPARA-SE COM GUERRA, AINDA daí, como Buda dizia, surge o sofrimen- Dalai Lama, do Venerável Mestre Hsing
VIVEMOS EM PANDEMIA. to. Com tantas condições instáveis na Yun e ainda uma secção mais alargada
nossa vida exterior, mais ainda é neces- de literatura.
O que há a mudar?
sário um trabalho voltado ao interior e
No Sutra do Ensinamento Legado é
ao “verdadeiramente ser”.
dito: “Aqueles que se afligem com Um Mestre transitou, faz parte da
Ser não apenas para mim, mas também
demasiados desejos pensam apenas condição vida humana, mas as suas
para os outros, reconhecendo a impor-
em si próprios e, portanto, têm muitos sementes ficaram, crescerão na mente/
tância de “inter-ser”.
problemas e preocupações (...). Mesmo coração dedicada de cada um, assim
que ricas, as pessoas que têm muitos Este sexto número de “Budismo, como cada um de nós um dia também
desejos são pobres de espírito. Mesmo uma resposta ao sofrimento”, chega partirá para a outra margem e deixará
que pobres, as pessoas com poucos com algum atraso, exatamente pelas as suas sementes.
desejos são ricas de espírito”. condições necessárias não terem sido Que desejos ainda ocupam as nossas
possíveis, no entanto, como sempre na mentes?
vida, tudo muda, apenas temos que ter
a sabedoria de aguardar. É por isso que
agora posso agradecer à enorme cola-
boração da Susana Antunes e da Sónia
Martins, que apoiam na parte editorial “Nós temos mais
e na publicação das redes sociais. O possibilidades em
meu agradecimento também à Nádia
cada momento, do que
Maciel a a Carlos Diez, que fez a ponte
pensamos.”
e traduziu do espanhol a entrevista ao
professor Fernando Bornaetxea.
Thich Nhat Hanh
Neste número fica uma homenagem
ao Mestre Thich Nhat Hanh com vários
ensinamentos seus, que é enriquecida
por mais artigos do Mestre Manuel Toei
Simões, sempre atento, sempre presente.
4 EDITORIAL
Ética Editorial
BUDISMO, Uma Resposta ao Sofrimento é uma
revista aberta à participação de todas as escolas,
professores e seguidores do Dharma.
Ficha Técnica
autorização prévia.
“
PARA SABER COMO AMAR ALGUÉM,
DEVEMOS ENTENDÊ-LA.
PARA ENTENDÊ-LA,
PRECISAMOS ESCUTAR.
Thich Nhat Hanh
6 EDITORIAL
Índice
08 SOMOS MAIS DO QUE JULGAMOS
10 UM MESTRE ZEN NUNCA MORRE
12 O QUE ACONTECE QUANDO MORREMOS
14 O ZEN, UMA TAÇA CHEIA DE... NADA
18 LIVROS DE DHARMA
“
QUANDO HÁ UM DIÁLOGO
VERDADEIRO,
AMBOS OS LADOS ESTÃO
DISPOSTOS A MUDAR.
Thich Nhat Hanh
Somos mais do que
julgamos
Buda disse que há pensamento a acontecer, mas que não
é certo que exista um «eu» por trás do pensamento.
Esta é uma crença muito arraigada em está a ocorrer uma sensação dolorosa. Sou assim porque tu és assim.
todos os seres humanos: Porém, no que toca à pessoa que sente, É muito importante deitar fora a noção
tal não é tão certo. É como dizer «está de «eu sou», porque esta não reflete a
de que existe um eu, separado do resto
a chover». A chuva é algo certo; está a verdadeira natureza da realidade.
do mundo; que somos nós próprios e
chover, mas não existe uma entidade
que todos e tudo o resto, incluindo a A noção de um eu separado é como um
que chove. Não precisamos de uma
Terra, não são «nós». Nascemos com túnel no qual continuamos a entrar.
entidade que chove para que a chuva
esta forte crença de que estamos se- Quando praticamos meditação conse-
seja possível e não precisamos de um
parados: «tu não és eu. Esse problema guimos perceber que existe respiração,
pensador para que o pensamento seja
é teu, não meu.» Intelectualmente, até mas que não é possível encontrar um
possível. Não precisamos de um sensor
podemos saber que nada pode existir respirador em lugar nenhum; existe
para que sentir seja possível. Esse é o
por si só, mas na verdade, continuamos estar sentado, mas não é possível en-
ensinamento do não‑eu.
a acreditar que as coisas podem, e contrar um «sentador» em lugar algum.
ainda assim, nos comportamos como Na ideia de «eu» existe a ideia de que Ao vermos isso, o túnel desaparece e há
se fôssemos uma entidade separada. sou este corpo, este corpo sou eu, ou muito espaço, muita liberdade.
Esta é a base do nosso pensamento este corpo é meu, pertence‑me, mas
e comportamento, o que cria muito esta noção não corresponde à realida-
sofrimento. de. Quando olhamos profundamente
dentro do nosso corpo, percebemos
É preciso um treino intensivo para dei-
que é um rio. Podemos ver os nossos
tar fora esta ideia.
pais e antepassados nesse rio. Assim,
Na verdade, não existe ninguém,
o rio existe, mas não é certo que exista
nenhum eu. Existe pensamento; existe
alguém denominado «eu». E, nesse
reflexão, mas não existe uma pessoa
rio, conseguimos ver antepassados e
por trás disso. Quando Descartes disse
tudo mais — não apenas antepassados
«penso, logo existo», estava a dizer que,
humanos, mas animais, plantas e mi-
durante o tempo em que está a pensar,
nerais. Existe um continuum. Se existe
ele é o pensamento. Buda disse que há
uma pessoa, um ator, por trás disso,
pensamento a acontecer, mas que não
não é certo.
