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Ortodontia em foco

Ponto A ortodontia, da especialidade


à trivialidade
de vista
P raticamente um século depois de inventada e oficializada a especialidade nos Estados
TEMA DE CAPA

Unidos da América, e após um longo percurso acidentado por arremetidas políticas


contra os argumentos socioprofissionais, em 1999, a Santa Ordemi lá nos autorizou a vestir
a farpela de especialista da religião ortodônticai.
O título auferido, que em nada nos tornava luminárias insignes no seio da classe, atestava,
apesar de tudo, perante a plebe e a alta-roda dos dentistas, bem como face a toda a popu-
laça, que os ortodontistas possuíam conhecimentos profundos e específicos para o exercí-
cio da especialidade. Como já referi, em artigo sobre o assuntoii, valorizava-se assim a espe-
cialidade e os especialistas, criando as normas e os treinosiii, enfim, a ginástica obrigatória a
que qualquer médico dentista teria que se submeter, caso quisesse vestir, de forma elegan-
te, a fatiota luxuosa da especialidade, bem como praticar exclusivamente a religiãoiv.
Agora, os irmãos dentistas que o desejassem, poderiam tornar-se apóstolos da religião or-
S todôntica, não fora estar regimentada toda a Via Sacra a percorrer para alcançar uma tal

Afonso Pinhão religiosidadev. Quem o quisesse, teria que frequentar intensivamente a catequese num
templo idóneo durante três anosvi,vii.
Ferreira E, foi assim que “Naquele tempo” se estruturou a primeira especialidade de Medicina Den-
Médico dentista ortodontista. tária no paísviii, resultando numa religiosidade protocolarmente constituída, com vários can-
Atual presidente do Conselho didatos à Via Sacra para poder usar aquelas vestes ímpares, após absolvição pelos Cardeais
Científico da SPODF e vogal da Ordemix. Por isso, cada um dos irmãos ordenados ortodontistas, sabe bem o grau de
da direção da APESORT. exigência que implica obter o título da especialidade, a quantidade de conhecimentos teó-
ricos de diversa índole, os anos de prática clínica e os exames seletivos a que teve ou tem
de se sujeitar para que seja reconhecido como competente exercício da especialidade pe-
los seus pares. E, também sabe que existem em Portugal (e na Europa), departamentos do
Ensino Superior (templos acreditados pela Santa Ordem) para ministrarem os sagrados en-
sinamentos da doutrina ortodôntica.
Permitam-me que me repita, dada a atualidade do que naquele artigo foi profetizado: “En-
tretanto, os anos foram caindo e arrastaram consigo as gravatas de seda e os sapatos de poli-
mento que envernizavam o título de especialista em ortodontia. Muitos dos irmãos, usam o
fato da especialidade sem gravata, esquecendo-se que a doutrina obriga a amplos conheci-
mentos e assaz decoro. Vulgarizam a especialidade, consentindo numa acessibilidade desme-
dida e sem controlo. Promovem duas ou três missas num ou dois fins de semana e habilitam
qualquer infiel a exercer a religião. Promovem a confusão entre oclusão funcional e alinhamen-
to, entre correção ortodôntica e colocação de aparelhos, entre mau tratamento ou recidiva e
crescimento facial atípico inesperado ou falta de cooperação do paciente.
Enfim, auferindo da tolerância do politicamente correto, e gozando do bem supremo que a so-
ciedade de hoje oferece (leia-se liberdade), trocam o interesse da classe pelo proveito individual,
semeiam a incredibilidade na comunidade sobre o nosso ganha-pão, autorizam uma concor-
rência eticamente insana e prejudicam seriamente a saúde pública, condenando, sem se darem
conta, a sua própria sobrevivência profissional”.
Porém, nada fazia antecipar tamanho desnorte ou desrespeito pela religiosidade ortodôn-
tica, não fora ter-se institucionalizado a promoção da irmandade com a fundação da Socie-
dade Portuguesa e Ortopedia Dento-Facialx, edificado várias catedrais de ensino especiali-
zado público e privadoxi, criado o respeitado Colégio de Ortodontia que ditou as regras de

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acesso à especialidade, ter-se realizado exames. Enfim, cria-


ram-se as condições para um desenvolvimento imenso, curri-
cular, científico e clínico, com amplo benefício para todos os
fiéis da comunidade.
Entretanto, durante todos estes anos litúrgicos, foram surgindo

