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Somos mais do

que julgamos
Thich Nhat Hanh

08

O Zen, uma taça O que acontece


cheia... de nada quando morremos
Manuel Toei Simões Thich Nhat Hanh

14 28

Mindfulness: A compaixão como Um monte, um projeto


A atenção plena fonte da felicidade com dharma
Fernando Bornaetxea | P.28 Dalai Lama | P. 40 Diana e Igor | P. 46
2 BUDISMO, UMA RESPOSTA AO SOFRIMENTO

O Buda disse, “Aqueles que vêem o


caminho são como alguém que entra
num quarto escuro com uma tocha,
dissipando a escuridão de modo
que só a luz permanece. Quando
vocês estudam o Caminho e vêem a
verdade, a ignorância dissipa-se e a luz
permanece para sempre.”
SUTRA DAS 42 SECÇÕES
#6 MARÇO 2022 3

Mudar é preciso, com amor


“Compreensão é a natureza do amor. Entender o sofrimento do outro
é o melhor presente que podemos oferecer ao nosso semelhante. A
compreensão é o outro nome para amar.
Quem não compreende, não ama.” - Thich Nhat Hanh
João Magalhães

O GRANDE THAI FALECEU, O MUNDO É o desejo que nos traz inquietude e Partilhamos também ensinamentos do
DEPARA-SE COM GUERRA, AINDA daí, como Buda dizia, surge o sofrimen- Dalai Lama, do Venerável Mestre Hsing
VIVEMOS EM PANDEMIA. to. Com tantas condições instáveis na Yun e ainda uma secção mais alargada
nossa vida exterior, mais ainda é neces- de literatura.
O que há a mudar?
sário um trabalho voltado ao interior e
No Sutra do Ensinamento Legado é
ao “verdadeiramente ser”.
dito: “Aqueles que se afligem com Um Mestre transitou, faz parte da
Ser não apenas para mim, mas também
demasiados desejos pensam apenas condição vida humana, mas as suas
para os outros, reconhecendo a impor-
em si próprios e, portanto, têm muitos sementes ficaram, crescerão na mente/
tância de “inter-ser”.
problemas e preocupações (...). Mesmo coração dedicada de cada um, assim
que ricas, as pessoas que têm muitos Este sexto número de “Budismo, como cada um de nós um dia também
desejos são pobres de espírito. Mesmo uma resposta ao sofrimento”, chega partirá para a outra margem e deixará
que pobres, as pessoas com poucos com algum atraso, exatamente pelas as suas sementes.
desejos são ricas de espírito”. condições necessárias não terem sido Que desejos ainda ocupam as nossas
possíveis, no entanto, como sempre na mentes?
vida, tudo muda, apenas temos que ter
a sabedoria de aguardar. É por isso que
agora posso agradecer à enorme cola-
boração da Susana Antunes e da Sónia
Martins, que apoiam na parte editorial “Nós temos mais
e na publicação das redes sociais. O possibilidades em
meu agradecimento também à Nádia
cada momento, do que
Maciel a a Carlos Diez, que fez a ponte
pensamos.”
e traduziu do espanhol a entrevista ao
professor Fernando Bornaetxea.
Thich Nhat Hanh
Neste número fica uma homenagem
ao Mestre Thich Nhat Hanh com vários
ensinamentos seus, que é enriquecida
por mais artigos do Mestre Manuel Toei
Simões, sempre atento, sempre presente.
4 EDITORIAL

Ética Editorial
BUDISMO, Uma Resposta ao Sofrimento é uma
revista aberta à participação de todas as escolas,
professores e seguidores do Dharma.

Pretende-se divulgar o Budismo de uma forma


prática, acessível, educativa e ilustrativa para o
quotidiano dos portugueses e das comunidades
de língua portuguesa. Como tal, os artigos incluí-
dos na revista são feitos a pedido do editor ou
autopropostos pelos seus autores.

A diversidade faz parte do nosso crescimento e


cada pessoa tem uma forma particular de com-
preender o seu sofrimento, por isso, o mesmo
ensinamento através de várias perspetivas, pode
alcançar mais pessoas e assim auxiliá-las no seu
próprio processo de tomada de consciência.

Queremos colocar os nossos leitores à vontade


para chamarem a atenção se verificarem que
estamos apenas a dar voz a uma escola, vertente,
ou linha de pensamento.

Fazemos todos os esforços para a revisão dos


textos, pelo que pedimos a vossa compreensão
e ajuda para algum erro. Da mesma forma, os
textos usados têm a sua fonte de origem, com

Ficha Técnica
autorização prévia.

No caso de identificarem algum conteúdo ou


tradução que possa estar incorreto, podem es-
Edição_ João Magalhães
crever-nos para joaomagalhaes@budismo.org.pt
indicando a página e texto. Direção Criativa_ Ana Valentim, Orion Studio
Redatora_ Susana Antunes

A organização dos artigos é feita pelos conceitos Redatora_ Joana Freitas

de Buda, Dharma e Sangha. Redes Sociais_ Sónia Martins


Imagens_ Unsplash; Envato Elements
#3 MARÇO 2021


PARA SABER COMO AMAR ALGUÉM,
DEVEMOS ENTENDÊ-LA.
PARA ENTENDÊ-LA,
PRECISAMOS ESCUTAR.
Thich Nhat Hanh
6 EDITORIAL

Índice
08 SOMOS MAIS DO QUE JULGAMOS
10 UM MESTRE ZEN NUNCA MORRE
12 O QUE ACONTECE QUANDO MORREMOS
14 O ZEN, UMA TAÇA CHEIA DE... NADA
18 LIVROS DE DHARMA

26 A REPRESENTAÇÃO DA MULHER E DA NATUREZA NO BUDISMO MEDIEVAL


28 MINDFULNESS: A ATENÇÃO CONSCIENTE
26 AS QUATRO FONTES DA FELICIDADE NO BUDISMO
40 A COMPAIXÃO COMO FONTE DA FELICIDADE
46 UM MONTE, UM PROJETO COM DHARMA
#3 MARÇO 2021


QUANDO HÁ UM DIÁLOGO
VERDADEIRO,
AMBOS OS LADOS ESTÃO
DISPOSTOS A MUDAR.
Thich Nhat Hanh
Somos mais do que
julgamos
Buda disse que há pensamento a acontecer, mas que não
é certo que exista um «eu» por trás do pensamento.

THICH NHAT HANH


“Zen e a Arte de Salvar o Planeta”
Fotografia: Plum Village, todos os direitos reservados.
#6 MARÇO 2022 9

A PRIMEIRA NOÇÃO QUE DEVEMOS


DEITAR FORA É A NOÇÃO DE EU.

Esta é uma crença muito arraigada em está a ocorrer uma sensação dolorosa. Sou assim porque tu és assim.
todos os seres humanos: Porém, no que toca à pessoa que sente, É muito importante deitar fora a noção
tal não é tão certo. É como dizer «está de «eu sou», porque esta não reflete a
de que existe um eu, separado do resto
a chover». A chuva é algo certo; está a verdadeira natureza da realidade.
do mundo; que somos nós próprios e
chover, mas não existe uma entidade
que todos e tudo o resto, incluindo a A noção de um eu separado é como um
que chove. Não precisamos de uma
Terra, não são «nós». Nascemos com túnel no qual continuamos a entrar.
entidade que chove para que a chuva
esta forte crença de que estamos se- Quando praticamos meditação conse-
seja possível e não precisamos de um
parados: «tu não és eu. Esse problema guimos perceber que existe respiração,
pensador para que o pensamento seja
é teu, não meu.» Intelectualmente, até mas que não é possível encontrar um
possível. Não precisamos de um sensor
podemos saber que nada pode existir respirador em lugar nenhum; existe
para que sentir seja possível. Esse é o
por si só, mas na verdade, continuamos estar sentado, mas não é possível en-
ensinamento do não‑eu.
a acreditar que as coisas podem, e contrar um «sentador» em lugar algum.
ainda assim, nos comportamos como Na ideia de «eu» existe a ideia de que Ao vermos isso, o túnel desaparece e há
se fôssemos uma entidade separada. sou este corpo, este corpo sou eu, ou muito espaço, muita liberdade.
Esta é a base do nosso pensamento este corpo é meu, pertence‑me, mas
e comportamento, o que cria muito esta noção não corresponde à realida-
sofrimento. de. Quando olhamos profundamente
dentro do nosso corpo, percebemos
É preciso um treino intensivo para dei-
que é um rio. Podemos ver os nossos
tar fora esta ideia.
pais e antepassados nesse rio. Assim,
Na verdade, não existe ninguém,
o rio existe, mas não é certo que exista
nenhum eu. Existe pensamento; existe
alguém denominado «eu». E, nesse
reflexão, mas não existe uma pessoa
rio, conseguimos ver antepassados e
por trás disso. Quando Descartes disse
tudo mais — não apenas antepassados
«penso, logo existo», estava a dizer que,
humanos, mas animais, plantas e mi-
durante o tempo em que está a pensar,
nerais. Existe um continuum. Se existe
ele é o pensamento. Buda disse que há
uma pessoa, um ator, por trás disso,
pensamento a acontecer, mas que não
não é certo.
é certo que exista um «eu» por trás do
Uma afirmação melhor seria «eu inter-
pensamento.
‑sou». Está mais perto da verdade à luz
O pensamento está a acontecer; é algo
da interligação, do inter‑ser.
que reconhecemos.
Se pai e filho, mãe e filha, tiverem a
Mas podemos dizer que existe um pen-
perspicácia do não‑eu, poderão olhar
sador? Se houver uma sensação dolo-
um para o outro à luz do inter‑ser e não
rosa, podemos afirmar com certeza que
haverá mais problemas. Nós inter‑somos.

Thich Nhat Hahn


ENSINAMENTO

“Zen e a Arte de Salvar o Planeta”


Nascente Editora
Um mestre zen nunca
morre.
Homenagem a Thich Nhat Hanh

MANUEL TOEI SIMÕES


Ensinamento de Dharma
Fotografia: Plum Village, todos os direitos reservados.
#6 MARÇO 2022 11

“Por favor, não construam


uma stupa para mim.
Por favor, não coloquem
minhas cinzas em um vaso, No dia seguinte o jovem monge voltou mestre zen e sucessor do seu mestre

não me prendam dentro e de novo, “Mestre, o que é o Zen?” ele apenas respondeu:

limitem quem eu sou. Sei novamente o mestre levou-o ao jardim, -Cheguei ao mosteiro e durante anos,
que isso será difícil para olhou o céu, as arvores e o rio. E o alu- todos os dias, ajudei o meu mestre a fa-
alguns de vocês. Se você no retornou a sua casa descontente. zer pão. E foi então que um dia, o meu
tiver que construir uma Nos dias seguintes, o aluno voltou ao mestre morreu e eu fiquei… padeiro.

stupa, por favor prometa mosteiro, na primavera, no verão, ou- É esta a tradição (e a modernidade) no
que vai colocar uma placa tono e inverno. Ele foi ficando cada vez zen. A transmissão. I Shin Den Shin. De
nela que diz: “Eu não mais cansado do silêncio do mestre que coração a coração. De mestre a discí-
estou aqui”. Além disso, não lhe dava resposta alguma sobre o pulo. Desde Budha até hoje. Sempre.
você também pode colocar Zen. Um dia, antes de sair de casa, pen- Então, um mestre zen nunca morre.
outra placa que diz: “Eu sou “se hoje eu não tiver a resposta do

também não estou lá que é o Zen, eu nunca mais volto com o

fora”. E uma terceira placa mestre” e foi caminhando inabalável ao

que diz: “Se eu estiver encontro do ancião. Assim que entrou


disse “Mestre, o que é o Zen?”, o mestre
em algum lugar, é na sua
pegou-o pelo braço e foi conduzindo-o
respiração consciente e
até o jardim, ao que o monge disse
nos seus passos calmos”.
“Não, não, não quero ver jardim ne-
nhum, quero saber o que é o Zen!”
[Thich Nhat Hanh]
O Mestre então pediu que ele arrumas-
se suas coisas e fosse até uma aldeia
Todos sabemos que o mestre zen Thich
próxima. O discípulo, obediente, seguiu
Nhat Hanh (Thay) deixou a sua respira-
o seu pedido. Chegando à aldeia próxi-
ção consciente numa última expiração.
ma, todos os moradores estavam espe-
Todos sabemos que um mestre zen
rando por ele com grandes reverências
nunca morre.
e dizendo “Seja bem-vindo, Mestre!”.
Conta-se no zen que um monge dese-
Havia-se tornado mestre também.
java muito saber o que era o Zen. Ele
Tinha perguntado o que era o Zen 365
foi ao mosteiro e perguntou “Mestre,
mil vezes e formulou 365 mil respostas.
o que é o Zen?” O mestre levou-o ao
Então, muito provavelmente, ele já
jardim, caminhou com ele mostrou-lhe
sabia o que era o Zen.
flores, árvores, o que estava plantando
No antigo templo de Kodo Sawaki,
e conduziu-o até a saída. O aluno voltou
Antaiji, o agora responsável, o monge
para casa sem resposta alguma.
Muho, quando lhe perguntaram como é
que ele, um ocidental se tinha tornado
ENSINAMENTO

Manuel Toei Simões


Mestre, Dojo Zen, Bashô-an
O que acontece quando
morremos?
Um dia já não vês mais aquele corpo e dizes que “o Thay
está morto”. Não é verdade. Eu nunca vou morrer.