é certo que exista um «eu» por trás do
Uma afirmação melhor seria «eu inter-
pensamento.
‑sou». Está mais perto da verdade à luz
O pensamento está a acontecer; é algo
da interligação, do inter‑ser.
que reconhecemos.
Se pai e filho, mãe e filha, tiverem a
Mas podemos dizer que existe um pen-
perspicácia do não‑eu, poderão olhar
sador? Se houver uma sensação dolo-
um para o outro à luz do inter‑ser e não
rosa, podemos afirmar com certeza que
haverá mais problemas. Nós inter‑somos.
não me prendam dentro e de novo, “Mestre, o que é o Zen?” ele apenas respondeu:
limitem quem eu sou. Sei novamente o mestre levou-o ao jardim, -Cheguei ao mosteiro e durante anos,
que isso será difícil para olhou o céu, as arvores e o rio. E o alu- todos os dias, ajudei o meu mestre a fa-
alguns de vocês. Se você no retornou a sua casa descontente. zer pão. E foi então que um dia, o meu
tiver que construir uma Nos dias seguintes, o aluno voltou ao mestre morreu e eu fiquei… padeiro.
stupa, por favor prometa mosteiro, na primavera, no verão, ou- É esta a tradição (e a modernidade) no
que vai colocar uma placa tono e inverno. Ele foi ficando cada vez zen. A transmissão. I Shin Den Shin. De
nela que diz: “Eu não mais cansado do silêncio do mestre que coração a coração. De mestre a discí-
estou aqui”. Além disso, não lhe dava resposta alguma sobre o pulo. Desde Budha até hoje. Sempre.
você também pode colocar Zen. Um dia, antes de sair de casa, pen- Então, um mestre zen nunca morre.
outra placa que diz: “Eu sou “se hoje eu não tiver a resposta do
APRENDER A PRÁTICA É IMPORTANTE E não é tão difícil ver o nosso corpo de Então, se tens os “olhos da ausência
PARA O NOSSO MUNDO. continuação e não precisamos esperar de sinais”, não está confinado a esta
até à completa desintegração deste cor- forma, pode ver a nuvem no seu chá e
Cada um de nós tem de ser um ins-
po para começar a ver o nosso corpo de não chorar mais por causa da ausência
trumento de paz, um instrumento de
continuação. da forma da nuvem no céu.
atenção plena e compaixão para fazer
do mundo um lugar melhor para os Como a nuvem, ela não precisa ser Então a resposta mais curta para a
nossos filhos viverem. transformada inteiramente em chuva pergunta:
para poderes ver o seu corpo de conti-
Então o karma significa apenas “ação”. “O que acontece quando morres?”
nuação e todos nós temos que praticar
Ação como uma causa que vai trazer o O que acontece quando morres, é que
o mesmo, temos que ver o nosso corpo
fruto da ação e o teu corpo de continua- você não morres.
de continuação agora!
ção depende inteiramente da tua ação.
Eu posso ver o meu corpo de continua-
O teu diploma, a conta bancária, não
ção agora. Isso, o meu corpo, é como
os podes trazer contigo. O que trazes
a água que está a ser fervida numa
contigo é a tua ação. A tua ação é tripla:
panela.
pensar, falar, agir.
Um dia já não vês mais aquele corpo e
E quando olhas para estas coisas, vês-te
dizes que “o Thay está morto”.
a ti, vês o teu corpo de continuação.
Não é verdade.
Não dizes após a desintegração deste
Eu nunca vou morrer.
corpo “Eu não estou mais lá” [ou] “Eu
não estarei mais lá”. Tu estás sempre lá, A minha natureza é a natureza da nu-
porque és a tua própria ação. vem. É impossível uma nuvem morrer.
É impossível para Thay morrer.
O filósofo francês Jean Paul Sartre che-
gou muito perto desta ideia. Eu continuo sempre!
Ele tentou ter uma definição de “Ho- E tem que ser capaz de ver o corpo de
mem”. Ele sabe que o Homem não é o continuação do Thay, agora!
seu corpo, os seus sentimentos. Se olhares para dentro de ti mesmo,
Estava muito perto do budismo embora verás que o Thay continua de alguma
pertencesse a a escola do existencialis- forma. O Thay está em ti.
mo e a sua afirmação é: “O homem é a O Thay está nos seus amigos, nos seus
totalidade dos seus atos.” discípulos, de muitas formas.
Foi o que disse Sartre: “L’homme est la E o Thay está a agir no Vietname, na
somme de ses actes.” América, nas escolas, nas prisões, no
Então nós, o que somos? exército.
Aula de Dharma
Plum Village
O Zen, uma taça cheia
de… Nada
Simplesmente sentar-se...
De uma maneira e de
outra
Tentei manter o balde entrar, descobrir-se. É o zen das peque-
trolar os outros, controlar as relações, paradoxos, de histórias, de imagens, de inteligente, muito intelectual e tinha um
controlar o incontrolável… Abandonar momentos. Vou usar uma história zen, conhecimento profundo e grande sobre
isso tudo, deixar o controle, dar-se, contando, também, uma outra versão. a poesia, decide livremente sair e fazer
entregar-se, na expiração abandonar Quase todos conhecem a história de uma vida normal. Muito jovem começa
tudo, profundamente, totalmente. E ao um filósofo ocidental que tinha lido a ser notado. Escreve, faz caligrafia e
cultivar esta tranquilidade, esta calma, muito sobre o zen e decide ir ao Japão, desenvolve a sua vida, até que rapi-
esta ausência de medo e de ansiedade, à raiz – pensava ele – para conhecer de damente chega a ser ministro de uma
surge em nós a Paz e quando encontra- forma direta o zen. região da Coreia.
