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“O nosso conformismo vai levar-nos ao abismo”

Caros Médicos Dentistas


Valiosos Colegas

Encontro-me confuso e deveras apreensivo, para além de muito atarefado com o


problema do licenciamento dos aparelhos radiológicos dentários, bem como sobre quem os
pode utilizar. Atento ao que vou lendo, penso que esta minha sensação é transversal à classe
profissional. Peço, desde logo, que entendam as minhas palavras apenas como um lamento,
em jeito de desabafo, já que depois de tanto consultar e analisar, apenas sobrou como
conclusão, que o licenciamento radiológico em curso, nada mais é que mais uma forma injusta
de extorquir dinheiro à classe médico dentária e uma maquinação política de favorecimento
dos grandes grupos económicos que investem em grandes clínicas. Tudo, com o beneplácito
dos nossos governantes.
Levantaram um problema que, de facto, nunca existiu. Durante o último século, os
dentistas sempre clinicaram com o indispensável recurso a imagens radiológicas, não tendo
havido nenhum problema significativo documentado nem nenhuma emergência relatada,
relativo à saúde individual nem, tão pouco, à saúde pública. Esta evidência da não existência
de danos aos profissionais e a terceiros, fundamenta-se como um dado científico, não fora
ser estatisticamente significativa. Na realidade, mesmo efetuando uma pesquisa em bases de
dados conceituadas, encontram-se artigos científicos com conclusões totalmente díspares,
ou seja, existem autores que defendem a inexistência de qualquer risco comprovado,
enquanto outros acreditam no oposto. Dito de outra forma, não há evidência científica para
tamanha alteração legislativa de feição preventiva, no que diz respeito à utilização da
radiação ionizante na prática dentária. Pura e simplesmente, não há um fundamento credível
para este exagero legislativo e inspetivo, o que torna o processo não justificável.
Há, de facto, investigações e textos que alertam justamente para tal situação, ou seja,
a existência de resultados contraditórios, pelo que não se pode afirmar nada em concreto,

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nada onde haja evidência científica, clara e irrefutável das doses ionizantes dos aparelhos
dentários serem nocivas ao ponto de causarem danos sérios. A utilização da radiologia
dentária por mais do que um século sem provas de causar dano, e a controvérsia científica
existente sobre a matéria, não justificam então, de forma alguma, toda esta panóplia
legislativa de procedimentos burocráticos, protocolos desmesurados, consentimentos
escusados, ameaças assustadoras e coimas desproporcionadas.
Pergunto: estamos a prevenir o quê? E, porquê? Não haja dúvidas, o problema foi,
pura e simplesmente, criado agora. Têm que se justificar os salários advindos do trabalho
burocrático dos senhores políticos europeus e dos seus congéneres portugueses. E, caros
colegas, os problemas concebidos são diferentes dos ocorridos, não fora carregarem
propósitos que obedecem a estratégias de feição política.
Na verdade, a circunstância de não existir história significativa de danos, nem nenhum
caso de acidente com aparelhos radiológicos dentários, não alicerça esta demasiada
exaltação no preciosismo e na amplificação da lei. Aliás, essa constatação seria, só por si,
justificável para, apesar de haver a necessidade de adequar a legislação1 às também
exageradas diretivas europeias2, não sermos tão escrupulosos nas normativas a
convencionar, a cumprir e a fiscalizar.
Leiam com atenção a Diretiva Europeia e a consequente lei portuguesa, e verão como
se extrapola a essência do documento, passando de regulador a fiscalizador. Perguntem a
colegas que trabalham nos outros países se o titular de um consultório médico dentário tem
que se sujeitar a tamanha burocracia, se é obrigado a pagar o ensino especial sobre a matéria
radiológica em cursos pós-laborais, ou ainda se as multas3 por incumprimento, são de valor a
arruinar para sempre a vida do incumpridor.
Porém, como facilmente se poderá notar, importa semear a enfatização de um perigo
desmesurado para os pacientes e acompanhantes, para os profissionais e para a saúde
pública. Decorrem daí vantagens. O risco deve ser tamanho que não chega regular, mas sim
inspecionar e multar. Trata-se de um grave risco que durante anos e anos esteve escondido,
mas que se revela agora nos consultórios dentários.