THICH NHAT HANH


Ensinamento de Dharma
Fotografia: Plum Village, todos os direitos reservados.
#6 MARÇO 2022 13

APRENDER A PRÁTICA É IMPORTANTE E não é tão difícil ver o nosso corpo de Então, se tens os “olhos da ausência
PARA O NOSSO MUNDO. continuação e não precisamos esperar de sinais”, não está confinado a esta
até à completa desintegração deste cor- forma, pode ver a nuvem no seu chá e
Cada um de nós tem de ser um ins-
po para começar a ver o nosso corpo de não chorar mais por causa da ausência
trumento de paz, um instrumento de
continuação. da forma da nuvem no céu.
atenção plena e compaixão para fazer
do mundo um lugar melhor para os Como a nuvem, ela não precisa ser Então a resposta mais curta para a
nossos filhos viverem. transformada inteiramente em chuva pergunta:
para poderes ver o seu corpo de conti-
Então o karma significa apenas “ação”. “O que acontece quando morres?”
nuação e todos nós temos que praticar
Ação como uma causa que vai trazer o O que acontece quando morres, é que
o mesmo, temos que ver o nosso corpo
fruto da ação e o teu corpo de continua- você não morres.
de continuação agora!
ção depende inteiramente da tua ação.
Eu posso ver o meu corpo de continua-
O teu diploma, a conta bancária, não
ção agora. Isso, o meu corpo, é como
os podes trazer contigo. O que trazes
a água que está a ser fervida numa
contigo é a tua ação. A tua ação é tripla:
panela.
pensar, falar, agir.
Um dia já não vês mais aquele corpo e
E quando olhas para estas coisas, vês-te
dizes que “o Thay está morto”.
a ti, vês o teu corpo de continuação.
Não é verdade.
Não dizes após a desintegração deste
Eu nunca vou morrer.
corpo “Eu não estou mais lá” [ou] “Eu
não estarei mais lá”. Tu estás sempre lá, A minha natureza é a natureza da nu-
porque és a tua própria ação. vem. É impossível uma nuvem morrer.
É impossível para Thay morrer.
O filósofo francês Jean Paul Sartre che-
gou muito perto desta ideia. Eu continuo sempre!

Ele tentou ter uma definição de “Ho- E tem que ser capaz de ver o corpo de
mem”. Ele sabe que o Homem não é o continuação do Thay, agora!
seu corpo, os seus sentimentos. Se olhares para dentro de ti mesmo,
Estava muito perto do budismo embora verás que o Thay continua de alguma
pertencesse a a escola do existencialis- forma. O Thay está em ti.
mo e a sua afirmação é: “O homem é a O Thay está nos seus amigos, nos seus
totalidade dos seus atos.” discípulos, de muitas formas.
Foi o que disse Sartre: “L’homme est la E o Thay está a agir no Vietname, na
somme de ses actes.” América, nas escolas, nas prisões, no
Então nós, o que somos? exército.

Nós somos a nossa ação e somos conti-


nuados pela nossa ação.

Thich Nhat Hanh


ENSINAMENTO

Aula de Dharma
Plum Village
O Zen, uma taça cheia
de… Nada
Simplesmente sentar-se...

MANUEL TOEI SIMÕES


Ensinamento de Dharma
#6 MARÇO 2022 15

De uma maneira e de
outra
Tentei manter o balde entrar, descobrir-se. É o zen das peque-

em equilíbrio nas coisas. Permitimos um espaço em


que os outros, todos para além de nós,
Esperando o fraco por outras palavras, dizia que não era possam percorrer a Via.

bambu não rebentar importante, que não há que pensar,


E porque é que o Zazen é a autêntica
não há que preocupar-se, se é um bom
De repente o fundo Zazen, se é um mau Zazen, se estou
felicidade?! Porque não há nada que
procurar, nada que buscar. Aqui não
caiu num estado total de felicidade plena,
procuramos a felicidade, aqui serena-
se me encontro face ao grande dragão
Deixou de haver água de fogo, ou se é um Zazen sofrido,
mos a mente, abandonamos a ansieda-
de, estabelecemos a Paz, cultivamos a
Deixou de haver a lua com dores, com incómodo, pensa-
tranquilidade.
na água mentos, como se te encontrasses face
aos Gaiku, os seres esfomeados. Não
O vazio na minha mão importa!
- monja zen Chiyono / matriarca zen
Em Zazen a única coisa importante é
Zazen! Simplesmente sentar-se e na-
turalmente, automaticamente, incons-
cientemente... Zazen realiza-se!
No zen diz-se...se não te encontras a
Buda é porque mataste ao Buda, no Independentemente da nossa vontade,

entanto, se encontrares o Buda, mata do nosso ego, o fato de nos sentarmos

o Buda! uma e outra vez, isso é o importante, é


a única coisa importante. Gyoji - repetir,
Há outra versão da mesma história,
repetir sem repetir.
diz-se que se não encontrares a Buda,
Simplesmente sentar-se... Nestes tempos esquizofrénicos, repe-
levas três pauladas com o Kyosaku e se
titivos, de controle... havia um anúncio
encontrares a Buda, três pauladas com Nesta sociedade esquizofrênica, nestes
que dizia “Com Controle”. Zazen é sem
o Kyosaku. tempos ansiosos, em que se busca
controle! Quando dizemos contro-
É por isso que dizemos no Zen, na ver- constantemente algo, em que toda a
le e sociedade de controle, não nos
dade, não há absolutamente nada que gente procura a felicidade, a felicidade
referimos aos outros, à televisão, às
procurar, não há nada para encontrar. imediata, sentar-se é a autêntica felici-
redes sociais, aos telefones... Somos
dade, sem se mover, sem fazer nada de
Kodo Sawaki costumava dizer que a Nós! Zazen é sem controle, é simples-
especial, sem preocupar-se sequer com
maior felicidade, a autêntica felicidade mente observar-se, com atenção, com
o Zazen. Às vezes dizemos e parece um
é poder fazer ZaZen. O seu discípulo concentração. E deixar esse controle do
objetivo louco: ajudar a todos os seres.
Deshimaru, contava a mesma versão, ego, de querer controlar tudo, sempre...
Parece que é uma frase repetida, que a
querer controlarmo-nos a nós, con-
dizemos por dizer, mas ajudar a todos
os seres é ajudar a um espaço, ajudar
ENSINAMENTO

a que haja um Dojo, ajudar a que haja


uma Porta, um porto de Abrigo, onde
naturalmente todos os seres possam
16 BUDISMO, UMA RESPOSTA AO SOFRIMENTO

trolar os outros, controlar as relações, paradoxos, de histórias, de imagens, de inteligente, muito intelectual e tinha um
controlar o incontrolável… Abandonar momentos. Vou usar uma história zen, conhecimento profundo e grande sobre
isso tudo, deixar o controle, dar-se, contando, também, uma outra versão. a poesia, decide livremente sair e fazer
entregar-se, na expiração abandonar Quase todos conhecem a história de uma vida normal. Muito jovem começa
tudo, profundamente, totalmente. E ao um filósofo ocidental que tinha lido a ser notado. Escreve, faz caligrafia e
cultivar esta tranquilidade, esta calma, muito sobre o zen e decide ir ao Japão, desenvolve a sua vida, até que rapi-
esta ausência de medo e de ansiedade, à raiz – pensava ele – para conhecer de damente chega a ser ministro de uma
surge em nós a Paz e quando encontra- forma direta o zen. região da Coreia.
mos a Paz, estamos disponíveis para a Chega a um templo e entrevista-se com Decide então voltar ao templo antes
Felicidade. um mestre zen. O velho mestre man- de tomar posse para entrevistar-se
com o velho mestre. Diz-lhe: “Agora,
que vou ser ministro, que vou governar
estas terras, qual é o seu conselho, o
que devo fazer?”. Claro, o velho monge
convida-o para um chá e responde-lhe:
“Deverás evitar o mal, mesmo que a
muito pouca gente, e deverás fazer o
bem ao maior número possível”.

“Que conselho é esse, isso até uma


simples criança sabe”, exaltou-se o
jovem. Quis-se ir embora, mais uma
vez. O velho monge insiste e pede-lhe
que aceite uma taça de chá. Serve-lhe
Quer dizer encontramos Buda e abando- da-o sentar-se e o professor de filosofia a taça, até que esta começa a derra-
namos Buda! Isso é encontrar o momen- apresenta-se. Fala sobre o zen, sobre mar. O jovem reage com estranheza e
to presente. Situar-se Aqui e Agora. os livros que leu, sobre o seu conheci- o velho monge diz-lhe: “Já percebi que
mento teórico, sobre a suas ideias e bla,
Quando perdemos o momento pre- compreendes que derramar chá mal-
bla, bla… O velho mestre convida-o a
sente, perdemos tudo. Mesmo quando trata o soalho, mas penso que ainda
um chá e começa a vertê-lo na chávena
nada muda, se tu mudares, tudo muda. não compreendeste que, tal como uma
do convidado. A chávena enche e o chá taça, uma cabeça cheia de ideias e de
É por isso que na prática do zen,
vai-se derramando. pensamentos fixos não resolve nada”.
sentados em ZaZen, não fazemos nada
Então, o filósofo espanta-se: “O que faz, Surpreendido, o inteligente ministro
de especial. Pousamos o olhar sobre a
o que é isto?”. E o monge zen diz-lhe: levanta-se e rapidamente quer sair.
parede, numa postura bem direita, con-
“Está cheia a taça, é verdade, não cabe
centramo-nos na expiração e deixamos
mais, derrama-se o chá. É como está a
passar os pensamentos. É tudo.
sua cabeça. Como posso eu dizer-lhe
Deixando que se manifeste o que tem
algo mais sobre o que quer que seja?”.
que chegar a cada um. É essa a relação
Há outra versão coreana da mesma his-
fundamental do zen. Cada um é res-
tória, uma versão que gosto de ler para
ponsável pela sua prática, pela sua vida.
mim próprio. É sobre um jovem monge
No zen não há intermediários. É uma
que entra num mosteiro e que, ao final
relação direta.
de algum tempo, como era bastante
O zen vive muito de simbolismo, de
#6 MARÇO 2022 17

Mas, ao erguer-se – o templo é simples,


pequeno, pobre – bate com a cabeça
na ombreira da porta. E o velho monge
diz-lhe: “Às vezes, baixar a cabeça evita
a maior parte dos problemas”.