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novos santos a pregar a religião e novas formas de a aplicar e
divulgar. Verificaram-se melhorias substanciais, com novos
evangelhos para práticas protocolares diversas e dispositivos
auxiliares que foram diluindo as falhas da religião, como sejam
os estudos comparativos clínicos e científicos, a ancoragem ós-
sea, os aparelhos funcionais fixos, as biomecânicas de distaliza-
ção, os diagnósticos e planificações informáticas a três dimen-
sões, os tratamentos interdisciplinares reabilitadores e

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cirúrgicos ortognáticos, etc.
Passou a cantar-se a diversas vozes em todas as missas ortodôn-
ticas, tendo-se, todavia, esquecido a circunstância que a biolo-
gia não distingue quem provoca as forças, além de procurar
sempre compensar os desequilíbrios muscoesqueléticos e oclu-
sais que promovemos. E, sempre que surgia um dispositivo
ateu, lá o convertíamos à religião para o usarmos quando dele postos, ou seja, uma oclusão virtualmente perfeita. Olha-se pa-
necessitássemos enquanto auxiliar do tratamento ortodôntico. ra aquele resultado e acredita-se. É a fé própria das religiões a
Mas tudo se processava de acordo com os cânones adotados. funcionar. Nem se discute; acredita-se.
Esta crença desmedida na elastodontia, prende-se com várias
circunstâncias e implica consequências inimagináveis para a

Quero que fique bem claro que a elastodontia ortodontia, que interessam analisar. Desde logo e uma vez
mais, é o mercado quem mais ordena. Em prol do vil metal,
tem lugar no meu arsenal terapêutico, mas ultrapassaram-se as regras que a profissão ditou e adotou, com
como mais um meio auxiliar de ortodontia e não a anuência sobrevinda do silêncio dos profissionais.
como uma nova filosofia de tratamento Em abono da verdade, a religião dos alinhadores pode ser
adotada por qualquer dentista, ortodontista, médico e, daqui
a pouco, pelo próprio paciente, que enviará ele próprio os
No entanto, surgiu uma nova forma de viver a nossa religião, a seus dados e receberá em casa os alinhadores com um livri-
qual põe em risco todo o ritual simbólico responsável pelo desen- nho de orações a cumprir, dispensando totalmente o clero or-
volvimento da ortodontia. Nos últimos anos, constituiu-se uma todônticoxiii.
nova catequização ortodôntica, uma nova crença que dá pelo O problema é de extrema complexidade, já que mexe com a fé
nome de elastodontia, que levou os fiéis e os irmãos especialistas das pessoas. Há artigos científicos que provam que a maioria
a pensar que os dispositivos que disponibiliza, são uma nova reli- dos pacientes fica satisfeito apenas com o alinhamento dos
gião e não, mais um meio auxiliar da atual, como seria expectável. seis dentes anteriores. Dito de outra forma, a estética facial, a
Dito de outra forma, nesta “nova” religião o ortodontista cum- oclusão funcional, a saúde periodontal e temporomandibular,
pre o ritual usual, obtendo dos fiéis a tratar, as fotografias pa- a eficiência mastigatória e respiratória, a harmonia músculo-es-
dronizadas extra e intraorais, as radiografias rotineiras, os mol- quelética, rendem-se ao alinhamento dos dentes anteriores. E,
des (ou scan) e, envia esses dados para uma central empresarial as empresas que fabricam esses dispositivos antirreligiosos, sa-
que estuda o caso e reenvia uma proposta de tratamento vir- bem-no tão bem que se atreveram a criar novas regras para a
tual, obrigando ao pagamento de uma espórtula . E, naquela
xii
ortodontia, à margem da classe.
sugestão terapêutica (esquisso informático), vem tudo o que Querem ser modernos elastodontistas transcendentais, em vez
almejamos. Na visualização informática desse plano, verifica- dos arcaicos ortodontistas ocluso-funcionais? Nada mais fácil.
mos o que acontece após o uso de todos os alinhadores pro- Dão um forte donativo à nossa religião para frequentar um cur-