mos a Paz, estamos disponíveis para a Chega a um templo e entrevista-se com Decide então voltar ao templo antes
Felicidade. um mestre zen. O velho mestre man- de tomar posse para entrevistar-se
com o velho mestre. Diz-lhe: “Agora,
que vou ser ministro, que vou governar
estas terras, qual é o seu conselho, o
que devo fazer?”. Claro, o velho monge
convida-o para um chá e responde-lhe:
“Deverás evitar o mal, mesmo que a
muito pouca gente, e deverás fazer o
bem ao maior número possível”.
e restaurar um lar feliz no momento como poucos, em que Thich Nhat Hanh
frase “Cheguei, estou em casa” exprime a tempo para existir, que envolve cinco
Desde que encontrei o meu verdadeiro dade depende da nossa atitude mental;
lar, nunca mais sofri. O passado, tal como a prática do amor verdadeiro; um
o futuro, deixou de ser uma prisão para discurso terno e uma escuta profunda;
Sabedoria Zen
para Mentes Ansiosas
Shinsuke Hosokawa
Pergaminho
#6 MARÇO 2022 21
templo zen budista Ryuun-ji, em Tóquio, (escola Myoshinji, seita Rinzai do Zen),
Xiu Yang
Mimi Kuo-Deemer
Pergaminho
#6 MARÇO 2022 23
O Livro da Esperança
Jane Goodall e Douglas Abrams
Nascente Editora
#6 MARÇO 2022 25
O Livro da
Esperança por Jane «O otimismo contagiante
Goodall e Douglas de Jane Goodall e o apelo
estimulante à ação fazem
Abrams deste livro uma leitura
O LIVRO-TESTEMUNHO DE UMA DAS
essencial para aqueles
MULHERES MAIS ICÓNICAS DO NOSSO
que se preocupam com
TEMPO.
o futuro do planeta.» —
No mundo tão conturbado em que vive- Publishers Weekly
mos, como manter a esperança?
Se considerarmos o agravamento da
crise climática, uma pandemia, a perda
da biodiversidade e a crescente instabi- Jane Goodall
lidade política, manter o otimismo pode Jane Goodall é uma ilustre primato-
ser um grande desafio. No entanto, a logista e etóloga britânica. Dedicou a
esperança nunca foi tão necessária. sua carreira ao estudo da vida social
Neste livro imperioso, Jane Goodall e e familiar dos chimpanzés em Gom-
Douglas Abrams refletem, num diálogo be, na Tanzânia. É fundadora do Jane
estimulante e intimista, sobre um dos Goodall Institute e do Roots & Shoots
elementos da natureza humana mais — um programa educativo, ambiental
desejado e menos compreendido. A e humanitário que pretende incentivar
lendária primatologista britânica expla- jovens a serem agentes de mudança na
na, através do seu percurso de vida, os sua comunidade. É mensageira da paz
seus «quatro motivos de esperança»: O das Nações Unidas desde 2002 e autora
Maravilhoso Intelecto Humano, A Resi- de dezenas de livros sobre chimpanzés,
liência da Natureza, O Poder dos Jovens comportamento animal e a importância
e o Indomável Espírito Humano. da conservação da natureza.
Douglas Abrams
ram as suas descobertas e crenças, Jane
Goodall conta-nos como se tornou uma
Douglas Abrams é escritor, editor e
mensageira da esperança e deixa uma
agente literário. É coautor do bestseller
reflexão sobre algumas questões vitais:
O Livro da Alegria (2017), também pu-
Como manter a esperança quando a
blicado pela Nascente. Tem trabalhado
causa parece perdida?
com autores visionários que pugnam
Como podemos cultivar a esperança por um mundo mais equilibrado,
nos nossos jovens? saudável e justo. Durante mais de uma
Qual é a relação entre a esperança e a ação? década, trabalhou com Desmond Tutu
como seu coautor e editor.
Um guia de sobrevivência para tempos
difíceis.
A REPRESENTAÇÃO DA
MULHER E DA NATUREZA
NO
BUDISMO MEDIEVAL
Universidade Federal da Paraíba
Zélia M.Bora
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O Sutra do Lótus, no entanto, contri- com a essência divina e não se separa comparadas, costumava-se chamar
buiu para que surgissem condições existencialmente do homem. O presente a atenção sobre os ciclos menstruais
mais favoráveis a iluminação de mulhe- trabalho busca estabelecer uma relação femininos e sua relação com os ciclos
res. O presente artigo discute o papel entre a desvalorização da mulher e a da das marés e as fases da lua.
da mulher na sociedade japonesa e no natureza, como um processo histórico
Dessa forma, a mulher e a natureza,
budismo antigo. que resultou na dominação de ambas.
em um momento específico da evo-
O papel histórico da mulher, nas reli- Enquanto em religiões como o Hinduís- lução humana, representaram meio
giões tradicionais, especialmente, no mo e o Budismo, a natureza é tratada e fim, através dos quais a espécie
Budismo e no Cristianismo, é bastante como sagrada, a mulher perdeu por humana garantiria sua permanência
controvertido. Nos dias atuais, a evo- completo a sua relação com ela e com o na terra. A mulher era, então, vista
lução desse processo influenciou, de sagrado, tanto no Oriente quanto no Oci- como a provedora da vida, detento-
forma contundente, na distribuição dos dente. Neste trabalho, faremos referên- ra de um corpo sagrado, no qual a
papéis sociais da mulher como alteri- cias, especialmente, à experiência budista semente da vida era gerada.
