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História de

Portugal
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Portugal
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(Câm ara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

H67399
História de Portu gal / José Mattoso… [et
al]; José Ten garrin h a, organ izador. --
Bau ru , SP : EDUSC ; São Pau lo, SP : UNESP;
Portu gal, PO : In stitu to Cam ões, 2000.
371p.; 23cm . -- (Coleção História)

>
ISBN UNESP 85-7139-278-0
ISBN EDUSC 85-7460-010-5

1. Portu gal - História. I. Mattoso, José.


II. Ten garrin h a, José. III. Títu lo. IV. Série.

CDD 946.9
SUMÁRIO

Cap ítu lo 1
7 A form ação da n acion alidade
José Mattoso
Cap ítu lo 2
19 O fin al da Idade Média
Maria Helena da Cruz Coelho
Cap ítu lo 3
45 O prin cípio da Época Modern a
Humberto Baquero Moreno
Cap ítu lo 4
57 Os argon au tas portu gu eses e o seu velo de ou ro (sécu los XV-XVI)
Antônio Borges Coelho
Cap ítu lo 5
77 Saberes e práticas de ciên cia n o Portu gal dos Descobrim en tos
Antônio Augusto Marques de Almeida
Cap ítu lo 6
87 Os ben s eclesiásticos n a Época Modern a. Ben efícios, padroados e
com en das
Antônio Manuel Hespanha
Cap ítu lo 7
105 Portu gal e a Eu ropa n a Época Modern a
Maria do Rosário Themudo Barata
Cap ítu lo 8
127 A con solidação da din astia de Bragan ça e o apogeu do Portu gal
barroco: cen tros de poder e trajetórias sociais (1668-1750)
Nuno Gonçalo Freitas Monteiro
Cap ítu lo 9
149 Pom bal e o Brasil
Francisco Calazans Falcon
Cap ítu lo 10
167 O sentido da Colônia. Revisitando a crise do antigo sistema colonial
no Brasil (1780-1830)
José Jobson de Andrade Arruda
Cap ítu lo 11
187 Contestação rural e revolução liberal em Portugal
José Tengarrinha
Cap ítu lo 12
217 Diversidade e crescim en to in du strial
Miriam Halpern Pereira
Cap ítu lo 13
241 Cau sas h istóricas do atraso econ ôm ico portu gu ês
Jaime Reis
Cap ítu lo 14
263 Jacobinos, liberais e democratas na edificação do Portugal
contemporâneo
Amadeu Carvalho Homem
Cap ítu lo 15
283 Da Monarquia para a república
A. H. de Oliveira Marques
Cap ítu lo 16
297 A dem ocracia frágil: A Prim eira Repú blica Portu gu esa (1910-1926)
João Medina
Cap ítu lo 17
313 O Estado Novo. Facism o, Salazarism o e Eu ropa
Luís Reis Torgal
Cap ítu lo 18
339 Após o 25 de Abril
José Medeiros Ferreira
369 Autores

6
capítu lo 1

A FORMA ÇÃ O
D A N A CION A LID A D E
José Mattoso*

A N TECED EN TES
Ao con trário do qu e ten taram dem on strar as dou trin as n acion alis-
tas dos an os 30 a 60, baseadas, de resto, em con ceitos positivistas e rom ân -
ticos m u ito an teriores, n ão é possível en con trar vestígios coeren tes de u m a
n acion alidade portu gu esa an tes da fu n dação do Estado. Aqu ilo qu e o pre-
cedeu e qu e tem algu m a coisa a ver com o fen ôm en o n acion al redu z-se a
u m a persisten te eclosão de pequ en as form ações políticas ten den cialm en te
au ton ôm icas n a faixa ociden tal da Pen ín su la Ibérica (em paralelo, de res-
to, com form ações an álogas n ou tras regiões pen in su lares), qu e se verifica-
ram desde a pré-h istória até o sécu lo XII, m as qu e se caracterizam tam bém
pelo seu caráter descon tín u o e efêm ero. As dim en sões dos respectivos ter-
ritórios eram n orm alm en te redu zidas, pois n ão ch egavam n u n ca a abran -
ger áreas equ ivalen tes a n en h u m a das an tigas provín cias rom an as. An tes
da dom in ação rom an a, o pan oram a predom in an te é o da gran de fragm en -
tação territorial, ocasion alm en te com pen sada por coligações con ju n tu rais;
du ran te ela, a organ ização adm in istrativa (qu e se deve con siderar de tipo
colon ial) n ão ch egou a absorver por com pleto as divisões étn icas, qu e rea-
pareceram sob a form a de pequ en os poten tados locais desde qu e se esbo-
roou o con trole m u n icipal, m ilitar e fiscal exercido pelos seu s órgãos até o
fim do Im pério.
Com o é eviden te, as su cessivas cam adas de povos germ ân icos qu e
depois ocu param o ociden te da Pen ín su la tam bém n ão ch egaram a u n ifi-
car o território por eles dom in ado; lim itaram -se a fazer reverter para seu
ben efício as im posições m ilitares e fiscais qu e an teriorm en te eram exigidas
pelas au toridades rom an as. Pode-se dizer aproxim adam en te o m esm o da
ocu pação m u çu lm an a, qu e, de resto, foi m u ito efêm era a n orte do Dou ro,
e qu e foi con stan tem en te en trecortada por revoltas region ais e locais, al-
gu m as das qu ais m an tiveram certos territórios com o in depen den tes du -
ran te dezen as de an os. A su a expressão con creta m ais eviden te foram os
rein os taifas do Ociden te qu e m an tiveram a su a au ton om ia du ran te a
m aior parte do sécu lo XI. En tretan to, a n orte do Mon dego, en tre os sécu -
los VIII e XI, a ocu pação astu rian a e depois leon esa tam bém estava lon ge
de con segu ir a in teira fidelidade n ão só dos poten tados locais com o tam -

7
José Mattoso

bém dos próprios represen tan tes da m on arqu ia; todos eles se com porta-
vam freqü en tem en te com o sen h ores in depen den tes.
O território portu gu ês pôde, portan to, com parar-se a u m puzzle
con stitu ído por u m n ú m ero con siderável de peças qu e se foram associan -
do en tre si de várias m an eiras, sem qu e os poderes su periores qu e aí exer-
ciam a au toridade tivessem sobre elas gran de in flu ên cia. A su a prin cipal
estratégia con sistia em m an ter a dom in ação, pactu an do de form as variá-
veis com os poderes region ais e locais, exploran do as su as divisões, ou
qu an do era possível, exterm in an do revoltas dem asiado osten sivas. A esta
estratégia opõe-se, eviden tem en te, a dos poderes in feriores qu e ora explo-
ram a via da revolta aberta, ora a do pacto con dicion ado com os poderes
régios; ora se aliam com os parceiros do m esm o n ível, ora os com batem ,
recorren do para isso, se n ecessário, ao apoio dos delegados régios, n u m
jogo in stável, ditado por circu n stân cias ocasion ais.
O prim eiro fato qu e se pode relacion ar com a fu tu ra n acion alidade
portu gu esa é, por isso m esm o, aqu ele em qu e se verifica a associação de
dois an tigos con dados perten cen tes cada u m deles a u m a provín cia rom a-
n a diferen te: o con dado de Portu cale, situ ado n a an tiga provín cia da Ga-
lécia, e o de Coim bra, n a an tiga provín cia da Lu sitân ia. Form aram o qu e
en tão se ch am ou o “Con dado Portu calen se” (o qu e pressu pu n h a a h ege-
m on ia do con dado do Norte sobre o do Su l), en tregu e pelo rei Afon so VI
de Leão e Castela ao con de Hen riqu e de Borgon h a, com o dote de casa-
m en to de su a filh a ilegítim a D. Teresa n o an o de 1096.

CON D IÇÕES PA RA O SUCESSO POLÍTICO D A


PRIMEIRA FORMA ÇÃ O N A CION A L

Uma grande parte do sucesso político deste acontecimento resulta de


um antecedente regional: a formação de poderes senhoriais de âmbito local.
De fato, durante o século XI certas linhagens – concretamente as da Maia,
Sousa, Ribadouro, Bragança, Baião e outras menos conhecidas – tiraram
partido da sua capacidade militar para alargarem o âmbito dos seus territó-
rios, desvincularem-se da autoridade dos condes de Portucale (descendentes
de Vímara Peres), ligarem-se aos soberanos castelhano-leoneses da dinastia
navarra (entre 1037 e 1091) e transmitirem os seus poderes numa linha
única dentro da mesma família. Foram essas linhagens que prestavam fide-
lidade à coroa castelhano-leonesa e, depois, a transferiram para o seu repre-
sentante, o conde D. Henrique. Foram elas que asseguraram, portanto, um
suporte social à autoridade semi-independente do conde.
Nada disso, porém , teria sido su ficien te para origin ar u m processo
de efetiva au ton om ia política se n ão se tivesse pou co tem po depois dado

8
A FORMAÇÃO DA NACIONALIDADE

u m m ovim en to m ais am plo qu e criou con dições favoráveis à eclosão de


verdadeiros rein os de âm bito in ferior ao rein o castelh an o-leon ês, igu al-
m en te apoiados por gru pos aristocráticos region ais. Ten do eles adqu irido
m aior força e in depen dên cia, em virtu de do am bien te de crise da m on ar-
qu ia e da recepção de n ovos m odelos m on árqu icos vin dos de além -Pire-
n eu s (qu e se verificou desde a m orte de Afon so VI em 1108 até à coroa-
ção de Afon so VII em 1126), o seu apoio aos n ovos rein os foi essen cial
para a su a con solidação.
De fato, as alterações provocadas n os rein os cristãos, depois da gran -
de expan são territorial da segu n da m etade do sécu lo XI à cu sta do territó-
rio islâm ico, levaram a gran des rem odelações in tern as. Os elem en tos da
aristocracia, qu e tin h am podido m an ter as su as lin h agen s por via su cessó-
ria ú n ica, ao can alizarem para a gu erra fron teiriça todos os filh os qu e n ão
su cediam n a ch efia, com eçaram a organ izar-se em tron cos verticais à im a-
gem da casa real, o qu e perm itia às m ais poderosas fam ílias m an terem in -
tactos através de várias gerações os seu s poderes locais solidam en te apoia-
dos em dom ín ios fu n diários. Mas os filh os segu n dos qu e en riqu eciam n a
gu erra e os cavaleiros fran cos ou de ou tras regiões qu e acu diam à fron tei-
ra preten diam tam bém alcan çar poderes próprios, com pran do terras de
pequ en os proprietários ou ten tan do criar, por su a vez, u m a au toridade se-
n h orial apoiada em forças m ilitares.
Esses m ovim en tos associam -se en tão a agru pam en tos region ais. Em
torn o de D. Urraca, su cessora de Afon so VI, reú n em -se en tre si e opõem -
se u n s aos ou tros os n obres castelh an os, leon eses, aragon eses e galegos,
qu e se apóiam altern adam en te n os m em bros da fam ília real desavin dos
en tre si. A aristocracia n obre, resolvidos os seu s problem as in tern os, ao ab-
sorver ou assim ilar as forças extern as de origem fran ca, sai reforçada da
crise in tern a da m on arqu ia. Em coligações qu e já podem os ch am ar n acio-
n ais (de Castelh an os, Leon eses, Aragon eses ou Galegos), a n obreza en saia
form as de solidariedade e organ iza a su a estru tu ra in tern a; esboça form as
de relacion am en to com os cavaleiros, qu er pela con cessão ou recon h eci-
m en to de poderes qu er pela vassalagem .
Mas aqu eles con ju n tos de n obres qu e, depois de se terem reorgan i-
zado socialm en te, prossegu em a lu ta con tra o Islã é qu e assegu ram ao seu
“fu tu ro país” (ch am em os-lh e assim ) u m a trajetória m ais segu ra. Assim , a
Galiza n ão ch ega a destacar-se de Leão, porqu e a su a n obreza só participa
n a gu erra extern a qu an do se associa à portu gu esa ou à castelh an a; Leão
vai perden do terren o face a Castela, m an ten do com ela u m a u n ião precá-
ria, qu e viria a desfazer-se en tre 1157 e 1230, m as jogan do sem pre u m pa-
pel secu n dário n a lu ta an tiislâm ica; Portu gal, Castela e Aragão, pelo con -
trário, m an ten do u m protagon ism o con stan te n a m esm a gu erra, n ão ces-
sam de se desen volver com o m on arqu ias in depen den tes.

9
José Mattoso

A situ ação de gu erra assegu ra, portan to, u m papel fu n dam en tal
tan to à n obreza, qu e ten dia a m on opolizar as fu n ções m ilitares, com o às
m on arqu ias sob as qu ais ela se agru pa region alm en te e qu e assu m em sem -
pre a ch efia e a coorden ação das gran des operações gu erreiras. Con sti-
tu em -se assim blocos fron teiriços qu e assegu ram a eficácia das operações.
A associação en tre u m a classe social com fortes apoios fu n diários, com po-
deres próprios e in teressada n a gu erra, e os reis qu e a apoiam assegu ra aos
diversos rein os pen in su lares u m trajeto político du radou ro.

P ORTUGA L E A GA LIZA
Até 1128 verifica-se u m a série de acon tecim en tos políticos qu e pa-
recem ligar os destin os de Portu gal aos da Galiza. O prin cipal é a form ação
de u m rein o in depen den te com Garcia I (1065-1071), qu e apesar da su a
posterior apropriação pelo rei de Leão e Castela se m an teve n om in alm en -
te separado destes en qu an to o m esm o rei Garcia esteve preso, até à su a
m orte em 1091, e qu e con tin u ou sob a form a de u m con dado en tregu e a
Raim u n do até 1096. A participação de algu n s m em bros da aristocracia ga-
lega n o com bate ao Islã e a su a fixação em território portu gu ês reforçam
esta aproxim ação. A separação de Portu gal e Galiza, con cretizada sob a
form a de dois con dados in depen den tes u m do ou tro, com a redu ção da
au toridade de Raim u n do apen as à Galiza e a con cessão de Portu gal a Hen -
riqu e, vem criar u m h iato n esta política. Este h iato, porém , estava já laten -
te, n o plan o eclesiástico, por cau sa da rivalidade en tre as sés de Braga e de
Com postela, desde a restau ração da prim eira em 1070. Verifica-se, assim ,
u m a situ ação caracterizada pela presen ça de dois m ovim en tos con traditó-
rios, u m qu e ten de a m an ter a u n ião com a Galiza, ou tro qu e apon ta já
para a separação. Note-se qu e o prim eiro adm itia du as solu ções, con form e
se viesse a resolver por m eio da h egem on ia da Galiza ou da h egem on ia de
Portu gal. Note-se tam bém qu e Hen riqu e com bateu pela segu n da destas
solu ções, pois esperava restau rar em seu favor o an tigo rein o da Galiza e
de Portu gal, com o con sta do acordo assin ado com seu paren te Raim u n do,
con h ecido sob o n om e de “pacto su cessório”. A m orte de Raim u n do em
1107 só podia ter acen tu ado tais objetivos. É provável qu e a “rain h a” D.
Teresa tivesse m an tido a m esm a idéia depois da m orte de Hen riqu e
(1112), e qu e isso expliqu e as su as ligações a Pedro Froilaz de Trava e aos
seu s filh os, dado o papel daqu ele com o tu tor do h erdeiro do tron o, Afon -
so Raim u n des (fu tu ro Afon so VII).
Este propósito, porém , veio a fracassar em virtu de da con ju gação de
du as séries de acon tecim en tos con vergen tes: por u m lado, o fato de tan to
D. Urraca com o seu filh o Afon so VII terem lu tado den odadam en te pela
m an u ten ção da u n idade da m on arqu ia castelh an o-leon esa, com o persis-

10
A FORMAÇÃO DA NACIONALIDADE

ten te apoio de Diego Gelm írez, arcebispo de Com postela, qu e via n essa so-
lu ção o m elh or apoio para as su as am bições de prelado da ú n ica sé apos-
tólica do Ociden te além da de Rom a, e qu e preten dia ser a m aior au tori-
dade espiritu al de toda a Pen ín su la; por ou tro lado, pelo fato de os barões
portu calen ses e o arcebispo de Braga terem percebido qu e a u n ião de Por-
tu gal e da Galiza sob a h egem on ia galega os m an teria fatalm en te n u m a si-
tu ação de in ferioridade e de depen dên cia; para estes, portan to, era prefe-
rível m an ter Portu gal com o u m con dado su jeito diretam en te ao rei de
Leão e Castela do qu e restau rar o rein o da Galiza e Portu gal, ain da qu e sob
a au toridade de D. Teresa (sobretu do se ela ficasse a dever a su a realeza
efetiva aos Travas). Foi essa a solu ção qu e de fato se torn ou possível a par-
tir da batalh a de S. Mam ede (1128), por m eio da qu al os barões portu ca-
len ses, com o apoio do arcebispo de Braga, depois de terem obtido o apoio
ativo de Afon so Hen riqu es, expu lsaram do con dado Fern ão Peres de Tra-
va e a rain h a D. Teresa.
Con tu do, dada a im portân cia da gu erra extern a n o processo de for-
m ação das u n idades territoriais n acion ais da Pen ín su la, o qu e provavel-
m en te assegu rou a efetiva du rabilidade da au ton om ia portu gu esa, reivin -
dicada em S. Mam ede, n ão foi tan to a opção qu e a n obreza portu calen se
tom ou em favor de Afon so Hen riqu es, ou m elh or, con tra o dom ín io qu er
de Gelm írez, qu er dos Travas, m as o fato de a essa opção se ter segu ido,
n u m a seqü ên cia irreversível, a n ecessidade de assu m irem o prin cipal pa-
pel da gu erra an tiislâm ica, relegan do para segu n do plan o a atu ação da
aristocracia galega. É verdade, porém , qu e n ão o fizeram diretam en te, sob
a direção e com u m a participação in ten sa das lin h agen s n orten h as, m as
sob a direção de Afon so Hen riqu es, a partir do m om en to em qu e ele, ape-
n as três an os depois de S. Mam ede, se fixou em Coim bra e passou a tom ar
u m papel extrem am en te ativo n a Recon qu ista.

O ESPA ÇO VITA L
Preen ch ida a con dição qu e perm itiu a u m gru po social – os barões
portu calen ses e o m ais im portan te dos bispos – desem pen h ar u m papel a-
tivo de prim eiro plan o n a política pen in su lar, m an tido o seu protagon ism o
devida à gu erra extern a, n em por isso se podia con siderar garan tida a in -
depen dên cia de Portu gu al. É provavel qu e ela n ão se tivesse podido m an -
ter se n ão se apoiasse n u m território dotado de recu rsos econ ôm icos su fi-
cien tes para a su portar. O qu e, portan to, a assegu rou n a fase segu in te foi
a apropriação de n ovos espaços cu jos recu rsos eram com plem en tares dos
do n ú cleo in icial, e qu e este teve capacidade para dom in ar por in term édio
de u m qu adro h u m an o su jeito aos seu s in teresses. Ou seja, con creta-
m en te, o qu e, n u m a segu n da fase, con solidou a capacidade au ton ôm ica de

11
José Mattoso

Portu gu al foi a con qu ista de Lisboa e de San tarém e a posse dos seu s res-
pectivos alfozes. Este fato trou xe con sigo a possibilidade de colocar n a vi-
gilân cia e adm in istração dos n ovos territórios paren tes da n obreza n orte-
n h a qu e eram afastados da partilh a h ereditária n as terras de origem para
n ão am eaçarem a base m aterial do poder fam iliar, ou su bordin ados seu s
qu e n ão podiam prosperar den tro dos seu s dom ín ios sen h oriais. Assim se
perm itia e propiciava a expan são da classe dom in an te sem qu e ela fosse
afetada por u m a crise de crescim en to, dada a exigu idade do território em
qu e ela exercia os seu s poderes – o En tre-Dou ro-e-Min h o.
Essa possibilidade, qu e assegu rava u m a certa u n idade ao con ju n to,
sob a orien tação política de u m gran de ch efe m ilitar, n a pessoa de Afon so
Hen riqu es, perm itia tam bém en con trar a form a de absorver ou tros exce-
den tes dem ográficos de En tre-Dou ro-e-Min h o, qu e du ran te os sécu los XI
e XII n ão cessaram de au m en tar. Os cam pon eses dali, dem asiado aperta-
dos n u m a área fertil m as redu zida, procu ravam n ovas terras para poderem
su bsistir. A atração das cidades m u çu lm an as en volvidas por u m a au ra de
prosperidade e de riqu eza fabu losa orien tou boa parte destes exceden tes,
prim eiro para as expedições de com bate, depois para a fixação n as cidades,
logo a segu ir para a ocu pação do hinterland estrem en h o, qu e a an terior si-
tu ação de gu erra tin h a m an tido até en tão bastan te despovoado.
O aflu xo ao litoral portu gu ês e às cidades próxim as dele de u m a po-
pu lação qu e em boa parte reprodu zia as estru tu ras im plan tadas n o En tre-
Dou ro-e-Min h o, e qu e, portan to, ao m esm o tem po, expan dia e fortalecia
o n ú cleo in icial, garan tia-lh e, assim , a viabilidade de su bsistên cia e de au -
ton om ia. Ocu pava as cidades do Ociden te atlân tico e, com elas, o dom ín io
das vastas áreas econ ôm icas qu e elas con trolavam . Organ izava o seu con -
ju n to (Porto, Gu im arães, Braga, Coim bra, Lisboa, San tarém , Évora) n u m a
rede de trocas com plem en tares cu jas poten cialidades exerciam sobre os
seu s diversos elem en tos u m papel de estím u lo, tan to pelas possibilidades
de escoam en to da produ ção, com o pela capacidade de abastecim en to. As
cidades, por su a vez, ao con cen trarem a popu lação, levavam ao desen vol-
vim en to das áreas circu n dan tes, an teriorm en te preju dicadas pela gu erra
qu ase con tín u a, para poderem assegu rar o seu próprio abastecim en to em
produ tos alim en tares e em m atérias prim as. Por ou tro lado, a m esm a con -
cen tração popu lacion al obrigava a desen volver a produ ção artesan al, para
com ela se poderem pagar os produ tos vin dos do cam po. Um a parte do ar-
tesan ato destin a-se ao apoio das atividades m ilitares, visto qu e as cidades
da lin h a do Tejo e a de Évora con tin u aram am eaçadas pelas in cu rsões m u -
çu lm an as até 1217. A con tin u ação da gu erra para su l e sobretu do a con -
qu ista de Badajoz pelos leon eses em 1229 ou 1230 (depois da fru strada in -
vestida de Afon so Hen riqu es em 1169), qu e destru iu o prin cipal cen tro
m ilitar alm ôada da fron teira ociden tal, tiveram com o resu ltado a segu ran -
ça das cidades do litoral atlân tico. Um a vez con segu ida esta e ocu pado

12
A FORMAÇÃO DA NACIONALIDADE

tam bém o Alen tejo e o Algarve (1249), com a con seqü en te pacificação dos
m ares devido à destru ição dos prin cipais pólos da pirataria sarracen a, fica-
va aberto o com ércio in tern acion al direto, por via m arítim a, sem ter de se
recorrer à m ediação castelh an a.
Certos au tores (sobretu do Torqu ato Soares) ch am aram a aten ção
para o fato de assim se ter recon stitu ído u m con ju n to qu e coin cidia apro-
xim adam en te com três an tigos “con ven tos” ju rídicos da época rom an a
(Bracara, Scalabis e Pax Ju lia – Braga, San tarém e Beja). A diferen ça prin -
cipal con sistia em qu e eles estavam su bordin ados a provín cias diferen tes e
qu e só sob adm in istração portu gu esa é qu e os seu s territórios passaram a
form ar u m con ju n to qu e n ão estava su bordin ado a n en h u m pólo político
n em econ ôm ico extern o.

A CEN TRA LIZA ÇÃ O POLÍTICA

Com o é eviden te, esse con ju n to de fatos n ão explica por si só a in -


depen dên cia n acion al. Esta n ão existiria sem u m poder político qu e coor-
den asse os in teresses de u m determ in ado gru po region al com o poten cial
econ ôm ico de u m a região su ficien tem en te diversificada, com o a qu e aca-
bei de descrever. Já vim os os an teden tes da solu ção política qu e acabou
por con solidar a separação en tre o Con dado Portu calen se e a Galiza. Alu -
dim os tam bém ao fato de em 1131 Afon so Hen riqu es se ter fixado em
Coim bra e ter assu m ido o com an do ativo da gu erra extern a, com o apoio,
em bora n ão n ecessariam en te com a participação ativa direta, dos ch efes
das lin h agen s n orten h as. As n ecessidades da gu erra levaram , porém ,
Afon so Hen riqu es a en cabeçar tam bém ou tras forças, as dos con celh os,
qu e con stitu íam , por assim dizer, a fon te abastecedora dos efetivos de
m assa e a m elh or garan tia da defesa fon teiriça em caso de in vasão. Essas
com u n idades n ão n obres, m as com verdadeira au ton om ia local, qu e ti-
n h am criado as su as estru tu ras pecu liares n u m a espécie de “terra de n in -
gu ém ” en tre as du as fron teiras, a cristã e a m u çu lm an a, alian do-se ora
com u m lado ora com ou tro, qu e tin h am feito da pilh agem m odo de vida,
aceitaram a au toridade régia com o form a de garan tir u m a parte da su a
au ton om ia face à crescen te in vasão sen h orial dos barões de En tre-Dou -
ro-e-Min h o. Ceden do u m a parte das su as prerrogativas ao rei n as áreas
m ilitar, da ju stiça e do fisco, evitavam a su bm issão aos poderes sen h oriais
dos n obres e da Igreja. Podiam n egociar com o rei o recon h ecim en to de
im portan tes privilégios e prom etiam a colaboração dos seu s exércitos n a
lu ta an tiislâm ica. A ch efia m ilitar do rei trou xe con sigo, portan to, a asso-
ciação dos con celh os e da n obreza sen h orial. Essas com u n idades, ten den -
cialm en te opostas u m as às ou tras, podiam assim m an ter as su as posições
sob a proteção do rei e evitar lu tas estéreis en tre si. A form ação de u m a

13
José Mattoso

u n idade política possibilitou tam bém a in tegração das cidades organ iza-
das em con celh os n o espaço n acion al, sem os su jeitar aos sen h orios par-
ticu lares (excetu an do, até o sécu lo XIV, as cidades do Porto e de Braga) e,
desde Afon so III (1248-1279), a su a su bordin ação à política econ ôm ica
orien tada pela coroa.
Até 1211 pode-se dizer qu e o rei n ão im pediu a con solidação dos
poderes sen h oriais n o Norte, n em sequ er a su a expan são n o Cen tro e Su l
do País (sobretu do de sen h orios eclesiásticos), e qu e tam bém n ão in terveio
n a adm in istração in tern a dos con celh os. Lim itou -se a dirigir as operações
m ilitares com os recu rsos qu e os con celh os e os sen h ores lh e forn eciam e
sobretu do com as tropas qu e podia recru tar com os ren dim en tos dos do-
m ín ios régios. Ele próprio se con siderava com o u m “sen h or”. Só algu n s
m em bros da cú ria régia, im bu ídos das idéias ju rídicas in spiradas n o Direi-
to Rom an o, atribu íam -lh e, desde a década de 1190, au toridade de verda-
deiro rei, e n ão apen as de primus inter pares. Para isso con tribu iu , por u m
lado, a con cepção, já an tiga, da realeza com o au toridade respon sável pela
m an u ten ção da ju stiça e da paz, acim a da qu e os sen h ores e os con celh os
podiam assegu rar, e o verdadeiro carism a de gu erreiro qu e os eclesiásticos
recon h eciam em Afon so Hen riqu es, e qu e seu filh o San ch o I procu rou
tam bém m erecer.
Apesar disso, n ão se pode dizer qu e h ou vesse verdadeiram en te u m
Estado portu gu ês até a m orte de San ch o I. O seu verdadeiro fu n dador,
com o organ ism o político capaz de assegu rar u m a adm in istração im pessoal
e u m a au toridade a qu e m esm o os poderes sen h oriais tin h am de se su jei-
tar, in depen den tem en te de com prom issos recíprocos de vassalidade, foi
Afon so II (1211-1223). Este, ten tan do, certam en te, pôr em prática as
idéias do ch an celer Ju lião, qu e in iciara as su as fu n ções já em tem po de
Afon so Hen riqu es, e qu e criara u m a verdadeira plêiade de ju ristas com o
seu s au xiliares, e, por ou tro lado, in flu en ciado pelo próprio processo da
cen tralização da cú ria rom an a, qu e tam bém in spirou Frederico II n o go-
vern o da Sicília, com eçou o seu rein ado pela prom u lgação de u m corpo de
leis. Depois ocu pou -se em m on tar u m a verdadeira adm in istração política
do território e em organ izar as fin an ças da coroa com base n a econ om ia
citadin a. De form a ru dim en tar, sem dú vida, m as qu e tin h a já em em brião,
as fu n ções estatais, adian tava-se, assim , à m aioria das m on arqu ias feu dais
do Ociden te eu ropeu .
Apesar das violen tas oposições qu e tal política su scitou da parte da
n obreza sen h orial, e de vários m em bros do alto clero, m as con tan do com
u m pequ en o gru po de vassalos fiéis, Afon so II m an teve a m esm a orien ta-
ção até ao fim da vida. As cisões qu e se segu iram n o seio da n obreza con -
du ziram , depois, du ran te o rein ado de San ch o II (1223-1248), cu ja fra-
qu eza e in decisão con trastam fortem en te com a firm eza da seu pai, a u m a
verdadeira an arqu ia social agravada pela crise da própria n obreza. Esta,

14
A FORMAÇÃO DA NACIONALIDADE

su jeita a u m rápido crescim en to n u m érico, dificilm en te podia assegu rar a


todos os seu s m em bros, m esm o de con dição in ferior, o exercício dos direi-
tos sen h oriais; a h esitação en tre a partilh a h ereditária e a in feriorização su -
cessória dos filh os segu n dos provocava o exacerbam en to e a violên cia dos
m en os favorecidos, a con stitu ição de ban dos e o assalto aos in defesos. À
con ten são da expan são sen h orial en tre 1211 e 1223, segu iu -se o seu de-
sen freado crescim en to en tre 1223 e 1245, e ao m esm o tem po a pertu rba-
ção social e a an arqu ia, sobretu do n as regiões de regim e sen h orial (o Nor-
te), acaban do por a segu ran ça do clero e dos seu s ben s. Assim se decidiu
u m a coligação de bispos e de n obres para solicitar ao papa In ocên cio IV a
su bstitu ição de San ch o II por seu irm ão Afon so III. Depois de u m a gu erra
civil bastan te violen ta, Afon so III acabou por triu n far. O seu an tecessor
m orreu n o exílio em 1248.
Depois do ensaio singularmente precoce de Afonso II, foi, de fato, a
persistência e a habilidade política de Afonso III (1248-1279) o que garan-
tiu a efetiva supremacia e a independência da realeza, assim como a mon-
tagem empírica, mas conseqüente, dos orgãos estatais. Passou a administrar
rigorosamente os domínios da coroa, criou um corpo legislativo, constituiu
uma nobreza de corte fiel e submissa, enfraqueceu a nobreza senhorial,
montou um aparelho judicial capaz de assegurar a justiça sob o controle dos
meirinhos-mores, mesmo contra os senhores (nobres ou eclesiásticos),
acumulou rendimentos suficientes para garantir a sua independência eco-
nômica face a outros poderes, cerceou os excessivos privilégios do clero e
conseguiu influenciar a escolha dos bispos. A sua obra foi depois continua-
da por seu filho Dinis (1279-1325), que criou os corregedores para aperfei-
çoarem o sistema judicial, organizou o notariado, formou um corpo de es-
crivães régios junto dos concelhos, controlou as eleições dos magistrados
municipais, recrutou um corpo regular de besteiros fornecidos pelos conce-
lhos, cerceou os privilégios senhoriais, impôs a noção de uma justiça régia
capaz de perseguir os crimes mesmo nos territórios imunes etc.
Assim , a m on tagem de u m aparelh o estatal capaz de exercer u m a
in flu ên cia efetiva e verdadeiram en te u n ificadora sobre todo o País, tiran -
do o an teceden te efêm ero de Afon so II, data efetivam en ta da segu n da m e-
tade do sécu lo XIII. Até essa altu ra, h avia relações en tre as diversas com u -
n idades qu e se su jeitavam à au toridade do m esm o rei, h avia tam bém m o-
vim en tos de tropas e de popu lações qu e abarcavam todo o território n a-
cion al, m as o País era con stitu ído por u m con ju n to de u n idades com u m a
con siderável dose de in depen dên cia, ligadas en tre si por vín cu los tên u es,
e, com o con ju n to, destitu ído de laços verdadeiram en te coeren tes.

15
José Mattoso

CON SCIÊN CIA N A CION A L


A delimitação política e econômica é um elemento objetivo que dis-
tingue de todas as outras a comunidade humana nela inserida. Para esta co-
munidade constituir uma Nação é ainda preciso que os seus membros ad-
quiram a consciência de formar uma coletividade tal que daí resultem di-
reitos e deveres iguais para todos, e cujos caracteres eles assumam como ex-
pressão da sua própria identidade. Esta consciência forma-se por um pro-
cesso lento, que não envolve simultaneamente todos os sujeitos. Começa
por eclodir em minorias capazes de conceber intelectualmente em que con-
siste propriamente a Nação; depois esta idéia vai se propagando lentamen-
te a outros grupos, até atingir a maioria dos habitantes do País. Em Portu-
gal nota-se primeiro nos membros da chancelaria condal e régia, depois nos
clérigos do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, a seguir noutros membros
da corte e em funcionários da administração que se apresentam como de-
legados do rei em todos os pontos do País, mais tarde nos restantes mem-
bros do clero e das ordens militares e nas oligarquias dos concelhos.
As guerras com Castela e a Revolução de 1383-1385, ao trazerem
tropas estrangeiras a Portugal, evidenciam a diferença entre os Portugueses
e os outros, isto é, aqueles que falavam outra língua, tinham outros costu-
mes e se comportavam como inimigos. Cem anos depois, a expansão ultra-
marina coloca muitos portugueses em face de gente ainda mais estranha
perante a qual eles se apresentam como irmanados pela vassalagem a um
mesmo rei, sejam minhotos, alentejanos ou beirões. A sujeição à Espanha,
no século seguinte, faz refletir sobre o que é ser português e o que é estar
sujeito a uma administração não portuguesa, pela mesma época em que se
pode ler nos Os lusíadas a epopéia mitificada de um povo capaz de chegar
aos confins do mundo. E assim sucessivamente, até às exaltadas manifesta-
ções populares contra a Inglaterra por ocasião do Ultimatum de 1890, às co-
memorações nacionais dos vários centenários que fazem refletir nos feitos
heróicos de outrora, às revoluções cuja vitória se atribui à participação po-
pular, à propaganda ideológica nacionalista dos anos 30 a 60. Tudo isso vai
consolidando e difundindo o conceito de Nação. É preciso não esquecer,
porém, que só os cidadãos capazes de ler podiam conhecer Os lusíadas, e
que só os que tinham feito o ensino primário podiam compreender o que
era a história pátria e saber os direitos dos cidadãos. Ora a população anal-
fabeta só em pleno século XX deixa de constituir mais da metade do povo
português. É preciso, portanto, esperar até uma época bem recente para po-
der admitir uma efetiva difusão da consciência nacional em todas as cama-
das da população, e em todos os pontos do seu território.

16
A FORMAÇÃO DA NACIONALIDADE

B IBLIOGRA FIA
DAVID, P. Études historiques sur la Galice et le Portugal du VIe au XIIe siècle. Lis-
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ERDMANN, C. O papado e Portugal no primeiro século da história portuguesa.
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kirche. Spanischen Forschungen der Görresgeselschaft. 1978. v.29, p.85-436.
HERCULANO, A. História de Portugal desde o começo da monarquia até ao fim
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tran d, 1980-1981. 4v.
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LÓPEZ ALSINA, F. La ciudad de Santiago de Compostela en la Alta Edad Media.
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___. 1096-1325. In : ___. (Dir.) História de Portugal. Lisboa: Estam pa, 1997.
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VONES, L. Die “Historia Compostelana” und die Kirchenpolitik des Nordwesthis-
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17
capítu lo 2

O FIN A L D A ID A D E MÉD IA
Maria Helen a da Cru z Coelh o*

O fu tu ro D. João II con h ecia o govern o. Porqu e fora regen te em


1463, qu an do seu pai segu ira n a cam pan h a de Marrocos, em 1475, qu an -
do o m on arca dem an dara Castela, e ain da em 1476-1477, qu an do esfor-
çadam en te Afon so V ru m ara à Fran ça n a bu sca de apoios extern os.
O fu tu ro D. João II con h ecia o país. Porqu e com o prín cipe e re-
gen te vira crescer o poderio dos gran des sen h ores qu e seu pai acu m u la-
ra de ben esses em terras, direitos e ju risdições. Porqu e ou vira as vozes
qu e se ergu iam em Cortes. Qu er as da aristocracia da m ercan cia, qu e cla-
m avam liberdades de com ércio e fiscais e a n ão-con corrên cia de estran -
geiros, qu er as da terraten ên cia qu e pu gn avam por m ão-de-obra, salá-
rios baixos e defesas das cu ltu ras, ou ain da as da criação de gado qu e ro-
gavam por fartas pastagen s e bon s m ercados. Para, todas elas, em u n ís-
son o, ou vir reclam ar con tra os poderes e opressões dos gran des, 1 con tra
o desregram en to da corte, con tra os abu sos e prepotên cias dos oficiais
régios qu e qu eriam im por o seu poder n a localidade, livre de peias, e in -
terven ien te n os vários aspectos do tecido socioecon ôm ico. E seria m ais
aten tado n o qu e via, e n ão pelo qu e escu tava, qu e o prin cípe con h ece-
ria as qu eixas do povo laborioso qu e am an h ava a terra, qu e in tern am en -
te com erciava ou produ zia artefatos.
O fu tu ro D. João II con h ecia, en fim , a política extern a. Percorrida
por equ ilíbrios vários, por en tre m ares e con tin en tes. Con scien te estava
da correlação de forças castelh an as, ten do m esm o acorrido ao seu pai em
Toro, e sabia qu e o n osso fortalecim en to n o Atlân tico era a pedra de to-
qu e do xadrez in tern acion al, fosse n a política de ocu pação m arroqu in a –
e n a con qu ista de Arzila acom pan h ara o seu progen itor – fosse n a explo-
ração da costa african a, cu ja direção assu m ira desde 1474, lideran do, ex-
clu sivam en te, os tratos african os.
Qu an do, em 28 de agosto de 1481, sobe ao tron o, tin h a u m proje-
to político, tin h a von tade de colocá-lo em prática e sabia com o agir. Pron -
tam en te e pragm aticam en te.
De im ediato ao “saim en to” do sen h or seu pai, n o m osteiro da Ba-
talh a, con vocou Cortes para Évora. Qu e abrem a 12 de n ovem bro, com
toda a pom pa e solen idade da en tron ização do poder real, oferecida em
espetácu lo.2 Com n ovo e detalh ado cerim on ial distribu em -se os lu gares

19
Maria Helena da Cruz Coelho

do rei e da corte régia, do clero, da n obreza e dos procu radores dos con -
celh os, qu e sim bolizavam as h ierarqu ias, n a su a dign idade e h on ra, de
u m a sociedade h ierarqu izada, n u m corpo h arm on ioso, dirigido por u m
cabeça, qu e o govern ava, e con stitu ído por u m tron co e pés qu e o su sten -
tavam . A palavra, em discu rso oficial, dá form a in telectiva ao qu e se vê e
sen te. Para logo em segu ida se passar ao sim bólico e de discu rsivo à ação.
De u m poder m ediatizado pela represen tação, qu e a vista e o ou vido per-
cebem , a u m poder em exercício qu e atin ge a von tade e o coração.
Ao seu rei e sen h or a fam ília real e os gran des têm de prestar m e-
n agem e ju rar obediên cia pelas graças e ben s dele recebidos e os procu ra-
dores das cidades e vilas ju rar lealdade e serviço.3 Ato h abitu al de ju ra-
m en to de fidelidade ao n ovo m on arca se n ão fora o n ovo ritu al de pala-
vras e gestos. Qu e n ão agradou aos sen h ores. Em especial, e por todos,
com o o m ais poderoso, ao du qu e de Bragan ça.4
Talvez n ão assim aos procu radores dos con celh os qu e, con h ecen do
por certo já o perfil do n ovo m on arca, e aproveitan do-se da con ju n tu ra
favorável do in ício de u m ou tro rein ado, pediram , m etódica e program a-
dam en te, reform as n a ju stiça, n a fazen da e n a defesa. Qu eriam ver dim i-
n u ídos os poderes ju risdicion ais dos sen h ores e elim in adas as opressões
qu e in fligiam aos povos, com o n ão m en os preten diam órgãos régios com
fu n ções rigorosam en te defin idas e oficiais com peten tes e zelosos, n u n ca
n ão-cu m pridores ou abu sadores. Desejavam ver m oderação n a con cessão
de ten ças, m oradias e assen tam en tos aos vassalos, criados e m oradores n a
corte, deven do estes ser socialm en te com patíveis com essa m esm a corte
e n ela servir con ven ien tem en te. Esperavam ver a defesa eficazm en te as-
su m ida pelos qu e tin h am especificam en te tal m issão, por ela receben do
ben efícios. Mas pelo con trário, n ão qu eriam recru tadores m ilitares qu e
sobrecarregassem os povos. Alm ejavam n a persecu ção dos seu s in teres-
ses, qu e eram os dos m aiores en tre o povo, liberdades com erciais, afasta-
m en to de con corren tes estran geiros ou ju deu s, dom ín io dos m esteirais,
boas oportu n idades n a agricu ltu ra e criação de gado.
De tu do isso se agravam n u m lon go rol de 172 capítu los gerais, ob-
ten do em 46,5% deles resposta favorável do m on arca.5 Mas a lista acres-
ceu -se ain da de m ais 140 capítu los especiais, visan do sobrem an eira os
problem as da adm in istração, política e econ om ia locais, qu e lograram al-
can çar do m on arca u m a percen tagem de 53,6% de respostas afirm ativas.6
Decorridos u n s escassos 7 m eses7 e já os povos estavam de n ovo
sen do ch am ados a Cortes, agora para San tarém .8 Desta vez, a fim de con -
tribu írem para a rem issão das dívidas de seu pai, deven do ser cobrado u m
pedido de 50 m ilh ões. Não parecem ter com parecido às m esm as o clero e
a n obreza, con h ecen do-se apen as a presen ça de doze con celh os. No en -
tan to só de on ze possu ím os capítu los especiais, abran gen do o país de n or-
te a su l, com o se eviden cia pelo m apa, e n en h u n s gerais.

20
O FINAL DA IDADE MÉDIA

1 CORTES D E ÉVORA D E 1490


CON CELHOS COM CA PÍTULOS ESPECIA IS

Barcelos (2)
Bragança (7)
Braga (1)

Guimarães (1)
Miranda do
Douro (2)

Lamego (3)

Aveiro (6)

Guarda (2)

Coimbra (6)

Torres Vedras (5)

Coruche (1)
Elvas (4)
Estremoz (3)
Olivença (4)

Setúbal (2)

Silves (3)

Lagos (8) 0 50 km

21
Maria Helena da Cruz Coelho

Do Entre Douro e Minho tiveram assento Ponte de Lima e Guima-


rães. Da Beira, Pinhel e Viseu. Do Alentejo, Monforte, Olivença, Vila Viço-
sa e Serpa. Do Algarve, Loulé, Faro e Silves. Ao todo são apresentados trin-
ta agravos, conhecendo-se a resposta apenas para 22.9 Quem mais pediu fo-
ram, respectivamente, Vila Viçosa com oito capítulos, e Loulé com sete.
As principais queixas visam ao econômico. Depois certos estratos so-
ciais, com destaque maior para os senhores, e em seguida a administração
central e muito escassamente a local, o que o gráfico permite visualizar.10

2 CORTES D E SA N TA RÉM D E 1482


CA PÍTULOS ESPECIA IS

Natureza dos requerimentos Total %


Administração central 7 23,3
Administração local 2 6,7
Social 9 30,0
Econômico 12 40,0
Total geral 30 100,0

A m aior parte dos con celh os h avia estado n as Cortes qu e h á pou -


co tin h am ch egado ao fim .11 Aí, em capítu los gerais e especiais, tin h am
sido postos os m ais prem en tes problem as qu e sem pre, aproveitan do a
con ju n tu ra n ova da abertu ra de u m rein ado, se apresen tam ou retom am .
Para resolver, agora, tão-só algu m as qu estões bem m ais específicas.
Ain da e sem pre u m a crítica aos oficiais régios. Fosse o alcaide das
sacas qu e, através dos requ eredores e escrivães qu e colocava para escreve-
rem o ou ro e a prata trazidos pelos m ercadores estran geiros, os afastava
dos n ossos portos, com o referem Faro (1) e Silves (1). Fosse o con tador,
qu e em Lou lé (5) n ão qu eria deixar os vizin h os trazerem ben s de m ou ros,
e em Pon te de Lim a (1) preten dia dispor de u m a casa para se aposen tar.
Mais gen ericam en te, Lou lé (2) qu eixava-se do gran de n ú m ero de h om en s
da escrita qu e h avia n a correição, tan tas vezes para favorecer criados dos
sen h ores. Por su a vez Pin h el (1) e Viseu (1), em agravos exatamen te igu ais,
on de se ou via com n itidez a voz das aristocracias locais, in vectivaram con -
tra o corregedor qu e obrigava os fidalgos, cavaleiros e escu deiros de lin h a-
gem e os vassalos e cidadãos h on rados a irem até a forca ou pelou rin h o,
on de a ju stiça se h avia de fazer, ch am ados por pregão, igu alan do-os “em
todo com h o dito com u m ” e n ão lh es gu ardan do os privilégios.

22
O FINAL DA IDADE MÉDIA

Esgrim iam estes n obres e grados com o argu m en to de qu e “pois diferem -


ciadam en te h am de servir vossa sen h oria n as gu erras n o qu e a elles per-
tem cee em seu s graos razoada cou sa seria serem diferem ciados dos m en o-
res”. E porqu e a D. João II n ão in teressa u m a sociedade su bvertida, m as
ordeiram en te h ierarqu izada, de pron to, defere tal pedido.
Seria, tam bém , esta m esm a elite qu e estava m u ito aten ta aos des-
m an dos sen h oriais, desejan do vê-los corrigidos. Qu eixas con tra a fidal-
gu ia se ergu em pela voz sobretu do de Lou lé, m as tam bém de Pon te de
Lim a, Gu im arães e Serpa.
Lou lé (1), em expressivo e desassom brado artigo, acu sa D. Afon so
V de tê-los lan çado em cativeiro, porqu e dera a vila em sen h orio. E m ais
esclarece qu e se an tes eram do du qu e de Bragan ça, agora já os seu s fidal-
gos diziam qu e a vila era de su a h eran ça “o qu e, sen h or, m u ito sen tim os
serm os de sen h or e agora serm os dos servidores”. Pron tos estariam para
ou tra terra régia em qu e vivessem , se n ão esperassem ser libertos da su -
jeição por D. João, a qu em ch am am “n osso Messias”. Mas a esperan ça te-
ria sido algo fru strada, qu an do o m on arca adia a resposta para as cartas.
Mais especificam en te, acu sava ain da esta vila Nu n o Barreto, a qu em
Afon so V dera as dízim as do pescado do Porto de Farrobilh as, bem com o
u m alvará qu e lh e ou torgava poderes de dar terras e ch ãos a qu em aí qu i-
sesse fazer casas, sobrepon do-se assim à costu m eira alçada dos ju ízes
com o sesm eiros, o qu e cau sava ódios. Ain da, e de n ovo, o rei adia a res-
posta para obter in form ações do con tador. E é tam bém este con celh o (1),
coin cidin do n o seu qu erer com o de Gu im arães (1), qu e apela para o
cu m prim en to do estipu lado n as Cortes de 1481-1482, reclam an do qu e os
corregedores e ou vidores dos sen h ores só estivessem n os cargos por 3
an os. E aqu i o assen tim en to régio é claro, precisan do m esm o o qu e dei-
xara exposto n os capítu los gerais, já qu e, à sem elh an ça dos seu s correge-
dores, tam bém estes deviam estar n o cargo apen as por u m triên io, e or-
den an do qu e tal se assen tasse n os capítu los gerais.
Por su a vez Pon te de Lim a qu eria ver corroborada u m a sen ten ça do
corregedor, a qu al, cu m prin do u m a ordem régia qu e deferia u m pedido
con celh io, m an dara devassar todos os cou tos, u m a vez qu e n o tem po
dado aos seu s possiden tes, estes n ão h aviam m ostrado o respectivo privi-
légio. Aceita-se D. João, ain da qu e ressalve a possibilidade da apresen ta-
ção de razões por qu em se sen tisse lesado. Serpa, por su a vez, especifica
qu e os fidalgos têm terras defesas, sob determ in adas pen as, on de apas-
cen ta o gado. Logo, se esse m esm o gado en trasse n as terras defesas do
con celh o, deveria pagar idên ticas pen as. D. João II, n a su a resposta, pa-
rece ir m ais lon ge. Apelan do para capítu los já determ in ados em Cortes,
in terdita aos qu e tin h am cou tadas a pastagem n as terras con celh ias, es-
pecifican do ain da qu e estas eram cou tadas do m esm o m odo qu e as deles.

23
Maria Helena da Cruz Coelho

Mas além da con flitu osidade com os sen h ores, h avia a con flitu osi-
dade com ou tros protagon istas dos poderes con celh ios.
Vila Viçosa (5 e 6), qu e se diz sobrecarregada de h om en s privilegia-
dos, qu eria qu e os cristãos n ovos n ão fossem isen tos de servir du ran te 20
an os, com o o m an arca m an dara, in sin u an do até qu e m u itos, falsam en te,
h aviam -se con vertido. Da m esm a m an eira, espin gardeiros e besteiros ou
ou tros privilegiados, qu an do eram citados pelos ju ízes, por crim es ou dí-
vidas, exim iam -se de respon der, alegan do qu e só o deviam fazer peran te
o an adel-m or, espin gardeiro-m or ou m on teiro-m or, o qu e os deixava im -
pu n es, já qu e era trabalh oso ch egar a tão distan tes ju lgadores. Descon h e-
cen do-se as respostas aos pedidos deste con celh o, n ada sabem os sobre as
determ in ações joan in as. Con h ecem o-las, porém , para Oliven ça. E cu rio-
sam en te a voz qu e pu gn a por este con celh o, tal com o a qu e represen tou
o an terior de Vila Viçosa, n ão parece ser dem asiado afeita às elites gover-
n ativas. Assim , m u ito sin tom aticam en te, Oliven ça afirm a ter com o m aior
riqu eza as su as vin h as e olivais. Mas n esses ben s sofrem dan os dos gados,
porqu e os alcaides, gran de e pequ en o, e os qu e an dam n os pelou ros ou
detêm os ofícios, têm parte n as carn içarias da vila, qu er de cristãos qu er
de ju deu s. E, com o dizem , fazem im pu n em en te todo o m al, tan to por se-
rem prin cipais, com o pela pressão qu e advém do cargo e ofício qu e de-
sem pen h am . Roga, en tão, por u m a ordem régia in terditan do a tais h o-
m en s a carn içaria, pois, m esm o as m u ltas já decretadas pelo con de de Oli-
ven ça 12 com esse fim n ão eram respeitadas. Aspectos a salien tar. Estes la-
vradores das vin h as e oliviais pareciam ter o apoio do seu sen h or, con tra
as exorbitân cias das elites dirigen tes. E tiveram tam bém o ben eplácito ré-
gio, qu e pu n ia os prevaricadores com 20 cru zados, à sem elh an ça do qu e
se passava em Estrem oz.
Os dem ais artigos apresen tados visam a aspectos da adm in istração
local ou da econ om ia con celh ia.
Faro (1 e 2) qu er ter alcaide de seu foro e alm otacaria n o pescado,
segu n do os seu s u sos, o qu e o m on arca con firm a. Mon forte (1) e Vila Vi-
çosa (3) lu tam pelo respeito do seu privilégio de isen ção de portagem .
Lou lé (2) está m u ito preocu pada com o in vestim en to qu e fez n o
Porto de Farrobilh as, pois seu s m oradores, apesar de se abastecerem n a
vila, o qu e até faz su bir os preços, n ão lh e trazem n en h u m pescado, an -
tes o exportam todo para Castela, o qu e n ão parece ju sto, fican do decidi-
do qu e u m a parte ru m asse a Lou lé. Igu alm en te tem iam (3) – por ou vir di-
zer – qu e o soberan o desse u m esteiro do porto, on de arrecadavam os n a-
vios, para se con stru írem azen h as, o qu e D. João II m an da averigu ar.
Se a defesa do m ar é a preocu pação dos algarvios, a defesa da ter-
ra ocu pa Oliven ça e Vila Viçosa. A prim eira terra fron teiriça, tem acres-
cido problem as. O abastecim en to de len h a e m adeira ao con celh o esta-

24
O FINAL DA IDADE MÉDIA

va depen den te de Castela, qu e assim ditava as leis e con dições qu e lh e


eram m ais favoráveis. Mas com o tem po, por in im izades e feridas das
gu erras passadas, deixaram de en viar, pelo qu e o con celh o rogava o pri-
vilégio de se poder abastecer em Ju rom en h a, Alan droal e Teren a, e po-
der trazer len h a e m adeira pelos portos de Odian a, sem pagar portagem .
D. João II com preen de a situ ação e defere o pedido. Mas, com o é seu
tim bre, dou trin a. Pon do a tôn ica – qu e já esboçara n o deferim en to a
Pon te de Lim a sobre os cou tos – n a bilateralidade. Assim Oliven ça ser-
vir-se-ia das m atas e ch arn ecas pú blicas com o os m oradores daqu eles
lu gares, os qu ais, reciprocam en te, vizin h aram aos espaços pú blicos de
Oliven ça, n o qu e tivessem n ecessidade. Por su a vez n as terras privadas
com prariam a len h a e m adeira, de acordo com a von tade dos seu s do-
n os. Porém , com o tam bém é seu u so, põe a decisão à experiên cia, e as-
sim ela será válida por 3 an os. Ain da Oliven ça, dividida en tre os pro-
ven tos das vin h as e olivais e os do gado, faz de n ovo ou vir a voz dos la-
vradores. Qu e reclam avam con tra as qu eim adas qu e os ovelh eiros fa-
ziam n aqu eles ben s, pedin do o açoitam en to por tal crim e. O crim e m e-
rece castigo, sabe-o D. João II. Mas n ão aqu ele, n a assu n ção do n orm a-
tivo da ju stiça régia. Os réu s seriam presos e pagariam de cadeia 4.000
reais, m etade para as obras do m u ro e m etade para qu em os acu sasse.
Mas, para qu e n in gu ém pecasse por ign orân cia, esta ordem devia ser
apregoada n o con celh o. Rem ata, n o en tan to, deixan do m argem a qu e
im perasse além desta, segu n do o direito ou orden ações, algu m a ou tra
pen a qu e n ão fosse de din h eiro.
Já vim os qu e em Vila Viçosa igu alm en te se digladiavam terrate-
n en tes e criadores de gado. Mas este con celh o de tu do se qu eixa. Não
qu er qu e en tre vin h o de fora n o con celh o, con corren cian do o dos vizi-
n h os (8); n ão qu er pagar cu stos tão elevados n a barca de Ju rom en h a (7);
deseja acabar com o tribu to con celh io da sisa velh a para in cen tivar o co-
m ércio (4); n ão qu e ser obrigado a plan tar am oreiras (2). E tu do isto,
para além dos agravos a qu e já alu dim os. Pressen te-se u m a econ om ia
con celh ia dividida en tre os lu cros das tradicion ais cu ltu ras m editerrân icas
da vin h a e oliveira e os da criação do gado, on de, além disso, as tran sa-
ções com erciais se preten dem ver din am izadas.
Expostos esses assu n tos locais n as Cortes de San tarém de 1482,
qu e obtiveram , n o seu con ju n to, u m total de 56,7% de respostas favorá-
veis do soberan o, com o o gráfico o dem on stra, os povos assistiram , com o
espectadores, ao agir do seu rei.
Viram ou sou beram do en forcam en to do 3º. Du qu e de Bragan ça em
ju n h o de 1483.13 Mais teriam sabido qu e, n o an o segu in te, o próprio m o-
n arca m atara o du qu e de Viseu e m an dara execu tar m u itos dos seu s se-
qu azes. E qu e, ain da em 1485, gran des m em bros da fidalgu ia eram pre-
sos, m ortos ou se exilavam . Toda a su cessão das n otícias, m ais ou m en os

25
Maria Helena da Cruz Coelho

3 TIPOS D E RESPOSTA S
CORTES DE SANTARÉM DE 1482 – CAPÍTULOS ESPECIAIS

reais sobre con spirações, im pression ariam o povo. E n ão m en os o deixa-


riam tem en te ao seu rei e sen h or, estas atu ações firm es e decididas de D.
João II. Qu e tam bém lh es con viriam . Atacan do o poder sen h orial, esta-
va o m on arca fazen do dim in u ir as pressões com qu e os sen h ores, por via
de regra, sobrecarregavam os povos. E estes cada vez m ais con fiariam
n u m soberan o qu e se im pu n h a e ou sava fazer fren te a qu em n ão lh e obe-
decesse ou ju rasse fidelidade, por m ais poderoso qu e fosse. Cada vez m ais
os povos reforçariam a im agem do “Messias”, qu e Lou lé já propalara em
1482. À su a proteção se en com en davam e do seu poder e m an do n ão du -
vidavam . Na lin gu agem das form as rever-se-iam n essa sim bolização do
m on arca n u m pelican o, a cu jas asas sabiam poder acolh er-se com o filh os.
Não m en os en ten deriam a su a von tade, expressa por palavras, n a divisa
qu e para si tom aria “por su a ley e por su a grey”.
A projeção dos feitos de além -m ar au reolavam sem pre e m ais a su a
pessoa. En tre 1481-1482 con stru ía-se a fortaleza de São Jorge da Min a
qu e dava cobertu ra ao com ércio african o, assim vigiado e protegido m ili-
tarm en te. As viagen s de Diogo Cão em 1482 e 1484 faziam avan çar o do-
m ín io portu gu ês, qu e orgu lh osam en te se assin alava com padrões, até ao
Zaire e Serra Parda. Em 1488 Bartolom eu Dias, dobran do o con tin en te
african o, o Cabo da Boa Esperan ça, oferecia ao m on arca a certeza de qu e
o cam in h o para a Ín dia n ão era u m a qu im era m as u m a realidade. Os sú -
ditos ou viriam , doravan te, o seu sen h or in titu lar-se rei de Portu gal e dos
Algarves, d’aqu ém e d’além m ar em África e sen h or de Gu in é. E n esse
dom ín io de África, D. João II reiterava ain da n u m a política m arroqu in a,
reforçan do o povoam en to das su as praças, e gan h an do a obediên cia dos
m ou ros de Azam or, em bora m en os bem -su cedidas fossem as expedições
a An afé em 1487-1489, visan do à con stru ção da fortaleza da Graciosa,
m u ito se in vestiu e pou co se con segu iu .

26
O FINAL DA IDADE MÉDIA

Certo é qu e, qu an do se abrem Cortes em Évora, n o m ês de m arço


de 1490, n a seqü ên cia das n egociações abertas em 1488 para o casam en -
to do in fan te h erdeiro, D. João II era u m rei obedecido in tern am en te e
prestigiado n o exterior. Por isso acalen tou o son h o de, através do m atri-
m ôn io do seu filh o Afon so com Isabel, filh a dos Reis Católicos, u n ir n u m a
paz du radou ra os rein os de Portu gal e Castela.
É u m m on arca repleto de esperan ça pelos fru tos qu e a política u l-
tram arin a lh e prom etia e pelo casam en to projetado para o seu filh o com
qu e vão lidar os povos n as Cortes de Évora de 1490.14 E o soberan o pede-
lh es qu e se associem ao seu qu erer, su sten tan to as festas de casam en to do
seu prin cípe, com o qu e en ten dessem , pela su a gen erosidade e com -
preen são. Sem exigir, an tes con fian do, o soberan o recebe dos procu rado-
res das cidades e vilas o com prom etim en to de con tribu írem com 100.000
cru zados. Um clim a de abertu ra ao diálogo se in stalara. E assim vem os
D. João II deferir total, parcial ou con dicion alm en te qu ase 60% dos agra-
vos gerais qu e lh e foram apresen tados, para só in deferir cerca de 30% , o
qu e o gráfico dem on stra.15

4 TIPOS D E RESPOSTA S
CORTES D E ÉVORA D E 1490 – CA PÍTULOS GERA IS

O m aior n ú m ero de pedidos destin a-se a precisar a eleição e as


com petên cias ou a m origerar abu sos dos oficiais régios, sejam da ju stiça –
desem bargadores, corregedores, m eirin h os da correição, oficiais da cor-
reição, ju ízes de fora, ju ízes dos resídu os e órfãos16 –, m ilitares – an adel
dos besteiros17 – fiscais – siseiros das carn es, alm otacé-m or, alcaides das
sacas e portageiros18 –, ou da escrita – escrivães e tabeliães.19 E, cu riosa-
m en te, todo os pedidos foram con tem plados com deferim en tos totais ou
em parte e algu n s sob con dições.20 Certas qu estões de ín dole ju rídica ou
ju dicial se lh e ju n taram , procu ran do os povos aliviar os gravam es da
com plexidade ju dicial, m ostran do-se o m on arca aqu i m ais reservado, n ão
qu eren do in ovar,21 in deferin do 22 ou sen do evasivo.23

27
Maria Helena da Cruz Coelho

A segu n da m aior fatia de pedidos diz respeito ao social. Mas é de as-


sin alar qu e se calaram qu ase por com pleto as vozes con tra as opressões da
fidalgu ia. Mu ito provavelm en te porqu e, su prim idos os gran des sen h ores, a
n obreza qu e ficara n ão tin h a a m esm a capacidade gen eralizada de su bju gar
os h om en s, para além das atitu des régias recom en darem a con ten ção.
E com u m a n obreza assim con trolada o m on arca podia de n ovo
agraciá-la. De n otar, qu e n ão cedeu aos pedidos do Terceiro Estado n o
sen tido de serem lim itados os dotes de casam en tos e arras da fidalgu ia
(21),24 n em tam pou co à in terdição da su a pou sada em vilas e lu gares qu e
n ão lh es perten cessem (24).
Mais firm e se m ostra con tra as preten sões das elites locais qu e qu e-
riam dom in ar h om en s, afastar con corren tes e govern ar sem in terferên -
cias. Ou , se qu iserm os colocar a qu estão sob ou tro ân gu lo, D. João II ar-
vora-se em defen sor dos qu e realm en te trabalh am e aspiram a m elh ores
con dições de vida.
Não perm ite qu e se obrigu em os filh os dos lavradores a segu irem
as profissões dos pais, in terditan do-lh es ou tro m odo de vida, com o, por
exem plo, o artesan ato (29).25 Adia a decisão do afastam en to dos m estei-
rais da câm ara de Lisboa ou a restrição de os colocar apen as com o colh ei-
ros e sem voz (12). Não proibe o ofício de alfeloeiro (37).26
Em con trapartida n ega o privilégio de cavaleiros, cidadãos, n obres
h om en s e escu deiros, com m ais de 50 an os, poderem an dar em bestas
m u ares a vigiarem as su as fazen das e a tratarem dos seu s n egócios (42).
E m esm o os pedidos sobre os ju deu s, qu e iam n o sen tido de lh es restrin -
gir as su as liberdades, in terditan do-lh es ofícios e arren dam en tos (16),27
obrigan do-os a citar os cristãos peran te os ju ízes ordin ários (32) e con ce-
den do plen a liberdade aos seu s escravos (46) con vertidos ao cristian is-
m o,28 recebem tão-só deferim en tos parciais ou con dicion ais.
Tam bém é parco n as regalias con cedidas a adm in istração local, logo
às au ton om ias dos espaços con celh ios em qu e esta aristocracia se m ovia.
Atitu de aliás con sen tân ea com toda a su a atu ação cen tralizadora, em es-
pecial n a fase fin al do seu govern o.29 Só parcialm en te defere a in terven -
ção dos con celh os da n om eação dos m am posteiros dos cativos (9) ou n a
eleição dos cou déis e ju ízes dos órfãos (35). E recu sa, por com pleto, o pe-
dido a fim de qu e o m on arca n ão passasse cartas régias de recom en dação
para oficiais dos con celh os (25) 30 ou de qu e o erário con celh io n ão su por-
tasse as despesas das obras n as prisões (26). Com o, n o qu e ao fisco diz res-
peito, n ão an u i à abolição das dízim as das sen ten ças (44), n ão aceita m o-
dificações n os con tribu in tes dos 10 reais de Ceu ta (34) e só sob certas
con dições con sen te qu e a terça seja u tilizada para as obras dos m u ros
(36). E se a este con ju n to de preten sões sociais e adm in istrativas
fru stradas por parte da gen te n obre da govern an ça ju n tarm os algu n s ou -

28
O FINAL DA IDADE MÉDIA

tros in deferim en tos em n ível econ ôm ico, com pleta-se o sen tido do qu e-
rer de u m m on arca qu e desejava ter todos os poderes e poderosos su jei-
tos ao seu con trole e qu e os pequ en os o vissem com o seu defen sor e pro-
tetor.31 Ten taram os criadores de gado fu gir à fiscalização das au toridades
régias, o qu e lh es perm itiria u m com ércio lícito ou ilícito de an im ais m ais
ren tável. Foi-lh es n egado.32 Ten taram os com ercian tes elim in ar os m on o-
pólios das exportações, m orm en te de cortiça (18).33 Receberam u m a eva-
siva. Qu iseram ain da retorn ar aos pesos e m edidas an tigas (33). O pedi-
do foi in deferido. O sim régio era dado com critérios. Nu n ca a con descen -
dên cia devia in terferir n os plan os gerais do rei ou do rein o.
Dessas m esm as Cortes possu ím os u m total de 60 capítu los especiais
proven ien tes dos in teresses de 17 con celh os.34 Portan to o dobro dos agra-
vos especiais apresen tados n as an teriores Cortes de 1482. O lon go espa-
çam en to desta reu n ião, em relação à an terior, assim o ju stificaria.
Com gran de gen erosidade o m on arca defere totalm en te 66,7% dos
pedidos, o qu e, ju n tan do-lh es aqu eles a qu e an u i ain da qu e em parte ou
sob con dições, perfaz o su bstan cial m on tan te de 86,6% , com o o gráfico o
atesta. In defere expressam en te apen as 4 capítu los e adia ou tros tan tos. Al-
can çada a paz in tern a, acrescen tan do o prestígio e o proveito de u m Por-
tu gal qu e crescia em África e son h ada a con certação ibérica, D. João II
via-se in clin ado a favorecer os povos.

5 TIPOS D E RESPOSTA S
CORTES D E ÉVORA D E 1490 – CA PÍTULOS ESPECIA IS

Os capítu los qu e visam aos problem as econ ôm icos dos con celh os
predom in am , para depois se lh es segu irem os qu e dizem respeito à adm i-
n istração cen tral e ao social e, por fim , se apresen tarem os relativos ao fis-
co e adm in istração local, o qu e o qu adro m elh or especifica.
A crítica aos oficiais régios n ão apresen ta n ovidades em relação ao
qu e sem pre se reclam ava em Cortes – u m a atu ação das au toridades den -

29
Maria Helena da Cruz Coelho

6 CORTES D E ÉVORA D E 1490


CA PÍTULOS ESPECIA IS

Natureza dos requerimentos Total %


Administração central 13 21,7
Administração local 7 11,7
Social 12 20,0
Econômico 19 31,7
Fiscal 8 13,3
Militar 1 1,6
Total geral 60 100,0

tro das su as m argen s de com petên cias. Todavia verifica-se qu e se os exe-


cu tores da ju stiça – corregedores35 e ju ízes das sisas36 – con tin u avam a ser
visados, agora são-n os m axim am en te os oficiais do fisco, em especial os
alm oxarifes. Este, em Lagos (3), fazia casas n a ribeira e n ão deixava espa-
ço para os da vila carregarem m ercadorias, bem com o fretava todas as ca-
ravelas para irem bu scar trigo em Açores e levá-lo para a África, deixan -
do os vizin h os sem n en h u m a para, em seu proveito, se abastecerem de
trigo (5); en qu an to em Aveiro (1) tirava a cadeia para alfân dega,37 e em
Silves (2) vivia fora da sede do alm oxarifado, o qu e o devia fazer perder
o cargo. Tam bém os oficiais dos pan os delgados qu eriam sisar os aveiren -
ses (5), m esm o n os pan os qu e retiravam para u so de su as casas.38 E os ofi-
ciais régios de Setú bal (2) faziam estran h os con lu ios. Depois de aos alm o-
creves terem sido con tadas as sardin h as e pescados pelos oficiais da ribei-
ra, e carregados os an im ais, qu an do iam pagar a sisa, certos oficiais, a pe-
dido dos ren deiros ju deu s, qu eriam qu e eles declarassem , com ju ram en -
to sobre os Evan gelh os, o n ú m ero de m ilh eiros de sardin h as qu e leva-
vam . Ora eles n ão sabiam o qu e levavam , salvo o qu e lh es fora dito pelos
con tadores, n em lh es parecia ju sto fazer ju ram en to, estan do os Evan ge-
lh os n as m ãos dos in fiéis, pedin do portan to o respeito pelo costu m e.
Um a rede bu rocrática m ais atu an te sobre a cobran ça de direitos ré-
gios, m orm en te a qu e provin h a das tran sações com erciais, deixava m e-
n os liberdade de m an obra aos com ercian tes ou até os pression ava. Aper-
tava-se o cerco da fiscalidade estatal. E a fazen da n ão qu eria ver escapar
os proven tos de qu alqu er atividade. Assim se qu eixava Coim bra (2) de
qu e o m on teiro da m ata do Botão n ão os deixava aí m atar pom bos, ex-

30
O FINAL DA IDADE MÉDIA

pon do Lagos (4) qu e os oficiais régios qu eriam pen alizar os qu e traziam


sesm arias por aproveitar, ju stifican do-se os povos com as gu erras, fom es
e pestes para o n ão ter feito, ju stificação aceita pelo m on arca.
Além das au toridades delegadas do rei, ou tro poder extern o am ea-
çava pon tu alm en te certas cidades, vilas e lu gares, o dos sen h ores. Em ca-
pítu los especiais, sin tom aticam en te, as qu eixas con tra a fidalgu ia au m en -
tam face aos gerais. Depois das m ortes e persegu ições dos gran des estabi-
lizara-se o qu adro da n obreza.39 Algu n s filh os segu n dos das fam ílias tra-
dicion ais receberam cargos e ben efícios de D. João II,40 ou tros de u m a n o-
breza m édia e baixa sedim en taram as su as posições n a clien telagem e fi-
delidade ao n ovo m on arca.41 A n atu ral ten dên cia para os n obres esten de-
rem abu sivam en te os seu s ten tácu los de poder e in flu ên cia em n ível lo-
cal ten de a m an ifestar-se. Ain da qu e, diga-se, exageradam en te.
A m em ória dos atos do du qu e de Bragan ça ain da perdu rava. Bra-
gan ça (5) expu n h a qu e o du qu e m an dara tom ar o din h eiro dos órfãos,
com prom eten do-se o m on arca a devolvê-lo, se ele os h avia sacado com
alvará régio.
Lagos (1) acu sava Álvaro de Ataíde, qu e em doação régia recebera
a casa do sal por 12.000 reais, de n ão a abastecer de sal. Com o au m en to
da pesca, m u itos iam bu scar sal em Castela, o qu e ficava m u ito caro, pe-
din do o con celh o para o explorarem a partir de m arin h as da zon a, o qu e,
sob certas con dições, lh e será con cedido.42 Reclam ava ain da (7) con tra o
privilégio real con cedido ao com en dador de Aljezu r de aposen tadoria n a
vila, para ele e su a com itiva, por 3 m eses ao an o, pedin do qu e ele alu gas-
se as casas e pagasse as rou pas e com ida. Todavia D. João II in defere o pe-
dido, reiteran do o privilégio por 3 an os, talvez o tem po do ben efício. Já
n o caso de Torres Vedras (4), vila de rain h as, qu e se dizia lesada pelas
obras do m osteiro do Varatojo e pela estadia de vários m em bros da fam í-
lia real, rogan do qu e as aposen tadorias fossem pagas, D. João com prom e-
te-se a n ão dar alvarás de aposen tadoria para a vila du ran te 5 an os.
Agravo m ais gen érico expõe ain da Lagos (2) con tra a m an obra de
algu n s m oradores se fazerem vizin h os da vila do In fan te, bu scan do, assim
o crem os, a proteção dos h erdeiros desta casa, por este m eio se isen tan do
dos en cargos con celh ios, m as tam bém dos régios. E aqu i o con celh o alu de
expressam en te à ordem de D. João II para cada u m fazer qu atro alqu eires
de biscoito para abastecer a arm ada qu e segu iu para a África n a m issão de
con stru ir a fortaleza da Graciosa, ten do-se aqu eles escu sado, bem com o se
n egaram a con tribu ir para a taxa con celh ia qu e iria su bsidiar os trabalh os
de vin da de águ a doce à vila e a con stru ção de u m a gafaria, poço e posti-
gos. Mu ito claram en te o soberan o afirm a qu e só adm ite privilegiados a
qu em ele ten h a agraciado, a tu do com pelin do os referidos.
Ain da u m a acu sação expressa faz Silves (3) con tra Diogo Nu n es
qu e devia ter o proven to das dízim as reais e oprim ia n a su a cobran ça, de

31
Maria Helena da Cruz Coelho

tal m odo qu e os povos diziam ser isto pior qu e pagar as sisas em dobro.
Por su a vez Lam ego (3) verbera con tra o con de de Marialva 43 qu e tin h a
os direitos reais da cidade e n ão respeitava as n orm as foraleiras da arre-
cadação da portagem , apelan do D. João II ao cu m prim en to do direito
con su etu din ário. Arrecadar o m áxim o, qu an do os direitos reais lh es eram
doados, torn ava-se u m im perativo dos sen h ores, o qu e explicava todos
estes abu sos.
Nu m qu adro m ais geral, Barcelos (1) dá con ta de ban dos de fidal-
gos qu e erravam pela vila fazen do arru aça e aterrorizan do as pessoas.
Precisa D. João II qu e os fidalgos m oradores n a vila e term o n ão se po-
dem lan çar fora, m as aos dem ais restrin ge a estadia n a vila a 5 dias.
Qu an do a fidalgu ia desem pen h ava altos cargos, com o em Estrem oz
(3), n a pessoa do seu alcaide-m or qu e era con de,44 en tão os perigos tra-
du zem -se em in terferên cia n a adm in istração con celh ia. Assim , qu an do
h avia fu gas da prisão, o ju iz – por certo ju iz de fora 45 –, por ordem do al-
caide, m an dava os vereadores tom ar a ch ave da cadeia e gu ardar os pre-
sos. Logo os h om en s bon s, vexados e obrigados, n egavam -se ao exercício
de tais cargos. Era tam bém u m abu so sobre a prisão do con celh o, a afron -
ta qu e a Gu arda (2) adu zia con tra o seu bispo, qu e a u tilizava em vez da
su a própria, ú n ico agravo con tra a clerezia n estas Cortes.46
A vida in tern a dos con celh os, do seu aparelh o govern ativo às su as
fin an ças, m edidas econ ôm icas ou problem as sociais, em erge tam bém em
vários agravos.
O con celh o de Silves (1) requ er a liberdade de eleger em câm ara
corretores, os qu ais lh e garan tiam u m m elh or con trole de com pra e ven -
da de m ercadorias, o qu e o soberan o con sen te até ao n ú m ero de qu atro.
Em Extrem oz (2) será a voz da elite govern ativa qu e se ergu e para con -
den ar o m odo de atu ar de dois aposen tadores eleitos pelo povo qu e
“atroam ” toda a terra, pedin do logo qu e se escolh esse, por eleição, u m do
povo e ou tro escu deiro, talvez assim se am oldan do m elh or o cargo às cli-
vagen s sociais existen tes. Mais alto se ergu em as m esm a vozes (1) con tra
a “sayoria” de serem 12 h om en s dos m esteres a receberem as terças para
os m u ros e as coim as dos gados. Nu m a qu alqu er con ju n tu ra favorável, h a-
viam os m esteres con segu ido estas cobran ças, qu e perpetu avam , fazen do-
se eleger em su as casas e rodan do en tre si sapateiros, tecelões e ou tros ofí-
cios, n o qu e, com o bem sabem os, reprodu ziam as estratégias de poder das
elites. São ain da acu sados de n ão desem pen h arem os seu s m esteres depois
de serem eleitos, além de, h á 18 an os, n ão darem con ta do din h eiro arre-
cadado, n em terem feito obras. Mas o seu “rein ado” parece estar ch egan -
do ao fim . O m on arca acede ao pedido dos govern an tes de Extrem oz. De-
term in a qu e os cobradores fossem apen as dois, eleitos em câm ara pelos
ju ízes e oficiais, e só deviam correr a terra por m an dado dos oficiais e es-
tan do presen te u m tabelião qu e tu do an otasse. É provável qu e h ou vesse

32
O FINAL DA IDADE MÉDIA

de fato u m abu so. Mas o m aior seria, sem dú vida, os m ecân icos terem con -
segu ido lu gares n o aparelh o govern ativo, e sobrem an eira de cobran ça,
n u m a época em qu e por todas as Cortes se atravessavam as vozes das eli-
tes dirigen tes con tra a in trom issão dos m esteres n a govern an ça.
Ou tros gru pos sociais in terferiam com a adm in istração con celh ia.
Assim , em Torres Vedras (1), u n s qu an tos qu e se qu eriam privilegiados –
besteiros da câm ara e do con to, m oedeiros e ain da ju gadeiros e caseiros
do clero ou fidalgu ia – escu savam -se dos en cargos con celh ios, n o qu e o
m on arca n ão con sen te. Aqu i advogava-se com privilégios. Nou tros casos
com distân cia. Os h om en s do term o, qu e viam n os oficiais da su a sede
apen as dom in ân cias e n ão esperavam h aver por eles defen didos os seu s
in teresses n as m ais altas in stân cias, n egavam -se a con tribu ir para as fin -
tas qu e os con celh os lan çavam a fim de cu stearem os procu radores às
Cortes. Assim o declarava Braga (1), en u m eran do os term os qu e deseja-
va ver com pelidos, e Lam ego (1), qu e preten dia esten der este en cargo
m esm o a todo o alm oxarifado, ou , pelo m en os, aos con celh os du as légu as
em redor, dos qu ais se sen tia cabeça. E daqu i ressaltam claram en te as pre-
pon derân cias de algu n s con celh os m ais poderosos em face de ou tros qu e
gravitavam n a su a órbita, com o o jogo de in flu ên cias e pressões dos h o-
m en s da cidade sobre os do term o.
E peran te esta real situ ação vivida, por vezes h á acordos, ou tras ve-
zes en gan os. Com os h om en s do term o o con celh o de Bragan ça h avia fei-
to u m pacto (3) – n ão serviam n os en cargos con celh ios, rem in do essa
obrigação com o pagam en to de 4 alqu eires de cen teio an u ais. Mas eram
tam bém esses m esm os h om en s (6), talvez com u m certo poder econ ôm i-
co, qu e se con lu iavam com algu n s am igos e n as su as casas citadin as ven -
diam as m ercadorias para n ão pagar sisa, isen ção de qu e só deviam des-
fru tar os qu e tin h am casa própria n a cidade.
Todos qu eriam fru ir das liberdades con celh ias, pou cos desejavam ,
todavia, su portar as obras com u n s e as fin an ças locais, bu scan do escu sas,
com o já vim os n o caso particu lar das despesas extraordin árias dos procu -
radores às Cortes. Além de qu e a in terseção en tre fin an ças in tern as e fis-
calização estava sem pre presen te.
Justamente o concelho de Bragança (3), que recebia dos homens do
termo os quatro alqueires de centeio, que os isentava dos encargos, acusa-
va o juiz dos resíduos de lhe querer levar a terça desse pão para as obras, o
que não lhe parecia justo – e o monarca assim o corrobora – porque não se
tratava de uma renda permanente de concelho. Também Guimarães (1),
com a escassa renda de 4.000 reais, que, como dizia, gastava toda na festa
do Corpo de Deus, pusera um imposto de 1 ceitil por canada, no vinho ata-
bernado da vila e termo, rogando ao monarca que, dos 10.000 ou
12.000 reais que estimavam poder arrecadar, não pagasse o terço, pois já ti-
nha de dar 2.000 reais para o relego, no que também D. João II concorda.