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Tenho a certeza que muitos dos poucos que lerem estas con-
siderações, irão pensar que o Afonso Pinhão Ferreira está dé-
modé, caduco e incapaz de acompanhar o progresso. Direi tão
só, que também fiz o dito curso de mestrado, comprei o relicá-
rio e que cumpro as orações todas quando trato os meus fiéis
com alinhadores. O que não implica que não saiba que muitos
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casos não podem ser tratados apenas com alinhadores, como


sejam todos aqueles que necessitam de movimentos exten-
sos (e são muitos), designadamente extrusivos, rotativos e de

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torque. Por isso, quero que fique bem claro que a elastodontia
tem lugar no meu arsenal terapêutico, mas como mais um
meio auxiliar de ortodontia e não como uma nova filosofia de
tratamento.
Além disso, continuo a achar que a ortodontia deve ser ensina-
da em departamentos universitários e por especialistas. Só as-
so de mestrado, ministrado por um dos nossos acólitosxiv. Com sim, a ortodontia não passará da especialidade à trivialidade.
outro donativo, adquirem um relicário (scanner) da nossa con- Assim, em nome da proteção da saúde pública e na salva-
fissão e depois pagarão cada vez menos pelos tratamentos, guarda de tudo o que desenvolveu a ortodontia, estas consi-
quantos mais fiéis tratarem (uma espécie de redução propor- derações devem ser levadas em linha de conta pelas institui-
cional da dízima). ções e autoridades competentes da classe, como sejam a
Cegos pela fé, sequiosos pela tecnologia virtual, os ortodontis- Sociedade Portuguesa de Ortopedia Dento-facial (SPODF), a
tas nem contas fazem, pois se as fizessem concluiriam facil- Associação Portuguesa de Especialistas em Ortodontia (APE-
mente que ganham menos de metade com a elastodontia do SORT), os diretores dos cursos de especialização em Ortodon-
que o que ganhavam com a ortodontia, fora o investimento tia, e o Colégio de Ortodontia da Ordem dos Médicos Dentis-
inicial. tas (OMD).

Notas
i. Leia-se Ordem dos Médicos Dentistas (OMD). Primeiros mem- de 1991 a 2019, tendo sido o coordenador responsável durante
bros designados para o Colégio de Ortodontia da OMD: Afonso cerca de vinte anos.
Pinhão Ferreira, António Korrodi Ritto, Carlos Silva, Fernando viii. A especialidade de Cirurgia Oral, criada com a nomeação de
Mendonça, Luís Jardim, Maria Cristina Figueiredo Pollmann, Pe- um grupo inicial de quatro colegas no mesmo ano de 1999,
dro Leitão. só abriria as suas portas 18 anos depois.
ii. “Honrada seja a nossa especialidade” na rubrica “Controvérsias” ix. Exame de especialidade à Ordem promovido pelo Colégio de
da Revista Clínica de Ortodontia da Sociedade Portuguesa de Ortodontia.
Ortopedia Dento-Facial (SPODF) de março de 2018. x. Orgulho-me de ter sido um dos fundadores e seu presidente
iii. Regulamento de Atribuição de Títulos de Especialidade (RATE) da direção durante sete anos.
e Regulamento Interno do Colégio de Ortodontia (RICO). xi. Cursos de especialização (outrora de pós-graduação) em Orto-
iv. Fui o primeiro médico dentista a dedicar-me à prática exclusiva dontia com idoneidade conferida pela OMD: Universidade do
de ortodontia em Portugal. Porto, Universidade de Coimbra, Universidade Clássica de Lis-
v. Obter o curso de Medicina Dentária (seis anos), ter aproveita- boa (públicos), Instituto de Ciências da Saúde do Sul e Coope-
mento num curso de especialização em ortodontia num de- rativa de Ensino Superior Politécnico e Universitário (privados).
partamento universitário (3 anos) e depois ser aprovado em xii. Pagamento de uma quantia, normalmente estipulada pela
exame da especialidade na OMD. Diocese do lugar, para a celebração da Santa Missa aplicada
vi. Curso intensivo de pós-graduação em ortodontia em estabe- à determinada intenção de um fiel. Gastos para a celebração
lecimento universitário ou similar. do culto.
vii. Ajudei a fundar o 1º Curso de Pós-graduação em Ortodontia xiii. Torna-se desnecessário o ensino pós-graduado universitário
do país, na Faculdade de Medicina Dentária da Universidade da ortodontia.
do Porto (1991-1993), onde fui simultaneamente discente e xiv. A maior parte nem sequer especialistas de ortodontia são.
docente. Fui docente do ensino especializado de ortodontia

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