dade. No que se refere à natureza, nas e à sociedade japonesa, entretanto, a
sociedades ocidentais, ela e as pessoas abordagem sobre a mulher no Budismo
Podes ler este estudo completo no
são vistas como sujeitos independen- japonês, serve também para a discussão
nosso site:
tes. Explorados e considerados apenas da mesma questão em outras sociedades www.budismo.org.pt
pelo seu valor utilitário, os seres não Budistas eHinduístas.
humanos são mortos e servidos como A natureza sempre foi um componente
alimento, depois de torturados, muti- essencial na sobrevivência humana, que
lados e desrespeitados como sujeitos determinou o aparecimento, o clímax e
No Budismo, a natureza, que é parte o declínio das civilizações. Referências
integrante de um todo, identifica-se arqueológicas pré-históricas demonstram
que o homem nómade dependia intei-
ramente dela para sobreviver. Quando a
espécie humana se tornou menos nóma-
da e mais gregária, os papéis da natureza
começaram a ser definidos. E uma das
imagens mais recorrentes para descrevê-
-la é correlacioná-la à imagem feminina
FERNANDO RODRIGUEZ BORNAETXEA
Entrevista por João Magalhães
Tradução de Carlos Diez
#6 MARÇO 2022 29
FERNANDO RODRIGUEZ BORNAETXEA Embora a prática diária seja uma base Psicologia e Mindfulness, em que
é Doutor em Psicologia. Professor da fundamental para a libertação do sofri- altura da vida do Fernando as duas
UPV/EHU há 21 anos. Lecionou História mento, o verdadeiro progresso ocorre se cruzaram? Foi um encontro har-
da Psicologia e Psicologia Transpessoal, em longos retiros onde se desenvolvem monioso e com sentido ou houve a
além de ministrar cursos de doutora- estados de profunda calma e clareza. necessidade de trazer esclarecimen-
mento e orientar teses. Tem formação tos sobre uma ou outra?
O seu trabalho no momento é organizar
e experiência em quase todas as princi- longos retiros que ajudem os meditado- Na verdade, o movimento de atenção
pais escolas de psicologia ocidental, da res a avançar no Caminho. plena apanhou-me com “o pé trocado”.
Psicanálise à Psicologia Cognitivo-Com- Entrei na Universidade como Professor
Fernando Bornaetxea partilha connosco
portamental, bem como em inúmeras de História da Psicologia, o que me
um pouco do seu novo livro, Psicologia
técnicas psicoterapêuticas. permitiu adquirir uma sólida forma-
e Mindfulness, que poderão encontrar
Foii aluno e discípulo do Mestre The- ção filosófica, além de conhecer as
disponível na Amazon.
ravada, V. R. Dhiravamsa, de quem diferentes formas e sistemas psicoló-
recebeu a transmissão. gicos. Tanto por caráter quanto por
oportunidade histórica (anos 70 e 80),
Há 20 anos que pratica, estuda, pesqui-
a psicologia humanista pareceu-me a
sa e ensina Meditação, especialmente
mais integrativa e tive a oportunidade
Vipassana. Dedicou os últimos anos
de explorá-la experiencialmente com a
ao estudo do Abhidhamma a partir do
chegada de Claúdio Naranjo a Espanha.
qual desenvolveu um modelo para o
Nas minhas primeiras formações como
desenvolvimento da mente e a evolução
psicoterapeuta (Bioenergética, Gestalt)
da consciência baseado no rigor e pro-
fiz os meus primeiros contactos com a
fundidade do Oriente e suportado pela
meditação.
neurociência e pela pesquisa ocidental.
Quando tive oportunidade, propus a
No ano 2000 fundou o Instituto Baraka
Psicologia Transpessoal como unidade
de Psicologia Integral junto com um
curricular opcional e, para minha sur-
grupo de ex-alunos. Dirige a Escola de
presa, foi admitida. Até onde sei, esta é
Meditação na qual existem grupos de
a única vez que a Psicologia Transpes-
iniciação e avançados, além de retiros.
soal foi lecionada num currículo univer-
A Escola vem formando uma poderosa
sitário europeu. Estudando e ensinando
Sangha (grupo de meditadores compro-
Transpessoal mergulhei na teoria e
metidos com a liberação).
na prática da meditação. Em diálogos
irrepetíveis ocorridos durante a década
de 1980 no Journal of Transpersonal
Psychology entre alguns dos grandes
nomes (D. Goleman, Ch. Trungpa, K.
Wilber, Walsh, Welwood, Washburn,
Epstein e outros), a ‘nova vipassana’
parecia a forma de meditação mais ade-
quada para a inquieta mente ocidental.
Tive a sorte de Ajhan Dhiravamsa, um
mestre de vipassana tailandês, ter se
30 BUDISMO, UMA RESPOSTA AO SOFRIMENTO
estabelecido na Espanha e me ter admi- fez com que muitas pessoas que, de O seu livro “Mindfulness: a atenção
tido como aluno e discípulo. outra forma, não se teriam aproximado consciente. O caminho direto para a
da meditação, começassem a praticar, sabedoria” é destinado a que tipo de
Após uma exigente formação de quatro
decidi, junto com meus colaboradores, leitor?
anos, Dhiravamsa permitiu-nos ser
oferecer formação para instrutores de
instrutores de Vipassana e comecei a Existem duas maneiras (pelo menos)
mindfulness. A nossa formação foi uma
transmitir os ensinamentos e facilitar de chegar ao mindfulness. Uma é
das pioneiras em Espanha e já fizemos
retiros. Anos depois, ele me reconheceu através das aplicações que surgiram na
vinte promoções.