No zen as histórias são infindáveis


e os ensinamentos são insondáveis.
Poderíamos continuar aqui a contar
histórias. Conta-se que, muito mais
tarde, sendo o ministro já não tão
jovem, encontrou o antigo mestre zen a
meditar num ramo alto de uma árvore,
tinha subido a arvore e sentou-se num
reconfortante ramo, na postura de Za-
Zen, pernas cruzadas, coluna direita – a
mesma em que atualizamos a postura
do despertar. Ao passar por debaixo
da árvore, o ministro vê o seu velho
mestre e diz-lhe: “Cuidado, um dia
destes vai cair daí”. Ao que o mesmo
responde: “Cuidado, o senhor é que é
ministro. Como sabemos quem vai cair
primeiro?”.

Melhor ser simples, levar uma vida sim-


ples, sem desejar demasiado. Ter uma
mente aberta, sem demasiadas coisas.
E relacionarmo-nos com os outros de
forma igualitária, sincera e solidária.

Às vezes até ao saudar os outros, deve-


mos inclinar a cabeça. Isto é reconhe-
cer-se. A Si próprio. A Todos os Seres.
18 LEITURAS

Livros de Thich Nhat Hanh


Arte de Salvar o Planeta mostra-nos
uma nova forma de viver e de trazer
harmonia a nós próprios, aos nossos
relacionamentos e à Terra.

«Precisamos de despertar juntos e, se


despertarmos juntos, teremos uma
hipótese. A nossa forma de viver e
planear o futuro conduziu-nos a esta
situação. E agora precisamos de olhar
profundamente para encontrarmos
uma solução, não apenas como indi-
víduos, mas como um coletivo, uma
Thich Nhat Hanh, um dos maiores pen- Não podemos mudar o mundo se não
espécie.» — Thich Nhat Hanh
sadores contemporâneos da tradição formos capazes de mudar a nossa
budista, conhece em primeira mão os forma de pensar.
efeitos devastadores da violência de Atualmente, enfrentamos uma pode-
que os seres humanos são capazes. Ao rosa interseção de crises: destruição
longo destas páginas, elabora uma re- ecológica, colapso climático, aumento
flexão metódica e fundamentada acerca da desigualdade, injustiça racial e os im-
do verdadeiro significado da paz e do pactos duradouros de uma pandemia
seu sentido ético, moral e espiritual. devastadora. Para enfrentarmos estes
Demonstra, num estilo claro e cativante, desafios, precisamos de encontrar
que a paz a nível político e social só será formas de fortalecer a nossa lucidez,
possível se formos capazes de a fazer compaixão e coragem para agir.
nascer no maior campo de batalha que
A mensagem de Thich Nhat Hanh é
existe: o nosso próprio coração. Criar
muito clara: existe algo que temos
a Verdadeira Paz é uma afirmação da
o poder de mudar, que fará toda a
coragem de renunciar à violência e Um livro sobre o medo, mas também
diferença, e esse algo é a nossa mente.
um convite para que cada um de nós sobre a ansiedade, temas absolutamen-
A nossa forma de olhar e de pensar as
repense as limitações e potencialidades te centrais na atualidade.
coisas determina as ações e decisões
do seu espírito. Muitos de nós vivemos num estado
que tomamos ou evitamos, como nos
permanente de medo. Mesmo quando
relacionamos com aqueles que ama-
as condições para sermos felizes estão
mos ou de quem discordamos, e como
reunidas, a felicidade poderá parecer
reagimos numa crise.
incompleta quando o medo nos man-
O mindfulness e as visões decisivas da
tém focados no passado e preocupados
meditação podem ajudar-nos a criar
com o futuro. Este poderoso e prático
um mundo regenerativo em que todas
guia explica-nos como reconhecer o
as vidas sejam respeitadas. Zen e a
medo e como transformá-lo em vez de o
#6 MARÇO 2022 19

ignorar. Esse é o caminho para alcançar Seguindo a tradição do ensino budista,


a verdadeira felicidade e a liberdade. A Minha Casa É o Mundo faz uso das
suas histórias para partilhar importan-
Um dos mais influentes líderes espi-
tes ensinamentos que pretendem tra-
rituais da História. Uma lenda viva,
çar o caminho para a verdade superior.
introdutor do mindfulness no Ocidente,
proposto para o Nobel da Paz por Mar- Esta coletânea reúne fascinantes textos
tin Luther King. autobiográficos de Thich Nhat Hanh,
abrangendo vários períodos da sua
A partir das suas histórias de vida e da
vida, desde a infância no Vietname às
sua experiência como monge budista,
provações durante a guerra e o exílio, à
Thich Nhat Hanh ensina-nos a utilizar
fundação do mosteiro budista Plum Vil-
o mindfulness para nos mantermos
lage, em França, e às suas experiências
firmemente no presente e a encontrar «Thich Nhat Hanh mostra-nos a íntima
em viagens e ensino em todo o mundo.
a coragem para enfrentar o que nos ligação entre uma pessoa, a sua paz
assusta e abraçar a vida com alegria. Com ilustrações pacificadoras, cada interior e a paz no mundo.» Dalai Lama
Um livro admirável, repleto de ensina- história é narrada com o misto de
De um dos maiores líderes espirituais
mentos destinados a iluminar o nosso delicadeza e profundidade que lhe
do mundo, pioneiro do mindfulness no
caminho na busca da paz interior. é tão caraterístico. Abrandar e estar
Ocidente.
presente nas atividades diárias, praticar
a não violência e a compaixão, cultivar Um livro inspirador e estimulante

e restaurar um lar feliz no momento como poucos, em que Thich Nhat Hanh

presente são alguns dos exemplos a demonstra a importância de olharmos

reter deste livro único. para nós mesmos e desenvolvermos


a compaixão, tanto na relação com os
que nos são mais próximos como com
o mundo em geral. Repleto de histó-
rias e experiências notáveis, o grande
mestre budista apresenta variadas
práticas (como a de «desprender-se») e
conceitos (como o de «entre-ser») que
o ajudarão a apreciar mais plenamente
a vida.
As lições de vida de um dos mais in-
fluentes monges budistas da história. «A Este livro propõe um caminho com

frase “Cheguei, estou em casa” exprime a tempo para existir, que envolve cinco

minha interpretação dos ensinamentos práticas de mindfulness: a reverência

de Buda e é o âmago da minha prática. pela vida; a consciência de que a felici-

Desde que encontrei o meu verdadeiro dade depende da nossa atitude mental;

lar, nunca mais sofri. O passado, tal como a prática do amor verdadeiro; um

o futuro, deixou de ser uma prisão para discurso terno e uma escuta profunda;

mim. Sou capaz de viver no momento e, por fim, um consumo consciente.

presente e alcançar a minha verdadeira


casa. Encontro-a em cada fôlego e a cada
passo.» - Thich Nhat Hanh
20 LEITURAS

Sabedoria Zen
para Mentes Ansiosas
Shinsuke Hosokawa
Pergaminho
#6 MARÇO 2022 21

Sabedoria Zen para


Mentes Ansiosas de
Shinsuke Hosokawa

TODOS CONCORDAMOS QUE OS TEM-


POS QUE CORREM SÃO TEMPOS DE
GRANDE ANSIEDADE.

No livro Sabedoria Zen para Mentes


Ansiosas, de Shinsuke Hosokawa, encon- Shinsuke Hosokawa
tra-se reunida uma encantadora coleção Sacerdote-chefe do Templo Ryu-unji

ilustrada de pensamentos e ditados bu- (escola Myoshinji, seita Rinzai do Zen).

distas zen que o ajudarão a viver a sua Encarregado de propagar os ensina-

vida com menos stresse, ajudando-o a mentos da escola Myoshinji. Vice-di-

acalmar a ansiedade e a levar serenida- retor da seita Rinzai, escola Myoshinji

de à sua alma. Tokyo Zen Centre.

Com ilustrações cativantes, da autoria Nasceu em Setagaya, Tóquio. Neto do

de Ayako Taniyama, de traço simples e falecido Matsubara Taido, sacerdote

elegante, e um estilo poético e acessível, chefe do Templo Ryugenji (escola My-

estas curtas meditações ajudá-lo-ão a oshinji, seita Rinzai do Zen).

reencontrar a tranquilidade e a atenção Completou um curso de mestrado em


plena, e a cultivar um espaço interior estudos budistas na Graduate School of
onde nada o pode perturbar. Ou não Letters, Hanazono University. Realizou
fosse a meditação zen evocar o conheci- nove anos de treinamento Zen no
mento necessário para vivermos a vida centro de treinamento especializado no
com uma perspetiva positiva. Templo Myoshinji, Kyoto. Atualmente,

Shinsuke Hosokawa, sumo sacerdote do sacerdote chefe do Templo Ryu-unji

templo zen budista Ryuun-ji, em Tóquio, (escola Myoshinji, seita Rinzai do Zen),

é autor de vários livros de divulgação do localizado em Setagaya, Tóquio. Encar-

zen, todos grandes sucessos de venda regado de propagar os ensinamentos

internacionais. da escola Myoshinji. Vice-diretor da


seita Rinzai, escola Myoshinji Tokyo Zen
«Não existe cura para a ansiedade por-
Centre.
que não existe cura para a vida. Não há
remédio para a mente inquieta porque
a mente é inquieta por natureza. Há
apenas duas coisas: O Aqui. O Agora.»
22 LEITURAS

Xiu Yang
Mimi Kuo-Deemer
Pergaminho
#6 MARÇO 2022 23

Xiu Yang - a arte


milenar de cultivar
o coração para
uma vida mais feliz aliviar o desconforto inicial, acabam

e harmoniosa de invariavelmente por se revelar insufi-


cientes como génese fiável de felicidade
Mimi Kuo-Deemer duradoura.”

ASSIM COMO CUIDAMOS DA CASA,


Sinopse
Ao longo de milénios, os sábios, líderes
DO JARDIM, DOS AFAZERES SOCIAIS,
espirituais e políticos chineses orienta-
PRECISAMOS TAMBÉM CUIDAR DE
NÓS MESMOS. XIU YANG É A ABRE-
ram as suas vidas, decisões e ações por Mimi Kuo-Deemer
um princípio taoista tão simples quanto Mimi é autora e professora de alunos
VIATURA PARA “CULTIVAR O CORA-
eficaz: Xiu Yang. Abreviatura do ditado e de outros professores de qigong,
ÇÃO, ALIMENTAR O CORAÇÃO” (XIU
Xiu xin, yang xin - cultivar o coração, artes marciais internas (6ª geração
XIN, YANG XIN).
alimentar o coração - , este conceito é a Baguazhang), mindfulness e yoga. Ela
Ao longo do livro Mimi Kuo-Deemer,
chave de uma vida feliz e equilibrada. é amante do movimento desde jovem,
traz-nos esta sabedoria oriental e a
Tal como a terra é cultivada com cari- quando a sua mãe a colocou na escola
forma de a integrarmos na nossa vida,
nho e paciência para gerar as colheitas de ballet por andar com os dedos dos
ressignificando atitudes, formas de
mais abundantes, também o espírito pés virados para dentro. Defende o
estar e valores.
humano precisa de ser cuidado, alimen- equilíbrio entre diversão e precisão
Os aspetos taoístas deste livro, cruzam- como o melhor caminho a seguir na
tado e nutrido. Tal como a terra precisa
-se também com os valores budistas, vida e nunca subestima como o sentar,
de ser suavizada e purificada, também
algo tão presente, por exemplo, na respirar e movimentos conscientes
as irregularidades e impurezas da men-
sociedade japonesa. podem fornecer a perspectiva mais
te, do corpo e do espírito têm de ser
A autora lança-nos também uma retiradas para que o coração humano clara e compassiva do trabalho confuso,
questão muito pertinente sobre as floresça em pleno. O equilíbrio interior complexo e muitas vezes imprevisível
prioridades na vida, que para ela são a gera o brilho exterior; para estarmos de ser humano.
felicidade duradoura, saúde e equilí- em harmonia com os outros e com o
brio. Daqui, surgiram respostas à sua mundo, temos de estar em harmonia
procura. connosco.