33
Maria Helena da Cruz Coelho

A terça era pesado tribu to a solver à coroa. Não pou cas vezes se er-
gu e, en tão, a voz dos con celh os para rogar ao soberan o qu e a m esm a fi-
qu e n o con celh o para servir às obras com u n s. Nestas Cortes pediram -n o
Aveiro (4), Coru ch e (1), Setú bal (1) e Torres Vedras (2). D. João II defe-
re caso a caso, talvez com con h ecim en to das situ ações con cretas. Con ce-
de isen ção por 5 an os a Aveiro e Coru ch e e n ega-a aos ou tros dois con -
celh os. Igu alm en te du ra para os vizin h os era a con tribu ição para os pedi-
dos, sobretu do porqu e a su a cobran ça dava m otivo m u itas vezes a exces-
sos. Logo o con celh o de Bragan ça (7) qu er ser declarado com o pago dos
8.000 reais da su a parte n o pedido dos 50 m ilh ões. Por su a vez Aveiro (6)
diz h aver u m saldo, n a an terior percepção do pedido de 40 m ilh ões qu e
agora desejava ver descon tado n a cobran ça deste.
Um govern o con celh io aten to devia zelar pelo qu e se arrecadava e se
pagava. Igu alm en te devia ser din âm ico n a defesa dos in teresses econ ôm icos
próprios, pen h or da riqu eza local. Con form e os con textos, ou vim os en tão pe-
didos qu e ten tam valorizar o com ércio, a criação de gado ou a agricu ltu ra.
No qu e às tran sações diz respeito n ão se qu eriam perder, em prim ei-
ro lu gar, as liberdades foraleiras e depois os tribu tos legais qu e sobre as
m esm as im pen diam e algu n s, frau du len tam en te, procu ravam lu dibriar.
Fosse ven den do fora da cidade com o fazia u n s qu an tos qu e com erciavam
sal e pescado pelos term os de Aveiro (2), fosse trazen do os ben s para a sede
do con celh o, a fim de se aproveitar das isen ções aí praticadas, com o agiam
os de Bragan ça. Desejavam os con celh os ter lu gares de ven da cativos e pri-
vilegiados. Barcelos (2) qu eria u m m ercado m en sal, on de os do term o fos-
sem obrigados a ir com erciar. Lam ego (2) pedia a isen ção da sisa por 15
dias para a su a feira. A am bos os pedidos acede o m on arca.
E para qu e o com ércio in tern o fosse u m a realidade, era preciso h a-
ver produ tos. Qu e deviam ser im portados qu an do faltavam . Qu e se qu e-
riam defen didos com prioridades de ven da. Por isso Lagos (6) deseja al-
can çar – e con segu e-o – a liberdade de ir bu scar trigo ao Norte da África,
a Mazagão e à Casa do Cavaleiro, on de ele é barato, pois, com o argu m en -
ta, se os catelh an os assim o faziam , m ais lh e parecia razoável qu e tam bém
eles o pu dessem ir bu scar. Com o n ão qu eriam qu e os pescadores da vila
ven dessem toda a sardin h a aos castelh an os (8), o qu e estes faziam até a
u m preço m ais barato,47 m as an tes exigiam qu e a trou xessem à vila por
esse m esm o preço, para depois servir de m oeda de troca com os alm ocre-
ves qu e até aí acarretavam o trigo.
Prioridade de ven da, sem con corrên cia, se requ eria para o vin h o
qu e devia abu n dar e, n ão sen do de boa qu alidade, podia azedar an tes de
dar qu aisqu er lu cros. Coim bra (1) preten de qu e lh e respeitem os 4 m eses
– m aio, ju n h o, ju lh o e agosto – em qu e os vizin h os tin h am direito à ven -
da. E tam bém este con celh o, de u m a artificiosa m an eira, pede a defesa do

34
O FINAL DA IDADE MÉDIA

com ércio do azeite, a su a ou tra riqu eza. Qu eria m an ter as su as m edidas


próprias, m aiores qu e as dos dem ais con celh os, o qu e n ão in cen tivava os
vizin h os a com prá-lo n o exterior. Ou tros con celh os acu savam a con cor-
rên cia do vin h o de fora, qu e essen cialm en te era com prado pelos estalaja-
deiros, tan to em Bragan ça (4), com o n a Gu arda (1), qu e se viram seve-
ram en te acu sados.
Mas a defesa da agricu ltu ra tin h a ou tras fren tes, sen do a prin ci-
pal o con flito com a caça e criação de gado. Coim bra (3) pede assim a
in terdição da caça às codorn as, n os m ilh os. Bragan ça (2), porqu e é ter-
ra de lavras, preten de ter u m a área cou tada on de, sem dan os, possa
criar os bois, porqu e n a in dissolu bilidade do bin ôm io an im al-terra, de
n en h u m pode prescin dir. Mas a rivalidade gado-agricu ltu ra é por vezes
difícil de gerir. Assim em Elvas, qu e apresen ta qu atro capítu los a fim de
m origerar os abu sos qu e os an im ais faziam n as vin h as e olivais, sen tin -
do-se o peso dos criadores, m ais ricos e poderosos, em face dos agricu l-
tores. Ou , sejam os cau telosos, estava o discu rso a ser proferido por la-
vradores qu e en egreciam o qu adro? A seu lado se coloca, porém , o m o-
n arca, deferin do todos os pedidos. E eram precisam en te esses criadores
qu e n ão desejavam ver an u alm en te o seu gado arrolado pelo alcaide das
sacas, com o o clam ava Miran da do Dou ro (2). Expu n h a qu e, em tal cir-
cu n stân cia, n ão se en trava em lin h a de con ta com aqu ele qu e m orria ou
o lobo com ia, m as n ão escon dia qu e tam bém podia ser ven dido a pas-
sadores, em bora para tal pedisse pen as. Não foi o m on arca sen sível aos
argu m en tos e in deferiu o pedido.
Castela era, para as terras fron teiriças, ora u m a am eaça, ora u m a
oportu n idade. Nada m elh or, n estes lu gares afron tados, do qu e a bilatera-
lidade n o agir. Logo expõe Oliven ça (2) qu e os castelh an os deviam poder
levar para a su a terra m etade do trigo qu e aqu i cu ltivavam , já qu e o m es-
m o era facu ltado aos portu gu eses qu e trabalh avam , em Castela, o qu e D.
João II perm ite por 3 an os.
Fin alm en te, em dois capítu los, os con celh os fazem eco das su as
preocu pações com a saú de pú blica. Coim bra (4) qu eria ver todos os seu s
h ospitais n u m só, até para evitar qu e às cu stas dele m ais se su portassem
os provedores qu e os pobres. Tal pedido estava em perfeita con son ân cia
com a política régia, pron tifican do-se D. João II a escrever ao bispo para
qu e se cu m prisse. Oliven ça (4) tin h a ou tro problem a – u m ju deu gafo,
qu e era siseiro, an dava por en tre os cristãos cobran do a sisa. Qu ase pode-
ríam os dizer – dois m ales n u m só h om em . Mas é para a difu são da doen -
ça, pelo con tágio, qu e o con celh o apela para o afastar. E o soberan o cor-
robora-o, n u m a resposta lím pida e direta – “se h e gafo n om h á por qu e
an de n em estee n a villa com versan do com os saaos, a qu e esta en firm e-
dade h e ou dyosa”.

35
Maria Helena da Cruz Coelho

No jogo do pedir e do dar, já é lu gar com u m afirm ar-se qu e pesam


os argu m en tos. Expostas ficaram já m u itas das razões qu e in vocaram os
povos ou das fu n dam en tações qu e alicerçaram a resposta régia.
Mas vale a pen a ain da realçar algu n s porm en ores. Pon do em evi-
dên cia, n o pedir, Coim bra, aqu ele con celh o qu e esgrim e m ais sistem ati-
cam en te com u m filosofia argu m en tativa. Se pu gn a por ver respeitada
u m a su a liberdade expõe qu e “as m ercees feitas sem o feito n am aprovei-
tam ”.48 Se qu er acesso à caça n u m a m ata, lem bra qu e “cada an n o (ela)
pasa e vem pera soportam en to e m an tym en to da dicta cydade e com ar-
ca”; todavia se a deseja im pedir em terras de lavou ra, logo adu z qu e “as
n ovidades e fru itos per qu e se toda a gen te govern a e m an tem , a prin cy-
pall h e a do pam qu e h e de con servar e n am de destru ir”.49 E, fin alm en -
te, se alm ejava ver respeitadas as su as m edidas de azeite, recordava qu e
“as cidades e villas de vosos reyn os d’am tygam en te u sarom an tre sy fazer
postu ras e vereaaçom e m edidas segu n do sen tyam qu e era m ais proveito
da terra e bem com m u m a seu viver”.50
Um a boa argu m en tação n ão deixaria por certo in sen sível o ju lga-
dor. Coim bra tu do viu deferido, até m esm o o can den te problem a das m e-
didas, ain da qu e as requ eridas n ão fossem de pão ou vin h o, sobre as qu ais
o m on arca já legislara em capítu los gerais.
A destacar, por fim , u m argu m en to de crítica in tern a, por parte do
con celh o de Miran da do Dou ro. Crítica a u m a elite dirigen te ou , m ais ge-
n ericam en te, a expressão de u m a cu lpabilidade coletiva. Assim , qu an do
refere qu e o corregedor n ão respeita os h om iziados, pren den do-os, diz
qu e ele assim age, por u m lado porqu e eles são pobres e n ão en ten dem
n em sabem requ erer o seu direito, m as por ou tro por “o con celh o ser fro-
xo e doer lh e pou co o m all alh eo pera escu sar estes yn n ocen tes”.51 Pedi-
rá e obterá u m cou to de h om iziados privilegiados, com o o de Freixo de
Espada à Cin ta, para a terra m elh or se povoar.
D. João II, com o dissem os, deferiu qu ase 90% dos capítu los espe-
ciais da Cortes de 1490. Mas sobrem an eira n orteou -se por u m a política
n as su as decisões. Dá provas eviden tes de qu e segu e u m program a gover-
n ativo. As Cortes servem -lh e para o dar a con h ecer aos povos em discu r-
so e em ato. Sem perder a oportu n idade de, n este con tato direto com o
Terceiro Estado, poder ser tam bém o sen h or da graça, do privilégio, favo-
recen do u m a parte qu alqu er qu e, pela razão ou coração, lh e parecesse
m erecer o ben efício.
Na gen eralidade as su as respostas são u m espelh o de clareza, obje-
tividade e sen satez. Exige o respeito pelas orden ações do rein o e pelos ca-
pítu los gerais já resolvidos em Cortes. Em algu n s casos defere tem pora-
riam en te, com o qu e pon do à prova, tan to a su a decisão com o o com por-
tam en to dos povos. A experiên cia parece já ser a “m adre de todas as cou -
sas”. Ch ega, em algu n s casos, a dar m ais do qu e o pedido.

36
O FINAL DA IDADE MÉDIA

Pon tu alizem os.


Merece-lh e a fiscalidade u m a particu lar aten ção deliberativa, côn s-
cio de qu e n ão pode lesar o erário régio n em tão pou co agravar dem a-
siado os seu s sú ditos. Vejam os o caso específico das terças.
Torres Vedras diz ser u m con celh o de pou ca ren da, pedin do en tão
a terça para fazer peran te seu s en cargos. Não o pode o m on arca aceitar –
porqu e a terça “se n am deve dar a n yn gu em por ser cou sa de bem com -
m u m ”. Mas, sen h or da graça e cabeça qu e dirige o corpo social do rein o,
acrescen ta – se h ou ver algu m a ou tra ren da com qu e possa aju dar, pron -
tificar-se-á a fazê-lo, e porven tu ra o con celh o abrisse as várzeas poderia
daí colh er ren das, qu e desde já se com prom etia a n ão on erar com a ter-
ça. Parece-n os, de todo, com pleta esta resposta – em n om e de u m a lei ge-
ral, n ega; a bem do local, prom ete e in cen tiva, m as de u m a form a m u i-
to precisa, garan te de u m a con cretização.
Sabe qu e D. João II n ecessita dos pedidos. Mas n ão descon h ece qu e
essas rem essas são fardo qu e agrava o já difícil cotidian o dos povos. As-
sim , n u m a pon derada decisão, con sen te qu e Aveiro n ão se lan çasse em
obras n o an o de 1490, com o lh e h avia orden ado o corregedor, para se re-
fazer do con tribu to qu e à coroa tin h a de versar.
Tal com o já o pressen tim os para os capítu los gerais, tam bém n estes
especiais parece estar ao lado dos estratos sociais qu e m ais n ecessitam de
apoio. Agora, sobrem an eira, os lavradores dian te dos criadores de gado,
com o referim os. E para su sten tar u m Portu gal m odern o, aberto a vian -
dan tes e m ercadores, sabia qu e eram im prescin díveis as estalagen s, pelas
qu ais sem pre pu gn aram os m ais esclarecidos govern an tes, a saber o re-
gen te D. Pedro. Logo, qu an do os con celh os se ergu em em clam ores con -
tra os estalajadeiros, D. João II afirm a qu e “n ão são de vedar as estala-
gen s”, m as apen as os abu sos dos estalajadeiros, en u m eran do-os u m a u m
para os con den ar.52 De n ovo o sen tido do particu lar n ão o faz perder a vi-
são am pla do bem geral.
Não qu er ver com etidos erros por ign orân cia ou a coberto da ign o-
rân cia. Qu eixan do-se Bragan ça dos exageros dos requ eredores de Ceu tas,
m an da qu e se cu m pra o regim en to an tigo e qu e os oficiais o leiam para
n ão poderem ser en gan ados, exigin do das partes plen a con sciên cia dos
fatos.53 As cobran ças são para se cu m prirem , m as n ão para se u ltrapassa-
rem , tan tas vezes em proveito dos próprios cobradores.
Fin alm en te ch ega a con ceder m ais qu e o requ erido. Gu im arães
qu eria isen ção da terça para certo im posto con celh io qu e estava lan çan -
do n ovam en te. Essa graça é dada a ele e ain da a ren da do verde e ou tras
sem elh an tes, se as h ou vesse.
D. João II n ão terá desilu dido os seu s con celh os. Se a política joa-
n in a se delin eou sem com prom issos sociais,54 segu n do u m plan o pessoal
do m on arca, ela serviu os in teresses do Terceiro Estado.

37
Maria Helena da Cruz Coelho

A pressão da fidalgu ia sobre os povos aliviou -se. A gu erra en tre


Portu gal e Castela acabara, abran dan do o ju go férreo dos pedidos. A m a-
n u ten ção das praças m arroqu in as e a expan são pela costa african a exi-
giam sacrifícios de pessoas e de din h eiro, m as ofereciam m ais postos de
abastecim en to e au m en tavam os locais e produ tos para o com ércio. A
bu rgu esia con h ecia n ovos e prom issores n egócios. O ren ovado din am is-
m o econ ôm ico de Portu gal prom etia m elh ores con dições de vida. Todos a
bu scariam . Assim os m esteirais ou filh os de lavradores, a qu em o m on ar-
ca n ão n ega essa ascen são.
D. João II recu sava-se ao livre arbítrio e ao favorecim en to de u n s
qu an tos. A lei e a grei por qu e se pau tava serviam os in teresses do Tercei-
ro Estado. Após o du ro período de govern o do African o, os con celh os es-
peravam o Messias. Crem os poder afirm ar qu e, pelo m en os du ran te al-
gu m tem po do rein ado de D. João II, os con celh os acreditaram qu e o
Messias, a u m tem po poderoso e protetor, h avia ch egado.

38
O FINAL DA IDADE MÉDIA

N OTA S
1. Leia-se, sobre este tem a, a sín tese de COELHO, M. H. da C. O peso dos privilegiados em
Portu gal. In : CONGRESSO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA, “EL TRATADO DE TORDESIL-
LAS Y SU ÉPOCA”, I, 1995, Madrid. p.291-314.
2. Estas Cortes foram já largam en te estu dadas, pelo qu e para algu n s estu dos m ais atu aliza-
dos rem etem os o leitor, n eles se en con tran do, aliás, referên cia à bibliografia an terior. Assim ,
e segu in do u m a ordem cron ológica, veja-se a prim eira parte, da respon sabilidade da prim ei-
ra au tora, do artigo de GOMES, A. A. A., COSTA, R. As Cortes de 1481-1482: u m a aborda-
gem prelim in ar. Estudos Medievais Porto, 1983-1984, p.151-79, em qu e se aborda o con teú -
do dos capítu los gerais e as respectivas deliberações régias. Con su lte-se depois a obra m ais
com pleta sobre capítu los gerais de Cortes de SOUSA, A. de, 1990. 2v., qu e n o prim eiro vo-
lu m e, en tre as págin as 420-6, refere-se aos aspectos form ais das m esm as, para n o segu n do
volu m e, en tre as págin as 445-87, dar-n os o resu m o dos seu s 172 capítu los e o teor das res-
postas do m on arca. Fin alm en te tam bém MENDONÇA, M. D. João II: um percurso humano e
político nas origens da modernidade em Portugal. Lisboa: Estam pa, 1991. p.195-249, estu da as
prelim in ares da con vocação e abertu ra destas Cortes, bem com o an alisa os assu n tos dos ca-
pítu los gerais e respostas do m on arca. O n osso estu do in dicará, basicam en te, sobre os capí-
tu los especiais das Cortes de 1482, ú n icos qu e n os ch egaram , e até agora n ão estu dados, e
as Cortes da Évora 1490, qu er n os seu s capítu los gerais, qu er n os especiais, estes ú ltim os
tam bém n ão an alisados até o m om en to.
3. Veja-se em CHAVES, Á. L. de. Livro de Apontamentos (1438-1489). Códice 443 da Colecção
Pom balin a da B. N. L., in trodu ção e tran scrição de SALGADO, A. M., SALGADO, A. J. Lis-
boa: Im pren sa Nacion al, Casa da Moeda, 1984; o discu rso de LUCENA, V. F. de. A form a das
m en agen s, a plan ta das Cortes e o in stru m en to das Cortes, n as folh as 10 v., 40v.-51.
4. PINA, R. de Ch ron ica d’el-rei Dom João II. In :___. Crônicas de Rui de Pina. Porto: Lello &
Irm ão-Editores, 1977. cap.V. (In trodu ção e revisão de Alm eida, M. L. de).
5. Estes valores foram calcu lados a partir da obra de Arm in do de Sou sa.
6. O estu do desen volvido do con teú do destes capítu los especiais, dos gru pos sociais e pes-
soas n eles visados, bem com o das respostas régias com preen de a Segu n da parte, da respon -
sabilidade da segu n da au tora, do artigo citado de ANDRADE, A. A., GOMES, R. C. As Cor-
tes de 1481-1482: u m a abordagem prelim in ar. p.181-212.
7. Cortes com eçadas em n ovem bro e term in adas an tes do Natal desse m esm o an o de 1482
(Arm in do de Sou sa, op. cit., p.426-29).
8. SOUSA, A. de, op. cit., p.426-29, refere-se aos aspectos form ais de reu n ião destas Cortes,
bem com o o faz MENDONÇA, M., op. cit., p.249-53, m as n en h u m dos referidos au tores se
debru ça sobre a an álise dos capítu los especiais.
9. Discrim in an do, são: 3 capítu los de Faro (TT – Odian a, liv. 2, f. 270); 1 de Gu im arães (TT-
Além Dou ro, liv. 4, f. 241); 7 de Lou lé (TT – Ch an c. D. João II, liv. 23, f. 106-7; Odian a, liv.
2, f. 50-50v); 1 de Mon forte (TT – Ch an c. D. João II, liv. 23, f. 20); 4 de Oliven ça (TT – Odia-
n a, liv. 2, f. 192-4); 1 de Pin h el (TT – Beira, liv. 1, f. 158v-159); 2 de Pon te de LIMA (tt –
Além Dou ro, liv. 3, f. 140v-141); 1 de Serpa (TT – Odian a, liv. 2, f. 192); 1 de Silves (TT –
Odian a, liv. 2, f. 297v-298); 8 de Vila Viçosa, de qu e n ão se con h ecem as respostas régias
(TT – Corpo Cron ológico, parte II, m . 1, doc. 40); 1 de Viseu (TT – Ch an c. D. João II, liv. 25,
f. 38v). Doravan te dispen sar-n os-em os de citar as cotas dos docu m en tos, m as iden tificare-
m os os artigos pelo con celh o e seu n ú m ero de ordem .
10. Ten h a-se em con ta qu e u tilizan do n os trabalh os de ou tros au tores para as Cortes de Evo-
ra de 1481-1482 e para os capítu los gerais das de Évora de 1490 pode h aver algu m defasa-
m en to n a an álise da n atu reza dos artigos, bem com o n a classificação das respostas régias,
en tre a classificação aí apresen tada e a n ossa.
11. Só n ão estiveram Mon forte, Oliven ça, Pin h el, Serpa e Vila Viçosa.

39
Maria Helena da Cruz Coelho

12. Por certo Rodrigo Afon so de Melo, casado com D. Isabel de Men eses, con de de Oliven -
ça desde 1476 e falecido em 1487 (FREIRE, A. B. Brasões da Sala de Sintra. 2.ed. Coim bra:
Im pren sa da Un iversidade, 1930. liv. III, p.324-25).
13. Sobre a form ação da Casa de Bragan ça e a dim en são do seu real poder em terras, direi-
tos, ju risdições e h om en s, leia-se o estu do de CUNHA, M. S. da Linhagem, Parentesco e Poder.
A casa de Bragan ça (1384-1483). Lisboa: Fu n dação da Casa de Bragan ça, 1990.
14. SOUSA, A. de, op. cit., v.I, p.429-30, resu m e os aspectos form ais da con vocação destas
Cortes, para n o volu m e segu n do, a págin as 488-99, n os forn ece o resu m o dos seu s capítu -
los gerais e respostas régias, por aqu i ten do n ós qu an tificado estas, n a elaboração do gráfi-
co. No en tan to, para u m a an álise qu alitativa m ais porm en orizada, con su ltam os com o fon -
te, ain da qu e secu n dária, os códices 694 e 696 dos Man u scritos de João Pedro Ribeiro, qu e
se en con tram n a Secção de Man u scritos da Biblioteca Geral da Un iversidade de Coim bra.
Os m esm os capítu los gerais destas Cortes foram estu dados por MENDONÇA, M., op. cit .,
p.412-35, n as su as tem áticas e respostas régias, bem com o n as con tin u idades ou diferen ças
em relação às de 1481-1482.
15. O n ú m ero exato de deferim en tos (totais, parciais ou con dicion ais) é de 59,6% , de in de-
ferim en tos 29,80 % e de evasivas, adiam en tos ou n ão in ovações é de 10,6% .
16. Sobre estes ver agravos 4, 7, 10, 23, 30, 31, n u m eração do volu m e segu n do a obra cita-
da obra de Arm in do de Sou sa.
17. Agravo 8.
18. Agravos 2,11,27,39.
19. Agravos 15 e 47.
20. É apen as evasivo n o capítu lo 30 sobre a m an u ten ção dos desem bargadores e su as obri-
gações.
21. Assim n o caso da alçada do direito de asilo das igrejas (17).
22. In defere u m pedido de habeas corpus, en qu an to du rassem as in qu irições devassas (45).
23. Resposta evasiva recebe a preten são de se pu n irem os alm oxarifes e ren deiros do rei pela
ven da dos ben s desses ren deiros abaixo do seu valor, e n ão os com pradores dos m esm os.
24. Expu n h am os povos qu e, por essa razão, os fidalgos tin h am as su as filh as “com h om em
n om seu igu al” ou colocá-las com o freiras. Pedem qu e os dotes fossem 1.000 cru zados de
ou ro e as arras 1/ 3 e qu em o n ão fizessem perdesse tu do para ou tros filh os, irm ãos ou pa-
ren tes m ais ch egados qu e assim casasse, segu n do se fazia em Floren ça, Sien a e por toda a
Itália. Mas D. João II respon de “qu e lh es agradece a boa von tade com qu e se m overom a
esto apon tar peroo qu e n om h e cou sa em qu e possa dar determ in açom ” (BGUC – Col. De
Man u scritos de João Pedro Ribeiro, cód. 696, p.148-249).
25. Pediam isto para os lavradores, sob pen a de açoites e degredo para as ilh as, e perda dos
ben s dos oficiais m ecân icos qu e os en sin assem . A resposta régia é, porém , do segu in te teor:
“n om pedem beem , pois o officio da lavoira h e dign o de favorizar e n om pera agravar vista
a n ecessidade delles n o regn o, e com o se n om pode tolh er a cada h u u m de trabalh ar por
m ais valler e de trabalh ar por isso”. Logo, o m on arca desejava lavradores qu e gostassem do
seu trabalh o, e qu e n ão se sen tissem m an ietados qu an to aos seu s filh os (BGUC – Col. De
Man u scritos de João Pedro Ribeiro, cód. 696, p.259-61).
26. De fato, as Ordenações Afonsinas liv. 5, tít. 101, in terditavam tal profissão aos h om en s, sob
pen a de prisão e açoites em pú blico. Aqu i os povos alegavam qu e eles faziam o m el caro, e
qu e, ao vê-los, os m en in os ch oravam , pression an do os pais à com pra de alféloa, além de
qu e ain da en sin avam m au s vícios de cartas e dados. O m on arca n ão proíbe a profissão m as
exige qu e “n om jogu em dados” (BGUC – Col. De Man u scritos João Pedro Ribeiro, cód. 696,
p. 270-1).
27. D. João II perm ite qu e sejam ren deiros das sisas, a qu al tirada por cristãos ain da seria
pior, in terditan do-lh es, todavia, serem ren deiros dos m estrados ou igrejas, e de desem pe-
n h arem ofícios ou serem feitores (BGUC – Col. De Man u scritos de João Pedro Ribeiro, cód.
696, p.242-4).

40
O FINAL DA IDADE MÉDIA

28. Mas, n este caso, os ju deu s tin h am o con lu io de algu n s cristãos qu e lh es com pravam os
escravos con vertidos. Ora D. João II in terdita aos ju deu s a com pra de m ou ros e m ou ras da
Gu in é, m as deixa-os possu ir escravos bran cos. E se algu m escravo se fizesse cristão ficava
forro, e n en h u m cristão poderia dizer qu e era seu (BGUC – Col. De Man u scritos de João Pe-
dro Ribeiro, cód. 696, p.279-81).
29. Assim qu is con trolar a eleição para os oficiais con celh ios, desejan do ver e in terferir n a
pau ta dos elegíveis, sobretu do n as prin cipais cidades, com o Lisboa e Évora (MENDONÇA,
M., op. cit., p.314-18). Não abdicou de n om ear dezessete ju ízes de fora e de dar corregedo-
res às com arcas do rein o (op. cit., p.365-73). E além disso deu provim en to a u m n ú m ero as-
saz con siderável de ou tros oficiais de ju stiça – ju ízes e escrivães das sisas e ju ízes e escrivães
dos órfãos –, da fazen da – em especial oficiais da alfân dega (alm oxarife, escrivão, ju ízes, por-
teiros, requ eredores, m edidores, h om en s) –, ou da adm in istração local – sobrem an eira ta-
beliães, procu radores do n ú m ero, escrivães da câm ara, da alm otaçaria e de alcaidaria, cou -
déis e seu s escrivães (op. cit., p.319-65).
30. É, aliás, m u ito esclarecedora, a resposta de D. João II: “elle escreve aos con celh os por os
offícios sobre boas pessoas e qu e en ten de qu e som pera elles perten cen tes, e qu e h e beem
do povoo, e n om per ou tro respeito; e qu e qu an do virem qu e as pessoas por qu e escrepveu
n om som taes qu e pera ello sejam perten cen tes qu e lh o escrepvam , e qu e terá sobre isso a
m an eira qu e seja razom ; porqu e dos seu s povoos e Regn o elle teem o m aior cu idado”
(BGUC – Col. De Man u scritos de João Pedro Ribeiro, cód. 696, p.254-55).
31. Mas tam bém estes deviam agir den tro da legalidade. E por isso aceita o pedido de qu e o
m oleiro deve receber o grão e dar a farin h a a peso (38).
32. Não qu eriam qu e os gados fossem cou tados pelos alcaides das sacas e gu ardas fiscais do
con traban do para Castela (19); n ão qu eriam in form ar os ren deiros das sisas das deslocações
para pastagen s, n em pagar a portagem (20). O m on arca respon de em sín tese: “n om pedem
bem , porqu e se assy n om se fizese averia m aior m in goa de carn es n o regn o do qu e h á” e
prom ete m esm o fazer orden ações “m aes apertadas aceerca dello” (BGUC – Col. De Man u s-
crito João Pedro Ribeiro, cód. 696, p.246-8). Não lh es é ain da con sen tido criar gado m u ar
n o En tre Dou ro e Min h o, u tilizan do égu as galegas (43). O m on arca apen as con sen te qu e
n ão levem din h eiro das bestas qu e vão a Castela bu scar carga (22).
33. Pedira o m on arca o m on opólio da exportação, por 5 an os para carregar cobre de Fran -
ça, Flan dres e In glaterra. E porqu e “rogo do rey m an dado h e”, aceitou -o o povo. Acabados
os 5 an os, o m on arca dera o trau to a Du arte Bran dão, con tra o qu e agora os con celh os se
in su rgiam . Mas respon de o m on arca: “con sirada esta cau sa beem h e m aes dam pn o qu e pro-
veyto de seu povoo an dar solta e fora de h ú a m ãao porqu e h u u n s tolh em o proveito dos
ou tros” (BUGC Col. De Man u scritos de João Pedro Ribeiro, cód. 696, p.245-6), alegan do
qu e o desequ ilíbrio de riqu eza en tre os m ercadores con du ziria, in evitavelm en te ao m on o-
pólio de u n s qu an tos.
34. São eles 6 capítu los especiais de Aveiro (TT – Ch an c. D. João II, liv. 16, fl. 16v-19); 2 de
Barcelos (TT – Ch an c. D. Man u el, liv. 9, fl. 33); 1 de Braga (TT – Ch an c. D. João II, liv. 13,
fl. 118; Além Dou ro, liv. 3, fls. 93v-94); 7 de Bragan ça (TT – Ch an c. D. João II, liv. 16, fls.
131-132); 6 de Coim bra (TT – Ch an c. D. João II, liv. 13, fl. 127-127v); 1 de Coru ch e (TT –
Ch an c. D. João II, liv. 9, fl. 50; Odian a, liv. 2, fl. 53); 4 de Elvas (AM – Perg. 66); 3 de Es-
trem oz (TT – Odian a, liv. 2, fl. 59-59v); 2 da Gu arda (TT – Ch an c. D. João II, liv. 16, fls.
26v-27); 1 de Gu im arães (TT – Ch an c. D. João II, liv. 11, fl. 24-24v; Além Dou ro, liv. 3, fl.
85-85v); 8 de Lagos (TT – Odian a, liv. 2, fls. 60-62); 3 de Lam ego (TT – Ch an c. D. João II,
liv. 16, fl. 22-22v); 2 de Miran da do Dou ro (TT – Ch an c. D. João II, liv. 16, fl. 23; Além Dou -
ro, liv. 3, fls. 96v-97); 4 de Oliven ça (TT – Ch an c. De D. João II, liv. 16, fl. 69-69v); 2 de Se-
tú bal (TT – Ch an c. De D. João II, liv. 9, fl. 117-117v; Odian a, liv. 2, fl. 55-55v); 3 de Silves
(TT – Ch an c. D. João II, liv. 9, fls. 39v-40); 5 de Torres Vedras (TT – Ch an c. D. João II, liv.
13, fl. 144-144v). Em relação aos con celh os qu e apresen taram capítu los especiais n estas
Cortes de 1490, in ven tariados por Arm in do de Sou sa, ob. cit., vol. III, p. 13, diga-se qu e
qu an to ao Cartaxo (TT – Ch an c. De D. João II, liv. 21, fl. 172) se trata de u m a carta de D.
João II, respon den do a agravos qu e o con celh o de San tarém fazia ao Cartaxo, m as datada

41
Maria Helena da Cruz Coelho

de San tarém , 28 de ju n h o de 1487, portan to n ão destas Cortes. Igu alm en te o Porto (AHM
– Livro Gran de, fl. 196) apresen ta u m a carta de privilégios, datada da Évora de 1 de ju n h o
de 1490, qu e, em bora seja da época das Cortes, m ais parece, pelo seu form u lário, obtida fora
delas. (Aqu i deixam os u m agradecim en to recon h ecido ao Diretor do Arqu ivo Histórico, Dr.
Man u el Real, qu e n os en viou , com o pedim os, a reprodu ção deste docu m en to). Não en tra-
m os em lin h a de con ta com Tavira, pois ten do n ós requ erido ao Arqu ivo Mu n icipal a folh a
97, do códice Reform a dos Tom os, n ão obtivem os resposta, n ão se n os oferecen do a possi-
bilidade de aí n os deslocarm os para an alisar essa fon te, fican do este caso em aberto.
35. Aveiro (3) qu eixa-se qu e o corregedor m an dara fazer u m a n ova casa de au diên cias e re-
lação, bem com o ch afariz e calçadas. O con celh o pede tem po para fazer as obras e o rei con -
cede-lh e prazo de u m an o. Em Miran da (1) o corregedor pren dia os h om iziados do con ce-
lh o e colocava-se n a prisão, n ão respeitan do o cou to da vila.
36. Acu sa Torres Vedras (5) o en tão ju iz das sisas de pou co saber, e de com eter m u itos er-
ros, pedin do ou tro m ais idôn eo. O m on arca exige qu e se qu eixassem dele por carta e depois
ele fosse ou vido.
37. Sobre este pedido o m on arca adia a resposta, pedin do in form ações.
38. Oliven ça (1) qu eria ain da qu e o alcaide das sisas fosse de fora e provido de 3 em 3 an os.
39. E, segu n do o parecer de MARQUES, A. H. de O. História de Portugal. Das origens ao Renas-
cimento. 9.ed. Lisboa: Palas Editores, 1982. v.I, p.363-4: “a política de D. João II con sistiu em
bu scar o apoio, n ão da classe popu lar, m as an tes das fileiras in feriores da n obreza. Ao m es-
m o tem po, prom oveu m u itos legistas e fu n cion ários pú blicos a cargos de relevo até aí reser-
vados às cam adas altas da aristocracia”.
40. Para os cargos de ju iz de fora, corregedor, tabelião e ch an celer da provín cia e com arca,
D. João II n om eou h om en s da su a con fian ça, sain do algu n s da corte, m as perten cen do a u m
escalão social baixo, com destaqu e para os escu deiros, qu e tan to seriam oriu n dos da n obre-
za com o do povo, com o o atesta o trabalh o de Man u ela Men don ça, “Os h om en s de D. João
II”, sep. de Estudos em Homenagem a Jorge Borges de Macedo, Lisboa, INICT, 1994, p.173-5.
41. Aten te-se qu e D. João II privilegiou com isen ções, m ais de cem ben eficiados da n obre-
za m édia e in ferior – cavaleiros, escu deiros, vassalos e h om en s fidalgos. Eram algu n s deles
filh os segu n do de gran des fam ílias, even tu alm en te bastardos, portan to dos seu s ram os m e-
n os favorecidos. Eram ou tros cavaleiros e escu deiros em form ação e algu n s qu an tos h om en s
do povo. Gen te qu e tu do esperava do m on arca, dan do-lh e em troca a su a in teira lealdade
(MENDONÇA, M., op. cit., p.176-85).
42. O m on arca m an dara a Álvaro de Ataíde prover a casa de sal. Em caso n egativo os vizi-
n h os poderiam explorar as m arin h as, pagan do-lh e os 12.000 reais.
43. Deverá ser D. Fran cisco Cou tin h o, 4º. Con de de Marialva. Era filh o de Gon çalo Cou tin h o,
2º. Con de de Marialva e su cedeu n o títu lo, por m orte de seu irm ão, D. João Cou tin h o, 3º. Con -
de de Marialva. (Veja-se FREIRE, A. B. Brasões da Sala de Sintra. 2.ed., livro. III, p.310.)
44. Por certo D. San ch o de Noron h a, 3º. Con de de Odem ira. Era sobrin h o do rei e filh o do
con de de Faro, títu lo qu e tam bém u sou , e n eto do 1º. Con de de Odem ira. Obteve a con fir-
m ação da alcaidaria-m or de Estrem oz, a 23 de m aio de 1509 (FREIRE, A. B., op. cit., liv. III,
p.345).
45. Mça M., op. cit., 1991, p.367, afirm a qu e em 1487 fora n om eado u m ju iz de fora para
Estrem oz.
46. Na realidade a qu eixa qu ase se poderia voltar con tra o m on arca. D. João II dera ao bis-
po da Gu arda o privilégio de gu ardar os seu s presos n as prisões do con celh o. Mas o con ce-
lh o, talvez torn ean do a m elin drosa qu estão, apen as acu sa o bispo por ter requ erido tal pri-
vilégio, qu e n en h u m ou tro prelado possu ía, ten do-o feito apen as para su bju gar a cidade,
u m a vez qu e o alju be e cadeias episcopais eram bem m elh ores qu e as con celh ias. Em tão
delicada con ten da o m on arca sen ten cia salom on icam en te. Por u m an o gu arda-se o alvará,
decorrido este deixa-se de gu ardar.
47. Refere-se qu e ven diam aos castelh an os a 10, 15 ou 20 reais e a eles a 80 e 100 reais.

42
O FINAL DA IDADE MÉDIA

48. Capítu lo especial de Coim bra (1) às Cortes de 1490.


49. Capítu los especiais de Coim bra (2 e 3) às m esm as Cortes.
50. Nas referidas Cortes, cap. 5.
51. Capítu lo especial de Miran da (1) às Cortes de 1490.
52. Com o exem plos, os capítu los especiais de Bragan ça (4) e da Gu arda (1) às Cortes de
1490.
53. Capítu lo especial de Bragan ça (1) às Cortes de 1490.
54. Esta parece ser a opin ião de MAGALHÃES, J. R. Os régios protagon istas do poder.
D. João II. In : MATTOSO, J. (Dir.) História de Portugal. v. III, No alvorecer da Modernidade,
(Coord.). Joaqu im Rom ero Magalh ães Lisboa: Estam pa, 1993, p.318, qu e afirm a “em D.
João II n ão en con tram os u m a dem on stração de bu sca de apoios em gru pos sociais con tra
ou tros ou o desejo de m u dar ou su bverter a h ierarqu ia social preexisten te”, m as apen as o
desejo de obediên cia e acatam en to da au toridade régia.

43
Maria Helena da Cruz Coelho

B IBLIOGRA FIA
ANDRADE, A. A., GOMES, R. C. As Cortes de 1481-1482: u m a aborda-
gem prelim in ar. Estudos Medievais (Porto), 1983-1984.
COELHO, M. H. da C. O peso dos privilegiados em Portu gal. In : CON-
GRESO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA, “EL TRATADO DE TORDE-
SILLAS Y SU ÉPOCA”, I. Madrid, 1995.
CUNHA, M. S. da Linhagem, parentesco e poder. A casa de Bragan ça (1384-
1483). Lisboa: Fu n dação da Casa de Bragan ça, 1990.
MATTOSO, J. (Dir.). História de Portugal. v.III, No alvorecer da Modernidade,
coord. de Joaqu im Rom ero Magalh ães. Lisboa: Editorial Estam pa,
1993. (ver observação n a ú ltim a n ota)
MARQUES, A. H. de O. História de Portugal. Das origen s ao Ren ascim en -
to. 13.ed. Lisboa: Editorial Presen ça, 1997. v.I.
MENDONÇA, M. D. João II: u m percu rso h u m an o e político n as origen s
da m odern idade em Portu gal. Lisboa: Estam pa, 1991.
SOUSA, A. de As Cortes medievais portuguesas (1385-1490). Porto: INIC,
1990. 2.v.

44
capítu lo 3

O PRINCÍPIO DA ÉPOCA MODERNA


Hu m berto Baqu ero Moren o*

A aclamação de D. João I nas cortes de Coimbra de 1385 em lugar


de reduzir a autoridade da coroa, veio pelo contrário aumentar o seu pres-
tígio. Assim, a interrupção da continuidade dinástica pela via legítima não
impediu que por falecimento do monarca a coroa fosse transmitida ao filho
varão primogênito, ou, na sua falta, ao mais próximo parente por linha co-
lateral legítima. Foi aliás o que aconteceu por falecimento de D. João II, em
que a transmissão do poder se realizou em benefício de seu cunhado e pri-
mo direito, o duque de Viseu D. Manuel, filho do infante D. Fernando e
neto do rei D. Duarte.
A doutrina tradicional sustentada por diversos juristas estabelecia o
princípio de que o mestre de Avis tinha sido eleito rei de Portugal nas men-
cionadas cortes, partindo do princípio que ao povo pertencia esse direito de
escolha quando o trono se encontrasse vago por qualquer motivo de força
maior. Coube pela primeira vez a Alfredo Pimenta, sustentar a teoria que
as cortes de Coimbra não elegeram D. João I, mas antes pelo contrário ter-
se-iam limitado a confirmar um direito sucessório.1
Esta questão, contudo, não se apresenta tão líquida. Contrariamen-
te a esta posição temos que o auto de aclamação fala expressamente na elei-
ção, tendo os representantes concelhios declarado que o trono se encontra-
va vago. Por seu turno sabe-se que D. João I considerava que não recebe-
ra a coroa iure successiones, mas fora designado ex-novo.2
Em conformidade com o pensamento político medieval a monarquia
era uma instituição de direito divino, embora os teóricos se dividissem quan-
to ao modo como os reis recebiam o poder. Segundo uns os monarcas ad-
quiriam a potestade diretamente de Deus. Outros como Álvaro Pais, no de
Planctus Ecclesie opinam a doutrina da mediação do povo. Ainda existem de-
fensores de que o papa transmite o poder temporal aos reis, o que se tra-
duzia no conceito de supremacia do poder espiritual sobre o temporal.3
A autoridade outorgada aos monarcas assentava em símbolos cuja
aplicação remontava ao estado visigótico desde o governo de Leovigildo.
Estas insígnias que na sua maioria eram de origem imperial romana haviam
adquirido um caráter religioso. Consistiam esses símbolos na coroa, na es-
pada, no cetro, no manto de púrpura e no trono. A cerimônia de consagra-

47
Humberto Baquero Moreno

ção e coroação dos reis castelhano-leoneses efetuava-se publicamente em


alguma catedral duma cidade importante. Era um bispo quem ungia e co-
roava o monarca, embora Afonso XI se tenha coroado a si mesmo, coroan-
do de imediato a rainha. A unção e a coroação não tinham caráter obriga-
tório, tendo sido João I o derradeiro monarca castelhano que se coroou
com toda a solenidade em1379. A partir de então o monarca passou a ser
aclamado ao grito de “Castilla, Castilla por el Rey”. Ao mesmo tempo le-
vantava-se o pendão real.4
Não existe qualquer notícia de que no reino de Aragão os reis tives-
sem sido ungidos e coroados anteriormente ao século XIII. Foi Pedro II
quem em Roma no ano de 1304 foi coroado pelo papa Inocêncio III. Nes-
sa cerimônia o rei aragonês prestou homenagem ao chefe supremo da igre-
ja e obteve a sua autorização para que no futuro os reis de Aragão passas-
sem a ser coroados em Zaragoza. Sucedeu que Pedro III se coroou pelas
suas próprias mãos nessa cidade, iniciando uma prática que passou a ser
habitual em todos os reinados.5
Em Portugal não se praticava a coroação, que consistia na unção pe-
los prelados, com bênção ritual e entrega solene dos atributos da realeza em
cerimônia litúrgica. Tanto quanto se sabe, o que nos leva a deixar de lado
outras hipóteses, a primeira tentativa no sentido de introduzir a prática da
coroação, ficou se devendo ao infante D. Pedro, o qual solicitou ao papa o
direito à unção e colocação da coroa a favor dos monarcas portugueses.
Para esse efeito, o papa Martinho V pela bula Uenit ad presentiam nostram ,
concedeu essa graça em 16 de maio de 1428. Contudo a referida mercê
nunca chegou a ser utilizada. A prática que sempre foi utilizada consistia na
aclamação ou proclamação pública do monarca, que após a homenagem
que lhe era prestada pelos súditos assistia a um ato religioso revestido de
insígnias. Nesse cerimonial o rei jurava sobre os Evangelhos respeitar os di-
reitos do povo e os privilégios de que usufruíam os súditos do reino. Esta
atitude implicava da sua parte a aceitação da lei moral e religiosa e a obser-
vância dos usos e costumes tradicionais.6
Na seqüência do pedido formulado pelo infante D. Pedro ao papa, seu
irmão, o rei D. Duarte insistiu no propósito. Encarregou os seus embaixado-
res Doutor Vasco Fernandes de Lucena e Diogo Afonso Mangancha para que
no Concílio da Basiléia requeressem ao papa o privilégio da unção e da co-
roação. As dificuldades surgidas na curia levaram o papa Eugênio IV, pela
bula Sedes Apostólica de 23 de outubro de 1436, a não conceder aos reis de
Portugal o direito à coroação em termos semelhantes aos que se praticavam
na corte inglesa. Assim, os reis de Portugal nunca foram coroados.7
No cerim on ial portu gu ês observava-se apen as o levan tam en to, con -
form e se depreen de do rito de elevação do rei D. João II. Ju n to da cadei-
ra real en con trava-se u m a cadeira pequ en a coberta de seda e com u m a al-
m ofada do m esm o tecido, em qu e estava colocado u m m issal. Caberia ao

48
O PRINCÍPIO DA ÉPOCA MODERNA

n ovo rei ju rar sobre esse livro, on de apu n h a as su as m ãos, o qu al proce-


dia de im ediato ao ju ram en to, prom eten do “com a graça de Deos vos re-
ger e govern ar bem e diretam en te e vos m in istrar in teiram en te ju stiça
qu an to a h u m an a fraqu eza perm ite, e de vos gu ardar vossos privilegios,
graças e m erçes, liberdades e fraqu ezas qu e vos forão dadas e ou torgu adas
por ElRej m eu sen h or e padre cu ja alm a Deu s aja e por ou tros Reis passa-
dos seu s predecessores”.8
Após o juramento efetuado pelos fidalgos presentes à cerimônia,
pertencia ao alferes desfraldar a bandeira e proclamar “real, real, per o mui-
to alto e muito poderoso El-Rej Dom João, nosso senhor”. Outro dos jura-
mentos seria efetuado pelos procuradores de Lisboa em representação de
todos os outros delegados dos concelhos do reino. Ao retirar-se para a sua
câmara o rei vestia um manto e usava um capelo preto de luto, que decor-
ridos 6 meses passava a ser substituído por uma “loba frizada”, conforme fi-
zera o rei D. Duarte depois do falecimento de D. João I.9
Em Portugal os reis usufruíam duma autoridade incontestada que se
pautava por uma extrema firmeza. Por mais duma vez o rei D. Pedro I em-
prega a expressão, no protocolo de algumas das suas cartas, “de nossa cer-
ta ciência e poder absoluto”. Seu filho D. Fernando utiliza por vezes, em
suas cartas, a fórmula “o estado real que temos por Deus nos é dado para
reger os nossos reinos”. A escolha de D. João I pela vontade popular não
obsta a que este monarca de acordo com a tradição dos seus antecessores,
utilize “de nossa própria autoridade e livre vontade e de nosso poder abso-
luto”, expressão que irá ser igualmente utilizada pelos seus sucessores.
Em conformidade com o seu poder absoluto o rei era a representa-
ção da lei viva. Uma carta de D. Dinis de 1317 reserva para a coroa o exer-
cício das funções de “justiça maior”, o que aliás virá a ser de novo reafirma-
do pelo rei D. Fernando nas cortes de Leiria de 1372. Sabe-se porém que o
papel do monarca não se limita de acordo com a doutrina consignada pelo
livro das Sete Partidas de Afonso X, o Sábio, que tanta influência teve en-
tre nós, ao poder judicial. De igual modo lhe pertencia o poder executivo,
conjuntamente com a chefia do exército e a cunhagem da moeda.10
Sabe-se que pelo menos desde o século XIII ninguém põe em causa
a autoridade absoluta do monarca, a qual tinha como modelo remoto o di-
reito imperial romano. Deste modo não existia qualquer restrição que limi-
tasse o poder do rei, o qual se exercia através dos mecanismos adequados.
Um dos primeiros instrumentos relativos ao desembargo régio ficou-se de-
vendo ao rei D. Pedro I e remonta a 1361. No desempenho do seu gover-
no, o monarca era auxiliado por um concelho consultivo que a partir do sé-
culo XIV passou a ter a designação de concelho de el-rei.11
São múltiplas as dificuldades que obstam a uma correta articulação
entre o Estado e os seus dependentes. Em muitos aspectos o caráter abso-

49
Humberto Baquero Moreno

luto da monarquia afigura-se mais propriamente teórico do que real. Pode-


se mesmo considerar ter havido uma disfunção no que respeita a uma efe-
tiva centralização. Este fato deve-se sobretudo ao deficiente estabelecimen-
to dos canais de circulação existentes entre as esferas do poder e os setores
da sociedade que dependiam da sua autoridade.
Esta carência permite afirmar que a existência do absolutismo não
corresponde ao centralismo, o que se deve a um conjunto de fatores restri-
tivos que condicionam este sistema. Entre eles cumpre destacar uma série
de inconvenientes resultantes duma deficiente rede vial que dificultava o
acesso do monarca e do corregedor da corte e certas áreas do território, so-
bretudo em determinadas épocas do ano em que a circulação se tornava
impraticável. A acrescentar às limitações que incidem sobre as áreas de in-
tervenção direta do monarca, deparamos com a realidade que o funciona-
lismo ao serviço da coroa se apresenta extremamente reduzido na medida
em que a coroa não dispunha das verbas indispensáveis à manutenção des-
ses órgãos do executivo.
Daqui se depreende que o nosso sistema político funciona apenas re-
duzido a um mínimo de funcionários que se situam em duas categorias
fundamentais: juízes e exatores fiscais. À exceção destes funcionários en-
carregados da cobrança de impostos e de missões de vigilância, tudo o res-
to depende dos órgãos locais que gozam duma apreciável autonomia. Um
conflito latente deverá ser devidamente assinalado. A pressão senhorial, na
generalidade das vezes contrária aos interesses de coroa, produz os seus
efeitos sobre os municípios, os quais procuram a todo o transe conservarem
o seu estatuto de realengos, ficando desobrigados da pertença a um senho-
rio nobre ou sob a jurisdição direta de algum fidalgo.12
A manifesta carência de órgãos intermédios obriga a coroa a uma
cuidadosa regulamentação da vida judicial, materializando nas Ordenações
do reino as obrigações e os deveres que recaíam sobre os juízes ordinários
e sobre os corregedores. Estes funcionários, cujo primeiro regimento re-
monta a 1332, no reinado de D. Afonso IV, têm um papel muito importan-
te na administração local e na regularização das suas relações com o poder
senhorial, cumprindo-lhes a observância na aplicação das normas legais e
no bom “vereamento” dos concelhos. O rei D. Pedro I procede à atualiza-
ção do regimento dos corregedores, incumbindo-os de designar os homens
elegíveis para o desempenho das funções de juízes das terras. Acentua-se
em particular uma interferência do poder central sobre o poder local, que
atinge o seu paroxismo quando em plena crise o rei D. Fernando, no de-
sentendimento que mantém com os seus súditos, nomeia, à revelia das
normas em vigor, regedores ou vereadores por el-rei.13
Na generalidade a nobreza identificava-se com os servidores de ar-
mas, que com os seus pequenos exércitos se encontravam ao serviço da co-

50
O PRINCÍPIO DA ÉPOCA MODERNA

roa. Apenas com a constituição das grandes casas senhoriais no decurso do


século XV, é que se formam os grandes exércitos particulares. Uma estima-
tiva que nos foi possível estabelecer aponta para que a casa do infante D.
Pedro possuía ao seu serviço 1.200 cavaleiros e 2.300 peões, enquanto a de
seu meio-irmão, D. Afonso, dispunha de 1.700 cavaleiros e 2.000 peões.
Sem contar com a cavalaria, as forças militares de que dispunha o rico-ho-
mem Nuno Martins da Silveira, cifravam-se em 250 escudeiros e 400 bes-
teiros e homens que combatiam a pé.14
Como regra todo o nobre possuía um patrimônio fundiário, sobre o
qual possuía jurisdição e cobrava rendas e impostos. Dependiam da sua au-
toridade um número variável de cavaleiros, escudeiros, besteiros e peões,
estando-lhe subordinados por vínculos pessoais os criados, os quais haviam
sido educados e preparados para o uso das armas nas suas casas. As tenta-
tivas para a instituição de vassalos, que esporadicamente surgem nos pri-
mórdios do reinado de D. João I, serão energicamente combatidas pela rea-
leza que apenas admitia a existência de vassalos da coroa. Não se pode, por-
tanto, falar em vassalos de fidalgos, mas apenas do rei.15
Em relação ao patrimônio da nobreza deve-se sublinhar que uma
parte pertencia à herança familiar ou a compra, mas a outra pertencia à co-
roa que lhe fizera concessão de juro e herdade, com ressalva da correição e
das alçadas, com transmissão aos seus herdeiros, mas implicando confirma-
ção sempre que se iniciava um novo reinado. Outra parte desses bens per-
tencentes à coroa encontrava-se em regime de préstamo, com caráter pre-
cário, embora sua modalidade se tornasse menos freqüente nos derradeiros
séculos medievais. Havia nobres que não possuíam quaisquer bens fundiá-
rios, correspondendo na sua inserção a grupos destituídos dos mais elemen-
tares recursos materiais.16
A designação dos nobres como alcaides dos castelos não pressupu-
nha que os mesmos lhes passassem a pertencer. Como detentores desse be-
nefício cumpria-lhes exercer o cargo mediante um juramento que consis-
tia numa homenagem de obediência e de vassalagem ao monarca ou nou-
tras circunstâncias ao mestre da ordem militar em que se situassem esses
castelos, cuja dependência mesmo assim obedecia em última instância à
própria coroa.17
Rompendo com uma tradição que permitia aos senhores a aplicação
de justiça sem qualquer restrição, o rei D. Dinis, através da já mencionada
lei de 1317, fazia doutrina ao determinar que pertencia ao monarca tomar
conhecimento e julgar todas as apelações que lhe fossem dirigidas. Todos os
fidalgos que praticassem obstrução à justiça régia poderiam ser sancionados
com a privação da jurisdição. Paulatinamente a concessão do direito apenas
se aplicava às questões cíveis, reservando à coroa a apreciação dos casos de
crime e a conseqüente intervenção com ressalva da correição e das alçadas.18

51
Humberto Baquero Moreno

A lei de 1372 apenas consignava aos nobres o acesso à jurisdição cí-


vel, sendo da competência dos juízes da coroa o exame dos processos-cri-
me. Em última instância haveria sempre a possibilidade de recorrerem para
a justiça do rei na sua qualidade de órgão supremo de jurisdição e avalia-
ção dos pleitos em julgado.19
Com a crise de 1383-1385 assiste-se a um avultado número de doa-
ções levadas a efeito pelo Mestre de Avis, que ao confiscar os haveres dos
que haviam seguido essencialmente o partido de Castela quis assim recom-
pensá-los pela dedicação à sua causa. A situação apenas retomou a sua nor-
malidade a partir de 1388, altura em que o número de doações se coloca
no mesmo nível dos anos anteriores à revolução.20
Naturalmente que ultrapassada a primeira fase revolucionária do seu
governo, em que o rei teve de realizar inúmeras doações passou-se segui-
damente, a um conjunto de medidas de cunho restritivo que visava em
particular reaver o maior número possível de bens, acautelando-se deste
modo os interesses da coroa. Essa medida aparece claramente consignada
numa doação feita em 15 de maio de 1393 a favor de Diogo Lopes Pache-
co. O fundamento dessa doutrina exprime-se no princípio de que os bens
da coroa são inalienáveis e que a sua doação pressupunha determinados
condicionalismos no respeitante à sua transmissão.21
Três normas aparecem consignadas nesta doutrina. A indivisibilidade
tendente a evitar a divisão do patrimônio adquirido da coroa pelos diversos
filhos. A primogenitura em que os bens doados apenas podem ser transmiti-
dos ao filho mais velho legítimo e à masculinidade, em que são exlcuídas as
filhas, exceto em caso de mercê especial. Paulo de Merêa diz-nos que o prin-
cípio de exclusão das mulheres apenas surge consignado numa carta de 8 de
junho de 1417, mas tal normativa já se encontra expressa numa carta de 27
de julho de 1398 concedida em benefício de Diogo Lopes de Sousa.22
Numa doação de 24 de janeiro de 1429 D. João I excetua um fidal-
go da aplicação da Lei Mental utilizando as palavras “posto que nos tenha-
mos feita e hordenada uma lei em nossa vontade”, medida que apenas vi-
ria a ser concretizada por seu filho D. Duarte em 30 de junho de 1434. Ao
ser promulgada muitos foram os que reagiram quanto à sua aplicabilidade,
mas depararam com a obstinada resistência do Infante D. Pedro que ape-
nas abriu mão em 1442 relativamente ao cavaleiro da sua casa Fernão Go-
mes de Gois. D. Duarte dera aliás o exemplo ao excetuar, por carta de 10
de setembro de 1434, a sua aplicação à casa de Bragança.23
Com a derrota do in fan te D. Pedro em Alfarrobeira, D. Afon so V
cedeu em face da n obreza em relação a esta m atéria. Tan to qu an to m e foi
possível apu rar verificam -se qu in ze casos de exceção ao cu m prim en to da
Lei Men tal. Su cede com D. Fran cisco Cou tin h o, D. San ch o de Noron h a,
D. Hen riqu e de Men eses, com o in fan te D. Fern an do, seu irm ão, em be-

52
O PRINCÍPIO DA ÉPOCA MODERNA

n efício de seu s filh os D. Du arte e D. Man u el (fu tu ro rei de Portu gal) e


com Pero de Gois. Abran gidos são ain da os cavaleiros fidalgos João Ro-
drigu es de Sou sa, Ru i de Sou sa, Ru i Pereira, João Alvares da Cu n h a, Dio-
go Lopes de Azevedo, Diogo Lopes Lobo, João Rodrigu es de Sá, Leon el de
Lim a e Diogo de Sam paio.
Em relação aos quadros superiores da nobreza observa-se que os ricos-
homens, além da linhagem de que eram detentores, distinguiam-se pelos avul-
tados bens que possuiam e pelos importantes cargos que detinham na adminis-
tração pública. O monarca podia “fazer” ricos-homens, o que já não acontecia
com os infanções, grau da nobreza inferior ao dos ricos-homens, mas superior
no respeitante à linhagem. No decorrer do século XIV o rico-homem já não
aparece associado ao exercício de um cargo público.
Se examinarmos a documentação do século XIV, com destaque para a
Pragmática de 1340 e para as cortes de Santarém de 1331,24 aparece-nos com
profusão esta categoria social, a qual domina a hierarquia nobiliárquica da épo-
ca. Sintomático, contudo, é que já na legislação de 1374 desaparece por com-
pleto surgindo como correlativo o termo de vassalo da coroa, outras vezes de-
signado por vassalo maior.25
Com efeito, o rico-homem transforma-se no século XV num vassalo do
rei que recebe da coroa uma “contia”, a qual se encontra registrada no livro das
moradias, e fica obrigado a servir à coroa mediante um certo número de lan-
ças. Este vassalo podia não ser fidalgo, alcançando a categoria em recompensa
dos seus serviços ou mesmo por simples compra. Por essa via entravam na no-
breza homens possuidores de riqueza que se dedicavam ao comércio e consti-
tuíam a burguesia e mesmo, às vezes, simples artífices, o que originava o pro-
testo dos representantes dos concelhos nas cortes, tal como sucedeu com enor-
me veemência na queixa apresentada ao rei D. Afonso V, nas cortes de Lisboa
de 1455.26
Embora a qu estão da su bversão das categorias sociais se tivesse verifi-
cado n o rein ado de D. João I com a elevação de simples peões a cavaleiros,
após a revolu ção de 1383, o problema avolu mou -se sobretu do a partir de Al-
farrobeira, em 1449, facilitado pela permissividade do mon arca e pela premen -
te n ecessidade de alargar os qu adros da n obreza qu e se destin avam às fu tu ras
campan h as marroqu in as. Daí o clamor popu lar, ou particu larmen te das oligar-
qu ias u rban as, qu an do se in su rgiam, de acordo com as su as palavras, con tra o
fato de “pou co tempo acca vosa alteza a rogu o e requ erimen to dalgu mas pes-
soas a vos acçeptos” ter feito “de pequ en as con tas assy como alfaiates e çapa-
teiros e barbeiros, lau radores e ou tras pessoas qu e eram obrigadas a pagar pe-
didos, ju gadas, oytau os e per os preu ilegios, escu sam os dictos emcarregos e
aalem de per ello seerem releu ados sam taaes pessoas qu e fazem vergomça aos
n osos u assalos qu e o sam per lin h agem perlomgada, criaçom n osa de n osso
jrmãao e tijos”. De modo a combater este estado de coisas solicitavam ao rei

53
Humberto Baquero Moreno

“qu e pon h a tall h orden amça qu e taaes pessoas n om filh e por u asalos salu o per
lin h agem for ou ser filh o ou n eto de u asallo segu mdo já per ElRey u osso pa-
dre … em seu tempo foy orden ado”.27
Por seu turno os infanções eram possuidores de linhagem, não ultrapas-
sando em meados do século XIV a centena de estirpes, sendo uma nobreza ar-
raigada às áreas rurais, onde apesar de ocuparem cargos inferiores aos dos vas-
salos e serem proprietários de latinfúndios de menor amplitude, desfrutavam
de grande influência local. Muitos deles chegaram a ocupar funções de maior
importância. Problema, contudo, ainda mal esclarecido na nossa historiografia,
consiste em saber se a maior parte destas estirpes se teriam extinguido em mea-
dos do século XIV, o que em caso conclusivo se deverá atribuir a uma decadên-
cia biológica relacionada com fatores endogâmicos, resultantes de cruzamentos
observados entre elementos pertencentes à mesma família. Desta situação ve-
rificar-se-ia uma diminuição da natalidade e simultaneamente uma elavada
taxa de mortalidade infantil e juvenil, tal como se observa no reino de Castela.
Este estado de coisas tanto afetou os infanções, que desaparecem por comple-
to dando origem aos cavaleiros-fidalgos, como igualmente aos ricos-homens, o
que certamente contribuiu para a constituição de uma nova nobreza.28
A cavalaria como grau da nobreza representava uma categoria transitó-
ria. O monarca podia armar cavaleiros, mas não podia fazer fidalgos. Apenas se
atingia a categoria de cavaleiro-fidalgo ao fim de três gerações. Muitos dos ca-
valeiros que nos aparecem a partir da segunda metade do século XIV eram pro-
venientes da cavalaria-vilã, conhecidos genericamente pela designação de her-
dadores. Eram possuidores de bens fundiários nas zonas rurais, não se conhe-
cendo na maioria dos casos como funcionava os mecanismos desta transição.29
Em consonância com a tradição o cavaleiro era armado nessa categoria
pelo monarca, podendo contudo este ato reduzir-se a um simples formulário
administrativo. Em conformidade com as leis do reino um cavaleiro era obriga-
do a possuir cavalo, perdendo essa condição no caso de não ter meios para pro-
ceder à reposição da montada, cabendo-lhe a obrigação de participar na guer-
ra acompanhado por um determinado número de “lanças” recrutados nas suas
terras e combatendo sobre as suas ordens diretas.30
A legislação em vigor estatuía “que pera cavalleiros fossem escolheitos ho-
m ẽs de boa linhagem, que se guardassem de fazer cousa, perque podessem cair
em vergonça, e que estes fossem escolheitos de boos lugares” o que significava
“gentileza”. Ora “esta gentileza vem em tres maneiras; a hua per linhagem; a se-
gunda per saber; a terceira per bondade e custumes e manhas, e como quer que
estes, que a ganham per sabedoria, ou bondade, som per direito chamados nobres
e gentys, muito mais ho sam aquelles, que ham per linhagem antigamente, e fa-
zem boa vida, porque lhes vem de longe assy como per herança...”.31
Ainda dentro da nobreza cabe mencionar uma categoria de acesso à
cavalaria constituída pelos escudeiros. Este grupo social a partir do século

54
O PRINCÍPIO DA ÉPOCA MODERNA

XIV acusa uma acentuada tendência no sentido da sua própria cristalização.


Anteriormente os escudeiros representavam uma categoria transitória de
acesso à cavalaria, mas a partir da crise da segunda metade do século XIV
constituem um estamento pertencente à nobreza inferior. Na maioria dos ca-
sos está vedado a eles o acesso ao grau da nobreza fidalga. Os homens que
integram esta estrutura situam-se na base da nobreza e a circunstância de se
inserirem nesta categoria não significa necessariamente que alguma vez as-
cendam ao estatuto de fidalguia.32
Conforme observa Oliveira Marques, os escudeiros formavam um gru-
po de homens muito numeroso nos inícios do século XV. A ordenação do exér-
cito estabelecida no reinado de D. João I fixava em 2.360 o número máximo de
escudeiros de uma lança, o que na prática deveria corresponder a um quanti-
tativo significativamente superior.33
Para finalizar esta tentativa de globalização da sociedade portuguesa em
“ordens” ou em “categorias sociais”, cumpre fazer uma breve referência ao cle-
ro. Este tal como a nobreza formava uma estrutura privilegiada da sociedade,
embora o grau de heterogeneidade em relação ao seu estatuto econômico fos-
se acentuadamente diferenciado. Dum modo genérico o clero dividia-se em
duas categorias principais: o clero secular e o regular. Encontravam-se ambos
subordinados à hierarquia.
Enquanto o clero secular era formado por bispos, cônegos, párocos,
abades e clérigos, o regular também se encontrava subordinado a uma hie-
rarquia própria. Mas sobretudo no que toca a privilégios devemos distinguir
o alto clero constituído pelos abades, bispos, cônegos e outras categorias
afins, os quais eram possuidores de foro privativo, isenção de impostos e de
serviço militar, embora voluntariamente pudessem participar na guerra, di-
reito de asilo e outras regalias. Nitidamente inferiores eram as condições em
que se encontrava o clero rural, o qual estava subordinado aos patronos das
igrejas possuidores de comendas e à autoridade episcopal, vivendo das ren-
das que aqueles lhes deixavam, pelo que será de presumir com inúmeras
dificuldades para sobreviver no dia-a-dia.
Tema abrangente pela sua natureza apenas pudemos optar por algumas
linhas cujos contornos nos permitem apresentar um esboço sumário das gran-
des catergorias da sociedade, a qual a par duma aparente unidade apresentava
fraturas e antinomias cujo equilíbrio se apresentava instável e gerador de assi-
metrias.

55
Humberto Baquero Moreno

N OTA S
1. Idade Média. Problemas e Soluções. Lisboa: p.265 ss.
2. Sobre esta matéria veja-se CAETANO, M. As cortes de 1385. Revista Portuguesa de História
(Coimbra), tomo V, v.II, p.5 ss., 1951. Merecem ponderação as considerações formuladas a
este respeito por ALBUQUERQUE, M. de. O poder político no renascimento português. Lisboa,
1968. p.23-4.
3. Vejam-se a propósito destas questões as pertinentes considerações de VALDEAVELLANO,
L., em Histórias de las instituciones españolas. Madrid, 1970. p.417.
4. Ibidem , p.430-1.
5. MARTIN, B. P. La coronacion de los reyes de Aragon, (1204-1410). Valencia, 1975. p.21 ss.
6. BRÁSIO, A. O problema da sagração dos monarcas portugueses. (separatas) Anais da Academia
Portuguesa da História. v.12, 2ª. série, Lisboa, 1962.
7. Ibidem , p.34.
8. Pombalina. Biblioteca Nacional de Lisboa (B. N. L.), cod. 443. Publicado por Martim Albu-
querque, op. cit ., p.405-8.
9. Ibidem.
10. Afonso X, o Sábio, 2ª. partida, com glosas em castelhano de Alonso Diaz de Montalvo, Se-
vilha, s.n., 1491.
11. D. Pedro I. Chancelarias Régias. Lisboa: INIC, 1984. doc. 574, p.260-2.
12. Abordei esta questão à volta das pretensões nobiliárquicas sobre a posse das localidades
realengas no meu Estado. O poder real e as autarquias locais no trânsito da Idade Média para
a Idade Moderna. Revista da Universidade de Coimbra. Coimbra, v.30, p.369 ss., 1983.
13. MORENO, H. B. A batalha de Alfarrobeira. Antecedentes e Significado Histórico. Lourenço
Marques, 1973. p.349, 420 e 964.
14. BARROS, H. G. História da Administração Pública em Portugal nos séculos XII a XV. Lisboa,
1945. v.II, p.377.
15. MARQUES, A. H. de O. Portugal na crise dos séculos XIV e XV. Lisboa, 1986. p.237-8.
16. Sobre esta questão veja-se o meu artigo Alcaidarias dos castelos durante a regência do in-
fante D. Pedro. Revista de História, p.282 ss., 1982.
17. Livro de Leis e Posturas, Lisboa, 1971, p.187-8.
18. HESPANHA, A. M. História das Instituições. Épocas Medieval e Moderna. Coimbra, 1982.
p.282 ss.
19. VIEGAS, V.1383 e os documentos joaninos. Lisboa, 1989. v.III.
20. MERÊA, P. de Genêse da Lei Mental. Boletim da Faculdade de Direito. Coimbra, v. X, p.7-8,
1910.
21. MORENO, H. B. Tensões sociais em Portugal na Idade Média. Porto, 1975. p.159.
22. Monumenta Henricina. Coimbra, 1963. doc.24, v.V, p.54-65.
23. Elementos colhidos no meu livro sobre A Batalha de Alfarrobeira.
24. Cortes Portuguesas. Reinado de D. Afonso IV (1325-1357). Lisboa: INIC, 1982. p.125 ss.
A mencionada Pragmática de 1340 aparece publicada neste livro à p.101 ss.
25. Ordenaçoens do Senhor Rey D. Affonso V. Coimbra, 1972. livro IV, título XXVI, p.116 e s.
26. A. N./T. T., Maço 2, de Cortes, n.14, fls. 14v-15.
27. Ibidem.
28. Ibidem.
29. Em relação à cavalaria veja-se o artigo de MARQUES A. H. de O. Cavalaria. In: Dicionário
de História de Portugal. Lisboa: 1963. v.I, p.540-2.

56
O PRINCÍPIO DA ÉPOCA MODERNA

30. Ordenaçõens do Senhor Rey D. Affonso V, livro 1, título LXIII, p.360 ss.
31. Ibidem, p.363-4.
32. BARROS, H. da G. História da administração pública em Portugal nos séculos XII a XV. Lisboa:
s. d. p.374 ss.
33. MARQUES, A. H. de O, op .cit., v.II, p.249.