como professor e permitiu-me ensinar terceira onda da psicoterapia cogniti-
o Dhamma. Naquele momento, decidi Assim, conforme refletido no livro, vo-comportamental, e outra é através
deixar a universidade e dedicar-me coloco mindfulness dentro do ‘movi- da psicologia transpessoal ou outro
à transmissão da vipassana, que era mento vipassana’, como fruto maduro intermediário que introduz a pessoa no
‘caminho do Buda’. A minha impressão
é que resulta difícil o diálogo entre uma
tradição milenar transmitida oralmente
e traduzida para a escrita numa língua
morta, seja páli ou sânscrito, e uma
tradição que não tem mais de duzentos
anos como o paradigma científico. A
minha tentativa foi de reler a tradição
incluindo os conhecimentos que a Psi-
cologia e a Neurociência nos disponibi-
lizaram. Embora seja complicado e de
certa forma impossível traçar paralelos
entre essas duas perspetivas, considero
importante que ambas façam o esforço
para se aproximar e se entenderem.
Este tem sido meu trabalho e meu
papel como psicólogo e como instrutor
o que, como psicoterapeuta vocacio- da Psicologia Transpessoal, sustentado de vipassana.
nal, procurava, um método universal por pesquisas científicas e enquadrado
Eu tento mastigar e elaborar tanto
disponível para todos, para superar o no enorme edifício teórico da tradição
os conceitos psicológicos quanto os
sofrimento psíquico e a insatisfação do Buda.
dhármicos para que o recetor possa
existencial. metabolizá-los com facilidade. Não
Quando levava transmitindo vipassana direi que é um livro fácil e simples no
por quase vinte anos, a onda de aten- estilo do que vem sendo realizado
ção plena de Kabat-Zinn chegou a Espa- ultimamente na literatura psicológica,
nha. A princípio, como outras pessoas mas considero que é um livro com o
comprometidas com o Dhamma, min- qual refletir sobre a prática e ao qual
dfulness parecia-nos uma simplificação
perigosa do Dhamma do Buda. É por
isso que eu digo que ele me apanhou
com “o pé trocado”. Embora, com o
passar do tempo, vi que o mindfulness
#6 MARÇO 2022 31
se pode ir em busca de respostas em Concretamente, o que nos traz Embora muitas pessoas não vão além
qualquer fase do caminho. É um texto “Mindfulness” para a nossa vida da procura do benefício imediato, há
que deve ser lido devagar e ir além do quotidiana? outras que começam por se tornar mais
nível dos conceitos para compreender conscientes de seus apegos e hábitos
Mindfulness, como é ensinado hoje, é
e integrar a visão de mundo de Buda. não saudáveis, e continuam praticando.
uma boa ferramenta para o amadureci-
Quem vem de mindfulness encontra- A prática leva a uma maior sensibilida-
mento psicológico. A atenção cons-
rá no livro o arcabouço da tradição e de ética e a uma melhor compreensão
ciente aos processos físicos e mentais
quem vem de tradição poderá se livrar de como o desejo funciona e suas
nos proporciona calma e flexibilidade
de seus elementos religiosos e míticos consequências. No melhor dos casos, o
cognitiva, abertura emocional e cons-
para redescobrir a essência do método praticante começa a entender a ilusão
ciência corporal. Como foi comprovado
do Buda para superar, aqui e agora, a de ser ou viver como um ‘eu’ separa-
em inúmeras experiências, pode ser
insatisfação existencial. O resultado é do, mestre do seu corpo/mente. Se
um grande alívio para problemas de
uma abordagem original que desafia muitas pessoas seguirem esse caminho,
ansiedade e depressão, para todos os
as interpretações mais difundidas do testemunharemos uma evolução como
tipos de adições e alergias e, em geral,
Dhamma e que vai além da epistemolo- espécie que pode nos tornar mais
resulta numa melhora geral do funcio-
gia e da ontologia da ciência. sensíveis e pragmáticos em relação aos
namento individual tanto em eficácia
desafios globais que enfrentamos.
O livro apresenta um comentário quanto em satisfação. Simplesmente,
atualizado sobre o ‘Discurso sobre os torna-nos mais conscientes. Existe o risco da prática budista de
Quatro Fundamentos da Atenção Plena’ Mindfulness se perder pelo surgi-
que é considerado o discurso do Buda mento das correntes ocidentais como
Para introduzir
no qual o método vipassana, a forma MBSR fundada por Jon Kabat-Zinn?
Mindfulness na consulta,
característica da meditação do Buda, é
é necessário que o Acho que não existe esse risco. A práti-
descrito de forma mais direta e clara.
terapeuta tenha uma ca da meditação está a espalhar-se por
A própria estrutura do ‘sutta’ fornece
prática consolidada que todo o mundo porque é uma necessi-
uma ordem didática e pedagógica. O
lhe permita gerar uma dade premente para os seres humanos.
comentário mostra o que está implícito
no ‘sutta’. Assim, vê-se como se chega
presença silenciosa e Nem todos podem enquadrar a sua
não parece provável que outra filosofia, E como se integra Mindfulness, explorar algum conteúdo ou estado
religião ou política possa promover essa conforme apresenta, no apoio a um emocional que tenha surgido ou parar
transformação necessária. utente que seja acompanhado pelo uma proliferação de pensamentos e
psicólogo reações que estão sacudindo a atmos-
Em que ponto é que sente que o Bu-
fera do encontro.