“A resposta é que as verdadeiras fontes A tradição taoista prescreve práticas es-


de felicidade estão dentro de nós e po- pecíficas para este cultivo do eu. Mimi
dem ser desenvolvidas. Isto vai contra Kuo-Deemer adapta algumas destas
as mensagens exteriores que recebe- práticas ao estilo de vida moderno,
mos - que o telemóvel mais recente, integrando-as sob a forma de práticas
uma fatia de bolo ou umas férias na de meditação, mindfullness, qi gong e
praia nos darão alegria, satisfação e ioga, bem como conselhos e indicações
conforto. Infelizmente os recursos ex- práticas a nível de exercício, alimenta-
teriores são de curta duração; embora ção e gestão de tempo.
sejam agradáveis de ter possam até
24 LEITURAS

O Livro da Esperança
Jane Goodall e Douglas Abrams
Nascente Editora
#6 MARÇO 2022 25

O Livro da
Esperança por Jane «O otimismo contagiante
Goodall e Douglas de Jane Goodall e o apelo
estimulante à ação fazem
Abrams deste livro uma leitura
O LIVRO-TESTEMUNHO DE UMA DAS
essencial para aqueles
MULHERES MAIS ICÓNICAS DO NOSSO
que se preocupam com
TEMPO.
o futuro do planeta.» —
No mundo tão conturbado em que vive- Publishers Weekly
mos, como manter a esperança?

Se considerarmos o agravamento da
crise climática, uma pandemia, a perda
da biodiversidade e a crescente instabi- Jane Goodall
lidade política, manter o otimismo pode Jane Goodall é uma ilustre primato-
ser um grande desafio. No entanto, a logista e etóloga britânica. Dedicou a
esperança nunca foi tão necessária. sua carreira ao estudo da vida social
Neste livro imperioso, Jane Goodall e e familiar dos chimpanzés em Gom-
Douglas Abrams refletem, num diálogo be, na Tanzânia. É fundadora do Jane
estimulante e intimista, sobre um dos Goodall Institute e do Roots & Shoots
elementos da natureza humana mais — um programa educativo, ambiental
desejado e menos compreendido. A e humanitário que pretende incentivar
lendária primatologista britânica expla- jovens a serem agentes de mudança na
na, através do seu percurso de vida, os sua comunidade. É mensageira da paz
seus «quatro motivos de esperança»: O das Nações Unidas desde 2002 e autora
Maravilhoso Intelecto Humano, A Resi- de dezenas de livros sobre chimpanzés,
liência da Natureza, O Poder dos Jovens comportamento animal e a importância
e o Indomável Espírito Humano. da conservação da natureza.

Com base nas experiências que influencia-

Douglas Abrams
ram as suas descobertas e crenças, Jane
Goodall conta-nos como se tornou uma
Douglas Abrams é escritor, editor e
mensageira da esperança e deixa uma
agente literário. É coautor do bestseller
reflexão sobre algumas questões vitais:
O Livro da Alegria (2017), também pu-
Como manter a esperança quando a
blicado pela Nascente. Tem trabalhado
causa parece perdida?
com autores visionários que pugnam
Como podemos cultivar a esperança por um mundo mais equilibrado,
nos nossos jovens? saudável e justo. Durante mais de uma

Qual é a relação entre a esperança e a ação? década, trabalhou com Desmond Tutu
como seu coautor e editor.
Um guia de sobrevivência para tempos
difíceis.
A REPRESENTAÇÃO DA
MULHER E DA NATUREZA
NO
BUDISMO MEDIEVAL
Universidade Federal da Paraíba
Zélia M.Bora
#6 MARÇO 2022 27

ATRAVÉS DOS SÉCULOS NO CONFU-


CIONISMO E NO BUDISMO A MULHER
NÃO TEM UM LUGAR DEFINIDO NA
SOCIEDADE JAPONESA. ESSAS AUTO-
RIDADES E INSTITUIÇÕES CULTURAIS
LEVARAM A EXCLUSÃO DA MULHER
NO PODER FAMILIAR, NO ESTADO E
ATÉ MESMO NA ADORAÇÃO PÚBLICA.

O Sutra do Lótus, no entanto, contri- com a essência divina e não se separa comparadas, costumava-se chamar
buiu para que surgissem condições existencialmente do homem. O presente a atenção sobre os ciclos menstruais
mais favoráveis a iluminação de mulhe- trabalho busca estabelecer uma relação femininos e sua relação com os ciclos
res. O presente artigo discute o papel entre a desvalorização da mulher e a da das marés e as fases da lua.
da mulher na sociedade japonesa e no natureza, como um processo histórico
Dessa forma, a mulher e a natureza,
budismo antigo. que resultou na dominação de ambas.
em um momento específico da evo-
O papel histórico da mulher, nas reli- Enquanto em religiões como o Hinduís- lução humana, representaram meio
giões tradicionais, especialmente, no mo e o Budismo, a natureza é tratada e fim, através dos quais a espécie
Budismo e no Cristianismo, é bastante como sagrada, a mulher perdeu por humana garantiria sua permanência
controvertido. Nos dias atuais, a evo- completo a sua relação com ela e com o na terra. A mulher era, então, vista
lução desse processo influenciou, de sagrado, tanto no Oriente quanto no Oci- como a provedora da vida, detento-
forma contundente, na distribuição dos dente. Neste trabalho, faremos referên- ra de um corpo sagrado, no qual a
papéis sociais da mulher como alteri- cias, especialmente, à experiência budista semente da vida era gerada.
dade. No que se refere à natureza, nas e à sociedade japonesa, entretanto, a
sociedades ocidentais, ela e as pessoas abordagem sobre a mulher no Budismo
Podes ler este estudo completo no
são vistas como sujeitos independen- japonês, serve também para a discussão
nosso site:
tes. Explorados e considerados apenas da mesma questão em outras sociedades www.budismo.org.pt
pelo seu valor utilitário, os seres não Budistas eHinduístas.
humanos são mortos e servidos como A natureza sempre foi um componente
alimento, depois de torturados, muti- essencial na sobrevivência humana, que
lados e desrespeitados como sujeitos determinou o aparecimento, o clímax e
No Budismo, a natureza, que é parte o declínio das civilizações. Referências
integrante de um todo, identifica-se arqueológicas pré-históricas demonstram
que o homem nómade dependia intei-
ramente dela para sobreviver. Quando a
espécie humana se tornou menos nóma-
da e mais gregária, os papéis da natureza
começaram a ser definidos. E uma das
imagens mais recorrentes para descrevê-
-la é correlacioná-la à imagem feminina

Assim, mulher e natureza foram consi-


deradas como semelhantes, e quando
Mindfulness: a atenção
consciente
Mindfulness, como é ensinado hoje, é uma boa
ferramenta para o amadurecimento psicológico.

FERNANDO RODRIGUEZ BORNAETXEA
Entrevista por João Magalhães
Tradução de Carlos Diez
#6 MARÇO 2022 29

FERNANDO RODRIGUEZ BORNAETXEA Embora a prática diária seja uma base Psicologia e Mindfulness, em que
é Doutor em Psicologia. Professor da fundamental para a libertação do sofri- altura da vida do Fernando as duas
UPV/EHU há 21 anos. Lecionou História mento, o verdadeiro progresso ocorre se cruzaram? Foi um encontro har-
da Psicologia e Psicologia Transpessoal, em longos retiros onde se desenvolvem monioso e com sentido ou houve a
além de ministrar cursos de doutora- estados de profunda calma e clareza. necessidade de trazer esclarecimen-
mento e orientar teses. Tem formação tos sobre uma ou outra?
O seu trabalho no momento é organizar
e experiência em quase todas as princi- longos retiros que ajudem os meditado- Na verdade, o movimento de atenção
pais escolas de psicologia ocidental, da res a avançar no Caminho. plena apanhou-me com “o pé trocado”.
Psicanálise à Psicologia Cognitivo-Com- Entrei na Universidade como Professor
Fernando Bornaetxea partilha connosco
portamental, bem como em inúmeras de História da Psicologia, o que me
um pouco do seu novo livro, Psicologia
técnicas psicoterapêuticas. permitiu adquirir uma sólida forma-
e Mindfulness, que poderão encontrar
Foii aluno e discípulo do Mestre The- ção filosófica, além de conhecer as
disponível na Amazon.
ravada, V. R. Dhiravamsa, de quem diferentes formas e sistemas psicoló-
recebeu a transmissão. gicos. Tanto por caráter quanto por
oportunidade histórica (anos 70 e 80),
Há 20 anos que pratica, estuda, pesqui-
a psicologia humanista pareceu-me a
sa e ensina Meditação, especialmente
mais integrativa e tive a oportunidade
Vipassana. Dedicou os últimos anos
de explorá-la experiencialmente com a
ao estudo do Abhidhamma a partir do
chegada de Claúdio Naranjo a Espanha.
qual desenvolveu um modelo para o
Nas minhas primeiras formações como
desenvolvimento da mente e a evolução
psicoterapeuta (Bioenergética, Gestalt)
da consciência baseado no rigor e pro-
fiz os meus primeiros contactos com a
fundidade do Oriente e suportado pela
meditação.
neurociência e pela pesquisa ocidental.
Quando tive oportunidade, propus a
No ano 2000 fundou o Instituto Baraka
Psicologia Transpessoal como unidade
de Psicologia Integral junto com um
curricular opcional e, para minha sur-
grupo de ex-alunos. Dirige a Escola de
presa, foi admitida. Até onde sei, esta é
Meditação na qual existem grupos de
a única vez que a Psicologia Transpes-
iniciação e avançados, além de retiros.
soal foi lecionada num currículo univer-
A Escola vem formando uma poderosa
sitário europeu. Estudando e ensinando
Sangha (grupo de meditadores compro-
Transpessoal mergulhei na teoria e
metidos com a liberação).
na prática da meditação. Em diálogos
irrepetíveis ocorridos durante a década
de 1980 no Journal of Transpersonal
Psychology entre alguns dos grandes
nomes (D. Goleman, Ch. Trungpa, K.
Wilber, Walsh, Welwood, Washburn,
Epstein e outros), a ‘nova vipassana’
parecia a forma de meditação mais ade-
quada para a inquieta mente ocidental.
Tive a sorte de Ajhan Dhiravamsa, um
mestre de vipassana tailandês, ter se
30 BUDISMO, UMA RESPOSTA AO SOFRIMENTO