57
capítu lo 4

OS A RGON A UTA S PORTUGUESES


E O SEU VELO D E OURO
(SÉCULOS XV-XVI)
An tôn io Borges Coelh o*

N AVEGA ÇÃ O, COMÉRCIO E CON QUISTA

No discu rso h istórico, aqu ilo qu e design am os e explicam os com o


acon tecido escapa-se pelas m alh as da teia explicativa, escon de-se por trás
de cada palavra, a da época, qu e n ão com porta exatam en te os sign ifica-
dos de h oje, e as de h oje, ain da qu e com o m esm o som , qu e som am n o-
vos con teú dos aos con teú dos de ou trora. Para n os aproxim arm os dos ve-
lh os con ceitos tem os qu e ilu m in ar e ven cer a resistên cia das palavras, vi-
vidas em tem pos diferen tes, e com palavras an tigas e n ovas lan çar de
n ovo a teia qu e pren da as relações dos acon tecim en tos.
Em su bstân cia, o passado é apreen dido com con ceitos qu e h oje re-
cu peram os e n ovam en te fabricam os. Estes n ovos con ceitos perm item li-
gar logicam en te o passado ao presen te e a su a legitim idade provém da lo-
calização in evitável n o atu al do falan te ou escreven te. Só qu e este n ão
pode retirar da m esa de jogo do discu rso as cartas legadas pelo passado
com as su as figu ras e sen tido.
Vem esta fala a propósito do m ovim en to social, protagon izado pelos
eu ropeu s, in iciado n o sécu lo XV pelos portu gu eses, segu idos pelos ou tros
ibéricos, e voltado para a exploração dos vários con tin en tes. Este m ovi-
m en to tem recebido diferen tes design ações. Assim , en qu an to o rei D. Ma-
n u el de Portu gal, com o é sabido, se in titu lava “rei de Portu gal e dos Algar-
ves daqu ém e dalém m ar em África, sen h or da Gu in é, da n avegação, co-
m ércio e con qu ista de Etiópia, Arábia, Pérsia e Ín dia”, os vocábu los qu e
n este sécu lo passaram a design ar esse prodigioso m ovim en to coletivo fo-
ram descobrim en tos, expan são, evan gelização, im pério, en con tro de civi-
lizações, dialética do ou tro e do m esm o, civilizar, esclavagism o, colon ialis-
m o, con stru ção de n ovas n ações e países, tem po da descoberta do n u e das
vergon h as, passagem do particu lar ao u n iversal, qu e sei eu , ou , ten do em
con ta o objeto, além -m ar, u ltram ar, n osso m ar, colôn ias ou , colocan do-
n os n o n ível dos im pu lsos, espírito de cru zada, fom e do ou ro e das riqu e-
zas, estratégia plan etária an tim u çu lm an a e an titu rca, m orrer pela fé.

59
Antônio Borges Coelho

A palavra in vasão, u sada corren tem en te a propósito da expan são


dos povos asiáticos – in vasão dos bárbaros, dos árabes, dos m on góis e dos
tu rcos ou en tão in vasões fran cesas–, n u n ca foi u sada n a prim eira expan -
são eu ropéia. E se n os sécu los XV e sobretu do XVI n ão faltaram in vasões
n o sen tido de en tradas violen tas com ocu pação de território, n a verdade,
o estabelecim en to dos portu gu eses n o Orien te n ão en volveu a ocu pação
em m assa de territórios e das su as gen tes.
A lista dos vocábu los n ão está fech ada. E n a su a escolh a, perfilam -
se os rostos da diferen ça, a espada e o pu n h al do com bate ideológico. Por
exem plo, os evan gelizadores estrem ecem qu an do ou vem falar n a fom e
do ou ro e das riqu ezas ou porven tu ra n a descoberta do n u e das vergo-
n h as. Pelo seu lado, o colon izador e o colon izado en treolh am -se descon -
fiados por trás das palavras. O colon izador n ão se revê, em geral, n o co-
lon ialism o e faz orelh as m ou cas ao esclavagism o e o ex-colon izado tem
aversão ao term o descobrim en tos. Escon ju ram -se as con tradições sociais,
m as en altece-se a dialética do ou tro e do m esm o. O term o civilizar é u m
resto à m ercê do caixote do lixo da História m as qu e algu n s gostariam de
ver recu perado. A expressão en con tro de cu ltu ras, en con tro real, perm i-
te aplacar as con sciên cias sen síveis, m as o en con tro en volveu sem pre
con fron to e tam bém destru ição de cu ltu ras.
Du ran te algu n s sécu los, os territórios extra-eu ropeu s dom in ados
pelos portu gu eses foram design ados com o Con qu istas. João de Barros
u sou freqü en tem en te a expressão Descobrim en tos e Con qu istas. Os títu -
los do rei D. Man u el, atrás evocados, in dicam a in ten ção e u m a prática
política, com ercial e m ilitar em bora a realidade u ltrapasse o ditado das
ban deiras. A in ten ção aparece de rosto descoberto m as os escreven tes ju s-
tificam -n a desde logo pela m issão divin a de dilatar a fé, m esm o qu an do
ela é recu sada de arm as n a m ão.
An tes da segu n da viagem de Vasco da Gam a, h ou ve pareceres de
m u ita dú vida sobre se seria proveitosa u m a con qu ista tão rem ota e de
tan tos perigos. E aos qu e adu ziam o argu m en to ideológico de propagação
da fé, respon diam os con traven tores: com o se podia esperar qu e os povos
asiáticos aceitassem “a n ossa dou trin a, ain da qu e católica fosse, por ser
com m ão arm ada e n ão por boca de apóstolos, m as de h om en s su jeitos
m ais a seu s particu lares proveitos qu e à salvação daqu ele povo gen tio?”1
Na expan são portu gu esa h ou ve de tu do u m pou co: descobrim en -
tos, em absolu to, e n ão apen as para os eu ropeu s, de n ovas terras, n ovos
m ares, n ovas estrelas, com o diria Pedro Nu n es, e viagen s de descobri-
m en to; evan gelização com m ão arm ada e tam bém com m artírio e n ovos
m étodos lin gü ísticos; tran sfega e troca de riqu ezas, de idéias, de técn icas,
de an im ais e de plan tas; gu erra e paz arm ada com violên cia extrem a de
todas as partes; fom e de h on ra; coragem para além do qu e pode a força

60
OS ARGONAUTAS PORTUGUESES E O SEU VELO DE OURO (SÉCULOS XV-XVI)

h u m an a; altru ísm o, sacrifício; an tropofagia n o lim ite e recu sa dela; troca


de idéias, de cerim ôn ias, de vocábu los; con fron to de cu ltu ras.
En qu an to a Eu ropa m ergu lh ava em in term in áveis gu erras de poder
sob ban deiras religiosas, o qu e fazia correr en tão os portu gu eses? A fom e
do ou ro e das riqu ezas, o ch eiro da can ela, a fam a, o m edo com as su as
correias de obediên cia, a ân sia de poder, a fé em Deu s, essen cial para es-
con ju rar os dem ôn ios e a m orte e para o perdão dos h orrorosos pecados,
o espírito de aven tu ra, o desejo de ir m ais além , o apelo do descon h ecido.
Tu do isso e m u ito m ais im pu lsion ou a corrida. Mas se qu iserm os
tom ar o velo de oiro dos n ovos argon au tas terem os qu e dou rar a talh a,
adoçar o açú car, ilu m in ar o dorso dos escravos ou a beleza das escravas,
espirrar com a pim en ta e as especiarias, fazer cin tilar as pedras preciosas.
As cren ças, a coragem e o m edo con stitu íam o ser, a própria arm adu ra
dos su jeitos m as eviden tem en te cercavam e pen etravam as coisas, con de-
n avam e absolviam as ações.
Não é possível desatar os n ós, todos os fios estão ligados. Mas sem
as estradas qu e o com ércio e o din h eiro abriam , sem as descobertas n a
con stru ção n aval e n a arte de n avegar, sem a riqu eza acu m u lada para pa-
gar os n avios, as m ercadorias, as arm as, os m an tim en tos, o soldo, qu e fa-
ria o desejo e a von tade? Fazia-se ao m ar m as n ão n avegava e a fé sosso-
brava n as prim eiras braçadas.
Tom ei o ditado: Navegação, Com ércio e Con qu ista. É a ban deira m a-
n u elin a. Hou ve n avegação, fan tástica, gu iada pelos in stru m en tos qu e m e-
diam o Sol e as estrelas. Hou ve com ércio, desigu al, com m on opólios e su cu -
len tas presas. Hou ve con qu istas, n u n ca con clu ídas, de cidades, de territórios.
Por qu e n ão escolh er o term o Descobrim en tos? Para n ão tom ar a
parte pelo todo. E a palavra Expan são? É operacion al, u m vocábu lo con -
tin en te, vaso, u ten sílio qu e pode tran sportar sem afetar sign ificativam en -
te os diferen tes con teú dos.

CA RAVELA S E FA LCÕES
A expan são portu gu esa dos sécu los XV a XVIII, a tal do com ércio e
das con qu istas, com descoberta de cam in h os m arítim os, desce da terra
para o m ar e olh a depois do m ar para a terra. Um olh ar espan tado e in o-
cen te: “n em estim am n en h u m a cou sa cobrir n em m ostrar as vergon h as”
e têm “n isto tan ta in ocên cia com o têm em m ostrar o rosto”, escrevia Pero
Vaz de Cam in h a. Um olh ar de m ilh afre: “Sen h or, os velu dos de Meca e
águ as rosadas dos caixões, qu e aqu i te trazem , – dizia u m m agn ate de Ben -
gala – rou bam os portu gu eses pelo m ar, tom an do os peregrin os qu e vão
para a san ta casa de Meca; e são ladrões m u i su btis, qu e en tram n as terras

61
Antônio Borges Coelho

com m ercadorias a ven der e com prar, e dádivas de am izades, an dam es-
pian do as terras e gen tes, e depois com gen te arm ada as vão tom ar, m a-
tan do e qu eim an do, e fazen do tais m ales qu e ficam sen h ores das terras”.2
A expan são grega teve u m su porte m arítim o e de algu m m odo a
rom an a. Marítim a é a expan são dos n orm an dos. Mas n a expan são eu ro-
péia, in iciada com os portu gu eses n o sécu lo XV, a qu e abre os m ares do
u n iverso, os n avios são o veícu lo, a casa, a fortaleza, o tem plo, a oficin a,
a ten da e o arm azém das m ercadorias e da pólvora, o tron co dos escra-
vos, o porta-n avios, o caixão.
Os portu gu eses n ão se deslocam com o h orda n em se organ izam
com o legião. No desfraldar das velas, os seu s n avios lem bram aves de ra-
pin a prestes a cair sobre a presa. Qu an do os azen egu es viram os prim ei-
ros n avios portu gu eses, ju lgaram , n o dizer de Cadam osto, qu e eram en or-
m es pássaros de asas bran cas; ou tros diziam qu e eram fan tasm as qu e pela
n oite n avegavam 100 m ilh as e m ais. Os olh os pin tados n a proa eram ver-
dadeiros, viam e gu iavam os n avios n a n oite e n o dia do Ocean o.
A expan são portu gu esa en volveu m ilh ares de n avios de com ércio
e de gu erra. Saíram da Ribeira de Lisboa, da Ou tra Ban da, do Porto, do
Algarve, de Coch im , de Goa, de Malaca, do Salvador. A su a con stitu ição
e form as desigu ais ficaram assin aladas n a galeria dos n om es: barca, bari-
n el, batel, bergan tim , caravela, caravelão, carraca, catu r, esqu ife, fu sta,
galé, galeaça, galeão, galeota, ju n co, n au , patach o, taforeia, u rca, zavra…
A caravela, n avio de vela latin a e pequ en o calado, con stitu iu a
em barcação por excelên cia da exploração e descoberta do Atlân tico. E
tam bém o n avio rápido próprio para levar e trazer in form ações. En qu an -
to u m a n au da carreira da Ín dia dem orava cerca de 6 m eses n a viagem
de ida, em 1516 a caravela de Diogo de Un h os gastou m en os de 6 m eses
n a ida e n o regresso. A caravela serviu tam bém com o n avio de gu erra.
Com boiava as pesadas n au s da Ín dia e da Am érica n a fase fin al da via-
gem ru m o à costa portu gu esa. Um a caravela da Ín dia, n a prim eira m e-
tade do sécu lo XVI, podia dispor de 21 tripu lan tes, assim distribu ídos se-
gu n do a ordem dos ven cim en tos: o capitão, o bom bardeiro, o m estre e
piloto, o carpin teiro, o calafate, o escrivão, o barbeiro, o tan oeiro e os
dois h om en s do capitão, os qu atro m arin h eiros e os sete gru m etes. O
bom bardeiro u ltrapassava o ven cim en to do piloto m arcan do bem o pa-
pel essen cial da artilh aria. 3
A n au , n avio de carga arm ado, passou dos 120 ton éis da n au S. Ga-
briel de Vasco da Gam a para 450 e até m il ton éis do fin al do sécu lo XVI.
No seu bojo carregaram os portu gu eses para Ociden te m u itas riqu ezas da
Ín dia. O valor da carga podia atin gir os 3 m ilh ões de cru zados ou ro. A n au
Flor de la Mar em qu e D. Fran cisco de Alm eida com bateu n a batalh a de
Diu h averia de m orrer sepu ltan do con sigo n as águ as de Sam atra as gu lo-
sas riqu ezas colh idas por Afon so de Albu qu erqu e n a tom ada de Malaca.

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OS ARGONAUTAS PORTUGUESES E O SEU VELO DE OURO (SÉCULOS XV-XVI)

O galeão era u m vaso de gu erra tam bém u sado em tran sporte


com o o galeão gran de S. João qu e n au fragou próxim o do Cabo da Boa
Esperan ça. Mais com prido, de m en or calado e portan to m ais veloz qu e a
n au , dispu n h a de u m tem ível poder de fogo. Por exem plo, o galeão S. Di-
n is, de trezen tos ton éis, con stru ído n a Ín dia pelo govern ador Diogo Lopes
Sequ eira (1518-1521), com portava 71 peças de artilh aria, a saber 21 ca-
m elos debaixo da pon te, 12 por ban da, 2 por popa, 4 n a tolda, 2 sobre o
perpau e 4 n a pon te e ain da 9 falções e 20 berços, en qu an to em 1525 Co-
ch im dispu n h a de 286 peças de artilh aria, Goa de 188, Malaca de 1666.4
A expan são m arítim a dos portu gu eses e eu ropeu s prom oveu em
todos os m ares com bates e ferozes gu erras m arítim as. Os seu s n avios le-
varam aos pon tos m ais distan tes do globo o espan toso ribom bar da arti-
lh aria. Esta tom ava form as várias, adaptadas aos diferen tes fin s. Os pe-
dreiros lan çavam balas de pedra para bater obstácu los a cu rtas distân cias;
em batalh as n avais ou de sítio, os can h ões atiravam balas de ferro fu n di-
do de in ten so poder perfu ran te; e as colu brin as, de tu bo com prido, ba-
tiam objetivos a m aiores distân cias. Peças de arte em bron ze, sem eadoras
da m orte, receberam n om es estran h os com o se os n om es au m en tassem a
carga da pólvora e do medo: selvagem, camelo, camelete (pedreiros); águ ia,
serpe, espera, m eia-espera (can h ões); aspre, sagre, m oiran a, falcão, falco-
n ete, esm eril; e berços ou falcões m ais pequ en os.5

O S N AVEGA N TES
O grosso da popu lação das n au s da Carreira da Ín dia era con stitu í-
da por m arean tes e m ilitares e tam bém por pequ en os n ú cleos de m erca-
dores profission ais e de religiosos. Os m ilitares podiam virar m arin h eiros
e os m arin h eiros soldados bem com o os m ercadores e os clérigos. Nos n a-
vios de m en or ton elagem qu e cru zavam o Atlân tico eram pou cos os m i-
litares, m ais os passageiros.
Não faltaram m en in os n a apren dizagem da vida com o An tôn io
Correia, filh o do feitor Aires Correia, assassin ado em Calecu t. São raras as
m u lh eres. Na terceira viagem de Vasco da Gam a em barcaram algu m as às
escon didas. Lu ís de Cam ões, n u m a das su as cartas, con vida as m u lh eres
de vida fácil a ten tarem n a Ín dia a su a sorte. E h avia sem pre as órfãs del-
rei exportadas para os vários pon tos do im pério.
Nas viagen s de regresso n ão faltavam as escravas. Sen h oras, pou -
cas m as algu m as. D. Leon or, m u lh er de Man u el de Sou sa Sepú lveda,
n au fraga n o Cabo da Boa Esperan ça. E qu an do os n egros lh e tiraram a
rou pa por força, cobriu -se com os lon gos cabelos e a areia da cova qu e
abriu para en terrar viva a n u dez.

63
Antônio Borges Coelho

O capitão do n avio assu m ia o com an do su prem o da com u n idade


n avegan te e do corpo m ilitar. Mas o respon sável pela n avegação era o
piloto, assessorado pelo m estre n a direção da equ ipagem . O piloto era
n ão só o respon sável m áxim o pela segu ran ça do n avio, o técn ico qu e
m edia, n u m a m an obra com plexa, o seu avan ço diário, com o o in vesti-
gador em pírico con tin u am en te registan do os aciden tes e acon tecim en -
tos qu e fu giam à n orm a. As su as observações podiam ser discu tidas em
terra por cien tistas com o Pedro Nu n es. Ou tras vezes eram os cien tistas
qu e se faziam ao m ar com o José Vizin h o, Du arte Pach eco ou o fu tu ro
vice-rei D. João de Castro.
O corpo militar atuava no mar e na terra mas a sua base e retaguar-
da estava no mar. As espadas e lanças dos capitães e escudeiros continua-
vam a rasgar as carnes e a aparar os golpes mas, na milícia marítima e de
desembarque, incorporavam-se em ritmo crescente corpos especializados
no manuseio das armas de fogo. Os besteiros, numerosos nos primeiros
anos, são ultrapassados pelos espingardeiros e o pequeno corpo de bombar-
deiros. Os ferreiros, os calafates, os tanoeiros constituíam tropas auxiliares
que a todo o momento podiam integrar a primeira linha de combate.
Na arm ada qu e em 1525 patru lh ou a costa do Malabar teriam en -
trado 2.181 h om en s assim distribu ídos: h om en s do m ar 451; h om en s de
arm as 1.254; trom betas 18; ferreiros portu gu eses 30; carpin teiros portu -
gu eses da Ribeira 23; calafates portu gu eses 36; tan oeiros 15; espin gardei-
ros de n ú m ero 204; bom bardeiros 150.6
Pou co depois, em 1531, n a ilh a de Bom baim , o govern ador Nu n o
da Cu n h a fez alarde da arm ada qu e se dirigia a Baçaim e a Diu , a m aior
qu e se ju n tou n a Ín dia. Con taram -se 400 velas, en tre elas 5 ju n cos, 8
n au s do rein o, 14 galeões, 2 galeaças, 12 galés reais, 16 galeotas e m ais
228 em barcações a vela e rem o bergan tin s, fu stas e catu res, sem con tar
as n au s, zam bu cos e cotias de tabern eiros da gen te da terra. Os com ba-
ten tes som avam m ais de 3.560 h om en s de arm as portu gu eses a qu e se
ju n tavam 2 m il com baten tes m alabares e can arin s de Goa e 8 m il escra-
vos de peleja. Os espin gardeiros su biam a m ais de 3 m il. Aos com baten -
tes ju n tavam -se os h om en s do m ar, avaliados em m ais de 1.450 portu -
gu eses com pilotos e m estres e 4 m il m arin h eiros da terra rem eiros, fora
os m arean tes dos ju n cos qu e passavam de 800. Som an do as m u lh eres ca-
sadas e solteiras e a gen te qu e ia com su as m ercadorias e m an tim en tos a
ven der passavam de 30 m il alm as.7
Ao lado dos homens de espada e lança, protegidos por armadura de ma-
lha e aço, com as armas transportadas por escravos guerreiros, perfilavam-se os
homens da artilharia, espingardeiros e bombardeiros. Os espingardeiros ganha-
vam importância crescente. Por outro lado, milhares de combatentes malaba-
res morriam lutando sob a bandeira do rei de Portugal. E também os escravos.

64
OS ARGONAUTAS PORTUGUESES E O SEU VELO DE OURO (SÉCULOS XV-XVI)

Na batalh a de Diu , D. Fran cisco de Alm eida esforçou os “valen tes


escravos qu e aju dam seu s sen h ores pelejan do”. E prom eteu -lh es qu e se
m orressem n o com bate seriam pagos a seu s don os a 50 cru zados; se fi-
cassem vivos e obtivessem n esse an o a alforria, obteriam as liberdades
de escu deiros; se ficassem aleijados e n ão pu dessem servir, seriam pagos
com o os m ortos; se ain da pu dessem servir, valeriam 20 cru zados para
os seu s don os. 8
Tam bém n a arm ada, atrás referida, para Baçaim e Diu , o govern a-
dor Nu n o da Cu n h a orden ou aos capitães qu e, qu an do desem barcassem
para o com bate, qu em tivesse escravo h om em qu e o levasse con sigo, para
desem barcá-lo e aju dá-lo a levar su as arm as e seu alm oço, e para qu e, se
o ferissem , o aju dassem a levá-lo e a cu rá-lo.9
A m orte era u m a visita diária. Man u el de Lim a escrevia em 1533
ao rei qu e já lh e tin h am m orrido qu in ze criados de seu pai. Gen te com e
sem n om e ia ao en con tro da fortu n a e com a salvação e perdição das al-
m as e em todo o lado en con trava a m orte: o bispo Pero Sardin h a m orto
e devorado pelos ín dios ju n to do rio Cu ru ripe; D. Fran cisco de Alm eida
n o Cabo da Boa Esperan ça; o m arech al Fern an do Cou tin h o n o palácio do
Sam orim ; Jerôn im o de Lim a n a segu n da con qu ista de Goa. Jerôn im o
m orreu esvaído em san gu e en costado a u m m u ro da cidade. E in citava o
irm ão João de Lim a qu e viera em seu socorro: “Adian te, sen h or irm ão,
n ão é tem po de deter qu e eu em m eu lu gar fico”.10

B A SES E FORTA LEZA S


Os n avios dos argon au tas portu gu eses n ecessitavam de bases, an -
seavam por terra. Para tratar das feridas, para satisfazer a fom e física e se-
xu al, para ren ovar os n avios e os abastecim en tos, para firm ar os pés e re-
clin ar a cabeça sem o balan ço das on das e a am eaça de corte pelas espa-
das in im igas, para ligar o pon to de ch egada ao pon to de partida.
A expan são portu gu esa avan çava m arcan do n o espaço as bases e as
fortalezas: Ceu ta, Alcácer, Tân ger, Arzila, Madeira, Açores, Can árias, Ar-
gu im , Cabo Verde n o Mediterrân eo Atlân tico; Axém , S. Jorge da Min a, S.
Tom é, Lu an da, Fern an do de Noron h a, Pern am bu co, Salvador n o Atlân ti-
co Cen tral e Su l; Moçam biqu e, Qu íloa, Socotorá, Coch im , Goa, Can an or,
Ch aú l, Orm u z, Baçaim , Diu , Ceilão, Malaca, Tern ate, Macau e tan tas ou -
tras n os m ares orien tais.
Se ilu m in arm os o espaço pela coorden ada tem po, n u m prim eiro
m om en to, n o design ado período h en riqu in o, assistim os à con qu ista do
qu e Pierre Ch au n u ch am ou Mediterrân eo Atlân tico balizado pelos seu s
arqu ipélagos. Nu m segu n do período, qu e se dilata até o fin al do sécu lo

65
Antônio Borges Coelho

XV, as caravelas e ou tros n avios prossegu em a con qu ista do Atlân tico


Cen tral e Su l, con qu ista do m ar qu e a terra era só lu gar do trato e do sal-
to dos escravos, atin gem a face am erican a do Atlân tico e su lcam as pri-
m eiras águ as do Ín dico. Na prim eira m etade do sécu lo XVI, lan çam os pri-
m eiros fu n dam en tos do Brasil, su lcam trovejan do as águ as do Ín dico,
alargam -se aos m ares da Ásia e da Ocean ia.
Algu m as destas bases, as das ilh as atlân ticas, a im en sidão do Brasil
torn am -se terras de colon ização, de liberdade e refú gio para os eu ropeu s
qu e as dem an davam e pu rgatório de m u latos e in fern o de n egros, u san -
do as palavras de Fran cisco Man u el de Melo. Qu an to ao im pério asiático,
é u m colar de cidades da beira-m ar, com terra firm e só em Baçaim , Goa
e du ran te algu m tem po boa parte de Ceilão.
Mu itas das fortalezas estão ain da h oje m arcadas n o terren o. Em
Ceu ta, Tân ger, Arzila, n a espan tosa Mazagão. Safim era rodeada por 75
torres pelo sertão e m ais oito pelo m ar. Em S. Jorge da Min a, levaram -se
as pedras aparelh adas de Lisboa. Foi só m on tar a fortaleza ao abrigo das
espin gardas. Na fortaleza de Malaca, Fran cisco de Albu qu erqu e u sou pe-
dras de can taria retiradas da m esqu ita gran de e das m esqu itas pequ en as
e as pedras tu m u lares dos m u çu lm an os. Os alicerces da torre de m en a-
gem tin h am vin te pés de largo e os alicerces da fortaleza, assen te n a ro-
ch a viva, doze pés. Nos can tos, ergu eram -se torres qu adradas qu e corriam
n o an dar do m u ro. A torre de m en agem m edia, até o prim eiro sobrado,
vin te pés, até o segu n do, qu in ze, até o terceiro, doze e até o ú ltim o so-
brado, oito pés. Assen te n as pedras das cren ças m u çu lm an as, a torre de
m en agem ficava sobre a praia e podia varejar com a artilh aria o ou teiro
qu e lh e ficava defron te.11

FUN D A MEN TOS E MOD ELOS


Desde cedo, pescadores e m arin h eiros dos n avios m ercan tes portu -
gu eses dom in aram a su a plataform a m arítim a. E a prim eira in iciativa n o
Atlân tico em direção ao su l su rgiu em 1340 com a expedição lu so-caste-
lh an a-italian a às Can árias de qu e o escritor Boccaccio n os deixou u m im -
pressivo testem u n h o.
Mas o arran qu e da expan são portu gu esa ocorre com a con qu ista de
Ceu ta em 1415. Aparen tem en te o im pu lso é ain da o da Recon qu ista m as
as diferen ças estão à vista. A con qu ista de Ceu ta en volve a m obilização
de u m a frota eu ropéia e, para lá do exército dos n obres, o en tu siasm o de
u m exército dos con celh os, em particu lar do de Lisboa e do Porto e a par-
ticipação, à su a cu sta, de algu n s m ercadores italian os e in gleses.

66
OS ARGONAUTAS PORTUGUESES E O SEU VELO DE OURO (SÉCULOS XV-XVI)

Depois, a m an u ten ção da praça e a n ecessidade de prover a su a de-


fesa prom overam desde logo a criação de u m a direção político-m ilitar em
solo n acion al, voltada para o m ar e qu e a todo o m om en to m obilizava os
recu rsos m arítim os. Com o passar do tem po, esta direção con solida-se
com o a cabeça organ izadora e cen tralizadora de fru tu osas operações cor-
sárias n o Estreito de Gibraltar e tam bém da redescoberta das ilh as atlân ti-
cas e do seu povoam en to, de n ovas con qu istas em Marrocos e de viagen s
de corso e descobrim en to n a costa african a para lá do Cabo Bojador.
En tretan to, ao lon go do sécu lo XV, foram -se defin in do os m odelos
qu e a expan são portu gu esa iria desen volver n os sécu los XVI e XVII.
O prim eiro m odelo en con trou n a con qu ista e con servação de Ceu -
ta e das ou tras praças m arroqu in as as lin h as defin idoras. À prim eira vista
parece in serir-se, com o dissem os, n os velh os passos da Recon qu ista: con -
qu ista de terras, de h om en s e de riqu ezas. Mas a n ovidade está n o papel
crescen te do território m arítim o. O socorro e a proteção das praças con -
qu istadas estão n o m ar. E o m ar é defen dido pelas fortalezas. A ten tativa
de con qu ista das Can árias e as prim eiras viagen s de assalto às costas para
lá do Bojador são ain da operações de gu erra, de con qu ista e de saqu e.
O segu n do cam in h o rasga-se com a colon ização da Madeira e dos
Açores. In icialm en te esta colon ização assen tou em terra livre com o só
en cargo da dízim a a Deu s e organ izada n a pequ en a exploração cam pon e-
sa ou n a m édia com trabalh o assalariado dos braceiros e a in trodu ção do
trabalh o escravo.
O terceiro cam in h o defin iu -se com o estabelecim en to da feitoria e
castelo de Argu im e da feitoria e castelo de S. Jorge da Min a. Protegidas
por fortalezas, ergu idas em ilh as ou cabos facilm en te defen sáveis por
qu em dom in ava o m ar, as feitorias assu m iam o exclu sivo do trato. Mais
tarde n a Ín dia este m odelo dará lu gar a u m a rede de alfân degas, protegi-
das por cidades e fortalezas, qu e san gram u m a parte sign ificativa do co-
m ércio m arítim o asiático.

R ESERVA D O MUN D O A “D ESCOBRIR”


Do pon to de vista diplom ático e político, o prin cipal acon tecim en -
to do sécu lo XV, n o qu e se refere à expan são portu gu esa, é o estabeleci-
m en to da prim eira reserva do m u n do descoberto e por descobrir, reserva
afeta em exclu sivo aos portu gu eses pela bu la Romanus Pontifex, de 8 de ja-
n eiro de 1455, e alargada aos ibéricos pelo Tratado de Tordesilh as de 1494.
Na citada bu la, o papa Nicolau V fu n dam en ta a atribu ição aos por-
tu gu eses da reserva da n avegação para lá dos Cabos Não e Bojador, prote-
gen do-a com os raios eclesiásticos, alegan do os gran des trabalh os, pre-

67
Antônio Borges Coelho

ju ízos e despesas do In fan te D. Hen riqu e e do rei de Portu gal. Havia 25


an os qu e en viavam n avios ligeiros, a qu e ch am am caravelas, com gen -
tes desses rein os e provín cias m arítim as a dem an dar as ban das m eridio-
n ais e o polo an tártico. Mu itos gu in éu s e ou tros n egros, tom ados por for-
ça e algu n s tam bém por troca de m ercadorias n ão–proibidas, foram leva-
dos para os ditos rein os on de em gran de n ú m ero foram con vertidos à fé
católica.
A reserva de n avegar, con qu istar, com erciar é in stitu ída em regim e
de m on opólio h en riqu in o-régio. Tal exclu sivo n ão sign ificava qu e só os
n avios do in fan te ou do rei pu dessem n avegar e com erciar n essas para-
gen s. No essen cial, o m on opólio garan tia a cobran ça do qu in to das m er-
cadorias pela Ordem de Cristo, de qu e o in fan te era o govern ador, e re-
servava a n avegação e o com ércio para essa área do globo para aqu eles a
qu em , m edian te con trapartidas m ateriais, fosse dada licen ça, em prim ei-
ro lu gar aos escu deiros e m ercadores ligados à casa sen h orial h en riqu in a.
No fin al da vida, em 26 de dezem bro de 1457, o In fan te D. Hen ri-
qu e reú n e em Tom ar o cabido da Ordem de Cristo e faz o balan ço, escri-
to n a prim eira pessoa, dos prim órdios da expan são m arítim a:

Os trabalhos dos homens principalmente devem ser por serviço de Nosso Se-
nhor Deus e assim de seu Senhor porque hajam de receber galardão de glória (e)
em este mundo honra e estado.

Quem estabelece o que é serviço do Senhor são os senhores deste mundo e


são eles que neste mundo distribuem glória, honra e estado.

E prossegu e:

E sendo certo como, desde a memória dos homens, se não havia alguma
notícia na Cristandade dos mares, terras e gentes que eram além do Cabo de Não
contra o meio dia, me fundei de inquirir e saber parte, de muitos anos passados
para cá, do que era desde o dito Cabo Não em diante, não sem grandes meus tra-
balhos e infindas despesas, especialmente dos direitos e rendas cuja governança as-
sim tenho, mandando per os ditos anos muitos navios e caravelas com meus cria-
dos e servidores, os quais, por graça de Deus, passando o dito Cabo de Não avante
e fazendo grandes guerras, alguns recebendo morte e outros postos em grandes pe-
rigos, prouve a Nosso Senhor me dar certa informação e sabedoria daquelas par-
tes desde o dito Cabo de Não até passante toda a terra de Berberia e Núbio e assim
mesmo per terra de Guinea bem trezentas léguas, de onde até agora, assim no co-
meço por guerra como depois por maneira de trauto de mercadoria e resgates, é
vindo à Cristandade mui gram número de infiéis cativos, do qual, dando grandes
louvores a Nosso Senhor, a mor parte são tornados à sua santa fé. E está bem apa-
relhado para muitos mais virem e serem feitos cristãos, além das mercadorias, ouro

68
OS ARGONAUTAS PORTUGUESES E O SEU VELO DE OURO (SÉCULOS XV-XVI)

e outras muitas coisas que de lá vêm e se cada dia descobrem muito proveitosas a
estes reinos e a toda a Cristandade.12

O In fan te D. Hen riqu e van gloria-se de ser o prim eiro com in fin dos
trabalh os e despesas a in dagar dos m ares, terras e gen tes qu e viviam além
do Cabo Não. Mas o seu pon to de referên cia é o da Cristan dade ociden -
tal. A Cristan dade n ão tin h a n otícia das n ovas terras e agora tirava pro-
veito das ricas m ercadorias. Com m orte e perigo dos seu s servidores, as
caravelas portu gu esas, por gu erra e depois tam bém por trato de m erca-
dorias, avan çara bem 300 légu as por terras de Gu in é, con firm an do o
avan ço dos n avios portu gu eses até a Serra Leoa. O prin cipal ren dim en to
da gu erra e do trato provin h a dos escravos, equ iparados ao ou ro e ou tras
m ercadorias proveitosas. Os “in fiéis” ficavam com os corpos cativos m as
os seu s don os tratavam -lh es da alm a.

O S REIS EMPRESÁ RIOS


Os 40 an os dos govern os dos reis D. João II e D. Man u el (1481-
1521) cobrem m om en tos extrem am en te fecu n dos n a h istória da Hu m a-
n idade. É o tem po das gran des viagen s e descobertas m arítim as: a de Bar-
tolom eu Dias qu e, n a tábu a das n au s, sem com bate com os h om en s m as
tão só com os elem en tos, verificou a ligação do Atlân tico e do Ín dico; a
viagem de Cristóvão Colom bo qu e ligou perm an en tem en te a Eu ropa,
ávida de ou ro e prata, a u m n ovo con tin en te, a Am érica; a de Vasco da
Gam a qu e du radou ram en te u n iu pelos ocean os e pelas n au s da pim en ta
o Ociden te ao Orien te; a viagem de Pedro Álvares Cabral qu e ligou Lis-
boa e a Eu ropa ao Atlân tico Su l; a viagem de Fern ão de Magalh ães qu e,
pela prim eira vez, circu n avegou a Terra.
As descobertas m arítim as, o devassar das estradas líqu idas dos m a-
res e dos rios torn avam a Terra fin ita, destapavam -lh e o corpo todo, reve-
lavam aos eu ropeu s n ovos povos, n ovos clim as, n ovos cu ltos, n ovas téc-
n icas, n ovas plan tas, n ovos an im ais, n ovas estrelas e m u ito ou ro, prata,
pedras preciosas, pim en ta e can ela, têxteis, porcelan as da Ch in a.
Em 1472, os m on opólios estabelecidos n a costa ociden tal african a
eram os do resgate do castelo de Argu im , o das pescarias do Cabo Bran -
co, o da costa african a fron teira à ilh a de San tiago, o do resgate do ou ro
e dos escravos em S. Jorge da Min a e ain da o arren dam en to do com ércio
da m alagu eta. As Casas qu e cen tralizavam esse com ércio, a de Argu im e
da Min a, in icialm en te sediadas em Lagos, são tran sferidas por D. João II
para Lisboa qu e se torn a a din am izadora prin cipal das n avegações, co-
m ércio e con qu istas. É o tem po do prim eiro ciclo do ou ro e dos escravos,

69
Antônio Borges Coelho

n a expressão do h istoriador Lú cio de Azevedo. A caça ao escravo fará de-


saparecer com o a popu lação das Ilh as Can árias. Os ch oros e gritos dos es-
cravos n egros e m ou ros, separados das m u lh eres e dos filh os n o partir dos
lotes, eram abafados pela fé qu e se ju stificava com a salvação das alm as.
Mas com a abertu ra da Rota do Cabo am plia-se extraordin ariam en te
a tran sfega de riqu ezas e m ercadorias m edian te o com ércio desigu al e a
oportu n idade das presas. D. João II fora o rei da m oeda dos “ju stos” de ou ro,
m as D. Man u el é o rei da pim en ta e dos “portu gu eses” de ou ro en qu an to
D. João III, n o dizer do poeta Lu ís de Cam ões, “tu do pôde e tu do teve”.
Com as n avegações, crescem as receitas do Estado e as dos particu -
lares e desen volvem -se as forças produ tivas. Os cereais torn am -se u m dos
m aiores n egócios do sécu lo. E radica-se u m a agricu ltu ra especializada da
vin h a, do azeite, voltada para m ercados crescen tes; su rgem ou tros produ -
tos agrícolas, algu n s deles proven ien tes das n ovas explorações assen tes
n o trabalh o escravo. É o caso do açú car. In ten sifica-se o m ovim en to pla-
n etário das plan tas e dos an im ais.
O ou ro da costa ociden tal african a ch ega a Lisboa pelas caravelas
qu e ligam esta cidade ao castelo de S. Jorge da Min a. O açú car da Madei-
ra e de S. Tom é circu la n os m ercados eu ropeu s. Riqu ezas con sideráveis,
proven ien tes, du ran te a gu erra com ercial m arítim a, do assalto a cidades
com o Qu íloa, Mom baça, Goa, Malaca, e a con tin u idade do com ércio da
pim en ta e das drogas en ton tecem os dirigen tes portu gu eses. Segu n do
João de Barros, n a Rota do Cabo, os lu cros com erciais atin giam cin co,
vin te, cin qü en ta vezes o valor do capital in vestido.
Uma nau da Índia custava em 1506 com a carga cerca de 8 contos de
réis. Quando chegava ao Malabar, esses 8 contos passavam milagrosamen-
te a 20. Mas esta mesma nau, quando regressava a Lisboa, tinha a sua car-
ga avaliada em 100 contos de réis. Em termos nominais, uma nau da Índia
valia m ais n o regresso qu e as receitas do Estado n o tem po de
D. Afonso V. Também a alfândega de Lisboa que, no início do século XVI,
rendia à volta de 9 contos, nos anos 1680, o seu rendimento subia para 115.
A expan são portu gu esa tem fom e de cobre, u sado n a artilh aria, n as
m oedas e n os sin os das n ovas e velh as igrejas; de ferro para as ferram en -
tas e as arm as; de estopa, de breu , de pregadu ra, de corda. Desen volvem -
se n ovas tecn ologias e ferram en tas especializadas. E se u m a retagu arda
eu ropéia forn ece trigo, produ tos in du striais, capitais, registam -se avan ços
sign ificativos n a produ ção in tern a portu gu esa, particu larm en te em seto-
res de pon ta. A in dú stria têxtil desen volve-se n a Beira in terior, n o Alto
Alen tejo e n a periferia de Lisboa em bora fiqu e m u ito aqu ém do m elh or
da in dú stria têxtil eu ropéia e asiática. Mas o prin cipal avan ço registra-se
n a con stru ção n aval, n a produ ção in du strial do biscoito e n o fabrico das
arm as. Portu gal con stru ía n avios e fabricava arm as em solo n acion al e

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OS ARGONAUTAS PORTUGUESES E O SEU VELO DE OURO (SÉCULOS XV-XVI)

n os prin cipais pon tos do globo on de se estabelecia. São con h ecidas as


con seqü ên cias políticas e m ilitares, provocadas pelos portu gu eses, ao in -
trodu zirem n o Japão as espin gardas e ou tras arm as de fogo.
A m u ltiplicação da produ ção in tern a n u m a prim eira fase da expan -
são pode sen tir-se n a leitu ra dos forais m an u elin os. Mas se tivéssem os
dú vidas sobre o desen volvim en to das forças produ tivas, pelo m en os em
algu n s setores de pon ta, bastaria lem brar as form idáveis esqu adras, con s-
tru ídas em Portu gal, qu e dem an daram os m ares depois da abertu ra da
Rota do Cabo. Só n os prim eiros 5 an os decorridos sobre a prim eira via-
gem de Vasco da Gam a, ru m aram a Orien te m ais de sessen ta n avios po-
derosam en te equ ipados e artilh ados.
Nos prim eiros an os do sécu lo XVI, os portu gu eses ven ceram n o
m ar a gu erra com ercial m arítim a con tra os m ou ros, h á sécu los in stalados
n o terren o, e in stau raram n o Ín dico u m a paz arm ada, periodicam en te
violada. Essa gu erra n ão desalojou os m u çu lm an os n em tam pou co des-
tron ou os reis orien tais, com a exceção m aior do rei de Malaca. Abriu foi
o m ar aos seu s n avios, aos seu s n egócios e ao seu poder. Qu e o Estado da
Ín dia com a su a capital política e cu ltu ral em Goa e a capital da pim en ta
em Coch im assen tava essen cialm en te n u m a rede de alfân degas qu e se
alim en tavam do com ércio do Ín dico e do com ércio qu e dem an dava o es-
treito de Malaca. Ao lon go de 20.000 km de costa, de Lisboa ao Extrem o
Orien te, passan do pela Am érica do Su l, esten diam -se as cidades, as feito-
rias, as fortalezas. É u m Im pério qu e n ão avan ça pela terra aden tro, a n ão
ser n a breve ten tativa de con qu ista de Ceilão e n a im en sa colon ização do
con tin en te brasileiro.
Com o cabeça deste im pério m arítim o, Lisboa tran sform ava-se
n u m a das gran des m etrópoles do plan eta, son ora e m u lticolor, reu n in do
gen tes de todos os con tin en tes e atrain do, pelas excelen tes oportu n idades
de m u ltiplicar a riqu eza, algu n s dos prin cipais m ercadores eu ropeu s. O
seu poder assen tava n a rede de cidades atlân ticas, am erican as, african as
e asiáticas, a qu e se ligava pelo lon go m ar, n as forças m ilitares m arítim as
de in terven ção, n a artilh aria e n as n au s. Para su sten tar todo este esforço
m ilitar ao serviço da n avegação, da con qu ista e do com ércio, Lisboa m o-
bilizava os h om en s e os produ tos do país in terior e in tegrava n o seu m u n -
do largos m ilh ares de h om en s de África, da Am érica e sobretu do da Ásia.
Não faltaram capitais eu ropeu s, italian os e alem ães com o n ão falta-
ram capitais portu gu eses, em boa parte cristãos-n ovos, e capitais dos m o-
radores de Goa e de Coch im . Tam bém algu n s fidalgos in vestiram . Desde as
prim eiras viagen s. Afon so de Albu qu erqu e e seu prim o Fran cisco de Albu -
qu erqu e arm aram cada u m a su a n au n a qu in ta viagem para a Ín dia.
Mas o rei era o m aior em presário, o m aior em pregador, o m aior in -
vestidor e o distribu idor das riqu ezas do im pério. Na Rota do Cabo, é o
Estado qu e arrisca e su porta os cu stos. Se se perdem n avios e a carga da

71
Antônio Borges Coelho

pim en ta, a perda prin cipal é do rei pois os m ercadores eu ropeu s e portu -
gu eses têm os seu s lotes assegu rados n a Casa da Ín dia. Se h ou ver pou ca
pim en ta, os preços sobem e com a su bida o gan h o; se h ou ver m u ita, os
preços descem m as m an têm u m a m argem de lu cro. E é o Estado qu e su -
porta o gasto com as fortalezas, as gu erras, os fu n cion ários e os soldados.
Por ou tro lado, con stitu ía u m forn ecedor e u m clien te previlegiado dos
m ercadores e ban qu eiros.
No Brasil, os particu lares desem pen h aram u m papel decisivo.
Du arte Coelh o in vestiu em Pern am bu co capitais adqu iridos n a zon a de
Malaca e n os m ares da Ch in a. Fern an do de Noron h a e ou tros cristãos-
n ovos m u ltiplicaram o seu capital com o com ércio em exclu sivo do pau -
brasil e a exportação em gran de escala de escravos n egros para a Am éri-
ca Espan h ola e o Brasil. João de Barros e o tesou reiro-m or Fern ão Álva-
res de An drade organ izaram , arrastados em boa m edida pela febre do
ou ro am erican o, a m aior esqu adra privada algu m a vez levan tada em Por-
tu gal e qu e sossobrou n as águ as do Maran h ão.
Mas o Estado portu gu ês, ain da m u ito preso ao serviço e a ban dei-
ras ideológicas, n ão está preparado e respon de m al às n ovas tarefas. O rei
é m ercador m as n ão tem as m an h as do m ercador. Escolh e os altos fu n -
cion ários da fazen da pela lim peza de san gu e, pelas letras can ôn icas e teo-
lógicas e n ão favorece os m ercadores profission ais ligados ao com ércio in -
tern acion al. A Casa da Ín dia era u m a en orm e em presa estatal de im por-
tação e exportação m as, segu n do o m ercador ban qu eiro Du arte Gom es
Solis, n ão tin h a sequ er u m livro de caixa.
O rei pagava os serviços em salários m as tam bém com qu in taladas,
a atribu ição de capitan ias e de m ercês à boca das alfân degas. O n ú m ero
das capitan ias era lim itado e em 1533, por exem plo, algu n s capitães agra-
decem desden h osam en te ao rei a prom essa de ocu parem capitan ias dali
a 10 ou 15 an os. E capitães e fu n cion ários rou bavam os povos e o rei e
rou bavam com pran do os soldos dos soldados. An tôn io da Silveira, qu e
en riqu ecera n a capitan ia de Orm u z, pedia ao rei m ais u m an o porqu e
precisava de se desen dividar.13
A Ín dia era u m a vin h a qu e se vin dim ava de 3 em 3 an os, escrevia
ou tro correspon den te do rei em 1533. Na verdade, o capitão de Orm u z,
por exem plo, recebia de orden ado 600.000 réis an u ais. Mas, ao cabo de 3
an os, se fosse de “sã con sciên cia”, poderia retirar forros 20.000 000 ou
24.000.000 de réis, m ais de dez vezes o respectivo orden ado. E se qu ises-
se “alargar a con sciên cia”, tin h a m u itas e gran des ocasiões para retirar
m u ito m aior qu an tidade de din h eiro.14
Os h om en s am avam o din h eiro qu ase sobre todas as coisas m as o
Estado m ercador m an tin h a de qu aren ten a os m ercadores profission ais,
diariam en te am eaçados n a vida e n a fazen da. Por ou tro lado, as ban dei-

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OS ARGONAUTAS PORTUGUESES E O SEU VELO DE OURO (SÉCULOS XV-XVI)

ras ibéricas, qu e on du lavam por u m a m on arqu ia u n iversal católica, con -


su m iam boa parte da riqu eza. E vejam só. No sécu lo XVI veio m ais prata
e ou ro das Am éricas do qu e a qu e tiveram todos os reis de Espan h a des-
de o tem po do rei Pelágio. Apesar disso, Carlos V qu ebrou em 1554, Fili-
pe II em 1560, 1575, 1596 até qu e se acabou o crédito e n ão h á m em ó-
ria de u m cerro tão rico em prata com o o de Potosi. Em su m a, o crédito
e as forças da con tratação sobrepu n h am -se ao poder das arm as.15

A MEN TE MOVE-SE

A expan são eu ropéia repercu tiu -se profu n dam en te n as m en tali-


dades e n a ideologia. Mu davam -se os tem pos e as von tades, atropela-
vam -se os códigos da m oral, m u davam -se as idéias, m u dava-se a pró-
pria m u dan ça.
Os livros im pressos con stitu em u m a boa am ostragem da “propa-
gan da” e do u n iverso m en tal das elites. No sécu lo XVI pu blicaram -se em
Portu gal cerca de 1.904 títu los. Os livros de dou trin a e relativos à organ i-
zação da Igreja som avam 651. Ju n tan do-lh es os livros de m oral e os qu e
serviam de m aterial para as au las, m ajoritariam en te de Direito Can ôn ico,
o n ú m ero su bia a 1.099. As pu blicações relacion adas com os serviços do
Estado e as de dou trin a civil ron davam os 278. A literatu ra som ava 139
títu los, as biografias, h agiografias e orações fú n ebres 98, os livros de filo-
sofia-teologia ficavam pelos 38, os de astron om ia, m atem ática com o re-
positório dos tem pos 31, os relatórios de viagen s 23, os livros de qu estões
m édicas 18 e os relativos às artes e técn icas 14.16
O peso da Igreja n o m u n do do livro é esm agador e con trasta com
a escassez das obras n o terren o cien tífico e técn ico. Na aridez dou trin ária
sobressaem n a literatu ra as obras m aiores de Cam ões e Gil Vicen te e u m
tratado cien tífico de en orm e relevân cia teórica, os Colóquios dos Simples e
das Drogas de Garcia da Orta, pu blicados pela im pren sa de Goa.
A febre da riqu eza con som ia largos estratos da sociedade. Todos os
dias arriscavam a vida n ão só pela sobrevivên cia m as pela bu sca de riqu e-
zas; todos os dias se exercitavam os diferen tes m odos da arte de fu rtar. O
din h eiro m edrava sobre o serviço, com o escrevia ao rei D. João III, em
1533, o vigário-geral da Ín dia: os qu e an dam a gan h ar din h eiro têm -n o e
levam m u ito boa vida e depois pedem as m ercês; e os qu e servem são po-
bres e pobres vivem . Tu do se com prava e ven dia até os cargos pú blicos,
as viagen s, os soldos, os corpos.
A Igreja está m u ito preocu pada com a ortodoxia e com a riqu eza e
o poder dos m ercadores portu gu eses. No seu Tratado do Câmbio, o jesu íta
Fern ão Rebelo defen de qu e “n ada se receba, por pou co qu e seja, à con ta

73
Antônio Borges Coelho

de em préstim o ou de dem ora em pagar”, pois im plica o pecado m ortal da


u su ra. O pecado m an ch ava a prática diária dos m ercadores e ban qu eiros
de qu e o rei era o prim eiro clien te.
O alto clero e os fidalgos preten diam reservar para si a direção da
sociedade e m esm o os qu e provin h am da esfera do din h eiro tin h am de
vestir o h ábito de Cristo ou adqu irir as h on ras de fidalgo. No en tan to, os
poderosos do din h eiro ridicu larizavam a fidalgu ia dizen do qu e para obtê-
la bastava u m a assin atu ra do rei. Algu n s com paravam van tajosam en te o
seu poder com o dos ou tros Estados.
Os h om en s qu e escreveram da n obreza em qu atro partes a repar-
tiram . Os m ais ch egados à pessoa e casa real. Os qu e m ilitam n a gu erra.
Os h om en s letrados e m ais cien tes. E os h om en s ricos. E se h ou verem de
dizer a verdade, todas as três qu alidades de h om en s, com o n ão sejam ri-
cos em seu s n egócios, n ão são estados segu ros n em letras segu ras; e pior
com fian ças. E os m ercadores ricos em todas as partes do m u n do são es-
tim ados porqu e são os m ais ú teis para a repú blica.17
Milh ares de portu gu eses em barcados n as n au s corriam por su a
con ta com o corsários os m ares orien tais e desertavam colocan do-se ao
serviço de reis m ou ros, in du s e ou tros orien tais, assu m in do cren ças qu e
n egavam a águ a do batism o sem a secar da m en te. Por ou tro lado, pelas
portas de Goa, Coch im , Diu , Orm u z, Ceilão, Malaca, o Orien te en trava n o
vestu ário, n a cozin h a, n as idéias, n o espetácu lo dos poder. In sin u ava-se
m esm o n o m ais profu n do do território eu ropeu .

Gil Vicen te apelava ao com bate con tra a osten tação. Mas, n a Ín dia
e em Lisboa, os qu e se tin h am em boa con ta já n ão qu eriam an dar a pé.
Fran cisco de Alm eida e Afon so de Albu qu erqu e n ão h esitavam em m eter
m ãos à con stru ção das fortalezas ou a rem en dar o taboado dos n avios.
Mas olh em os o govern ador Nu n o da Cu n h a a desem barcar em Baçaim n o
an o de 1531. Neste ritu al de poder, ju n tam -se a Eu ropa e a Ásia.

O govern ador ia arm ado em u m cossolete bran co dou rado por partes, e
seu gorjal de m alh a, e fralda, e em cim a u m a coira de cetim crem esim
com m u itos cortes, e n a cin ta u m a rica espada, e n a cabeça u m gran de
ch apéu de gu edelh a verm elh a, e n ele u m a gran de m edalh a de ou ro e pe-
draria m u i rica, e n ela u m a plu m a bran ca com argen taria de ou ro, e u m
rico colar de om bros de rocais esm altado, e calças in teiras, cortadas, for-
radas de crem esim , e sapatos fran ceses crem esin s com fitas en carn adas e
grossas pon tas de ou ro, e u m bastão de pau dou rado n a m ão esqu erda,
posto n o qu adril, qu e com tu do parecia form oso capitão; e a cavalo em
u m a faca bran ca, com gu arn ição de velu do preto fran jada de ou ro; e ju n -
to dele dois pagen s bem arm ados, qu e lh e levavam su a lan ça, adarga, ca-

74
OS ARGONAUTAS PORTUGUESES E O SEU VELO DE OURO (SÉCULOS XV-XVI)

pacete, com o cu m pria; e dian te dele su a ban deira real de dam asco bran -
co e cru z de Cristo atrocelada de ou ro. 18

Nos prim eiros tem pos, o espírito da cavalaria perpassa em diferen -


tes episódios e relatos. Na con qu ista fracassada de Adem , Garcia de Sou -
sa escala a u m alto cu belo da m u ralh a e acaba por ficar cercado. Afon so
de Albu qu erqu e grita-lh e qu e desça e se salve pelas cordas qu e estavam
su spen sas do m u ro. Garcia de Sou sa respon deu : “Sen h or, n ão sou eu h o-
m em para descer sen ão com o su bi. E pois m e n ão podeis valer se n ão com
u m a corda, valh a-m e Deu s com seu favor qu e em lu gar estou para isso”.19
Mas a n ova m en talidade explode n a Peregrinação de Fern ão Men -
des Pin to e n ou tros passos n arrados pelos cron istas. Con su m ada a con -
qu ista de Baçaim , Nu n o da Cu n h a sen tou -se sob u m a alpen drada dos
m ou ros receben do os lou vores da vitória. Algu n s com baten tes pediram -
lh e qu e os arm asse cavaleiros. E logo a m u rm u ração e a zom baria se es-
palh aram pelo arraial. Aqu eles pediam cavalaria n ão pela excelên cia e o
perigo dos atos praticados m as para acrescen tam en to das m oradias. E
ch am avam -lh es cavaleiros de cru zado porqu e davam u m cru zado às
trom betas e ch aram elas qu e n o ato lh es tan giam .20
Um a ú ltim a n ota. A Reform a avan çava n o cen tro e n orte da Eu ro-
pa m as em Portu gal n ão teve base popu lar de apoio. A religião ju daica ti-
n h a raízes m u ito fu n das. E depois da con versão forçada, a “in fidelidade
h ebraica” lavrava em su rdin a e atin gia m esm o cam adas de cristãos-velh os.
E se algu m as idéias dos reform ados com o a recu sa do cu lto dos san tos e
das im agen s, a n egação da con fissão con cordavam com as cren ças ju dai-
cas, os ju deu s de coração ou os qu e assu m iram as velh as cren ças n as ter-
ras de exílio con tin u aram fiéis ao Deu s ú n ico.
Por ou tro lado, para com preen der o n ão alastram en to em Portu gal
da Reform a, tem os tam bém de ter em con ta a su a posição periférica e a
alian ça en tre o Papado e as m on arqu ias ibéricas. As bu las pon tifícias ga-
ran tiam e sacralizavam a partilh a en tre os h ispân icos do m u n do recém -
descoberto. E en qu an to algu n s teólogos, en tre eles o cristão-n ovo Diogo
Paiva de An drade, redefin iam a dou trin a da Igreja n o Con cílio de Tren to,
ou tros, com o João de Barros, assu m iam a idéia ju daica de povo eleito, en -
carn ada agora n o povo portu gu ês. Deu s, “em cu jo poder estão todos os
rein os e estados da terra ... tem olh o n aqu eles qu e vertem seu san gu e por
con fissão da su a fé”.
A partir de 1630, a In qu isição vigiava e reprim ia as idéias con side-
radas h eréticas en qu an to a Un iversidade e os teólogos defin iam o qu e era
para ter e crer. O espetácu lo católico da fé alim en tava-se em boa m edida
com os restos das cren ças e o din h eiro dos cristãos-n ovos. E o viver com
u m pé n as cren ças e cerim ôn ias católicas e ou tro n o en con tro das idéias

75
Antônio Borges Coelho

e dos ritos ju daicos, arrastou algu n s cristãos-n ovos para o ceticism o e o


ateísm o en qu an to Uriel da Costa proclam ava qu e o m elh or de todas as re-
ligiões estava n a lei n atu ral. O seu Exemplo de Vida Humana m ostra-n os
com o abria cam in h o o deísm o m odern o.

76
OS ARGONAUTAS PORTUGUESES E O SEU VELO DE OURO (SÉCULOS XV-XVI)

N OTA S
1. JOÃO DE BARROS. Ásia. Década I. Lisboa: Im pren sa Nacion al, Casa da Moeda, 1974.
p.214.
2. CORREIA, G. Lendas da Índia. Porto: Lello & Irm ão, 1975. v.III, p.479.
3. FELNER, L. Subsídios para a História da Índia Portuguesa. Lisboa: Im pren sa Nacion al, 1868.
p.9.
4. Ibidem , p.26.
5. VARELA RUBIM, N. Artilh aria Naval dos Descobrim en tos. In : Dicionário de História dos Des-
cobrimentos Portugueses. Lisboa: Círcu lo de Leitores, 1994. v.I, p.92.
6. FELNER, L., op. cit., p.9.
7. CORREIA, G., op. cit., v.III, p.392.
8. Ibidem , v.I, p.936.
9. Ibidem , v.III, p.394.
10. JOÃO DE BARROS, Década II, p.232.
11. CORREIA, G., op. cit., v.II, p.251.
12. MARQUES, S. Descobrimentos Portugueses. Lisboa: Ju n ta de In vestigações Cien tíficas do
Ultram ar, 1944. v.I, p.544.
13. AS GAVETAS DA TORRE DO TOMBO, Lisboa: Ju n ta de In vestigações Cien tíficas do Ul-
tram ar, 1974. v.X, p.180.
14. LIVRO DAS FORTALEZAS. Lisboa: Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, 1960. p.33.
15. GOMES SOLIS, D. Alegacion en favor de la Compañia de la India Oriental. Lisboa, 1955. p.58.
16. MACEDO, J. B. de Os lusíadas e a História. Lisboa: Editorial Verbo, 1979. p. 50.
17. SOLIS, D. G. Discursos sobre los comercios de las dos Indias. Lisboa, 1943. p.100.
18. CORREIA, G., op. cit., v.III, p.468.
19. JOÃO DE BARROS. Década II. p.351.
20. CORREIA, G., op. cit., v.III, p.472 .

77
capítu lo 5

SA BERES E PRÁ TICA S D E CIÊN CIA


N O PORTUGA L D OS
D ESCOBRIMEN TOS
An tôn io Au gu sto Marqu es de Alm eida*

A origem e o desen volvim en to das idéias cien tíficas qu e circu lavam


em Portu gal n o tem po dos Descobrim en tos têm alim en tado págin as m u i-
to in teressan tes de h istoriografia e revelado excelen tes abordagen s qu e
n ão raram en te resvalaram para a polêm ica. O qu e n ão adm ira, porqu e
esta discu ssão trava-se n u m território com arm adilh as, on de a an acron ia
se im plan ta com arm as e bagagen s. Por este tem po a form ação dos con cei-
tos é dem asiado frágil e a su a capacidade sem ân tica perm an ece ain da pou -
co esclarecida. Em prim eiro lu gar a atitu de cien tífica ain da n ão existe, e a
própria palavra ciên cia, existin do, n ão tin h a o sen tido qu e h oje lh e atri-
bu ím os. Depois, perm an ece com o ten tação, qu an tas vezes assu m ida pelos
h istoriadores, a idéia de qu e a progressão n o Atlân tico e n a costa african a
resu ltou de u m ou vários plan os estratégicos, o m ais célebre dos qu ais se-
ria o plan o das Ín dias atribu ído ao In fan te D. Hen riqu e.
Natu ralm en te com o reação a estas leitu ras existe n a h istoriografia
portu gu esa u m a tradição qu e n ega os n ovos saberes cien tíficos organ iza-
dos sob a form a de projeto, o qu e levou já Vitorin o Magalh ães Godin h o a
lem brar qu e os h om en s do Qu atrocen tos, e o m esm o se diria dos do sécu -
lo segu in te, n ão foram cien tistas; n em tam pou co os Descobrim en tos fo-
ram , pelo m en os n este dom ín io, objeto de in vestigação ou sistem atização
cien tífica, tal qu al h oje as podem os con ceber. Para Lu ís de Albu qu erqu e
sem elh an te afirm ação con stitu iria u m an acron ism o absu rdo e por isso a
com bateu ten azm en te, em bora as teses qu e defen dem a existên cia da Es-
cola de Sagres se en con trem de tal m an eira en raizadas qu e ain da n ão fo-
ram ban idas, apesar de serem – isso m esm o – absu rdas e an acrôn icas.
E no entanto, a sociedade portuguesa da segunda metade de Quatro-
centos em diante passava por profundas transformações culturais, cujos re-
sultados não tardariam a provocar frutos. Em particular, de finais do sécu-
lo XV em diante, a criação do conhecimento novo transforma-se em sínte-
se inovadora, só possível pelo surgimento histórico de uma nova mentali-
dade. Moderna, sem dúvida, e que só emergiu por força das transformações
operadas nas estruturas sociais e pela emersão de grupos que repartem en-
tre si a melhor parte do aparelho produtivo em acelerado crescimento.

79
Antônio Augusto Marques de Almeida

A in ovação dos saberes n u m a sociedade com este perfil n ão foi do


dom ín io da epistème. Foi em prim eiro lu gar pon to de ch egada das qu estões
do cotidian o qu e h á m u ito se en con travam sem resposta e, talvez por isso,
se acan ton ou em torn o do con h ecim en to em pírico. A in ovação ocorreu
por etapas su cessivas dos saberes, e são form as de con h ecim en to pré-cien -
tífico, sobretu do qu an do se tem presen te (e com o seria possível ign orá-la?)
qu e a form ação da ciên cia m odern a foi in iciada n o berço de ou ro do sécu -
lo XVII eu ropeu , e qu e, por esta altu ra, ain da n ão se en con travam dispo-
n íveis os u ten sílios m en tais qu e torn ariam possível a su a eclosão.
Este estádio pré-científico assume primacial importância porque, con s-
titu in do-se com o sín tese crítica de legados tradicion ais, eviden cia o alarga-
m en to da com preen são do m u n do real e prepara o h om em eu ropeu para
as descobertas cien tíficas adven ien tes.
Por razões h istóricas qu e caracaterizam a sociedade portu gu esa des-
ta época, a con stru ção da ciên cia em Portu gal apega-se à lição tradicion al,
de tal m an eira forte e vin cu lativa, qu e obscu rece a in ovação m esm o con -
tra toda a evidên cia. São tem pos de con h ecim en to pré-cien tífico qu e pre-
an u n ciam o alargam en to dos h orizon tes da com preen são do m u n do real,
m as sem u ltrapassar os qu adros im postos pela form u lação do olh ar em pí-
rico. Por isso m esm o, Lu ís de Albu qu erqu e salien tava qu e só a experiên -
cia do m ar fora origem do con h ecim en to dos portu gu eses.
An tes dele, dissera-o já Alberto Veiga-Sim ões n os an os trin ta e, des-
de en tão, a h istoriografia n ão parou de o repetir. E, de fato, o m ar com o
espaço de origin alidade da cu ltu ra cien tífica portu gu esa é algo de sign ifi-
cativo da form ação da con sciên cia social da com u n idade e do seu Leben -
welt. Um a tékhnè adm iravelm en te u sada com o u ten sílio para a passagem
do dado ao resu ltado, n u m tem po em qu e a descoberta de n ovas terras im -
plicou u m esforço desm edido de com preen são fen om en ológica e a reorga-
n ização do espaço geográfico exigiu profu n das m u dan ças n as estru tu ras
m en tais dos eu ropeu s. O cálcu lo das dim en sões terrestres, con soan te a tra-
dição ptolom aica, é progressivam en te su bstitu ído por propostas aju stadas
às n ovas con cepções do real; os arcaísm os e os erros são corrigidos, n ão
sem qu e, por u m a razão ou por ou tra, o espan to se su ceda à in credu lida-
de. O progresso dos saberes e, m ais tarde, a tran sform ação da in form ação
em con h ecim en to, ficou a dever-se ao êxito do saber procu rar e aju star a
solu ção. Provavelm en te, m ais a isso do qu e à in form ação recepcion ada
m as, eviden tem en te, tam bém a ela...
A origem do conhecimento científico que serviu de pano de fundo
aos Descobrimentos provém de uma fonte comum a quase toda a cultura
européia. De fato, é à Escola de Tradutores de Toledo que, entre meados do
século XII e todo o século seguinte, se deve a formulação de algumas das
sínteses do conhecimento antigo e indo-árabe de que os portugueses se ser-

80
SABERES E PRÁTICAS DE CIÊNCIA NO PORTUGAL DOS DESCOBRIMENTOS

viram. Assegurando a tradução dos textos árabes para latim e a sua conse-
quente difusão, realizou, de uma maneira única na história da cultura eu-
ropéia, a passagem transcultural dos discursos científicos da Antiguidade.
Esta fu n ção de pon te en tre cu ltu ras aproxim ou Ptolom eu , Aristóte-
les, Eu clides, Boécio, en tre ou tros e de tão diferen tes origen s cu ltu rais
com o se vê, da cu ltu ra cristã, e perm itiu qu e n ela ocu passem por m u ito
tem po papel determ in an te.
A par da difu são levada a cabo pelos tradu tores de Toledo, ain da se
n ão con h ece bem , em bora se adivin h e de prim eira im portân cia, o papel
das com u n idades sefarditas n a difu são da in form ação cien tífica da An tigu i-
dade e in do-árabe. Mas, apesar de tu do, já sabem os m ais sobre a ação
exercida por elas n as tran sferên cias cu ltu rais da Escola de Tradu tores de
Toledo. Mas n ão só; até fin ais do sécu lo XV cabe-lh es parte sign ificativa n o
processo de difu são e m esm o de criação do saber em Portu gal em torn o da
n áu tica e da cartografia e, por isso m esm o, papel de relevo n a form ação
das n ovas atitu des face ao con h ecim en to. José Vizin h o, Zacu to, Jácom e de
Maiorca, Cresqu es são estrelas de u m céu im perecível.
O sécu lo XV portu gu ês foi tribu tário de todas estas fon tes, pois co-
n h eceu in ten sa circu lação das su as idéias, m as deve ter-se presen te qu e
este sécu lo é u m tem po m u ito especial n a con solidação da com u n idade
portu gu esa, qu er do pon to de vista da vida m aterial, qu er n os aspectos das
form ações m en tais e das m atrizes cu ltu rais qu e viriam a iden tificar a cu l-
tu ra en tão em gestação. Sem dú vida o aparecim en to da tipografia veio
acelerar de m ú ltiplas m an eiras essa circu lação, irritan tem en te restritiva,
n o tem po em qu e o su porte da in form ação era m an u scrito. O u so crescen -
te das lin gu agen s romance veio alargar, por seu lado, o u n iverso da recep-
ção, acen tu an do a im plan tação das idéias cien tíficas n a tessitu ra social, e
pon do o con h ecim en to cien tífico ao serviço dos gru pos sociais dom in an -
tes. No período pré-gu tem bergu ian o, circu lavam n a Pen ín su la, e n atu ral-
m en te em Portu gal, versões latin as e até m esm o em vu lgar de Estrabão,
Plín io, Dioscórides, Pom pôn io Mela, Eu clides, Boécio, Avicen a, Galen o,
Regiom on tan o, Sacrobosco e Abrãao Zacu to, a par dos textos h ebraicos e
árabes de Ibn Ezra, Azarqu iel, Ibn Safar, Alfragan o (Ru dim en ta Astron o-
m ica) e Messah ala. A Im ago Mu n di do Cardeal Pierre D'Ailly (c.-1410) cir-
cu lou em m an u scrito até ser editada em Lovain a en tre 1480 e 1483. m as
são pou co segu ras as provas de ter sido con h ecida em Portu gal, em bora
seja elevada a probabilidade de ter circu lado en tre n ós.
Já h á m ais certezas qu an to à versão latin a do Tratado da Esfera de
Sacrobosco, qu e corria a Eu ropa desde a segu n da m etade do sécu lo XIII e
qu e circu lou n o Portu gal qu atrocen tista, con form e opin ião de Lu ís de Al-
bu qu erqu e. Tam bém os estu dos de A. Moreira de Sá, segu n do in form ação
do m esm o au tor, com provam a circu lação de várias obras de m atem ática

81
Antônio Augusto Marques de Almeida

e de astron om ia, em época an terior à fu n dação do Estu do Geral de Lisboa.