dismo toca a Psicologia ocidental? Como acabei de dizer, a prática da
atenção consciente é um recurso do en- Dependendo do diagnóstico ou tipo
Embora Buda tenha inspirado grandes
contro terapêutico que pode beneficiar de desconforto do paciente, podem
filósofos do século XIX, foi somente
tanto o profissional quanto o paciente ser incluídas pequenas práticas para
no século XX que o budismo começou
dentro e fora da consulta. Um pouco de fazer em casa. Em princípio, meditações
a influenciar a psicologia ocidental. A
prática antes de iniciar a sessão prepa- guiadas voltadas para a consciência
psicanálise foi a primeira a dialogar
ra e sintoniza o terapeuta e o cliente. corporal, posteriormente o tempo de
com o budismo. Erich Fromm e Carl
Mindfulness gera um estado interno de meditação pode ser alongado à medida
Gustav Jung abriram-lhe as portas e
calma e recetividade, mas também tem que a pessoa se sente confortável no
desde então o budismo e em particular
a capacidade de promover um ambien- silêncio e na presença.
a prática da meditação, vem se espa-
lhando como uma mancha de óleo por
todo o Ocidente. Como apontamos
anteriormente, a psicologia humanista e
transpessoal a adotou como ferramenta
terapêutica tanto para o cliente quanto
para o profissional. Durante os últimos
40 ou 50 anos tem havido muita pes-
quisa em meditação, embora não tenha
sido até o advento da atenção plena que
essa influência se tornou percetível na
corrente principal da psicologia científica
ocidental. Hoje, mindfulness tornou-se
uma ferramenta transdiagnóstica e
transterapêutica. Ou seja, é uma prática
transversal que é utilizada com todos
te de proteção e cumplicidade que será
os tipos de mal-estar e em todas as Sobre o “Desejo e Apego”, no livro, o
muito benéfico no processo.
escolas ou abordagens psicológicas. De Fernando dá o exemplo da necessida-
fato, perante a dispersão de sistemas e Para introduzir Mindfulness na con- de de cessar uma experiência desa-
métodos terapêuticos que caracterizou sulta, é necessário que o terapeuta gradável. “O estado mental de querer
a psicologia ocidental, a prática do min- tenha uma prática consolidada que lhe parar esta experiência desagradável
dfulness está sendo a única tecnologia permita gerar uma presença silenciosa é chamado desejo”. Será que ao
comum às escolas que tradicionalmente e acolhedora na qual o cliente se sinta querermos a “Verdade da Cessação
estiveram em conflito ou simplesmente protegido e aberto à relação. Como no do Sofrimento” não estaremos a cair
se ignoraram. processo parental, o terapeuta mostra também num desejo… como distin-
ao paciente como conter sem reprimir e guir esta linha ténue?
como indagar sem ruminar. Além disso, Teremos que começar dizendo que
a qualquer momento durante a sessão ‘desejo’ é a impressão de vazio que
você pode parar e permitir alguns se gera no corpo quando ocorre um
minutos de atenção consciente para
#6 MARÇO 2022 33
desequilíbrio. O ‘desejo’ ou ‘anseio’ é que a impede. Embora isso possa ser ‘eu, existe uma consciência, mas não é
a experiência da falta que impulsiona entendido racionalmente, você não ‘eu’. Graças ao sutta, entendemos que
a busca pelo equilíbrio. Todo contato pode ‘agir’ até que chegue o momento. todas essas atividades ocorrem em um
entre uma base sensorial e seu objeto Entendo que pode ser frustrante, mas contínuo surgimento e cessação que
produz uma tendência de aproximação ao longo do caminho você passa por si- produz a experiência, mas que essa
ou afastamento do objeto. O proces- tuações e circunstâncias que podem ser continuidade da experiência também
samento de todos esses pequenos completamente contraditórias. Por isso não são ‘eu’. ‘Eu’ é apego à existência, é
desejos ou tendências produz estados é muito difícil explicá-lo e por muitos não querer adoecer, não aceitar o en-
desejantes que são percebidos mais séculos o ensinamento foi ‘esotérico’, velhecimento e rejeitar a inevitabilidade
ou menos conscientemente e aos ou seja, secreto e personalizado. Em de morrer. O sutta ensina-nos que a
quais respondemos com pensamen- todo caso, o problema não é o desejo, existência é impermanente e insatis-
tos, palavras ou ações que tendem a mas a forma como ele é vivenciado, fatória e, portanto, que não há e não
se repetir cada vez que identificamos nem o problema é o prazer, a dor, o pode haver um “eu” separado, imortal,
estados semelhantes. Isso é o que a bom ou o mau, mas a compreensão de invulnerável e continuamente feliz.
tradição chama de ‘apego’, que são sua relatividade contextual. As coisas
reações, hábitos estereotipados, que não são boas ou más, feias ou belas em
Desde 2020 que o mundo como
se automatizam e se tornam identifica- si mesmas, mas dependem das causas
conhecemos sofreu e continua a
ções, ou seja, no que gosto e não gosto, e condições de cada momento.
sofrer grandes transformações. A
o bom e o ruim, o meu e o que não é
saúde mental de inúmeras pessoas
meu, o que sou e o que eu não sou. É
Este maravilhoso livro está assente encontra-se em risco e muito mais
assim que a ilusão do “eu” se origina,
em “O discurso sobre os quatro fun- será possivelmente desvelado ape-
pela tendência de repetir as mesmas
damentos da atenção”, o Satipattha- nas alguns anos mais à frente como
reações a circunstâncias semelhantes.
na Sutta de Buda. Este é o sutta que consequência do stress e angústia
Por isso dizemos ‘eu sou assim’ e, de
mais o inspira na sua vida? Ou que da incerteza. Que conselho, através
certa forma é verdade, porque o que eu
outros trazem a si a voz interior e um deste livro, pode dar ao leitor para
penso que sou nada mais é do que das
despertar? Porque? que se possa manter o seu equilíbrio
identificações e mecanismos de defesa
O Satipatthana é, sem dúvida, um sutta mental?