estabelecido na Espanha e me ter admi- fez com que muitas pessoas que, de O seu livro “Mindfulness: a atenção
tido como aluno e discípulo. outra forma, não se teriam aproximado consciente. O caminho direto para a
da meditação, começassem a praticar, sabedoria” é destinado a que tipo de
Após uma exigente formação de quatro
decidi, junto com meus colaboradores, leitor?
anos, Dhiravamsa permitiu-nos ser
oferecer formação para instrutores de
instrutores de Vipassana e comecei a Existem duas maneiras (pelo menos)
mindfulness. A nossa formação foi uma
transmitir os ensinamentos e facilitar de chegar ao mindfulness. Uma é
das pioneiras em Espanha e já fizemos
retiros. Anos depois, ele me reconheceu através das aplicações que surgiram na
vinte promoções.
como professor e permitiu-me ensinar terceira onda da psicoterapia cogniti-
o Dhamma. Naquele momento, decidi Assim, conforme refletido no livro, vo-comportamental, e outra é através
deixar a universidade e dedicar-me coloco mindfulness dentro do ‘movi- da psicologia transpessoal ou outro
à transmissão da vipassana, que era mento vipassana’, como fruto maduro intermediário que introduz a pessoa no
‘caminho do Buda’. A minha impressão
é que resulta difícil o diálogo entre uma
tradição milenar transmitida oralmente
e traduzida para a escrita numa língua
morta, seja páli ou sânscrito, e uma
tradição que não tem mais de duzentos
anos como o paradigma científico. A
minha tentativa foi de reler a tradição
incluindo os conhecimentos que a Psi-
cologia e a Neurociência nos disponibi-
lizaram. Embora seja complicado e de
certa forma impossível traçar paralelos
entre essas duas perspetivas, considero
importante que ambas façam o esforço
para se aproximar e se entenderem.
Este tem sido meu trabalho e meu
papel como psicólogo e como instrutor
o que, como psicoterapeuta vocacio- da Psicologia Transpessoal, sustentado de vipassana.
nal, procurava, um método universal por pesquisas científicas e enquadrado
Eu tento mastigar e elaborar tanto
disponível para todos, para superar o no enorme edifício teórico da tradição
os conceitos psicológicos quanto os
sofrimento psíquico e a insatisfação do Buda.
dhármicos para que o recetor possa
existencial. metabolizá-los com facilidade. Não
Quando levava transmitindo vipassana direi que é um livro fácil e simples no
por quase vinte anos, a onda de aten- estilo do que vem sendo realizado
ção plena de Kabat-Zinn chegou a Espa- ultimamente na literatura psicológica,
nha. A princípio, como outras pessoas mas considero que é um livro com o
comprometidas com o Dhamma, min- qual refletir sobre a prática e ao qual
dfulness parecia-nos uma simplificação
perigosa do Dhamma do Buda. É por
isso que eu digo que ele me apanhou
com “o pé trocado”. Embora, com o
passar do tempo, vi que o mindfulness
#6 MARÇO 2022 31

se pode ir em busca de respostas em Concretamente, o que nos traz Embora muitas pessoas não vão além
qualquer fase do caminho. É um texto “Mindfulness” para a nossa vida da procura do benefício imediato, há
que deve ser lido devagar e ir além do quotidiana? outras que começam por se tornar mais
nível dos conceitos para compreender conscientes de seus apegos e hábitos
Mindfulness, como é ensinado hoje, é
e integrar a visão de mundo de Buda. não saudáveis, e continuam praticando.
uma boa ferramenta para o amadureci-
Quem vem de mindfulness encontra- A prática leva a uma maior sensibilida-
mento psicológico. A atenção cons-
rá no livro o arcabouço da tradição e de ética e a uma melhor compreensão
ciente aos processos físicos e mentais
quem vem de tradição poderá se livrar de como o desejo funciona e suas
nos proporciona calma e flexibilidade
de seus elementos religiosos e míticos consequências. No melhor dos casos, o
cognitiva, abertura emocional e cons-
para redescobrir a essência do método praticante começa a entender a ilusão
ciência corporal. Como foi comprovado
do Buda para superar, aqui e agora, a de ser ou viver como um ‘eu’ separa-
em inúmeras experiências, pode ser
insatisfação existencial. O resultado é do, mestre do seu corpo/mente. Se
um grande alívio para problemas de
uma abordagem original que desafia muitas pessoas seguirem esse caminho,
ansiedade e depressão, para todos os
as interpretações mais difundidas do testemunharemos uma evolução como
tipos de adições e alergias e, em geral,
Dhamma e que vai além da epistemolo- espécie que pode nos tornar mais
resulta numa melhora geral do funcio-
gia e da ontologia da ciência. sensíveis e pragmáticos em relação aos
namento individual tanto em eficácia
desafios globais que enfrentamos.
O livro apresenta um comentário quanto em satisfação. Simplesmente,
atualizado sobre o ‘Discurso sobre os torna-nos mais conscientes. Existe o risco da prática budista de
Quatro Fundamentos da Atenção Plena’ Mindfulness se perder pelo surgi-
que é considerado o discurso do Buda mento das correntes ocidentais como
Para introduzir
no qual o método vipassana, a forma MBSR fundada por Jon Kabat-Zinn?
Mindfulness na consulta,
característica da meditação do Buda, é
é necessário que o Acho que não existe esse risco. A práti-
descrito de forma mais direta e clara.
terapeuta tenha uma ca da meditação está a espalhar-se por
A própria estrutura do ‘sutta’ fornece
prática consolidada que todo o mundo porque é uma necessi-
uma ordem didática e pedagógica. O
lhe permita gerar uma dade premente para os seres humanos.
comentário mostra o que está implícito
no ‘sutta’. Assim, vê-se como se chega
presença silenciosa e Nem todos podem enquadrar a sua

da observação do corpo no ‘sutta’ à


acolhedora na qual o prática na tradição de Buda, mas como

atual ‘embodiment’ da atenção plena


cliente se sinta protegido o grande historiador e pensador Arnold

moderna, da observação do sentimento


e aberto à relação. Como J. Toynbee apontou, provavelmente o
evento mais transformador do século
à autorregulação emocional, da obser-
no processo parental,
XX tenha sido a chegada dos ensina-
vação do pensamento à metacognição e o terapeuta mostra ao
mentos de Buda no Ocidente.
meta- consciência, e da observação dos paciente como conter sem
fenômenos à auto-transcendência. reprimir e como indagar Parece improvável que o budismo se

sem ruminar torne uma religião dominante, mas a


Em última análise, é um livro para visão de mundo do Buda e a prática
pessoas que têm alguma prática, seja da meditação continuarão a espalhar-
mindfulness ou meditação budista e que -se. Esperemos que, juntamente com
estejam interessadas em mergulhar no o amadurecimento psicológico, este
caminho de Buda para a libertação do movimento leve ao despertar espiritual
sofrimento psicológico e da insatisfação e, assim, a uma maior harmonia entre a
existencial. espécie humana, o resto das espécies,
o planeta e o resto do universo. Hoje,
32 BUDISMO, UMA RESPOSTA AO SOFRIMENTO

não parece provável que outra filosofia, E como se integra Mindfulness, explorar algum conteúdo ou estado
religião ou política possa promover essa conforme apresenta, no apoio a um emocional que tenha surgido ou parar
transformação necessária. utente que seja acompanhado pelo uma proliferação de pensamentos e
psicólogo reações que estão sacudindo a atmos-
Em que ponto é que sente que o Bu-
fera do encontro.
dismo toca a Psicologia ocidental? Como acabei de dizer, a prática da
atenção consciente é um recurso do en- Dependendo do diagnóstico ou tipo
Embora Buda tenha inspirado grandes
contro terapêutico que pode beneficiar de desconforto do paciente, podem
filósofos do século XIX, foi somente
tanto o profissional quanto o paciente ser incluídas pequenas práticas para
no século XX que o budismo começou
dentro e fora da consulta. Um pouco de fazer em casa. Em princípio, meditações
a influenciar a psicologia ocidental. A
prática antes de iniciar a sessão prepa- guiadas voltadas para a consciência
psicanálise foi a primeira a dialogar
ra e sintoniza o terapeuta e o cliente. corporal, posteriormente o tempo de
com o budismo. Erich Fromm e Carl
Mindfulness gera um estado interno de meditação pode ser alongado à medida
Gustav Jung abriram-lhe as portas e
calma e recetividade, mas também tem que a pessoa se sente confortável no
desde então o budismo e em particular
a capacidade de promover um ambien- silêncio e na presença.
a prática da meditação, vem se espa-
lhando como uma mancha de óleo por
todo o Ocidente. Como apontamos
anteriormente, a psicologia humanista e
transpessoal a adotou como ferramenta
terapêutica tanto para o cliente quanto
para o profissional. Durante os últimos
40 ou 50 anos tem havido muita pes-
quisa em meditação, embora não tenha
sido até o advento da atenção plena que
essa influência se tornou percetível na
corrente principal da psicologia científica
ocidental. Hoje, mindfulness tornou-se
uma ferramenta transdiagnóstica e
transterapêutica. Ou seja, é uma prática
transversal que é utilizada com todos
te de proteção e cumplicidade que será
os tipos de mal-estar e em todas as Sobre o “Desejo e Apego”, no livro, o
muito benéfico no processo.
escolas ou abordagens psicológicas. De Fernando dá o exemplo da necessida-
fato, perante a dispersão de sistemas e Para introduzir Mindfulness na con- de de cessar uma experiência desa-
métodos terapêuticos que caracterizou sulta, é necessário que o terapeuta gradável. “O estado mental de querer
a psicologia ocidental, a prática do min- tenha uma prática consolidada que lhe parar esta experiência desagradável
dfulness está sendo a única tecnologia permita gerar uma presença silenciosa é chamado desejo”. Será que ao
comum às escolas que tradicionalmente e acolhedora na qual o cliente se sinta querermos a “Verdade da Cessação
estiveram em conflito ou simplesmente protegido e aberto à relação. Como no do Sofrimento” não estaremos a cair
se ignoraram. processo parental, o terapeuta mostra também num desejo… como distin-
ao paciente como conter sem reprimir e guir esta linha ténue?
como indagar sem ruminar. Além disso, Teremos que começar dizendo que
a qualquer momento durante a sessão ‘desejo’ é a impressão de vazio que
você pode parar e permitir alguns se gera no corpo quando ocorre um
minutos de atenção consciente para
#6 MARÇO 2022 33