Um a Sphera Mundij de au tor n ão m en cion ado, aparece rastreado n o testa-
m en to de Mestre Gil, de Leiria, com data de 1257.
Gu y Beau jou an in ven tariou n o acervo qu e perten ceu à livraria do
Colégio Viejo de San Bartolom eo, de Salam an ca, en tre ou tros, o Tratado da
Esfera de Sacrobosco e u m com en tário redigido por Roberto An glês; o Tra-
tado do Quadrante deste ú ltim o; o Tratado do Astrolábio de Massah ala e ain -
da o Tratado do Quadrante Novo de Profatio.
O u so dos textos da Escola de Toledo e a circu lação das várias cópias de
Eu clides, Alfragan o, a Theorica planetarum , os Libros del Saber de Astronomia, as
Tabuas alfonsies, baseadas fu n dam en talm en te n as de Azarqu iel, a par da im -
portân cia de Afon so X, foram esteios im portan tes da criação de u m a prática
de saberes do sécu lo XV e n a con solidação da cu ltu ra cien tífica portu gu esa.
No qu e à prática da m atem ática con cern e, o clim a m en tal era aca-
n h ado, n ão obstan te o esforço exigido pelas tarefas da n avegação e pelo
au m en to da com plexidade do trato com ercial. Adm itia-se, pois, o estu -
do das qu estões ú teis à n avegação e, n este capítu lo, o m ais im portan te
eram os con h ecim en tos de Cosm ografia, em qu e dom in avam a Teoria
dos Plan etas de Pu erbáqu io, a par dos Elem en tos de Eu clides e da tradi-
ção de Sacrobosco. Além disso, a h eran ça de Boécio e a astrologia ju di-
ciária predom in avam . Parece até ter sido esta ú ltim a a razão m ais forte
qu e terá levado o In fan te D. Hen riqu e a in teressar-se pela difu são dos es-
tu dos de Aritm ética, in clu in do, com o se sabe, o estu do do Qu adriviu m
n a Un iversidade de Lisboa.
As dificu ldades de recepção qu e m u itas vezes desvirtu aram as idéias
qu e restrin giram a su a circu lação e an u laram a su a eficácia in ovadora,
con stitu em apen as u m a das faces, e talvez n em se trate da m ais im portan -
te, das ten tativas dos gru pos sociais fazerem reverter a seu favor o poder
social qu e a in ovação cien tífica sem pre com porta. E a partir dos estu dos de
Joaqu im Barradas de Carvalh o sabem os com qu e êxito esse desiderato foi
prossegu ido pelos estam en tos su periores da sociedade portu gu esa.1
Por volta de 1330, com o u so da n u m eração árabe, com eçara em
Portu gal u m a len ta revolu ção, ch am ada de aritm etização do real, qu e vi-
ria a ter im portan tes reflexos n o desen volvim en to das m en talidades pro-
tom odern as. Tratan do-se de estru tu ras m en tais m arcadam en te an alíticas
assu m iram , desde o in ício, u m protagon ism o qu e n ão deixou pedra sobre
pedra o qu e restava das h eran ças m edievais; estes saberes passaram do es-
tádio de pou co m ais ou m en os, a u m a ou tra situ ação de saber, con h ecida
com o sen do o da precisão, com o lem brava Lu cien Febvre.
Fin alm en te, o rigor e a precisão organ izaram os n ovos olh ares sobre
o Mu n do, en qu an to a recepção desta in form ação se estru tu rava à volta
dos m odelos paradigm áticos, os m ais im portan tes dos qu ais, e do pon to de

82
SABERES E PRÁTICAS DE CIÊNCIA NO PORTUGAL DOS DESCOBRIMENTOS

vista da su a aplicabilidade n a cu ltu ra portu gu esa qu atrocen tista, são o aris-


totélico, o eu clidian o, o ptolom aico e o boecian o. En tre os sécu los XI e XII
segu ir-se-ia o paradigm a árabe e de m eados do sécu lo XIII em dian te, e
caldeado com este ú ltim o, viria acrescen tar-lh e o m editerrân ico. Os qu a-
tro prim eiros paradigm as com portam -se com o agen tes de tradição e de
con tin u idade cien tífica, in capazes de correspon der às solicitações im postas
pelos n ovos din am ism os econ ôm icos e sociais; en qu an to os dois ú ltim os (o
árabe e o m editerrân ico) assu m em a fu n ção in ovadora, qu an tas vezes à
beira de u m a ru ptu ra qu e foi sen do adiada até eclodir a partir de fin ais do
sécu lo XV. Estes n ovos paradigm as m atizam as n ovas idéias e vão firm ar-
se com o agen tes im prescin díveis das tran sform ações qu e estão em vias de
ocorrer n a cu ltu ra portu gu esa.
Mas tu do, ou qu ase tu do, se joga n o progressivo en fraqu ecim en to
do paradigm a aristotélico, fato qu e arrastou os ou tros paradigm as de resis-
tên cia e facilitou a im plan tação dos n ovos m odelos in terpretativos. Com o
avan ço para o sécu lo XVI, e às portas da Época Modern a, toda a m edieva-
lidade se afu n da, in exoravelm en te; a visão de Nicolau de Cu sa já n ão é in -
teiram en te con sen tân ea com a organ ização aristotélica. Freqü en tem en te a
força da in ovação rom peu barreiras, com o n o caso dos escritos de Du arte
Pach eco Pereira dos qu ais h á n otícia de qu e em fin s de qu in h en tos u m a
cópia teria circu lado por Espan h a. Algo de sem elh an te, m as em m ais lar-
ga escala, ocorreu n a segu n da m etade do sécu lo XVI com os Colóquios de
Garcia de Orta qu e foram , ain da qu e em circu n stân cias pou co favoráveis,
tradu zidos para latim e vertidos para italian o, fran cês e in glês, ten do tam -
bém con h ecido vasta circu lação em Espan h a. Mas toda a in ovação é feita
de restos, e a prática da ciên cia in ova com os restos qu e sobraram de ou -
tros saberes e de ou tras práticas. Os h om en s tam bém n ão podem rejeitar
as su as raízes, as su as leitu ras, esqu ecer o qu e em tem pos das su as vidas
apren deram . Copérn ico perm an ece m u ito m ais agarrado à m edievalidade
do qu e ao pen sam en to m odern o qu e, sem dú vida, aju dou a con stru ir. Por
isso foram precisos Keppler e Galileu para qu e a m odern idade da su a obra
viesse ao de cim a e desem pen h asse o papel cim eiro de agen te tran sform a-
dor das visões do m u n do.
O len to processo da m odern ização estava, pois, em m arch a e o jogo
din âm ico da oposição-in ovação ia recru descer n o vórtice dos paradigm as
baseados em Copérn ico, Kepler e Galileu , os qu ais, com m aior ou m en or
eficácia, serviriam de pean h a à m on u m en talidade cartesian a e n ewton ia-
n a qu e se lh es segu iria.
Não é por acaso qu e, pelo m en os n a aritm etização de u m a certa rea-
lidade, o papel in ovador foi con du zido pelos paradigm as árabico e m edi-
terrân ico, pois foram os m atem áticos árabes, desde o sécu lo XII, e os m a-

83
Antônio Augusto Marques de Almeida

tem áticos italian os, desde o trecen to e du ran te as du as cen tú rias segu in -
tes, qu e in ovaram a aritm ética. E sabem os com o isso foi im portan te pelas
fu n das con seqü ên cias qu e as leitu ras dos seu s trabalh os viriam a ter n a
form ação das m en talidades do h om em m odern o.
Não foi in diferen te ao desen volvim en to deste processo a espan tosa
capacidade qu e a aritm ética con tém em si própria, com o u ten silagem de
leitu ra de m u ltivariadas in ter-relações qu e povoavam o cotidian o dos in -
divídu os, dos gru pos sociais, desde tem pos im em oriais do viver em socie-
dade. E ain da m ais: se tiverm os em lin h a de con ta o au m en to da com ple-
xidade provocada pela teia destas n u m erosas in ter-relações, n o m om en to
da irru pção do capitalism o m ercan til, en con tram os talvez, o prin cípio da
explicação do papel fu n dam en tal desem pen h ado pela aritm ética n o pro-
cesso básico da m odern idade qu e é a aritm etização do real. A Aritm ética
assu m iu -se com o u m a u ten silagem de leitu ra da realidade e correspon -
deu , de form a cabal, às n ecessidades e às sen sibilidades em ergen tes das
n ovas m en talidades, tam bém elas a despon tar, m ergu lh an do raízes n a
con ta, peso e m edida.2 Nestas circu n stân cias n ão é de estran h ar qu e vies-
se a tran sform ar-se n u m u ten sílio de dom ín io e n u m in stru m en to de po-
der, ao serviço de gru pos profission ais ou con frarias de in teresses com o os
estu dos de Joaqu im Barradas de Carvalh o com provam para o Portu gal
qu atrocen tista e a h istória das com u n as italian as tão exem plarm en te do-
cu m en ta para a gen eralidade da Eu ropa do Su l.
E, todavia, este processo é bem fam iliar aos h istoriadores: em toda
a h istória do pen sam en to cien tífico n ão se con h ece u m ú n ico caso de n as-
cim en to espon tân eo da in ovação e os seu s legados, com o idéias sociais qu e
são, difu n dem -se sob a form a de paradigm as, tran sform an do-se em h eran -
ças, cu ja recepção sofre aju stam en tos cu ltu rais, m odelados pelas n ecessi-
dades práticas. Em bora a velocidade de circu lação das idéias cien tíficas seja
desigu al de época para época, e até den tro da m esm a con ju n tu ra sofra des-
vios acen tu ados, torn a-se m u ito difícil segu ir a su a trajetória e saber, a
cada m om en to, de on de e para on de elas vão.
Tem sido afirm ado, vezes sem con ta, qu e a form ação do m u n do m o-
dern o foi m arcada pela descon tin u idade, com h iatos e ru ptu ras, algu m as
até de difícil en ten dim en to. Sem dú vida a h istória da circu lação das idéias
cien tíficas apresen ta u m desen volvim en to descon tín u o qu e n ão su rpreen -
de o h istoriador por dem ais afeito às assim etrias do desevolvim en to dos
discu rsos cien tíficos e sobretu do aos u sos qu e deles se fizeram . Mas im por-
ta ter presen te qu e o sécu lo XV assistiu a algu m as das m ais im portan tes
tran sform ações das m en talidades e, de en tre estas, a passagem do con h e-
cim en to im ediato ao m ediato n ão foi, certam en te, a m en or.
Qu ais fossem essas idéias cien tíficas e os din am ism os qu e as tran s-
form aram , ign oram o-los em gran de parte. Todavia, as n ovas atitu des
an u n ciam m u dan ças profu n das face à apreen são da realidade. "Eu n ão te-

84
SABERES E PRÁTICAS DE CIÊNCIA NO PORTUGAL DOS DESCOBRIMENTOS

n h o ódio sen ão aos errores; n em ten h o am or sen ão à verdade" — procla-


m a Orta qu e, em ou tro passo dos Colóquios afirm a: "Eu trabalh ei de o sa-
ber e sou be-o. Errar é dizer o qu e n ão é". Nou tra passagem : "Não m e con -
tradigam textos de au tores aqu ilo qu e eu vi com os m eu s olh os". Nesta ati-
tu de radica-se u m a n ova visão do m u n do, e por ela, qu e an tes de m ais
n ada tradu z u m a m u dan ça de m en talidade, passa a in ovação, se n ão toda,
pelo m en os apreciável parte dela.
É tem po de regressarm os ao Mar, e ao con vívio de Veiga Sim ões e
de Lu ís de Albu qu erqu e. Ao Mar qu e foi, segu n do su as vozes, o espaço de
on de tu do partiu e a fon te prim eva do n osso con h ecim en to e da n ossa
agregação com u n itária. Este tipo de con h ecim en to, qu e con du ziu do co-
n h ecim en to em pírico, desen volveu -se n a prática das n avegações. No deal-
bar dos descobrim en tos o con h ecim en to tradicion al é form ado por u m a
con flu ên cia de saberes, m u itas vezes an tagôn icos, con traditórios sem pre,
m as qu e form am u m a h istória in telectu al, feita de idéias e de sen sibilida-
des coletivas qu e defin em u m a visão do m u n do. Visão essa qu e gan h a sen -
tido en qu an to estru tu ra m en tal socialm en te aceita, n o seio da qu al se for-
m am as represen tações do m u n do n atu ral e do m u n do das relações dos
h om en s. Mais do qu e a visão, a con sciên cia dessa m esm a visão qu e, sen -
do in delevelm en te m arcada pelo tem po, dá h istoricidade à con sciên cia,
pois a n oção de h istoricidade im plica a con sciên cia h istórica da h istória. E
é à volta da con sciên cia h istórica qu e se organ izam os con ju n tos m ú ltiplos
da visão do m u n do. E foi n o âm bito deste Leben welt qu e se criaram as for-
m as de pen sar e de im agin ar o Mu n do, tão características da cu ltu ra por-
tu gu esa n a au rora dos tem pos m odern os. E este estar n o Mu n do e pen sar
n ele foi o receptácu lo de idéias, de livros, de escritas, de textos qu e vieram
de fora e qu e foram lidos, refletidos, acim a de tu do experien ciados por esta
cu ltu ra ú n ica do Mar e dos lon ges vistos dos cestos das gáveas.
Um a ú ltim a palavra para a form ação da lin gu agem cien tífica é u m a
ou tra qu estão in teressan te, e n ela tiveram papel de relevo os textos de au -
tores estran geiros qu e en tre n ós circu laram . Estes textos estiveram n a ori-
gem do léxico cien tífico da lín gu a portu gu esa. Difícil com eço pois, com o
se sabe, estes discu rsos n ão prim avam pela objetividade sem ân tica. Em
prim eiro lu gar u m a exigên cia deste tipo era n u la, e depois a con ceptu ali-
zação dos term os ain da n ão se tin h a im posto com o u ten silagem n ecessá-
ria à estru tu ração da discu rsividade cien tífica. E todavia estam os n u m m o-
m en to de viragem em qu e as lín gu as vern ácu las, aju dadas pela im pren sa
tipográfica, com eçam a veicu lar a in form ação dos saberes e, por toda a
parte, vão rasgan do o casu lo do latim . Mas, com o todos os elem en tos de
resistên cia in eren tes ao processo de tran sform ação, tam bém ele se acan to-
n a e persiste com o form a privilegiada de tran sm issão dos saberes n as esfe-

85
Antônio Augusto Marques de Almeida

ras cu ltas da sociedade, particu larm en te n os dom ín ios in stitu cion ais, qu er
da Igreja qu er do Estado, este ú ltim o acabado de su rgir n a cen a in ter-rela-
cion al dos h om en s.3
O aparecimento de traduções das obras que corriam impressas em la-
tim ou em línguas estrangeiras para a língua portuguesa teria sido da maior
utilidade, e em muito teriam ajudado à formação da linguagem científica;
mas por razões bem conhecidas, tal não aconteceu. E não há dúvida que os
escritos importantes desde a dobragem do milênio, e depois os textos dos
tradutores de Toledo corriam, como vimos, em Portugal. Esta circulação é
bem conhecida. Veja-se um caso exemplar, na primeira metade do século
XVI: a versão latina de Sacrobosco, já conhecida no último quartel de qua-
trocentos, e que prestou excelentes serviços pelos variados comentários que
suscitou e pelas inúmeras leituras que se adivinham. Esta versão era, por-
tanto, anterior à edição dos Guias náuticos quinhentistas, até que em 1537
Pedro Nunes publicou o seu Tratado da Esfera.4 Deve-se também ao seu la-
bor a tradução na mesma altura da Teórica do Sol e da Lua, de Puerbáquio e
do livro primeiro da Geografia de Ptolomeu. Igual sorte não teve um outro
texto importante, os Elementos de Euclides, apesar de terem exercido in-
fluência hegemônica durante todo este período, pois a versão portuguesa
só viria a ser publicada em 1768, para uso dos alunos do Colégio dos No-
bres e em tradução de Giovani Angelo Bruneli.5
Mesm o n o plan o da form ação das lin gu agen s m ais h erm éticas, ou
tidas com o tal, caso da Aritm ética ou da Matem ática, m u ito distan te ain -
da das propostas con ven cion adas de Vieta, as in dicações algorítm icas eram
descritas, o qu e torn ava os sistem as operatórios fran cam en te in operan tes.
Não adm ira pois qu e o léxico u sado por Gaspar Nicolás siga m u ito de per-
to o de Paccioli, sen do in desm en tível a leitu ra qu e fez da obra do fran cis-
can o. A Summa de Arithmetica era con h ecida em Portu gal e m u ito divu lga-
da como atestam, ain da h oje, os exemplares dispon íveis da edição de 1494,
existen tes n as bibliotecas portu gu esas.
Também aqui, na fixação de um quadro semântico, Pedro Nunes de-
sempenhou papel de relevo, não só pela sua tradução de textos antigos – na
verdade em grande parte tratava-se até de uma reescrita desses textos – mas
igualmente pelo esforço de atribuição semântica, pelo menos no domínio
da matemática. Pedro Nunes conhecia – porque os lera – Luca Paccioli,
Tartaglia e Cardano. Cita-os e comenta-os mas não era o único, pois já an-
tes dele o frade italiano merecera leitura atenta a um outro autor, Gaspar
Nicolás, que publicara em Lisboa e em 1519 uma Practica darismetica que
contém abundantes referências a Paccioli. Mas as leituras de Pedro Nunes
são mais extensas e profundas. Nada do que era importante no discurso do
frade italiano foi desprezado, particularmente o uso da “regla da cosa”, ou
seja, das propostas algébricas. A seu tempo, e a propósito dos atrasos veri-

86
SABERES E PRÁTICAS DE CIÊNCIA NO PORTUGAL DOS DESCOBRIMENTOS

ficados nos estudos de álgebra em Portugal, face ao uso persistente das so-
luções aritméticas para a solução dos problemas, Pedro Nunes seria incle-
mente na formulação do seu juízo, atribuindo a Paccioli, justamente pela
sua grande difusão, a responsabilidade desse fato. Mas não me parece assis-
tir-lhe razão; o atraso existia, mas devia-se a outros fatores, e diferentes
eram as razões que contribuíram para que tal atraso se verificasse. E diga-
se que tal situação nem era específica de Portugal, pois por toda a Europa
a situação tinha algo de semelhante. Talvez a chave da explicação possa en-
contrar-se nas dificuldades surgidas no plano da recepção dos textos italia-
nos e, conseqüentemente, na formação do léxico científico quinhentista,
esse sim, considerável, mas ainda não irremediavelmente atrasado.
Para os h om en s do qu atrocen tos fin issecu lar o m u n do estava a m u -
dar com u m a evidên cia n u n ca vista e ao m esm o tem po a au toridade dos
An tigos com eçava a ser posta em cau sa com o an tes n u n ca acon tecera. E
n o en tan to, o h orizon te con tin u ava cerrado; a Terra já n ão era ptolom ai-
ca m as ain da n ão era ou tra coisa e o Céu escon dia, por detrás do véu da
astrologia ju diciária, m u itos dos seu s segredos. Qu an do se põem os pés
n u m a terra qu e, afin al, n en h u m m apa n em n en h u m saber con sagrado au -
torizava estar ali, a perplexidade (su pon h o ser esta a palavra exata) torn a-
se com pan h eira de todos os dias. Não foi preciso m u ito para o copo da in -
qu ietação tran sbordar. O h om em qu e in terroga o m u n do e ten ta in terpre-
tá-lo, n u m tem po an terior à galáxia cartesian a, con fin ado com o estava à
m atriz da su a própria experiên cia, con stitu i-se prision eiro de si próprio. A
libertação das an tigas servidões, qu e su jeitaram os saberes e os agrilh oa-
ram à au toridade dos An tigos, foi dolorosa e a resposta aos desafios do vi-
ver cotidian o foi con solidada com o con h ecim en to em pírico. A circu lação
do livro im presso viera, en tretan to, acelerar a tran sferên cia dos n ovos sa-
beres qu e, in felizm en te, n u n ca se elevaram , en tre n ós, ao dom ín io da for-
m u lação teórica. E poderia ter sido de ou tra m an eira?
A essa altu ra, o m u n do já se alterara decisivam en te; literalm en te, já
era ou tro. Os paradigm as qu e fizeram a m edievalidade resistiam ain da n o
casu lo do m ágico-an im ism o qu e viria a caracterizar algu m as das fases do
Ren ascim en to. Mas os seu s dias estavam con tados. Os róseos dedos da Ra-
zão clareavam já a n oite m edieval.

87
Antônio Augusto Marques de Almeida

N OTA S
1. Cf. CARVALHO, J. B. de. A m en talidade, o tem po e os gru pos sociais. (Um exem plo por-
tu gu ês da época das Descobertas: Gom es Ean es de Zu rara e Valen tim Fern an des). Revista de
História, São Pau lo, an o IV, p.37-68, ju l.-set., 1953.
2. MARQUES DE ALMEIDA, A. A. Aritmética como descrição do real (1519-1679). Con tribu tos
para a form ação da m en talidade m odern a em Portu gal. Lisboa: Im pren sa Nacion al – Casa da
Moeda, 1994.
3. Sobre este assu n to, leia-se CARVALHO, R. de O u so da lín gu a latin a n a redação dos tex-
tos cien tíficos portu gu eses. In : Memórias da Academia das Ciências de Lisboa (Classe de Letras). Lis-
boa: Academ ia das Ciên cias de Lisboa, 1988. t.XXIX, p.309-37.
4. ALBUQUERQUE, L. de Sobre u m m an u scrito qu atrocen tista do Tratado da Esfera de Sa-
crobosco. Revista da Faculdade de Ciências da Universidade de Coimbra. Coim bra, t.XXVIII,
p.142-76, 1959.
5. Segu iu -se logo ou tra edição em 1774. Este texto foi tradu zido desde o sécu lo XVI para as
lín gu as eu ropéias: italian a em 1543; alem ã em 1562; fran cesa em 1564; e a versão in glesa
em 1570.

88
capítu lo 6

OS BEN S ECLESIÁ STICOS N A


ÉPOCA MOD ERN A . BEN EFÍCIOS,
PA D ROA D OS E COMEN D A S
An tôn io Man u el Hespan h a*

Nen h u m h istoriador ign ora a im portân cia qu e tin h am , n a socieda-


de m odern a, os ben s eclesiásticos, in clu in do aqu i tan to os ben s im óveis,
com o coisas m ais im ateriais com o ben efícios e preben das. Não apen as por
se tratar de u m a m ole im en sa de recu rsos, com o pelo fato de se en con tra-
rem distribu ídos, sob m ú ltiplas form as, por toda a sociedade.
Mesm o n a época, o regim e dos ben s eclesiásticos era m u ito com pli-
cado. Isso explica – tan to qu an to a apetên cia por eles e os con flitos qu e isso
provocava – a qu an tidade de litígios existen tes acerca deles e, portan to, a
abu n dân cia e com plexidade da dou trin a ju rídica sobre o assu n to.
O regim e dos ben efícios, dos padroados e das com en das era dos
m ais discu tidos n o foro, pois dizia respeito a in stitu ições cen trais de redis-
tribu ição dos ren dim en tos da Igreja.
No texto qu e se segu e, procu rarei sistem atizar e esclarecer esse re-
gim e, ilu stran do-o com algu n s casos extraídos de coleções de ju rispru dên -
cia da época.

B EN EFÍCIOS, PA D ROA D OS E COMEN D A S.


REGIME IN STITUCION A L

De acordo com a tradição qu e corre n a época m odern a, o sistem a


ben eficial teria sido in trodu zido n a alta Idade Média. Nos tem pos prim iti-
vos, os eclesiásticos (tal com o os pobres) teriam sido su sten tados direta-
m en te pelos fiéis. No sécu lo V, o Papa S. Sim plício (an o 467) teria dividi-
do os ben s eclesiásticos em qu atro m assas: u m a destin ada aos bispos, ou -
tra aos clérigos, ou tra aos pobres e ou tra, fin alm en te, às despesas de cu lto
(“fábrica da Igreja”). A partir daí, os clérigos com eçam a ser su sten tados
pela atribu ição, em prin cípio pelos bispos, de ben s da Igreja, de cu jos ren -
dim en tos possam viver decen tem en te. Esta atribu ição teria sido feita ou
qu ase cotidian am en te de alim en tos, à m edida das n ecessidades con cretas
do clérigo ( annonnae, praebendae, de praebeo, apresen tar; esta design ação
era atribu ída aos alim en tos dados aos soldados1), ou por con cessões precá-
rias de ben s, a qu e se passou a ch am ar benefício.2

89
Antônio Manuel Hespanha

A origem do m odelo do ben efício está n o direito rom an o tardio, qu e


u tilizava a design ação para referir a atribu ição de ben s àqu elas qu e se dis-
tin gu iam n a gu erra, qu er com o prêm io qu er com o in cen tivo para feitos
fu tu ros (cf. C. 11, 59). In teressan te é, n este m om en to, destacar o caráter
gratu ito e ben evolen te do ben efício, o qu e o distin gu ia de qu alqu er paga-
m en to m ercen ário ( beneficium est benevola actio gaudium vel honorem tribuens
capienti, Sen eca, De benef., 1).3 Isto fazia com qu e o ben eficiado ficasse liga-
do ao con ceden te por u m a relação de gratidão e fidelidade qu e lh e veda-
va, n om eadam en te, a prática de atos qu e en volvessem desrespeito, com o
con trariar a palavra ju rada do con ceden te ou depor con tra ele (Am aral,
1610, “Ben eficiu m ”, n . 54).
Mas, apesar desta com pon en te de precariedade e liberalidade da
con cessão, a ten dên cia teria sido a de en ten der progressivam en te esta atri-
bu ição de ren dim en tos com o u m direito patrim on ial do tipo do u su fru to,
doravan te in tegrado perpetu am en te n o patrim ôn io do ben eficiado e, as-
sim , por ele dispon ível com o coisa patrim on ial.
Nos fin ais da época m odern a, qu an do já é m u ito forte a reação da
opin ião pú blica con tra esta progressiva patrim on ialização das ren das dos
eclesiásticos, a dou trin a in sistirá n o caráter por assim dizer pú blico da obri-
gação de su sten tar os clérigos. Su sten tação essa qu e, n ão poden do já com -
petir diretam en te à com u n idade, com o n os tem pos prim itivos, deveria es-
tar a cargo do soberan o.4
Seja com o for, an tes de o ilu m in ism o e, m ais tarde, o liberalism o te-
rem re-im agin ado u m sistem a n ovo de retribu ição dos eclesiásticos, o su s-
ten to destes estava baseado n esta con cessão qu ase patrim on ial de ren das,
a qu e se ch am ou ben efício.
De acordo com u m a defin ição com u m , o ben efício é u m direito per-
pétu o, atribu ído por u m a au toridade eclesiástica, de receber fru tos de cer-
tos ben s da Igreja, em virtu de de u m m in istério (ou ofício) sagrado, ao
qu al foram con sign ados ou an exados.
A perpetu idade do ben efício reside n o fato de, tan to a con cessão dos
ofício com o a dos ben efícios ser feita sem qu alqu er lim itação tem poral e
de form a firm e, n ão poden do ser retirada arbitrariam en te. Por isso é qu e
as con cessões tem porárias ( v.g., en qu an to n ão se der o provim en to defin i-
tivo com o n as vigararias, qu e são adm in istrações tem porais de ben efícios,
ou en qu an to o ofício carecer de certa proteção, com o n as comendas) n ão
são, rigorosam en te, ben efícios. Com o n ão o são os ofícios livrem en te reas-
su m íveis pelos con ceden tes (com o os ofícios dos regu lares de orden s m o-
n ásticas, tam bém ch am ados manuais ou obedenciais, ju stam en te porqu e
está n a m ão do con ceden te dá-los ou tirá-los livrem en te, ou os ofícios m e-
ram en te delegados, com o os dos legados papais).5
A dou trin a da época apresen tava dos ben efícios diversas classifica-
ções, algu m as delas pren h es de con seqü ên cias in stitu cion ais.

90
OS BENS ECLESIÁSTICOS NA ÉPOCA MODERNA. BENEFÍCIOS, PADROADOS E COMENDAS

Os ben efícios podiam ser eletivos, providos por eleição can ôn ica, ou
colativos, providos por sim ples doação ou colação. Maiores (com o os de
papa, arcebispos, bispos, abades) ou m en ores (os restan tes). Cu rados, se
in clu íam a cu ra de alm as (adm in istrar sacram en tos e difu n dir a palavra de
Deu s, exercer a ju risdição espiritu al), ou n ão cu rados, se n ão a in clu íam (o
qu e se presu m ia). Regu lares, atribu ídos a m em bros de u m a ordem ou re-
gra m on ástica, obrigan do a u m a m ais estrita obediên cia ao su perior e li-
vrem en te depen den tes, qu an to às fu n ções e qu an to ao período de con ces-
são, do arbítrio deste,6 secu lares, se atribu ídos a clérigos regu lares, n ão su -
jeitos a regra e m ilitan do n o sécu lo (o qu e se presu m ia). Fam iliares, se o
seu provim en to tem qu e se verificar n o seio de certa fam ília, ou n ão fam i-
liares, n o caso con trário.7
O provim en to dos ben efícios era levado a cabo, n as m ais im portan -
tes dign idades eclesiásticas ( ecclesiae viduae: bispos e abades de orden s), por
eleição can ôn ica, i.e., respeitadas as n orm as do direito can ôn ico, n om ea-
dam en te qu an to à form a de efetu ar a eleição e qu an to aos requ isitos do
eleito 8), a efetu ar den tro dos três m eses segu in tes à vacatu ra. A eleição po-
dia ser su bstitu ída por u m a escolh a ( compromissum ) por u m gru po m ais
restrito de eleitores (com prom issários) ou pela n om eação pelo titu lar do
poder secu lar, com o acon tecia, para os bispos, em Portu gal. Devia ser con -
firm ada pelo titu lar do direito de n om ear o ofício.
Nos restan tes ofícios, o provim en to era feito por n om eação (ou cola-
ção), por via de regra, episcopal. Apesar de o Papa ser, com o vigário de Cris-
to, o titu lar n atu ral do provim en to dos ofícios da Igreja, os bispos teriam ad-
qu irido, com o decu rso do tem po, u m a expectativa ju rídica ( fundata inten-
tio) de os poder con ceder, em bora isto n ão preju dicasse os direitos papais
(Fragoso, 1642, II, 655, n . 2/ 5). Daí qu e, em bora ordin ariam en te cou besse
aos bispos a con cessão dos ofícios, este direito estava lim itado pelos direitos
cu m u lativos de colação qu e com petiam ao Papa. Assim , este era titu lar de
u m a reserva geral qu e lh e perm itia prover os ben efícios qu e vagassem em
certos m eses (m eses ím pares) ou qu e vagassem n a cú ria.9 Para além de
even tu ais reservas especiais, n o caso de certos ben efícios (Gm ein eiri, X., X.,
1835, II, § 127).10 Além de qu e o papa, com o vigário de Cristo e u san do de
seu poder absolu to, podia prover qu alqu er ben efício, em qu alqu er circu n s-
tân cia e m ês, com o tam bém podia privar dele o ben eficiado.11
Por ou tro lado, o direito de provim en to dos bispos podia estar ain -
da lim itado por direitos de apresen tação ( i.e., de proposta de n om es) qu e
com petissem aos even tu ais patron os do ben efício, n os term os do direito de
padroado (v. infra).
O direito de padroado 12 – qu e com petia a qu em tivesse fu n dado ou
dotado su bstan cialm en te u m a igreja ( jus patronatus est jus honorificum, one-
rosum, & utile, alicui competens in ecclesia, pro eo, quo de diocesani consensu eccle-

91
Antônio Manuel Hespanha

siam contraxit, fundavit vel donavit, Am aral, 1610, n . 1) – in clu ía, en tre ou -
tras coisas o direito de apresen tar pessoa idôn ea para u m ben efício vago.
Em bora a prática an terior fosse diferen te e m ais perm issiva, o Con -
cílio de Tren to procu rou restrin gir o direito de padroado, lim itan do a su a
con cessão aos casos de fu n dação ou dotação su bstan cial de u m a igreja ou
capela. Em todo o caso, con tin u a a adm itir-se, em bora relu tan tem en te,
qu e o papa, u san do do seu poder absolu to ( i.e., su perior ao direito), pu -
desse con ceder padroados ( de vi potestatis de camera) a qu em n ão tivesse
fu n dado igrejas (Gm ein eiri, X., 1835, p.139). Sim u ltan eam en te, estabele-
cem -se con dições m ais rigorosas para a prova do direito de padroado, exi-
gin do docu m en to au tên tico ou posse im em orial, com ú n ica ressalva dos
padroados im periais ou régios, para os qu ais se con tin u avam a adm itir to-
das as provas adm itidas em direito.13
Além do direito de apresen tação, o direito de padroado in clu ía, des-
de logo, o direito de pedir alim en tos, por força das ren das do ben efício, n o
caso de pobreza; m as a avaliação da su a pobreza depen dia da “qu alidade”
do patron o. Em bora o Con cílio de Tren to (sécu lo XXII, de reform at., cap.
u lt.) ten h a – n a seqü ên cia de determ in ações can ôn icas an teriores (cf. Decr.
Greg. IX, cap. extirpandae, III, 5, 30) – proibido term in an tem en te os patro-
n os de se in trom eteram n a percepção dos fru tos do ben efício, a dou trin a
segu e adm itin do, m esm o n os fin ais do sécu lo XVIII, qu e os patron os po-
dem receber censos nos limites da igreja fundada (cf. Gmeineiri, X., 1835, II,
p.138, § 160). No plan o sim bólico, os patron os têm direito a lu gares de
destaqu e n a igreja, n o coro e n as procissões (ibidem .).
Estes direitos obrigam o patron o à cu ra, in speção e defesa da igreja,
para qu e esta n ão seja preju dicada n os seu s direitos. Em sín tese, costu m a-
va recitar-se o segu in te brocardo:
Patronos debetur honos, onus, utilitasque;
Praesentet, praesit, defendat, alatur egenus
(Deve-se ao patron o a h on ra, o ôn u s e a u tilidade; Apresen te, pre-
sida, defen da e seja alim en tado n a m iséria).
Neste brocardo, destacam-se as características fundamentais do siste-
ma de direitos e deveres incluídos no padroado. Ou seja, o seu caráter ho-
norífico, oneroso e utilitário. Honorífico, pois encerra certas honras, como
a de apresentar o titular do benefício (normalmente o reitor ou capelão da
Igreja), a de ter a precedência nos atos de culto (como as procissões, os ofí-
cios, a benção etc.), a de ter direito a preces, a cadeira especial na Igreja ou
no coro, a ter sepultura em lugar de destaque, etc. (Osório, 1736, res. I, n.
7-11). Oneroso, porque sobre o patrono recai o ônus de defender a igreja
ou capela do seu padroado e de impedir que os seus bens se dilapidem (n.
12). Utilitário, pois o patrono, sua mulher e família têm direito a ser socor-
ridos pelos rendimentos da Igreja se caírem na miséria (n. 14).
Os padroados podiam com petir a m u itas en tidades. Desde com u n i-
dades paroqu iais ou poderosos locais a en tidades eclesiásticas (com o sés ou

92
OS BENS ECLESIÁSTICOS NA ÉPOCA MODERNA. BENEFÍCIOS, PADROADOS E COMENDAS

cabidos). A distin ção en tre padroados leigos e eclesiásticos era a m ais im -


portan te, decorren do da origem dos ren dim en tos com os qu ais se tin h a
con stru ído ou dotado da igreja ou da von tade do in stitu idor leigo n o sen -
tido de ser padroeiro o próprio abade da igreja (Cabedo, 1602, n . 11) e era
relevan te de diversos pon tos de vista. Não apen as qu an do aos prazos de
apresen tação (6 m eses n os eclesiásticos; 4 m eses n os leigos; em am bos os
casos, sob pen a de devolu ção ao su perior, se n ão exercido a tem po), m as
tam bém n o m odo de fazer a apresen tação. Nos eclesiásticos, o con cu rso
en tre os con corren tes era de regra, estan do dispen sado n os leigos. Estes ú l-
tim os, por su a vez, tin h am regras m en os estritas qu an to à idon eidade do
apresen tado (n ão tin h am qu e abrir con cu rso, bastava escolh er dign o, m as
n ão o m ais dign o) e qu an to à su a design ação con creta, pois, an tes da con -
firm ação do apresen tado, podiam m u dar a escolh a ( Decr. Greg. IX, III, 38,
24 e 29; Gm ein eiri, X., 1835, II, p.140, § 163).
Os padroados tran sm itiam -se, desde logo, por su cessão. Neste pla-
n o, n ão se afastam do direito su cessório n orm al, n ão exigin do, design ada-
m en te, m ascu lin idade ou progen itu ra. São in clu sivam en te divisíveis,
qu an to aos direitos de percepção de ren das. Natu ralm en te qu e a apresen -
tação, em si m esm a, é in divisível. Mas, sen do vários os h erdeiros titu lares
do direito de padroado, eles podiam com bin ar en tre si u m a form a de ge-
rir o direito de apresen tar (por exem plo, por eleição en tre os co-titu lares
ou , o qu e era m ais freqü en te, pelo exercício altern ado) (Gm ein eiri, X.,
1835, II, p.145, § 177). Algu n s, podem ser gen tilícios ou fam iliares, n ão
poden do sair de certa fam ília (Am aral, 1610, n ota p.695 col. 1). O patro-
n o pode doar o padroado à igreja de qu e é patron o qu e, assim , fica pa-
droeira de si m esm a (Am aral, 1610, n . 30).
Para os que consideravam que o padroado era algo de meramente
temporal, este podia mesmo ser vendido, sem perigo de simonia.14 Outros
exigiam que o patronato estivesse anexo a uma universalidade de bens de
natureza temporal, para poder ser assim transacionado; porque em si mes-
mo, considerado como prerrogativa de apresentar ofício eclesiástico ou de
obter honras numa igreja, seria um direito espiritual (Amaral, 1610, n. 5).
No sen tido de m an ter os ofícios e ben efícios livres para serem con -
cedidos, n o m om en to da vacatu ra, estava proibida a prom essa de con ces-
são de ofícios n ão vagos ( cartas de expectativas). O Con cílio de Tren to (sess.
24, de reform ., cap. 19) ain da su blin h ou esta proibição, n o âm bito de u m a
política de am pliação da liberdade de colação qu e in clu ía tam bém a in tro-
du ção de restrições aos direitos de padroado (v. infra).
O sistem a ben eficial baseava-se, com o se viu , n a con ju n ção en tre
u m ofício ou fu n ção eclesiástica, com a correspon den te atribu ição de po-
deres ou ju risdições, e u m ben efício ou ren da.
No plan o dos poderes con feridos pelos ben efícios, por vezes eles
correspon diam a u m a certa prim azia ou preem in ên cia ju risdicion al, n o-

93
Antônio Manuel Hespanha

m eadam en te n os atos litú rgicos ou capitu lares ("n o coro ou n o capítu lo");
falava-se, n estes casos, de u m a dignidade. Em con trapartida, se esta prim a-
zia era m eram en te h on orífica, n ão com portan do qu alqu er ju risdição ( i.e.,
n ão se u n in do a qu alqu er ofício, com o u m lu gar h on orífico n o coro, pro-
cissões ou su frágios), falava-se de u m a sim ples pessoa ( personatus). No caso
de esta prim azia se lim itar à percepção de u m ren dim en to, falava-se de
u m a prebenda ou conezia.15 Fin alm en te, se os poderes con feridos fossem de
m era adm in istração, sem ju risdição ou dign idade, com o n o caso dos sacris-
tães ou porteiros, cu stódios, tratava-se de u m mero ofício.
Neste m odelo adm in istrativo, ao desem pen h o de u m a fu n ção cor-
respon dia sem pre a percepção de u m a ren da, de u m "ben efício". Na ver-
dade, os ofícios eclesiásticos n u n ca são con feridos sem ren das (sem titu-
lum [ou cau sa de possu ir]). A razão seria tan to a ju stiça (“é ju sto qu e
qu em vive para o altar, viva também do altar”, Vallensis, 1632, l. 3, tít. 5,
§ 1, n. 5) com o a n ecessidade de evitar qu e su rjam “clérigos vagos e acé-
falos” (Teles, 1693, p.116, n . 13).16 Apesar de paradoxal com a lógica in i-
cial do in stitu to, a situ ação in versa de existirem ben efícios sem a corres-
pon den te fu n ção podia verificar-se, n om eadam en te por se ter en tretan to
extin to, perm an ecen do a titu laridade dos ren dim en tos. Assim , ofício e be-
nefício passam a con stitu ir sin ôn im os, design an do a m esm a coisa, em bora
sob perspectivas diferen tes. Mas, n o m u n do sem ân tico da adm in istração
eclesiástica, a design ação de ben efício (qu e rem ete para u m a perspectiva
patrim on ial) su plan ta fran cam en te a de ofício (qu e rem ete para u m a
perspectiva fu n cion al ou m in isterial), em bora a lógica in stitu cion al h esi-
te en tre u m a e ou tra visão.
Por u m lado, a ligação essen cial do ben efício a u m a fu n ção su bja-
cen te, a u m ministerium , de n atu reza espiritu al, tin h a com o con seqü ên cia
a obrigatoriedade da residên cia n o lu gar do ben efício, a fim de poder de-
sem pen h ar presen cialm en te as in eren tes fu n ções, n om eadam en te as qu e
revestissem u m caráter de u rgên cia, com o a adm in istração da con fissão
ou da extrem a u n ção.17 Daí qu e n in gu ém pu desse ter m ais do qu e u m be-
n efício, pelo m en os se estes fossem en tre si in com patíveis.18 Por ou tro
lado, o fato de algu m as das fu n ções su bjacen tes serem essen cialm en te es-
piritu ais levava à in capacidade dos leigos para serem titu lares de certos
ben efícios an exos a este tipo de fu n ções (Gm ein eiri, X., 1835, II, 92, §
66).19 Ain da n esta perspectiva, os ren dim en tos do ben efício deviam servir
sem pre a fu n ção su bjacen te. Assim , en ten dia-se os ben eficiados aplicar ao
seu m ú n u s os fru tos do ben efício; e qu e, m esm o os ren dim en tos su pér-
flu os, deveriam ser con su m idos em gastos piedosos (Gm ein eiri, X., 1835,
II, p.164). Tam bém os réditos dos ben efícios vagos deveriam perm an ecer
con sign ados ao ben efício, sen do en tregu es ao su cessor ou gastos em be-
n efício deste; de m odo a qu e os bispos n ão se pu dessem apropriar deles

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OS BENS ECLESIÁSTICOS NA ÉPOCA MODERNA. BENEFÍCIOS, PADROADOS E COMENDAS

para gastos gerais da Igreja (Gm ein eiri, X., 1835, II, p.174). Em bora esta
perspectiva in teressasse tam bém , m esm o de u m a óptica pu ram en te patri-
m on ial aos fu tu ros ben eficiados.
Mas a conseqüência talvez mais notável da lógica ministerial diz res-
peito aos critérios de seleção dos beneficiados. Aqui, é muito presente a
idéia de que o beneficiado não é um mero arrecadador de rendas, mas uma
pessoa que, tendo que desempenhar um ministério, tem que ter as quali-
dades requeridas para tal. Essas qualidades (morais, intelectuais, físicas e de
idade 20) estavam fixadas pelo direito canónico e enfaticamente sublinhadas
pelo Concílio de Trento (sess. 24, c. 12) (cf. Amaral, 1610, v. “Beneficium”,
n. 9). Mas, para além do cumprimento de requisitos absolutos, havia ainda
que ponderar os méritos relativos dos potenciais candidatos. Nos ofícios
eclesiásticos mais importantes – como os bispos e superiores de ordens re-
ligiosas – isto obriga a que o provimento se faça mediante concurso, cons-
tando de um exame formal, devendo ser aprovado o melhor ( dignior). No
plano dos princípios, isto impediria – segundo alguns, mas não todos – a
concessão de benefícios por preferências pessoais, clientelares ou familia-
res.21 Nos benefícios inferiores exigência era menor, havendo quem – em-
bora contra a letra dos decretos de Trento (sess. 24, c. 18) – dispensasse o
concurso formal, nomeadamente nos benefícios que fossem apresentados
por patronos laicos,22 mas, de qualquer modo, exigia-se que o apresentado
fosse digno (embora não o mais digno), em termos de virtude (mais do que
em termos de nascimento.23 Em todo o caso, o princípio de que o ofício
eclesiástico tinha uma natureza espiritual, devendo ser exercido pelo mais
digno e meritório, e de que a concessão do correspondente benefício era
um ato gratuito e liberal faia com que qualquer motivação interesseira ou
qualquer pacto acerca da concessão fossem arguíveis de simonia ( i.e., o pe-
cado que consistia na venda de função espiritual). Pelo que os critérios ob-
jetivos do mérito sempre foram muito mais exigidos na colação dos bene-
fícios eclesiásticos do que na concessão dos ofícios ou mercês da república.
Em con trapartida, u m a visão patrim on ialista do ben efício ten de a
con siderá-lo com o u m a m era ren da, sem elh an te a tan tas ou tras, gravan -
do sobre certos ben s, existen tes n o m u n do m edieval e m odern o. E, daí,
qu e se con cebesse a existên cia de ben efícios sem ofício su bjacen te (pre-
ben das ou con ezias) ou a ven da de ben efícios (en ten didos com o m eros ré-
ditos tem porais, Vallen sis, 1632, l. 3, tít. 5, § 1, n . 5) sem perigo de sim o-
n ia. Adm itida a ven da (ou a troca), aceitava-se tam bém a ren ú n cia a fa-
vor de ou trem , em bora au torizada pelo colator. En ten den do-se m esm o
qu e este n ão podia con ceder o ben efício a ou trem (Am aral, 1610, v. “Be-
n eficiu m ”, n . 46). Tais ren ú n cias eram m u itos vu lgares.
Nu m a lógica pu ram en te patrim on ial, tam bém se en ten dia qu e o
con ceden te do ben efício pu desse reservar para si u m a porção do ren di-

95
Antônio Manuel Hespanha

m en to, a títu lo de pen são. Isto foi frequ en te até ao Con cílio de Tren to, o
qu al, segu in do a lógica espiritu alista, proibiu estas pen sões, a n ão ser qu e
ficassem votadas a fin s tam bém espiritu ais (com o, v.g., a reparação da igre-
ja do padroado) (Gm ein eiri, X., X., 1835, II, 172 s.). Mas, m esm o depois,
n ão só se adm ite qu e o fu n dador de u m a igreja reserve u m a pen são sobre
os ben s doados (Am aral, 1610, “Pen sio”, n . 6), com o se m an tém -se a prá-
tica de, em certos ben efícios, se exigir, n o m om en to da con firm ação, o pa-
gam en to de u m a som a equ ivalen te à m etade do ren dim en to an u al ( meia
anata). Daí qu e, peran te a gen eralidade da prática, a dou trin a prefira fixar
lim ites às pen sões, estabelecen do a regra de qu e estas n ão deviam ser de
tal m odo graves qu e o ben eficiário n ão se pu desse su sten tar com odam en -
te, observan do os preceitos de u m a vida h on esta e da h ospitalidade; em
geral, a pen são n ão deveria exceder a terça parte dos fru tos do ben efício
(Am aral, 1610, “Pen sio”, n . 8-9).
Um a form a especial de atribu ição de ben efícios era a com en da. Em
rigor, n ão se tratava de u m a con cessão de ben efício, m as apen as da su a
“en com en dação” (ou en trega com o qu e em depósito) 24 tem porária a al-
gu ém , qu e o deve proteger e cu rar, en tregan do-o, qu an do isso lh e for pe-
dido, ao con ceden te, e pon do os fru tos à disposição do ben efício (Vallen -
sis, 1632, p.462).
O alem ão Ju stu s Hen n in g Boeh m er 25 descreve assim a origem da
in stitu ição: “Nos tem pos prim itivos n ão era possível pôr logo à fren te das
igrejas u m pastor idôn eo; en tretan to, para evitar todos os in côm odos qu e
n orm alm en te n ascem da an arqu ia, costu m ava-se en com en dar e com eter
a igreja vaga a algu ém probo qu e, com o tu tor ou procu rador, se en carre-
gasse de boa-fé dos atos a ela relativos. Este n ão era pastor da igreja e só
era n om eado por certo tem po” (sec. 8, cap. 2, n . 25). E prossegu e, dan do
con ta das críticas qu e os protestan tes dirigiam a todas estas form as de
tran sferên cia para leigos das fu n ções e ren das da Igreja, “pou co a pou co,
esta in stitu ição degen erou em rapin a, verifican do-se u m a reação con tra
ela … obrigan do-se os bispos a, n o prazo de u m an o, proverem as igrejas
ou a su bstitu ir o com en dador … Mas h oje estas com en das (ou beneficia
commendatae) ju stificam -se m ais pelos réditos qu e dão do qu e pelo bem da
cu ra de alm as” (sec. 8, cap. 2, n . 25-27).
Solorzan o Pereira,26 qu e trata lon gam en te da in stitu ição da enco-
mienda, pela qu al se distribu íram aos colon izadores as terras das Am éricas,
defin e ain da a com en da com o o recebim en to de “algu m a coisa em gu arda
ou depósito, am paro e proteção” (Pereira, 1972, III, 1,1). Mas tam bém já
lh e acrescen ta a ou tra dim en são patrim on ial, m ais próxim a da realidade
prática da época, ao defin i-la com o o “direito de perceber os tribu tos dos
ín dios, con ferido por m ercê” (III, 3, 2 ss.). Na verdade, com o refere, estas
n om eações “n ão davam n em con feriam títu lo algu m ao qu e servia o be-
n efício, só o con stitu in do com o seu depositário, gu ardador ou adm in istra-

96
OS BENS ECLESIÁSTICOS NA ÉPOCA MODERNA. BENEFÍCIOS, PADROADOS E COMENDAS

dor por certo tem po e por cau sa de eviden te u tilidade da Igreja; m as com
a facu ldade de qu e pu desse gozar e dispor dos fru tos, com o se fosse u m be-
n eficiado” (Gm ein eiri, IV, cap. 15, 5 ss.).
Em Portu gal,27 a com en da é defin ida com o u m “ben efício de coisa
im óvel, retida a propriedade n o con ceden te, de m odo a qu e o u su fru to
passe para o aceitan te em virtu de da fidelidade deste” (Carvalh o, 1693, II,
p.10, n . 7). Discu tia-se a su a n atu reza ben eficial, sen do dom in an te a opi-
n ião de qu e n ão se tratava de ben efícios eclesiásticos, já qu e o m ú n u s qu e
estava su bjacen te à percepção de fru tos n ada tin h a de espiritu al, con sistin -
do n a obrigação de fazer a gu erra aos in fiéis (Carvalh o, 1693, I, en . 2, n .
18 ss.). Era aos párocos das igrejas da com en da qu e com petiam todas as
fu n ções espiritu ais, para o qu e lh es era atribu ída u m a certa pen são (ou
“cota”) extraída dos fru tos e ren dim en tos da com en da, de qu e os com en -
dadores eram m eros adm in istradores (Ibidem , n . 22).
Estavam atribu ídos em com en das os ben efícios, ju risdições e ren das
das orden s m ilitares. Com a in tegração dos m estrados das Orden s n a Co-
roa, esta torn a-se padroeira destas com en das.28 O rei, com o m estre, apre-
sen ta a com en da (qu e n ão é u m ben efício) e o com en dador apresen ta u m
vigário perpétu o ou reitor qu e provê os ben efícios.29 Aí, os com en dadores
repartiam com os cu ras (ou vigários perpétu os) os réditos eclesiásticos, de
acordo com os disposto n a carta de con cessão (Osório, 1736, p.90, n . 2).
Freqü en tem en te, os com en dadores tin h am os fru tos das igrejas e os vigá-
rios as su as porções (Am aral, 1610, v. “Ben eficiu m ”, n . 11).
Em Espan h a, foi este, além disso, o sistem a de distribu ição das ter-
ras das Am éricas pelos colon os. O com en dador foi origin ariam en te u m en -
carregado tem porário da adm in istração de u m território, com a percepção
dos respectivos tribu tos e as ju risdições espiritu al e secu lar correspon den -
tes, en qu an to esta n ão se provessem defin itivam en te os respectivos ofícios.
Mas esta idéia de precariedade foi se obliteran do progressivam en te.

O CA SO D O CURATO D E SA N TA MA RIA D E VOUZELA ,


D A ORD EM D E MA LTA

O ben efício cu rado de San ta Maria de Vou zela vagou por m orte em
ou tu bro de 1663 [m ês do papa]. Matias de Araú jo Bah ia, obteve-o por
con cu rso do Ordin ário. No en tan to, o Bailio de Leça, da Ordem de S. João
de Jeru salém , qu e tin h a direito de padroado n o m esm o ben efício, apre-
sen tou Man u el de Sou sa. Este foi ch am ado a ju ízo [pelo Procu rador da
Mitra] para apresen tar as cartas apostólicas [ i.e., de n om eação pon tifícia],
ten do o ju iz [delegado do Tribu n al da Nu n ciatu ra] revogado a su a posse
do ofício, já in icada [por faltarem ao possu idor as cartas pon tifícias de n o-
m eação, assu m in do, portan to, a com petên cia papal para a n om eação]. O

97
Antônio Manuel Hespanha

Sen ado da Relação [de Braga], por via de recu rso a ele dirigido pela Mesa
da Ordem [por n ão recon h ecer a existên cia de u m a reserva pon tifícia n es-
te ofício], declarou in ju stas as sen ten ças do dito ju iz [dan do razão ao re-
cu rso do apresen tado pelo Bailio].30
Toda a qu estão está em saber se a apresen tação deste ben efício está
reservada à San ta Sé, n os seu s m eses, ou se esta reserva n u n ca vale, por
se tratar de u m ben efício de Ordem Militar (Ibidem , n . 32).
Esta qu estão liga-se à n atu reza do ofício con exo com o ben efício,
pois era claro qu e os ofícios regu lares, m an u ais31 ou am ovíveis n ão esta-
vam reservados (n . 32). Discu tível era, porém , se isto valia tam bém para
os ofícios perpétu os da Ordem . Segu n do u m a opin ião, a Ordem podia
apresen tar, sem reserva pon tifícia, ben efícios m an u ais, relacion ados com o
m ú n u s específico da Ordem , e am ovíveis ad nutum . Mas já n ão gozava des-
sa isen ção n o qu e respeita aos ben efícios perpétu os (n . 35-6). A opin ião de
Pegas é, con tu do, diferen te e oposta (cf. n . 156, p.210).32
A sen ten ça fin al do ju iz n o recu rso para ela in terposto da sen ten ça
da Relação Arqu iepiscopal de Braga foi a segu in te:
"O ben efício da Igreja de San ta Maria de Sou zelas vagou em ou tu -
bro, qu e é u m dos m eses reservados [à San ta Sé]; o provim en to dele per-
ten ce à Sé Apostólica, pela regra oitava da Ch an celaria [Apostólica].
Qu an to m ais qu e desde o an o de 1566, está a Mitra daqu ele Arcebispado
de posse de pôr em con cu rso o dito ben efício, sem em bargo dos privilégios
qu e por parte daqu ela religião [de Malta] se alegam , pois [estes] falam n os
ben efícios regu lares e m an u ais, com o são as preceptorias e vigararias u n i-
das às com en das, n as qu ais a Religião tem dízim os e ren das e se costu m am
dar aos clérigos de h ábito dela … . Nada do qu e tem [do qu e ocorre] n o
ben efício da con ten da, pois se n ão m ostra qu e em tem po algu m fosse ser-
vido por clérigos regu lares, an tes por secu lares do h ábito de S. Pedro, n em
m en os ser u n ido às com en das, n em qu e a Religião ten h a n ele fru tos … .
Nem obstam as cláu su las, e derrogações dos ditos privilégios [ i.e., dos pri-
vilégios de In ocên cia VIII relativos aos ben efícios das Orden s], pois a dita
regra oitava tira e su spen de com exu beran tíssim as cláu su las e derrogações
os efeitos de todos e qu aisqu er privilégios, de sorte qu e n ão ten h am lu gar,
n em vigor con tra a reserva geral dos ben efícios [a favor da cú ria] n os oito
m eses reservados … . Ju lgam os e declaram os o títu lo qu e o apresen tado
pela Ven eran do Bailio tem n o dito ben efício por ilegítim o e n ão can ôn ico,
e n ão perten cer por esta razão à Religião o direito de apresen tar n o dito
ben efício, e m an dam os qu e sejam con servados em su a posse a San ta Sé
Apostólica, e o Sen h or Arcebispo de o proverem por con cu rso n a form a da
dita regra oitava e do Sagrado Con cílio Triden tin o …, Lisboa, 27.02.1677."
(Ibidem , n . 29).
A tese qu e faz ven cim en to é, portan to, a de qu e o ben efício cu rado
da Igreja era do padroado com preen dido n u m a com en da da Ordem de

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OS BENS ECLESIÁSTICOS NA ÉPOCA MODERNA. BENEFÍCIOS, PADROADOS E COMENDAS

Malta, mas funcionalmente autônomo dela, já que visava à cura de almas e


não a missão de proteção e administração que competia ao comendador. E
não, conseqüentemente, um ofício regular ou manual, parte integrante da
mesma comenda, relativo às funções que o comendador devia desempenhar.
Em todo o caso, a opin ião dom in an te era a de qu e, depois da u n ião
das Orden s à Coroa, os reis de Portu gal ficaram com o direito de, com o pa-
tron os, apresen tar os ben efícios e as com en das qu e se com preen dem n as
coisas eclesiásticas das orden s (priorados, com en das, ben efícios e capela-
n ias), (Ibidem , n . 71). Pelo qu e, em virtu de deste padroado régio, estes be-
n efícios ficariam isen tos de reserva pon tifícia (Ibidem , n . 72, 125-30, 151).
Tan to m ais qu e os ben s qu e são u n idos à coroa (com o os m estrados das or-
den s), gan h ariam a n atu reza de ben s da coroa, pois esta seria m ais forte
do qu e a su a an terior n atu reza (n . 118, p.203).33

O caso d a Co m e n d a d e San ta Maria d e Pe re iro


Em bargos de Diogo Soares [n eto de Diogo Soares] e João Alvares
Soares e Migu el Soares e Vascon celos a u m alvará de D. Afon so VI qu e
dava a com en da de San ta Maria de Pereiro ao Marqu ês de Cascais.
“Mostra-se pelos em bargan tes con tra o em bargado ter El Rei de Es-
pan h a, ain da qu e católico, in ju sto possu idor deste Rein o, n o tem po qu e o
govern ava, feito m ercê a Diogo Soares da Com en da de San ta Maria de Pe-
reiro em 4 vidas m ais, efectivas e de livre n om eação, além da su a [alv.
14.11.1636] … . Defen de-se o em bargado [Marqu ês de Cascais, gen ro do
Marqu ês de Marialva], dizen do qu e o Marqu ês de Marialva fora com en -
dador da sobredita com en da, por m ercê do Sen h or Rei D. Afon so VI, o
qu al lh e con cedeu em du as vidas m ais, e dan do-a depois em dote ao em -
bargado, qu e por m ercê do dito Sen h or fora su b-rogado n a m esm a vida do
Marqu ês seu sogro …”.34
Descrição do caso. Diogo Soares, Secretário do Con celh o de Portu gal
em Madrid, con stitu i u m morgado com os ben s qu e tem da Coroa e Orden s,
in clu in do a comen da de San ta Maria de Pereiro (cf. p.134, n . 270). Nomeia
n as qu atro vidas qu e tem n esta comen da Lu cas Soares, qu e in stitu íra como
admin istrador do morgado e seu s su cessores de acordo com o pacto de in sti-
tu ição do mesmo morgado e, depois das qu atro vidas, os su cessores destes se-
gu n do a Lei Men tal (p.134, n . 270). Depois da Restau ração, Diogo Soares fica
em Espan h a. A comen da é dada, por D. Afon so VI, ao Marqu ês de Marialva,
qu e a dá de dote a seu gen ro, o Marqu ês de Cascais. Depois da paz de 1668,
cu jas con dições estipu lavam o retorn o dos ben s con fiscados ou perdidos por
cau sa da gu erra aos seu s an teriores titu lares, os h erdeiros de Diogo Soares –
qu e, n o en tan to, se dispu tam en tre si acerca de qu em tem o melh or títu lo de
h erdeiro – reclamam do Marqu ês de Cascais a comen da de San ta Maria.
A prim eira decisão (Dou tor Jerôn im o Vaz Vieira, Ju iz dos Cavalei-
ros [?], 8.7.1680, p.119) é favorável a Diogo Soares, cu ja posição é patro-
cin ada por Pegas.

99
Antônio Manuel Hespanha

As qu estões in ciden tais qu e se levan tam são:


(a) A da legitimidade da concessão feita a Diogo Soares por um rei tirano.
(b) A do alcan ce da rein tegração dos ben s n os seu s origin ários titu -
lares estabelecida pelo Tratado de Paz de 1668.
(c) A da legitim idade da con stitu ição de u m m orgado com ben s da
coroa ou das orden s. As qu estões qu e aqu i se levan tavam eram : (i) a da
com patibilização do caráter vin cu lado (n a descen dên cia do in stitu idor) dos
ben s do m orgado com o caráter precário da con cessão dos ben s da coroa e
(ii) a da even tu al con tradição en tre as regras de su cessão de ben s da coroa
estabelecida pela Lei Men tal e as con tidas n o títu lo de in stitu ição do m or-
gado. Qu an to à prim eira qu estão, a saída era exigir a au torização de con s-
titu ição de m orgado por parte do rei ou m estre, qu e valeria com o con fir-
m ação prévia das su cessões fu tu ras e dispen sa das n orm as su cessórias da
Lei Men tal (p.147, n . 332).35
Mas a qu estão prin cipal, pelo m en os do pon to de vista qu e aqu i
m ais in teressa é a de saber se u m a com en da pode ser con cedida por m ais
do qu e u m a vida, já qu e isso equ ivaleria à con cessão de cartas de expecta-
tiva, proibidas n os ofícios e ben efícios eclesiásticos (m as n ão n os ofícios se-
cu lares, de qu e se davam alvarás de lem bran ça) (cf. p.131, n . 292-312). Se
triu n fasse este pon to de vista, logo a prim eira vida a m ais seria ilegítim a,
fican do a com en da vaga e poden do ser con cedida de n ovo a ou trem . Se
n ão triu n fasse, a su cessão das n om eações feita por Diogo Soares seria vá-
lida, de m odo qu e a com en da n ão estaria vaga n o m om en to da su a con -
cessão ao Marqu ês de Marialva. E, com o a con cessão de ben efícios n ão va-
gos é n u la, n u la seria esta ú ltim a doação. A posição qu e faz ven cim en to é
a de qu e as com en das n ão são ben efícios eclesiásticos, pelo qu e n ão se lh es
aplica a regra da proibição de expectativas, qu e aliás era corren te con ceder
em Portugal, justamente sob esta forma de concessão em vidas (n. 294-312).
A ju stificação avan çada para o caráter n ão-ben eficial das com en das é a de
qu e os com en dadores se lim itam a perceber fru tos separados do ben efício,
n ão sen do por isso ben eficiados, m as adm in istradores ou depositários do
ben efício (“os com en dadores só gozam dos fru tos tem porais, qu e se sepa-
ram dos ben efícios n elas in clu ídas, os qu ais são govern ados por clérigos, a
qu em som en te com pete o títu lo espiritu al”, n . 295).36
A sen ten ça defin itiva é dada a favor do Marqu ês de Cascais (p.146),
com o fu n dam en to de qu e “os Sen h ores Reis destes Rein os com o Mestres
das Orden s n ão podem validam en te dar vidas n as Com en das, n em expec-
tativas a elas, por se regu larem n a opin ião de direito por ben efícios ecle-
siásticos, n os qu ais são proibidas e reprovadas as expectativas e fu tu ras su -
cessões pelos Sagrados Cân on es, em qu e o Mestre n ão pode dispen sar por
ser Prelado in ferior ao Su m o Pon tífice” (p.146, n . 331).

100
OS BENS ECLESIÁSTICOS NA ÉPOCA MODERNA. BENEFÍCIOS, PADROADOS E COMENDAS

O CA SO D A COMEN D A D E SOUSA ,
D A ORD EM D E SA N TIA GO 37

Com o se refere n o privilégio papal [o padroado da Igreja de Sou sa]


era do Mosteiro de S. Migu el, da Ordem de S. Ben to, e em vida do dito
João de Sou sa, foi tran sform ada em com en da de S. Tiago, de m odo qu e
depois da morte deste voltasse à Ordem de S. Bento e ao dito mosteiro … .
E depois disto, por con stitu ição de Xisto IV, foi determ in ado qu e, depois da
m orte de D. João de Sou sa, D. Afon so V obtivesse a dita preceptoria ou co-
m en da [agora perpetu am en te in corporada n a Ordem de San tiago], sen do
con cedido a este rei qu e ficasse aos seu s su cessores e dos ou tros reis apre-
sen tar para a dita com en da pessoa idôn ea 38 ... E assim , [an tes qu e a co-
m en da fosse in corporada n os ben s da coroa], o rei doou este padroado e
direito de apresen tação para a dita com en da ao dito João de Sou sa e seu s
h erdeiros em perpétu o,39 doação con firm ada por In ocên cio VIII, o qu al,
por cau tela, reservou perpetu am en te para o Mestre o direito de padroado
e apresen tação de pessoa idôn ea para a dita preceptoria,40 (n . 5).41A Co-
m en da de Sou sa era, portan to, u m a Com en da da Ordem de San tiago, em
direito de propriedade, por privilégio dos Papas, com a terra e toda a ju ris-
dição tem poral e algu n s ou tros ben s (n . 4).42 Os reis de Portu gal tin h am o
padroado da com en da, poden do apresen tar com en dador, o qu al, en qu an -
to patron o da Igreja de Sou sa, apresen taria os seu s ben efícios, salva reser-
va cu m u lativa do Mestre de San tiago. Um a vez doada a com en da a D.
João de Sou sa, este ficou su b-rogado n os direitos do rei doador. Com a in -
corporação do Mestrado de San tiago n a Coroa, o rei passa a gozar da re-
serva cu m u lativa qu e com petia ao Mestre. Há, portan to, qu e distin gu ir
aqu i: (i) o direito de apresen tação do com en dador, qu e com pete a João de
Sou sa e seu s su cessores; (ii) o direito em in en te do Mestre (rei) de n om ear
com en dador n a falta ou dilação da apresen tação; (iii) o direito de apresen -
tação dos ben efícios da Igreja de Sou sa, de qu e era titu lar o com en dador.43
A prim eira qu estão qu e su rge refere-se à devolu ção su cessória. En -
qu an to u n s dos litigan tes preten diam qu e a devolu ção se fazia por lin h a
prim ogen itu ral, com o n os ben s da coroa, ou tros defen diam a devolu ção
su cessória com u m , com o n os padroados e, ou tros, fin alm en te, a in existên -
cia de devolu ção su cessória, com o n os ben efícios. Tu do depen dia, en tão,
da n atu reza qu e prevalecesse n o objeto da con cessão (bem da coroa, pa-
droado, ben efício). Ora n este caso, existem três dign idades distin tas: a de
patron o da com en da, n a titu laridade da fam ília dos Sou sas, em qu e se su -
cede por via su cessória; a dign idade de com en dador, em qu e se é in vesti-
do por apresen tação do patron o, con firm ada pelo Mestre (rei); os ben efí-
cios do padroado da com en da, em qu e se é provido por apresen tação do

101
Antônio Manuel Hespanha

com en dador. De qu alqu er m odo, com o a com en da foi doada a João de


Sou sa an tes da su a in corporação n os ben s da coroa (n este caso, n o padroa-
do real), tran sferia-se por direito h ereditário com u m e n ão por prim oge-
n itu ra, com o os ben s da coroa, deven do m an ter-se n os h erdeiros até qu e
estes faltassem de todo ou dela fossem privados por delito; só en tão retor-
n an do à Ordem (Ibidem , n . 2-3).44
Eis u m a das opin iões:

Neste processo [sobre a Com en da de Sou sa] n ão se litiga sobre ben s da


coroa, n em de tal qu alidade qu e se h aja de su ceder n eles, e devolver-se a
su cessão ... com o em ben s vin cu lados, m as trata-se de u m a com en da, qu e
se deve repu tar por ben efício eclesiástico, e n a qu al se n ão pode en trar
sem os legítim os e can ôn icos títu los de apresen tação do padroeiro, e con -
firm ação do m estre da Ordem , a qu e a dita com en da perten ce … do qu e
se con ven ce in evitavelm en te n ão poder en trar n esta com en da qu em n ão
for apresen tado pelos su cessores de João de Sou sa o Rom an isco, e con fir-
m ado pelo m estre da Ordem , porqu e isto im porta ao direito de padroado
e o declaram expressam en te as palavras da con cessão. Mostra-se qu e n es-
ta form a se foram su ceden do os com en dadores qu e h ou ve depois do dito
João de Sou sa, com o se vê de seis n om eações, e apresen tações: a prim ei-
ra de An dré Freire [com en dador], n om eado por seu pai João Freire [pa-
tron o da com en da], e con firm ado por El Rei com o Mestre; a segu n da de
João de Sou sa [com en dador], apresen tado por falecim en to de Man u el
Freire [com en dador an terior] por D. Mécia de Sou sa, e D. Gu iom ar de
Sou sa, padroeiras [da com en da] …; a terceira, de Man u el Freire [com en -
dador], apresen tado por D. Fran cisca de Sou sa [padroeira] …; a qu arta,
de João Freire [com en dador], coadju tor de seu pai Man u el Freire [co-
m en dador an terior], con firm ada pelo Su m o Pon tífice, 45 a qu in ta por Ma-
n u el de Sou sa [com en dador], apresen tado por D. Fran cisca, D. Cecília, fi-
lh as e h erdeiras de João de Sou sa [padroeiras] … . O au tor, Alexan dre de
Sou sa [com en dador], apresen tado por D. Fran cisca e D. Ursu la, religiosas
do m osteiro de Jesu s de Aveiro, com o padroeiras e descen den tes do pri-
m eiro dito adqu iren te João de Sou sa, e m ais próxim as u m grau n o paren -
tesco com o ú ltim o possu idor Diogo Freire [do direito de padroado sobre
a com en da] qu e o opoen te Con de de Miran da ... As religiosas n ão são ile-
gítim as e, con form e o direito, capazes de apresen tar, sem qu e lh e obste a
disposição da Lei Men tal, qu e dispõem qu e os padroados da coroa an dem
em u m a só pessoa, e n o filh o varão m ascu lin o, porqu e com o fica con si-
derado este padroado n ão é da coroa, e foi dado an tes de se in corporar
n ela, e ficou sen do h ereditário, e podem su ceder n ele as fêm eas, e se di-
vide o direito de apresen tação por todos os paren tes, qu e estão em igu al
grau 46 ... O qu e visto com o m ais qu e dos au tos con sta, om itin do ou tros
fu n dam en tos m en os su bstan ciais, revogam a sen ten ça em bargada, e ju l-
gam a apresen tação feita n a pessoa do au tor Alexan dre de Sou sa por le-
gítim a e bem feita, e qu e se lh e deve a con firm ação da com en da de qu e
se trata, e su as perten ças ... Lisboa, 19.08.1653.

102
OS BENS ECLESIÁSTICOS NA ÉPOCA MODERNA. BENEFÍCIOS, PADROADOS E COMENDAS

N OTA S
1. Em sen tido estrito, a praebenda ou canonica portio é aqu ela parte qu e se tom a da m assa dos
ben s e proven tos dos eclesiásticos e se dá a cada u m com o arte su a (Vallen sis, 1632, p.442,
n . 1); m as qu e, em bora se preste pelos ben s da Igreja, n ão se presta em razão do ofício divi-
n o, m as em razão de trabalh o tem poral.
2. A primeira referência no C. I. C. reporta-se ao Concílio de Mogúncia (813) ( Decr. Greg., III, 48, 1).
3. TELES, M. G. De praeben dis et dign itatibu s. In : Commentaria perpetua in singulos textus quin-
que librorum decretalium. Lu gdu n i, 1693. v.III, tít. V, n . 12.
4. GMEINEIRI, X., 1835. II, 90, § 62 ss.
5. GMEINEIRI, X., 1835, II, 92, § 66; VALLENSIS, 1632, III, 5, 1, n . 7.
6. De fato, os ofícios m on acais (ou m an u ais) são dados e revogados ad nutum (à discrição); o
con teú do das su as atribu ições tam bém depen de em absolu to do con ceden te (Fragoso, 1641,
1652. II, 854, § 12).
7. Sobre este tem a, v., v.g., BARBOSA, 1632, cap. IV; VALLENSIS, 1632, III, 5, 2, p.444; m ais
recen tes, GMEINEIRI, X., X., X., 1835, II, 93, §§ 69 ss.; Carn eiro, 1869, 121 ss.
8. Sobre as eleições e os requisitos dos eleitos, v. GMEINEIRI, X., X., X., 1835, II, 104, § 88 ss.
9. Dado qu e esta reserva preju dicava os direitos dos patron os, h avia qu em restrin gisse forte-
m en te o âm bito da reserva pon tifícia, n ão a adm itin do n os ben efícios em padroado leigo, n os
obtidos on erosam en te, n os ben efícios das orden s m ilitares(cf. Pegas, 1669, XI, ad 2,35, c. 117,
149 ss.). Além qu e a reserva pon tíficia n ão existia n os ben efícios regu lares ou m an u ais das
orden s (cf. Pegas, 1669, XI, ad 2,35, c. 117, n . 35-6).
10. Nos ben efícios de padroado eclesiástico, a San ta Sé gozava de 8 m eses de reserva, fican -
do aos padroeiros apen as os m eses de m arço, ju n h o, setem bro e dezem bro (Con c. Triden ti-
n i, sess. 24, cap. 18).
11. VALLENSIS, 1632, III, 7, § 2, p.451 ss.
12. Decretu m , II p., C. XVI, Q. VII, c. 33: “O m osteiro ou oratório in stitu ído can on icam en te
n ão deve ser tirado do dom ín io do in stitu idor con tra a su a von tade, deven do-se perm itir-lh e
qu e o en com en de ao presbítero qu e qu iser para a celebração dos ofícios sagrados, com o con -
sen tim en to do bispo da diocese”. Cf. tam bém Decretais, III, 38 (“De iu re patron atu s”). Sobre
o padroado, ver Osório, 1736; AMARAL, 1740, ver. “Ju s patron atu s”; Cabedo, 1603; FRA-
GOSO, 1642, II, 689, § 7; VALLENSIS, 1632, ad III, 38; Gm ein eiri, 1835, II, 136 ss.
13. Concílio de Trento, "Padroado", sess. 25, cap. 9: "Assim com o n ão é ju sto preju dicar os le-
gítim os direitos de padroado e violar as pias von tades dos fiéis qu an to à su a in stitu ição, tam -
bém n ão é de perm itir qu e, debaixo desta aparên cia, se coloqu em os ben efícios da Igreja em
servidão, o qu e m u itos fazem de form a im pú dica. Assim , para qu e se observe em tu do u m
equ ilíbrio devido, o San to Sín odo recon h ece com o títu lo do padroado a fu n dação ou a doa-
ção qu e se dem on stre provada por docu m en to au tên tico e ou tras provas requ iridas por di-
reito; ou tam bém por m ú ltiplas apresen tações por tem po an tiqu íssim o qu e exceda a m em ó-
ria dos h om en s ou de ou tro m odo equ ivalen te, segu n do a disposição do direito. No en tan to,
n aqu elas pessoas, com u n idades ou u n iversidades n as qu ais aqu ele direito as m ais das vezes
costu m a ser obtido sobretu do por u su rpação, exige-se u m a prova m ais plen a e exata com o
títu lo verdadeiro. Nem a posse im em orial lh es valerá sen ão qu an do, além de ou tras coisas
n ecessárias, se provarem apresen tações, con tin u adas, e pelo espaço n ão in ferior a cin qü en ta
an os, e sortidas de efeito. Todos os restan tes padroados n os ben efícios, tan to secu lares, com o
regu lares, ou paroqu iais, ou dign idades, ou qu aisqu er ou tros ben efícios, em catedral, ou igre-
ja colegiada, ou privilégios con cedidos, tan to com efeito de padroado com o qu alqu er ou tro
direito de n om ear, eleger ou apresen tar para qu an do vagu em , são totalm en te revogados,
sen do tida com o n u la qu alqu er posse deles, exceto os padroados sobre igrejas, catredrais e
ou tros qu e perten çam ao im perador ou aos reis ou possu idores de rein os, bem com o ou tras
en tidades su blim es e prín cipes su prem os qu e ten h am n os seu s dom ín ios direitos im periais;

103
Antônio Manuel Hespanha

assim com o os con cedidos em favor de estu dos gerais. Assim , os ben efícios são con cedidos
com o livres pelos seu s colatores, ten do as provisões destes plen o efeito”.
14. Tal é a opin ião de Gm ein eiri, X., 1835, II, p.144, § 173.
15. Falava-se de pen são ou porção a respeito de u m a prestação periódica im posta sobre o
ren dim en to de certo ben efício pelo titu lar da su a colação ( i.e., por aqu ele a qu em com pete
prover esse ben efício) a favor de u m a pessoa eclesiástica ou leiga (cf. Lobão, 1825, 21 ss.). As
pen sões podiam ser im postas pelo papa, pelos bispos, pelos grão-m estres das orden s m ilita-
res e pelos reis (com o grão-m estres ou padroeiros). V. AMARAL, 1740, ver “Pen sio”, n . 2 ss.
16. Se o bispo orden ar clérigos sem titu lu m tem qu e lh es prestar alim en tos dos seu s ben s, Te-
les, 1693, p.118.
17. AMARAL, 1740, v. “Ben eficiu m ”, n . 9. Este é u m dos gran de tem as do Con cílio de Tren -
to em m atéria ben eficial: cortar os abu sos de ben eficiados au sen tes (cf. obrigações do ben e-
ficiado: residên cia assídu a, Gm ein eiri, X., X., 1835, II, 156 § 200; Tren to: sess. 23, cap.1). No
en tan to, a prática con tin u ou a ser bastan te perm issiva, adm itin do, n om eadam en te, a falta de
residên cia n os ben efícios sem cu ra de alm as (AMARAL, 1740, “Ben eficiu m ”, n . 63).
18. AMARAL, 1740, ver “Ben ficiu m ”, n . 17.
19. Já n o caso das sim ples preben das (v. supra), n ão m ilita esta razão, pelo qu e podem ser au -
feridas por leigos.
20. O ben efício cu rado exige 25 an os e ordem clerical; os ou tros exigem pelo m en os 14 an os
(Tren to, sess., 23, c. 6 de reform at). Sobre os requ isitos pessoais para ter ben efícios, v. FRA-
GOSO, 1642, II, p.663, § 2, n . 4 ss.
21. Cf. AMARAL, 1740, ver “Ben eficiu m ”, n . 8. Em con trapartida, Baptista Fragoso (FRA-
GOSO, 1642, II, p.663, § 2, n . 4-5.) defen de qu e o bispo pode con ceder oficios a seu s con -
san gü ín eos idôn eos, desde qu e o n ão faça com escân dalo; apen as n ão lh es pode con ceder os
ofícios ren u n ciados em su as m ãos por ou trem , n . 2.
22. No padroado real portu gu ês, a apresen tação precedia exam e e in form ação, n orm alm en -
te tirada pelo deão da capela real (Cabedo, 1602, c. 19, p.69, n . 1.
23. Discu te a qu estão de se n os ofícios secu lares ou eclesiásticos são de preferir os n obres, Te-
les, 1693, p.167, n . 4 (n ão são de preferir os n obres pois n ão é a n obreza do n ascim en to m as
das virtu des e da vida h on esta qu e torn am o servidor grato e idôn eo para Deu s; para o go-
vern o da Igreja devem ser eleitos n ão os n obres pela carn e m as os h u m ildes e pobres, n . 4).;
apoia-se em S. Tom ás, De regim. principum ., lib. 4, cap.15.
24. Commendare é depositar, l. com m en dare, D. 50, 16.
25. Ius parochiale ad fundamenta genuina ius ecclesiasticum protestantium , Hallae, 1721.
26. PEREIRA, J. S. Politica indiana. Madrid: Bib. de au tores españ oles, 1972.
27. Sobre o regim e das com en das, em Portu gal, ver Carvalh o, 1693.
28. Ver lista das com en das de Cristo do padroado da coroa (“as cin qü en ta com en das do pa-
droado”), em Cabedo, 1602, cap.18, p.66, n . 1.
29. Cabedo, 1602, cap.18, n . 2-5; Ben to Cardoso Osório diz qu e “os reitores das igrejas do
padroado real, n as qu ais foram con stitu ídas com en das, con tin u am a apresen tar os cu ras e de-
m ais ben efícios, com o an tes” (Osório, 1736, p.91, n . 1; p.106, n . 4). Ver diplom a sobre a re-
partição das apresen tações dos ben efícios das com en das e seu s ren dim en tos en tre com en da-
dores e reitores em Osório, 1736, p.93. l
30. PEGAS, M. Á. Commentaria ad Ordinationes, XI, ad 2,35, c. 117, n . 31.
31. A manualitas con siste n a obediên cia devida pelos regu lares (n . 34).
32. Para u m ou tro con flito deste tipo en tre a Ordem de Avis e o Arcebispo de Évora, cf. ibi-
dem , n . 102.
33. Em todo o caso, existe, n ou tros con textos, a opin ião exatam en te con trária, de qu e os
ben s da coroa, qu an do doados à Igreja, perderiam a su a prim eira n atu reza.