1 Decreto-Lei º 165/2002, Decreto-Lei nº 227/2008.


2 Diretiva europeia 96/29 – EURATOM.
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As coimas vão de 24000 a 5 milhões de euros.

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Vejamos como interessa que exista toda esta tramitação em redor do problema ora
criado. Quantos milhões de euros irão arrecadar as escolas que propinarão os alegados
conhecimentos sobre segurança radiológica, nos seus mais distintos níveis? Quanto não
lucrarão as empresas que são contratadas para investigar a conformidade à lei, relativamente
às instalações, aos equipamentos e à adequação curricular dos operadores? Quanto
amealharão as empresas de controlo de qualidade e de auditoria clínica, bem como os
“indispensáveis” especialistas em física médica? E as empresas de venda de sinalização
luminosa, produtoras de autocolantes, fornecedoras de tripés para os aparelhos portáteis e
respetivos comandos com botão de disparo, abastecedoras de colimadores retangulares?
Ficam também assegurados os imensos contratos a que ficamos obrigados, de inspeção
técnica periódica obrigatória pela nova lei, bem como a necessidade de seguros específicos.
Dito de outra forma, cabe aos médicos dentistas, a obrigação de gerar emprego social, a
incumbência de contribuir para o ensino lucrativo, a missão de viabilizar empresas do setor,
entre muitos outros encargos.
Esta overdose da legislação para a conformidade radiológica dos consultórios
dentários, que, se bem analisada, cai nos anais do ridículo, não só não faz qualquer sentido,
como irá certamente, e como é habitual, cooperar para que os profissionais prefiram
incumprir, ou escolham arriscar sofrer as propagandeadas e ameaçadoras fiscalizações, ou
então, optem mesmo por se sujeitar à ruína que advirá das coimas. Com efeito, pugnar pela
legalidade em Portugal é, manifestamente, a assunção de um atestado de burrice, como
comummente se tem vindo a demonstrar. Nunca se alcança a conformidade com a lei, mesmo
que se tenha essa preocupação ou sejamos detentores de certificados de qualidade. Há e
haverá sempre algo que não está bem.
É inegável que as leis que regem a sociedade portuguesa são excessivas e,
frequentemente, injustificadas; são demasiado intrincadas, desmedidamente mutáveis e
tremendamente confusas, para que se provoque dilatada dificuldade em as entender. Tenho
para mim, que essa complexidade, confusão e inconstância, não é inocente, tornando difícil,
quiçá uma impossibilidade, a inexistência de lapsos, imprecisões, desajustamentos,
desequilíbrios, enfim, um sem número de imprevisibilidades para o cidadão/profissional, que
o tornarão frágil perante um poder esotérico. Poder-se-ia dizer vulgarmente que o inevitável
incumprimento da lei não aproveita a ninguém, mas aproveita ao Estado.