desequilíbrio. O ‘desejo’ ou ‘anseio’ é que a impede. Embora isso possa ser ‘eu, existe uma consciência, mas não é
a experiência da falta que impulsiona entendido racionalmente, você não ‘eu’. Graças ao sutta, entendemos que
a busca pelo equilíbrio. Todo contato pode ‘agir’ até que chegue o momento. todas essas atividades ocorrem em um
entre uma base sensorial e seu objeto Entendo que pode ser frustrante, mas contínuo surgimento e cessação que
produz uma tendência de aproximação ao longo do caminho você passa por si- produz a experiência, mas que essa
ou afastamento do objeto. O proces- tuações e circunstâncias que podem ser continuidade da experiência também
samento de todos esses pequenos completamente contraditórias. Por isso não são ‘eu’. ‘Eu’ é apego à existência, é
desejos ou tendências produz estados é muito difícil explicá-lo e por muitos não querer adoecer, não aceitar o en-
desejantes que são percebidos mais séculos o ensinamento foi ‘esotérico’, velhecimento e rejeitar a inevitabilidade
ou menos conscientemente e aos ou seja, secreto e personalizado. Em de morrer. O sutta ensina-nos que a
quais respondemos com pensamen- todo caso, o problema não é o desejo, existência é impermanente e insatis-
tos, palavras ou ações que tendem a mas a forma como ele é vivenciado, fatória e, portanto, que não há e não
se repetir cada vez que identificamos nem o problema é o prazer, a dor, o pode haver um “eu” separado, imortal,
estados semelhantes. Isso é o que a bom ou o mau, mas a compreensão de invulnerável e continuamente feliz.
tradição chama de ‘apego’, que são sua relatividade contextual. As coisas
reações, hábitos estereotipados, que não são boas ou más, feias ou belas em
Desde 2020 que o mundo como
se automatizam e se tornam identifica- si mesmas, mas dependem das causas
conhecemos sofreu e continua a
ções, ou seja, no que gosto e não gosto, e condições de cada momento.
sofrer grandes transformações. A
o bom e o ruim, o meu e o que não é
saúde mental de inúmeras pessoas
meu, o que sou e o que eu não sou. É
Este maravilhoso livro está assente encontra-se em risco e muito mais
assim que a ilusão do “eu” se origina,
em “O discurso sobre os quatro fun- será possivelmente desvelado ape-
pela tendência de repetir as mesmas
damentos da atenção”, o Satipattha- nas alguns anos mais à frente como
reações a circunstâncias semelhantes.
na Sutta de Buda. Este é o sutta que consequência do stress e angústia
Por isso dizemos ‘eu sou assim’ e, de
mais o inspira na sua vida? Ou que da incerteza. Que conselho, através
certa forma é verdade, porque o que eu
outros trazem a si a voz interior e um deste livro, pode dar ao leitor para
penso que sou nada mais é do que das
despertar? Porque? que se possa manter o seu equilíbrio
identificações e mecanismos de defesa
O Satipatthana é, sem dúvida, um sutta mental?
estabelecidos para sustentar a ilusão
de que ‘eu’ sou o dono do meu corpo, especial. Em muitas partes do Sudeste Como dissemos, a atenção plena é
minhas emoções e meus pensamentos, Asiático, especialmente em áreas onde uma ferramenta universal e espero
assim como aquele que decide o que o Budismo Theravada é predominan- que mais e mais pessoas venham a
quer ou não fazer. te, este sutta é rezado e recitado de conhecê-la e praticá-la. Embora ainda
memória. Os estudiosos do budismo seja contra-cultural hoje, não há nada
Agora vem a resposta à sua ques-
o consideram um dos mais importan- mais saudável do que passar um bom
tão. Para empreender o caminho do
tes porque, seguindo sua orientação, tempo todos os dias a não fazer ou
Dhamma deve-se reconhecer que
com discernimento e perseverança, o fazer nada. Isso, que parece fácil, é uma
não encontraremos a cessação do
caminho pode ser percorrido. Portan- das coisas mais difíceis para um ser
sofrimento nos prazeres dos sentidos,
to, é considerado o sutta chave para a humano. No entanto, tentar não fazer
por mais refinados que sejam. Assim,
prática de vipassana. pode ser contraproducente se você não
desenvolvemos um desejo genuíno de
A leitura do sutta leva à compreensão souber como.
libertação que é necessário para boa
parte do caminho, embora haja um de que existe um organismo, mas não é Quando tentamos não fazer, ou seja,
momento em que esse mesmo desejo ‘eu’, existem sentimentos, mas não são quando não direcionamos nossa aten-
de libertação se torne o obstáculo ‘eu’, existem cognições, mas não são ção voluntariamente para algo, a Rede
34 BUDISMO, UMA RESPOSTA AO SOFRIMENTO

Neural Padrão (RND) é acionada, uma a atividade manual criativa ou constru-


rede que ativa a ideação autorreferen- tiva, a arte, o diálogo e qualquer outra
cial. Pensamentos autorreferenciais são atividade cognitiva podem servir de
característicos de tempos em que somos âncora diante da dispersão e acelera-
‘egocêntricos’ e de pessoas que sofrem e ção característica de nossas sociedades
se preocupam excessivamente consigo ‘avançadas’. Não há dúvida de que um
mesmas. A ideação autorreferencial estilo de vida que equilibra e harmoniza
é muitas vezes crítica e implacável ou essas áreas de experiência é a garan-
autoindulgente e narcisista. Em todo tia de continuar amadurecendo, e se
caso, é a atividade que nos impede de também introduzirmos a meditação
estar em paz. Portanto, é conveniente vipassana em nossas vidas, estaremos
meditar em grupo ou sob a supervisão combinando o amadurecimento com o
de alguém que tenha experiência. despertar espiritual.

O RND é desativado em meditadores


experientes à medida que o seu nível Que votos nos traz para 2022?
de concentração, bondade e consciên-
Esta pergunta mostra-nos a sutileza da a aspiração de poder viver com atenção
cia aumenta. Num mundo que às vezes
prática Vipassana. Por um lado, parece plena, uma atenção que observa sem
parece ser movido pelo egoísmo, a
impossível não se projetar no futuro e reagir ao apego e aversão no momento
meditação pode fornecer uma maneira
não fazer planos. Na verdade, vivemos em que eles aparecem, e que você reco-
de se aproximar dos outros e começar
de uma forma que temos que planejar nhece a turbulência e o estupor quando
a se sentir unido no destino.
a maioria de nossas atividades com estão tomando conta da situação. Não
De qualquer forma, a atitude medita- antecedência. No entanto, a prática podemos controlar o nosso próprio
tiva de vipassana transcende a prática de Vipassana nos orienta a unificar corpo ou o mundo exterior, mas tendo
formal e deve permear o restante das nossas atividades físicas e mentais no consciência de como eles estão a
atividades diárias. Assim, uma das momento presente. Ou seja, Vipassana cada momento, tomaremos decisões
melhores maneiras de estar centrado consiste em prestar atenção conscien- melhores e não seremos arrastados
é prestar atenção ao corpo. Qualquer te momento a momento a todas as por expectativas ilusórias. Em última
atividade física feita com atenção atividades do organismo corpo/mente. análise, não se trata de ser bons ou ser
consciente nos fará sentir enraizados Conscientes de que cada ‘momentum’ é felizes, mas sim de ser sábios.
no corpo, o que resultará em uma condicionado pelo anterior e condicio-
experiência de confiança e segurança na o seguinte, aprendemos a manter
básica. Além disso, como somos seres o corpo/mente em boas condições, a
sociais e afetivos, reservar um tempo moderar o impacto das circunstâncias
todos os dias para conversar e ouvir externas e a gerir de forma mais eficaz
nossos amigos e familiares próximos os processos internos. Aconteça o que
fortalecerá os laços afetivos e nos fará acontecer em 2022, se aprendermos a
sentir ‘humanos vulneráveis’. Tam- estar com o que existe, gostemos ou
bém podemos dedicar parte do nosso não, é difícil sermos arrastados por
tempo a ajudar pessoas necessitadas eventos externos ou engolidos por
e isso resultará em maior bem-estar estados internos. Não é que eu esteja Fernando Rodriguez
emocional. Claro, a atividade cognitiva Bornaetxea
tentando evitar a resposta, mas sim que
cotidiana também é necessária. Seja o Mestre de Meditação Vipassana, Doutor em
a única resposta válida que me ocorre é Psicólogía, Psicoterapeuta, Mindfulness.
estudo, a leitura, a escrita, mas também

RECONHECER OS NOSSOS
HÁBITOS E SORRIR PARA ELES
É UMA ATENÇÃO MENTAL
APROPRIADA.
ISSO AJUDA-NOS A CRIAR
CAMINHOS NEURAIS NOVOS E BEM
MAIS BENÉFICOS.
Thich Nhat Hanh
As quatro fontes da
felicidade no Budismo
A saúde é a maior forma de contentamento, uma fonte de felicidade
assegurada e o contentamento uma grande riqueza.

NÁDIA MACIEL
#6 MARÇO 2022 37

TODOS, CONSCIENTE OU INCONS- de acender a lâmpada da sabedoria


CIENTEMENTE BUSCAMOS A FELICIDA- e manter as nossas mentes fortes e
DE SUPREMA. claras. Segundo ele há cinco coisas que
produzem condições através das quais
De acordo com a filosofia Vedanta a A Saúde, o Contentamento, a Confiança
um se pode queixar: (1) jantar opulento,
liberdade consiste em felicidade eterna. e a Paz (Nirbvana) são descritos no livro
(2) vício do sono, (3) ânsia de prazer, (4)
O Venerável Mestre Hsing Yun escreveu sagrado Dhammapada como as quatro
descuido e (5) falta de ocupação.
que a libertação também inclui “libertar fontes de felicidade, pilar central da
as pessoas, o que significa oferecer aos felicidade no Budismo. Todos sabemos que uma alimentação
outros uma saída. Ao trabalharmos desequilibrada e excessiva leva a doen-
A saúde é a maior forma de conten-
para a felicidade dos outros trazen- ças. Exercício e controlo alimentar são
tamento, uma fonte de felicidade
do-lhes a fé, a alegria, a esperança e a fundamentais, e os trabalhos manuais
assegurada, e o contentamento uma
comodidade, isto torna-se um ‘libertar’ a receita para uma vida saudável e o
grande riqueza. A confiança e a fé são
proactivo. Nisto também se inclui o ato
de ajudarmos os outros a encontrar
uma solução para situações difíceis,
quando prestamos auxílio, e quando
damos aos outros causas e condições.”

Através do budismo aprendemos que


a felicidade e o sofrimento dependem
então da nossa maneira de viver. A
filosofia budista ensina-nos a remo-
ver o desejo e ao fazê-lo os efeitos da
infelicidade desaparecerão. A men-
sagem do budismo é que a intenção
certa, o discurso certo, o trabalho e a
fonte de sustento são para uso próprio,
benefício e felicidade dos homens.
Podemos viver felizes sem odiar quem
primeiro ingrediente para uma vida
nos odeia, e a sermos livres da ganância obrigatórias para sermos felizes. A fé é
feliz. A mensagem do budismo é de
entre os gananciosos, pois uma mente a base de qualquer sistema espiritual e
moderação na alimentação.
com impurezas e doente é atraída para a paz a mais perfeita felicidade. Nirvana
os dez tipos de mal: matar, roubar, é a cessação do sofrimento e a sua O excesso de sono é sinónimo de le-
má conduta sexual, mentir, caluniar, absoluta negação como estado puro de targia e a letargia é a fonte primária de
discurso áspero, vaidade, cobiça, má felicidade. dor e é prejudicial ao corpo e à energia
vontade e falsas crenças. Quando a vital. Quando dormimos bem a mente
Caurs disse em 1965 que “manter o
ganância, a raiva e a ignorância e outros é clara, inteligente, brilhante, afiada e
nosso corpo são é a nossa principal
males são removidos do coração só aí pura. Quando dormimos mal não con-
função, ou então não seremos capazes
a centelha ‘Bodhi’ da serenidade, paz, seguimos realizar as nossas ações com
contentamento e perfeita felicidade o máximo do nosso potencial.
pode acender. A ânsia de prazer é também perigosa
para a saúde. Todos os que são sábios
38 BUDISMO, UMA RESPOSTA AO SOFRIMENTO