104
OS BENS ECLESIÁSTICOS NA ÉPOCA MODERNA. BENEFÍCIOS, PADROADOS E COMENDAS

34. PEGAS, M. A. Tractatus de exclusione, inclusione, successione & erectione maioratus. Ulyssipon e,
1685. v.I, p.116 ss.
35. “Nos ben s da coroa, se o Prín cipe os con cede para u m m orgado, ficam vin cu lados e re-
gu lam -se pelas vocações do m orgado” (cf. IV, ad I, 50, gl. 1, p.192, n . 12 ss.). Ou se a doação
foi feita a algu ém e seu s filh os, fora da lei m en tal em perpétu o, pode fazer-se u m vín cu lo de
tais ben s”, PEGAS, ibidem , p.151.
36. A qu estão da n atu reza ben eficial ou não das comendas é objeto de larga controvérsia nos
finais do século XVII, conforme se pode ver em Carvalho, 1693, enucl. 2 e 5. O autor inclina-
va-se para a opinião negativa, fundado principalmente (i) no fato de que os comendadores
não tinham qualquer múnus espiritual e (ii) na existêncis de um costume inveterado de atri-
buir expectativas das comendas (ver exs. em Carvalho, 1693, I, p.357 ss.). Mas, em contrapar-
tida, existiam também determinações explícitas em contrário, quer em diplomas papais, quer
em decisões da Mesa da Consciência e Ordens ( v.g., em 8.9.1574: “nula toda a promessa de
comenda, ainda que seja com a declaração, que haverá efeito, sendo hábil a pessoa a quem se
prometeu, e assim é nula a tença em defeito de comenda” (Carvalho, 1693, en. 2, n. 4.)
37. PEGAS, M. Á., 1669-1703. XI, ad 2,35, c. 117, n . 1 ss.
38. Ou seja, o rei e su cessores ficaram com o direito de padroado, com direito a apresen tar o
com en dador.
39. Qu e, assim , ficaram patron os da com en da.
40. Trata-se de u m a reserva cu m u lativa e n ão privativa, poden do o Mestre de San tiago pro-
ver a com en da n a falta ou dilação da apresen tação do patron o (cf. n . 5).
41. “… con sta qu e sen do com en dador do Mosteiro e Igreja de Sou sa, João de Sou sa, a qu e
ch am arão o Rom an isco, em su a vida som en te, a fez o Su m m o Pon tífice com en da in perp-
tu u m e con cedeu o direito de padorado dela ao sen h or rei D. Afon so V, para ele e para seu s
su cessores, e o m esm o sen h or, an tes qu e este padroado se in corporasse n a Coroa, o tran sfe-
rio e fez doação dele ao dito João de Sou sa, para ele e seu s h erdeiros e su cessores, ju re h e-
reditário, assim com o pelo Papa lh e fora con cedido, orden an do qu e os Sen h ores Reis seu s su -
cessores lh e n am pu zessem a isso dú vida, porqu an to dem itia de si an tes de ser patrim ôn io
real, e se in corporar n a Coroa”.
42. “Na qu al n ão só h á dízim os, qu e foram da Igreja, m as ben s próprios, e aqu ella villa, e ju -
risdição, qu e os Sen h ores Reis deste Rein o de seu patrim ôn io secu lar, e da Coroa lh e doa-
ram ", p.211, col 1.
43. Note-se qu e, n as comen das, o papa não goza da reserva pontifícia. De fato, “as comendas
e benefícios das Ordens não costumam devolver-se ao ordinário, nem ao Papa, mesmo que os
benefícios vaguem na Cúria; existe uma bula e privilégio de Inocêncio VIII, segundo o qual
não se aceitam provisões apostólicas para o provimento das comendas, pelo que a sua provi-
são nunca fica reservada ao Pontífice, mas sim ao Mestre e patrono”, PEGAS, ibidem, n.21.
44. Segundo uma outra opinião, constante do processo, "estes bens, por uma vez que foram doa-
dos à Igreja, perderão a natureza de bens da Coroa, e não ficam sujeitos à Lei Mental", n. 160,
p.212, col 1.
45. Trata-se, aparen tem en te, de u m a colação abu siva e con flitu al com a an terior, pois n ão se
verifica a apresen tação pelo patron o, além de qu e o papa n ão dispu n h a de reserva n os ben e-
fícios das Orden s Militares.
46. Usan do dele ou por votos, ou por tu rn o.

105
Antônio Manuel Hespanha

B IBLIOGRA FIA .
AMARAL, A. C. do. Liber utilissimus judicibus et advocatis. Con im bricae,
1740. 2 v.
BERNHARD, J. et al. L'époqu e de la réform e et du con cile de Tren te. In :
GAUDEMET, J., LE BRAS, G. Histoire du droit et des institutions de l' Egli-
se en Occident. Paris: Cu jas, 1990. t.XIV, p.346-77.
CABEDO, J. de. De patronatibus ecclesiarum regiae coronae Lusitaniae. Ulyssi-
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CARVALHO, L. P. de. Enucleationes ordinum militarium. Ulyssipone, 1693.
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GMEINEIRI, X., X., X. Institutiones iuris ecclesiastici. Con im bricae, 1835.
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TELES, M. G. De praeben dis et dign itatibu s. In : ___. Commentaria perpetua
in singulos textus quinque librorum decretalium . Lu gdu n i, 1693. v.III, tít.V,
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VALLENSIS, A. (del Vau lx, An drea) Paratitla sive summaria et methodica ex-
plicatio decretalium . Lovaii, 1632 (m axim e, l. 3, tít. 5, § 1 [“De praeben -
dis et dign itatibu s”]).

106
capítu lo 7

PORTUGA L E A EUROPA N A
ÉPOCA MOD ERN A
Maria do Rosário Th em u do Barata*

Para se desen volver este tem a dever-se-á aten der, n ecessariam en te,
pela própria evolu ção h istórica portu gu esa e pela em ergên cia con com itan -
te da gran de n ação brasileira, a u m terceiro term o: o m u n do u ltram arin o.
Desta relação, n ão a dois m as a três, irá se tratar a segu ir, con scien tes de
toda a respon sabilidade de u m passado e de toda a expectativa de u m pre-
sen te n o qu al, descon h ecidos pela m aior parte dos círcu los de opin ião os
verdadeiros con torn os do Tratado de Mastrich t, sobre as m ú tu as relações
Portu gal – Brasil perpassa o receio da secu n darização dos laços qu e in trín -
seca e in dissociavelm en te os ligam . Ecos de m al fu n dadas in terpretações,
de fu gazes deslu m bram en tos por realidades com as qu ais, con trariam en te
ao qu e possa parecer, Portu gal n u n ca deixou de estar fam iliarizado, esco-
lh en do m u ito em bora vias altern ativas; seqü elas de u m en ten dim en to di-
recion ado da História para o terceiro m ilên io, privilegian do u m a ten dên -
cia política m ajoritária e com o tal apresen tada com o triu n fan te; in terroga-
ção n acion al sobre o destin o h istórico após u m a revolu ção política qu e
preten deu resolver ao m esm o tem po u m a qu estão de regim e e u m a pre-
sen ça h istórica em n ível m u n dial: todos estes elem en tos in flu em n a in ter-
pretação h istórica dos tem pos passados e, m u ito n itidam en te, n o cam po
do estu do das relações extern as, in tern acion ais e diplom áticas. Ju lgam -se
estas, tam bém , em paralelo com os ju lgam en tos eu ropeu s da política in -
tern acion al desde a Gu erra de 1939-1945, e essa avaliação vai, por vezes,
n o paralelo qu e estabelece, dem asiado lon ge, procu ran do sim ilitu des on de
elas n ão existem , n ovidades on de h á a con stân cia e, freqü en tem en te, n ão
aceitan do o en riqu ecim en to de perspectivas con ju n tas e in terdisciplin ares
qu e n ão falseiem n em obliterem os fatos h istóricos. Com paixão ou sem
ela volta-se à História, m as m u itas vezes à h istória-tribu n al, tão desacon -
selh ada pelos n om es qu e se im põem en tre os h istoriadores, com o Marc
Bloch ou Lu cien Febvre. Mais se eviden cia qu e, com todo o rigor m etodo-
lógico dos n ovos recu rsos in terdisciplin ares postos ao serviço da in terpre-
tação h istórica, o con h ecim en to dos fatos h istóricos é e será in dispen sável
e in su bstitu ível. E isto n ão é pu ro h istoricism o, a m en os qu e seja a perm a-
n ên cia do cern e de verdade qu e o h istoricism o en cerra.
E volta a ser preciso en carar a História de Portu gal n o con ju n to das
coorden adas políticas, cu ltu rais, religiosas e n ão esqu ecer as geográficas.

107
Maria do Rosário Themudo Barata

No an o (1997) em qu e a cu ltu ra portu gu esa deixa de con tar en tre os vi-


vos com Orlan do Ribeiro, pertin en te con tin u a a su a reflexão m etodológi-
ca sobre as relações de Portu gal com o Mediterrân eo e com o Atlân tico,
desde sem pre e n ão só desde o delin ear da expan são u ltram arin a qu atro-
cen tista. E com esta reflexão do ilu stre m estre, ou tra de ou tro m estre n ão
m en os ilu stre Jorge Borges de Macedo, falecido em 1996, se vem en trete-
cer: a do con dicion alism o geográfico, estratégico, cu ltu ral portu gu ês de
du as fron teiras igu alm en te presen tes n a História de Portu gal, a terra e o
m ar, a Hispân ia e o Atlân tico 1. Creio qu e am bas as posições são a ch ave da
explicação das relações de Portu gal com a Eu ropa n os tem pos m odern os,
com o procu rarei explicitar de segu ida.
Estas observações são motivadas pelo que a opinião comum transmi-
te de interrogações e a que, de uma forma ou de outra, a historiografia por-
tuguesa tem vindo a responder, numa produção historiográfica variada e
questionadora do sentido global da história portuguesa. Tal preocupação é
patente nas obras sobre o século XX, as Repúblicas, Salazar, Marcelo Cae-
tano, a participação de Portugal nos conflitos internacionais, o processo de
emancipação dos territórios sob soberania de Portugal, as campanhas mili-
tares nos territórios do Ultramar, a Revolução de 25 de abril de 1974, mas
tal atitude também explica terem surgido novas Histórias de Portugal, em
que se citam as de Joaquim Veríssimo Serrão, João Medina, Joel Serrão e
Oliveira Marques, José Mattoso. Tempo de dúvidas e de mudanças para
Portugal este último quartel do século XX, a perspectiva histórica traz a se-
gurança de uma seqüência de vida para uma nação e um estado e a espe-
rança inconformista num futuro não previamente decidido.
Em term os do estu do das relações in tern acion ais, h á h oje a n eces-
sidade de reavaliar o in teresse sem pre m an tido por Portu gal qu an to às re-
lações in tern acion ais, evidên cia qu e n ão deve ser su bstitu ída pela afirm a-
ção de isolacion ism o com qu e se qu er cen su rar o regim e con tra o qu al se
pron u n ciou a Revolu ção do 25 de abril de 1974. E n essa rein serção do
tem a das relações in tern acion ais de Portu gal, n ão só m as tam bém com a
Eu ropa, h á qu e recolocar a dicotom ia qu e caracterizou a h istória portu -
gu esa n os tem pos m odern os, ou seja, a presen ça con stan te de atlan tism o
e de eu ropeísm o, n ão con traditórias, e qu e, n o decorrer da h istória, a po-
lítica extern a portu gu esa avaliou e in tegrou n u m a con tin u idade de ação
de estado soberan o.
Tu do são m otivos qu e explicam o in teresse e a n ecessidade de se de-
bater a realidade docu m en tada pela História, qu an to aos tem as das rela-
ções in tern acion ais de Portu gal. Tem a tratado com o particu lar pelas obras
e au tores qu e referim os, o seu tratam en to global teve a servi-las, em obras
especializadas, a aten ção de diplom atas e professores u n iversitários de m é-
rito. Cou be a precedên cia a Edu ardo Brazão, gran de sen h or da diplom acia

108
PORTUGAL E A EUROPA NA ÉPOCA MODERNA

portu gu esa qu e põs a su a excepcion al experiên cia n este cam po ao serviço


da h istória das relações diplom áticas de Portu gal n a época m odern a, com
ên fase para as gran des cortes da Eu ropa on de avu lta a San ta Sé. Diplom a-
ta e Professor, escreven do para en sin o u n iversitário e para a form ação de
especialistas, José Calvet de Magalh ães, por su a vez, in sistiu n a n ecessida-
de de esclarecer, diferen cialm en te, relações extern as e h istória diplom áti-
ca e verificar a m etodologia específica da ú ltim a. Professor de Direito, Pe-
dro Su arez Martin ez deu -n os u m a visão de seqü ên cia n a su a História Di-
plom ática de Portu gal. Professor de História de in igu alável procu ra teórica
e expositiva n o dom ín io da h istória diplom ática com o cam po de relação
das n ecessidades do m eio, das forças econ ôm icas e sociais e das opções po-
líticas e cu ltu rais n u m a avaliação estratégica, Jorge Borges de Macedo
apresen tou , após o seu en sin o u n iversitário e n os in stitu tos de altos estu -
dos m ilitares e diplom áticos, a su a História diplomática portuguesa. Constan-
tes e linhas de força. Estudo de geopolítica. Para a época con tem porân ea, An -
tôn io José Telo tem tratado, com acu idade, por seu lado, a caracterização
de u m cam po de atu ações m al con h ecidas e freqü en tem en te m al explora-
das. A par da tem ática geral, o in teresse pelo Atlân tico Su l e pelo desen -
volvim en to do Brasil é, m an ifestam en te, u m dos gran des tem as do m agis-
tério de Joaqu im Veríssim o Serrão, de Lu ís Ferran d de Alm eida e de Eu -
gên io Fran cisco dos San tos.2
Desde os prim órdios do tem po m odern o, Portu gal m an ifestou -se
com o u m a das n ações qu e m ais cedo deu form a a u m Estado, sín tese de
u m rei e de u m rein o, com in stitu ições, território, cu ltu ra e au ton om ia
econ ôm ica, perfilan do-se n o areópago das n ações cristãs com o con stan te
aliada do papado, recon h ecen do a m atriz cristã e latin a da su a tradição h is-
tórica, caldeada com as várias cu ltu ras e etn ias qu e en riqu eceram o seu
con vívio em tem pos m edievais (su eva, goda, h ebraica, m u çu lm an a). Ex-
perim en tan do e extrain do da experiên cia u m a atitu de política de acau te-
lam en to peran te a existên cia estru tu ral de du as fron teiras de equ ivalen te
im portân cia, a terrestre e a m arítim a, o fim dos tem pos m edievais em Por-
tu gal e o in ício das diretrizes m odern as afirm am -se n a 2ª. din astia, de
D. João I a D. João II, com eçan do, n esta m esm a altu ra, aqu ilo a qu e Jor-
ge Borges de Macedo ch am ou de “exportação de estado”, ou seja, a expor-
tação, para áreas civilizacion ais extra-eu ropéias, dos m odelos de organ iza-
ção política, social, econ ôm ica, cu ltu ral e religiosa já experim en tados n a
Eu ropa, n o sen tido de con tribu ir para u m a relação global dos vários con -
textos evolu tivos à escala m u n dial(3).3 Tal m ovim en to coexistiu com a
afirmação da mais an tiga alian ça portu gu esa com a In glaterra n o Tratado
de Win dsor de 1386 e n o casam en to do rei de Portu gal com a filh a do Du -
qu e de Len castre, com o estreitam en to dos vín cu los fam iliares e de coope-
ração cu ltu ral e econ ôm ica com o Grão Du cado da Borgon h a, com o casa-

109
Maria do Rosário Themudo Barata

m en to da In fan ta D. Isabel, filh a de D João I e de D. Filipa de Lan castre,


com o Du qu e Filipe o Bom , sen do os pais de Carlos, o Tem erário, com as
alian ças fam iliares e relações políticas de ou tros prín cipes de Avis com a
realeza e a gran de n obreza de Aragão e Hu n gria, a qu e se vêm ju n tar la-
ços com as cortes italian as e m ais tarde com o próprio Im pério Alem ão (ca-
sam en to de D. Leon or irm ã de D. Afon so V com o Im perador Frederico
III), en qu an to, con com itan tem en te, se verificava o casam en to de várias
in fan tas portu gu esas com os reis de Castela.
Mas já ou tra direção de desen volvim en to tom ava a vida portu gu e-
sa: com Ceu ta, em 1415, com eçava a con qu ista de terras african as, com
Gon çalves Zarco, em 1419, e com Tristão Vaz Teixeira e Bartolom eu Pe-
restrelo, com Porto San to e Madeira, com eçava o povoam en to das Ilh as
do Atlân tico. A Ordem de Cristo, sob a direção do In fan te D. Hen riqu e,
tom ava a diretriz da expan são portu gu esa, liderada pela coroa a partir de
D. João II. A costa african a era recon h ecida e freqü en tada, perm itin do,
após dobrar o Cabo Adam astor por Bartolom eu Dias n o com eço do an o
de 1488, o su cesso da viagem de Vasco da Gam a até a Ín dia em 1498.
Dois an os depois era a oficialização do con h ecim en to das Terras de Vera
Cru z, o Brasil.
Fatos qu e pressu põem a afirm ação de u m Estado para serem possí-
veis e para serem aceitos já em n ível in tern acion al, dada a con corrên cia de
idên tico m ovim en to, de Castela para as Can árias e de Castela e Aragão n o
Norte de África, e do con com itan te in teresse de viajan tes italian os e do
Norte da Eu ropa, eles coexistem com a presen ça portu gu esa n os assu n tos
eu ropeu s. Pois são con com itan tes o fortalecim en to dos laços econ ôm icos
e cu ltu rais com a Flan dres e com o Norte e Cen tro da Eu ropa, através das
feitorias de Bru ges e An tu érpia, bem com o a presen ça n o Mediterrân eo
em con ju n to com os m ercadores aragon eses, catalães e italian os, o jogo
político de equ ilíbrio das potên cias italian as da Paz de Loddi e as ten tati-
vas políticas de afirm ação do Papado de Nicolau V e de Pio II, com o ape-
lo à cru zada e à liga con tra o Tu rco, a qu e D. Afon so V preten de respon -
der. O rei de Portu gal, gorada a cru zada, in vestirá n as cam pan h as africa-
n as, m as fica registrada a su a atitu de n o debate dos tem as qu e in teressa-
vam os vários rein os eu ropeu s. Con h ece-se, da m esm a form a, a im portân -
cia qu e assu m iu a presen ça dos legados portu gu eses n os con cílios do sécu -
lo XV, bem com o n as u n iversidades eu ropéias.
Com o provas sign ificativas desta avaliação podem apon tar-se, para
a segu n da m etade do sécu lo XV, dois tratados fu n dam en tais: o de Alcáço-
vas-Toledo (1479/ 80) e o de Tordesilh as (1494). Negociados n o âm bito pe-
n in su lar, para resolver, o prim eiro deles, o con ten cioso en tre as casas rei-
n an tes de Portu gal e Castela, sobre os problem as dos acordos de pescas, da
posse das Can árias e de u m a dem arcação de áreas de expan são m arítim a

110
PORTUGAL E A EUROPA NA ÉPOCA MODERNA

pelos paralelos, dem on stran do a m aior preocu pação pelos territórios afri-
can os e m editerrân icos; celebrado, o segu n do, com o o cu lm in ar da m ú tu a
avaliação en tre D. João II e os Reis Católicos Fern an do e Isabel, de Aragão
e Castela, e propon do a divisão do globo terrestre em dois h em isférios de-
m arcados por u m m eridian o a 370 légu as das ilh as de Cabo Verde para a
parte do Poen te. Este tratado provava a im portân cia de qu e o Atlân tico se
revestia para os poderes pen in su lares n o fin al do sécu lo XV, talvez m ais do
qu e u m a visão m u n dial, qu e poderá su rgir com o forçada se se aten der à
preocu pação fu n dam en tal expressa n os próprios tratados qu an to à vigi-
lân cia do acesso aos portos pen in su lares e a Lisboa, prim eiro porto de en -
trada n as viagen s de regresso e se se lem brar o debate qu e m an ifesta as dú -
vidas qu an to à form a de dem arcar o m eridian o n as áreas do Pacífico. Mas
a form u lação das próprias dú vidas tem a van tagem de datar, de m u ito
cedo, o in teresse pelo con h ecim en to geográfico da Terra, qu e acom pan h a
toda a fase das n avegações portu gu esas m edievais e m odern as.
Em com paração, a atitu de dos ou tros Estados eu ropeu s em term os
de relações extern as n a Eu ropa eviden cia ou tras direções e ou tras prece-
dên cias, se bem qu e con tem porân eos. Com eçava, em 1498, o avan ço do
rei de Fran ça à con qu ista do rein o de Nápoles, prim eiro passo para as
Gu erras de Itália, qu e ocu pam as várias potên cias eu ropéias, em várias fa-
ses e com vários protagonistas, que só se solucionarão no tempo de Filipe II
de Espan h a, provada a in eficácia da Liga Perpétu a dos Estados Italian os 30
an os an tes, com a aceitação da Fran ça de Hen riqu e II, n a ten tativa de de-
belar o avan ço do Tu rco Otom an o e de con segu ir a su a con ten ção n o Me-
diterrân eo Orien tal e qu an do am bos os reis coin cidiam n a von tade de su s-
ter o avan ço da reform a protestan te. Peran te estes in teresses gerais da Eu -
ropa, a aten ção pelo Atlân tico tin h a, n o fin al do sécu lo XV e n o prin cípio
do sécu lo XVI, em Portu gal e em Espan h a os prim eiros defen sores, o qu e
n ão qu er dizer qu e h ou vesse desin teresse pelo qu e se passava n a Eu ropa.
E a prova m ais clara é o debate con ju n to dos tem as do ren ascim en to cu l-
tu ral e artístico e dos tem as da expan são, a qu e a produ ção da im pren sa se
dedica con com itan tem en te.
Mas retom em os as con siderações acerca dos acordos in tern acion ais
n o com eço da Modern idade, ou seja, n o tem po de D. João II e dos Reis Ca-
tólicos. A este tem po segu e-se o rein ado de D. Man u el I. É o tem po da
vice-realeza da Ín dia, dos prim eiros bispados u ltram arin os, do prestígio da
Casa da Ín dia e da Feitoria de An tu érpia. É o tem po das relações de Por-
tu gal com o Im pério de Maxim ilian o, das em baixadas de au scu ltação e
aproxim ação dos dois im périos, con tin en tal e m arítim o, propon en tes am -
bos de u m a icon ologia de triu n fo político, u m o Sacro Im pério Rom an o
Germ ân ico, o ou tro o do sen h orio da con qu ista, n avegação e com ércio da
Etiópia, Arábia, Pérsia e da Ín dia. Expoen tes cu ltu rais de dim en são eu ro-

111
Maria do Rosário Themudo Barata

péia, Dam ião de Góis, Erasm o,Tom ás Moru s e Albrech t Du rer são prova da
con vergên cia dos seu s in teresses.
Tal posição a n ível extern o n a Eu ropa é acom pan h ada por u m pro-
cesso de in stitu cion alização e desen volvim en to in tern o em Portu gal, qu e
h averá in teresse em recordar em traços m u ito gerais. Defin ido o esqu em a
cen tral das in stitu ições e a orden ação dos gru pos sociais n as Ordenações,
dele decorre ou com ele se relacion a a orgân ica das ou tras in stitu ições e
das relações dos gru pos sociais. Corte e poder cen tral, os Gran des Tribu -
n ais, a Fazen da, as n ovas leis da gu erra, a reform a dos forais, a Casa da
Ín dia, a Mesa da Con sciên cia, a In qu isição, os diversos Regim en tos qu e
acom pan h am a expan são u ltram arin a, o m ecen ato artístico e a expressão
de u m estilo porven tu ra portu gu ês design ado por Man u elin o, u m a cu ltu -
ra h u m an ística e de experiên cia, eis u m con ju n to de fatores qu e n ão se
com padece com qu alqu er avaliação desvalorizan te em relação à Eu ropa.
No en tan to, h á u m a perda de poder efetivo n o fin al da Din astia de Avis,
u m a qu estão in stitu cion al de regim e absolu to de m on arqu ia h ereditária e
de situ ação estratégica. Portu gal vai perder a capacidade de optar peran te
a diversidade do jogo de alian ças n a Eu ropa, vai perder a m an u ten ção da
vigilân cia política e diplom ática e até, segu n do Jorge Borges de Macedo,
vai perder a posição de sign ificado especial peran te a San ta Sé. Para isso
con tribu irá o fato de am bas as fron teiras, terrestre e m arítim a, serem do-
m in adas pelo m esm o poder, o de Espan h a. Tu do isto foi tradu zido e levou
à perda da In depen dên cia em 1580. A partir daqu i, tam bém , o in terlocu -
tor dos in teresses m ajoritários da expan são u ltram arin a peran te a Eu ropa
passava a ser o rei de Espan h a.
Como se explica este sentido de evolução após o reinado de D. Manuel I?
Tin h am su cedido diversos tem pos e diversos protagon istas. Por m orte dos
Reis Católicos e do Im perador Alem ão, tom ara corpo o Im pério de Carlos
V, con tin en tal e m arítim o. Com o n ovo poten tado o rein o de Portu gal ce-
lebrara o Tratado de Saragoça de 1529 qu e teve por fim esclarecer a de-
m arcação do m eridian o orien tal e a qu estão das Molu cas, n u m a altu ra
em qu e o Im perador tom ava parte n as gu erras de Itália e os seu s exérci-
tos saqu eavam Rom a. No en tan to, Carlos V será coroado pelo Papa, sen -
do o ú ltim o im perador a sê-lo. Em relação ao equ ilíbrio pen in su lar, os ca-
sam en tos de Carlos V com D. Isabel irm ã do rei portu gu ês e o casam en to
de D. João III com a irm ã m ais n ova do Im perador, D. Catarin a de Áu s-
tria, reforçavam as possibilidades de u m dia se verificar a u n ião de pode-
res, a u n ião n a Pen ín su la Ibérica peran te a Eu ropa, qu e arrastaria, con se-
qü en tem en te, a u n ificação da in flu ên cia expan sion ista n os territórios de
além -m ar. Mas, peran te os problem as su rgidos n os vários territórios de
seu dom ín io, aberta a gu erra com os protestan tes, reacesa a lu ta con tra o
Tu rco, m an tidas as divergên cias políticas com a Fran ça, n ão h á, ao tem -

112
PORTUGAL E A EUROPA NA ÉPOCA MODERNA

po, celebração de u m acordo in tern acion al qu e vin cu le, n a Eu ropa, a


apreciação política de am bas as dim en sões, a dim en são con tin en tal e a
dim en são m arítim a. En qu an to os assu n tos da expan são eram debatidos
en tre Portu gal e Espan h a, n a política eu ropéia in tern a o equ ilíbrio era
procu rado por u m a política de alian ças e diplom acia fam iliar pelo im pe-
rador, qu e, n ão obstan te, con siderará ter de abdicar e dividir o seu vasto
Im pério, divisão qu e leva a efeito em 1555 e em 1556 e qu e afasta os ter-
ritórios alem ães dos territórios da expan são, con fiados a seu filh o Filipe II
de Espan h a, ju n tam en te com Nápoles, Milão, o Fran co Con dado e os Paí-
ses Baixos. A diversidade de in teresses pela expan são u ltram arin a, por
parte dos vários rein os eu ropeu s, con trapu n h a-se à posição m ajoritária de
Filipe II e o prim eiro e m ais im portan te con flito exprim e-se n a revolta das
Provín cias Flam en gas.
Man ifestan do a oposição qu e se gen eralizava n a Eu ropa à h egem on ia
de Filipe II de Espan h a, 3 an os depois da partilh a do Im pério, em 1559, Isa-
bel I de In glaterra e a Fran ça apoiarão os Países Baixos. Hen riqu e IV reco-
n h ecerá, em 1609, a separação das Provín cias Un idas n a Un ião de Utrequ e.
E em breve se desen h a o su rto da expan são u ltram arin a h olan desa.
Para trás ficavam os con flitos da coroa portu gu esa com algu n s rei-
n os eu ropeu s n o qu e respeitava a expan são atlân tica, casu ística de qu e foi
expressão o Tribu n al de Presas de Bayon n e, prim eiro tribu n al in tern acio-
n al para qu estões de direito m arítim o en tre gran des Estados n a época m o-
dern a n a Eu ropa, in stitu ído en tre as coroas de D. João III e de Fran cisco I
de Fran ça, e qu e veio a en cerrar com u m passivo de volu m osos processos
solvidos en tre as du as cortes só com o decorrer dos tem pos. A con testação
eu ropéia ao “m are clau su m ” pen in su lar esboçava-se para n ão m ais se ca-
lar, in sistin do a In glaterra n a n ecessidade de dem on stração do exercício
efetivo de dom ín io para o recon h ecim en to in tern acion al da posse.4
Entretanto, os interesses europeus e os interesses ultramarinos serão
representados conjuntamente, pela primeira vez, em sentido amplo, no
Tratado de Cateau-Cambrésis, de 3 de abril de1559. Tratado internacional
que pôs termo ao conjunto de interesses em luta nas chamadas Guerras de
Itália, Cambrésis marcou uma etapa na definição do equilíbrio europeu no
começo da segunda metade do século XVI. Nele se tratou da partilha de in-
fluências na Itália e na Flandres, nas rotas que ligavam a Europa Ocidental
à Itália e ao Mediterrâneo. Aí a Espanha conseguiu, da França, o corte da
ajuda ao Turco Otomano e o mesmo empenho na luta contra os protestan-
tes. No tratado esteve representada a maioria das potências européias, daí
que as coroas peninsulares pretendessem obter, concomitantemente, a
aceitação, pelos vários reinos europeus, dos termos da partilha dos territó-
rios da expansão ultramarina feita entre Portugal e Espanha, para que se
afastassem os motivos de luta marítima, ao mesmo tempo que se solucio-

113
Maria do Rosário Themudo Barata

nava o conflito continental na Europa. Tema de prestígio para o rei de Es-


panha Filipe II e a Casa de Sabóia, num tempo em que a representação por-
tuguesa enfraquecia politicamente porque se estava em regência na meno-
ridade de D. Sebastião (D. João III morrera em 1557 deixando um rei de 3
anos apenas), as negociações foram conduzidas pela diplomacia espanhola
e com o trunfo do fato da vitória espanhola na Batalha de S. Quentino com
a presença do próprio rei. Apesar de os representantes da corte portugue-
sa, ou seus mandatários, estarem presentes nas conversações, os interesses
espanhóis na rápida obtenção da paz na Europa ditaram, como explicou Fi-
lipe II à regente de Portugal, sua tia D. Catarina de Áustria, que não se in-
sistisse na inclusão do assunto da capitulação sobre os territórios da expan-
são e sobre o exclusivo da sua freqüentação no articulado do tratado, para
não prejudicar, com isso, a negociação dos termos da paz geral. No entan-
to, teria sido reconhecido, verbalmente, o direito de Portugal e de Espanha,
tendo a França tomado o compromisso de não se dirigir aos territórios de
descobrimento e ocupação pelos peninsulares, desenhando-se, na seqüên-
cia, para a França, uma reserva para a própria expansão, nos territórios de
latitude norte no continente americano.5
No aspecto m arítim o, a vitória qu e se celebrará, pou cos an os depois,
é a da arm ada cristã com an dada por D. João de Áu stria, em Lepan to em
1571. Era, n o en tan to, u m a vitória n o Mediterrân eo.
Relações in diretas com a Eu ropa, n o pon to de vista da represen ta-
ção política portu gu esa? Se h á certo recu o n a m en oridade de D. Sebastião
qu e correspon de aos prim eiros an os de govern o de Filipe II, este preju ízo
será com pen sado pelo reatar de laços diplom áticos diretos com as várias
potên cias eu ropéias por D. Sebastião, qu an do tom a posse efetiva do poder
em 1568. A ele se deve n ova política n o Atlân tico Su l, a abertu ra do per-
cu rso m arítim o do Atlân tico à livre in iciativa dos seu s vassalos, o in teres-
se por An gola, pela Min a, pelas Ilh as e pelo Brasil, o in cen tivo à evan geli-
zação, agora con fiada prioritariam en te à Com pan h ia de Jesu s. É n o seu
tem po recon qu istado o Rio de Jan eiro e os fran ceses são afastados da Baía
de Gu an abara; con tin u am -se as relações com o Im pério Alem ão, cu jos co-
m ercian tes en caram o com ércio com o Orien te por rota portu gu esa em
n ovos term os. Ren ovam -se as relações diplom áticas diretas com a In gla-
terra, en qu an to a corte portu gu esa qu ereria aproxim ar as cortes de Lisboa
e de Paris, propon do-se, para isso, o casam en to de D. Sebastião com a fi-
lh a de Catarin a de Médicis. As relações de Portu gal e da San ta Sé, n o tem -
po do pon tificado de Pio V, eram au spiciosas.
Alcácer Qu ibir em 1578 e a crise din ástica qu e se m an ifestou com a
m orte do rei e de gran de parte da n obreza, o im passe criado ao fu n cion a-
m en to das in stitu ições du ran te o breve rein ado do Cardeal-Rei, a su a m or-
te, o avan ço de u m partido a favor de Filipe II de Espan h a, a reserva da
Casa de Bragan ça e a derrota m ilitar e política do Prior do Crato explicam

114
PORTUGAL E A EUROPA NA ÉPOCA MODERNA

a solu ção por u m a m on arqu ia du al aceita n as Cortes de Tom ar qu e, se de-


clarava garan tir a separação in stitu cion al do rein o de Portu gal, n ão garan -
tia a posse e exercício dos poderes soberan os da realeza em separado, pois
qu er de Espan h a qu er de Portu gal eles seriam exercidos por Filipe II.
Acordo qu e pareceria van tajoso n o dom ín io u ltram arin o por ser
u m a form a de lu tar con tra a pirataria n os m ares, acordo qu e fortaleceria
a m on arqu ia católica e qu e parecia u m a garan tia peran te a Eu ropa divi-
dida pela gu erra religiosa, a falên cia de tais objetivos torn a-se u m fato à
m edida qu e os con flitos con tra Filipe II se acen tu am e se desen rola a
Gu erra do Trin ta An os. Iden tificados pelos estran geiros os in teresses de
Portu gal com os de Espan h a, os portu gu eses têm de procu rar estabele-
cer, n o dom ín io privado, a teia de relações econ ôm icas, sociais e cu ltu -
rais tradicion ais com o Norte da Eu ropa, ao m esm o tem po qu e lu tam
con tra ou tros eu ropeu s con corren tes n as regiões portu gu esas do dom í-
n io u ltram arin o. O dom ín io filipin o coin cide com a form ação das Com -
pan h ias das Ín dias h olan desa e in glesa, com a su a posição con corren cial
n o Ín dico, com problem as em An gola, com a fixação h olan desa n o Bra-
sil. En du recida a política in tern a espan h ola n os rein ados de Filipe III e
Filipe IV, torn a-se cada vez m ais con scien te a von tade de restabelecer a
in depen dên cia política e o fu n cion am en to portu gu ês das in stitu ições do
rein o de Portu gal. A Restau ração da In depen dên cia de Portu gal e o m o-
vim en to do 1º. de dezem bro de 1640 têm , assim , u m du plo e in dissociá-
vel sen tido: o do restabelecim en to do fu n cion am en to das in stitu ições do
rein o de Portu gal de form a própria e in depen den te e o da garan tia do re-
con h ecim en to e da participação de Portu gal n a política in tern acion al
com o rein o soberan o. Am bos os sen tidos estão in dissociados do destin o
dos territórios portu gu eses de além -m ar. 6
Estes são os objetivos fu n dam en tais para a política portu gu esa n os
sécu los XVII e XVIII, n u m a Eu ropa em qu e declin a o poder de Espan h a, e
qu e se m an ifesta o prestígio da m on arqu ia fran cesa de Lu ís XIV e se pre-
para a h egem on ia m arítim a da In glaterra. Mas tam bém se torn ava eviden -
te a com petição pelo Atlân tico en tre a Fran ça, a Holan da e a In glaterra,
qu e dita o acau telam en to, por parte de Portu gal, da situ ação n os seu s ter-
ritórios atlân ticos, o esforço pela libertação do Brasil e de An gola e o com -
bate peran te o ataqu e dos h olan deses e in gleses n o Ín dico. É o tem po da
organ ização dos “com bóios” de acom pan h am en to às frotas m ercan tes, da
discu ssão das van tagen s e in con ven ien tes das com pan h ias de com ércio, da
gen eralização da discu ssão em torn o das m edidas m ercan tilistas para lu tar
con tra a con corrên cia estran geira. É bem certo qu e o sécu lo XVII é o da
atlan tização das aten ções, com o vin cou Jorge Borges de Macedo.
No plano interno, na Europa, a par dos complexos problemas que se
exprimiram em revoltas ou revoluções, assistia-se à profissionalização da
guerra, à renovação do armamento, ao aumento do poder de tiro, ao au-

115
Maria do Rosário Themudo Barata

mento do número de contingentes militares e da sua disciplina, à impor-


tância das fortificações, enquanto, a Leste, continuava o combate contra os
Turcos, em que a Áustria consegue resultados importantes que vincam a
sua preeminência na política européia. Mais a Norte, novo debate político
e militar se desenhava, para o controle do Báltico. E nos fins do século XVII
parecia vitoriosa a tentativa da União Bourbon por parte da potência mais
continental (a França) com a potência mais marítima (a Espanha) no “co-
roamento” das expectativas de Luís XIV desde a Paz dos Pireneus.
Creio qu e seria ch egada a altu ra de relem brar as posições cien tífi-
cas in vocadas ao prin cípio, para esboçar u m a in terpretação de con ju n to
da ação diplom ática de Portu gal n os sécu los clássicos do ancien-régime: as
teses de Orlan do Ribeiro e Jorge Borges de Macedo con firm am -se pelo
qu e é dado com preen der da atitu de dos respon sáveis portu gu eses n a su a
defin ição de n eu tralidade n a época m odern a. A n eu tralidade n ão é m ais
do qu e a lú cida observação de qu e a Portu gal in teressa n ão h ostilizar a
Espan h a, e as su as aliadas con tin en tais, ao m esm o tem po qu e se aproxi-
m a da In glaterra, qu e n ão pode ter com o in im iga n as qu estões u ltram a-
rin as. As relações de Portu gal com a Fran ça, com as zon as flam en gas e
h olan desas, do Mar do Norte e Báltico, do Im pério Alem ão, do Im pério
Ru sso e com os sen h orios italian os serão avaliadas de acordo com a bi-
polarização dos in teresses fu n dam en tais. Im pon derável estará sem pre a
aproxim ação à San ta Sé. Su bjacen tes, às vezes con traditórias, as opções
cu ltu rais. Mas com o fio con du tor ou in terpretação m ais geral, creio qu e
o sen tido das opções seria o esboçado: o sen tido problem ático em qu e as
opções foram tom adas, a razão de atitu des pon deradas qu e n ão se devem
apresen tar com o m eras h esitações ou com o pu ro resu ltado dos jogos de
in flu ên cia. Assim poderíam os recon stitu ir a realidade dos debates de qu e
tem os con h ecim en to e descrever a política com o o resu ltado do acaso, da
n ecessidade e da argú cia.
A partir de 1640 Portu gal recu pera a In depen dên cia n o dom ín io
in tern o e n o dom ín io extern o. Poderem os dizer qu e, se as in stitu ições in -
tern as da m on arqu ia se reforçam n o rein ado de D. João IV, em se tratan -
do da corte, tribu n ais su periores, levan tam en to dos gru pos m ilitares para
a gu erra con tin en tal e para a in depen dên cia dos territórios u ltram arin os
com a criação do Con celh o de Gu erra e do Con celh o Ultram arin o, com -
pan h ias de com ércio, vitalização da lín gu a e da cu ltu ra, reafirm ação do
papel das u n iversidade e das gran des in stitu ições religiosas, bem com o
dos cam in h os de u m a arte n acion al, n ão rejeitan do a m odern ização qu e
poderia ter in trodu zido o govern o filipin o, a recu peração da represen ta-
ção extern a do Estado soberan o foi m ais difícil. A Espan h a protestou pe-
ran te as potên cias eu ropéias o caráter de rebelião con tra o rei qu e, n a su a
perspectiva, represen tava a Restau ração de 1640, levan do ao n ão reco-
n h ecim en to do rei de Portu gal pelo próprio papa. A posição espan h ola

116
PORTUGAL E A EUROPA NA ÉPOCA MODERNA

explica qu e, n os Tratados de Westefália de 1648, em qu e se tratou de n e-


gociar e acordar a situ ação eu ropéia após a Gu erra dos Trin ta An os, se de-
bateu o destin o do Im pério Alem ão, se vin cou o su cesso das estratégias
su eca e fran cesa, e em qu e tom aram parte todas as potên cias eu ropéias
salvo a In glaterra, o Tsar e o Tu rco, Portu gal n ão tivesse possibilidade de
creditar agen tes à reu n ião das potên cias católicas, em Mu n ster, ten do-lh e
apen as sido facu ltado figu rar n o séqu ito da Fran ça em Mu n ster e ten do a
Su écia viabilizado o acesso à reu n ião protestan te em Osn abru ck. Portu gal
con segu iu acordos com a Fran ça e com a Holan da em 1641. Mas os agen -
tes diplom áticos portu gu eses eram persegu idos e atacados, sen do m u itas
as dificu ldades postas à su a ação. No en tan to, a Holan da acordava a paz
com a Espan h a em 1648. Portu gal e a Espan h a só acordarão a paz 20 an os
depois, n o Tratado de Madri, após a paz celebrada en tre a Fran ça e a Es-
pan h a, n os Piren eu s, em 1659. Pelo qu e Portu gal voltava-se, de n ovo,
para a In glaterra, n o tem po de Crom well e, depois, com o restau rado rei
Carlos II Stu art. A alian ça de Portu gal com a In glaterra fortalecia-se com
o casam en to da filh a do rei restau rador, D. Catarin a de Bragan ça, com o
rei in glês. Com o cau ção ou dote iam du as praças m arítim as qu e vão ter
especial im portân cia n o Im pério m arítim o britân ico: Tân ger e Bom baím .
Mas tem de se lem brar qu e foi a In glaterra, e n ão a Fran ça, a m ediadora
do Tratado de Paz en tre Espan h a e Portu gal.7
O reforço do regime, a estabilização do regime interno continuava o
seu curso, após a morte de D. João IV, na regência de D. Luísa de Gusmão,
no trágico reinado de D. Afonso VI, sustido pelo escrivão da puridade Conde
de Castelo Melhor, perante as crises de corte, a guerra com Espanha e o não
reconhecimento da monarquia portuguesa pela Santa Sé, talvez, segundo
Joaquim Veríssimo Serrão, o mais difícil caso a resolver nas relações inter-
nacionais, pelas graves conseqüências que acarretava a sua não-solução
tanto em nível interno como externo, com a excomunhão da pessoa do rei
e o não-provimento de cargos eclesiásticos nos territórios portugueses na
Europa e no Ultramar. Na corte portuguesa de D. Pedro II exprimiam-se
opiniões divergentes, favoráveis umas à aproximação com a Inglaterra, ou-
tras ao estreitamento das relações com a França. Mas o certo é que, feita a
paz, conselheiros, elementos do clero e do povo teriam instado D. Pedro a
não tomar parte nas guerras européias. Reforçava-se o desejo de neutrali-
dade e concomitantemente refaziam-se laços políticos com as potências eu-
ropéias. Após o casamento do rei com D. Maria Francisca Isabel de Sabóia,
polarizadora da aproximação com a França de Luís XIV, D. Pedro, viúvo e
sem filho varão, realizava o seu segundo casamento no Império Alemão.
Em relação ao papado, só após a paz de 1668, entre Portugal e Espanha, o
papa Clemente IX promulga um breve prometendo resolver a questão por-
tuguesa que só será normalizada a partir de 1670.8

117
Maria do Rosário Themudo Barata

Poderem os apresen tar u m a visão de sín tese de u m sécu lo qu e foi


design ado, por u m gran de especialista do sécu lo XVII, com o o tem po do
Atlân tico e do Brasil: refiro-m e a Frédéric Mau ro e à su a periodização
1570-1670. Não é de estran h ar qu e, n a gu erra do fin al do sécu lo XVII, e
após u m a aproxim ação da Fran ça, Portu gal irá se aliar à Áu stria e às po-
tên cias m arítim as, à In glaterra e à Holan da, a vários prin cipados alem ães,
à Din am arca e à Sabóia. Tem os de in sistir em qu e, em term os de con ti-
n en talidade, a relação de Portu gal com o Im pério n ão era n ovidade n em
deixará de ser u m a lin h a con stan te pois qu e, ao casam en to de D. Pedro
com D. Maria Sofia de Neu bu rgo, filh a do Con de Palatin o do Ren o, se-
gu e-se o de seu filh o, D. João V, com D. Maria An a de Áu stria, irm ã do
Arqu idu qu e Carlos preten den te ao tron o espan h ol e qu e será o Im pera-
dor Carlos III. Estas relações com o Im pério terão u m am plo sign ificado
político, cu ltu ral e econ ôm ico: basta lem brar, com o exem plo, o qu e re-
presen tou a experiên cia da corte au stríaca para Sebastião José de Carva-
lh o e Melo, o fu tu ro Marqu ês de Pom bal, o célebre m in istro de D. José I.
A im portân cia das relações de Portu gal com o Im pério Alem ão m an tém -
se apesar de e até porqu e, ten do o can didato au stríaco sido ch am ado a su -
ceder n o tron o im perial, foi o can didato Bou rbon qu em veio, fin alm en te,
a ocu par o tron o de Espan h a.
En tretan to, ficara provado qu e a gu erra n ão se podia fazer, in dis-
tin tam en te, n a Eu ropa, sem con seqü ên cias n os territórios da expan são.
Os tratados de Ryswick, qu e de certa form a tin h am sido o corolário da
oposição da Eu ropa à h egem on ia da Fran ça, já o tin h am dem on strado,
in serin do n o seu articu lado cláu su las respeitan tes a zon as de in flu ên cia
n o Ultram ar. Passa-se o m esm o com os tratados fin ais da Gu erra da Su -
cessão de Espan h a: os tratados de Utrech t (1713) e de Rastadt (1715) re-
defin em a situ ação in tern acion al, n a Eu ropa, n a Ásia e n a Am érica. No
Ultram ar, on de os con flitos se tin h am esten dido à Costa da Acádia, à zon a
do Rio de Jan eiro, a Holan da perdia os direitos qu e detivera n os territó-
rios da Baía de Hu dson ; Lon dres ficava com os con tratos de provim en to
de escravos a Espan h a, gan h ava a Acádia, qu e vai ser ch am ada Nova Es-
cócia, os territórios de Port Royal e An ápolis, Hu dson , Terra Nova, S. Cris-
tóvão n as An tilh as. Gan h ava, tam bém , Gibraltar e Min orca n o Mediter-
rân eo. A In glaterra exigia qu e a Fran ça destru ísse a fortificação de Du n -
qu erqu e e in den izava a Fran ça à cu sta da Holan da, dan do-lh e a an tiga
Ilh a Mau rícia, rebatizada Ile de Fran ce. E acordos do m esm o sen tido eram
n egociados n o Ín dico.
Na Eu ropa, a Áu stria reobtin h a territórios n os Países Baixos e n a
Itália, territórios qu e tin h am perten cido ao Im perador Carlos V ( e obtém -
n os à cu sta da Holan da e da Espan h a), voltan do a su rgir, qu er n o Atlân ti-
co qu er n o Mediterrân eo, com o potên cia m arítim a. Sabóia obtin h a para

118
PORTUGAL E A EUROPA NA ÉPOCA MODERNA

seu Du qu e o títu lo de Rei do Piem on te e da Sicília. E o Bran debu rgo obti-


n h a, igu alm en te, o títu lo de rei, con stitu in do-se, assim , o em brião do Rei-
n o da Prú ssia. Portu gal vin cara, en tretan to, os laços políticos e n ão só eco-
n ôm icos com a In glaterra n o Tratado de Meth u en de 1703 e acordava, n o
Brasil (em qu e a Fran ça m an tin h a in teresses n o Maran h ão) o aju stam en -
to da fron teira com a Gu ian a Fran cesa, n o território da foz do Am azon as,
bem com o com a Espan h a n o Rio da Prata. A colaboração de Portu gal n a
política da Gran de Alian ça, posta de lado a h ipótese de apoio ao partido
Bou rbon , defen dida, n ão obstan te, com o altern ativa, n a corte de D. Pedro
II, m otivava a aproxim ação dos in teresses de Portu gal com os in teresses
in gleses, au stríacos e h olan deses. E n esta opção de alian ça tin h a pesado,
n ão só a von tade de afastam en to da alian ça Fran ça-Espan h a, m as tam bém
a procu ra de garan tia para os in teresses u ltram arin os.
Esta é a leitu ra do sen tido das n egociações, n a con ju n tu ra da Gu er-
ra da Su cessão de Espan h a, em qu e Jorge Borges de Macedo in clu i a in -
terpretação do Tratado de Meth u en . Nele tin h a-se prom etido a Portu gal a
cedên cia de algu m as praças espan h olas, com o Badajoz, Albu qu erqu e, Va-
lên cia de Alcân tara, e Tu i, La Gu ardia, Baion a da Galiza e Vigo, além da
Colôn ia do Sacram en to. Os portu gu eses tin h am avan çado em 1706 to-
mando várias praças espanholas. Mas nesse mesmo ano morria D. Pedro II
de Portu gal, m orria o Im perador e o can didato Habsbu rgo ao tron o espa-
n h ol regressava às terras alem ãs e receberia o Im pério. Nos Tratados de
Utrech t e Rastadt Portu gal pediu a con stitu ição de u m a zon a de fron teira
com praças de garan tia en tre Portu gal e Espan h a. Seria a “Barreira” sem e-
lh an te à qu e fora pedida pela Holan da em relação à Fran ça. Mas n ão o
con segu iu . Obteve, isso sim , a Colôn ia do Sacram en to.
In tern acion alm en te, os acordos de Utrech t e Rastadt sign ificavam ,
tam bém , a adm issão de n ovos prin cípios n o direito in tern acion al: a In gla-
terra fazia aceitar a n ova su cessão n a coroa in glesa da Din astia Han over,
con firm ada n a Declaração dos Direitos de 1689, segu n do a qu al o n ovo rei
n ão o era por direito divin o, m as por ju ram en to peran te o parlam en to.
Qu ase qu e con com itan tem en te, n o Im pério, o Im perador Carlos VI regu -
lava a su cessão dos territórios au stríacos por su cessão católica, n a su a filh a
m ais velh a, Maria Teresa, pela Pragm ática San ção de 1713. O Direito In -
tern o ren ovava-se, com o con seqü ên cia, tam bém , dos con flitos in tern acio-
n ais. E an u n ciava-se o con flito u ltram arin o do sécu lo XVIII: a rivalidade
en tre a Fran ça e a In glaterra, en qu an to prossegu iam as pen dên cias en tre
Portu gal e a Espan h a sobre a região Platin a e os lim ites m eridion ais do
Brasil, qu e prossegu em m esm o depois do Tratado de Madri de 1750.
En tretan to, o reforço das relações de Portu gal com Rom a e a plen a
afirm ação do absolu tism o, n a su a feição patern alista, coin cide com o rei-
n ado de D. João V, o Magn ífico. Con siderada com o época áu rea do abso-
lu tism o em Portu gal, teria correspon dido a u m a visão im perial qu e pôs ao

119
Maria do Rosário Themudo Barata

serviço da ação m ecen ática n as artes e n a cu ltu ra os in gressos das riqu e-


zas u ltram arin as em qu e largam en te con tribu iu o ou ro do Brasil, a partir
de 1697. O rei de Portu gal desen volve u m a política de prestígio in tern a-
cion al possibilitada pelo fortalecim en to in stitu cion al e cu ltu ral e pelo
apoio m aterial. As em baixadas portu gu esas ju n to da corte rom an a reto-
mam importância semelhante à que revestira as do tempo de D. Manuel I:
a com prová-lo o fato de o Papa Ben to XIV, solvidas as dificu ldades das re-
lações com a coroa portu gu esa n a 4ª. din astia, ter con ferido a D. João V o
títu lo de Fidelíssim o, em 1748. Era, segu n do Jorge Borges de Macedo, a
Paridade Diplom ática en fim recon qu istada. No dom ín io in tern o, a cidade
de Lisboa progredia com o m ercado de in teresse in tern acion al: o tráfico
u ltram arin o, as m an u fatu ras, as con stru ções u rban as, as academ ias, o es-
plen dor artístico do barroco joan in o referen ciam u m rein ado lon go e
próspero qu e só en trará em declín io com a doen ça do rei. O an o de 1750
será o in ício de u m a n ova época.
O an o de 1750 será, também, u m n ovo marco n as relações in tern a-
cionais, potencializando tendências que eram anteriores. A neutralidade
reassumida no reinado do Magnífico como a melhor defesa balançada das
duas constantes da política portuguesa (a política continental e a marítima)
surgira num novo contexto porque correspondera a um poder realmente
assumido, com capacidades e recursos tanto interna como externamente.
Compreende-se, assim, que a França tivesse evidenciado desconfiança em
relação à neutralidade portuguesa, opondo-se a que Portugal estivesse pre-
sente nas negociações entre a França e a Espanha que decorreram no Con-
gresso de Cambrai de 1721 a 1722, considerando Portugal, sobretudo, co-
mo aliado da Inglaterra, cuja hegemonia marítima temia. Era o tempo do
jogo diplomático da França no reinado de Luís XV. Mas a França, pelo te-
mor da Inglaterra, aproxima-se desta, afastando-se da Espanha, recusando
o casamento de Luís XV com D. Maria Ana Vitória, e preferindo o casamen-
to do seu rei com a filha do rei da Polônia. Voltará, mais tarde, a reaproxi-
mar-se da Espanha. Na altura, porfiava em lutar contra a Áustria e contra
os seus interesses continentais, levantando problemas à sucessão no Impé-
rio de Maria Teresa, acabando, no entanto, por reconhecer que os interes-
ses continentais a levariam a aliar-se à Áustria para vencer a Inglaterra que,
por seu lado, contava no continente com outra aliada, a Prússia.
Du ran te o seu rein ado, D. João V dem on strou , m ais u m a vez, a
von tade de m an ter a n eu tralidade n as qu estões eu ropéias, rebaten do
Lu ís Ferran d de Alm eida as in terpretações qu e con sidera apressadas do
Con de de Carn axide, segu n do o qu al D. João V voltara costas à Eu ropa.
Haveria, sim , a m arcada preferên cia do rei pela dim en são atlân tica e u l-
tram arin a, e n ão con tin en tal, sen do Ferran d de Alm eida e Jorge Borges

120
PORTUGAL E A EUROPA NA ÉPOCA MODERNA

de Macedo con cordes em su blin h ar o crescen te papel estratégico e eco-


n ôm ico do Ocean o e das terras am erican as n o sécu lo XVIII. Ou tro aspec-
to em qu e tam bém in siste Ferran d de Alm eida: D. João V qu ereria con -
ciliar esta política de n eu tralidade com a fidelidade à In glaterra, torn an -
do este ú ltim o pon to u m a con dição in dispen sável para o tratado de n eu -
tralidade com a Espan h a. Nesta estratégia, a am izada fran cesa equ ilibra-
ria o excesso de in flu ên cia in glesa.
In tern acion alm en te, n a Eu ropa, afirm ava-se o m ovim en to con ti-
n en tal de defesa con tra a In glaterra, qu e vai levar à alian ça en tre a Áu s-
tria e a Fran ça e à ação an tibritân ica. O ch an celer au stríaco Kau n itz im -
pu lsion a a alian ça com a Fran ça para com bater a Prú ssia. Em Espan h a, o
m in istro Carvajal am bicion a aproxim ar-se de Portu gal e da In glaterra, ten -
tan do recu perar Gibraltar. A Espan h a tin h a a con vicção qu e cedera peran -
te Portu gal n o Tratado de Madri de 1750, qu an to aos lim ites do Brasil e es-
perava, com a aproxim ação, u m gesto de boa von tade da parte in glesa,
com o diz Borges de Macedo. Peran te esta política desen h ava-se ou tra con -
trária, n a corte de Madri, expressa, en tre ou tros m in istros, por La En señ a-
da, qu e preferia claram en te a alian ça com a Fran ça. E dava-se o caso de
tan to a Fran ça com o a Espan h a qu ererem captar as relações de Portu gal
para fortalecer as respectivas posições m arítim as.
Ao m esm o tem po, n a Fran ça, tan to qu an to n a Áu stria, n a Espan h a
e em Portu gal, n os an os 50 do sécu lo XVIII, debatia-se a n ecessidade de re-
form u lar o regim e. E n esta problem ática se in sere a qu estão essen cial da
im portân cia das reform as de estado n os regim es absolu tos eu ropeu s dos
m eados do sécu lo XVIII, realizadas n a Áu stria e em Portu gal e qu e n ão te-
rão sido con segu idas em Fran ça, aceleran do-se aí os an teceden tes e as m o-
tivações da Revolu ção Fran cesa.
Dá-se, en tão, o qu e a h istoriografia con sagrou com o a Revolu ção
Diplom ática do sécu lo XVIII, n o con ju n to de revolu ções setecen tistas a
qu e perten ce a Revolu ção In du strial e a acim a referida: o Tratado de Ver-
sailles de 1756 con sagra a alian ça en tre a Fran ça e a Áu stria (as du as po-
tên cias con tin en tais tradicion ais opositoras n a época m odern a) a qu e se
ju n tam , n o segu n do Tratado de Versailles, a Rú ssia e a Su écia. Peran te es-
tas potên cias u n em -se a In glaterra e a Prú ssia, n os Tratados de Westm in ster.
Era o com eço da Gu erra dos Sete An os, con tra o Im pério Ultram arin o in glês.
Nesta con ju n tu ra tem a m áxim a im portân cia o ch am am en to de
Portu gal. A n eu tralidade, n o tem po de D. João V, sign ificara in depen dên -
cia e garan tia do Atlân tico. Mas tin h a-se efetu ado o casam en to de D. José,
fu tu ro rei de Portu gal com D. Maria An a Vitória in fan ta de Espan h a, bem
com o o da in fan ta portu gu esa D. Bárbara com o fu tu ro rei de Espan h a Fer-
n an do VI. Desses casam en tos esperava-se, en tre ou tras, a garan tia da

121
Maria do Rosário Themudo Barata

gran deza do Brasil, recon h ecida n o Tratado de Madri de 1750. Os in gleses


atacavam os barcos fran ceses n as costas portu gu esas e a Fran ça pedia sa-
tisfações. A política espan h ola regressava à alian ça com a Fran ça. Form a-
va-se o Pacto de Fam ília, em 1761, e Carlos III de Espan h a era-lh e clara-
m en te favorável. Tal fato con tin h a a obrigação de declarar a gu erra à In -
glaterra. A Espan h a pression a Portu gal a en trar n o Pacto, am eaçan do com
u m a in vasão qu e se dá, efetivam en te, ao tem po em qu e está em Portu gal
o gran de estratega m ilitar Con de de Lippe. Tal ataqu e só será su spen so
porqu e a gu erra geral term in a pelo Tratado de Paris de 3 de fevereiro de
1763. Na n egociação do tratado está presen te u m delegado portu gu ês,
Martin h o de Melo e Castro. Torn a-se claro qu e Portu gal está n o cen tro de
todas as gu erras pelos in teresses estratégicos n a Eu ropa e n o Ultram ar.
O poder de Estado, em Portugal, fortalecia-se ao encontro das neces-
sidades de defesa, no tempo de D. José I e do Marquês de Pombal. Amea-
çadas as relações com a Santa Sé pela luta interna contra o poder da Igre-
ja, as relações são cortadas em 1760, pelas razões do poder iluminista. Mas
anos depois, na seqüência do apelo das monarquias iluminadas contra o
Papado, o Papa extingue a Companhia de Jesus, em 1773. Perante a derro-
ta da Inglaterra que significa a Revolução Americana (mais uma revolução
a juntar à tipologia das revoluções do século XVIII, modelo de revolução
atlântica?), com a vitória dos americanos em Saratoga em 1777 e o Trata-
do com a França em 1778, perfila-se a Neutralidade Armada, em 1782, po-
sição de reserva da Rússia, Suécia, Dinamarca e a que adere Portugal. No
ano seguinte, em 1783, no Tratado de Versailles, dá-se o reconhecimento
internacional da Independência dos Estados Unidos da América.
Mais u m a vez se ren ovam as pressões sobre Portu gal n o qu e diz res-
peito à en trada n a política do Pacto de Fam ília e aos territórios u ltram ari-
n os, con texto em qu e os Tratados de San to Ildefon so de 1777 e do Pardo
de 1778, en tre Portu gal e a Espan h a, con stitu em dim in u ição dos territó-
rios do Brasil. No diferen do en tre a In glaterra e a Am érica, Portu gal qu er
m an ter a n eu tralidade, com o m an ifestou em 1780, resistin do à pressão es-
pan h ola e fran cesa, n ão se declaran do con tra a su a tradicion al aliada.
Na opin ião pú blica portu gu esa o caráter revolu cion ário da Revolu -
ção Fran cesa ficava clarificado. Portu gal procu ra estabelecer u m a u n idade
de ação com a Espan h a e oferece-se, por essa razão, com o m ediador en tre
a Espan h a e a In glaterra. Portu gal defen de a h ipótese de u m a alian ça en -
tre a In glaterra, a Espan h a e Portu gal: u m a proposta de an tecipação se-
gu n do a leitu ra política da con ju n tu ra e qu e preten dia en globar, n u m pla-
n o estratégico com u m , as du as potên cias qu e Portu gal n ão podia ign orar
e qu e in teressava m over, n u m a coligação con tra a Revolu ção Fran cesa.
Era a form a de acau telar, con com itan tem en te, os in teresses con tin en tais e

122
PORTUGAL E A EUROPA NA ÉPOCA MODERNA

os in teresses m arítim os. Mas este projeto foi im possibilitado pela adesão da
Espan h a aos ideais da Revolu ção Fran cesa e à lu ta con tra a In glaterra. As
potên cias con tin en tais, a breve trech o, declaram o Bloqu eio Con tin en tal à
In glaterra. A in vasão de Portu gal ficava, desde en tão, em in en te.
Nesta seqü ên cia, a opção de D. João, prín cipe regen te em n om e de
su a m ãe a rain h a D. Maria I, de em barcar com toda a corte e ru m ar em di-
reção ao Brasil, efetivan do u m plan o apresen tado e discu tido peran te as
dificu ldades políticas portu gu esas desde, pelo m en os, a Restau ração de
1640, teve o plen o sen tido da defesa da soberan ia, correspon deu a u m a
opção respon sável preparada com an terioridade e prova, u m a vez m ais, a
im portân cia qu e o rein o de Portu gal atribu iu à dim en são m arítim a do seu
viver coletivo, n a Idade Modern a, dim en são m arítim a qu e se desen volveu
oferecen do n ovas form as de viabilizar u m a von tade de in depen dên cia e de
m an ter a capacidade de escolh a do próprio regim e in tern o, peran te a pres-
são con tin en tal.
Eis, em sín tese, o qu e se pode con clu ir da avaliação do m odo com o
Portu gal se relacion ou com a Eu ropa n a Idade Modern a.

123
Maria do Rosário Themudo Barata

N OTA S
1. RIBEIRO, O., 1967.
MACEDO, J. B. de, s.d.
CORTESÃO, J., 1940.
2. Esta referên cia aos professores qu e, n as Un iversidades de Lisboa, Coim bra e do Porto, h á
m u ito, se têm em pen h ado n o desen volvim en to dos estu dos h istóricos sobre o Brasil, vem ao
en con tro da preocu pação de José Ten garrin h a de procu rar com preen der, n o h orizon te tem -
poral de seqü ên cia, a política portu gu esa, in clu in do as relações extern as. Ver. TENGARRI-
NHA, J. La historiografía portuguesa en los últimos veinte años. TENGARRINHA, J.; DE LA TOR-
RE, H.; INDJIÉ, T.; VOLOSIUK, O.; ALMODÓVAR, C., 1997.
3. MACEDO, J. B. de Th e Portu gu ese m odel of State Exportation . BLOCKMANS, W., MA-
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5. ALBUQUERQUE, R, de. As regências na menoridade de D. Sebastião. Elem en tos para u m a h is-
tória estru tu ral, v. I-II,Tem as Portu gu eses, Im pren sa n acion al Casa da Moeda, 1992. v.I, p.221
e ss. Neste tratado, en tre Filipe II de Espan h a e Hen riqu e II de Fran ça, são m en cion adas com o
en tidades n ele com preen didas a In glaterra, qu e estabelecera tratados prévios, o Im pério, os
sen h orios flam en gos, borgon h eses, Sabóia (com particu lar relevân cia) e os sen h orios italia-
n os. MOUSNIER, R., 1967. p.432.; ZELLER, G., 1963. p.38-9.
6. É o tem po da ação de João Fern an des Vieira, em Pern am bu co, das du as batalh as dos Gu a-
rarapes, de 1648 e 1649, da Restau ração de An gola, com Salvador Correia de Sá, em 1648,
da capitu lação dos h olan deses em 1654. SERRÃO, J. V., 1994.
7. Aqu i lem braríam os as opin iões de Edu ardo Brazão sobre a perm an ên cia do in teresse da
alian ça en tre Portu gal e a In glaterra, apesar da aproxim ação da Fran ça, da Restau ração de
1640 até à Paz dos Pirin eu s, qu e sign ifica já o aban don o desta ten dên cia. Westefália repre-
sen ta o in teresse das n egociações para os pequ en os Estados, segu n do Jorge Borges de Mace-
do: é a n egociação, m ais do qu e a gu erra o qu e in teressa a Portu gal. MACEDO, J. B. de, s.d.
8. A este respeito dever-se-á lem brar a ação do dom in ican o, bispo e secretário de Estado de
D. Pedro II, D. Fr. Man u el Pereira, Provin cial da Ordem , o 1º Bispo n om eado para o Rio de
Jan eiro, para on de n ão ch egou a partir ten do-lh e sido pedida a con tin u ação dos serviços n a
corte, on de foi o secretário de Estado de el-rei de 1680 atè su a m orte ocorrida em 1688. VAL-
LE, T. L. M. do, 1994.

124
PORTUGAL E A EUROPA NA ÉPOCA MODERNA

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128
capítu lo 8

A CON SOLID A ÇÃ O D A D IN A STIA


D E BRA GA N ÇA E O A POGEU D O
PORTUGA L BA RROCO: CEN TROS
D E POD ER E TRA JETÓRIA S
SOCIA IS (1668-1750)
Nu n o Gon çalo Freitas Mon teiro*

A S LEITURA S RECEN TES D O PORTUGA L RESTA URA D O


Em detrim en to de u m a leitu ra n acion alista do fen ôm en o, a h is-
toriografia recen te, sobretu do An tôn io Hespan h a, 1 em certa m edida, in s-
pirado em Fern an do Bou za, 2 tem acen tu ado n as su as in terpretações da
Restau ração de 1640, n om eadam en te qu an to aos seu s m óbeis e às su as
etapas in iciais, a dim en são de restau ração con stitu cion al. Defen de-se, as-
sim , a idéia de qu e n o seu despoletar pesou prim acialm en te a in ten ção
de defen der as in stitu ições tradicion ais do rein o, atacadas pelo reform is-
m o da política do Con de-Du qu e de Olivares (rein ado de Filipe III de Por-
tu gal (IV de Espan h a), 1621-1640) qu e pôs em cau sa o estatu to do rei-
n o recon h ecido n as Cortes de Tom ar de 1581. Cu riosam en te, redesco-
briu u m a orien tação já an tes apon tada por au tores de in spiração in tegra-
lista, em particu lar por Gastão de Melo Matos, qu e n os prim eiros m o-
m en tos da Restau ração situ avam u m ressu rgim en to do pen sam en to po-
lítico tradicion al an ti-absolu tista. 3 A in discu tível revitalização das in sti-
tu ições tradicion ais n aqu ele con texto, bem in diciada pela freqü ên cia
com qu e en tão se reu n iram Cortes (1641, 1642, 1646 e 1653), n ão pode
fazer esqu ecer, n o en tan to, a len ta evolu ção das form as políticas n u m
sen tido aparen tem en te con traposto. De fato, passada a con ju n tu ra de
gu erra e de in ten sa dispu ta política faccion al, associada a episódios tão
em blem áticos com o o da ascen são e qu eda do valido Castelo Melh or, os
m odelos políticos qu e vão triu n far parecem afastar-se n otoriam en te do
plu ralism o corporativo aparen tem en te prevalecen te n os an os im ediata-
m en te posteriores à en tron ização dos Bragan ça.
Con tra u m a im agem de con tin u idade, procu ra-se aqu i su gerir qu e
a Restau ração represen tou u m a efetiva viragem . Na verdade, os seu s efei-
tos a m édio e lon go prazo, design adam en te qu an do a n ova din astia se es-
tabilizou em 1668 (paz defin itiva com Espan h a), foram relevan tes, corres-

129
Nuno Gonçalo Freitas Monteiro

pon den do a u m a n ova con figu ração dos cen tros de poder, qu e se tradu ziu
em diversos m ecan ism os de estru tu ração das elites sociais. A prim eira in -
ten ção deste texto será, precisam en te, dar con ta dessas m u tações. Sim u l-
tan eam en te, procu rar-se-á iden tificar a evolu ção das con ju n tu ras e das
form as de exercício do poder n o cen tro político da m on arqu ia, articu lan -
do-as com as dim en sões an tes referidas. A an álise política m ais detalh ada
abran gerá a etapa com preen dida en tre 1668 e o adven to do pom balism o
em m eados de 1700.
A propósito do período con siderado (grosso m odo o qu e term in a
com a m orte de D. João V), tem -se falado do Portu gal Barroco. Neste par-
ticu lar, im porta recordar, apesar das m u itas reservas qu e se lh e podem co-
locar, o qu adro particu larm en te en fático da “organ ização social e estilo de
vida” do Portu gal Barroco traçado por Jaim e Cortesão,4 on de o casticism o
e a cristalização social são tôn icas dom in an tes.