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A radiologia dentária deve ser regulada, e sempre o foi com a efetivação de contratos
de licenciamento e inspeção cíclica dos aparelhos radiográficos com empresas próprias para
esse efeito, além da obrigatoriedade da dosimetria da radiação pelos funcionários adstritos à
área. Era a Direção-Geral de Saúde (DGS) que supervisionava a segurança das condutas
radiológicas nas clínicas dentárias, obrigando ao licenciamento e à verificação periódica e à
manutenção de equipamentos, bem como às anotações de dosimetria. Vivíamos assim, sem
sobressaltos e sem registo de danos causados pelas nossas insignificantes doses de radiação,
tão só porque não existiam, nem existem.
Nos tempos mais recentes, tendo por suporte a Diretiva Europeia 2013/59/Euratom,
os nossos legisladores fabricaram o Decreto-Lei n.º 108/2018, assumindo-se como “mais
papistas que o papa”. A lei e o que dela se desprende, lançou uma violenta caça às bruxas,
digo, aos médicos dentistas. O principal caçador é o Estado Português, que dispara através de
uma nova instituição da Administração Pública: a Inspeção-Geral da Agricultura, do Mar, do
Ambiente e do Ordenamento Território (IGAMAOT). Pergunta-se: o problema radiológico
deixou de ser um assunto clínico, para se transformar numa rubrica do âmbito agrícola? Uma
matéria relacionada com o mar, ou será com o ambiente? Será ele que vai ditar o
ordenamento do território? Uma coisa é certa, não se trata de assunto da Direção Geral de
Saúde e, pelo que vemos, talvez sejam os aparelhos de radiologia dentária os responsáveis
pela degradação do ambiente.
Caros colegas: simplesmente ridículo.
Penso também ser legítimo e oportuno perguntar porque pagamos anualmente uma
taxa à Entidade Reguladora da Saúde (ERS)? Com efeito, compete a essa organização
assegurar o cumprimento dos requisitos do exercício da atividade dos
estabelecimentos prestadores de cuidados de saúde, incluindo os respeitantes ao
regime de licenciamento desses estabelecimentos. Incumbe, de facto, à ERS, entre
outras obrigações, pronunciar-se e tecer recomendações sobre os requisitos necessários para
o funcionamento dos estabelecimentos prestadores de cuidados de saúde, bem como instruir
e decidir sobre os pedidos de licenciamento dessas instituições e assegurar o cumprimento
dos requisitos legais e regulamentares do seu funcionamento. Então não deveriam verificar a
conformidade das instalações radiológicas? Verificar o licenciamento dos aparelhos,
responsabilizar os titulares e diretores clínicos, bem como proporcionar o aconselhamento

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através de físicos contratados com o dinheiro que nos cobram? Ou será que regular é só taxar
e fiscalizar?
Ora, num telefonema havido sobre este não assunto, com um vendedor de
equipamentos dentários, surgiu de imediato a sugestão de só legalizar um dos três aparelhos
portáteis de raios x que a minha clínica possui e utiliza. Para quem defende a licitude na praxis
laboral, a ideia foi recebida como inaceitável. Todavia, após ter conhecimento que se legalizar
os três aparelhos, acedendo ao impositivo legal, teremos de comprar três tripés com disparo
à distância (os quais nunca se irão usar, dado que a orientação desses aparelhos portáteis é
de extrema dificuldade, para não dizer impossível na maioria dos atos clínicos), devo
reconhecer que a ideia era tentadoramente aconselhável. Perante essa observação, os
técnicos que vieram à minha clínica verificar o processo de licenciamento radiológico,
transmitiram-me que sabiam dessa dificuldade, mas que, mesmo assim, tínhamos de comprar
os tripés e tê-los na clínica para a eventualidade de uma fiscalização. E, não podia ser um tripé
para os três aparelhos, teriam que ser três, um para cada um dos dispositivos, com os
respetivos botões de disparo à distância. Dito de outra forma, somos obrigados a um
consumismo desnecessário e a produzir lixo, na época em que a ecologia é assunto
inquietante e prioritário para todos. Importa não aceitar este insulto à inteligência, atentado
ao nosso bolso e, sobretudo, pactuar com mais um crime ao meio ambiente.
Como se tal não bastasse, a empresa que veio prestar apoio ao licenciamento
radiológico na minha clínica, pela exígua quantia de 3 751,50 euros, a pagar obrigatoriamente
em prestações contratadas com débito direto na nossa conta4, recomendou que os aparelhos
portáteis não saíssem de determinados espaços (consultórios), que não deviam “circular” na
clínica. Convém lembrar que não é obrigatória a existência de um aparelho de radiologia
dentária num consultório.
Pergunto: o que será então um aparelho de radiografias portátil? É claro que a
explicação desta exigência ilógica encontra fundamento no lucro imoral e, portanto, indevido.
Quantos mais aparelhos uma clínica utilizar, mais se terá que pagar à empresa que verifica a
conformidade radiológica. Se uma clínica tiver três gabinetes médico dentários e um aparelho
portátil pagará 1x, mas se tiver um aparelho por cada gabinete pagará 3x. Fica assim

4 Tivemos que aceitar o débito direto, caso contrário não fariam o serviço dado o aumento da procura por instituições deste tipo.