estabelecidos para sustentar a ilusão
de que ‘eu’ sou o dono do meu corpo, especial. Em muitas partes do Sudeste Como dissemos, a atenção plena é
minhas emoções e meus pensamentos, Asiático, especialmente em áreas onde uma ferramenta universal e espero
assim como aquele que decide o que o Budismo Theravada é predominan- que mais e mais pessoas venham a
quer ou não fazer. te, este sutta é rezado e recitado de conhecê-la e praticá-la. Embora ainda
memória. Os estudiosos do budismo seja contra-cultural hoje, não há nada
Agora vem a resposta à sua ques-
o consideram um dos mais importan- mais saudável do que passar um bom
tão. Para empreender o caminho do
tes porque, seguindo sua orientação, tempo todos os dias a não fazer ou
Dhamma deve-se reconhecer que
com discernimento e perseverança, o fazer nada. Isso, que parece fácil, é uma
não encontraremos a cessação do
caminho pode ser percorrido. Portan- das coisas mais difíceis para um ser
sofrimento nos prazeres dos sentidos,
to, é considerado o sutta chave para a humano. No entanto, tentar não fazer
por mais refinados que sejam. Assim,
prática de vipassana. pode ser contraproducente se você não
desenvolvemos um desejo genuíno de
A leitura do sutta leva à compreensão souber como.
libertação que é necessário para boa
parte do caminho, embora haja um de que existe um organismo, mas não é Quando tentamos não fazer, ou seja,
momento em que esse mesmo desejo ‘eu’, existem sentimentos, mas não são quando não direcionamos nossa aten-
de libertação se torne o obstáculo ‘eu’, existem cognições, mas não são ção voluntariamente para algo, a Rede
34 BUDISMO, UMA RESPOSTA AO SOFRIMENTO
NÁDIA MACIEL
#6 MARÇO 2022 37
negam os prazeres do corpo, deixan- Sem fé ou confiança a dúvida começa O budismo ensina que o homem é o
do a luxúria. Procuram promover sua a surgir levando à infelicidade e às principal responsável pela sua felicida-
existência, abstendo-se da impureza e preocupações. Os oito passos para o de através da paz. Na literatura budista,
levando uma vida de castidade ao não caminho do Budismo são o entendi- o conceito de paz é expressado pela
viver em luxo. mento correto, pensamento correto, palavra ‘Shanti ‘e a paciência é des-
discurso correto, ação correta, trabalho crita como o estado ideal do homem,
Quanto ao descuido, a mensagem do
correto, esforços corretos, atenção levando ao Nirvana, a paz duradoura.
budismo é estar atento e ter conside-
plena correta e concentração correta A grande paz significa cada vez mais
ração, agindo sempre com presença
(Thera, 1995). Para adquirir o entendi- ascender no caminho da felicidade,
mental. Bons pensamentos são a gran-
mento correto um terá de ser imparcial assim mais em paz estaremos connosco
de fonte de energia e produzirão boas
ações, enquanto que os maus pensa- em relação a todas as ideias e factos e com o ambiente.
da vida. Pensamento correto consiste
mentos produzirão más ações. Uma mente resguardada e controlada
em manter os nossos objetivos e não conduz à felicidade, e a verdadeira
A falta de ocupação é causadora de
nos desviarmos do caminho. Discurso felicidade é a realização da mente. Carl
doenças. A ocupação é necessária
correto consiste em dizer a verdade e Jung escreveu que “a nossa visão só se
para a vida e é a base do bem social. O
evitar calúnias, discurso áspero e bal- torna clara quando conseguimos olhar
exercício saudável e o desenvolvimento
bucios tolos. Ação correta consiste em para dentro do nosso coração. Quem
das faculdades impulsionam a felicida-
não matar, roubar, adultério e beber olha para fora, sonha; quem olha para
de, logo a falta de ocupação é má para
bebidas alcoólicas. Trabalho correto dentro, desperta.”
a saúde e para a felicidade. Através do
consiste em ganhar a vida de um modo
trabalho certo podemos estabelecer hu-
justo. Esforços corretos significam não
manidade e felicidade no mundo. Interpretado do estudo “Four Sources of
deixar que maus pensamentos nasçam
Happiness in Buddhism”, Shakya R. Jour-
O contentamento consiste na falta na mente. Atenção plena correta
nal of International Buddhist Studies, 10:2
de desejo de adquirir qualquer coisa, sublinha a importância de desenvolver (2019) 167-178.
exceto aquilo que advém por si mesmo a qualidade da consciência. Concen-
sem esforço, e o que é absolutamente tração correta é o estádio mais alto de
necessário para viver. O contentamen- desenvolvimento no Budismo, através
to é descrito como o maior prazer da do qual um consegue compreender a
vida, logo uma maneira de alcançar a paz da suprema felicidade.
felicidade é através do contentamento.
Alguém descontente será sempre infe-
liz. O Budismo ensina ‘Sê contente para
uma vida feliz’.
Nádia Maciel
Dietista e terapeuta de medicina chinesa.
“
SOMOS AQUILO QUE SENTIMOS E PERCEBEMOS.
SE ESTAMOS ZANGADOS, SOMOS A RAIVA.
SE ESTAMOS APAIXONADOS, SOMOS O AMOR.
SE CONTEMPLAMOS UM PICO NEVADO, SOMOS A
MONTANHA.
AO ASSISTIR A UM PROGRAMA DE TELEVISÃO DE BAIXA
QUALIDADE, SOMOS O PROGRAMA DE TELEVISÃO.
ENQUANTO SONHAMOS, SOMOS O SONHO.