D . PED RO II REGEN TE E REI (1668-1706):


A CON SOLID A ÇÃ O D A D IN A STIA D E BRA GA N ÇA 5

O período em an álise foi atravessado por profu n das descon tin u i-


dades políticas. De fato, sem en trar sequ er em lin h a de con ta com as
Cortes qu e se reu n iram ain da qu atro vezes (1668, 1673, 1679 e 1697),
a regên cia e rein ado de D. Pedro II caracterizar-se-ão por u m m odelo de
fu n cion am en to da adm in istração cen tral qu e se prolon gará ain da pelos
prim eiros an os do rein ado de D. João V, m as qu e con trasta radicalm en -
te com o qu e foi adotado desde, pelo m en os, 1720, qu an do o rei passou
a despach ar com os seu s su cessivos secretários de Estado, em larga m e-
dida à m argem dos con celh os, ou m elh or, do Con celh o de Estado, qu e
parece ter con stitu ído o órgão cen tral da adm in istração em todo o perío-
do an terior.
Ao con trário dos ciclos políticos an teceden tes, a regên cia e o rei-
n ado de D. Pedro II (1648-1706) n ão foram objeto de in vestigação h is-
toriográfica recen te. Deste período ain da relativam en te obscu ro, apesar
da profu são de fon tes n arrativas de excepcion al qu alidade legadas pela
própria época, 6 a posteridade reteve, sobretu do, a deposição do irm ão do
regen te e o u lterior casam en to deste com a cu n h ada (1668) D. Maria
Fran cisca Isabel de Sabóia (1646-1683), depois de u m escan daloso pro-
cesso de an u lação do m atrim ôn io, baseado em testem u n h os sobre a su a
n ão con su m ação. 7 Já n este sécu lo, veio a valorizar-se a atu ação em m a-
téria de proteção à in dú stria do 3º. Con de da Ericeira (1632-1690), vedor
da Fazen da en tre 1675 e 1690. Im agen s difu sas, portan to, as qu ais n ão
parecem su ficien tes para esboçar u m a caracterização política do ú ltim o

130
A CONSOLIDAÇÃO DA DINASTIA DE BRAGANÇA E O APOGEU DO PORTUGAL BARROCO

terço do Portu gal seiscen tista. Existem , n o en tan to, algu m as vias cu ja
exploração poderá perm itir u m a leitu ra política m ais in tegrada de u m
período a vários títu los relevan te.
Um a delas é a iden tificação da esfera do político n o con texto con -
siderado. Tem-se destacado, em algumas contribuições recentes, que a atu -
ação da adm in istração cen tral n o An tigo Regim e se en con trava lim itada a
esferas bem restritas, e, além disso, im pregn ada por u m a cu ltu ra política
voltada sobretu do para con servação. Mesm o em m atérias de graça as de-
cisões seriam dom in adas pelo paradigm a ju risdicion alista,8 de acordo com
o qu al o fim ú ltim o do “bom govern o” é a “ju stiça”, en ten dida com o dar
a cada u m o seu lu gar. No en tan to, as fon tes n arrativas da época perm i-
tem iden tificar com clareza a existên cia de u m a esfera bem defin ida da po-
lítica, da dispu ta política e da decisão política. De form a abreviada, essa es-
fera pode resu m ir-se aos segu in tes tópicos: n om eação de pessoas para os
cargos e ofícios su periores, rem u n eração de serviços (m ercês), decisão fi-
n al sobre con ten das ju diciais especialm en te relevan tes, política tribu tária
e alin h am en tos políticos extern os (in clu in do a gu erra), para além , n a con -
ju n tu ra estu dada, do problem a específico dos cristãos-n ovos. A todas estas
dim en sões dever-se ia acrescen tar m ais u m a: a form a e o qu adro in stitu -
cion al on de tin h am lu gar os despach os régios. Fora das áreas referidas, n ão
h avia lu gar para “políticas” sistem áticas e con tin u adas. Era u m a esfera li-
m itada, m as qu e correspon dia aos restritos recu rsos, dim en são e com pe-
tên cias da adm in istração cen tral.
Na perspectiva referida, o ciclo político in iciado com os episódios tu -
m u ltu osos do afastam en to do valido Castelo Melh or (1667) e da deposi-
ção de D. Afon so VI possu i algu m as características de con ju n to qu e clara-
m en te o diferen ciam . Em prim eiro lu gar, abre-se u m a con ju n tu ra de acal-
m ia bélica, com o estabelecim en to da paz defin itiva com Espan h a (1668),
qu e viria a ser in terrom pida precisam en te pou cos an os an tes da m orte de
D. Pedro (1703). De resto, é n esta altu ra qu e se estabilizam os alin h am en -
tos políticos extern os da din astia. Em segu ida, a dispu ta política, em bora
sem pre presen te, deixa de revestir a dim en são fortem en te polarizada qu e
assu m ira n a fase an terior. Não só a lu ta faccion al parece m ais aten u ada,
exclu in do agora a elim in ação daqu eles qu e a perdem , com o o papel arbi-
tral da figu ra real su rge com u m a preem in ên cia in dispu tada. Decisiva é a
con solidação da din astia, con segu ida n ão apen as através da paz extern a e
da reposição do dom ín io sobre as su as possessões colon iais,9 m as tam bém
por via dos várias disposições qu e assegu ram a defin ição dos m ecan ism os
de su cessão à coroa, qu e adian te se referirão. Por fim a política de m ercês
sofre u m a in flexão de extrem a im portân cia, bem in diciada pelo fato de o
n ú m ero de títu los criados en tre 1670 e 1700 correspon der a m en os da m e-
tade dos con cedidos n os 30 an os an teriores. O qu e sign ifica, com o adian -

131
Nuno Gonçalo Freitas Monteiro

te se verá, qu e a elite aristocrática do regim e brigatin o, bem com o m u itas


das prin cipais com pon en te da sociedade de Corte, se cristalizam precisa-
m en te du ran te a regên cia e rein ado de D. Pedro II.
Em sín tese, abre-se u m ciclo qu e é, a diversos n íveis, de estabilida-
de política in tern a e extern a. Um a estabilidade qu e n em as dificu ldades fi-
n an ceiras, só defin itivam en te debeladas com o au ge do Brasil n o in ício do
sécu lo XVIII, n em as pertu rbações geradas pela atu ação do San to Ofício,
con segu irão pertu rbar. De resto, esta n ova con ju n tu ra coin cide n a adm i-
n istração cen tral com o retorn o a u m m odelo bem defin ido de tom ada das
decisões políticas. É esta a segu n da ch ave qu e se pode propor para a com -
preen são deste período.
Sobre essa m atéria, foi precisam en te o discu rso oficial pom balin o,
em pen h ado en tre ou tras coisas em reabilitar Castelo Melh or, a produ zir
u m a das raras im agen s fortes da con ju n tu ra aqu i estu dada, em bora pou -
cas vezes com en tada. Na celebérrim a Dedução cronológica e analítica, diz-se
a propósito da atu ação dos jesu ítas n a deposição de D. Afon so VI e n a re-
gên cia e rein ado de D. Pedro II (1667-1706): “... depois de h averem aca-
bado de destru ir a Mon arqu ia, passaram logo a su prim ir a Dem ocracia, e
a redu zir todo o Govern o de Portu gal, e seu s Dom in ios a h u m a aparen te
Aristocracia; a qu al n ão ten do ou tra Ju rispru dên cia, e ou tra Moral, qu e
n ão fossem as dos m esm os Regu lares ... veio a redu zir-se em su m a ao dis-
potism o do absolu to Sinédrio Jesuítico”.10 Mas tam bém n a con su lta do De-
sem bargo do Paço qu e precedeu o Alvará de 5 de ou tu bro de 1768 con tra
as casas pu ritan as, acu sadas de exclu írem as ou tras das su as alian ças m a-
trim on iais por as con siderarem con tam in adas por san gu e in fecto: “Assim
arru in aram os ditos Pu ritan os o tron o desta Mon arqu ia; assim levan taram
sobre as Ru ín as dela a façan h osa Aristocracia qu e du rou todo o Reyn ado
de Sen h or Dom Pedro II; e ain da por m u itos an os do Govern o do Sen h or
Rey Dom João V com ou tros estragos dos Cabedais, das forças, e da Repu -
tação desta Coroa, e dos Vassalos dela, qu e ain da se estão fazen do presen -
tes aos olh os dos qu e h oje vivem os”.11 Em sín tese, retom an do as catego-
rias de políticas do pen sam en to clássico, o discu rso pom balin o iden tifica-
va a regên cia e o rein ado de D. Pedro II e parte do de D. João V com o u m
período de govern o aristocrático.
As fon tes da h istória política do período parecem , em geral, corro-
borar essas im agen s. Depois do afastam en to do govern o do valido Caste-
lo Melh or, rein stau ra-se o “govern o dos con celh os” (tribu n ais) cu jo cen -
tro é o Con celh o de Estado on de se preparam todas as decisões sobre m a-
térias politicam en te im portan tes, “tan to as dom ésticas, com o as relativas
ao estran geiro”,12 pois “n ão existe prim eiro m in istro em Portu gal: é aos
Con selh eiros de Estado qu e se ch am a m in istros”.13 Essa cen tralidade po-
lítica m an teve-se até ao rein ado joan in o (a ú ltim a n om eação de con se-

132
A CONSOLIDAÇÃO DA DINASTIA DE BRAGANÇA E O APOGEU DO PORTUGAL BARROCO

lh eiros parece ter sido em 1704 14). No Con celh o de Estado, n este rein a-
do,15com o n os an teceden tes,16 qu ase só têm lu gar os Gran des e filh os ecle-
siásticos de Gran des. De resto, m on opolizan do as presidên cia dos tribu -
n ais, a prin cipal aristocracia do regim e terá tido n este período u m papel
de lideran ça política direta praticam en te in dispu tado.17 Aliás, apesar do
estatu to social de Castelo Melh or, o afastam en to do valido su scitou em
Portu gal, tal com o em Espan h a pela m esm a altu ra,18 a adesão de larga
m aioria dos m em bros da prim eira n obreza: “saiu de su a casa o In fan te,
com tu do qu an to h avia de títu los e sen h ores n a Corte … e en trou n o
Paço, on de n esta ocasião se en con travam 1.400 h om en s, a flor da n obre-
za da Corte”.19 An os depois, a Gu erra da Su cessão de Espan h a (1703-
1713) represen taria para Portu gal, de acordo com todas as fon tes con h e-
cidas, a expressão paradigm ática e, provavelm en te, derradeira, de u m a
Gu erra aristocrática, on de os fidalgos levan tavam h om en s e os Gran des
dispu tavam m ais ou m en os tu m u ltu osam en te todos os com an dos m ilita-
res e, tam bém , as m ercês correspon den tes.
Os con flitos en tre facções da Corte n este período, com o de resto n o
sécu lo su bseqü en te, parecem ter sido determ in ados, em larga m edida, pela
prioridade con ferida aos alin h am en tos políticos extern os. Den tro desses
parâm etros, Castelo Melh or represen taria o “partido in glês” e o seu afas-
tam en to o m om en tân eo triu n fo do “partido fran cês”. Ao con trário do qu e
algu m as vezes se tem su gerido e do qu e in sin u avam os correspon den tes
diplom áticos fran ceses, n ão existiria propriam en te u m gru po estável de-
fen sor da in tegração em Espan h a, iden tificado com os sequ azes do valido
de D. Afon so VI, n em u m a correspon dên cia perm an en te en tre m odelos de
regim e político e alin h am en tos extern os.20 De resto, o “partido fran cês”,
apesar dos seu s sólidos apoios, seria su cessivam en te derrotado em 1668,
com o estabelecim en to da paz, qu e procu rou adiar, e em 1687, qu an do
D. Pedro II se casou pela segu n da vez com a prin cesa Maria Sofia de Neu -
bou rg, filh a do eleitor palatin o do Ren o, e n ão com u m a prin cesa fran ce-
sa. Apesar das pressões con trapostas, pode se dizer qu e de form a con sis-
ten te prevaleceu até a Gu erra da Su cessão de Espan h a u m a prioridade
atlân tica, apoiada n a estabilidade das relações com a In glaterra, e u m re-
lativo distan ciam en to em relação aos con flitos n a Eu ropa, on de o rein o
obtivera já o seu plen o recon h ecim en to.21
É de fato para o Atlân tico e para o Brasil qu e se dirigem , de form a
prioritária as aten ções da política portu gu esa n este período. As ten tativas
de m in orar os efeitos dos tratados com erciais pós-Restau ração dar-se-ão
in icialm en te n u m a con ju n tu ra m arcada ain da pela qu ebra n a econ om ia
açu careira. Som en te em m eados de 1690, n a derradeira década do rein a-
do, a descoberta do ou ro brasileiro se com bin ará com u m a rápida expan -
são econ ôm ica da colôn ia, qu e atin girá as su as expressões m ais espectacu -

133
Nuno Gonçalo Freitas Monteiro

lares já du ran te o lon go rein ado joan in o. O exito da Restau ração n a gran -
de colôn ia da Am érica do Su l e o seu u lterior in crem en to con stitu irão u m a
base fu n dam en tal para a con solidação da din astia brigan tin a.22
Num período caracterizado pelo restabelecimento de antigas formas
de governo e pela escassa produção legislativa e inovação tributária, pode
parecer surpreendente que tenha surgido uma das primeiras tentativas de
fomento industrial, protagonizada pelo 3º. Conde de Ericeira e teorizada, ao
que parece, por Duarte Ribeiro de Macedo. Trata-se, de fato, de uma inicia-
tiva tipicamente mercantilista, que responde a uma conjuntura de desequi-
líbrio da balança comercial e das finanças da monarquia e que se esgota
quando essa conjuntura é ultrapassada. Leis anti-sumptuárias, pragmáticas,
lançamento de fábricas e importação de mão-de-obra qualificada são, afi-
nal, os ingredientes característicos desse tipo de intervenções. Em todo o
caso, a fundação de fábricas de tecidos no Fundão, na Covilhã, e em Porta-
legre lançariam sementes de uma implantação industrial duradoura.23
Mas os ritm os da vida política seriam , em larga m edida, balizados
pelo problem a sem pre decisivo de garan tir a con tin u idade da coroa do rei-
n o, até porqu e as opções sobre a m atéria con dicion avam as alian ças exter-
n as. As cortes de 1668 foram con vocadas para a deposição de D. Afon so,
repu tado in capaz, acaban do o In fan te D. Pedro por se proclam ar regen te,
e n ão rei, com o algu n s preten deram . As de 1673-1674 para ju rar com o
presu n tiva h erdeira a filh a n ascida do seu casam en to com a cu n h ada,
D. Isabel Lu ísa. As de 1679 para derrogar as ch am adas atas das Cortes de
Lam ego qu e coibiam o casam en to da jovem su cessora com u m prín cipe
estran geiro. As de 1697-1698, u m a vez m ais, para derrogar aqu ela qu e era
repu tada a “lei fu n dam en tal do rein o”, perm itin do a su cessão de u m filh o
de irm ão de rei sem n ecessidade de con vocar n ovas Cortes. Con sagravam ,
assim , a su cessão do Prín cipe D. João, prim ogên ito do segu n do casam en -
to de D. Pedro II, n elas, aclam ado, de resto, com o h erdeiro. As Cortes reu -
n iam -se, desta form a, para n ão terem de ser de fu tu ro con vocadas. Com
efeito, as retificações con stitu cion ais qu e in trodu ziram vieram a dispen sar,
du ran te m ais de u m sécu lo, a su a reu n ião.
Pelo que se conhece, até as últimas Cortes convocadas não deixou de
se exercer o direito de petição.24 De resto, questões como as do perdão aos
cristãos-novos transformaram algumas destas reuniões, como as de 1673-
1674, em momentos de turbulência política, tanto mais que até a sua mor-
te (1683) se sucederam as conspirações (1672) ou os simples rumores fa-
voráveis ao retorno de D. Afonso VI. No entanto, a verdade é que o plura-
lismo da iniciativa política dos diversos corpos se foi restringindo cada vez
mais. O fim do século distingue-se já fortemente, nessa matéria, da relati-
va efervescência, por exemplo, das Cortes de 1641. Gradualmente, vão sen-
do cada vez menos as instituições que se exprimem publicamente.

134
A CONSOLIDAÇÃO DA DINASTIA DE BRAGANÇA E O APOGEU DO PORTUGAL BARROCO

De fato, poder-se ia afirm ar, com algu m arrojo, qu e ao n ível da le-


gitim ação da realeza, a Corte ten de a su bstitu ir-se às Cortes. Nu m a an áli-
se detalh ada do cerim on ial, fácil é apreen der com o au tos de aclam ação se
con fu n dem já com as ú ltim as Cortes. As Cortes de 1697-1698 foram , so-
bretu do, o ju ram en to do prín cipe su cessor, e o seu ritu al con fu n dia-se com
o qu e teve lu gar, u m a década depois, aqu an do do “levan tam en to, e ju ra-
m en to” do próprio com o rei, bem com o com os dos su bseqü en tes m on ar-
cas portu gu eses. Em todos esses atos, pon tificava a “prim eira n obreza” e
os prin cipais dign itários civis e eclesiásticos da m on arqu ia.25

O REIN A D O D E D . JOÃ O V (1706-1750): O A POGEU


D O PORTUGA L BA RROCO

Em con traste com o preceden te, o rein ado de D. João V, ain da m ais
lon go do qu e o de seu pai, ficou registrado em ton alidades fortes e carre-
gadas por su cessivas gerações de h istoriadores, escritores e pu blicistas qu e
sobre ele recorren tem en te escreveram . Os efeitos do Tratado de Meth u en
(1703), o ou ro de Brasil, Mafra, as cam pan h as pela elevação ju n to de San -
ta Sé, e, en fim , a própria im agem do rei “beato” e “lú brico”, n as palavras
m ordazes de Oliveira Martin s, são apen as algu n s dos tópicos em torn o dos
qu ais se con stru íram as im agen s póstu m as do período joan in o. Já n o sé-
cu lo XX, discu rsos políticos divergen tes viriam a con trapor polêm ica e rei-
teradam en te a im agem de D. João V (1689-1750) e da su a época à do
Marqu ês de Pom bal e do seu con su lado.
O rein ado do ou ro prin cipiou sob o sign o da Gu erra e da escassez.
A participação de Portu gal n a Gu erra da Su cessão de Espan h a ficou assi-
n alada por u m a oscilação in icial, qu e fez com se qu e se passasse do apoio
ao preten den te fran cês para a alian ça com o can didato au stríaco, apoiado
pela In glaterra. É n o qu adro deste n ovo alin h am en to qu e é assin ado o Tra-
tado de Meth u en com a In glaterra (1703) e qu e, depois da aclam ação for-
m al do jovem m on arca (1707), se celebra o seu casam en to com u m a prin -
cesa au stríaca, D. Marian a de Áu stria (1708). Qu alqu er qu e seja o balan -
ço fin al qu e se faça dos tratados de Utrequ e (1713) e de Rastadt (1714), o
rescaldo do en volvim en to de Portu gal n este gran de con flito eu ropeu pa-
rece ter sido a con solidação da opção atlân tica e da alian ça com a In glater-
ra, a potên cia m arítim a dom in an te.
Na verdade, os m ais espetacu lares in vestim en tos diplom áticos do
rein ado, desde logo pelo fau sto das en tradas dos en viados diplom áticos, ti-
veram lu gar n o cen ário con tin en tal da Eu ropa, apesar das pertu rbações
qu e freqü en tem en te assin alaram as relações de Portu gal com essas potên -
cias. Com a Fran ça, on de se en viaram fau stosas em baixadas, as relações

135
Nuno Gonçalo Freitas Monteiro

diplom áticas estiveram in terrom pidas en tre 1722 e 1730. Com a Espan h a,
apesar dos casam en tos cru zados de 1728 do Prín cipe D. José com D. Ma-
ria An a Vitória e de D. Fern an do de Espan h a com a in fan ta portu gu esa D.
Maria Bárbara, ch egou a ser declarado o estado de gu erra em 1735-36 e a
ser solicitado o au xílio britân ico, só se con sagran do a paz defin itivam en te
em 1737. De resto, as relações com o poderoso vizin h o ibérico, sem pre
m arcadas pelo tem or da in tegração, foram em larga m edida determ in adas
du ran te este período pelos problem as decorren tes das possessões colon iais
da Am érica do Su l, adian te referidos. No en tan to, n a Eu ropa o gran de in -
vestim en to joan in o em m atéria diplom ática foi a con qu ista da paridade de
tratam en to com as ou tras gran des potên cias católicas n o seu relacion a-
m en to com a San ta Sé, à sem elh an ça do qu e ocorria an tes de 1580. Um
processo caro, m oroso e arrastado n o tem po, qu e n ão exclu iu , sequ er, a
ru ptu ra das relações diplom áticas en tre 1728 e 1732, e qu e certam en te so-
brestim ava a cen tralidade política do Papado. Mas qu e, em term os gerais,
alcan çou os objetivos visados. Se o padroado n o Orien te n ão foi plen a-
m en te recon qu istado, a atribu ição da dign idade de igreja e basílica patriar-
cal em qu e se em pen h ou com êxito o Marqu ês de Fon tes (1716) e, m ais
tarde, a atribu ição da dign idade cardin alícia ao Patriarca de Lisboa Ociden -
tal (1737), o recon h ecim en to do direito de apresen tação dos bispos pelo
m on arca portu gu ês (1740) e a atribu ição a este do títu lo de Rei Fidelíssi-
m o (1748) con sagraram o triu n fo de u m dos m ais sistem áticos in vesti-
m en tos diplom áticos da h istória portu gu esa.26
A gran de prioridade, porém , foi sem pre o Brasil, a defesa das su as
rotas e a defin ição e proteção das su as fron teiras. Em bora os feitos portu -
gu eses n o Orien te fossem celebrados com in u ltrapassáveis en côm ios e
para lá se en cam in h assem com o vice-reis algu n s dos m ais destacados fidal-
gos do rein o já n a década 1740 (Marqu eses do Lou riçal, de Castelo
Novo/ Alorn a e de Távora), a verdade é qu e desde 1736 (vice-rein ado do
1º Con de de San dom il) qu e a presen ça portu gu esa n a Ín dia en trara n u m a
fase de irreversível declín io. O Brasil, pelo con trário, registrava u m m o-
m en to de gran de prosperidade econ ôm ica e de apreciável crescim en to de-
m ográfico, n ele se an coran do, em larga m edida, o equ ilíbrio fin an ceiro da
m on arqu ia. Com o afirm ava o velh o Du qu e de Cadaval em 1715, “do Bra-
zil depen de h oje absolu tam en te m u ita parte da con servação de Portu -
gal”.27 As relações com a Espan h a foram , de resto, sem pre con dicion adas
pelo problem a da defin ição das fron teiras do Brasil, sobretu do com a re-
gião do atu al Uru gu ai. O Tratado de Madri de 1750, ao qu al se costu m a as-
sociar o n om e do seu prin cipal n egociador portu gu ês Alexan dre Gu sm ão,28
forn eceu u m a solu ção provisória à qu estão, pois qu edava por solu cion ar o
problem a dos territórios sob a tu tela da Com pan h ia de Jesu s. A solu ção fi-
n al só se viria a con h ecer já n o período pom balin o.

136
A CONSOLIDAÇÃO DA DINASTIA DE BRAGANÇA E O APOGEU DO PORTUGAL BARROCO

Um a ou tra dim en são essen cial do lon go rein ado joan in o foi a cen -
tralidade qu e veio a assu m ir a Corte e as relações n o seu in terior. Se, com o
adian te se su blin h ará, a defin itiva fixação de toda a alta n obreza n a Cor-
te/ Lisboa é u m dos resu ltados visíveis da Restau ração, qu e tão fortem en te
con trastam com o in ício do sécu lo XVII, se a cristalização da elite do regi-
m e se detecta claram en te já n o rein ado de D. Pedro II, cou be ao período
joan in o reform u lar os ritu ais da Corte, redefin ir a su a h ierarqu ia de pre-
cedên cias e afirm á-la com u m a visibilidade sem preceden tes próxim os. Al-
gu n s dos prin cipais con flitos qu e têm lu gar n o prim eira fase do rein ado de-
correm den tro do u n iverso cu rial e resu ltam precisam en te da m odificação
dos estatu tos n o seu in terior, e n ão da su a com posição. Resu ltado direto
da elevação da capela real a patriarcal (1716), a qu estão de precedên cias
en tre os côn egos da Patriarcal e os Con des é apen as o m ais con h ecido dos
n u m erosos en fren tam en tos qu e en tão se registram , e qu e ch egaram a in -
clu ir u m a ação con ju gada das dam as do paço. A célebre lei dos tratam en -
tos de 1739 testem u n h a de form a con clu den te o esforço de reclassificação
desse u n iverso fortem en te h ierarqu izado qu e en tão tem lu gar. Mas os vá-
rios episódios de con fron to en tre os m agistrados reais e os Gran des, dos
qu ais resu ltaram vários degredos de aristocratas, o m ais con h ecido dos
qu ais teve lu gar em 1728, m as qu e teve ain da vários su cedân eos até o in í-
cio do rein ado de D. José,29 m ostram com o esse claro esforço de im posição
da disciplin a n a vida da Corte se n ão pode dissociar da afirm ação da su pre-
m acia régia. E, n o en tan to, a n om eação dos prin cipais ofícios e a política
de m ercês, cada vez m ais con fin adas a esse u n iverso social, in stitu cion al e
sim bolicam en te restrito, n ão deixaram de con tin u ar a revestir u m a apre-
ciável m argem de n egociação.30
Aspecto essen cial da Corte joan in a foi a afirm ação da su a in dispu -
tada cen tralidade cu ltu ral. Expressão em blem ática deste período, Mafra foi
apen as a tradu ção m ais visível du m con tín u o in vestim en to cu ltu ral e ar-
tístico,31 qu e se con su bstan ciou n a im portação sistem ática de n u m erosos
artistas e m ú sicos italian os, bem com o n a en com en da direta de trabalh os. 32
O au ge da cu ltu ra barroca em Portu gal expressar-se-á tam bém , n ão só n as
diversas academ ias literárias, cu ja expan são vem de trás, m as ain da n a
fu n dação da Real Academ ia da História, em 1722. A im pressão, periódica
e ou tra, con h ecerá tam bém du ran te o período joan in o u m a apreciável ex-
pan são, geralm en te su bestim ada. A dim en são de represen tação espetacu -
lar do poder real tem sido m u itas vezes destacada com o u m a das m arcas
sin gu lares do período joan in o.33 Mas n ão deve fazer esqu ecer o olh ar fre-
qü en tem en te crítico expresso, n ão só por viajan tes do Norte qu e visitavam
a Pen ín su la católica, m as ain da em escritos de portu gu eses. Regressado das
cortes fran cesa e espan h ola, o jovem 4º Con de de Assu m ar n ão deixava de
se ch ocar com a parcim ôn ia da corte portu gu esa já n o fin al do rein ado joa-

137
Nuno Gonçalo Freitas Monteiro

n in o: “n ão h á divertim en tos n em sociedade”; “depois de ter con h ecido El-


rei de Fran ça e o de Castela assim o qu e presen tem en te rein a com o o an -
teceden te de qu em recebi m il h on ras coisa n en h u m a m e fez tan ta espécie
n a n ossa terra com o a au steridade do(s) n ossos Prín cipes, m as isso atribu o
eu à pequ en ez do rein o”.34
De fato, algu m as das expressões m ais n otórias de crítica à sociedade
portu gu esa joan in a foram produ zidas por m em bros da elite política com
experiên cia de ou tros cen ários in tern acion ais, aos qu ais a posteridade veio
a dar, algu m as vezes, a design ação polêm ica de “estran geirados”.35 No en -
tan to, será difícil en con trar u m pen sam en to articu lado e sistem ático ou
parâm etros con ceptu ais com u n s em person agen s com o o célebre diplom a-
ta D. Lu ís da Cu n h a 36 ou o Alexan dre Gu sm ão. Além disso, parece im pos-
sível dem on strar qu e estes au tores, dos qu ais se con h ecem escassos e dis-
persos escritos, form assem u m a corren te de opin ião com expressão políti-
ca faccion al. A in discu tível m odern ização cu ltu ral deste período n os dom í-
n ios artístico e arqu itetôn ico, só m u ito lim itadam en te existiu n ou tros ter-
ren os, em obras com o da Martin h o de Men don ça de Pin a Proen ça e Lu ís
An tôn io Vern ey. De resto, as propostas de in ovação têm qu ase sem pre lu -
gar n o in terior da restrita elite política, com o se disse, e recorren do às for-
m as de expressão características deste período.
Em nível de administração central, com efeito, o reinado de D. João V
represen tou u m a gran de m u tação silen ciosa.37 Até cerca de 1723, a idéia
de reu n ir as Cortes parece ain da sobreviver, m as depois vai cain do gra-
du alm en te n o esqu ecim en to. O Con celh o de Estado, an tes o cen tro da de-
cisão política, parece ter deixado de se reu n ir desde os an os vin te.38 Assis-
tido pelo Secretário de Estado Diogo de Men don ça Corte Real, o rei des-
pach a geralm en te depois de con vocar ju n tas com u m a com posição variá-
vel. Na seqü ên cia da m orte de Diogo de Men don ça (1736), tem lu gar a re-
form a das Secretarias de Estado, sen do por in erên cia os três secretários
m em bros do Con celh o de Estado.39 No en tan to, está-se ain da lon ge da
con stitu ição de au tên ticas secretarias (os fu tu ros m in istérios), processo
qu e só terá lu gar m u ito m ais tarde. Até su a m orte (1747), o rei despach a
frequ en tem en te com o Secretário de Estado do Rein o, Cardeal da Mota,
em bora n em m esm o isso con stitu a regra in variável. Sem qu e n en h u m de-
les tivesse o títu lo de m in istro assisten te ao despach o, ou tros person agen s,
com o o Cardeal e In qu isidor-Mor D. Nu n o da Cu n h a, Frei Gaspar da En -
carn ação ou o sim ples secretário particu lar Alexan dre Gu sm ão podiam as-
sistir o m on arca n as su as decisões. E, de fato, a docu m en tação con h ecida
su gere qu e, qu an do n ão estava en ferm o, o m on arca se em pen h ava pes-
soalm en te de qu ase todos os assu n tos qu e su biam a despach o, con h ecen -
do-os com su rpreen den te porm en or.40 De resto, h á ten sões n o in terior da
elite política e religiosa da época qu e m arcam a ú ltim a fase do rein ado joa-

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A CONSOLIDAÇÃO DA DINASTIA DE BRAGANÇA E O APOGEU DO PORTUGAL BARROCO

n in o, design adam en te as su scitadas pelo problem a do m ovim en to religio-


so dos ch am ados jacobeu s,41 cu jas im plicações políticas ain da são m al co-
n h ecidas.
Este in equ ívoco declín io do “govern o dos con celh os e tribu n ais”
com bin ou -se, tam bém , com u m in discu tível reforço da adm in istração pe-
riférica da coroa.42 No en tan to, esses n ovos in stru m en tos n ão são ain da po-
ten ciados. A produ ção legislativa do rein ado foi redu zida e m u ito localiza-
da n o tem po. A n om eação de ofícios e a rem u n eração dos serviços, para
além da política exterior, con tin u aram a absorver a m aior parcela das
aten ções do cen tro político do rein o. As reform as sistem áticas estavam
ain da para vir. De resto, n os ú ltim os an os do rein ado, a m orte do cardeal
da Mota e a doen ça do m on arca parecem ter paralisado, em larga m edida,
a adm in istração cen tral e reacen dido a lu ta de facções, peran te o apaga-
m en to da figu ra do m on arca.

A CORTE, A RESID ÊN CIA D A PRIN CIPA L N OBREZA E


A CON CEN TRA ÇÃ O D A S HON RA S E D ISTIN ÇÕES

Não vam os aqu i discu tir todas as possíveis dim en sões da corte,43 m as
apen as u m a. Trata-se de u m a qu estão qu e perm ite estabelecer u m a distin -
ção clara e in equ ívoca, n ão apen as en tre a con figu ração social da socieda-
de de corte joan in a e o m odelo plu ral im ediatam en te an teceden te, m as
tam bém en tre aqu ela e todas as con figu rações cu rais preceden tes. Para a
discu ssão deste tem a, h á qu e recu ar n o tem po. Tem os assim de rem on tar
até o in ício do sécu lo XVII. Um tem po a qu e corren tem en te se associa,
porven tu ra com con siderável exagero, u m a im agem qu e se vai pedir lite-
ralm en te em prestada ao títu lo de u m dos textos m ais fam osos qu e en tão
viu a lu z: “Corte n a Aldeia” de Fran cisco Rodrigu es Lobo.44 Fato in discu tí-
vel é qu e a m aior parte dos próxim os an tecessores das casas dos Gran des
brigan tin os n ão residiam regu larm en te em Lisboa n o alvorecer de seiscen -
tos.45 No in ício do sécu lo XVII o padrão de residên cia dos titu lares e sen h o-
res de terras/ fu tu ros titu lares portu gu eses pau tava-se pela dispersão: al-
gu n s residiam em Lisboa, ou tros em Évora, m u itos n as sedes dos seu s “es-
tados”. Nos ú ltim os tem pos da m on arqu ia du al, a política deliberada de
Madri con segu iu atrair para aqu ela cidade parte sign ificativa da prim eira
n obreza do rein o, qu e por altu ras de 1640 aí residia.46 Ao todo cerca de
m etade dos titu lares e gran de n ú m ero de sen h ores de terras e com en da-
dores en con travam -se en tão fora de Portu gal, em Madri ou em ou tros ter-
ritórios ao serviço dos Áu strias.47 Mas, se recu arm os para períodos an terio-
res a 1580, qu an do h avia “rei n atu ral”, o pan oram a n ão seria radicalm en -
te diferen te: basta recordar qu e o prin cipal sen h or do rein o (e u m dos m ais

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Nuno Gonçalo Freitas Monteiro

importantes da península, pelas suas rendas, jurisdições e apresentação de


ofícios), o Duque de Bragança, nunca residiu permanentemente em Lisboa,
mas sim em Vila Viçosa, de onde só se deslocava em momentos bem deter-
minados. De fato, durante todo o período das dinastias de Avis e dos Áus-
trias, a casa de Bragança manteve sempre a sua própria Corte e uma di-
mensão territorial notável. Como detalhadamente foi estudado em recente
trabalho,48 não só preservou essa corte alentejana com um ritual e espaços
de representação próprios, como então se dizia, “à maneira da casa real”,
mas centenas de criados, incluindo muitas dezenas de fidalgos (alguns fei-
tos pela própria casa), aos quais distribuía mais de quatro dezenas de co-
mendas, uma administração significativamente organizada, e uma imensa
rede provincial de clientes, pois confirmava pouco menos de um quinto das
câmaras do país e apresentava mais de 3 mil oficiais, entre civis e eclesiás-
ticos. A casa de Bragança, só por si, permite afirmar que em Portugal até
1640 existiu sempre um “sistema de cortes” e não o monopólio curial da
realeza. A gradual “construção da capital” e o progressivo reconhecimento
de Lisboa como “cabeça do reino” ao longo do século XVI,49 não nos pode
fazer esquecer aquilo que sempre esteve fora.
Ora, n o fim do terceiro qu artel de seiscen tos a m u dan ça é absolu ta-
m en te radical: todos os titu lares, bem com o a m aioria dos sen h ores de ter-
ras e com en dadores, deviam residir em Lisboa. Qu an do tal n ão acon tecia, o
fato era registrado com estran h eza: ao 2º. Con de de Un h ão, qu e tin h a pro-
lon gado a su a residên cia n os Ch avões (San tarém ), viven do “retirado da
Corte”, ch am aram -lh e “El Prin cipe de los Mon tes”.50 A partir do m om en to
em qu e se con solidou a elite aristocrática da n ova din astia, por altu ras da re-
gên cia pedrista, os Gran des (con des, m arqu eses e du qu es) passaram ser de-
sign ados por expressões com o “a prim eira gran deza da Corte”, cabeça do
gru po m ais vasto con stitu ído pela “prim eira n obreza da Corte”, e essa iden -
tificação fu n dam en tal m an teve-se até o fin al do An tigo Regim e.
De resto, pelo m en os desde a segu n da m etade do sécu lo XVII qu e
se foi desen h an do u m a fron teira social in equ ívoca en tre a n obreza de Cor-
te e a fidalgu ia da provín cia. Nesta ú ltim a se com preen diam , por vezes, ca-
sas qu e se repu tavam m u ito an tigas e em tem pos aliadas com as qu e vie-
ram a ser elevadas à Gran deza n o sécu lo XVII, m as qu e, pelo fato de se n ão
h averem in tegrado n a Corte, tin h am m ergu lh ado n a relativa obscu ridade
da vida provin cial. O divórcio social en tre u m as e ou tras foi-se cavan do
cada vez m ais ao lon go dos sécu los XVII e XVIII. Fech adíssim as oligarqu ias
locais, acan ton adas n as vereações cam arárias, com o a de Braga 51 n ão con -
segu iam levar o zelo com qu e defen diam os seu s predicados con tra os in -
tru sos locais até ao pon to de se con segu irem aliar com os Gran des do rei-
n o. A en dogam ia m atrim on ial con stitu ía, aliás, u m a das m arcas fu n da-
m en tais da prim eira n obreza da corte.52

140
A CONSOLIDAÇÃO DA DINASTIA DE BRAGANÇA E O APOGEU DO PORTUGAL BARROCO

A m u tação an tes descrita teve efeitos decisivos n a con figu ração das
elites sociais e n o bloqu eam en to das vias de acesso às diversas distin ções su -
periores, ofícios e ren das con cedidas pela m on arqu ia.53 Um a breve im agem
de con ju n to do acesso a algu m as das prin cipais doações régias (títu los e co-
m en das) perm ite-n os situ ar com precisão os m arcos prin cipais da evolu ção
verificada. A qu al, recorde-se bem , se reporta ao topo da h ierarqu ia in stitu -
cion al e social, e n ão à su a base, on de a evolu ção poderá ter sido diferen te.54
Com ecem os pela titu lação. O m om en to fu n dam en tal da con stitu i-
ção defin itiva da elite titu lar da época m odern a situ a-se n as ú ltim as déca-
das da m on arqu ia du al (1580-1640), ao lon go das qu ais se criaram cerca
de qu atro dezen as de casas titu lares. O n ú m ero total de casas en tão atin -
gido, passan do de cerca de du as dezen as para m ais de m eia cen ten a, m an -
ter-se-á praticam en te estável até a ú ltim a década do sécu lo XVIII, apesar
de cerca de 40% das casas portu gu esas terem desaparecido com a Restau -
ração. De fato, foram rapidam en te su bstitu ídas, e a freqü ên cia da con ces-
são an u al de títu los en tão alcan çada só voltou a ser u ltrapassada (larga-
m en te) du ran te a regên cia do prín cipe D. João (1792-1816) e seu poste-
rior rein ado. A n otável estabilidade alcan çada n os cerca de 130 an os pos-
teriores ao fim da Gu erra da Restau ração (1668) n ão tem paralelo em n e-
n h u m ou tro período da h istória portu gu esa, e raras vezes terá sido igu ala-
da por ou tras aristocracias eu ropéias. Du ran te m ais de u m sécu lo criaram -
se e extin gu iram -se pou qu íssim as casas. Acresce qu e o n ú cleo cen tral do
gru po se m an teve extrem am en te estável. No pon to m áxim o da su a crista-
lização, em 1750 (an o da m orte de D. João V e da en trada de Pom bal para
o govern o), das 50 casas titu lares existen tes em Portu gal, 34 tin h am sido
elevadas h á m ais de 100 an os e 7 vin h am desde o sécu lo XV. Passado u m
período de m u dan ça de din astia, de gu erra e de agitação política, delim i-
tara-se a elite aristocrática do n ovo regim e. As vias para o acesso à Gran -
deza foram -se torn an do cada vez m ais estreitas. E as doações régias foram -
se con cen tran do cada vez m ais n essa elite restrita.55
Um bom in dicador da evolu ção verificada n os é forn ecido pelas co-
m en das das três orden s m ilitares in corporadas n a Coroa (Avis, Cristo e
San tiago). Neste caso, é possível con fron tar du as situ ações in tervaladas de
qu ase sécu lo e m eio (1611 e 1755), qu e perm item detectar m ais claram en -
te as m u dan ças operadas. Apesar de as fon tes con su ltadas para o efeito
apresen tarem im en sas lacu n as, as gran des lin h as de evolu ção ficam clara-
m en te esboçadas. Nos prim órdios do sécu lo XVII os com en dadores das or-
den s m ilitares eram u m a categoria social n u m erosa, qu e abran gia m ais de
qu atro cen ten as de in divídu os e casas, em bora os pou cos titu lares absor-
vessem já u m a avu ltada parcela do ren dim en to agregado das com en das
com adm in istrador. Sécu lo e m eio m ais tarde (1755) o n ú m ero de com en -
dadores viu -se redu zido a bem m en os de m etade, e as 50 casas titu lares
existen tes absorviam já cerca de dois terços do ren dim en to con ju n to. A

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Nuno Gonçalo Freitas Monteiro

distribu ição dos ren dim en tos das com en das forn ece-n os, assim , u m retra-
to im pression an te da evolu ção do topo da pirâm ide n obiliárqu ica: desde o
in ício do sécu lo XVII, o gru po sofre u m a espetacu lar dim in u ição da su a di-
m en são, passan do as casas titu lares an tigas (qu ase todas com Gran deza) a
absorver a m aior parte desses ren dim en tos.
No lon go período de en cerram en to de m ais de u m sécu lo qu e se
segu iu à abertu ra da prim eira m etade de seiscen tos, os vice-rein ados n a
Ín dia ou n o Brasil con stitu íram u m a das raras vias de acesso à Gran deza,
pois n a fase m ais restritiva (1671-1760), da qu al aqu i n os ocu pam os, cer-
ca de m etade dos títu los foram criados em rem u n eração daqu eles serviços.
Sim plesm en te, com o a totalidade dos n om eados n aqu ele período eram
Gran des ou n ascidos n a prim eira n obreza, a abertu ra restrin giu -se a esse
círcu lo bem restrito. De fato, os vice-rein ados n a Ín dia con figu ram -se até
o período pom balin o com o o ofício de m aior preem in ên cia sim bólica e
m ais estreitam en te iden tificado com a Gran deza, m an ten do até en tão u m a
au ra de h eroicidade m ilitar ú n ica, decorren te, n ão apen as da m em ória dos
feitos passados, m as ain da da atu alidade bélica qu e rodeava o seu exercí-
cio, celebrada aliás com en côm ios sem preceden tes em m eados de setecen -
tos. No en tan to, ao con trário do qu e se verificou n o sécu lo XVI, qu an do a
m aioria dos vice-reis tin h a lon ga experiên cia n a Ín dia, apen as 4 dos 21 n o-
m eados en tre 1651 e 1765, tin h am estado an tes n o Orien te. O vice-rein a-
do in dian o já n ão servia de cu m e a u m a carreira ascen sion al n as várias
praças in dian as, aberta a “soldados da fortu n a”, m as sobretu do de tradu -
ção do valim en to n a corte dos seu s deten tores, m u itos dos qu ais n em se-
qu er possu íam qu alqu er experiên cia colon ial.56 Na verdade, eviden cian do
a crescen te aristocratização do cargo, a m aior parte dos vice-reis era pri-
mogênitos e, como se disse, praticamente todos nascidos em casas da “prim ei-
ra n obreza” do rein o. O pen oso exercício do cargo serviu sobretu do para
acrescen tar as casas com as rem u n erações a qu e dava direito, m u itas ve-
zes du ram en te n egociadas an tes da partida.
A con cen tração de ofícios n as casas da “prim eira n obreza” esten -
dia-se tam bém aos eclesiásticos, design adam en te, às carreiras qu e forn e-
ciam às in stitu ições as su as prin cipais figu ras eclesiásticas: bispos das dio-
ceses m ais im portan tes, cardeais, “m in istros assisten tes ao despach o”, en -
fim , qu ase todas as m ais preem in en tes dign idades eclesiásticas e ofícios se-
cu lares desem pen h ados por eclesiásticos. Na verdade, até ao seu irreversí-
vel declín io n a segu n da m etade de setecen tos,57 as carreiras eclesiásticas
dos filh os dos Gran des n ão passaram majoritariamen te pelo in gresso n u ma
ordem regu lar, característica qu e se acen tu ou n a passagem do sécu lo XVII
para o XVIII. A elevação da Sé de Lisboa a Patriarcal (1716) e a m agn ífica
dotação qu e recebeu de D. João V con tribu íram para qu e, ao lon go do sé-
cu lo, a m aioria dos eclesiásticos aí term in asse os seu s dias. Era o destin o

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A CONSOLIDAÇÃO DA DINASTIA DE BRAGANÇA E O APOGEU DO PORTUGAL BARROCO

n orm al e desejável, por on de passaram qu ase todos os secu lares, m esm o


aqu eles qu e faleceram n o exercício de u m a dign idade eclesiástica m ais ele-
vada, ou os qu e an tes fizeram u m vasto périplo por ou tras dign idades ecle-
siásticas (arcediagos de algu m a paróqu ia, Su m ilh eres da Cortin a, D. Prior
da Colegiada de Gu im arães etc.). De fato, a m aior parte dos Prin cipais da
Patriarcal n os fin ais do rein ado joan in o eram filh os ou irm ãos de Gran des
e n o con ju n to da qu ase cen ten a de dign itários, os secu n dogên itos da pri-
m eira n obreza estavam em m aioria. A Ordem de Malta foi sem pre u m a
opção m in oritária (m as su ficien te para h aver dois grão-m estres portu gu e-
ses precisam en te n o período estu dado), e m u ito especial (era a ú n ica or-
dem efetivam en te religiosa-m ilitar 58).
Qu an to ao topo da h ierarqu ia eclesiástica, a an álise do estatu to de
n ascim en to dos bispos e arcebispos portu gu eses en tre 1500 e 1820, perm i-
te avaliar os n íveis de prom oção social abertos pelas respectivas carreiras.
Reportar-n os-em os apen as às dioceses e arqu idioceses do Con tin en te por-
tu gu ês, distin gu in do en tre as m ais prestigiadas (Lisboa, Braga, Évora, Por-
to e Coim bra) e as restan tes. Su blin h e-se, de resto, qu e a coroa portu gu e-
sa teve, desde o in ício de Qu in h en tos, u m a sign ificativa in terven ção n a es-
colh a dos prelados, em bora n em sem pre da m esm a form a.59 Nas dioceses
prin cipais, a m aioria dos bispos era, desde h á m u ito, recru tada n a prin ci-
pal n obreza do rein o (bastardos reais, filh os de Gran des ou de sen h ores de
terras), m as essa dim en são foi se acen tu an do cada vez m ais até ao in ter-
valo 1700-1760, qu an do a qu ase totalidade dos bispos a ela perten cia, sen -
do a m aioria filh os de Gran des do rein o. Som en te n o período segu in te
(1761-1820) se verifica u m a espetacu lar in versão dessa ten dên cia, en con -
tran do-se os bispos n ascidos fora da prin cipal n obreza do rein o, pela pri-
m eira vez, em m aioria. Nas dioceses de m en or preem in ên cia, a percen ta-
gem das referidas categorias é m en os im portan te do qu e n as an teriores,
m as ten de a su bir sem pre até 1700. A qu ebra n este caso dá-se m ais cedo,
pois é já visível n o período 1701-1760.
Para além dos gran des ren dim en tos de qu e se ben eficiavam , e qu e
freqü en tem en te deram lu gar a avu ltadas h eran ças em ben s patrim on iais a
favor dos seu s paren tes, os bispos portu gu eses tin h am ain da u m a ou tra
form a de capitalizar em favor do acrescen tam en to daqu eles o desem pen h o
dos seu s ofícios: a doação dos seu s serviços, depois rem u n erados pela m o-
n arqu ia em ren das e distin ções. No en tan to, o pou co qu e sabem os sobre
este m ecan ism o su gere qu e serviu sobretu do e de form a sistem ática para
acu m u lar cada vez m ais h on ras e proven tos n as gran des casas aristocráti-
cas, ou seja, para as acrescen tar. Foi por esse m eio, por exem plo, qu e a
casa dos Con des de Avin tes ascen deu ao Marqu esado de Lavradio, a dos
Con des de Vale de Reis ao Marqu esado de Lou lé, e qu e a dos Du qu es de
Lafões acrescen tou m ais três com en das ao seu vasto patrim ôn io.60 Pelo

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Nuno Gonçalo Freitas Monteiro

con trário, são pou co n u m erosos os casos con h ecidos de rápida m obilidade
social assim desen cadeada.
Os in dicadores apon tados refletem , de form a m u ito próxim a, as
etapas de recon figu ração, cristalização e crepú scu lo da aristocracia de cor-
te da din astia brigan tin a. Origin ada n u m processo de in ten sa com petição
e decorren te seleção en tre as casas fidalgas fu n dadas m ajoritariam en te n os
sécu los XV e XVI, a aristocracia cu rial lu sitan a ten de a cristalizar-se algu -
m as décadas depois da Restau ração de 1640. No período su bseqü en te, m o-
n opoliza virtu alm en te as prin cipais doações da coroa e os m ais destacados
ofícios da m on arqu ia, n estes se in clu in do os m ais apetecidos ben efícios
eclesiásticos para os seu s secu n dogên itos.
Com o an tes se disse, esta cristalização aristocrática dos ofícios su -
periores da m on arqu ia tin h a u m a expressão paradigm ática n os órgãos
cen trais da adm in istração, design adam en te, n os diversos con celh os e tri-
bunais, quase sempre presididos por Grandes, e, em particular, nos Con celh os
de estado. Na n om eação de 1704 com o em todo o período an teceden te, o
Con celh o de Estado era con stitu ído qu ase só por Gran des leigos e por
Gran des eclesiásticos, seu s irm ãos ou tios. O seu u lterior esvaziam en to sig-
n ificou , assim , o trân sito do cen tro de decisão política para ou tros atores.
No en tan to, a verdade é qu e n en h u m dos prin cipais m in istros e con selh ei-
ros joan in os fu n dou u m a casa aristocrática ou se ligou por alian ças à pri-
m eira aristocracia, apesar de algu n s terem recebido com en das. O pacto
con stitu cion al da din astia, qu e pressu pu n h a a preservação con tra ven tos e
m arés das casas aristocráticas qu e tin h am con tribu ído para a su a con soli-
dação, n ão foi, assim violado.
De fato, n o in terior da con figu ração social an tes defin ida, a posição
das velh as casas dos Gran des n ão era assegu rada apen as pela relação in s-
titu ída en tre serviços e m ercês, m as tam bém pelo lu gar con stitu cion al qu e
se recon h ecia às casas an tigas da n obreza e à n ecessidade de as preservar.
Neste, com o em ou tros terren os, o Portu gal Barroco pode ser apresen tado
com o u m período de excepcion al cristalização social em torn o da Corte e
das elites aristocráticas qu e n ela pon tificavam desde m eados de seiscen tos.
Esta característica do Portu gal Restau rado veio, afin al, acen tu ar os
efeitos de u m a das h eran ças h istóricas m ais im portan tes da m on arqu ia
portu gu esa m odern a qu e era a escassa im portân cia dos corpos políticos in -
term édios e da su a qu ase n u la expressão territorial. Não se trata apen as da
in existên cia de in stân cias au tárqu icas region ais o qu e m arca a sin gu larida-
de portu gu esa. É possível esten der essa caracterização ao con ju n to dos
“corpos in term édios”, qu er dizer, à totalidade dos corpos qu e à escala do
rein o se situ avam en tre o cen tro e a escala (m icro) local.61 Con stru in do-se
através da recon qu ista e n ão por via da u n ião din ástica, Portu gal n ão con s-
titu ía u m a “m on arqu ia com pósita”, n em in tegrava com u n idades político-

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A CONSOLIDAÇÃO DA DINASTIA DE BRAGANÇA E O APOGEU DO PORTUGAL BARROCO

in stitu cion ais preexisten tes. Não existiam qu aisqu er direitos region ais,
n em in stitu ições próprias de provín cias (cristalizadas, por exem plo, an tes
da su a u n ião), n em sequ er com u n idades lin gü ísticas acen tu adam en te di-
versificadas. Nas próprias ilh as atlân ticas a m u n cipalização do espaço polí-
tico local coarctou o su rgim en to de in stân cias au tôn om as region ais.
Depois da Restau ração, pois an tes o rein o de Portu gal era de cer-
ta form a u m corpo den tro da m on arqu ia du al, a coroa portu gu esa n u n ca
teve de se defron tar com corpos dotados de forte en tidade e com expres-
são territorial, ao con trário de ou tras m on arqu ias eu ropéias. As in stitu i-
ções com iden tidade in stitu cion al relevan te (a com eçar pelos tribu n ais
cen trais) n ão só se localizavam qu ase todas em Lisboa, com o eram abran -
gidas em larga m edida pelas teias da sociedade de Corte, diagn óstico qu e
se aplica até a in stitu ições qu e tiveram algu m protagon ism o político, com o
a câm ara da capital ou o respectivo “ju iz do povo”.62 O con trapon to do
cen tro eram os poderes locais e sobretu do m u n icipais. Aspecto qu e diver-
gia fortem en te do qu e se passava em Fran ça, em Espan h a e n a gen erali-
dade das m on arqu ias eu ropéias da época.
Passada a con ju n tu ra im ediatam en te u lterior à Restau ração, o
plu ralism o político e in stitu cion al parece dim in u ir claram en te n o Portu gal
Barroco. A polarização en tre a Corte e as provín cias adqu ire, em todos os
terren os, u m a dim en são sem preceden tes.

145
Nuno Gonçalo Freitas Monteiro

N OTA S
1. Cf., en tre ou tros, HESPANHA., 1989. Cf. tam bém A "Restau ração" portu gu esa n os capítu -
los das cortes de 1641. Penélope. Fazer e desfazer a História, n .9-10, 1993; tam bém o texto clás-
sico de TORGAL, L. R. Ideologia política e teoria do Estado na Restauração. Coim bra, 1981-1982.
2.v.
2. BOUZAS ALVAREZ, F., 1987., cf. tam bém SCHAUB, J.-F., 1994. p.223 ss.
3. Cf., en tre m u itos ou tros texto, G. M. Matos, “O sign ificado político da Restau ração”, 4º.
CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA PARA O PROGRESSO DAS CIÊNCIAS. Por-
to, 1943, p.355-63.
4. Cf. CORTESÃO, J., 1984. parte I, t.I.
5. Cf. as du as alín eas qu e se segu em tiveram com o pon to de partida a reelaboração de capí-
tu los origin alm en te redigidos para a edição de 1998 de HESPANHA, A. M., 1998.
6. E em boa parte im pressas, com o As Mon stru osidades…, A Catástrofe... e a An ticatástrofe,
a Gazeta em form a de Carta de João Soares da Silva, e, m ais recen tem en te, as fabu losas "Me-
m órias Históricas" do 1º. Con de de Povolide, en tre m u itas ou tras. Sem falar das m an u scritas
(cf. sobre o assu n to, MATOS, G. de M . Notícia de alguns memorialistas portugueses do princípio do
século XVIII. Nação Portuguesa, 1929. v.I, 1936 v.X.
7. Cf. BAIÃO, A. Causas de nulidade do matrimónio entre a rainha D. Maria Francisca Isabel de Sa-
boya e o rei D. Afonso VI. Coim bra, 1925
8. Sobre o assu n to cf. diversos trabalh os de HESPANHA, A., 1988, e ain da SUBTIL, J., 1998.
9. Cf. en tre ou tros, BOXER, C. Salvador de Sá and the Stugle for Brazil and Angola, 1602-1686.
Lon dres, 1952. e CABRAL DE MELO, E. Olinda Restaurada: Gu erra e Açú car n o Nordeste,
1630-1654. São Pau lo, 1975.
10. II vol., p.461.
11. Biblioteca Nacion al de Lisboa, FG, 6937, fl. 8-14, ou 649, 3º.
12 . Tradu ção do relatório pu blicado em SERRÃO, J. V. Uma relação do reino de Portugal em
1684. Coim bra, 1960. p.31, qu e con stitu i u m a m agn ífica fon te de in form ação.
13. Ibidem , p.25.
14. Cf. CONDE DE TOVAR., 1961.
15. Cf., en tre ou tros, SERRÃO, J. V., op. cit., p.31, e SILVA, J. S. da, Gazeta em forma de carta
(1701-1716). Lisboa, 1933. p.86.
16. Cf. PRESTAGE, E., 1919. p.17 (de en tre os 33 n om eados n o rein ado joan in o, 22 eram
Gran des leigos).
17. Veja-se a esse respeito as con su ltas do todo poderoso 1º. Du qu e de Cadaval n o in ício do
sécu lo XVIII, Biblioteca Nacion al de Lisboa, F. G. 749.
18. Apesar das diferen ças, o paralelism o com Espan h a, n a seqü ên cia do afastam en to de Va-
len zu ela, é óbvio; cf., sobre o assu n to, Valien te, F. T. Los validos em la m on arqu ía españ ola
del siglo XVII. Madrid, 1982, e, sobretu do, ALVÁREZ-OSSORIO, A. El favor real: liberalidad
del prín cipe y jerarqu ia de la repú blica (1665-1700). In : CONTININSIO, C., MOZZARELLI C.
(Ed.). Repubblica e virtù . Pen siero politico Mon arqu ia Cattolica. Rom a, 1995.
19. SILVA, J. S. da Monstruosidades do tempo e da fortuna (1662-166). Porto, 1938. p.36. v.I.
20. Cf. as teses, bem docu m en tadas, de Matos, G. de M., 1940. v.VII, e 1944. v.VIII.
21. Sobre o con ju n to destes tem as, cf. MACEDO, J. B. de, s.d.(a). p.193-9 e p.211-20.
22. É dem asiado vasta a bibliografia sobre o assu n to para se poder aqu i citar; cf. sín teses re-
cen tes de MAURO, F. O Império luso-brasileiro (1620-1750) de, SERRÃO, J.; OLIVEIRA MAR-
QUES, A. H. Nova História da Expansão Portuguesa. Lisboa, 1991. v.VII. e BETHENCOURT, F.,
CHAUDURI, K. (Dir.) História da Expansão Portuguesa. Lisboa, 1998. v.2 e 3.

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A CONSOLIDAÇÃO DA DINASTIA DE BRAGANÇA E O APOGEU DO PORTUGAL BARROCO

23. Cf. MACEDO, J. B de, 1982, p.22. s. e, apesar das lim itações e deficien te tradu ção, HAN-
SON, C., 1986, p.161 ss.
24. Cf., sobre o con ju n to destes tem as, CARDIM, P. O qu adro con stitu cion al (…). As Cortes.
In : HESPANHA, A. (Dir.) O Antigo Regime (1620-1870). p.132 s, e tam bém CARDIM, P., 1998.
25. Cf. Cortes de Lisboa dos annos de 1697 e 1698. Congresso da Nobreza, Lisboa, 1824, e Auto do le-
vantamento, e juramento, que os Grandes, Titulos Seculares, Ecclesiasticos, e mais pessoas, que se acha-
räo presentes, fizerão ao muito alto, e muito poderoso senhor El Rey D. João V... Lisboa, 1750. Um a
su gestão clara n o sen tido proposto se pode depreen der con fron tan do as ch am adas “m em ó-
rias h istóricas” ( Portugal, Lisboa e a Corte no reinado de D. Pedro II e D. João V – Memórias Históri-
cas de Tristão da Cunha de Ataíde 1º. Conde de Povolide (in t. de A. V. Saldan h a – in t. – e Carm en
M. Radu let), Lisboa, 1990, p.136-7) com as im propriam en te ditas “m em órias ín tim as”
( A.N.T.T., – Casa de Povolide, 19-A, tom . I, fl.113) do 1º. Con de de Povolide.
26. Cf., en tre ou tros, BRAZÃO, E., 1938.
27. Citado em SERRÃO, J. V., 1982, p.247.
28. Cf. CORTESÃO, J., 1984.
29. Cf. A ultima condessa de Atouguia. Memorias autobiograficas. Pon tevedra, 1916. p.10.
30. Cf. a n otável correspon dên cia de D. João V pu blicada em BAIÃO, A., 1945.
31. Cf. PIMENTEL, A. F., 1992.
32. O tem a tem sido objeto de u m a vastíssim a bibliografia recen te. Cf., en tre m u itos ou tros
títu los, CARVALHO, A. de, D. João V e a Arte do seu tempo. Mafera, 1962; 2v. PEREIRA, J. F.
(Dir.) Dicionário da Arte Barroca em Portugal. Lisboa, 1989, e MAGNIFICO J. V. A Pintura em
Portugal no tempo de D. João V, 1706-1750. Lisboa, IPPAR, 1994.
33. Cf. BEBIANO, R., 1987.
34. A. N. T. T., Casa Fron teira e Alorn a, m aços n º.s 118 e 122. A correspon dên cia do jovem
Con de de Assu m ar en con tra-se em vias de pu blicação.
35. Cf. u m a crítica en fática do con ceito em MACEDO, J. B. de, s.d.(a)
36. Cf. CLUNY , I., 1996.
37. Sobre o con ju n to destas m atérias, cf. o texto fu n dam en tal de ALMEIDA, L. F, 1995.
38. Cf. Portugal, Lisboa e a Corte …, p.372.
39. Cf. MERÊA, P., 1965.
40. Cf. BAIÃO, A., op. cit.
41. Cf. SILVA, A. P. da A questão do sigilismo em Portugal no século XVIII. Braga, 1964.
42. Cf. MONTEIRO, N. G. Con celh os e com u n idades. In : MATTOSO, J. (Dir.) História de Por-
tugal. Lisboa, 1998. v.IV.
43. Cf. HESPANHA, A. M. La Corte. In : La gracia del derecho. Econ om ia de la cu ltu ra en la
Edad Modern a. Madri: 1993. p.93.
44. Cf. Corte na aldeia e noites de Inverno (1616), Lisboa, 1945.
45. Cf. Biblioteca Nacional de Lisboa. Fu n do Geral, códice 7641, fl. 52 ss. Na m edida em qu e se
m en cion am os Con des de Ficalh o (castelh an os), títu lo de 1599, m as n ão os posteriores, a dita
relação terá sido elaborada por volta de 1600.
46. Cf., en tre ou tros, OLIVEIRA, A. de Poder e oposição política em Portugal no período filipino
(1580-1640). Lisboa, 1990. Sobretu do p.234-5, e BOUZA ÁLVAREZ, F. La n obleza portu gu esa
y la corte m adrileñ a h acia 1630-1640. Nobles y lu ch a política en el Portu gal de Olivares, Co-
lóqu io: LA RUPTURE LUSO-CASTILLANE DE 1640, Maio de 1992, Paris: Cen tre d’Etu des
Portu gaises (EHESS). (exem plar policopiado)
47. Cf. DÓRIA, A. A. (n ota D) In : CONDE DE ERICEIRA. História de Portugal Restaurado. Por-
to: n ova ed., s.d. p.488-9.
48. Cf. SOARES DA CUNHA, M. As redes clientelares da Casa de Bragança (1560-1640). Évora,
1997. Dissertação (Dou torado) (Mim eógr.).

147
Nuno Gonçalo Freitas Monteiro

49. Cf. Magalh ães J. R. No alvorecer da m odern idade (1480-1640). In : MATTOSO J. de (Dir.)
História de Portugal. Lisboa, 1993. p.50-9. v.3.
50. Cf. SAMPAIO, L. T. de Estudos Históricos. Lisboa, 1984. p.74. (com base n as Monstruosida-
des...)
51. CAPELA, J. V. O Município de Braga de 1750 a 1834. O govern o e a adm in istração econ ô-
m ica e fin an ceira. Braga, 1991.
52. Cf. MONTEIRO, N. G. Casam en to, celibato e reprodu ção social: a aristocracia portu gu e-
sa n os sécu los XVII e XVIII. Análise Social, v.XXVIII, n .123-124, p.921-50,1993.
53. De resto, com exceção dos sen h orios eclesiásticos, já n ão h á du ran te a din astia de Bra-
gan ça in stitu ições sen h oriais dotadas de gran de au ton om ia; a casa do In fan tado acabou por
n ão se con stitu ir com o tal, apesar dos seu s propósitos in iciais (cf. LOURENÇO, M. P. A Casa e
o Estado do Infantado, 1654-1706. Lisboa: JNICT, 1995. p.25ss.).
54. Cf., por exem plo, MONTEIRO, N. G. Elites locais e m obilidade social em Portu gal n os fi-
n ais do An tigo Regim e. Análise Social, n .141, p.335-68, 1997.
55. Cf., sobre o con ju n to destes tem as, MONTEIRO, N. G., 1998. Parte I, cap.3. Sobre as ca-
sas qu e perm an eceram do ou tro lado do con flito, cf. BOUZA ÁLVAREZ, F., 1994.
56. No sécu lo XVIII, u m Gran de do rein o ou su cessor de casa da “prim eira n obreza” só po-
dia partir para o Orien te com o govern ador ou vice-rei, n u n ca n u m a arm ada ou para com an -
dar u m a sim ples praça; cf. Mafalda Soares da Cu n h a e Nu n o G. Mon teiro, “Vice-reis, gover-
n adores e con selh eiros de govern o do Estado da Ín dia (1505-1834). Recru tam en to e carac-
terização social”. Penélope. Fazer e desfazer a história, n .15, p.91-120, 1995.
57. Cf. MONTEIRO, N. G., op. cit.
58. Não restem dú vidas qu e a Ordem de Malta era a ú n ica em qu e “o estado dos seu s pro-
fessos h e o de verdadeiro Religioso”. MELLO FREIRE, P. J. de Dissertação historico-juridica so-
bre os direitos e jurisdicção do Grão-Prior do Crato... Lisboa, 1829. p.6.
59. As in form ações sobre o bispos foram obtidas recorren do a u m a m u ltiplicidade de fon tes,
n o âm bito do projeto – Optim a Pares (ICS-PRAXIS XXI), estan do a execu ção a cargo de Lu í-
sa Fran ça Lu zio.
60. Cf. MONTEIRO, N. G., op. cit.
61. Cf., sobre este tem a, MONTEIRO, N. G. Poder local e corpos in term édios: especificidades
do Portu gal m odern o n u m a perspectiva h istórica com parada. In : ESPINHA DA SILVEIRA, L.
(coord .) Poder Central, Poder Regional, Poder Local. Uma perspectiva histórica. Lisboa: Cosm os,
1997. p.47-61.
62. Cf. a recen tes sín tese BERNSTEIN, H. The lord mayor of Lisbon. The Portuguese Tribune of the
People and His 24 Guilds. Boston , 1989.

148
A CONSOLIDAÇÃO DA DINASTIA DE BRAGANÇA E O APOGEU DO PORTUGAL BARROCO

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Portuguesa de História, 2ª série, v.II, 1961.

150
capítu lo 9

POMBA L E O BRA SIL


Fran cisco Calazan s Falcon *

O tema deste ensaio um tanto breve, como convém ao gênero, tem


como pano de fundo uma “época” da história luso-brasileira particular-
mente trabalhada pela historiografia. Entre a idéia de uma “realidade” his-
tórica inerente à própria “época” e a do seu caráter historiograficamente
construído, situam-se as hesitações do historiador as quais são também suas
opções teórico-metodológicas. Com efeito, se não podemos mais acreditar
numa reconstituição “positivista’ da “época pombalina” em relação à se-
qüência cronológica dos acontecimentos que a identificam, tampouco po-
deríamos pretender perspectivá-la como “época” no sentido “historista”,
isto é, única e incomparável. Convém portanto esclarecer que nossa refe-
rência a uma “Época Pombalina” representa apenas uma espécie de expe-
diente a fim de justificar um certo recorte cronológico no interior de cujos
limites se tenta identificar algumas manifestações mais ou menos específi-
cas do ponto de vista do que elas significam efetivamente, em termos de
continuidade ou ruptura, quer em relação ao que antecede a “data-limite”
de 1750, quer ao que se passa após 1777.
Foi de acordo com tais premissas que tentamos, muitos anos atrás,1
escrever uma história da “Época Pombalina”, a partir de sua representação
como “mercantilista” e “ilustrada”; inscrevendo-a no contexto geral da mo-
dernidade européia e, em particular, da ibérica 2. As circunstâncias de então
não permitiram abranger, no nosso texto, a outra face dessa época – a “bra-
sileira”. De lá para cá temos tentado, em ocasiões e de modos diversos, rea-
lizar o estudo dessa “face brasileira” do reformismo ilustrado. A par das co-
nhecidas e inevitáveis dificuldades inerentes à própria pesquisa, defronta-
mo-mos com problemas de caráter historiográfico bastante reais, pois, o
nosso objeto de análise é também o objeto construído por toda uma histo-
riografia que cristalizou uma tradição acerca dos modos de “ver” e interpre-
tar tal objeto.
Ao analisarmos a “face brasileira” das reformas pombalina temos em
vista, preliminarmente, o diálogo com uma historiografia que, de uma ma-
neira geral, e salvo, é claro, as honrosas exceções de sempre, possui como
características: 1 – o “inventário” descritivo-narrativo, mais ou menos por-
menorizado, dos textos legais e regimentais produzidos em Lisboa, nos

151
Francisco Calazans Falcon

quais se consubstanciam as reformas a serem aplicadas à Colônia; 2 – a in-


terpretação do sentido de tais práticas reformistas segundo o ponto de vis-
ta da retórica das autoridades da Metrópole presente nos respectivos discur-
sos; 3 – o freqüente desprezo pelas especificifidades da colônia, a “situação”
colonial, a pluralidade dos “espaços” e a diversidade dos “tempos”; 4 – O si-
lêncio, quase total e insistente, a respeito da “recepção” das reformas no
ambiente colonial, isto é, suas “leituras”e as práticas daí decorrentes, quer
dos próprios agentes da administração lusitana, quer dos grupos, ou seg-
mentos sociais, que, na falta de um termo mais preciso, denominamos “as
elites coloniais”.3

A COLÔN IA , SEUS ESPA ÇOS E TEMPOS

O “Império Português”, no século XVIII, compreende os territórios


metropolitanos e os domínios ultramarinos, uma “área semi-periférica que
constitui um dos vários “subsistemas” do “Sistema Mundial Moderno”, ca-
pitalista e europeu 4. No interior desse subsistema destaca-se o espaço luso-
atlântico, por sua riqueza e dinamismo econômicos, envolvendo as relações
de Portugal com a América portuguesa e as feitorias situadas no litoral afri-
cano. As articulações das diversas áreas desse espaço constituem o essencial
da estrutura e dinâmica do “Antigo Sistema Colonial”.5
O primeiro dado a ser levado em conta neste caso é a própria “condi-
ção colonial” e tudo que significa concretamente em termos da necessária dis-
tinção entre “colonizadores”, “colonos” e “colonizados”, categorias estas que
podem assim ser descritas: colonizadores – “todos aqueles elementos ligados à
esfera administrativa (leigos e eclesiásticos) e também, e sobretudo, os co-
merciantes, “negociantes de grosso-trato, ou homens de negócio; colonos (re-
sultantes do desdobramento do colonizador em colono) – “ os proprietários
coloniais – da mão-de-obra, da terra, dos meios de trabalho; colonizados – to-
dos os demais segmentos da população – índios, negros, brancos pobres,
mestiços.6 Como iremos ver mais adiante, as “elites coloniais” correspon-
dem a subdivisões da categoria “colonos”, daí ser possível distinguir-se entre
elites proprietárias, mercantis e “letradas”.7 É a partir destas categorias e das
especifidades existenciais do “viver em colônia” que propomos a análise das
reformas “ilustradas” do período pombalino.
Espaços e tempos coloniais em contínua mutação é o que se percebe por
exemplo , entre a “História da América Portuguesa”, de Rocha Pita 8 e a
“Corografia Brasílica”, do Pe. Aires de Casal9 ou, ainda, entre Antonil10 e
Azeredo Coutinho.11 Contornos geopolíticos, bases demográficas, atividades
econômicas, composição social, referenciais político-administrativos, edu-
cação, cultura, tudo praticamente muda entre os momentos que aquelas
obras buscam apreender.

152
POMBAL E O BRASIL

Com ecem os pelo espaço, ou espaços. O espaço de Pita é uma Amé-


rica lusa constituída por dois “Estados” – o do Brasil e o do Maranhão e
Grão-Pará. O “Brasil” de Antonil, apesar de mais amplo, concentra-se de
fato nas plantações e engenhos de açúcar e nas “catas” auríferas e diaman-
tíferas das “Minas Gerais”. O espaço, em Azeredo Coutinho, é o de um
Vice-Reino que tenta dar conta dos múltiplos problemas de correntes da
própria dialética da totalidade, entrevista da metrópole, e da diversidade,
imposta pelas múltiplas realidades regionais que se encontram na raiz da
pluralização do “Brasil” em “Brasis”. Mesmo Aires de Casal, cujo “Brasil” é,
já então, o do Reino Unido, não consegue evitar a presença do peso das di-
versidades de toda ordem que relativizam a cada passo uma “unidade” de-
sejada mas problemática.
Se admitirmos que as variações terminológicas denotam oscilações
nas próprias maneiras de apreender o espaço colonial como um todo, tal-
vez seja possível compreender também a importância que podem ter, para
a análise do “reformismo ilustrado”, as estruturas administrativas coloniais
e a chamada “dupla-mutação” colonial, na primeira metade de Setecentos.
As estruturas administrativas, compreendendo-se aí instituições e
pessoas, subdividiam-se em dois subsistemas, em função de dois critérios: o
funcional e o geopolítico. O critério funcional fixava esferas ou setores dis-
tintos: governo civil e militar, justiça, fazenda e religião. O critério espacial
reconhecia três instâncias hierarquizadas: “geral”, ou superior; regional, ou
intermediária; local ou inferior, ou seja, o “Governo Geral”, as capitanias, e
as cidades e vilas. Apesar da Coroa tender a prestigiar em cada nível o go-
verno civil e militar, os agentes pertencentes às diferentes funções enten-
diam-se, com freqüência, apenas com os seus “iguais” do mesmo setor, na
Colônia e/ou na Metrópole, ignorando, não raro, as autoridades civis e mi-
litares de sua própria instância. Divergências e disputas entre órgãos e
agentes coloniais a propósito de questões administrativas, muitas vezes com
características pessoais, constituem assim, não por acaso, fenômeno “nor-
mal” do cotidiano da Colônia.12
A denominada “dupla mutação”13 indica duas séries de transforma-
ções que transformaram radicalmente a fisionomia da Colônia: a mutação
espacial e a econômica e demográfica. Resultou a primeira da rápida e gi-
gantesca expansão do território colonial, sobretudo no centro-sul e centro-
oeste; a segunda mutação tem a ver com descobrimento e rápida expansão
das áreas de mineração de ouro e diamantes e o intenso deslocamento de
populações, de dentro e de fora da Colônia, para estas áreas. A “mutação
espacial” exigiu gastos cada vez maiores da Coroa com a defesa e o povoa-
mento dos novos territórios, sobretudo nas regiões próximas a territórios
castelhanos, além, é claro, de complicadas negociações diplomáticas e con-
flitos bélicos que irão estender-se por todo o Setecentos.

153
Francisco Calazans Falcon

A “mutação econômica e demográfica”, além de promover o deslo-


camento do eixo econômico e administrativo da Colônia das áreas nordes-
tinas para as do sudeste, exigiu providências rápidas e dispendiosas. Fez-se
necessário estabelecer, a “toque de caixa”, órgãos e agentes da Coroa jun-
to aos novos núcleos de povoamento e extração mineral, a começar pela
criação de diversas vilas, a fim de estabelecer a lei e a ordem, condição in-
dispensável à fiscalização da produção extrativa, do comércio e do acesso a
minas – de homens, animais e mercadorias. Somente assim seria possível
garantir-se a cobrança e arrecadação dos “quintos” devidos à Coroa e dos
direitos sobre operações mercantis e “passagens” para as minas – direitos de
“entrada” e de saída. Acima de tudo isto estava a intenção de coibir as saí-
das ilegais do ouro.14
Em face das múltiplas demandas resultantes dessas duas mutações,
como que “imprensada” entre as sucessivas ordens e instruções da Metró-
pole, e a crônica insuficiência de meios materiais e humanos, os agentes da
administração colonial empenharam-se, quando muito, em realizar o que
lhes parecia ser o possível. Esta contradição tradicional, inerente à adminis-
tração colonial – escassez de meios em comparação com a ambição dos fins
– será um elemento decisivo na avaliação das “reformas pombalinas” do
ponto de vista de sua efetiva implementação no (s) espaço (s) colonial (is).

Passem os agora, aos tem pos. A referên cia aos tem pos (plu ral) é u m a
form a qu e aqu i u tilizam os para su blin h ar du as orden s de qu estões: as dife-
ren ças en tre os “tem pos da Metrópole” e os da Colôn ia; a n ão-h om ologia, n a
Colôn ia, en tre o “tem po da econ om ia” e o “tem po político-adm in istrativo”.
Com relação à Metrópole, a tradição historiográfica por muito tempo
habituou-se ao recorte dinástico que distingue os “tempos joaninos” dos “jo-
sefinos” e estes dos “marianos”. Absolutizados em termos de “épocas”, estes
“tempos” conferem uma espécie de realidade à parte ao período pombalino,
cortando-lhe as possíveis amarras com a história que o antecede – cria uma
certa visão caricatural do reinado de D. João V –, e a que se lhe segue – por
intermédio da construção mítica de um “Viradeira” improvável. A partir de
Jorge de Macedo,15 procedeu-se à demolição de tais rupturas, conforme se
evidenciaram duas coisas: as muitas continuidades existentes, em termos
políticos e administrativos, com relação ao “antes-1750” e ao “pós-1777”; a
“resistência” do movimento conjuntural da economia em enquadrar-se na
camisa-de-força da cronologia política tradicional,16 especialmente com refe-
rência ao “período pombalino” encarado como um “bloco”.
Quanto à Colônia, também nos encontramos em face de duas tem-
poralizações, conforme se trate de ritmos administrativos ou econômicos.
Os ritmos político-administrativos seriam assim descritos: uma reação cen-
tralizadora, típica do início do reinado de D. João V, de 1707 a 1720, como

154
POMBAL E O BRASIL

contraponto à política pouco eficaz da Coroa, em temos da sua presença na


colônia, nas décadas finais do século XVII; um progressivo enfraquecimen-
to da autoridade régia na Colônia, entre 1720 e 1750, que propicia o forta-
lecimento de poderes locais em várias regiões coloniais, a tal ponto que suas
resistências forçam os agentes da Coroa a retrocessos e compromissos, am-
pliando-se assim a participação, por delegação de poderes, dos “colonos”
nas administrações locais; a seguir, entre 1750 e 1777, sobre esse quadro de
“descentralização” projeta-se a “vontade férrea” de Pombal no sentido da
“centralização” a qual novamente se enfraquece e perde consistência após
a queda do poderoso “ministro”.
Voltaremos a essa questão ao abordarmos a administração pombali-
na. Neste passo, no entanto, interessa-nos sublinhar o fato de que os ritmos
econômicos marcam tempos algo distintos dos que acabamos de descrever.
Na primeira metade do Setecentos, o setor agromercantil da economia co-
lonial experimenta freqüentes oscilações entre períodos mais longos de es-
tagnação e “crise”, em conexão com as variações da demanda e dos preços
do açúcar no mercado internacional, e períodos mais curtos, de relativa
prosperidade, sendo certo que, bem antes de 1750, o setor encontrava-se
mais uma vez em crise.
Contrastando com as dificuldades agroexportadoras, o setor minera-
dor expandiu-se rapidamente até a década de 1730, quando se observam
os primeiros sinais do provável esgotamento das minas, se bem que se tra-
tasse ainda de um futuro mais ou menos distante na opinião dos contem-
porâneos. Ao que tudo indica, é nas regiões de mineração, durante este pe-
ríodo, que as autoridades coloniais parecem algumas vezes hesitar entre a
imposição rígida e violenta do poder régio e a prudência que as aconselha
à moderação e cooptação dos poderosos locais, através de variados tipos de
compromisso tendentes a garantir o mais essencial: a cobrança e arrecada-
ção dos “direitos” da Coroa.
À lenta recuperação do setor afromercantil na década de 1750 e em
parte da de 1760, sucede novo período de crise, apenas interrompido pela
“Guerra da América”, isto é, a luta das colônias inglesas da América do Nor-
te contra a metrópole. O setor minerador, após uma breve recuperação, nos
anos de 1750, mergulha em profunda crise, sobretudo nos anos de 1760-
1770. A queda da arrecadação proveniente da cobrança do “quinto” abala
as finanças do Estado e compromete a balança comercial de Portugal com
a Inglaterra e outros países. Os apertos da nova conjuntura, agravados pela
guerra com a Espanha, imprimem novos rumos ao “reformismo ilustrado”,
na metrópole e na Colônia.17
A partir de 1780-1790, com a rápida expansão e diversificação do se-
tor agroexportador,18 configura-se o clima de “euforia”19 típico da fase final
do período colonial, durante a qual, em face da “crise do sistema”,20 os bu-

155
Francisco Calazans Falcon

rocratas de Queluz e os intelectuais (muitos também burocratas) da Acade-


mia Real das Ciências, de Lisboa, empenham-se em diagnosticar seus fato-
res e sugerir medidas práticas para reformar e ao mesmo tempo conservar
o próprio “sistema”.21
Concluindo esta parte, desejamos sublinhar a multiplicidade de espa-
ços e tempos. De espaços: o espaço do “sistema colonial”, o espaço geopolí-
tico, os espaços socioeconômicos e político administrativos e, ainda, os espa-
ços de sociabilidade, como iremos ver adiante. De tempos: o tempo dos prín-
cipes, os tempos das conjunturas econômicas, os tempos político-adminis-
trativos e o tempo das “idéias ilustradas”, este também ainda por abordar.

O REFORMISMO ILUSTRA D O D A GOVERN A ÇÃ O


POMBA LIN A N O BRA SIL-COLÔN IA
A fim de não estendermos em demasia este trabalho, vamos aqui en-
focar apenas três tópicos do reformismo: o econômico, o político-adminis-
trativo, e o cultural-pedagógico.