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explicada, caros colegas, a recusa em aceitar a portabilidade dos aparelhos usados há mais
de 30 anos nos Estados Unidos da América e em muitos países europeus.
Ainda relativamente aos aparelhos portáteis, importa compreender que foram
fabricados com blindagens mais robustas para que a radiação secundária fosse reduzida ao
valor mínimo aceitável, e testados para que tivessem um feixe primário muito preciso.
Quando compramos esses dispositivos, eles já tiveram que se sujeitar à certificação europeia
para receberem o selo de garantia de produto de qualidade, caso contrário, não poderiam ser
fabricados e, muito menos, vendidos para utilização clínica. As empresas fabricantes e
vendedoras têm que pagar para avaliar a conformidade do produto para obter a marcação
europeia de certificação qualitativa, bem como a verificação da conformidade aos Estados
Membros. Os compradores pagam depois o produto e o IVA. Como se tal não fosse suficiente,
os médicos dentistas têm ainda que tornar a pagar periodicamente para retificar aquela
conformidade. O que é isto senão uma espécie de tributação excessiva e repetida?
Quem estuda e tenta assenhorear-se dos suficientes conhecimentos sobre esta
matéria, sabe bem que se comprova que os colimadores retangulares são mais eficazes contra
a dispersão da radiação. Justifica-se assim a sua utilização. Todavia, a prática demonstra não
ser viável a sua permanente utilização. É extraordinariamente mais difícil orientar o aparelho
para conseguir uma imagem do que se pretende. Isto é de tal forma verdadeiro, que há até
cursos teórico-práticos para ensinar a sua correta utilização. Mesmo assim, no decurso de
certos atos clínicos, como por exemplo, durante um tratamento endodôntico, a dificuldade
para orientar o feixe radioativo aumenta muito, levando a imensas falhas e a ter que se repetir
inúmeras vezes as radiografias intraorais. Mas estas repetições não constituem um risco; o
risco advém de não possuir o colimador retangular. No mínimo, esta exigência é anedótica.
Além do alegado, é de grande dificuldade adquirir no mercado estes “recomendáveis”
colimadores que, por aquelas razões, apenas se usam em situações especiais.
Adicionalmente, também não me parece que a lei seja razoável na justificação da
obrigatoriedade da contratação dos serviços de um técnico especialista em radiologia
dentária, a quem chamam Físico. Trata-se, a meu ver, de uma imposição às empresas privadas
(clínicas) para gerar emprego e aumentar, consequentemente, os custos. Nas instituições
públicas, que deviam ser exemplo para as privadas, a contratação de alguém ou de uma
prestação de serviço que obriga a uma prestação pecuniária periódica, implica a existência de

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cabimentação orçamental. Pois bem, quantas clínicas poderão suportar mais este encargo
adicional?
Se o exercício da medicina dentária tem implícito o uso da radiação ionizante como
meio diagnóstico e auxiliar terapêutico, não seria exigível que o ensino superior responsável
pelo ensino da medicina dentária, fosse obrigado a integrar no seu plano de estudos
curricular, as disciplinas indispensáveis para assegurar que o profissional saia preparado a
esse nível? A obtenção do diploma não seria a comprovação da sua competência nesta área?
Pergunto: um dia destes não teremos que nos inscrever e pagar as propinas para nos
adequarmos às novas formas de desinfeção e de esterilização?
Pessoalmente, considero um insulto aos médicos dentistas, o facto de serem
obrigados a pagar e a frequentar uma formação sobre proteção radiológica. Penso que quem
obtém um curso superior, fica não só habilitado ao exercício da profissão para a qual estudou,
mas também a saber procurar e complementar os conhecimentos que inexoravelmente se
vão modificando ou surgindo. Será assim tão difícil saber o que é uma exposição ocupacional,
exposição do público, o princípio de otimização das doses de radiação, o princípio da
justificação, o princípio ALARA, os protocolos adstritos à radiologia?
Permitam-me que cite o que vem nas recomendações da lei, para se aperceberem
como é difícil decifrar as leis e as recomendações:
“… No entanto, o titular deverá, nas práticas sujeitas a licenciamento, demonstrar que o aconselhamento prestado pelo
especialista em física médica existe na sua instalação, obedecendo aos fatores previstos para o efeito, também calculados de
acordo com a publicação acima referida. Por outras palavras, quando o titular realizar práticas que estão sujeitas a licenciamento,
deverá indicar qual o especialista em física médica que lhe irá prestar o aconselhamento necessário, nos temas acima indicados,
devendo esse aconselhamento abranger o Equivalente de Horário Completo necessário, calculado nos termos da publicação
RP174. A determinação das necessidades de participação do especialista em física médica é uma das componentes dos
formulários para licenciamento de práticas que envolvem exposições médicas, sendo que a mesma é proporcional ao risco
associado à prática.”