negam os prazeres do corpo, deixan- Sem fé ou confiança a dúvida começa O budismo ensina que o homem é o
do a luxúria. Procuram promover sua a surgir levando à infelicidade e às principal responsável pela sua felicida-
existência, abstendo-se da impureza e preocupações. Os oito passos para o de através da paz. Na literatura budista,
levando uma vida de castidade ao não caminho do Budismo são o entendi- o conceito de paz é expressado pela
viver em luxo. mento correto, pensamento correto, palavra ‘Shanti ‘e a paciência é des-
discurso correto, ação correta, trabalho crita como o estado ideal do homem,
Quanto ao descuido, a mensagem do
correto, esforços corretos, atenção levando ao Nirvana, a paz duradoura.
budismo é estar atento e ter conside-
plena correta e concentração correta A grande paz significa cada vez mais
ração, agindo sempre com presença
(Thera, 1995). Para adquirir o entendi- ascender no caminho da felicidade,
mental. Bons pensamentos são a gran-
mento correto um terá de ser imparcial assim mais em paz estaremos connosco
de fonte de energia e produzirão boas
ações, enquanto que os maus pensa- em relação a todas as ideias e factos e com o ambiente.
da vida. Pensamento correto consiste
mentos produzirão más ações. Uma mente resguardada e controlada
em manter os nossos objetivos e não conduz à felicidade, e a verdadeira
A falta de ocupação é causadora de
nos desviarmos do caminho. Discurso felicidade é a realização da mente. Carl
doenças. A ocupação é necessária
correto consiste em dizer a verdade e Jung escreveu que “a nossa visão só se
para a vida e é a base do bem social. O
evitar calúnias, discurso áspero e bal- torna clara quando conseguimos olhar
exercício saudável e o desenvolvimento
bucios tolos. Ação correta consiste em para dentro do nosso coração. Quem
das faculdades impulsionam a felicida-
não matar, roubar, adultério e beber olha para fora, sonha; quem olha para
de, logo a falta de ocupação é má para
bebidas alcoólicas. Trabalho correto dentro, desperta.”
a saúde e para a felicidade. Através do
consiste em ganhar a vida de um modo
trabalho certo podemos estabelecer hu-
justo. Esforços corretos significam não
manidade e felicidade no mundo. Interpretado do estudo “Four Sources of
deixar que maus pensamentos nasçam
Happiness in Buddhism”, Shakya R. Jour-
O contentamento consiste na falta na mente. Atenção plena correta
nal of International Buddhist Studies, 10:2
de desejo de adquirir qualquer coisa, sublinha a importância de desenvolver (2019) 167-178.
exceto aquilo que advém por si mesmo a qualidade da consciência. Concen-
sem esforço, e o que é absolutamente tração correta é o estádio mais alto de
necessário para viver. O contentamen- desenvolvimento no Budismo, através
to é descrito como o maior prazer da do qual um consegue compreender a
vida, logo uma maneira de alcançar a paz da suprema felicidade.
felicidade é através do contentamento.
Alguém descontente será sempre infe-
liz. O Budismo ensina ‘Sê contente para
uma vida feliz’.

Nádia Maciel
Dietista e terapeuta de medicina chinesa.

SOMOS AQUILO QUE SENTIMOS E PERCEBEMOS.
SE ESTAMOS ZANGADOS, SOMOS A RAIVA.
SE ESTAMOS APAIXONADOS, SOMOS O AMOR.
SE CONTEMPLAMOS UM PICO NEVADO, SOMOS A
MONTANHA.
AO ASSISTIR A UM PROGRAMA DE TELEVISÃO DE BAIXA
QUALIDADE, SOMOS O PROGRAMA DE TELEVISÃO.
ENQUANTO SONHAMOS, SOMOS O SONHO.
PODEMOS SER QUALQUER COISA QUE QUISERMOS,
MESMO SEM UMA VARINHA MÁGICA.

THICH NHAT HANH


A Compaixão como
Fonte de Felicidade
O Propósito da Vida é Tentar Alcançar a Felicidade

14º DALAI LAMA


Tradução de Susana Antunes
#6 MARÇO 2022 41

O PROPÓSITO DA VIDA É TENTAR


ALCANÇAR A FELICIDADE.

Estamos aqui; existimos e temos o direito


de existir. Mesmo seres não sencientes baseia-se na esperança – esperança de
como as flores têm o direito de existir. Se algo bom: a felicidade. Por essa razão,
uma força negativa for exercida contra eu chego sempre á conclusão de que
elas, então, a nível químico, as flores re- o propósito da vida é a felicidade. Com
generam-se a si mesmas para sobreviver. esperança e um sentimento feliz, nosso
Mas [mais do que isso], nós, os seres corpo sente-se bem. Por conseguinte,
humanos, insetos e até as amebas e os esperança e felicidade são fatores
seres mais pequenos são considerados positivos para nossa saúde. A saúde
seres sencientes. [E, como seres sencien- depende de um estado mental feliz.
tes, nós temos ainda mais mecanismos
A raiva, por outro lado, baseia-se num
para nos ajudar a sobreviver.]
sentimento de insegurança e provoca-
Coisas que se podem movimentar sob a -nos medo. Quando encontramos algo
sua própria vontade ou desejo, isso é o bom, sentimo-nos seguros. Quando
que significa “ser senciente”, de acordo algo nos ameaça, sentimo-nos insegu-
com os debates que tive com os cientis- ros e ficamos com raiva. A raiva é uma
tas. “Senciente” não significa necessa- parte da mente que se defende daquilo O apego é um elemento útil para a
riamente ser consciente ou ser humano que prejudica a nossa sobrevivência. sobrevivência. Por isso, até as plantas,
a um nível consciente. Na verdade, é di- Mas a raiva [em si mesma, faz-nos sen- sem qualquer elemento consciente,
fícil definir o que significa “consciência” tir mal e, portanto, em última análise] têm, no entanto, uma parte química
ou “consciente”. Normalmente significa faz mal à nossa saúde. que faz com que elas se protejam a si
o aspeto mais claro da mente, mas será mesmas, e as ajude no seu crescimen-
que não há consciência quando esta- to. O nosso corpo, a nível físico, é igual.
mos semiconscientes ou inconscientes? Mas, como seres humanos, o nosso
Será que os insetos têm? Talvez seja corpo também tem um elemento posi-
melhor falar de “faculdade cognitiva” tivo a nível emocional que nos leva a ter
em vez de consciência. apego a alguém ou apego à nossa pró-

De qualquer forma, o ponto principal a pria felicidade. [A raiva, por outro lado,

que nos referimos aqui [por faculdade com o seu elemento] nocivo, afasta-nos

cognitiva] é a capacidade de experien- das coisas [incluindo da felicidade]. Ao

ciar sentimentos: dor, prazer ou sen- nível físico, o prazer [que a felicidade

timentos neutros. Na verdade, prazer traz] é bom para o corpo; enquanto que

e dor [e felicidade e infelicidade] são a raiva [e a infelicidade que causa] é

coisas que devemos analisar com maior prejudicial. Portanto, [numa perspetiva

profundidade. Por exemplo, cada ser de luta pela sobrevivência], o propósito

senciente tem o direito de sobreviver da vida é ter uma vida feliz.

e, sobreviver significa ter um desejo de


felicidade ou conforto: é por isso que os
seres sencientes lutam pela sobrevi-
vência. Portanto, a nossa sobrevivência
42 BUDISMO, UMA RESPOSTA AO SOFRIMENTO

Este é o nível humano fundamental [Considerem o caso dos] seres huma- Fazem um treino muito intenso e,
de que estou a falar; não estou a falar nos que não se sentem ameaçados independentemente da quantidade de
do nível religioso, secundário. A nível fisicamente. Eles têm uma vida feliz e dor e sofrimento que experienciam,
religioso, é claro, que existem diferen- confortável, bons amigos, salários e re- eles sentem-se felizes a nível mental.
tes explicações sobre a finalidade da putação. Mas, mesmo assim, notamos Assim, o nível mental é mais importante
vida. O aspeto secundário é realmente que, por exemplo, alguns milionários, do que a experiência física. Por isso o
muito complicado e, portanto, é melhor embora se considerem que são uma que na vida é realmente importante é a
falarmos apenas a nível humano funda- parte importante da sociedade, muitas felicidade e a satisfação.
mental. vezes eles, enquanto pessoas, são mui-

O que é felicidade? to infelizes. Em certas ocasiões, conheci


pessoas muito ricas e influentes que
Já que o nosso objetivo e o propósito
mostraram sentimentos de perturba-
da vida são a felicidade, o que é então
ção muito fortes. No fundo, tinham
a felicidade? Às vezes, o sofrimento
sentimentos de solidão, estresse e
físico pode até trazer um sentimento
preocupação. Assim, a nível mental,
de satisfação mais profundo [como os
elas sofriam.
atletas depois de um treino extenuan-
te]. Por isso, “felicidade” significa princi- Nós temos uma inteligência maravilho-

palmente um sentimento de profunda sa, e por isso o nível mental da nossa

satisfação. O objetivo da vida, o nosso experiência é mais dominante do que

objetivo, é então, a satisfação. o nível físico. A dor física pode ser


minimizada ou subjugada por ele. Um
Alegria, tristeza ou sofrimento – para
pequeno exemplo: há algum tempo
estes, existem dois níveis: um nível
atrás desenvolvi uma doença grave.
sensorial e um nível mental. O nível
Sentia muitas dores nos meus intesti-
sensorial é comum com pequenos
nos. Nessa época, eu estava em Bihar,
mamíferos e até com insetos – a mosca.
o Estado mais pobre da Índia, e passei
Num clima frio, quando o sol aparece,
por Bodh Gaya e Nalanda. Lá, eu vi
as moscas exibem um aspeto feliz voan-
inúmeras crianças muito pobres. Elas
do aqui e ali. Numa sala fria elas desa-
recolhiam estrume de vaca. Não tinham
celeram, voam devagarinho, mostrando
instalações de ensino e senti-me muito
sinais de tristeza. Mas, se houver um
triste. Então, perto de Patna, a capital
cérebro sofisticado, então, até existe
do Estado, tive muitas dores e suores.
uma sensação ainda mais forte de
Reparei numa pessoa idosa, doente,
prazer sensorial. [Além disso, porém,] o
que vestia roupas brancas, muito, muito
nosso cérebro sofisticado é o maior em
sujas. Ninguém cuidava dessa pessoa,
tamanho e, portanto, também temos
era realmente muito triste. Naquela
inteligência.
noite, no meu quarto de hotel, a minha
dor física era muito severa, mas a
minha mente pensava nessas crianças e
nesse velho homem. Essa preocupação
reduziu imenso a minha dor física.

Consideremos, por exemplo, aqueles


que treinam para os Jogos Olímpicos.
#6 MARÇO 2022 43

As Causas da Felicidade zes de tratar e lidar bem com eles.

Quais são afinal as causas da felicidade? Relativamente àqueles que tomam


Eu penso que, como o nosso corpo se tranquilizantes – bem, disso eu não
sente bem com uma mente calma e tenho experiência. Não sei se quando
não com uma mente perturbada, uma as pessoas tomam tranquilizantes a sua
mente calma é por isso muito impor- inteligência é apurada ou entorpecida,
tante. Não importa a nossa situação tenho que perguntar. Por exemplo, em
física, é mais importante a tranquilidade 1959, quando eu estava em Mussoorie,
a minha mãe, ou talvez tenha sido outra
pessoa, andava agitada, com muita
ansiedade e com o sono perturbado. O
médico explicou que havia alguns me-
dicamentos que podia tomar, mas isso
tornaria a mente um pouco entorpeci- Para tal, o afeto humano compassivo
da. Pensei naquele momento que isso é realmente importante: quanto mais
não seria bom. Por um lado, obtém-se compassiva for a nossa mente, melhor
um pouco de calma mental, mas por funcionará o nosso cérebro. Se nossa
outro lado, se o efeito for o entorpeci- mente desenvolver o medo e a raiva,
mento, isso não será bom. Prefiro uma então quando isso acontece, o funcio-
outra maneira. Prefiro ter a inteligência namento do nosso cérebro piora. Numa
a funcionar na sua totalidade, atenta e determinada ocasião conheci um cien-
alerta, mas não perturbada. É melhor a tista com mais de oitenta anos de ida-
tranquilidade mental não perturbada. de. Ele deu-me um dos seus livros. Acho
que se intitulava Somos Prisioneiros da
Raiva, ou qualquer coisa assim. Ao falar
da sua experiência, disse que quando
desenvolvemos raiva por um objeto, o
objeto parece ser muito negativo. Mas
noventa por cento dessa negatividade
está na nossa projeção mental. Isto veio
da sua própria experiência.