AS REFORMAS ECONÔMICAS POMBALINAS


As reformas econômicas pombalinas são provavelmente as mais conhe-
cidas destes três tópicos, motivo porque iremos apenas sintetizá-las.
Admitido o caráter mercantilista das práticas econômicas pombalinas,
interessam-nos aqui aquelas relacionadas, direta ou indiretamente, com o
Brasil. Note-se, no entanto, que tais práticas não se apresentam de forma
sincrônica. São as variações conjunturais que, em boa parte, determinam
suas oscilações, inclusive suas vigências concretas. A presença do “sistema
colonial” constitui um pressuposto geral, comum a todas essas práticas, o
que significa que, ao lado das questões “econômicas”, é preciso situar as
preocupações fiscais já que, na realidade, o “reformismo pombalino” foi
sempre mercantilista e fiscalista. Exemplos disto foram as providências to-
madas, já em 1751, para solucionar os impasses que dificultavam as expor-
tações de açúcar e tabaco, a começar pela criação das “Casas de Inspeção do
Tabaco e do Açúcar”.
Um capítulo à parte corresponde, nesse contexto reformista, à “Jun-
ta do Comércio”22, criada em 1755, órgão ao qual competia controlar a “saí-
da das frotas”, fazer cumprir a proibição dos “comissários volantes” irem aos
portos do Brasil, combater os descaminhos e contrabandos, fiscalizar o peso
e qualidade dos rolos do tabaco e das caixas de açúcar. Assim, todo o tráfi-
co ultramarino estava sob a sua alçada: a organização, controle e fomento
do comércio colonial, inclusive a construção de navios, no Reino e no Bra-
sil, com madeiras da Colônia.

156
POMBAL E O BRASIL

O primeiro campo das práticas mercantilistas pombalinas é o do fomento, à


produção metropolitana. Nesta rubrica, a inserção do Brasil-Colônia é du-
pla, embora indireta: 1º. – em conseqüência dos privilégios conferidos à
Cia. Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro(1756), como o Alvará
de 6 de agosto de 1776 ordenando que o Rio de Janeiro e as províncias do
Sul ficassem abertos ao comércio exclusivo de vinhos, aguardentes e vina-
gres da Companhia; 2º. – a política de incentivo as manufaturas, a começar
pelos Estatutos da Fábrica das Sedas (1757), encara sempre o mercado co-
lonial como “exclusivo”, daí terem sido autorizadas no Brasil apenas algu-
mas poucas “fábricas” que, na verdade, eram usinas de beneficiamento de
certos produtos primários destinados à exportação: arroz, lonas, enxárcias,
madeiras, solas, atanados.23
Como segundo campo das práticas mercantilistas – a política comercial e colonial
– temos o monopólio de exportação, a balança comercial e o pacto colonial.
O instrumento então utilizado para maximizar os objetivos do mo-
nopólio do comércio colonial – defesa contra os concorrentes e fomento à
produção no ultramar – foram as companhias de comércio. Tratava-se aí de re-
solver três questões: o controle monopolístico da circulação, o incentivo às
produções coloniais de interesse comercial e o tráfico de escravos. Para o es-
paço colonial brasileiro foram criadas duas companhias: a Companhia Ge-
ral do Grão Pará e Maranhão (1755) e a Companhia Geral de Pernambuco
e Paraíba (1759). A historiografia destas companhias24 é uma das mais ricas
dentre as dos temas clássicos das práticas pombalinas. Seu principal objeti-
vo era o monopólio mercantil em proveito de seus acionistas metropolita-
nos, se bem que, nos discursos oficiais, sua criação seja justificada em fun-
ção do abandono e atraso (Pará e Maranhão), e das dificuldades econômi-
cas (Pernambuco e Paraíba) das suas respectivas regiões de atuação. Já bas-
tante conhecidas quanto às suas estruturas e operações, tais companhias,
apesar da alegação oficial de atendimento “à solicitação dos respectivos po-
vos”, provocaram muitas reações dos “colonos” sendo esta provavelmente
a face relativamente menos conhecida da sua atuação.
O monopólio das companhias de comércio excluía comerciantes lo-
cais e estrangeiros. Estes últimos, aliás, constituem uma constante preocu-
pação, dado o empenho da Metrópole em impedir-lhes, ou a seus agentes,
o comércio direto com a Colônia. Fazem parte desta política a reiteração,
em 1760, das medidas “contra as fraudes que se vinham verificando com
relação à proibição de passarem ao Brasil os comissários volantes”, assim
como as sucessivas reedições das proibições que vedavam o acesso de na-
vios estrangeiros aos portos do Brasil.
O terceiro campo das práticas reformistas (mercantilistas) compreende a
política monetária e o fiscalismo. A questão monetária abrangia duas ordens
diferentes de problemas: a arrecadação dos quintos, nas minas do Brasil,

157
Francisco Calazans Falcon

em conexão com providências contra as fraudes e contrabandos, e o comér-


cio deficitário com a Inglaterra, especialmente a partir de 1760, quando o
declínio do afluxo do ouro, conseqüência da queda vertiginosa no rendi-
mento das minas, fez escassear o metal reequilibrador da balança comer-
cial.25 Capítulo à parte, a extração e o comércio dos diamantes das Minas
Gerais constituem uma das faces mais persistentes e curiosas das idéias e
práticas pombalinas.26
No âmbito do fiscalismo, a principal medida consistiu na criação do
Real Erário, ou Erário Régio (1761), que abordaremos mais adiante.27
Em resumo, parece razoável afirmar que as “reformas econômicas”
associaram às práticas mercantilistas, antigas mas permanentes, as preocu-
pações fiscalistas ditadas, sobretudo, pelas urgências das finanças do Esta-
do. Do ponto de vista da Colônia, aliás, foram provavelmente as medidas
fiscalistas as mais diretamente percebidas pelos colonos. Não deve causar
espanto, em conseqüência, o fato de ser a visão de tais “reformas ilustra-
das”, a partir das “elites” coloniais, muito diferente daquilo que nos dizem
as histórias produzidas em função dos discursos metropolitanos.

AS REFORMAS POMBALINAS NO ÂMBITO CULTURAL E


O SISTEMA EDUCACIONAL DA COLÔNIA

A história cultural do Brasil-Colônia está associada, na segunda me-


tade do século XVIII, à componente “ilustrada” do reformismo pombalino.
Dentre os muitos elementos constitutivos das reformas “esclarecidas” do
Estado absolutista, avulta o das relações entre o poder civil e o eclesiástico
as quais, à época de Pombal, cristalizaram-se em torno dos padres da Com-
panhia de Jesus, culminando na sua expulsão de “Portugal e seus domí-
nios” (1759).
Não cabem aqui, evidentemente, a análise da “questão jesuítica” e a
história particular dos efeitos da expulsão dos inacianos naqueles setores da
vida colonial onde sua atuação era mais ou menos decisiva, a começar pelo
educacional.28 Por outro lado, a constelação dos tópicos compreendidos no
impacto das “reformas ilustradas” de natureza cultural sobre a Colônia ex-
cede em muito os efeitos daquela expulsão. Mesmo em se tratando do cam-
po especificamente religioso, é fundamental a presença atuante da Congre-
gação do Oratório e de outras ordens, como franciscanos e beneditinos, no
ambiente colonial.29
Tampouco podem ser esquecidas as repercussões, na Colônia, das re-
formas empreendidas na esfera jurídica,30 além do que significaram, para os
“letrados” da Colônia, os efeitos da Ilustração no plano flilosófico, a começar
pela ruptura com a tradição da “Segunda Escolástica” em nome de uma
“ciência moderna” voltada para a experiência e observação e visando inves-

158
POMBAL E O BRASIL

tigar/conhecer uma “natureza” – a colonial – de acordo com um certo fina-


lismo pragmático ou utilitarista.31
Outro campo, imenso por sinal, da cultura colonial que tem a ver
com as “reformas ilustradas” é o da produção literária e artística, já bastan-
te investigado e analisado e que continua a atrair o interesse dos pesquisa-
dores.32 A “governação” pombalina tentou constantemente, inclusive a pre-
texto de patrociná-la, controlar essa produção. Paralelamente, a censura
oficial empenhou-se em cercear a circulação de obras, especialmente es-
trangeiras, sobretudo as de natureza “sediciosa”, isto é, hostis ao absolutis-
mo ou aos princípios éticos e sociais do Antigo Regime.33
Do ponto de vista historiográfico, as reformas pedagógicas estão para
a história cultural da Colônia assim como as companhias de comércio estão
para sua história econômica. A partir da dominância exercida pelos padres
da Companhia de Jesus sobre o sistema educacional da Colônia, até 1759,
a historiografia tende a fixar um marco divisório, um “antes” e um “após”,
em torno do qual se alinham os críticos e os defensores das reformas. Se-
gundo Laerte Ramos de Carvalho 34 o processo de transformação pedagógi-
ca, que teve seu momento decisivo na expulsão dos jesuítas, insere-se no
bojo do universo de práticas reformistas tendentes à secularização do ensi-
no e do próprio Estado absolutista.
A “reforma dos estudos”, como uma das dimensões do regalismo, vi-
sava laicizar os quadros docentes, reformular a estrutura organizacional do
sistema e o seu funcionamento, tendo como principal objetivo transformar
os currículos e métodos pedagógicos de acordo com os valores modernos
ou ilustrados.35 A reforma dos Estudos Menores, lançada em 1759, aboliu
as escolas jesuíticas e estabeleceu nas “Aulas e Estudos das Letras uma Ge-
ral Reforma”.36 As dificuldades e insucessos desta primeira tentativa condu-
ziram ao relançamento da reforma pela Lei de 6 de novembro de 1772 37,
já agora sob a direção da Real Mesa Censória e contando com os recursos a
serem arrecadados através do “Subsídio Literário”.
Conhece-se o processo de Implantação da Reforma na Bahia, Rio de
Janeiro, Pernambuco e Minas Gerais através de vários trabalhos, sobretudo
os de Andrade e Carrato,38 nos quais se percebe as muitas disputas e pro-
blemas que acompanharam a implementação das mudanças: a “querela das
gramáticas” e dos textos recomendados, a parca remuneração dos mestres,
a disciplina autoritária e repressiva, a arrecadação deficiente do “Subsídio
Literário” e o desvio dos seus recursos, a falta de livros, o difícil recrutamen-
to dos quadros docentes, agravado por muitas delongas e complicações bu-
rocráticas, a marginalização das zonas rurais, sobretudo, no caso brasileiro,
devido às enormes distâncias entre os núcleos povoados.
Para concluir este tópico, conviria ter presentes não só as inevitáveis
diferenças entre as reformas aqui consideradas, conforme se trate de Portu-
gal ou do Brasil, como, principalmente, os problemas interpretativos resul-

159
Francisco Calazans Falcon

tantes da transposição acrítica das propostas “ilustradas” às especificidades


da “condição colonial”. Referimo-nos, neste caso, à compreensão de como
se deu, no Brasil Colônia, a recepção da propostas “ilustradas” – idéias e
práticas. A pergunta, no meu entender, continua a ser: as alusões, freqüen-
tes na historiografia, à presença/existência/influência de “idéias ilustradas
na Colônia” referem-se, afinal, a quais idéias? 39

POR ÚLTIMO, AS REFORMAS POLÍTICO-ADMINISTRATIVAS

Também neste caso, algumas das reformas consistiram na extensão à


Colônia das ramificações de mudanças operadas na Metrópole. A historio-
grafia atem-se em geral a certas medidas mais ou menos pontuais, como:
transferência da sede do Governo Geral do Estado do Brasil, de Salvador
para o Rio de Janeiro (1763); a extinção do Estado do Grão-Pará e Mara-
nhão e sua incorporação, como capitania-geral, ao do Brasil (1772); em
aquisição, pela Coroa, das capitanias privadas, paralela à criação de novas
“capitanias reais”, como S. José do Rio Negro (1717), Piauí (1759) e Rio
Grande de S. Pedro (1760).
Mais significativas, na verdade, são as tendências político-burocráti-
cas pois revelam o empenho em “modernizar” a administração, do ponto-
de-vista do funcionamento dos órgãos existentes e dos comportamentos
dos agentes da Coroa. Nem sempre, porém, as práticas político-administra-
tivas correspondem à letra dos textos legais e normativos. Veja-se, por
exemplo, o título de Vice-Rei conferido, a partir de 1763, ao Governador-
General do Mar e Terra do Estado do Brasil. Em tese, o Vice-Rei era a au-
toridade suprema da Colônia; na prática, nem a Metrópole, nem as demais
autoridade coloniais, permitiram o exercício de tal supremacia. Lisboa ja-
mais deixou de fazer ver ao Vice-Rei a necessidade de agir com cautela em
face dos poderes regionais e dos interesses locais. A correspondência direta
entre Pombal e os capitães-generais da capitanias-gerais e mesmo, em al-
guns casos, com capitães-mores, evidencia que o Vice-Rei tinha sua autori-
dade praticamente restrita à Capitania-Geral do Rio de Janeiro e capitanias
subordinadas (Espírito Santo, Santa Catarina e Rio Grande de S. Pedro).
Em 1751, foi instalado o Tribunal da Relação do Rio de Janeiro a fim
de desafogar o antigo Tribunal da Relação da Bahia. Com a instituição do
Real Erário, em Lisboa (1761), foram organizadas as Juntas da Fazenda em
cada uma das capitanias-gerais. Também a organização militar passou por
grandes reformas, ao passo que na esfera da justiça e dos governos munici-
pais não se registram mudanças significativas.
O empenho maior da Metrópole eram a racionalidade e a eficiência
administrativas, baseadas no princípio de secularização e aprimoramento
dos quadros burocráticos. Pretendia-se “modernizar” a burocracia através

160
POMBAL E O BRASIL

de seus agentes: processos e métodos de formação intelectual e profissional,


recrutamento, limitação do nepotismo e do caráter prebendário e vitalício
dos “ofícios” e “serventias”.40
A simples descrição das providências tomadas pelo “reformismo
pombalismo” pode revelar-nos certas tendências mas pouco nos esclarece
acerca de seus objetivos gerais e dos resultados reais das próprias práticas.
Uma primeira dificuldade é a da interpretação dos objetivos. Entre os
discursos metropolitanos, que anunciam e justificam as reformas, e as prá-
ticas reais, na Colônia, há com freqüência uma considerável distância. Se
os discursos correspondem sempre a uma retórica “ilustrada”, no cotidiano
da Colônia a prática reformista coloca para o historiador dois tipos de “dis-
tanciamento”: dos agentes político-burocráticos e dos objetivos reformistas.
Por último, emerge uma indagação talvez a mais decisiva: como se deu a
recepção de tais reformas pelas “elites” coloniais?
Em primeiro lugar, os “distanciamentos”
Admitem os historiadores que os principais objetivos das “reformas
Ilustradas”, na Colônia, eram a centralização político-administrativa, a afir-
mação e o fortalecimento do poder real, a racionalização do aparelho ad-
ministrativo, e a supressão dos abusos praticados pelos oficiais da Coroa.
Ora, para cada um destes objetivos a historiografia recente vem expondo
seus limites e distorções, dada a força das permanências e a eficácia das re-
sistências – dos agentes burocráticos e das “elites”.
A centralização, por exemplo, deve ser repensada. Opera-se, na rea-
lidade, uma centralização a partir de Lisboa e uma descentralização na Co-
lônia, ou seja, enquanto se aperta o controle da Metrópole sobre órgãos e
agentes da administração colonial, favorece-se a relativa autonomia das au-
toridades coloniais entre si, de tal forma que a centralização ocorre, quan-
do muito, no interior de cada capitania.41
Fortalecer e afirmar o poder real, racionalizar o aparelho administra-
tivo em busca de sua maior eficiência, suprimir os abusos, pressupunha o
respeito às hierarquias e uma estrita obediência às ordens régias. Todavia,
na prática, certas, contradições impunham limites reais a esses objetivos.
Das contradições, uma das mais importantes é a da tradição versus inova-
ção. A tradicional política metropolitana de manter seus agentes na Colô-
nia em estado de insegurança quase permanente quanto a seus poderes e
atribuições, receiosos de desagradarem aos seus superiores, hesitantes dian-
te de situações imprevistas ou mal definidas nas suas “instruções”, assegu-
rou sempre à Coroa a posição de mediadora e suprema instância. O “equi-
líbrio do desassossego” entre os agentes da Coroa constituía a própria es-
sência da tradição a que nos referimos.42
É provável que, em face dessa tradição, as reformas pombalinas te-
nham representado uma relativa mudança, se bem que em termos um tan-
to contraditórios: uma vigilância mais rigorosa sobre órgãos e agentes da

161
Francisco Calazans Falcon

administração colonial, materializada em incessantes recomendações, ad-


vertências e punições; um esforço para a racionalização dos procedimentos
administrativos e modernização dos quadros burocráticos.
No seu conjunto, os resultados ficaram muito aquém dos objetivos. A
justiça régia continuou a ser escassa, demorada e mesmo ausente em vastos
espaços. Poucos juízes-ouvidores, sobrecarregados de tarefas, mal remune-
rados e sujeitos a pressões as mais diversas. Arbitrariedade e venalidade ca-
racterizam, por outro lado, os comportamentos de alguns desses juízes.43
No setor fazendário, modernizaram-se os procedimentos contábeis
das receitas e despesas,mas não se conseguiu avançar muito na racionaliza-
ção das fontes de receita. Os “apertos” financeiros, crônicos na Colônia,
agravaram-se em decorrência de freqüentes “despesas extraordinárias” im-
postas por contingências bélicas e calamidades públicas. Para os colonos, o
que houve de concreto foi um aumento sensível da carga tributária conse-
qüente intensificação das pressões fiscais.
Apesar das muitas críticas de então, o sistema dos “contratos reais”
foi mantido; continuou precária a remuneração dos agentes da administra-
ção pagos pela Coroa, persistindo os tradicionais abusos quando tal remu-
neração competia aos usuários – caso dos “ofícios” vitalícios.44
Concluindo, pode-se perceber a distância considerável existente en-
tre o desenho das reformas pombalinas nos discursos oficiais e as realida-
des da sua implementação. A idéia, muito difundida, de um absolutismo só
plenamente concretizado, em clave “iluminista”, graças a Pombal, não pas-
sa de um mito. Finalmente, duas perguntas que somente a própria pesqui-
sa histórica poderá vir a responder: em que sentido, ou até que ponto, as
reformas “ilustradas” foram como tais percebidas pelos “colonos”? em que
medida muitas dessas reformas representaram apenas, para os “colonos”,
mais exploração e “tirania”?
Não gostaríamos de terminar este trabalho sem uma rápida referên-
cia a uma questão fundamental por nós já tratada em outros textos45: as ati-
tudes das “elites coloniais” diante do “reformismo ilustrado”. A par dos pro-
blemas atinentes à caracterização dessas “elites” do ponto de vista socio-
econômico e cultural, importa-nos aqui sobretudo a análise das relações
entre elas e os agentes político-administrativos. Pensamos que tal análise
deverá colocar em evidência a dialética do conflito versus acomodação/coo-
peração no âmbito de tais relações.46 Com efeito, a partir de três tópicos ou
temáticas a historiografia recente vem evidenciando que a hipótese do
“conflito” precisa ser devidamente relativizada. 1 – através do conhecimen-
to mais preciso da “burocracia colonial” – sua estrutura, composição socio-
profissional, caráter de suas funções, inserção dos agentes no meio social
da Colônia; 2 – reavaliação da importância da “cidade colonial” como espa-
ço de sociabilidade, de interação de “colonizadores” e “colonos”; 3 – o pro-
cesso de “interpenetração” de “elites” e agentes da Coroa, a partir de for-

162
POMBAL E O BRASIL

mas muito variadas de sociabilidade pautadas, em geral, por considerações


de prestígio, interesse e favor.
Havia assim, à época do “reformismo ilustrado”, uma longa e com-
plexa tradição a presidir as relações entre “elites” e agentes de Coroa. A re-
cepção das reformas pelas elites projeta-se sobre o pano de fundo dessa tra-
dição incorporando experiências e expectativas geradoras de leituras dife-
rentes, quer dos discursos “ilustrados”, quer das práticas reformistas na Co-
lônia. Neste último caso, também faz sentido tentar perceber melhor as lei-
turas e comportamentos dos próprios agentes da Coroa. Trata-se, em resu-
mo, de leituras e atitudes que variam no tempo e de um segmento social a
outro. Por ora, parece-me arriscado apostar numa espécie de adesão em
bloco às reformas, quer das elites, quer dos agentes da administração. Nem
sempre as elites coloniais terão reconhecido como “positivas” muitas das
práticas supostamente “esclarecidas”; é possível que o inverso seja mais
exato. Tampouco há evidências que demonstrem a adesão incondicional do
aparelho administrativo a idéias e práticas reformistas.
Fica assim, uma derradeira pergunta: as reações das elites coloniais ao
“reformismo ilustrado” tenderam a uma espécie de compromisso com as di-
retrizes da Metrópole ou apressaram o processo de ruptura com a Coroa?

163
Francisco Calazans Falcon

N OTA S
1. FALCON, F. J. C. A Época Pombalina. Política Econômica e Monarquia Ilustrada. São Paulo: Ática, 1982.
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4. WALLERSTEIN, I, 1980, The Modern World System . II – Mercantilism and the consulidation of the
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tugal e suas Colônias (Lisboa, 1794) In: HOLANDA, Sérgio B. de (Ed.) Obras Econômicas de
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164
POMBAL E O BRASIL

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28. FALCON, F. J. C. 1982, op. cit., p. 378-82. Idem, 1992, As reformas pombalinas e a edu-
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168
capítu lo 10

O SENTIDO DA COLÔNIA.
REVISITANDO A CRISE DO ANTIGO
SISTEMA COLONIAL NO BRASIL
(1780-1830)
José Jobson de An drade Arru da*

A on da descolon izadora qu e varre os países african os e asiáticos n o


pós-Segu n da Gu erra Mu n dial, som en te en con tra paralelo, em term os do
seu im pacto h istórico, n a prim eira escalada do m ovim en to em an cipacio-
n ista das colôn ias da época m odern a, in scritas n o an tigo sistem a colon ial,
e qu e redirecion am o front dos acon tecim en tos, n a passagem do sécu lo
XVIII para o XIX. De fato, a em an cipação das an tigas colôn ias ibéricas, in s-
piradas n a precedên cia das 13 colôn ias in glesas, con stitu em -se n o fato h is-
tórico de m aior relevân cia n esse m om en to e, cu jas repercu ssões u ltrapas-
sariam de m u ito os estreitos lim ites cron ológicos de su a in cidên cia.
A ru ptu ra dos liam es en tre a m etrópole portu gu esa e a colôn ia bra-
sileira tem sign ificado diverso n a tradição h istórica en cetada, a partir de
en tão, pelos dois Im périos. A n atu reza m esm a dessa ru ptu ra, seu sign ifi-
cado h istórico específico, com porta visões diferen ciadas con soan te o ân gu -
lo do observador. As razões de su a eclosão, igu alm en te, percorrem u m
vasto lequ e de en con tros e desen con tros.
Com eçar por estas qu estões talvez aju de a com preen der o fu lcro de
n ossa an álise. Pen sa-se u m a colôn ia específica, localizada n a terra brasilis,
su a form a particu lar de in serção h istórica, o sistem a colon ial da época m o-
dern a e, privilegiadam en te, o m om en to cru cial da ru ptu ra en tre a m etró-
pole e a colôn ia, isto é, a crise do Im pério Lu so-Brasileiro, e n ão a crise da
Am érica Portu gu esa. Para tan to, torn a-se in dispen sável a rem em oração
das lin h as m estras do regim e colon ial aqu i im plan tado, sem o qu e, os fa-
tos con tin gen tes da tran sform ação seriam in in teligíveis, reforçan do a pers-
pectiva aciden tal da h istória.
Não se trata de qu alqu er colôn ia. Não é u m a colôn ia de povoam en -
to à sem elh an ça das colôn ias in glesas da Am érica do Norte.1 Não é, prim a-
cialm en te, o espaço de realização da política de fom en to do Im pério por-
tu gu ês. Trata-se, isso sim , de u m a colôn ia de exploração, u n iverso h istóri-
co privilegiado n a produ ção de su perlu cros destin ados a alim en tar o cres-
cim en to e o desen volvim en to da m etrópole eu ropéia, por m eio da tríade
latifú n dio-m on ocu ltu ra-escravidão ou do regim e de exclu sivo aplicado

169
José Jobson de Andrade Arruda

aos n ú cleos m in eradores. Ser de povoamento ou de exploração n ão sign ifica,


contudo, excludência absoluta. Na colônia de povoamento a exploração se
fazia presente: na de exploração, a presença populacional era inescapável. A
diferença se explicita na ênfase, no elemento que detém a primazia no esta-
belecimento da explicação e que integra, certamente, outras dimensões.
A Caio Prado Júnior e, sobretudo, Fernando Antônio Novais, deve-se
a fixação dos paradigmas referenciais que conduziram à conceituação de um
determinado sistema colonial da época moderna.2 A relação entre a colônia
(Brasil) e a metrópole (Portugal) realizava-se sob a égide da noção de exclu-
sivo comercial, ou seja, o monopólio do fluxo mercantil reservado unicamen-
te para a metrópole, cuja efetividade tornava imprescindível a adoção de uma
forte política protecionista que exigia, por seu turno, ações de natureza fiscal
e militar para sua plena consecução. A função precípua da colônia era, por-
tanto, a de acelerar a acumulação primitiva de capitais, produzir excedentes
por meio da comercialização dos produtos coloniais nos mercados europeus,
lucros estes que beneficiaram diretamente a burguesia mercantil do Reino e
a elite aristocrática, incrustada no aparelho de Estado. Eram lucros de mono-
pólio. Não quaisquer lucros. Expressavam a exclusividade da compra dos
produtos coloniais a preços rebaixados e a certeza de altos-lucros na revenda.
O abastecimento das necessidades coloniais com produtos produzidos na me-
trópole ou adquiridos nos mercados continentais, igualmente garantidores de
vantagens excepcionais, completavam o circuito.
O m on opólio é a ch ave para a com preen são desse fen ôm en o h istó-
rico. Sem ele, provavelm en te, n en h u m Im pério se teria form ado n os an os
an teriores a 1800, pois sign ificava “o direito exclu sivo sobre u m determ i-
n ado produ to, ou sobre o com ércio com u m determ in ado país; sen do qu e
este direito exclu sivo poderia ser con cedido a pessoas ou com pan h ias”.3 No
espaço colon ial, o capital m ercan til, an corado n o m on opólio, u ltrapassou
os lim ites da circu lação, aden tran do sin gu larm en te os dom ín ios da produ -
ção, garan tin do a realização m on etária da produ ção n o m ercado m u n dial.
Con cretizava-se, por esse m eio, a su bordin ação do processo produ tivo ao
capital m ercan til, através da rein stau ração do trabalh o com pu lsório, espe-
cialm en te escravo, projetan do o tráfico à con dição de elem en to propu lsor
do sistem a, pois a acu m u lação, em fu n ção das lim itações in tern as para a
reprodu ção local da m ão-de-obra, im pu n h a su a reposição por via do trá-
fico, sobrelevan do seu papel n a reprodu ção das relações sociais.4
A qu estão de fu n do n esse con texto é a própria n atu reza do capital
m ercan til. Nesta fase h istórica do capitalism o, o capital fixo jogava u m pa-
pel relativam en te dim in u to n o processo de reprodu ção. Com exceção da
terra, u m a parcela pon derável da riqu eza con sistia em capital circu lan te, o
qu e dem an dava pagam en tos qu ase im ediatos, ao m esm o tem po qu e gera-

170
O SENTIDO DA COLÔNIA. REVISITANDO A CRISE DO ANTIGO SISTEMA COLONIAL NO BRASIL

va en orm es dispon ibilidades de capitais para in vestim en tos ren táveis, ca-
pazes de aten der à exigên cia de realização rápida dos in vestim en tos m er-
can tis. Isto explica porqu e os em presários descon h eciam a especialização,
característica dom in an te en tre os pequ en os n egocian tes, m estres, logistas.
Os gran des n egocian tes atu avam sob os im pu lsos do m om en to, poden do
ser su cessiva ou con com itan tem en te m ercadores, arm adores, fin an cistas,
segu radores, ban qu eiros e, n o lim ite, em presários agrícolas ou in du striais.
Um a volu bilidade in trín seca presidia o m ovim en to do capital m ercan til:
perdas com a pim en ta eram com pen sadas n o com ércio da coch on ilh a; per-
das n os fin an ciam en tos para os Estados eram recu peradas n os em présti-
m os aos pequ en os agricu ltores; perdas n os fretes das cargas eram com pen -
sadas com a elevação do segu ro das m ercadorias; perdas n a arm azen agem
poderiam sign ificar avan ço n a con stru ção n aval.
O capital m ercan til se preservava crian do altern ativas para fu gas rá-
pidas, com pen satórias. Por isso, Brau del afirm ava qu e n ão h avia u m ram o
da atividade econ ôm ica su ficien tem en te rem u n erador, capaz de absorver
toda poten cialidade do capital m ercan til. Daí su a m aleabilidade, qu e pode-
ria levá-lo até m esm o a in vestim en tos em terras, m en os por su a ren tabili-
dade poten cial e m u ito m ais por su a capacidade agregadora em term os de
prestígio social. O extrem o lim ite seriam os deslocam en tos ru m o às ativi-
dades de m in eração e in du striais.5
Agilização do circu ito do capital era a expressão de com an do do ca-
pital m ercan til. Fossem m atérias-prim as, m ercadorias, arm azén s, equ ipa-
m en tos, n avios, m oedas. Mas tam bém poderia ser crédito para clien tes e
agen tes, serviços de câm bio, operações ban cárias e secu ritárias. Bu scava-
se estreitar o circu ito m on etário, elevan do-se os lu cros pela plu ralização
das ch an ces de in vestim en tos, o qu e o levava a resistir em aden trar a pro-
du ção e su bm etê-la diretam en te ao seu con trole, preferin do as form as de
su bordin ação in direta, m esm o qu e isso viesse a sign ificar qu e a m aior par-
cela do capital circu lan te represen tasse gastos com o trabalh o in corpora-
dos n a m ercadoria. Em com pen sação, aproxim avam -se os dois pólos ex-
trem os do circu ito do capital, pois n ão h avia im obilização em fatores de
produ ção, garan tin do-lh e plen a liberdade para tran sladar-se rapidam en te
às m elh ores opções do m ercado.
Isto explica porqu e o capital m ercan til en globa tan to o trabalh o in -
depen den te do artesão eu ropeu , qu an to o trabalh o com pu lsório dos escra-
vos n as plan tações tropicais, represen tan do am bos cu stos elevados para o
capital circu lan te, m as qu e deixavam para seu s con troladores im ediatos o
ôn u s de m an u ten ção e reposição do estoqu e. Assim se explica a n atu reza
con servadora do capital m ercan til, e o fato de qu e som en te n o m om en to
em qu e as ch an ces de lu cro rápido pelo giro m ercan til se con traíram , o ca-
pital m ercan til ten deu a pen etrar a produ ção, am plian do a parcela de ca-

171
José Jobson de Andrade Arruda

pital fixo im obilizado, com con seqü en te perda de versatilidade, qu e sem -


pre fora su a m arca expressiva. Neste con texto, projeta-se o papel do tráfi-
co à con dição de elem en to m otor da acu m u lação n o espaço colon ial.
Portanto, o essencial é reter a subordinação completa do movimen-
to histórico da economia colonial à preponderância do capital mercantil
que, na fase de expansão das economias centrais européias, subordina a
produção na sua forma artesanal e manufatureira, determina o padrão e os
limites do processo de acumulação e comanda o ritmo das economias colo-
niais.6 Estabelece-se uma relação de cumplicidade entre a metrópole e a co-
lônia, articulação vital entre capitalismo e colonização, cristalizada na fun-
ção colonial. Daí a inevitabilidade da subordinação da economia e da socie-
dade colonial. Afinal, a produção colonial não se autodetermina, isto é, o
circuito do capital somente se completa fora da colônia, quando as merca-
dorias de novo se transformam em dinheiro, o dinheiro se transforma em
fatores de produção, especialmente na aquisição de escravos no mercado
externo, não havendo reprodução, na colônia, dessa força de trabalho. A
mais, a parcela do excedente que se transforma em lucro realiza-se no pla-
no externo, nas mão da burguesia mercantil. As decisões políticas essenciais
se dão, igualmente, no espaço da metrópole, e não da colônia.
Destarte, a com preen são global desse processo h istórico particu lar,
en volve a captação dessa in teração dialética en tre a con dição colon ial ar-
ticu lada à m etrópole e a form ação social escravista da colôn ia, in teração
esta n a qu al o com an do en con tra-se fora do espaço colon ial, pois a repro-
du ção das relações sociais n ão se realiza en dogen am en te. Essa ên fase n o
com an do extern o da con dição colon ial n ão sign ifica, con tu do, a exclu são
perm an en te e defin itiva da ação dos h om en s colon iais n a bu sca de su a
au todeterm in ação. Ao se delin ear as lin h as-m estras dessa relação, n ão se
exclu i a gradativa in teriorização da colôn ia.
A ên fase n o setor exportador da econ om ia colon ial n ão sign ifica
descon siderar a im portân cia da produ ção de su bsistên cia ou do abasteci-
m en to. Os estu diosos, qu e cen tram su a aten ção n o setor exportador, o fi-
zeram por várias razões. Prim eiro porqu e era, efetivam en te, aqu ele qu e
garan tia a própria con dição colon ial. Segu n do, porqu e a docu m en tação
m ais abu n dan te e acessível era exatam en te aqu ela referen te ao m ercado
extern o, com o as Balan ças de Com ércio, por exem plo, ten do em vista su a
im portân cia estratégica n a sobrevivên cia política da colôn ia, razão pela
qu al a docu m en tação sobre a produ ção in tern a, especificam en te a de su b-
sistên cia, era rarefeita e precisava ser rastreada em repertórios docu m en -
tais qu e a ela se referem de m odo oblíqu o.
Nestes term os, esgotados os docu m en tos relativos ao setor exporta-
dor viria, n ecessariam en te, a fase dos estu dos referen tes à produ ção desti-
n ada ao m ercado in tern o. Isto seria qu ase n atu ral. O equ ívoco, está n a for-
m u lação de paradigm as n egativos, qu an do se bu sca ju stificar os n ovos es-

172
O SENTIDO DA COLÔNIA. REVISITANDO A CRISE DO ANTIGO SISTEMA COLONIAL NO BRASIL

tu dos, procu ran do reverter a ên fase, isto é, deslocar a relação prepon de-
ran te do exterior da colôn ia para seu in terior. Isto, para n ão se falar da sis-
tem ática desqu alificação dos in terlocu tores qu e delin earam o qu adro m ais
geral das explicações. Daí, a ten dên cia à radicalização dos escritos dos “ad-
versários”, atribu in do aos m esm os afirm ações qu e n ão fizeram , isto é, n e-
gar qu alqu er sign ificado à produ ção in tern a n o processo de con stitu ição
h istórica da colôn ia.
A busca inaudita de originalidade levou pesquisadores sérios a for-
mulações incautas, a exemplo desta síntese, do que possivelmente signifi-
caria o sentido da colonização outorgada aos autores ditos tradicionais: “a
economia colonial não presenciaria a constituição de um mercado interno
suprido por produções locais, a possibilidade de gerar acumulações endóge-
nas e muito menos teria condições de possuir ritmos econômicos próprios,
desvinculados do mercado internacional e das economias aí dominantes”.7
Pelo con trário, au tores com o Fern an do Novais, ao explicar a crise
do sistem a colon ial e a cam in h ada ru m o à in depen dên cia, afirm a qu e a ra-
zão da ru ptu ra estava n o fato de qu e “n ão é possível explorar a colôn ia
sem desen volvê-la”.8 Mais explícito im possível. Diz ser im pen sável a ex-
ploração econ ôm ica das colôn ias sem a criação de con dições m ín im as, ou
seja, a im plan tação da m áqu in a bu rocrático-adm in istrativa, a criação da
in fra-estru tu ra portu ária, das vias de circu lação, do aparato de defesa in -
tern a e extern a, da produ ção com plem en tar ao setor exportador, repre-
sen tado pela su bsistên cia. Em su m a, é flagran te a im possibilidade de ex-
plorar as riqu ezas colon iais sem desen volver, progressiva e con cretam en -
te, a colôn ia, sem am pliar su as m assas popu lacion ais e, por decorrên cia,
agravar as ten sões, os con flitos e as resistên cias.
A diversificação da produ ção colon ial n a Am érica Lu so-Espan h ola é
u m atestado dessa assertiva. Na Am érica Hispân ica, n as zon as con sidera-
das cen trais, por volta de 1600, a popu lação era den sa, com igrejas, m o-
n astérios, com ércio in ten so, h orticu ltu ra e atividades in du striais especiali-
zadas. Nas zon as ditas in term ediárias, cu ltivavam -se produ tos destin ados
à exportação e ao con su m o in tern o, h aven do in dú strias especializadas em
m atérias-prim as locais. Nas regiões periféricas o com ércio era ain da m ais
rú stico, assen tado n a criação de m u ares e cavalares.9 No Brasil, a m aior ou
m en or u tilização dos escravos n a produ ção destin ada ao con su m o estava
estreitam en te vin cu lada às flu tu ações do setor exportador, m as con sti-
tu íam atividades n ada desprezíveis n o côm pu to global dos valores de u so
realizados n a colôn ia.10
Esta con statação n ão perm ite, con tu do, in verter a roda da h istória.
Pen sar a econ om ia colon ial, isto é, sécu los XVI, XVII e prim eira m etade do
sécu lo XVIII, su bstan ciam en te, com o defin ida pelo tripé: acu m u lação en -
dógen a, m ercado in tern o e capital m ercan til colon ial residen te, tríade esta
qu e articu la u m n ovo “sen tido” para a colon ização, expressa n a “relativa

173
José Jobson de Andrade Arruda

au ton om ia do processo de reprodu ção da econ om ia... dian te das flu tu a-


ções do m ercado in tern acion al”; n os “processos de acu m u lação en dógen a
e a reten ção da parcela do sobretrabalh o gerado pela agroexportação n o
in terior do espaço colon ial”; e, fin alm en te, con sideran do-se qu e “esse ca-
pital é residen te, para além do exceden te apropriado pelo produ tor”,11 é
com eter o pecado do an acron ism o, isto é, tran sferir para o n ú cleo du ro da
colôn ia as características qu e com eçam a se form ar n as su as bordas, fin al
do sécu lo XVIII e prim eiras décadas do sécu lo XIX, m om en to n o qu al, con -
sen su alm en te, as estru tu ras colon iais en con tram -se em tran sform ação.
Sobretu do, n ão se pode tom ar as feições adqu iridas pela n atu reza da acu -
m u lação m ercan til, já n os m eados do sécu lo XIX, n a órbita de gran des
m ercados u rban os com o o Rio de Jan eiro, para realidades essen cialm en te
diversas postas n o sécu lo in iciais da colon ização. Neste con texto, a em an -
cipação política da colôn ia n ada sign ificou ?
Em texto recente e com a propriedade usual, Fernando Novais reto-
mou esta questão, explicando aos seus incuriais intérpretes que, ao falar de
exploração colonial pensava nos mecanismos de conjunto que enlaçavam o
mundo metropolitano e colonial e, que a ênfase na “acumulação para fora,
externa, refere-se à tendência dominante no processo de acumulação, não
evidentemente à sua exclusividade”. Em decorrência, “é claro que alguma
porção do excedente devia permanecer (“capital residente”) na Colônia, do
contrário não haveria reprodução do sistema”. O uso da expressão capital
residente alude à quem se destina a réplica e, sem ser tautológico, mas pre-
cisando ser pedagógico, reverbera: “Não se trata, desde logo, de uma forma-
ção social capitalista que se elabora sem acumulação originária; mas com um
nível baixo dessa acumulação”. Nível baixo não significa estagnado, mas sim
crescente, na medida em que o processo se punha em movimento. O repro-
che à leitura forçada que fizeram de seus escritos, se expressa enfaticamen-
te nessa formulação: “Não cabe, portanto, a increpação de obsessão com re-
lações externas (porque não estamos falando de nada externo ao sistema),
nem de desprezo pelas articulações internas, pois estas não são incompatí-
veis com aquelas; trata-se, simplesmente, de enfatizar um ou outro lado, de
acordo com os objetivos da análise. Nesta mesma linha, os trabalhos recen-
tes e de grande mérito sobre o mercado interno no fim do período colonial
não refutam (como seus autores se inclinam a acreditar) de maneira nenhu-
ma aquele esquema que gostam de apodar de “tradicional”; o crescimento
do mercado interno é, pelo contrário, uma decorrência do funcionamento
do sistema, ou, se quiserem, a sua dialética negadora estrutural”.12 Mais ex-
plícito impossível. Se as proposições destarte realçadas identificam o “tradi-
cional”, e se isto é sinônimo de passadiço, de superado, adiro ao “tradicio-
nal” contra o “moderno”, mas certamente nada eterno.13

174
O SENTIDO DA COLÔNIA. REVISITANDO A CRISE DO ANTIGO SISTEMA COLONIAL NO BRASIL

A grande maioria destas questões não passou desapercebida para o


competente brasilianista Stuart B. Schartz em seu estudo crítico Somebodies
and Nobodies em the Body Politic: Mentalities and Social Structures in Colonial
Brazil, publicado na Latin American Research Review (vol. 31, nº 1, p. 113-33).
Sua grande inovação é argumentar que o mercado interno passou a con-
duzir a economia como um todo, sobrelevando a natureza interna do
processo de formação do capital, o que tornaria a dependência externa
menos crucial na formação social do Brasil, gerando uma tensão perma-
nente em sua argumentação que, permanentemente, reconhece a inex-
tricável articulação entre a economia interna e o comércio exterior. Exemplo
notável desta relação é o incremento da produção de alimentos no mercado
interno, estimulada pelas exportações crescentes no vácuo da produção
antilhana desarticulada pela revolta de São Domingos em 1792, aliada à
peculiar conjuntura internacional gestada pelas guerras da Revolução
Francesa e do Império Napoleônico. A importação crescente de mão-de-
obra escrava e o salto demográfico explosivo da população no Rio de
Janeiro, que cresceu 160% entre 1799 e 1821, atestam os liames entre o
crescimento do mercado interno e a dinâmica do setor externo, demons-
trando ser um exercício de contorcionismo ineficaz a tentativa de colocar a
ênfase no mercado interno, seguramente, fruto de uma conjuntura
cronológica mais limitada.
In serido n o elen co daqu eles qu e estu daram prioritariam en te o setor
exportador,14 acabam os por revelar, n o fu n do, u m a sign ificativa diversifi-
cação do m ercado in tern o colon ial, especialm en te n a segu n da m etade do
sécu lo XVIII, on de se con stata a am pliação da produ ção agropecu ária, qu e
passa de 33 para 126 produ tos, den tre os qu ais o ou ro e o açú car perdem
a h egem on ia qu e sem pre tiveram . O açú car represen ta, n o fin al do sécu -
lo, n ão m ais do qu e 35% do total da exportação, respon den do o restan te
da produ ção por u m a sign ificativa din am ização da vida econ ôm ica in ter-
n a da colôn ia, com acen tu ada ten dên cia à in tern alização do flu xo de ren -
da e, até m esm o, o estím u lo ao desen volvim en to da pequ en a in dú stria li-
gada à tran sform ação de produ tos agropecu ários. Gradativam en te, a colô-
n ia desgarrava-se da rigidez do pacto colon ial, apresen tan do variedade re-
gion al n as relações de trabalh o, n o tipo de exploração econ ôm ica, n as for-
m as de propriedade, n os ín dices de ren da per capita, n o n ível dos preços,
revelan do in ten sa e crescen te diferen ciação in tern a.15
O aceleram en to das m u dan ças n a colôn ia acen tu avam a ten dên cia
ao deslocam en to das diretrizes do m on opólio m etropolitan o, apon tan do
para a crise do sistem a colon ial e a con seqü en te em an cipação política. Tais
m u dan ças, con tu do, n ão se fazem ao arbítrio da colôn ia, e sim n a su a in -
tersecção com o m u n do m etropolitan o. De fato, foi n a segu n da m etade do
sécu lo XVIII qu e, sob a égide das reform as pom balin as, a política colon ial

175
José Jobson de Andrade Arruda

portu gu esa, especialm en te aqu ela direcion ada ao Brasil, passou por alte-
rações sen síveis, m esm o preservan do as lin h as m estras da política m ercan -
tilista. Sob o im pacto da crise qu e se abatia sobre o Im pério Portu gu ês, di-
retam en te relacion ado à retração da produ ção au rífera brasileira, im pri-
m e-se u m a n ova diretriz in flu en ciada pela ilu stração, en qu adrada n o qu e
se con ven cion ou ch am ar o “m ercan tilism o ilu strado portu gu ês”, cu ja
m eta fu n dam en tal era a realização de abertu ras den tro do sistem a colon ial
m ercan tilista, visan do à am en ização do exclu sivo m etropolitan o, estim u -
lan do-se a produ ção da colôn ia pela bu sca de in tegração m ais forte en tre
o m u n do da m etrópole e o da colôn ia.
O dilem a dos estadistas portu gu eses era atroz, n a form u lação de
Fern an do Novais. “No plan o econ ôm ico, para con segu ir aproveitar os es-
tím u los da exploração de su a gran de colôn ia, Portu gal precisava desen vol-
ver-se; m as a exploração da colôn ia era con dição para seu desen volvim en -
to. Im agin ar u m a ‘in tegração’ era qu an to se con segu ia propor para su pe-
rar esse dilem a in solú vel. Mesm o assim , para con segu ir ‘in tegrar’, tin h a de
m odern izar-se, m as, agora n o n ível in tern o, isso levava a u m n ovo dilem a:
m obilizar o pen sam en to crítico para em preen der as reform as, e con tê-lo
para qu e n ão revelasse a su a face revolu cion ária. O ecletism o teórico e o
reform ism o prático n ão con segu iram , pois, su perar as agu das con tradições
por on de se m an ifestava a crise”.16
Nou tros term os, a m an ifestação do reform ism o ilu strado n a política
colon ial som en te adqu iriria total in teligibilidade, desde qu e fosse in serida
n o qu adro m ais geral da crise do sistem a. E esta crise resu ltava de su a pró-
pria estru tu ra e fu n cion am en to n a m edida em qu e, ao acelerar a acu m u -
lação de capitais, acelerava-se o processo de acu m u lação m ercan til e a su a
m etam orfose em capitalism o in du strial, especialm en te n a In glaterra, an -
corada n o cen tro do sistem a. Aqu i, a tran sform ação vital represen tada pela
passagem da m an u fatu ra à produ ção baseada n a m áqu in a-ferram en ta, re-
su ltava do im pacto do m ercado m u n dial e, sobretu do, do m ercado colo-
n ial. Por essa via, peças fu n dam en tais do an tigo sistem a colon ial, tais com o
m on opólio e escravism o, torn avam -se gradativam en te obstácu los in tran s-
pon íveis ao desen volvim en to do capital em escala m u n dial, colocan do em
ch equ e a própria exploração colon ial assen te n as determ in ações m ais ge-
rais do capital m ercan til.17
As m u dan ças estru tu rais n o âm ago do sistem a são, por certo, as con -
dições m ais am plas n a explicação da crise do sistem a colon ial. Desdobra-
m en tos qu ase n atu rais dessa assertiva é relem brar a con tradição m aior qu e
a exploração colon ial en gen drava: o crescim en to e o desen volvim en to da
colôn ia. No plan o m ais im ediato, o papel das circu n stân cias con ju n tu rais
precisa ser rem etido às tran sform ações estru tu rais, especialm en te, as rela-
ções en tre Fran ça e In glaterra. As m u dan ças n a con ju n tu ra política eu ropéia

176
O SENTIDO DA COLÔNIA. REVISITANDO A CRISE DO ANTIGO SISTEMA COLONIAL NO BRASIL

n ão podem , de per se, serem respon sabilizadas pela crise do sistem a colon ial.
Atribu ir toda cu lpa aos bloqu eios e con tra-bloqu eios, aos bloqu eios terres-
tres e aos con tra-bloqu eios m arítim os, é tom ar a n u vem por Ju n o. É des-
prezar o papel desem pen h ado pela colôn ia, pelos h om en s qu e aí viviam .
Jorge Pedreira, em seu estu do sobre a Estrutura Industrial e Mercado
Colonial, afirm a qu e as vibrações con ju n tu rais em an adas das gu erras qu e
se segu iram às revolu ções am erican a e fran cesa “con correram para u m a
vasta reorden ação da econ om ia in tern acion al e facu ltaram as con dições
para a in depen dên cia das colôn ias qu e as m on arqu ias ibéricas possu íam n a
Am érica”.18 Não n egligen cia, certam en te, as relações en tre os m ovim en tos
estru tu rais, as oscilações con ju n tu rais e as alterações político-m ilitares.
Mas, coloca n o ostracism o absolu to qu alqu er m an ifestação con creta da co-
lôn ia n as m u dan ças qu e en tão se operavam , espectadora im passível de seu
próprio destin o.
A idéia de u m a certa in ércia colon ial tran sparece, igu alm en te, n os
escritos de Valen tim Alexan dre. A com u n idade de lín gu a, h ábitos e reli-
gião seriam respon sáveis por u m a certa solidariedade en tre brasileiros e
portu gu eses qu e, apesar de rom pida pon tu alm en te com o n o caso dos em -
boabas, era, n o geral, reforçada pela n ecessidade de m an ter a dom in ação
sobre a im en sa m assa escrava. Em decorrên cia, o “Estado lu so-brasileiro
fu n cion ava ain da sem ten sões excessivas, tan to n o dom ín io econ ôm ico
qu an to n o político ... Nu m am bien te de prosperidade m ercan til gen erali-
zada, as pressões n acion alistas n o Brasil, ain da in cipien tes, n ão criam n u n -
ca qu alqu er am eaça real de ru ptu ra”.19 Se assim era, a ru ptu ra do pacto co-
lon ial teria qu e ser explicada, forçosam en te, de fora para den tro, a partir
de alteração n o qu adro de forças defin ido pelas relações políticas e diplo-
m áticas en tre as n ações eu ropéias h egem ôn icas, especialm en te, a Fran ça e
a In glaterra, porqu an to, a Portu gal, ficava reservado u m papel igu alm en -
te passivo, con torcen do-se en tre os pólos rivais, esgu eiran do-se sistem ati-
cam en te n a bu sca de u m a n eu tralidade im possível, m as oportu n am en te
proveitosa, en qu an to du rasse.
É n otável a m in im ização do papel da Colôn ia n a bu sca de seu pró-
prio destin o. Reifica-se a visão in cru en ta da trajetória h istórica da Colôn ia.
Su blim a-se o papel das n u m erosas m an ifestações de resistên cia qu e se
agu dizam n a segu n da m etade do sécu lo XVIII, especialm en te o papel da
In con fidên cia Min eira, m an ifestação con creta e sin tetizadora dos descon -
ten tam en tos da popu lação colon ial em relação à m etrópole portu gu esa.20
Um raro paradigm a in diciário.
A recu peração h istórica do papel da Colôn ia n a su peração do an ti-
go sistem a colon ial, im põe a retom ada de su a trajetória n o ú ltim o terço do
sécu lo XVIII. Não se pode falar em decadên cia de Portu gal n esse período.
Nada qu e lem brasse a retração m ercan til da prim eira m etade do sécu lo

177
José Jobson de Andrade Arruda

XVII, qu an do en tão se delin eia a gran de crise daqu ele sécu lo. Pelo con trá-
rio, apesar das dificu ldades políticas, especialm en te n o qu adro das relações
diplom áticas, a política exterior portu gu esa aproveitava ao m áxim o as
possibilidades in scritas n o prin cípio da n eu tralidade. O au ge da produ ção
au rífera n o Brasil correspon dera a persisten tes déficits n a balan ça com er-
cial portu gu esa em relação à In glaterra. Paradoxalm en te, o colapso n a ex-
ploração de m etais, equ ivale ao período em qu e a balan ça se equ ilibra e,
n os fin ais do sécu lo, torn a-se m esm o su peravitária em relação aos in gle-
ses. Um feito h istórico. Com isso tin h a sido possível?
Um a n ova articu lação n as relações m etrópole-colôn ia. A con tin u i-
dade da política pom balin a, o seu caráter in tegrado, n o qu al in dú stria,
agricu ltu ra e com ércio são objetos da ação govern am en tal, defin in do-se
u m am plo espaço de ação das políticas pú blicas com elevado grau de u n i-
dade. Con sideran do as m in as riqu ezas fictícias, Pom bal fez do estím u lo à
agricu ltu ra o epicen tro de su a ação política. Seu s efeitos n ão tardaram , ex-
pressan do-se n a diversificação agrícola do espaço colon ial brasileiro, ge-
ran do produ tos para a reexportação do Rein o, alim en tos para a popu lação
m etropolitan a e m atérias-prim as para as m an u fatu ras, en laçan do in dú s-
tria e agricu ltu ra, tran sform an do a cam in h ada ru m o à in du strialização
u m a possibilidade con creta. A criação das com pan h ias de com ércio, cu ja
fin alidade era exatam en te u n ir os espaços agrícola e in du strial, separados
pelo ocean o, fech ava o circu ito da perspectiva econ ôm ica qu e en tão se de-
lin eava para o Im pério Lu so-Brasileiro. Nestes term os, a política in du stria-
lista portu gu esa n ão foi o fru to passageiro de u m a crise com ercial, com o
ocorrera n o sécu lo XVII. Tem u m caráter estru tu ral e en orm e poten cial
tran sform ador, seja n a m etrópole, seja n a colôn ia.
Esta form u lação, bem o sabem os, con fron ta as explicações do m es-
tre Victorin o Magalh ães Godin h o, para qu em “os m ovim en tos in du stria-
listas se deram n o segu im en to de crises com erciais profu n das e, portan to
de baixa prolon gada de preços”, o m esm o acon tecen do com “a política
pom balin a do terceiro qu artel do sécu lo XVIII”.21 Godin h o h om ologiza o
discu rso, repon do para o sécu lo XVIII a m esm a explicação dada ao sécu lo
XVII, n o atin en te às ten tativas falh as de in du strialização, n o qu e é im pro-
priam en te acom pan h ado pelos qu e vêem n a essên cia da política colon ial
portu gu esa o arcaism o por projeto, elevado à con dição de n ervo explicati-
vo da con dição colon ial,22 com o se colôn ia e m etrópole fossem sin ôn im os
u n idos por u m m esm o sin al explicativo, in fen so à diferen ciação qu e o pro-
cesso h istórico in stau ra. Isto explica a aproxim ação en tre os revision istas
portu gu eses e seu s segu idores n o Brasil n a árdu a tarefa de ressem an tiza-
ção h istórica da Colôn ia, da n atu reza m esm a de su a existên cia, das con di-
ções específicas de su a em an cipação. Um privilegiam en to n ada recôn dito
da con tin u idade em detrim en to da ru ptu ra, on de tu do são con ju n tu ras,
n ada é estru tu ral.

178
O SENTIDO DA COLÔNIA. REVISITANDO A CRISE DO ANTIGO SISTEMA COLONIAL NO BRASIL

Com o en ten der o arcaism o com o projeto dian te do pertu bador cres-
cim en to econ ôm ico, expressão do n ovo e com plexo relacion am en to m e-
trópole-colôn ia. Nele, as colôn ias torn am -se m ercados con su m idores das
m ercadorias in du strializadas produ zidas n a m etrópole e forn ecedores de
alim en tos e m atérias-prim as, declin an do gradativam en te a im portân cia
dos produ tos tropicais. É n otável a distân cia en tre este relacion am en to e
aqu ele qu e se delin eara n a fase de m on tagem do sistem a colon ial, e m es-
m o de su a m atu ridade, isto é, n os sécu los XVI e XVII. O n ovo m odelo n ão
rom pe visceralm en te com o an terior. Reforça os liam es en tre a m etrópole
e a colôn ia e, de certa form a, an tecipa as ten dên cias qu e seriam dom in an -
tes n a segu n da m etade do sécu lo XIX, n o qu adro do n eocolon ialism o. É
pion eiro e precoce. Em erge do âm ago do an tigo sistem a colon ial, o qu e
talvez expliqu e os en traves estru tu rais à su a rápida e plen a realização.
Defron tam o-n os com u m a tran sform ação vital. Se a m etrópole avan -
ça crian do fábricas, a colôn ia diversifica su a produ ção, seu s m ercados se in -
tegram in tern a e extern am en te. Se as ren das geradas pelo setor exportador
são m en ores, tan to n o Brasil qu an to em Portu gal, com parativam en te ao
au ge da produ ção au rífera, com pen sam pela su a distribu ição m ais plu ral,
refletida n os ín dices de ren da per capita. A con ju n tu ra econ ôm ica era de
prosperidade. Não se pode falar em depressão, em decadên cia. E, em tais
circu n stân cias, en gen dra-se u m en orm e poten cial tran sform ador.
Os prim eiros sin ais den otadores da em ergên cia de u m a n ova con fi-
gu ração n as relações n o âm bito do sistem a colon ial aparecem n a segu n da
m etade do sécu lo XVII, con secu tivo à crise geral.23 Rom pe-se o m on opólio
da produ ção açu careira, acirra-se a com petição en tre as m etrópoles, in ter-
n acion aliza-se o capital m ercan til, am plia-se o con su m o pela baixa de pre-
ços, ao m esm o tem po qu e cresce o m ercado con su m idor colon ial para pro-
du tos m an u fatu rados vin dos das m etrópoles. A m axim ização dos lu cros
pela otim ização dos fatores de produ ção, estritam en te regidos pelas leis da
econ om ia de m ercado, su gerem a em ergên cia de u m segu n do sistem a
Atlân tico, n a den om in ação Peter Em m er.24 Porém , apesar de seu elevado
grau de especialização, a essên cia desse sistem a produ tivo assen tava-se n o
tripé m on ocu ltu ra, latifú n dio e escravidão. A diferen ça essen cial do n ovo
padrão de colon ização, criado pelos portu gu eses, estava exatam en te n o
en lace colôn ia-m etrópole sob a égide da in du strialização, u m n ovo arran -
jo pelo qu al, sem abrir m ão do m on opólio, firm ava-se u m n ovo tipo de re-
lacion am en to bilateral.
Equ ívoco falar-se, portan to, em decadên cia ou crise n o sen tido res-
tritivo. Trata-se de u m a crise de crescimento qu e, em Portu gal, tran sform a-se
gradativam en te em crise de retração, qu e algu n s au tores preferem den o-
m in ar “colapso”,25 reforçan do a sen sação de u m tem po perdido qu e con -
du z a reificação n ostálgica do m ito da decadên cia. No Brasil, igu alm en te,
a produ ção h istoriográfica dos an os 60 acabou por con solidar a idéia de

179
José Jobson de Andrade Arruda

qu e u m a “profu n da prostração” se abatia sobre a colôn ia, n os an os qu e an -


tecederam a in depen dên cia. Celso Fu rtado refere-se à falsa eu foria do fim
da época colon ial. Virgílio Noya Pin to assim en ten de o período em seu es-
tu do sobre a con ju n tu ra econ ôm ica n a época da In depen dên cia 26. Essas in -
terpretações são bem o exem plo de com o as con dições h istóricas presen -
tes, viven ciadas pelos h istoriadores, podem in flu ir em su a percepção do
passado. De fato, n o m om en to em qu e esses escritos eram produ zidos, de-
paravam o-n os, n o país, com o im pacto de u m a forte crise do capitalism o
periférico, crise esta qu e, mutatis mutandis, gu ardava u m a certa sem elh an -
ça com a crise dos prim órdios dos an os oitocen tos. A in telectu alidade bra-
sileira, qu e vivia in ten sa e agu dam en te este período, an te-sala dos an os de
exceção qu e se segu iriam , precon izava du as saídas possíveis para a crise: o
colapso fin al do capitalism o periférico brasileiro e a con seqü en te im plan -
tação do regim e socialista; ou , a cam in h ada in exorável da sociedade brasi-
leira ru m o a estagn ação econ ôm ica in evitável.
A aproxim ação im agin ária en tre estes dois m om en tos críticos da
História do Brasil, in du ziu à iden tificação sim bólica en tre o an tigo sistem a
colon ial e o capitalism o periférico; a altern ativa revolu cion ária com a ru p-
tu ra do pacto colon ial e o m ovim en to da In depen dên cia; a estagn ação ir-
rem ediável com a situ ação econ ôm ica e política de Portu gal após a tran s-
m igração da fam ília real para o Brasil.
Três décadas se passaram . Os acon tecim en tos h istóricos vieram a
dem on strar qu e h avia u m a terceira possibilidade in scrita n a in terpretação
da crise do capitalism o periférico, e qu e se tran sform ara em pon to de re-
ferên cia in con scien te para o equ acion am en to da crise do an tigo sistem a
colon ial, isto é, a possibilidade de qu e o capitalism o con tin u asse a su a tra-
jetória, am en izado em su as tran sgressões sociais por reform as dem ocráti-
cas ou dem ocratizan tes, reais ou , sim plesm en te, alardeadas.27 Im pen sável
m esm o, n aqu eles an os, era o desaparecim en to total da opção socialista,
pela crise arrasadora qu e sobre ela se abateu n os an os 80/ 90. Por tu do isso,
as pesqu isas qu e apon tavam para o crescim en to econ ôm ico da colôn ia e,
portan to, seu desen volvim en to n o in terior das m alh as do sistem a colon ial,
n ão foram devidam en te con tem pladas n as an álises.28
Partin do-se do pressu posto de qu e h avia crescim en to e desen volvi-
m en to real da Colôn ia, com o en ten der a ru ptu ra, o resu ltado ocasion al de
con tin gên cias h istóricas fortu itas e in apeláveis? A trajetória n atu ral con -
du cen te à globalização atu al propiciada pelos descobrim en tos qu an do co-
lôn ias foram criadas e fu tu ras n ações in depen den tes an u n ciadas? O dis-
cu rso político da elite colon ial era sobretu do an ticolon ial e an tim etropoli-
tan o, o qu e se explica pela n ecessidade fu n dam en tal de preservar a liber-
dade de com ércio e a au ton om ia con qu istada com a qu ebra do m on opó-
lio, n o con texto da abertu ra dos portos.29 Mas esta m obilização crítica do

180
O SENTIDO DA COLÔNIA. REVISITANDO A CRISE DO ANTIGO SISTEMA COLONIAL NO BRASIL

pen sam en to n ão poderia se con stitu ir de u m m om en to para ou tro, de qu e


se depreen de qu e, se falava m ais alto a lin gu agem do m ercado, da liberda-
de dos m ercados, ela teria qu e ser o fru to da con sciên cia de qu e as m iga-
lh as esparsas do m ercado colon ial, aos pou cos, n o processo colon izador,
con stitu íram u m a rede de m alh as irregu lares, m as cu jos laços se apertam
n o decu rso do sécu lo XVIII, sobretu do em seu ú ltim o terço, qu an do os
m ercados region ais com eçam a se defin ir.
O sertão foi esqu artejado n as picadas dos com boios de an im ais, n o
trân sito de h om en s sequ iosos por pedras preciosas, por m etais. Os n ú cleos
m in eradores arrastaram os h om en s, o im agin ário, a h istória. A distân cia
dos agru pam en tos u rban os aliviava o con trole e propiciava a revolta. Eco-
n om ias m edíocres, qu ase au to-su ficien tes, com o a dos pau listas, davam
vazão às explosões de violên cia, m as atrelam -se ao m ercado das Min as Ge-
rais, via abastecimento oriundo dos campos dos goitacases. Os próprios qu i-
lom bos, os redu tos de sicários, in tegram -se aos m ercados próxim os origi-
n an do atividades tem porárias ou perm an en tes. Portan to, laços tên u es, co-
tidian am en te repetidos, form an do u m a teia relacion al de lon go cu rso. Nos
pólos n evrálgicos do sistem a, aqu eles articu lados fortem en te às econ om ias
exportadoras, vicejavam os com ercian tes, tão ricos e poderosos qu e deles
se dizia, n o sécu lo XVIII, qu e a “Espan h a era u m a colôn ia de su as colô-
n ias”. Por aí se en ten de a recorrên cia da presen ça de m ercadores colon iais
n os m ovim en tos de resistên cia, em con flito perm an en te com seu s com pe-
tidores m etropolitan os.30
No m om en to da crise do sistem a a colôn ia brasileira revela u m a
econ om ia ativa, defin ida pela plu ralidade de relações de trabalh o em su as
várias regiões, pela disparidade dos preços da produ ção in tern a de produ -
tos sim ilares, pela forte ação do con traban do n os portos brasileiros n os
an os an teriores a 1808 qu e, pela m an u ten ção dos ín dices de exportação e
declín io das im portações portu gu esas, expõe o escan caram en to dos portos
m esm o an tes da abertu ra oficial, revelan do a in exorável destru ição do re-
gim e de exclu sivo, qu e som en te se torn ou exeqü ível graças à con vivên cia
dos colon os qu e, assim , forjavam seu próprio cam in h o das m alh as do sis-
tem a colon ial.31
A in ten sificação do con traban do n esse período cru cial torn a-se em -
blem ática.32 Sim boliza, de u m lado, a resistên cia colon ial e, de ou tro, a
con cretização da pressão in glesa qu e forçava n o sen tido da abertu ra dos
portos do Brasil.33 Os testem u n h os do con tador Mau rício José Teixeira de
Moraes são eloqü en tes do desespero qu e se abate sobre as au toridades por-
tu gu esas. Em 1802, n o prólogo da Balan ça de Com ércio, afirm ava: “qu eira a
sorte qu e n ão su ceda o m esm o n os an os fu tu ros pela abu n dân cia de con -
traban do qu e se in trodu z n a Am érica”. Em 1805, voltaria a lam en tar-se:
“dim in u tas exportações procedem in du bitavelm en te do m u ito con traban -
do, cu ja en trada está fran qu eada n aqu eles portos...; e, se pelo con trário, as

181
José Jobson de Andrade Arruda

im portações n este Rein o n ão tem dim in u ído, segu e-se qu e o referido con -
traban do é todo ven dido a troca de m oeda corren te”. Um a ação tão agres-
siva teria qu e con tar, certam en te, com o respaldo dos h abitan tes da colô-
n ia e, até m esm o, dos com ercian tes portu gu eses aqu i in stalados. É o qu e
se depreen de dos escritos de 1806: “a estagn ação do com ércio provém do
ru in oso prin cípio da in trodu ção clan destin a das m ercadorias proibidas n es-
te e n aqu ele con tin en te, pela falta de patriotism o de algu n s n egocian tes
qu e, esqu ecidos das leis qu e n os regem , procu ram tão som en te os seu s in -
teresses”. A con su m ação da tragédia an u n ciada an os an tes se dá em 1807,
qu an do diz: “ten h o m u ito pou co a pon derar do estado do n osso com ércio
n o an o passado de 1807, qu e n ão seja u m a repetição do qu e disse n os an os
de 1805 e 1806, por ele cam in h ar para su a decadên cia e abatim en to”.34
Mesm o qu e se afirm e qu e os respon sáveis pela coibição dos desca-
m in h os, com o era o caso do con tador Mau rício José, via de regra exage-
ram em su as avaliações som brias, n ão se pode n egligen ciar a con clu são
óbvia de qu e as exportações portu gu esas para a Colôn ia ten deram a zero
e qu e, efetivam en te, os portos brasileiros abriam -se an tes de 1807, tran s-
form an do o docu m en to de abertu ra dos portos de 1808 n u m a m era for-
m alização sobre práticas con cretas.
O período de 1780-1830 é vital para que se possa compreender a tra-
jetória brasileira. Nublado pela experiência vitoriosa do ouro e do café, re-
metem a segundo plano a produção de subsistência, a história do abasteci-
mento, a dinâmica da economia mercantil de subsistência, a força da diver-
sificação econômica, que é a marca indelével do período e, a partir da qual,
pode-se entender a emergência de um patamar mínimo de integração do
Brasil no mercado mundial, ou seja, um mínimo de articulação interna en-
tre as diferentes regiões e zonas produtivas brasileiras; a existência de dife-
rentes relações de produção e variados padrões de acumulação nas regiões
brasileiras; a emergência de um centro dinâmico capaz de integrar o con-
junto e mesmo se auto-reproduzir, como é o caso de Minas Gerais.
O con trapon to com esta experiên cia in tegradora an corada em Min as
Gerais, e qu e sobreleva o seu sign ificado h istórico, é o exem plo das colôn ias
espan h olas da Am érica qu e realizam u m a trajetória in versa, pois o rom pi-
m en to com a m etrópole an u la o ú n ico vín cu lo de u n idade existen te, expon -
do e reforçan do a plu ralidade dispersiva da region alização econ ôm ica.
Revela-se, portan to, n a in tegração de vários m ercados region ais
brasileiros em torn o de u m cen tro articu lador, o su rgim en to de u m esbo-
ço do m ercado n acion al, em fu n ção do qu al arregim en tam -se in teresses
sociais específicos, capazes de m obilizar a ação política coletiva ru m o à
ru ptu ra e à con stitu ição do Estado Nacion al. A crise do sistem a colon ial
produ z-se n o in terior do processo colon izador, on de se en gen dra a n ação
e se gesta a n oção de perten cim en to, reforçada pela lin gu agem do in teres-
se com u m do m ercado.

182
O SENTIDO DA COLÔNIA. REVISITANDO A CRISE DO ANTIGO SISTEMA COLONIAL NO BRASIL

N OTA S
1. De toda evidên cia, trata-se de u m a colôn ia de exploração, de acordo com a tipologia clás-
sica de LEROY-BEAULIEU, P. De la colonisation chez les peuples modernes. Paris, 1902. t.II, p.563
ss, assu m ida por Fern an do An tôn io Novais em seu en saio Con siderações sobre o sen tido da
Colon ização, Revista de Estudos Brasileiros (São Pau lo), v.6, p.55,1969. Fora de cogitação, por-
tan to, en ten dê-la com o “u m a colôn ia de povoam en to”, com o o faz ALEXANDRE, V., 1993.
p.810. Não se percebe a distin ção fu n dam en tal, n este caso, en tre explorar econ om icam en te
para fixar a popu lação (colôn ia de povoam en to) e povoar para garan tir a exploração econ ô-
m ica (colôn ia de exploração). Em dois livros diferen tes: PRADO JÚNIOR C. 1961a . e PRADO
JÚNIOR, C., 1961 já ensinava que: “Para os fins mercantis que tinha em vista ... era preciso …
criar u m povoam en to capaz de abastecer e m an ter as feitorias qu e se fu n dassem , e organ izar
a produ ção dos gên eros qu e in teressavam seu com ércio”. A idéia de povoar surge daí e só daí.
(grifo n osso).
2. Cf. PRADO JÚNIOR, C., 1961, especialm en te o capítu lo Sen tido da Colon ização, p.13-26.
NOVAIS, F. A. 1979, especialm en te A Colon ização com o sistem a, p.57-72.
3. HAMILTON, E. J. Th e Role of Mon opoly in th e Overseas Expan sion an d Colon ial Trade of
Eu rope Before 1800. The American Economic Review , 1948, v.38, n .2, p.53.
4. NOVAIS, F. A. O Brasil n os Qu adros do An tigo Sistem a Colon ial. In : MOTA C. G. (Org.)
Brasil em Perspectiva. São Pau lo: Difel, 1969. p.47-62.
5. Para Fern an d BRAUDEL, “O processo de produ ção é u m a espécie de m otor de dois tem -
pos, os capitais circu lan tes são destru ídos im ediatam en te para serem reprodu zidos ou m es-
m o au m en tados”, já, “a deterioração do capital fixo é u m a doen ça econ ôm ica pern iciosa qu e
n u n ca se in terrom pe”. Assim sen do, “é a estru tu ra econ ôm ica e técn ica qu e con den a certos
setores – particu larm en te a produ ção ‘in du strial’ e agrícola – a u m a pequ en a form ação de ca-
pital. Sen do assim , n ão é de adm irar qu e o capitalism o do passado ten h a sido m ercan til, qu e
ten h a reservado o m elh or do seu esforço e dos seu s in vestim en tos à esfera da circu lação”. O
resu ltado é u m a con tradição flagran te, pois “em países su bdesen volvidos o capital líqu ido, fa-
cilm en te acu m u lado n os setores preservados e privilegiados da econ om ia, seja por vezes su -
perabu n dan te e in capaz de ser in vestido de m odo ú til em su a totalidade. In stala-se sem pre
u m vigoroso en tesou ram en to. O din h eiro ‘estagn a’, ‘apodrece’; o capital é su bem pregado”.
Em certos m om en tos, “u ltrapassa a qu an tidade de ben s capitais e de din h eiro qu e su a eco-
n om ia poderia con su m ir. En tão ch ega a h ora das com pras de terras pou co ren táveis, a h ora
das m agn íficas casas de cam po con stru ídas n essa época, do desen volvim en to m on u m en tal,
das explosões cu ltu rais”. Essas econ om ias produ ziam u m a “qu an tidade n otável de capital
bru to, mas em certos setores esse capital bru to derretia como n eve ao sol”. BRAUDEL, F.,1996,
p.210-5. Sobre a n atu reza do capital m ercan til, n os term os em qu e aqu i foi delin eado, Cf.
ARRUDA, J. J. de A. Exploração Colon ial e Capital Mercan til. In : SZMRECSÁNYI T. (Org.)
História Econômica do Período Colonial. São Pau lo: Hu citec,1996. p.217-23.
6. Cf. MELLO, J. M. C. de, 1982. p.89.
7. FRAGOSO, J. L. R. 1992. p.20.
8. NOVAIS, F. A., 1972. p.23.
9. VAN BATH, S. Econ om ic Diversification in Span ish Am erica Arou n d 1600: Cen tres In ter-
m ediate, Zon es an d Periph eries. In : Jahrbuch für Geschichte von Staat, Wirtschaft und Gesellschaft,
1979. p.78.
10. Sobre este tem a ver CARDOSO, C. F. A brech a Cam pon esa n o Sistem a Escravista. In :
Agricultura, Escravidão e Capitalismo. Petrópolis: Vozes, 1979.
11. FRAGOSO, J. L. R., op. cit., p.21.
12. Estas reflexões, absolu tam en te n ecessárias, NOVAIS, F., 1997, relegou a u m a n ota de pé
de págin a de seu referido capítu lo.