PODEMOS SER QUALQUER COISA QUE QUISERMOS,
MESMO SEM UMA VARINHA MÁGICA.
De qualquer forma, o ponto principal a pria felicidade. [A raiva, por outro lado,
que nos referimos aqui [por faculdade com o seu elemento] nocivo, afasta-nos
ciar sentimentos: dor, prazer ou sen- nível físico, o prazer [que a felicidade
timentos neutros. Na verdade, prazer traz] é bom para o corpo; enquanto que
coisas que devemos analisar com maior prejudicial. Portanto, [numa perspetiva
Este é o nível humano fundamental [Considerem o caso dos] seres huma- Fazem um treino muito intenso e,
de que estou a falar; não estou a falar nos que não se sentem ameaçados independentemente da quantidade de
do nível religioso, secundário. A nível fisicamente. Eles têm uma vida feliz e dor e sofrimento que experienciam,
religioso, é claro, que existem diferen- confortável, bons amigos, salários e re- eles sentem-se felizes a nível mental.
tes explicações sobre a finalidade da putação. Mas, mesmo assim, notamos Assim, o nível mental é mais importante
vida. O aspeto secundário é realmente que, por exemplo, alguns milionários, do que a experiência física. Por isso o
muito complicado e, portanto, é melhor embora se considerem que são uma que na vida é realmente importante é a
falarmos apenas a nível humano funda- parte importante da sociedade, muitas felicidade e a satisfação.
mental. vezes eles, enquanto pessoas, são mui-
Portanto, a compaixão e a afeição medicamento talvez nos possa tempo- Na tradição indiana, nós consideramos
ajudam o cérebro a funcionar mais rariamente dar felicidade ou tranquili- o nascimento numa flor de lótus numa
facilmente. Além disso, a compaixão dade de espírito, mas não a nível total. terra pura. Isso soa muito bonito, mas
também nos dá força interior; dá-nos Podemos ver através do exemplo de se calhar as pessoas de lá têm mais
autoconfiança, que reduz o medo, e aconselhamento psicológico, que temos afeição por flores de lótus do que por
isto, por sua vez, mantém tranquila a de trabalhar com as emoções usando o pessoas. Por isso, é melhor nascer-
nossa mente. Deste modo, a compaixão diálogo e o raciocínio. Assim, devemos mos do ventre da nossa mãe, pois
tem duas funções: faz com que o nosso ter uma abordagem mental. Portanto, já trazemos connosco a semente da
cérebro funcione melhor e dá-nos força sempre que eu dou palestras, digo que compaixão. Estas são, por conseguinte,
interior. Estas são então, as causas da as pessoas modernas pensam muito as causas da felicidade.
felicidade. Eu acredito que assim seja. sobre o desenvolvimento exterior. Se
Agora, é claro que outras faculdades só prestarmos atenção a esse nível, isso
Nottingham, Inglaterra, maio de 2008,
também são boas para a felicidade. não será suficiente. A verdadeira alegria transcrito e ligeiramente revisto por Alex-
Por exemplo, todas as pessoas gostam e satisfação tem de vir de dentro. ander Berzin.
Reimpresso com a gentil autorização de
de dinheiro. Se tivermos dinheiro, Os elementos fundamentais para isso
studybuddhism.com/pt
podemos então desfrutar das boas são a compaixão e o afeto humano, que
Tradução para o português de Susana
coisas. Normalmente, consideramos vêm da biologia. Enquanto crianças, a Antunes
essas coisas como o mais importante, nossa sobrevivência depende unica-
mas acho que não é assim. O conforto mente do afeto. Se houver afeto, sen-
material pode advir do esforço físico, timo-nos seguros. Sem afeto, sentimos
mas o conforto mental tem que vir do ansiedade e insegurança. Choramos
esforço mental. Se formos a uma loja se nos separarem da nossa mãe. Se
e dermos dinheiro ao empregado e estivermos nos braços da nossa mãe,
dissermos que queremos comprar a a sentir o seu abraço seguro, firme e
paz de espírito, eles dirão que não têm sincero, então sentimo-nos felizes e
nada para vender. Muitos emprega- tranquilos. Enquanto bebés, isto é um
dos iriam pensar que somos loucos e fator biológico. Por exemplo, um cien-
fariam pouco de nós. Alguma injeção ou tista, meu professor, biólogo envolvido
com o movimento contra a violência
nuclear, disse-me que durante várias
semanas após o nascimento, o contato
físico da mãe é muito importante para
o desenvolvimento do cérebro e do
próprio bebé. Traz um sentimento de
segurança e conforto, e isto conduz a
um desenvolvimento físico adequado,
Tenzin Gyatso
incluindo o do cérebro.
XIV Dalai Lama
Assim, a semente do afeto e da compai-
xão não é algo que venha da religião:
ela vem da biologia. Cada um de nós
veio do ventre das nossas mães, e Susana Antunes
Engenheira e Instrutora de Meditação
cada um de nós sobreviveu graças ao
Transpessoal
carinho e aos cuidados da nossa mãe.
“
O AMOR VERDADEIRO É FEITO
DE QUATRO ELEMENTOS:
BONDADE, COMPAIXÃO, ALEGRIA E
EQUANIMIDADE.
THICH NHAT HANH
46 BUDISMO, UMA RESPOSTA AO SOFRIMENTO
Um monte, um projeto,
com Dharma
O nosso sonho pessoal é poder continuar a cultivar uma vontade ge-
nuína de praticar o dharma e conseguir algum progresso, tentando
que as expectativas não se intrometam no caminho.
DIANA E IGOR
Entrevista por João Magalhães
#6 MARÇO 2022 47
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