O budismo diz o mesmo. Quando a


emoção negativa surge, não consegui-
mental. Então, como é que podemos
mos ver a realidade. Quando temos
tornar a mente calma?
que tomar uma decisão e a mente está
Agora, eliminarmos todos os proble- dominada pela raiva, então vamos
mas seria impraticável; e entorpecer a provavelmente tomar a decisão errada.
mente e esquecer os nossos problemas Ninguém quer tomar a decisão erra-
também não resulta. Temos que anali- da, mas naquele momento a parte do
sar objetivamente os nossos problemas cérebro e da inteligência cuja função é
e lidar com eles, mas ao mesmo tempo diferenciar o certo do errado e tomar a
manter a mente calma para podermos melhor decisão funciona muito mal. Até
ter uma atitude realista e sermos capa- os grandes líderes têm experiência disto.
44 BUDISMO, UMA RESPOSTA AO SOFRIMENTO

Portanto, a compaixão e a afeição medicamento talvez nos possa tempo- Na tradição indiana, nós consideramos
ajudam o cérebro a funcionar mais rariamente dar felicidade ou tranquili- o nascimento numa flor de lótus numa
facilmente. Além disso, a compaixão dade de espírito, mas não a nível total. terra pura. Isso soa muito bonito, mas
também nos dá força interior; dá-nos Podemos ver através do exemplo de se calhar as pessoas de lá têm mais
autoconfiança, que reduz o medo, e aconselhamento psicológico, que temos afeição por flores de lótus do que por
isto, por sua vez, mantém tranquila a de trabalhar com as emoções usando o pessoas. Por isso, é melhor nascer-
nossa mente. Deste modo, a compaixão diálogo e o raciocínio. Assim, devemos mos do ventre da nossa mãe, pois
tem duas funções: faz com que o nosso ter uma abordagem mental. Portanto, já trazemos connosco a semente da
cérebro funcione melhor e dá-nos força sempre que eu dou palestras, digo que compaixão. Estas são, por conseguinte,
interior. Estas são então, as causas da as pessoas modernas pensam muito as causas da felicidade.
felicidade. Eu acredito que assim seja. sobre o desenvolvimento exterior. Se

Agora, é claro que outras faculdades só prestarmos atenção a esse nível, isso
Nottingham, Inglaterra, maio de 2008,
também são boas para a felicidade. não será suficiente. A verdadeira alegria transcrito e ligeiramente revisto por Alex-
Por exemplo, todas as pessoas gostam e satisfação tem de vir de dentro. ander Berzin.
Reimpresso com a gentil autorização de
de dinheiro. Se tivermos dinheiro, Os elementos fundamentais para isso
studybuddhism.com/pt
podemos então desfrutar das boas são a compaixão e o afeto humano, que
Tradução para o português de Susana
coisas. Normalmente, consideramos vêm da biologia. Enquanto crianças, a Antunes
essas coisas como o mais importante, nossa sobrevivência depende unica-
mas acho que não é assim. O conforto mente do afeto. Se houver afeto, sen-
material pode advir do esforço físico, timo-nos seguros. Sem afeto, sentimos
mas o conforto mental tem que vir do ansiedade e insegurança. Choramos
esforço mental. Se formos a uma loja se nos separarem da nossa mãe. Se
e dermos dinheiro ao empregado e estivermos nos braços da nossa mãe,
dissermos que queremos comprar a a sentir o seu abraço seguro, firme e
paz de espírito, eles dirão que não têm sincero, então sentimo-nos felizes e
nada para vender. Muitos emprega- tranquilos. Enquanto bebés, isto é um
dos iriam pensar que somos loucos e fator biológico. Por exemplo, um cien-
fariam pouco de nós. Alguma injeção ou tista, meu professor, biólogo envolvido
com o movimento contra a violência
nuclear, disse-me que durante várias
semanas após o nascimento, o contato
físico da mãe é muito importante para
o desenvolvimento do cérebro e do
próprio bebé. Traz um sentimento de
segurança e conforto, e isto conduz a
um desenvolvimento físico adequado,
Tenzin Gyatso
incluindo o do cérebro.
XIV Dalai Lama
Assim, a semente do afeto e da compai-
xão não é algo que venha da religião:
ela vem da biologia. Cada um de nós
veio do ventre das nossas mães, e Susana Antunes
Engenheira e Instrutora de Meditação
cada um de nós sobreviveu graças ao
Transpessoal
carinho e aos cuidados da nossa mãe.

O AMOR VERDADEIRO É FEITO
DE QUATRO ELEMENTOS:
BONDADE, COMPAIXÃO, ALEGRIA E
EQUANIMIDADE.
THICH NHAT HANH
46 BUDISMO, UMA RESPOSTA AO SOFRIMENTO

Um monte, um projeto,
com Dharma
O nosso sonho pessoal é poder continuar a cultivar uma vontade ge-
nuína de praticar o dharma e conseguir algum progresso, tentando
que as expectativas não se intrometam no caminho.

DIANA E IGOR
Entrevista por João Magalhães
#6 MARÇO 2022 47

Diana e Igor mudaram as suas vidas


na realização de um sonho e o dharma
encontra-se sempre presente no que
fazem e vivem. Partilham connosco um
pouco da sua história.

Como encontraram o Dharma num vas, não existem grandes distrações.


ponto comum na vossa vida? Organizamos caminhadas meditativas,
retiros e oficinas presenciais e online
Na verdade, encontrámos o Dharma
relacionados com o Dharma e com uma
separadamente antes de nos conhecer-
vida saudável e compassiva.
mos. Desde que estamos juntos, temos
aprofundado e crescido juntos nesta
caminhada. O Dharma veio responder a Este vosso projeto é também uma
algumas inquietações e dar um sentido forma de as pessoas se retirarem da
ao mundo que nos rodeia. sua corrida habitual quotidiana, para
Quando encontrámos o Dharma foi como um momento de maior intimidade
encontrar um Oásis depois de deambular com a natureza e cuidado pessoal a
tempos infinitos no meio do deserto. vários níveis. Como é geralmente um
fim-de-semana no Monte do Almo?

São dias mais em sintonia com os


Do Porto para o Alentejo, como o
ritmos da natureza: acorda-se cedo,
Dharma viajou na vossa vida e de
deita-se também cedo. É um refúgio, 2 bicicletas que os hóspedes podem
que forma a levam a quem vos visita?
especialmente para quem vem da cida- usar. E podemos organizar pequenas
Tentamos que o Dharma guie a nossa
de. Não temos as distrações habituais sessões como por exemplo introdu-
vida. Desde as nossas motivações às
(televisão, música, etc). O silêncio impe- ção à meditação ou princípios para
nossas ações. Por isso foi com na-
ra, à volta só existem campos, ovelhas, uma alimentação saudável. E aulas de
turalidade que começámos a aliar o
vacas,... À noite, em dias de céu limpo, yoga, massagem shiatsu,... com alguns
Dharma à nossa actividade profissional
como não há luz no exterior, o céu parceiros. Depende da motivação de
em 2017 com a Macro Viagens (www.
parece um mar de estrelas. Às 07:30 da quem vem, mas normalmente são dias
macroviagens.pt), organizando tours
manhã temos uma sessão de medita- simples, alinhados com uma vida mais
e peregrinações para Índia, Sri Lanka,
ção aberta a quem queira participar. saudável e tranquila.
Nepal e Butão. Depois, surgiu o Monte
Há quem venha para praticar, ler, estar
do Almo (www.montedoalmo.com) -
mais retirado, há quem venha também
uma homestay compassiva no Alentejo Quem e o que mais vos influencia
para passear, estar em contacto com
profundo, onde vivemos. No Monte do no Dharma? Que ensinamento mais
a natureza, fazer caminhadas e até
Almo, recebemos hóspedes que quei- ecoa na vossa mente e coração?
visitar algumas aldeias e pequenas
ram estar em ambiente de retiro, na
cidades próximas. Normalmente os Os grandes praticantes do passado e
natureza. Temos sessões de meditação,
assuntos de conversa vão parar a temas do presente são uma inspiração para
algumas regras que vão ao encontro ao
mais profundos. O ambiente inspira nós, às vezes até um pouco assustado-
princípio da não violência e ao respeito
a isso. Também podemos propor res pela sua grandiosidade. Tentamos
pela vida de todos os seres, as refeições
algumas caminhadas na natureza com que todos os que exprimam genuina-
que disponibilizamos são compassi-
um mindset mais contemplativo, temos mente virtude e sabedoria sejam uma
48 BUDISMO, UMA RESPOSTA AO SOFRIMENTO

influência. É muito difícil escolher um tativas não se intrometam no caminho.


ensinamento em particular porque Gostaríamos também de ver o dharma
consideramos todos indispensáveis a florescer no mundo. Não nos referi-
em certa medida. O Budismo tem algo mos necessariamente ao budismo, mas
de fascinante por ser um sistema que dharma no sentido mais lato. Algo que
promove a não-dualidade o que não é promovesse virtude, altruísmo, floresci-
muito frequente de encontrar noutras mento interior.
tradições. Olhando para os dias de hoje,
ensinamentos sobre virtude e disciplina
Que desejo querem deixar para os
ética, altruísmo e compaixão parecem-
nossos leitores?
-nos ser de grande importância.
Que tentem alimentar um genuíno inte-
resse pelo crescimento interior, ao invés
A pandemia acabou por limitar bas- de tentar encontrar a felicidade fora.
tante a presença, no entanto como
têm estado a fazer em relação aos
habituais retiros?

O nosso espaço tem a particularidade Algumas escolas de Dharma advo-


de ser familiar e intimista, o que é uma gam o estar presente também atra-
vantagem. Só recebemos no máximo 6 vés da caminhada, estando rodeados
hóspedes em simultâneo. Temos tido por natureza encontram também
bastante adesão, quer de pessoas que essa prática meditativa?
vêm passar uns dias, quer nos retiros O contacto com a natureza tem alguns
e caminhadas meditativas que temos benefícios. Um deles é o de normal-
organizado. Vamos ter um retiro no mente conseguirmos experienciar
Carnaval sobre “Desmascarar a Mente - a sua beleza sem nos sentirmos
Introdução á Meditação” que está com- apegados. Em determinados objetos
pleto. Na Páscoa, vamos ter um retiro a sua beleza pode despertar em nós
de Imersão na Saúde Natural. Espera- sentimentos de apropriação ou fixação.
mos 1 vez por mês poder organizar um Normalmente com a natureza isso não
retiro de 3 ou 4 dias e uma caminhada acontece. No entanto nos dias de hoje
meditativa. Os restantes dias ficam para as pessoas que vivem o frenesim
livres para quem queira vir em família da vida moderna, estar só na natureza
ou até sozinho. é em si terapêutico. Induz naturalmen-
te serenidade e é revitalizante.

Qual o vosso maior sonho neste


caminho do Dharma?

O nosso sonho pessoal é poder conti-


nuar a cultivar uma vontade genuína
Diana e Igor
de praticar o dharma e conseguir al-
Empreendedores - Monte do Almo e Macro
gum progresso, tentando que as expec- Viagens

COM A DEVIDA PRÁTICA, PODE
FIRMAR-SE NO PRESENTE PARA
PODER TOCAR AS MARAVILHAS
DA VIDA QUE ESTÃO DISPONÍVEIS
NAQUELE MOMENTO.
É POSSÍVEL VIVER FELIZ NO
AQUI E AGORA.
THICH NHAT HANH
O Gatha da Transferência
de Mérito
Que a generosidade, a compaixão,
a alegria e a equanimidade permeiem
todo o Universo;
Que valorizem as bênçãos, criem
vínculos, beneficiem o Céu e a Terra.
Pratiquemos o Chan com pureza,
sigamos os preceitos,
aceitemos tudo com serenidade;
Façamos os Grandes Votos
com humildade e gratidão.

Convidamos os nossos leitores a partilharem


connosco as suas versões de transferência de mérito.

Segue-nos em:
www.budismo.org.pt // instagram.com/budismo.portugal

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