Sublinhei propositadamente algumas passagens, mas deixo ao colega o cuidado de as


julgar. Digo apenas que, se for em função do risco (que é praticamente nenhum), se vê essa
contratação como uma desnecessidade.
Pelo que se depreende, da legislação portuguesa advinda da diretiva europeia 96/29
– EURATOM, um consultório dentário é um local perigoso e desconfiável, um sítio de alto
risco a evitar. Não se admirem se começarem agora a aparecer corpos caídos nas imediações
dos consultórios médico dentários.
E, só há uma forma de inverter tudo isto, a qual passa por:

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- Cumprir escrupulosamente a lei;
- Acatar todas as recomendações;
- Pagar às empresas licenciadoras das instalações e dispositivos radiológicos;
- Reverenciar e pagar os aconselhamentos dos Físicos;
- Tornar os aparelhos portáteis em fixos;
- Burocratizar as consultas com consentimentos informados;
- Contratar um novo funcionário para enviar aos pacientes os registos das radiações a
que foi submetido;
- Por fim, fechar o consultório.

Notem que estas informações sobre os terríveis riscos associados à radiologia dentária
vão chegando de forma amplificada à opinião pública, havendo o perigo de se associar certas
moléstias adquiridas às consultas nos médicos dentistas. Não se surpreendam que venhamos
a ter de pagar indemnizações retroativas por presumíveis danos provocados com os
tratamentos realizados. Apenas ainda não se lembraram.
A verdade é que um paciente que tenha uma odontalgia e necessite urgentemente de
um tratamento endodôntico radical, terá que se sujeitar aos seguintes procedimentos e
protocolos:
- Marcar a consulta sem dizer o nome e o telefone pelo facto de ainda não ter assinado
o documento relativo à sua proteção de dados;
- Chegar à clínica, ler e assinar o documento relativo às informações sobre a proteção
de dados;
- Preencher a ficha;
- Assinar o consentimento informado para permitir fazer as radiografias necessárias
ao diagnóstico e a respetiva justificação;
- Assinar o consentimento informado para se sujeitar à necessária endodontia, onde
se explica a razão para a sua realização, se descreve em traços gerais o procedimento,
e se informa sobre uma infinitude de riscos associados à intervenção;
- Durante o ato operatório terá que assinar pelo menos três consentimentos e
justificações para as radiografias intraorais necessárias ao tratamento endodôntico;
- Para cada uma das radiografias, teremos que montar o aparelho num tripé com cabo
e botão de disparo e com o colimador retangular, ligar a luz vermelha de sinalização

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na porta do consultório, verificar a dose mínima a ministrar, pedir ao paciente que
segure no recetor e disparar. Depois verificar que falhou, porque o paciente se mexeu,
ou deslocou o recetor, ou o raio não foi bem orientado devido ao colimador. Há que
tornar a preencher outro consentimento, etc.
- Por fim, enviar um relatório ao paciente com as doses de radiação a que foi sujeito,
e qual o aparelho que foi usado, bem como o número da sua licença.

Não comento, deixo apenas à vossa consideração.

Caros colegas:

A liberdade está a esfumar-se, e nós, de todo em todo, estamos numa passividade


notória, sendo cúmplices de um devir cada vez pior.
Primeiro foi a ERS (Entidade Reguladora da Saúde) que nos obriga a pagar um
quantitativo anual por um serviço que desconhecemos. Pagamos para sermos fiscalizados.
Depois foi a loucura sobre a legislação da proteção de dados, que nos impôs a contratação
dos serviços de um DPO (Data Protection Officer ou Encarregado de Proteção de Dados) que
nunca precisamos. Ou seja, a lei é unidirecional. Só obriga e, dessa obrigação, nada
beneficiamos.
Agora é o licenciamento radiológico num exagero legalista, onde tudo o que se fez até
hoje, respira ilicitude. O que virá a seguir? Já se consta que seremos obrigados a ter um filtro
na entrada de água na clínica, para a proteção da Legionella. Será que também teremos que
contratar um especialista em análises bacteriológicas e uma firma para averiguar a
conformidade?
Mas analisemos melhor esta situação.
Até agora, aceitava-se que as pessoas habilitadas com cursos superiores para exercer
medicina dentária, tinham tido disciplinas que garantiam esse saber, nomeadamente os riscos
e os cuidados a ter. Os nossos pais pagaram as propinas para que ficássemos habilitados a
exercer a profissão e a inscrição e registo na Ordem dos Médicos Dentistas, certificava esse
direito.
Porém, de repente, os pacientes, os acompanhantes e os operadores, todos ficaram
mais sensíveis à radiação x, e todos os profissionais de saúde oral se esqueceram dos

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conhecimentos adquiridos. Na verdade, no passado, quando alguém obtinha a qualificação
no ensino superior que o habilitava ao exercício da medicina dentária, pressupunha-se que
podia abrir um consultório e tratar os pacientes na sua área específica. Para isso, as famílias
pagavam as propinas, as taxas, as deslocações, os livros, enfim, tudo o que era necessário
para que ficassem habilitados ao exercício profissional e a obter, dessa forma legítima e
regulada, o seu sustento e o seu posicionamento socioprofissional.
Os Governos depois de cobrarem os impostos relativos à educação e depois de
sobrecarregar, cada vez mais, as famílias com mais impostos (já ultrapassa os 60% no nosso
país), continuam famintos para pagar a imensa dívida pública que os nossos políticos foram
adubando sistematicamente. Onde ir buscar mais dinheiro? À classe média e aos profissionais
privados.
Primeiro, arranjaram a Declaração de Bolonha, sendo que qualquer licenciado já não
absorvia os conhecimentos suficientes para o exercício profissional, obrigando depois a ter
de se fazer um curso de pós-graduação ou de mestrado. As propinas destes cursos ficavam
dependentes das instituições de ensino e não do Estado, que assim poupava a despesa que
tinha na formação superior dos estudantes. E, para isso, arranjaram uma treta que se traduzia
na substituição da “transmissão de conhecimento” para o “desenvolvimento de
competências”. Notável estratégia política, diga-se.
Comparticipamos o ensino geral, diminuímos a sua carga curricular e,
consequentemente, a despesa que o Estado tem com a educação. Os estudantes, se
porventura quiserem desenvolver as suas competências e exercer a sua profissão, que se
matriculem num curso de pós-graduação ou de mestrado, e as famílias e os futuros
profissionais que se esforcem e se endividem.
Em jeito de conclusão, diremos que hoje tudo carece de regulação, menos o que não
interessa financeira ou politicamente. É ou não é verdade que, em nome de um mercado livre,
perante um mercado saturado de profissionais da saúde oral, continuamos a fabricar médicos
dentistas e médicos estomatologistas sem qualquer controlo do número de estabelecimentos
de ensino ou do número de estudantes. Saem hoje mestres em medicina dentária que
praticamente nunca extraíram um dente nem deram uma anestesia, dado o excesso de
estudantes e a falta de pacientes, dado que têm hoje no mercado de trabalho consultas mais
baratas que as que os estabelecimentos de ensino oferecem. Insisto, como já referi num
artigo publicado há anos, que estamos a criar uma sociedade triste, não fora estarmos a

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insistir na formação de profissionais sem emprego à vista ou na promoção de emigrantes à
força.
Este exagero regulador, que em vez de ser educador é, isso sim, castigador do
profissional livre, vai levar a que apenas as clínicas ligadas aos grandes grupos económicos
sobrevivam e desapareça o médico dentista enquanto titular de um estabelecimento
prestador de cuidados de saúde.
Senhores governantes: estamos a destruir o que de mais precioso tem a sociedade, a
classe média, enquanto criamos um fosso cada vez maior entre os muito pobres e os muitos
ricos.

Afonso Pinhão Ferreira

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