183
José Jobson de Andrade Arruda

13. Desdobram en to n atu ral dessas proposições são as in qu ietações qu e assom am Fern an do
Novais, ao refletir sobre o “n ovo sen tido” da econ om ia colon ial, qu e lh e provocam in ú m eras
in terrogações: “Um a qu estão qu e sem pre m e ocorre dian te desses argu m en tos é esta: se n ão
são estas as características (extroversão, extern alidade da acu m u lação etc.) fu n dam en tais e
defin idoras de u m a econ om ia colon ial, o qu e, en tão, as defin e? Ou será qu e n ão se defin em ?
Será qu e n ada de essen cial as distin gu e das dem ais form ações econ ôm icas? Não creio qu e
seja esse o objetivo dos revision istas”. Ibid.
14. Cf. ARRUDA, J. J. de A., 1980. Passados 25 an os desde qu e esta obra foi escrita, su as con -
clu sões fu n dam en tais perm an ecem de pé. Especialm en te n o qu e tan ge à im portân cia decisi-
va da perda do m ercado brasileiro n a explicação da crise da in dú stria portu gu esa. As reava-
liações qu an titativas feitas por Valen tim Alexan dre são m u ito im portan tes por aden sarem os
dados. Mas as con clu sões decisivas m an têm -se: a idéia da diversificação, o déficit de Portu gal
peran te a Colôn ia, a in ten sidade do con traban do. Certam en te, o avan ço da pesqu isa, perm i-
tiu a relativização dessas con clu sões, m as n ão su a in validação. Cf. ALEXANDRE, V.,1993, es-
pecialm en te, p.25-89.
15. Note-se qu e a idéia de diversificação do m ercado colon ial, da in ten sificação do processo
de acu m u lação in tern a fora por n ós apon tado claram en te em 1972, an o de redação de O Bra-
sil no Comércio Colonial, e retom ado en faticam en te em 1985 n o artigo: A Prática Econ ôm ica
Setecen tista n o seu Dim en sion am en to Region al. Revista Brasileira de História, v.10, p.123-46,
1985.
16. NOVAIS, F. A., 1979, p.301.
17. Ibidem .
18. PEDREIRA, J., 1994, p.516.
19. ALEXANDRE, V., op. cit., p.811.
20. De toda evidên cia trata-se de u m a visão extern a, m etropolitan a, da h istória colon ial. In -
crível é qu e h aja epígon os qu e a assu m em e reprodu zem em escritos descaracterizadores de
n ossas trajetória h istórica, forçan do n o sen tido de m in im izar a im portân cia dos m ovim en tos
de resistên cia ocorridos n a Colôn ia. Exem plo típico dessa postu ra revision ista con servadora
é a afirm ação de Gu ilh erm e Pereira das Neves: “parece pou co provável qu e os m ovim en tos
con testatórios do período ten h am a dim en são qu e lh es em prestou u m a h istoriografia n acio-
n alista, sequ iosa de en con trar os an teceden tes da In depen dên cia de 1822 e de estabelecer os
m itos fu n dadores da n ova n ação”. Se esta in terpretação é atribu ída a u m a h istoriografia n a-
cion alista, com o qu alificar a descon stru ção do articu lista? Se n ão h á relação en tre a In depen -
dên cia e esses m ovim en tos an teriores, o qu e foi a In depen dên cia? Um a dádiva? Um aborto?
Cf. NEVES, G. P. das Do Im pério Lu so-Brasileiro ao Im pério do Brasil. Ler História, v.27-28,
p.91,1995.
21. Cf. GODINHO, V. M., 1955, p.208, retom an do-se o tem a n as págin as 279 ss. Para n ossa
argu m en tação em torn o do tem a, Cf. ARRUDA, J. J. de A. Decadên cia ou crise do Im pério
Lu so-Brasileiro: o n ovo padrão de colon ização do sécu lo XVIII. In : ACTAS DOS 4º. s CURSOS
INTERNACIONAIS DE CASCAIS, 1997.
22. “O arcaism o é, isto sim , u m verdadeiro projeto social”, o qu e explicaria porqu e as ten ta-
tivas de in du strialização, “ocorridas n os sécu lo XVII e XVIII, som en te em m eio a con ju n tu ras
n as qu ais a reprodu ção deste tipo de projeto se via am eaçado; u m a vez qu e passado o perío-
do arcaico retom ou com força total”. Cf. FRAGOSO J., FLORENTINO, M., 1993. p.27.
23. Cf. HOBSBAWM, E. Th e Crisis of th e Seven teen th Cen tu ry. In : ASTON, T. (Ed.) Crisis in
Europe 1560-1660. Lon don : Rou tledge e Kegan Pau l, 1965. p.51.
24. Cf. EMMER, P. C. Th e Du tch an d th e Makin g of th e Secon d Atlan tic System . In : SOLOW
B. (Ed.) Slavery and the Rise of the Atlantic System. Cam bridge: Cam bridge Un iversity Press,
1991. p.75-96.
25. Cf. ALEXANDRE, V., op cit.; PEDREIRA, J., op. cit.

184
O SENTIDO DA COLÔNIA. REVISITANDO A CRISE DO ANTIGO SISTEMA COLONIAL NO BRASIL

26. Cf. FURTADO, C., 1963, p.112.; PINTO, V. N. Balan ço das Tran sform ações Econ ôm icas n o
Sécu lo XIX. In : Brasil em Perspectiva. São Pau lo: DIFEL, 1969. p.125-46.
27. GOERTZEL, T. apon ta Fern an do Hen riqu e CARDOSO com o u m dos raros in telectu ais ca-
pazes de pren u n ciar estas possibilidades. Cf. O Modelo Político Brasileiro e Outros Ensaios. São
Pau lo: DIFEL, 1972. p.66.
28. Cf. MAURO, F. A Con ju n tu ra Atlân tica e a In depen dên cia do Brasil. In : MOTA, C. G.
(Org.) 1822 Dimensões. São Pau lo: Perspectiva, 1972. p.38-47; MATTOSO, K. de Q. Os Preços
n a Bah ia de 1750 a 1930. In : L’Histoire Quantitative du Brésil de 1800 a 1930. Paris: CNRS, 1973.
p.167-82; JOHNSON, H. B. Mon ey an d Prices in Rio de Jan eiro (1720-1860). In : MAURO, F.
(Org.), op. cit., p.39-47.
29. Cf. COSTA, E. V. da, 1969, p.63-124.
30. Cf. BRAUDEL, F., 1996. p.373. v.3.
31. Cf. ARRUDA, J. J. de A Mercado Nacion al e Mu n dial en tre o Estado e a Nação: Brasil, da
Colôn ia ao Im pério. In : Estados e Sociedades Ibéricas. Realizações e Conflitos (Século XVIII-XX), Ac-
tas dos 3ºs Cu rsos In tern acion ais de Cascais, v.III, p.195-206, Cascais, 1996.
32. “However, in m om en ts of crisis, th e aggressive pen etration of forein g com m erce in to th e
colon y cou ld lead to a desin tegration of th e system or th e loss (in depen den ce) of th e colon y”.
ARRUDA, J. J. de A. 1991. p.397.
33. Cf. MAXWELL, K. Th e Atlan tic in th e Eigh teen th Cen tu ry: A Sou th ern Perspective on
th e Need to Retu rn to th e “Big Pictu re”. Transactions of the Royal Historical Society (Lon don ), 6th
series, v.3, p.230, 1993.
34. Prólogo das BALANÇAS de 1802, 1805, 1806 e 1807. MORAES, M. J. T. de Balança Ge-
ral do Commercio do Reyno de Portugal com seus Domínios. Lisboa: In stitu to Nacion al de Estatísti-
ca, 1807. Texto atu alizado. Em estu do recen te, Ern st Pijn in g an alisa de form a den sa e pe-
n etran te a relação en tre con traban do e sistem a colon ial. Parte da con statação de qu e o fen ô-
m en o do con traban do era parte visceralm en te con stitu tiva do tecido da sociedade colon ial e
m esm o de su a m en talidade. Con stata, a partir da an álise das apreen sões realizadas pelo poder
pú blico n o fin al do sécu lo XVIII, n o Rio de Jan eiro, a in ten sificação do com ércio ilegal, pois
os altos e baixos das apreen sões m ostram a cau tela qu e se segu e às ações restritivas. De qu al-
qu er form a, o an o de 1798 é expressivam en te distin gu ido pelo salto espetacu lar das apreen -
sões, defin in do u m m om en to específico do fortalecim en to da prática do con traban do n o
Brasil colon ial. Cf. PIJNING, Ern st, Controlling Contraband: Mentality, Economy and Society in
Eighteenth-Century Rio de Janeiro. Tese de dou torado, Joh n s Hopkin s Un iversity, Baltim ore,
Marylan d, 1997, p. 17.

185
José Jobson de Andrade Arruda

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186
O SENTIDO DA COLÔNIA. REVISITANDO A CRISE DO ANTIGO SISTEMA COLONIAL NO BRASIL

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187
capítu lo 11
CONTESTAÇÃO RURAL E REVOLUÇÃO
LIBERAL EM PORTUGAL
José Ten garrin h a*

O A GRICULTOR E A CON TESTA ÇÃ O RURA L – ESSES


GRA N D ES A USEN TES D A HISTORIOGRA FIA
PORTUGUESA .

Continuaram a ser predominantes as generalizações e as redutoras


abstrações da historiografia oitocentista, que se limitara a salientar ou a pas-
sividade e apatia das populações rurais ou o seu apoio ao regime absoluto
e ao miguelismo. No primeiro caso, chegava a admitir-se que essa massa
amorfa e submissa só se alterava, de muito em muito longe, em explosões
desesperadas; mas, reduzidas estas a meras reações reflexas de estímulos
conjunturais, não se lhes reconhecia qualquer projeto ou alcance nos acon-
tecimentos políticos nem sequer alguma articulação dinâmica com o con-
junto da sociedade. No segundo caso, imprimia-se um sentido político úni-
co à movimentação rural em Portugal no final do Antigo Regime e primei-
ros anos do regime liberal; o que era, obviamente, absurdo.
Assim se ju stificava a m argin alização do m u n do ru ral e o silên cio
sobre ele.
Tais omissões e distorções, respeitando a um domínio que em espa-
ços, em gentes e em produção ocupava uma grande parte da realidade na-
cional, não deixariam de afetar a compreensão da trajetória do País, no seu
conjunto. Foram, todos esses, incentivos para a investigação que conduzi
durante cerca de quinze anos, especialmente dirigida sobre o final do Anti-
go Regime e os inícios do regime liberal.1
Neste artigo refletiremos sobre o período que imediatamente antece-
deu a Revolução de 1820, analisando alguns aspectos do protagonismo que
aí tiveram as classes rurais, no seu conjunto.

N OVA S D IN Â MICA S SOCIA IS A PÓS A S IN VA SÕES


Após as Invasões Francesas, a movimentação das massas rurais em
Portugal apresentará três novas principais características, que a projetam
para um plano qualitativamente superior, designadamente quanto à con-
testação anti-senhorial: o sentido e amplitude da intervenção, a sua inser-

189
José Tengarrinha

ção num quadro legal reformista e as alianças que se estabelecem entre di-
versos grupos sociais inferiores e médios no âmbito das administrações locais.
Antes de tudo, as convulsões que abalaram os campos quando das In-
vasões – com um triplo conteúdo de revolta social, guerra religiosa e luta na-
cional – permitiram que as populações rurais adquirissem, como nunca,
consciência do seu poder; e que tais ações se revestissem, também, de um
sentido social superior, na medida em que a intervenção rebelde, o ato amo-
tinador passa a ser não apenas socialmente justificável mas até dignificante.
É uma verdadeira inversão de valores psicológicos e morais da sociedade.
Outra diferença fundamental relativamente às movimentações agrá-
rias anteriores – para além das motivações e do alargamento quantitativo
da intervenção popular – reside na substancial alteração das categorias so-
ciais envolvidas, aparecendo agora as camadas médias ou médias inferiores
com uma participação na rebeldia social como não se vira até aí, pelo me-
nos com essa dimensão. Acabarão elas por ser, nesta fase, os principais mo-
tores da movimentação, na sua globalidade. E este fato – de grande impor-
tância na história social portuguesa contemporânea – irá provocar motiva-
ções políticas que se estenderão, em ondas reflexas, por toda a sociedade.
Não mais se poderá dizer que é o “povo miúdo”, de um lado, e a “gente gra-
da”, do outro, em posições irredutíveis, nem que a agitação social resulta de
atos irresponsáveis de “gente rude e ignorante”. O tecido social que se en-
volve na contestação apresenta, agora, maior heterogeneidade.
É visível, além disso, um maior inconformismo das populações ru-
rais, mesmo relativamente a situações que no passado haviam aceito. As
próprias autoridades o reconheciam, com freqüência. Por exemplo, o pro-
vedor da comarca de Coimbra, ao intervir no conflito sobre os direitos ba-
nais em Penela (1816), admitia que a rebeldia dos agricultores tomara
maiores proporções por influência “das modernas opiniões e doutrinas dos
pretendidos defensores dos direitos dos povos”.2 Ou o prior de Vila Nova de
Monsarros ao testemunhar, em 1814, que os habitantes, tendo começado
por contestar os excessos cometidos na cobrança dos encargos do foral, aca-
baram colocando em causa os direitos senhoriais na sua totalidade, tanto
assim que o senhorio, cabido da Sé de Coimbra, “pouco tem arrecadado”.3
Emergem, assim, atitudes gerais de contestação que põem em causa, mais
frontalmente, relações de dependência e hierarquias tradicionais.
Tal favorece que o sentido político passe a impregnar mais a contes-
tação social (tornando menos nítidas as fronteiras entre eles), o que abre
uma nova dimensão no relacionamento entre o social e o político.
O eco das lutas da segunda metade do século XVIII, solitárias e de-
sesperadas, contra a opressão senhorial e a apropriação individual da terra,
está presente. Mas é esta nova qualidade da contestação, então emergente,
que se projeta na dimensão nacional, política e militar dos abalos anterio-
res e posteriores à Revolução de 1820.

190
CONTESTAÇÃO RURAL E REVOLUÇÃO LIBERAL EM PORTUGAL

LIN HA S GERA IS D A CON TESTA ÇÃ O


Nos 2 anos seguintes às Invasões era a preocupação de sobrevivên-
cia que dominava o comportamento das camadas sociais mais baixas nos
campos.
Encontravam-se, também, muito perturbados os mecanismos de co-
brança das tributações, em especial nas regiões mais duramente atingidas
pelas Invasões. Já quando da primeira invasão, as remessas das contribui-
ções para o governo francês não eram feitas em muito elevado número de
casos, instalando situações de incumprimento que, naturalmente, tinham a
tendência para se prolongar, mesmo passada a situação de guerra.
Quanto às rendas de particulares, para além das naturais dificulda-
des de haver quem se dispusesse a contratar o seu recebimento em tempos
tão instáveis, levantavam-se muitas dúvidas na determinação das bases ju-
rídicas dos direitos e das delimitações de terras, por terem sido numerosos
os títulos e tombos queimados nos incêndios dos cartórios.
Finda a guerra, foram incontáveis os casos de foreiros, enfiteutas, ar-
rendatários, contratadores da Coroa e de diversas casas (como a de Bragan-
ça) que pediram remissão das dívidas ou isenção do pagamento. Perante os
rigores das cobranças por muitos enfiteutas e contratadores de rendas (im-
pondo encargos antigos ou procedendo a novas louvações, como se viu
amiúde), os povos lamentavam-se ou protestavam com vivacidade. A Co-
roa tomou a decisão de isentar do pagamento os que provassem terem sido
saqueados pelos franceses. Não foram poucas, também, as instituições reli-
giosas que perdoaram os dízimos até 1812.4
Eram golpes profundos na exação da renda senhorial, que ainda
mais a debilitava, e cuja recuperação se tornava particularmente difícil em
virtude da quase generalizada situação de absenteísmo dos senhorios laicos,
muitos dos quais acompanhando a Corte no outro lado do Atlântico.
Tais condições, favoráveis à isenção ou fuga ao pagamento de rendas
e foros, fizeram naturalmente diminuir a necessidade da contestação fron-
tal nos anos imediatamente seguintes à guerra.
Além disso, uma conjuntura tão desfavorável, agravada com as des-
truições de bens, não deixaria de ter efeitos na retração da contestação rural
e no caráter defensivo que, em tais condições, esta normalmente assume.
Por outro lado, o aparelho administrativo-judicial, mesmo nas ins-
tâncias superiores, só muito lentamente se recompõe, permitindo assim
que a conflitualidade passe, ainda mais do que habitualmente, à margem
dos registros judiciais.
Desta maneira, não surpreenderá que, relativamente aos períodos
imediatamente anteriores, as instâncias judiciais superiores registrem menor
número de conflitos no quadro rural nos anos imediatamente seguintes às

191
José Tengarrinha

Invasões. Só a partir de 1813, coincidindo com o início da recuperação agrí-


cola e de uma baixa de preços de longa duração, se reanima a movimenta-
ção rural, tendo registrado, a partir daí até à Revolução de 1820, trinta mo-
vimentos com maior significado e envergadura.

A TERRA

Quanto aos conflitos sobre a terra, não surpreenderá o relevo que to-
mam neste decênio se tivermos em conta que a grande falta de gados que
se seguiu às Invasões provocou acentuado aumento nos preços da carne e
da lã; e que era dominante preocupação do Governo, coincidindo com os
interesses de agricultores ricos das províncias, aproveitar mais intensiva-
mente as terras até aí abertas para aumentar a produção agrícola.
A pressão sobre a terra fez-se sentir, assim, no duplo aspecto dos pas-
tos e da expansão do individualismo agrário. Localizam-se tais conflitos,
predominantemente, como sempre, na região de Castelo Branco, e tam-
bém Guarda e Viseu.
Grandes criadores de gado – sobretudo lanígero, nesses três distritos
da Beira interior – apossavam-se de melhores pastos, quer porque podiam
arrematá-los por quantias mais elevadas quer pela influência que exerciam
sobre os vereadores; tal poder sobre as governanças locais permitia, tam-
bém, que estes criadores, e ainda os de gado vacum, usassem a seu favor os
odiados “rendeiros do verde”5 e assim pudessem cometer abusos com os re-
banhos mesmo em terras cultivadas. Além disso, proprietários abastados
vedavam terras suas até aí usadas como pastos comuns, sendo certo que,
sem eles, os pequenos agricultores não poderiam manter os seus gados de
lavoura e arranjar estrumes; tais vedações, levantadas com a justificação de
abandonar o regime de longos pousios para agricultar mais intensivamen-
te a terra, também muitas vezes se destinavam a pastos para uso dos gados
próprios ou para aluguel.
Protestos dos povos surgiram, também, na seqüência de aforamen-
tos de terras baldias de que se serviam. De pouco valera a Portaria de
13.2.1815 recomendar, expressamente, que no exame dos baldios e terras
incultas se tomasse em conta o “interesse que se pode tirar da sua cultura
e porções indispensáveis para logradouros dos povos”. Os interesses destes,
de fato, não foram em muitos casos devidamente precavidos, pelo que a li-
nha de tensão permanece, muito viva, no mundo rural: de um lado, lavra-
dores ricos, geralmente apoiados por corregedores e provedores, do outro,
pequenos agricultores, freqüentemente com o apoio das câmaras, que dei-
xavam assim de beneficiar com o aluguel, para pastos, dessas terras quan-
do livres de culturas. Ao ponto de, em 1818 (Alvará 6-7), o Governo, mais

192
CONTESTAÇÃO RURAL E REVOLUÇÃO LIBERAL EM PORTUGAL

do que nunca receoso de agitações sociais, define que deviam considerar-


se baldias as courelas não só enquanto os possuidores as não tapassem com-
pletamente, mas enquanto não possuíssem legítimo título para as tapar.
Eram evidentes, neste domínio, as grandes hesitações dos governan-
tes. Houve locais em que os agricultores ricos tiveram influência suficiente
para impor as vedações (sobretudo, na Beira Baixa). Admitiam que, dessa
maneira, as rendas dos concelhos algo diminuíam e também, com isso, a
“terça real”; mas defendiam que, resultando dos tapumes “utilidade parti-
cular e pública com o aumento da agricultura”, a fazenda real acabava por
ser beneficiada com a maior tributação resultante do aumento da riqueza
produzida. Em maior número de locais, porém, as tentativas de apropria-
ções individuais e vedações de terras comuns desencadearam tais oposições
que não puderam ser concretizadas. Então, como mesmo depois em regi-
me liberal, a desesperada luta dos agricultores pobres em defesa dos seus
baldios irá levantar obstáculos ao avanço do individualismo agrário. Mes-
mo em período revolucionário, os legisladores vintistas recuarão perante o
problema, sendo este um dos mais expressivos aspectos da sua incapacida-
de para desenvolver um projeto capitalista nos campos.

PROTECIONISMOS AGRÍCOLAS

A difícil conjuntura comercial que atravessa Portugal e a Europa nes-


se segundo decênio do século XIX teve enormes repercussões nos nossos
campos, sobretudo pelas dificuldades no escoamento do vinho nacional
para os mercados externos e pela entrada torrencial de grãos estrangeiros.
Traduziram-se em grandes movimentos de protesto em várias partes do
Reino que obrigaram o Governo a tomar medidas.
Na verdade, a exportação do vinho – fundamental para a prosperi-
dade do mais amplo setor comercial da agricultura portuguesa, para obter
benefícios alfandegários e para diminuir o desequilíbrio da balança comer-
cial – atravessava grandes dificuldades. Às que se prendiam com a adversa
conjuntura internacional, somavam-se as resultantes da abertura dos por-
tos do Brasil aos vinhos de todas as nações, com destaque para os franceses
e espanhóis e, igualmente, açorianos; e também do aumento da entrada
dos vinhos espanhóis em Inglaterra e dos favores desta à importação dos do
Cabo da Boa Esperança, o que fez diminuir tendencialmente o consumo
dos vinhos portugueses no nosso principal importador. Em 1811, a situa-
ção era particularmente grave, com a descida da exportação geral para um
quarto em relação a de 1798 (84.386 pipas em 1798, contra apenas 21.972
em 1811); em 1812, tem a mesma gravidade (ligeira, a subida para 28.168
pipas). Nestes 2 anos, a exportação para o Brasil e domínios ainda relativa-

193
José Tengarrinha

mente mais se reduziu (10,4% e 12,7% do total), atingindo os mais baixos


valores (2.279 e 3.590 pipas).6 Em conseqüência, a produção do vinho de
embarque da colheita de 1812, que teria sido de 50.000 pipas, estava em
parte considerável por vender, enquanto a do ramo, de 18 a 20.000 pipas,
fora comprada pela Companhia de Agricultura das Vinhas do Alto Douro,
mas apenas pequena parte tinha sido embarcada.7 A crise tomou dimensões
gravíssimas com os aumentos que se verificaram das produções: em 1814,
a colheita foi de boa qualidade e excessiva quantidade e a do ano seguinte,
embora menor que a anterior, era ainda muito abundante e de boa quali-
dade. A conseqüência imediata foi o barateamento do vinho no mercado
interno, com grandes prejuízos para a lavoura e o comércio nacionais e “só
favorável aos ingleses”. Os “stocks” aumentavam: no início de 1816, os la-
vradores tinham ainda por vender grande parte da produção anterior, em
setembro 70.000 pipas estavam paradas nos armazens do Porto, muito
grandes quantidades acumulavam-se, também, nos depósitos britânicos –
estimavam os governadores do Reino.8 A partir de 1813 há sinais de ten-
dência oscilante para a recuperação. Deve-se este fato, fundamentalmente,
à retomada do mercado brasileiro, ao passo que o das nações estrangeiras
mostrava constante tendência para diminuir. Com efeito, enquanto o Bra-
sil absorvera apenas 10,4% do vinho exportado pela Metrópole em 1811,
em 1819 sobe para quase metade (49,5% ). Perante a concorrência crescen-
te que encontrava no tradicional mercado britânico e o reduzido efeito do
tratado de comércio com a Rússia (firmado em dezembro de 1798 e suces-
sivamente prorrogado em junho de 1812 e junho de 1815), era ainda no
Brasil, apesar das dificuldades resultantes da abertura dos portos, que o vi-
nho português encontrava perspectivas mais favoráveis. Ora tal melhoria
da situação do mercado brasileiro explica-se por legislação favorável que foi
exarada na seqüência de muito amplos movimentos de protesto dos viticul-
tores. Tal movimentação, em crescendo após 1814, partiu de algumas das
mais importantes regiões vitícolas do Reino, com destaque para o Alto Dou-
ro, e teve o apoio da Companhia Geral da Agricultura. Punha como exigên-
cia principal a proibição da entrada dos vinhos estrangeiros no Brasil, pois
só assim se poderia garantir um escoamento certo para o nosso vinho, não
ficando dependente da “legislação ou do capricho dos países para onde atual-
mente se transportam” – como se lia na exposição enviada ao Trono. A exi-
gência era de difícil atendimento, pois colidia com a decisão tomada em
1808 de abrir os portos do Brasil a todas as nações estrangeiras. Mas a pres-
são dos viticultores foi tão forte que, vencendo as resistências do governo
do Rio de Janeiro, levou à adoção de medidas favoráveis, a culminar aque-
le que foi um dos pontos de dissídio mais ásperos entre os governos dos dois
lados do Atlântico.9
Quanto aos cereais, abertas as comportas à torrente quando a escas-
sez da produção levantava o espectro da fome, difícil era depois estancá-la,

194
CONTESTAÇÃO RURAL E REVOLUÇÃO LIBERAL EM PORTUGAL

pelos interesses comerciais que a ela se ligavam. Os preços baratos dos es-
trangeiros fizeram parar a venda dos trigos e milhos nacionais. Comparan-
do as entradas no Terreiro Público em 1790 e 1812, verifica-se que a de
grão nacional, naquele primeiro ano, foi de 27.748 moios e, no segundo,
de 8.184, em vez da evolução da entrada do grão estrangeiro que, em 1796,
foi de 66.738 moios e, em 1812, de 268.846.10 Em produto de vendas, vê-
se que, no mesmo Terreiro, e nos anos de 1810 a 1812, as dos grãos estran-
geiros passaram de 73,5 milhões de cruzados, ao passo que as dos nacionais
não chegaram a 6 milhões. Se àquele primeiro produto se juntar o das
quantidades de grãos vendidos fora do Terreiro sem pagar a devida comis-
são e das que entraram e se venderam em diversos pontos do Reino nesses
anos, poderá avaliar-se a importância total da venda dos grãos estrangeiros
neste período em 112 milhões de cruzados; em grande contraste, pois, com
os anos de 1808 e 1809, em que a importância dos grãos estrangeiros en-
trados e vendidos no Terreiro alcançou apenas 8 milhões de cruzados e a
dos nacionais passou de 7 milhões.11 Ao longo de todo o decênio, assiste-se
à incapacidade do trigo nacional competir com a barateza do estrangeiro,
apesar das providências dadas pelo Governo para sustentar-lhe o preço. Os
protestos dos produtores de cereais subiram de tom perante a extraordiná-
ria importação de grãos estrangeiros nos últimos meses de 1818, continua-
da no ano seguinte. Ainda em vésperas da Revolução, no último relatório
para o Rio de Janeiro, os governadores do Reino alertavam estar “a agricul-
tura arruinada pelo baixo preço do grão estrangeiro que tem inundado o
Reino, de que resulta o abandono da cultura que o lavrador não pode con-
tinuar sem perda e o conseqüente abatimento de todas as rendas que con-
sistem em frutos”.12 Do Ribatejo e Alentejo, sobretudo, levantaram-se os
clamores para que se proibisse a entrada dos grãos ou, ao menos, fossem os
comerciantes obrigados a incluir nas compras uma parte dos nacionais ou
outra qualquer providência que facilitasse a venda destes. Foi um movi-
mento de protesto de grande amplitude que obrigou o Governo de Lisboa,
com alguma precipitação, perante o silêncio do Rio de Janeiro, a promul-
gar medidas protecionistas.13

PREÇOS E SALÁRIOS

Perante uma tão agressiva concorrência externa e as dificuldades de


coordenação do espaço econômico nacional, iriam acentuar-se desequilí-
brios regionais, ações comerciais especulativas, desajustes entre preços e sa-
lários, gerando tensões de diversas naturezas que eclodiram, por vezes, em
conflitos de considerável envergadura.
Assim, rivalidades entre regiões próximas com os mesmos produtos
não raro provocavam confrontos, o que era mais freqüente quando se tra-

195
José Tengarrinha

tava do vinho, dadas as maiores dificuldades que então encontrava nos


mercados exteriores; em conseqüência, aqui e além, levantaram-se barrei-
ras protecionistas concelhias que, em vez de favorecer a formação do mer-
cado nacional, agravavam particularismos locais. Mas também o comércio
local na base de pequenos agricultores e mercadores sofria limitações, de-
vido a imposições antigas que algumas câmaras retomaram, sem ter em
conta as novas necessidades de maior fluidez das trocas.14
Era o quadro favorável para as especulações dos “monopolistas”: açambar-
cando cereais e feijão logo a partir do produtor, provocavam elevações pontuais e
localizadas de preços, sob protestos por vezes muito vivos das populações.15
Questão que dizia respeito, no fundo, à própria estrutura das socie-
dades de Antigo Regime, onde obstáculos de várias naturezas (interesses lo-
cais descontrolados, proteções administrativas), gerando condições propí-
cias à formação de monopólios, dificultavam a liberdade de circulação in-
terna e a fluidez e unificação do mercado.
Estando alteradas, desta maneira, as regras do mercado livre, deixa-
va-se maior margem para imposições administrativas reguladoras da relação
entre preços e salários. As velhas Ordenações do Reino já o previam (L.1, tt.
66, § 32), mas, para evitar desequilíbrios, não admitiam que se baixassem os
salários sem que também o fossem os preços. Desta vez, porém, vê-se a ini-
ciativa camarária procurar descer apenas os salários, por pressão de podero-
sos lavradores. É na região do vinho do Ribatejo que esta medida vai provo-
car maiores conflitos, com destaque para o levantamento e amotinação dos
jornaleiros que, em meados de fevereiro de 1814, chegaram a entrar em
Santarém armados e a confrontar-se com forças militares.16

A PRESSÃO FISCAL

A situação nacional é fortemente condicionada pelas grandes dificul-


dades financeiras do Tesouro. Nos relatórios enviados pelos governantes de
Lisboa para a Corte no Rio de Janeiro em maio de 1809 mostrava-se que
todas as rendas do Estado não chegavam, então, a satisfazer sequer as des-
pesas militares.17 As receitas das tributações ordinárias mostravam um
acentuado decréscimo em todas as rubricas, entre 1801 e 1811.18
Múltiplas causas estavam na origem da insuficiência das receitas.
Umas, diretas resultantes das Invasões: dificuldades de cobrança das rendas
régias em virtude da desorganização do aparelho de sucção fiscal e quebra
geral das atividades econômicas que, conjugada com a escassez de nume-
rário, se refletia em forte diminuição das trocas internas; outras, ligadas às
trocas externas, que provocavam considerável quebra nos importantes ren-
dimentos das alfândegas: diminuição do comércio devido à abertura dos

196
CONTESTAÇÃO RURAL E REVOLUÇÃO LIBERAL EM PORTUGAL

portos do Brasil aos mercadores estrangeiros, agressiva concorrência inter-


nacional e recessão geral européia. Ambas, provocando forte diminuição
dos impostos indiretos, que forneciam então cerca de 60% das receitas fis-
cais. Outras, ainda, em conseqüência da fixação da Corte no Rio de Janei-
ro: deixaram de pertencer a Portugal os rendimentos régios do Brasil, Ilhas
e domínios na Ásia e África, escoavam-se para o Brasil os capitais e as ren-
das da família real e dos nobres, altos funcionários e capitalistas que a
acompanharam. E, ainda, as que vinham da falta de confiança no Estado,
que se refletia no abaixamento dos valores ou mesmo não arrematação de
contratos régios. Viam-se os maiores capitalistas e negociantes passar para
fora grande parte dos seus capitais, colocando-os em operações comerciais
e bancos no estrangeiro (em especial da Inglaterra e Irlanda), apesar de au-
ferirem assim quase metade dos juros que lhes ofereciam os empréstimos
públicos abertos em Portugal (6% ).19 A que se somava a contínua diminui-
ção, desde o terceiro quartel de setecentos, do envio de remessas de metais
preciosos do Brasil: o produto do quinto do ouro brasileiro, em 1819, não
ia além de 270.000 cruzados quanto ao de Minas Gerais e não ultrapassa-
va os 90.000 cruzados o das restantes capitanias.
Se tivermos em conta este conjunto tão poderoso de causas, num
Reino exausto e com um aparelho fiscal menos eficaz, deveremos admitir
que, apesar da quebra no rendimento global, as recolhas feitas mostram,
como em Espanha, uma pressão tributária crescente. Traduzia-se em mais
apertada cobrança das rendas da Coroa, tanto as de natureza senhorial
como as de caráter fiscal, quer feita pelos almoxarifados quer pelos contra-
tadores. De 1812 a 1817 assiste-se, mesmo, a uma inversão na tendência,
com uma considerável subida na receita efetiva do Estado.20 A partir de
1816, porém, eram visíveis os sinais de novo agravamento, a receita volta
a cair bruscamente, o endividamento do Estado cresce em ritmo ainda mais
preocupante, entra-se na rampa final para a Revolução de 1820. Em Por-
tugal, como noutros países europeus, a Fazenda surge como um dos mais
poderosos inimigos da monarquia absoluta.
Essa maior pressão fiscal não poderia deixar de desencadear tensões
e conflitos no mundo rural.
A questão das sisas assume particular relevo, sendo então a fuga ao
seu pagamento motivo freqüente de queixas das autoridades, que a aponta-
vam como uma razão importante na diminuição das receitas do Erário. En-
tre os movimentos mais significativos neste domínio, assinale-se, logo em
1812, no termo de Lisboa, a amotinação de lavradores e criadores contra o
rendeiro principal das sisas dos gados, que lhes lançara penhoras e procedi-
mentos judiciais por não manifestarem nem pagarem sisa das vacas de cria-
ção e lavoura.21 Ou o forte movimento de protesto dos moradores da vila do
Sabugal, em 1815, contra injustiças do juiz de fora de Castelo Branco no en-
cabeçamento das sisas, lançando importância superior à do património real.22

197
José Tengarrinha

A quebra nos rendimentos alfandegários era motivo de especial


preocupação, dada a importância dominante que tinham no conjunto das
receitas do Estado.23 Sendo em razão, sobretudo, das razões atrás expostas
(em que avultavam a conjuntura internacional e a abertura dos portos do
Brasil ao comércio de todas as nações em 1808), não deixava de sofrer tam-
bém o efeito dos contrabandos, que proliferavam nesses tempos perturba-
dos e de debilitação dos meios de vigilância do Estado. Entre os vários con-
flitos que se deram, nomeadamente na fronteira com a Espanha, atingiu es-
pecial gravidade, em 1814, o que opôs os funcionários régios ao povo de
Quadrazais (concelho de Sabugal), que, armado e em grande número, não
só os dominou como enfrentou a força armada enviada para o submeter.24
A cobrança do subsídio literário mereceu também a maior atenção
do Tesouro, dada a grande diminuição que sofrera.25 Quer por ter sido re-
tomada quer feita com maior rigor, levantou também movimentos de pro-
testo com considerável amplitude, como, em 1814, dos vitivinicultores da
região de Chaves, contra violências e extorsões praticadas na cobrança.26
Não apenas sobre as rendas de caráter fiscal, mas também sobre as de
natureza senhorial da Coroa se faziam sentir nos meios rurais as maiores
pressões da cobrança. Em torno das jugadas e dos direitos banais detectamos
as mais fortes linhas de tensão. Entre os conflitos mais significativos assina-
la-se, em 1813, a amotinação dos lavradores de Soure contra o almoxarifa-
do de Montemor-o-Velho, por este querer considerar jugadeira uma terra
que as populações e as autoridades locais consideravam sob sua jurisdição e
não da Coroa.27 E, em 1816, o conflito no reguengo de Penela sobre a co-
brança de direitos banais, porque os lavradores – numa atitude considerada
pelas autoridades de “grave rebeldia” – se recusaram a levar as suas azeito-
nas aos lagares do reguengo, preferindo moê-las em particulares.28

R EFORMISMO E LUTA A N TI-SEN HORIA L


As agudas dificuldades financeiras que o Reino atravessava, e que le-
varam o Governo a tomar urgentes medidas, entre as quais a venda dos
bens da Coroa,29 constituíam apenas um dos aspectos da grande crise de di-
mensão nacional.
Era geral o abatimento na agricultura, no comércio externo, no co-
mércio interno, na indústria, na falta de capitais. Mas, não menor, a crise
política e moral, resultante da ausência da Corte no Brasil e da descrença
nos destinos nacionais, com grande incidência nos meios rurais.30 A agita-
ção revolucionária em Espanha, as Cortes de Cádis e a promulgação da
Constituição de 1812 vinham agravar os receios dos governantes portugue-
ses de que, a não serem tomadas medidas urgentes, se caminharia inevita-
velmente para a ruína da monarquia absoluta.

198
CONTESTAÇÃO RURAL E REVOLUÇÃO LIBERAL EM PORTUGAL

Assumem grande significado, assim, as propostas reformistas que


vêm do Rio de Janeiro. Elas não têm, porém, nesta conjuntura, qualquer
conteúdo liberal: apoiadas, ou pelo menos não impedidas, por convictos
antiliberais, visavam introduzir apenas as alterações necessárias para que a
monarquia tradicional conseguisse sobreviver.31 Encontram, porém, forte
oposição de alguns dos senhorios mais conservadores que se haviam man-
tido na Metrópole: eclesiásticos (como os mosteiros de Alcobaça, Lorvão,
Santa Cruz e outros) e laicos (como, entre outros, o marquês de Marialva),
que influenciavam o Governo de Lisboa. O conflito entre este e o governo
do Rio de Janeiro é um dos acontecimentos políticos mais significativos da
década que antecedeu a Revolução liberal.
Sem razão se insiste na ausência de quaisquer conseqüências em
Portugal desta legislação reformista, que não teria passado de um enuncia-
do de boas intenções, em parte destinada a tentar cobrir os protestos levan-
tados pelo lesivo tratado do comércio com a Grã-Bretanha de 1810. Em cir-
cunstâncias mais tranqüilas da vida nacional, porventura assim teria sido.
Mas não quando tais reformas se projetam sobre um quadro rural algo ten-
so, como atrás referimos, em especial após as Invasões. A partir dessas re-
formas, em grande parte, se irá desenrolar o confronto entre aspirações li-
bertadoras da opressão senhorial e senhorios mais conservadores.
As primeiras grandes medidas reformistas emanadas do Rio de Janei-
ro são as Instruções para os governadores do Reino de 2.1.1809 e a Carta
Régia de 7.3.1810.
Perante o estado das finanças públicas e o abatimento econômico do
País, sugeriam as Instruções a extinção das jugadas, terços e quartos, substi-
tuindo-os por outras imposições menos pesadas e suprimindo-se algumas me-
didas de trigo e centeio impostas por certos forais nas províncias do Norte.
No seguimento, a Carta Régia de 1810 apontava, no respeitante à
agricultura, ainda que fugazmente, dois princípios programáticos funda-
mentais: um, o de que as condições de exploração da terra deviam alterar-
se de tal modo que fossem rendíveis os capitais nela aplicados e, assim, no-
vos pudessem ser atraídos; outro, o de que a prosperidade da agricultura ar-
rastaria o desenvolvimento da indústria, no que tinha decerto em conta a
exemplar experiência britânica. Para tal, admitia não apenas atenuar, mas
mesmo suprimir os forais, por serem “em algumas partes do Reino de um
peso intolerável”; bulir pela primeira vez nos dízimos, tentando fixá-los, “a
fim de que as terras não sofram um gravame intolerável”; “minorar ou al-
terar o sistema das jugadas, quartos e terços, com que se poderão fazer res-
gatáveis os foros”.
A esta formulação não era estranha a corrente reformista dos fins do
século XVIII, com destaque para os “fisiocratas” da Academia Real das
Ciências de Lisboa. Mas não poderá deixar de compreender-se, também, na
seqüência das pressões anti-senhoriais que os agricultores tinham vindo a

199
José Tengarrinha

exercer, sobretudo, desde finais do terceiro quartel do século XVIII, e da ex-


plosão social de 1808. Era a moderada réplica aos ataques frontais ao regi-
me senhorial que percorriam a Europa napoleônica e ao programa de mu-
danças revolucionárias que em Espanha fora formulado no convulsiona-
mento antifrancês das lutas das Invasões.
As conseqüências do pequeno “programa” de intenções que era a
Carta Régia de 1810 repercutem-se em diversas direções. Por um lado, pro-
move o debate político-jurídico, nela procurando apoio algumas posições
mais avançadas,32 por outro, são tomadas na sua seqüência algumas medi-
das legislativas que, concretamente, limitam certos direitos senhoriais; e
ainda, como se disse, estimula a contestação dos encargos senhoriais.
Peran te os riscos qu e daí vin h am , o Govern o de Lisboa levan ta difi-
cu ldades à aplicação das reform as. Apesar da m aior abertu ra do prin cipal
Sou sa, predom in am as in flu ên cias con servadoras. São m u ito sign ificativas
algu m as das objeções qu e os govern an tes levan tam , em especial con tra m o-
dificações n as im posições dos forais: dificu ldades de u m a tal operação, tan -
to qu an to às averigu ações n ecessárias com o à avaliação das com pen sações
aos sen h orios; “os in con ven ien tes das in ovações”; dificu ldade de estabelecer
u m a im posição direta qu e su bstitu ísse as extin tas, alegan do qu e os povos re-
ceberiam m al n ovas im posições, “acostu m ados com o estavam às ju gadas,
terços e qu artos”; em bora recon h ecen do qu e a extin ção dos direitos dos fo-
rais pou co efeito tin h a n o Erário (com o os liberais iriam com provar ao dis-
cu tir esta m atéria n as Cortes de 1821-1822), m u ito afetariam “algu m as co-
m en das, corporações eclesiásticas e in divídu os a qu em perten cem ”, qu e as-
sim “se in disporiam con tra o Govern o”; além de provocar “o risco im in en -
te de u m a su blevação dos povos qu e ou por ign orân cia ou por m alícia recu -
sariam pagar n ão só os direitos su prim idos m as todos os dos forais”.33
Assim, a recuada posição do Governo de Lisboa está ainda longe,
mesmo, das propostas da Comissão nomeada para o efeito.34 Apenas admi-
te que, além dos pequenos encargos dos forais – cujo rendimento era as
mais das vezes absorvido pelas despesas da cobrança – , deviam ser pronta-
mente extintos os direitos banais, que na prática já não eram em geral res-
peitados, e os serviços pessoais, mas apenas os que não estivessem conver-
tidos em dinheiro; que só parcialmente se tocasse noutro direito pessoal, as
lutuosas, que a referida Comissão considerava, com aqueles, o “único res-
to que ainda ficaria de feudalismo”; e aconselhando a que não se alterasse
o direito enfitêutico, fonte permanente de litígios.35
Razão tinha o Governo, ao recear que a supressão de alguns direitos
acabaria por arrastar à contestação de outros. Com efeito, o simples fato de
superiormente se admitirem reformas estimulava as atitudes gerais de re-
beldia. Tal concorreu para que, entre os diversos movimentos de protesto
que percorreram os campos portugueses nesse decênio anterior à Revolu-

200
CONTESTAÇÃO RURAL E REVOLUÇÃO LIBERAL EM PORTUGAL

ção liberal, tivessem sido os relacionados com os direitos senhoriais os que


assumiram maior envergadura.
Em causa estiveram, sobretudo, direitos banais e jugadas. E ainda,
com especial significado, os dízimos, que não sendo em rigor um direito se-
nhorial, se insere na lógica do regime. Estes não haviam sido, no passado,
motivo de relevante contestação, em grande parte pelo efeito da argumenta-
ção dos membros do clero de que tal matéria era do direito divino e estava
fora do alcance do poder temporal. Agora, porém, os dízimos começaram a
ser fortemente postos em causa, para o que contribuiu a Carta Régia de 1810
ordenando aos governadores que se ocupassem dos meios de os fixar. Logo
muitos, ingênua ou malevolamente, interpretaram como estando extintos,
levantando-se daí numerosas contestações que pontilharam o quadro rural
português, embora não tendo chegado às mais altas instâncias judiciais.
Mas a medida que iria desencadear maior controvérsia nos meios ru-
rais seria o Alvará de 11.4.1815. Com o fim de incentivar o cultivo das vas-
tas áreas de terras não arroteadas, os que o fizessem ficavam isentos de di-
reitos, imposições e dízimos entre 10 e 30 anos (segundo a natureza da ter-
ra e as dificuldades e as despesas necessárias). Significava, de fato, uma re-
forma parcial dos forais, com a sua abolição nas numerosas terras incultas
existentes nos domínios senhoriais. No texto introdutório desse alvará re-
lacionam-se mesmo tais isenções com a decisão de mandar rever os forais;
mas, apaziguador, chama à colação o parecer de outubro de 1814 em que
o Desembargo do Paço defendia que um dos meios de promover a agricul-
tura seria o cultivo de vários pauis (e não a diminuição dos encargos dos fo-
rais) e o parecer do Governo sugerindo, em janeiro de 1815, algumas isen-
ções para tais desbravamentos.36
Mais audaciosa do que aqueles pareceres foi esta, na prática, a me-
dida mais avançada que se tomou na linha reformadora anterior à Revolu-
ção de 1820. Os agricultores viam-se, assim, libertos dos pesados encargos,
a que sempre se haviam oposto, tanto em terras nunca exploradas como
nas recentemente abandonadas. E esta libertação animava-os, ainda, a ten-
tar alargar a isenção de direitos senhoriais a terras de cultivo normal.
A reação senhorial foi, nalguns pontos, áspera: acusando agriculto-
res de terem deixado de cultivar terras dos seus domínios apenas para de-
pois as cultivarem livres de encargos, defendiam que só deveriam ser isen-
tas as que nunca houvessem sido cultivadas.
O Trono decidiu pelos agricultores: a isenção abrangia todos os terre-
nos que, por qualquer razão, estivessem então incultos (Prov. 12.2.1817).
As relações agrárias tradicionais eram, assim, nesse decênio anterior
à Revolução de 1820, algo abaladas. A movimentação anti-senhorial, nem
sempre se limitando a questões pontuais, ganhava, aqui e além, uma di-
mensão mais global.

201
José Tengarrinha

Entre outros casos, vejamos, por exemplo, o movimento dos mora-


dores de Martim Anes (concelho da Guarda), que em 1815 se recusaram
generalizadamente a satisfazer direitos senhoriais impostos pelo mosteiro
de Arouca e seu enfiteuta,37 o dos povos de Santo André de Poiares (conce-
lho de Poiares) e de Penacova que, partindo de um protesto contra os ex-
cessos na cobrança de imposições senhoriais pela poderosa casa de Cadaval,
em 1815, acabaram por abranger a totalidade dos direitos,38 o dos agricul-
tores de S. Silvestre (concelho de Coimbra) que desenvolveram desde prin-
cípios de 1820 uma ação de resistência contra abusos e excessos na cobran-
ça de direitos senhoriais, sem que fossem apresentados títulos justificativos,
o que punha em causa a legitimidade dos direitos no seu conjunto.39
Mas a movimentação mais ampla e de maiores repercussões foi a
que se desenrolou nos coutos do mosteiro de Alcobaça.40 Iniciada em 1815,
desenvolveu-se até a Revolução de 1820 e os seus ecos estenderam-se a
todo o País, inclusive às Cortes liberais quando se discutia a reforma dos fo-
rais e dos direitos senhoriais.
O movimento desencadeou-se a partir do referido Alvará Régio de
11.4.1815, que isentava de encargos do foral as terras improdutivas que se
quisesse cultivar. Os agricultores de vários lugares daqueles coutos passaram
logo nesse ano a pressionar para a execução da medida. Alegavam ser pos-
suidores de várias terras de que era senhorio o mosteiro de Alcobaça e que
estavam incultas, abandonadas e desamparadas por falta de braços e de
meios e por serem oneradas com o pagamento de encargos ao mosteiro. Qui-
seram, pois, passar a cultivá-las com o benefício da nova isenção, mas foram
impedidos pelos religiosos, que interferiram decididamente. Em face disso, fi-
zeram os agricultores uma exposição ao Trono, em 19 de janeiro de 1816, pe-
dindo que se procedesse a averiguação dos terrenos incultos que poderiam
ser abrangidos pela isenção. Mais de um ano depois (referida Provisão Régia
de 12 de fevereiro de 1817) avançava-se que na referida isenção deveriam
também ser compreendidas as terras dos donatários que, tendo sido em ou-
tro tempo amanhadas, estivessem abandonadas. E, em novembro desse ano,
em vários locais da comarca de Alcobaça, foram afixados editais avisando os
agricultores de que deviam apresentar até final do ano as suas alegações para
ficarem isentos do pagamento. Imediatamente eles requereram que o juiz or-
dinário procedesse a diligências nesse sentido, mas pela segunda vez o mos-
teiro impediu-as, intimidando e ameaçando os que as haviam solicitado.
Crescia o número de agricultores que se negavam ao pagamento de dízimos,
quartos e oitavos, assumindo o movimento a expressão de uma contestação
global das prestações exigidas no foral. Em vésperas da Revolução de 1820,
a confrontação subia de tom, de parte a parte, ganhando especial significado
por se desenrolar nos imensos domínios pertencentes a um dos maiores, ou
porventura o maior senhorio eclesiástico do Reino.

202
CONTESTAÇÃO RURAL E REVOLUÇÃO LIBERAL EM PORTUGAL

Nestas circunstâncias, pode parecer não muito nítida a orientação do


Poder em face do regime senhorial. Sem dúvida, ela não é tão linear como
vimos nos conflitos do século XVIII.
Por um lado, o poder central quer confirmar a legitimidade dos di-
reitos de grandes senhorios, abalada após as Invasões. Por outro, começa a
admitir, pela primeira vez, o abandono de alguns tributos e encargos senho-
riais: foram os referidos casos, muito significativos, de jugadas, certos encar-
gos dos forais e direitos banais.
Poder-se-á falar, sem dúvida, numa ação reformista do Trono, a par-
tir do Rio de Janeiro, no domínio dos direitos senhoriais. Encontrou gran-
des obstáculos tanto no Governo de Lisboa, sujeito às pressões dos senho-
rios mais conservadores do Reino, como até nos funcionários régios inter-
médios, corregedores e provedores. Mas era uma ação muito tímida, que ti-
nha na origem não só a consciência da necessidade de alterações no regi-
me senhorial para que a agricultura se desenvolvesse como o propósito de
apaziguar tensões sociais que em 1808 se haviam tão fortemente manifes-
tado. O espectro da Espanha revolucionária e liberal está sempre presente.
E são esses receios, sobretudo, que permitirão compreender como,
em contraste com tempos não muito longínquos, foram tomadas diversas
medidas que têm visivelmente a finalidade de evitar que certos conflitos re-
dundassem em abalos desestabilizadores da sociedade. Tal é o caso, por
exemplo, da questão tão controversa da prestação de trabalho gratuito em
obras, as chamadas jeiras (que geralmente serviam os senhorios e podero-
sos locais), que motivam a Providência Régia de 31.1.1817 atenuando esta
obrigação, que será definitivamente abolida pela legislação liberal (Decr.
20.3.1821); ou a intervenção governativa a favor dos jornaleiros na amoti-
nação nos campos de Santarém, condenando a taxação dos salários; ou em
tantos outros casos de injustiças flagrantes e perturbadoras, da responsabi-
lidade de autoridades e poderosos locais.

A LIA N ÇA S EN TRE “N OTÁ VEIS LOCA IS” E


A GRICULTORES POBRES

A análise das componentes sociais que intervieram nos movimentos


rurais deste decênio e do complexo jogo das suas solidariedades e hostilida-
des dão-nos alguns indicativos sobre o processo de mudanças que tinha
vindo a verificar-se nos campos portugueses.
No domínio da fiscalidade estadual, sabe-se que o seu peso, propor-
cionalmente ao conjunto dos encargos que pesavam sobre os agricultores,
era em Portugal muito inferior ao da generalidade dos países europeus do
Ocidente no final do Antigo Regime. O endurecimento das exações desen-
cadeiam alguns conflitos, como vimos. Mas, além de não terem atingido a

203
José Tengarrinha

virulência dos do século XVII, ao contrário destes não mostram extensa so-
lidariedade vertical, desde os nobres aos camponeses pobres. O agravamen-
to pesa em especial sobre as camadas baixas, não apenas porque a sua pre-
dominante agricultura de subsistência não registrara aumento de produti-
vidade e até denunciara generalizado decaimento (e assim era puncionada
uma riqueza em decréscimo) como também porque acabavam por ser elas
as principais prejudicadas com as isenções dos privilegiados (no sistema de
encabeçamentos, as isenções de uns agravavam outros). Assim, nos protes-
tos das camadas rurais inferiores contra tributações da Coroa, vislumbra-se,
como no primeiro vintênio da segunda metade do século XVIII, o duplo
sentido de uma contestação anti-senhorial e contra uma pequena nobreza
e notáveis locais que, legitimamente ou não, gozavam de tais isenções.
Nos conflitos sobre pastos, os pequenos agricultores e criadores tive-
ram de enfrentar a pressão crescente dos criadores de gado que pretendiam
expandir os seus domínios. Aqueles tinham, porém, meios limitados e frá-
geis para se opor à força destes, pouco mais lhes restando do que o protes-
to e o apelo ao monarca. Tanto mais que, como se disse, os ricos proprietá-
rios e criadores gozavam freqüentemente dos favores das autoridades lo-
cais, que lhes cobriam, até, ações arbitrárias e abusivas.
Outras situações em que era visível o conluio entre gentes da gover-
nança e poderosos locais eram as especulações sobre preços, que às câma-
ras cabia evitar em primeiro lugar, e as taxações de salários. Como nume-
rosas vezes ocorreu no passado, vimos, por exemplo, a Câmara de Coim-
bra, em 1814, ceder ao poder dos “monopolistas”, não tomando medidas
para impedir que estes ocultassem os gêneros de primeira necessidade a fim
de provocar escassez e encarecimento deles; e, no mesmo ano, em Santa-
rém, a Câmara atuar ao sabor da vontade dos lavradores de vinhas para que
os salários fossem taxados a partir de fevereiro; entre muitas outras situa-
ções com menor repercussão.
Assim, o poder administrativo local e o poder de uma burguesia rural
com força econômica considerável em muitos casos se encontravam estreita-
mente entrelaçados, ao ponto de serem até representados pelas mesmas pessoas.
Diferente, porém, era a posição das administrações locais perante as
vedações de terras, mesmo quando executadas por poderosos e influentes
proprietários. Nestes casos, com freqüência, viam-se as câmaras lesadas –
por lhes serem retirados espaços que até aí arrendavam – juntarem-se aos
pequenos agricultores nas mesmas ações de protesto. Desempenhou o qua-
dro institucional aqui, pois, algum papel mediador.
Todas estas linhas conflituais mantêm as características qualitativas essen-
ciais do século anterior (variando apenas a intensidade), o que já não acontece
com as de natureza anti-senhorial, que apresentam diferenças consideráveis.
Naquelas, predominara a solidariedade horizontal das camadas sociais
mais baixas contra as mais abastadas. Tratava-se de lutas contra a expansão do

204
CONTESTAÇÃO RURAL E REVOLUÇÃO LIBERAL EM PORTUGAL

individualismo agrário e no interior de setores capitalistas com algum avanço


no domínio agropecuário, quer de pequenos contra grandes agricultores e
criadores de gado quer de assalariados contra lavradores de vinho e pão.
As lutas anti-senhoriais, ao contrário, desenrolam-se no interior do
próprio sistema dominante. Na segunda metade do século XVIII, em Portu-
gal, vimos essas lutas terem como principais ou mesmo exclusivos protago-
nistas os detentores de pequenas explorações (abaixo dos 3 a 4 hectares),
que possuíam a terra em diversos graus, sem serem dela proprietários (a
chamada, então, “propriedade imperfeita”). Constituíam aqueles que é cos-
tume designar por “camponeses”. Era a expressão da crise generalizada que
atingia os que trabalhavam terras sujeitas a mais pesadas imposições senho-
riais e que se agravou após a década de 1760-1770.41
São idênticas razões estruturais, de resto, que desenham uma crono-
logia não muito distante em outras regiões da Europa. Em várias partes da
França, como na Borgonha, assinalam-se conflitos anti-senhoriais dispersos
e pontuais na primeira metade do século XVIII, que se animam a partir de
1750 e se desencadeiam após 1780;42 na Aquitânia, no fim do século XVIII,
os rendimentos estagnam, bloqueado como estava o desenvolvimento agrí-
cola pela falta de inovação nos sistemas de cultura, nas técnicas e nos instru-
mentos, devido à escassez de investimentos, o que deixava para o agricultor
mais dependente do regime senhorial uma parte menor do que no passado.43
Numa primeira fase da luta anti-senhorial não se vê, por isso, terem
esses pequenos agricultores e seareiros significativos apoios acima de si. A
horizontalidade da solidariedade social era, então, a característica dominan-
te, sendo raras as exceções.44
Já ao longo do último quartel do século XVIII e primeiros anos do
XIX, porém, haviamos assinalado casos de solidariedades verticais nestes
conflitos. Mas é no decênio seguinte às Invasões que o fenômeno atinge
maior expressão. Na origem, causas de diferentes naturezas.
Antes de tudo, a influência exercida pelas referidas novas dinâmicas
sociais que se seguiram às Invasões, em que as camadas inferiores não só
adquiriram legitimidade social para a rebeldia como estiveram ao lado dos
notáveis locais na mesma luta nacional, superando assim tradicionais bar-
reiras psicológicas. Além disso, a aliança entre eles mostrava tendência para
se estreitar com a evolução da situação material dos “poderosos” locais em
face do domínio senhorial. Nestes, é freqüente encontrarmos os que, além
de terem beneficiado do recebimento de terras em enfiteuse (julgo, com
efeito, que seriam enfiteutas na sua maioria), possuíam explorações forei-
ras adquiridas aos camponeses arruinados, bem como terras próprias des-
tes (como verificamos, extensamente, após meados do último quartel do
século XVIII, em particular no Centro Litoral). Estavam, assim, ligados ao
complexo senhorial pelas vantajosas concessões enfitêuticas que este lhes
fizera, contra ele na qualidade de foreiros em seus domínios e mais autô-

205
José Tengarrinha

nomos pelas terras próprias que tinham vindo a adquirir. Condições mate-
riais e psicológicas favoráveis, pois, ao aumento da sua intervenção na luta
anti-senhorial e à sua convergência nessa luta com os camponeses pobres
que sempre a haviam mantido.
Assiste-se, então, a um fenômeno de grande significado político: não
apenas no Centro Litoral como noutras partes do Reino, as câmaras (onde
recuara a influência dos donatários e aumentara a dos “notáveis”) passam a
apoiar mais decididamente os agricultores (ricos e pobres) na sua luta contra
os donatários religiosos. Tal se verificou, sobretudo, a propósito das presta-
ções raçoeiras, nomeando louvados que se opunham aos indicados pelos se-
nhorios ou seus contratadores de rendas para a avaliação das produções.
Esta solidariedade reforçou-se quando o referido reformismo de Es-
tado criou condições políticas favoráveis à contestação dos encargos senho-
riais e em tempo e locais em que as confrontações sobre terras comuns não
atingiam grande expressão. E quando, em 1813, com o início da longa ten-
dência para a baixa dos preços, esses “notáveis” locais, produzindo para
mercado, são os mais duramente atingidos, ao contrário da agricultura de
subsistência. Vê-se, então, as pessoas “mais distintas” de algumas terras
aliarem-se a pequenos agricultores e até assumirem a sua liderança na opo-
sição às avaliações das produções para determinação dos quantitativos dos
encargos e na luta pelas isenções estipuladas pelo Alvará Régio de
11.4.1815. É significativo que, nos documentos emanados dos agricultores,
pela primeira vez os donatários apareçam pejorativamente designados
como “aristocratas”, marcando nítida clivagem com todos os outros que
não beneficiavam dos favores régios.
Tal aliança social em regiões de mais dura conflitualidade senhorial e
a utilização das câmaras como instrumento político dessa aliança no com-
bate ao velho regime são fatos que não poderão deixar de ser tomados em
conta para a compreensão das condições que favoreceram o desencadea-
mento do processo liberal vintista.

IN QUIETA ÇÃ O E IN SEGURA N ÇA N OS CA MPOS


Será preciso ter em conta, também, que esta movimentação nos anos
que imediatamente antecederam a Revolução liberal se inseria num qua-
dro rural marcado por fortes sinais de instabilidade psicosocial.
Com efeito, nos campos, o fim da guerra não afastara a insegurança,
devido ao aumento da marginalidade e do banditismo. Soldados desmobi-
lizados ou desertores, fardas esfarrapadas, alguns ainda com os fuzis, asso-
lavam estradas e lugares. Queixavam-se os governantes de que os habitan-
tes das terras invadidas ainda durante algum tempo andaram dispersos, de-
senquadrados das administrações das suas localidades, “habituados a uma
vida errante e insubordinada”, não acatando leis nem autoridades.45

206
CONTESTAÇÃO RURAL E REVOLUÇÃO LIBERAL EM PORTUGAL

Após as severas m edidas repressivas tom adas qu an to ao Alen tejo


(Port. 26.12.1812), as qu adrilh as passaram a assolar a Estrem adu ra e o
Algarve, com eten do sacrilégios e rou bos de toda a espécie, “violan do as
igrejas e os próprios vasos sagrados, sem tem or de Deu s n em do severo
castigo das leis” (Port. 6.2.1816).
A partir de 1814, aumentam os sinais de inquietação do espírito pú-
blico. A censura recrudesce sobre os jornais. Em 12 de março de 1817 – ain-
da antes, pois, de declarada a conspiração de Gomes Freire – o intendente
geral da Polícia, Barbosa de Magalhães, enviou uma circular urgente aos
corregedores de todas as comarcas do Reino, pedindo-lhes informações re-
gulares sobre o estado do espírito público.46 Os relatos dos corregedores e
juízes de fora mostravam preocupação política sobre o quadro rural, onde
havia indícios de instabilidade psicológica coletiva, de norte a sul.
As gentes das províncias viviam em sobressalto sob o efeito dos mais
variados boatos: dizia-se estar iminente uma invasão de tropas espanholas
e que o monarca português havia cedido o Reino à Espanha em troca de
Montevidéu, falava-se na morte de 4 mil soldados portugueses em comba-
te no Rio Grande e que, por isso, mais tropa iria de Portugal para o Brasil,
asseverava-se que D. João havia sido assassinado, ao passo que outros,
messianicamente, garantiam que estava prestes a chegar ao Tejo...
Entre os fatos que mais forte preocupação e instabilidade provocavam
nas populações rurais, avultavam os de natureza militar, que nelas tinham
gravosas incidências. Enquanto se tratara de rechaçar o invasor do País, o
Exército era obviamente indispensável, não sendo contestada nem a incor-
poração nas forças regulares nem a colaboração nas forças populares orga-
nizadas. Saído o último soldado francês do Reino, porém,já menos com-
preensível era a incorporação: as deserções e fugas foram em tal número que
o Governo se viu na necessidade de tomar medidas muito severas. Ainda
muito menos aparecia justificável quando, após a vitória definitiva sobre Na-
poleão, a paz voltou à Europa e nenhum perigo externo ameaçava o Reino.
Assim, a formação de um corpo militar, designado Voluntários Reais
do Príncipe, para prestar serviço no Brasil, e que embarcou em 1815, a
nova expedição enviada no ano seguinte para intervir na guerra do Rio da
Prata, de acordo com o plano de incorporação da Cisplatina no reino do
Brasil, o envio de um corpo de intervenção, em 1817, contra a revolta de
Pernambuco, levantaram visível descontentamento nos campos. Além das
saídas de grandes somas para sustentar estas campanhas militares em defe-
sa dos interesses do Brasil, ao mesmo tempo que se registrava maior pres-
são tributária em Portugal. Com efeito, a necessidade de mandar anual-
mente a importância de 600 contos de réis em metal para manter o corpo
expedicionário português pesava tanto sobre o orçamento público que, em
junho de 1820, os governadores do Reino informavam a Corte no Rio de
Janeiro da impossibilidade de continuar a fazê-lo. Agravava, além disso, o

207
José Tengarrinha

descontentamento no Exército, que não aceitava sofrer de vários meses de


atraso nos pagamentos quando era despendida tão grossa quantia numa
causa estranha à gente do Reino.
Mas o maior descontentamento nas províncias rebentaria com o pla-
no de recrutamento concebido pelo marechal inglês Beresford (membro da
Junta Governativa do Reino), cuja execução foi iniciada nos primeiros me-
ses de 1817: aumentava consideravelmente os efetivos militares portugueses
(de linha e milicianos), sendo muito lesivo para as populações rurais, tanto
mais que, ao contrário do habitual, não tinha em conta a falta que certos bra-
ços faziam à sustentação de explorações agrícolas. De uma atitude surda de
descontentamento passa-se, em alguns meios rurais, a ações frontais. Há no-
tícias de protestos mais vivos, por vezes emocionados, e até distúrbios, de
março a princípios de julho, contra o que o povo denominava “o plano do
marechal” e o envio de expedições para o Brasil: entre outras localidades,
Bragança, Linhares, Vila Real, Lamego, Trancoso e ainda Vila Nova de Ou-
rém, Montemor-o-Novo, Évora. Situavam-se, predominantemente, na parte
interior do Reino e em algumas das zonas rurais que mais haviam sofrido
com as Invasões. Foi este mais um fator, além dos já referidos, para provocar
o aumento das deserções e as fugas ao recrutamento, de que resultou ainda
maior agravamento da marginalidade e da criminalidade.47

CON CLUSÕES
Indaguemos, antes de tudo, da relação entre as tensões e contesta-
ção que vimos desenvolverem-se no espaço rural português após 1810 e o
desencadeamento da Revolução de 1820.48
Se adotássemos o critério, tão limitado, e de que tanto se abusou no
passado, de uma simples relação de causa e efeito entre alterações de pre-
ços e mudanças sociais e políticas, poderíamos ser tentados a sobrevalorizar
o fato de a Revolução liberal se inserir numa baixa de longa duração, que
se inicia em princípios do segundo decênio do século XIX e só amortece cer-
ca de 1825-1826; de que poderia sair a “explicação” da apatia das massas
rurais pobres (beneficiadas com o pão barato, sem que a sua agricultura de
subsistência sofresse com isso) e alguma maior agitação dos agricultores
produzindo para mercado, fortemente prejudicados com a conjuntura dos
preços e do comércio externo e interno.
Quando estudamos os movimentos agrários a partir do seu interior
– e não de simples curvas de índices econômicos – verificamos que eles se
relacionam tanto com dinâmicas gerais da sociedade, de que os preços são
uma das expressões, como com fatores próprios da sociedade rural, de di-
versas naturezas. O que nos coloca a questão de como o mundo rural se in-
sere no conjunto da sociedade.

208
CONTESTAÇÃO RURAL E REVOLUÇÃO LIBERAL EM PORTUGAL

O fato de a “lógica” dos campos não estar visivelmente entrelaçada


em intrigas da Corte nem apresentar uma imediata relação com os fatos po-
líticos tem conduzido na historiografia portuguesa a sistemáticas incom-
preensões sobre como se relacionam cidade e campo, mundo político e
mundo rural. É indispensável ter em conta os ritmos próprios, as formas e
simbólicas específicas da expressão e da vivência do mundo rural. A redu-
zida mobilidade social deste não poderá confundir-se com marginalidade e
ausência política. A compreensão desse relacionamento só é possível num
nível mediático mais complexo.
Verificamos que as incidências do mundo rural na vida pública por-
tuguesa se foram acentuando ao longo do século XVIII. A produção e o co-
mércio e consumo interno e externo dos gêneros agrícolas, os distancia-
mentos físicos e psicológicos, as insuficiências e as virtualidades desse mun-
do são condicionantes das decisões políticas gerais de que os governantes
mostram ter consciência cada vez mais clara. Traduz-se numa preocupação
que não desperta apenas em momentos de crise mais aguda, mas que pas-
sa a ser constante. Traduz-se, também, não apenas na adoção de medidas
pontuais quando escasseava o trigo no Reino ou aumentavam as dificulda-
des externas de colocação do vinho, mas numa tendência para ver os pro-
blemas agrários na sua globalidade, ainda que com dificuldade de inseri-los
no conjunto da sociedade.
A falência das inovadoras medidas do marquês de Pombal, quanto à
agricultura, resultou, por um lado, de não obedecerem a um consistente
projeto global e não terem levado até às últimas conseqüências algumas
importantes intenções reformistas (entre as quais, uma ampla desvincula-
ção e maior mobilidade da terra, diminuição considerável dos imensos bens
das corporações religiosas, maior aproximação do cultivador à terra que tra-
balhava, princípio de eqüidade apoiado em Bartolo e no Direito Natural);
e, por outro lado, do fato de ter governado impondo medidas administrati-
vas, de cima, sem ter em conta as novas realidades e dinâmicas que tinham
vindo a desenvolver-se no quadro rural, nomeadamente as resultantes do
aumento da mercantilização da produção agrícola e das conseqüentes exi-
gências de uma maior rentabilidade da terra.
Na segunda metade do último quartel do século XVIII, o Trono de
D. Maria I compreendeu que era indispensável aumentar a sua capacidade
de atendimento da sociedade em geral e, em particular, do mundo rural. É
uma alteração muito importante no relacionamento entre o poder régio e
a sociedade.49 Não deixa de derivar da preocupação de descomprimir as ten-
sões que se acumulavam nos campos, tanto mais preocupantes quanto se
conhecia o papel que tinham tido na Revolução Francesa. Mas havia, tam-
bém, a consciência da necessidade de que o Trono criasse condições favo-
ráveis para uma comunicação mais fluida da base social para o topo da hie-

209
José Tengarrinha

rarquia político-administrativa, aumentando a sua capacidade de consulta


das realidades e, assim, a sua eficácia. A exemplo, aliás, do que já ocorrera
e estava a ocorrer noutros pontos da Europa.
Segu n do o levan tam en to do m ovim en to peticion ário pré-liberal a
que procedemos quanto a algumas comarcas, registramos um acréscimo a par-
tir de 1780-1785, decréscim o en tre 1805-1810 e estacion ário en tre 1810-
1815. Mas o fato m ais m arcan te é a su bida espetacu lar registrada após 1815,
o qu e se relacion ará com o au m en to das expectativas criadas em face das
m edidas reform istas em an adas do Rio de Jan eiro. Há, assim , em vésperas da
Revolu ção liberal, u m en trelaçam en to m ais estreito en tre o cam po e o Po-
der, m an ifestan do este m aior preocu pação de dar respostas àqu ele.50
Respostas n ecessárias e u rgen tes – todos recon h eciam – em face da
gravíssim a crise econ ôm ica, fin an ceira, política e m oral qu e o Rein o atraves-
sava. Mas, com o se viu , foram in decisas e lim itadas, resu ltan tes de u m poder
cen tral bicéfalo e con traditório e de u m Estado m u ito fragilizado; e, por isso,
m ais do qu e n u n ca, receoso de falta de apoio social, procu ran do n ão perder
o das su as bases tradicion ais e n ão afastar o das cam adas m édias e baixas.
A pressão rural irá contribuir para pôr em maior evidência a insufi-
ciência dessas respostas e o bloqueamento do curso reformista e alimentar,
com base concreta, o intenso debate teórico político-jurídico nos anos ime-
diatamente anteriores à Revolução.
Mostrava-se, assim, a inviabilidade do tímido projeto de reformas a
partir de dentro, mas não a viabilidade de um projeto alternativo gerado
pelo campo. Seria necessária uma formulação global, para que não tinha
condições.
Uma parte considerável dos estratos sociais baixos encontrava-se di-
vidida em conflitos não só particularizados como de sentido contrário, si-
multaneamente contra a opressão senhorial e contra o avanço do capitalis-
mo nos campos.
É certo que nos anos imediatamente anteriores à Revolução e em zo-
nas de mais pesada opressão senhorial, como referimos, se assiste à acuti-
lância política de algumas câmaras, em ações anti-senhoriais instigadas ou
até lideradas por “notáveis locais” (nobreza rasa, lavradores abastados, em
geral enfiteutas, em parte identificados com o que se poderia designar de
“burguesia rural”).
A verdade, porém, é que tanto na gestão das terras concelhias como
em vários outros aspectos, em boa parte do Reino, se vê a organização mu-
nicipal não defender o interesse geral, mas cometer abusos a favor dos pró-
prios vereadores e ricos proprietários e criadores – a exemplo do que acon-
tecia em Espanha, como Joaquim Costa denunciou, designando-os como
uma “plutocracia provincial”.51 Por isso, foram os juízes de fora (que presi-
diam às câmaras) os alvos privilegiados da ira popular em momentos de
maior convulsão política (1808-1810 e 1820-1823). Desta maneira, não ti-

210
CONTESTAÇÃO RURAL E REVOLUÇÃO LIBERAL EM PORTUGAL

nham as câmaras condições para ser um instrumento político representati-


vo da generalidade das aspirações anti-senhoriais.
Por outro lado, estas elites locais não eram agentes de ruptura com
o regime senhorial, relativamente ao qual tinham, de resto, não poucos
pontos de compromisso, em especial no plano das concessões enfitêuticas.
Impeliam as câmaras à defesa dos interesses gerais da comunidade contra
os senhorios, sobretudo, quando reconheciam serem favoráveis as condi-
ções políticas gerais: assim, em 1815-1820, sob o impulso reformista do Tro-
no, e em 1820-1823, ainda com maior expressão, quando estavam criadas
condições políticas favoráveis à reforma dos direitos senhoriais e foi altera-
da por via eletiva a composição de numerosos elencos camarários, de acor-
do com a nova legislação liberal.
Tal enquadramento social e institucional imprime à pressão rural
não um sentido revolucionário, mas reformista. O que se traduzirá no es-
casso alcance transformador da legislação vintista. Em contraste, pois – so-
bretudo nas zonas onde tinha sido e estava a ser mais intensa a luta anti-
senhorial –, com as expectativas levantadas pela Revolução liberal e os tra-
balhos das Cortes, que se anunciava irem acabar com os forais e os dízimos,
o que não aconteceria.
O mundo político liberal não é alheio a tudo isso. Vários destacados
dirigentes liberais, quer por razões profissionais (corregedores, juízes ou ad-
vogados ligados a pleitos nos meios rurais), quer familiares e pessoais (fi-
lhos de agricultores ou eles próprios foreiros e enfiteutas) acompanharam
muito de perto as tensões rurais que antecederam a Revolução. Não sur-
preende, pois, que o Governo e os deputados liberais se tenham mantido
muito atentos às reações do campo, sendo falsa a idéia generalizada na his-
toriografia portuguesa de que estiveram de costas viradas, como dois mun-
dos que se ignoraram. Daí, se compreende o grande esforço que os liberais
fizeram – sem comparação com qualquer governo do passado – para ultra-
passar as seculares distâncias, incompreensões e suspeitas entre o mundo
rural e o mundo urbano.
Primeiro, houve que conter as impaciências, com o concelho de se
aguardar a lei de reforma dos forais, que traria grandes benefícios. Ao mes-
mo tempo, dotavam-se os intermediários culturais (advogados, burgueses
letrados e clérigos liberais espalhados pelas províncias) com instrumentos
ideológicos adequados: jornais, livros, editais, folhetos, catecismos, mani-
festos, proclamações, circulares quer da iniciativa do Governo e das autori-
dades militares quer de algumas câmaras.52
Tentando usar a seu favor a influência clerical junto das populações
rurais, as Cortes liberais resolveram que os arcebispos e bispos deviam di-
vulgar pastorais incitando os seus diocesanos a aderir e obedecer ao novo
governo, esclarecendo-os de que as reformas não feriam a religião tradicio-

211
José Tengarrinha

nal (Res. 26.2.1821), e que os párocos esclarecessem nas homilias as van-


tagens do novo regime e a não conflitualidade de princípios entre a Rege-
neração e a religião (Decr. 28.2.1821, reforçado com a Port. 1.10.1821).53
Mas a operação de propagan da liberal m ais am pla dirigida diretam en -
te às popu lações dos cam pos desen volveu -se com base n a lei de reform a dos
forais. Logo u m m ês após a prom u lgação desta, u m aviso da In ten dên cia Ge-
ral da Polícia (5.7.1822) m an dava qu e ela fosse lida e explicada às popu la-
ções, em qu atro dom in gos segu idos, em todas as câm aras do Rein o.54
Este esforço de propaganda não deixaria de ter efeitos, sobretudo, na
zona compreendida entre o Douro e o Tejo. A lei de reforma dos forais se-
ria, em vários locais, o ponto de partida para uma contestação global dos di-
reitos senhoriais, indo assim muito além das suas limitadas formulações.
Provocaria um recrudescimento da rebeldia onde a opressão senhorial era
mais dura, sobretudo quando baseada em pensões raçoeiras e dízimos. Se-
ria essa a razão principal da abolição da lei em 1824 (um ano após a queda
do regime constitucional) e não os efeitos lesivos que dela resultariam para
os senhorios. A abolição vai provocar uma reação de vários senhorios no
sentido do regresso a imposições ainda mais pesadas. Vê-se, então, em di-
versos locais, as populações que em 1822 e 1823 haviam contestado o limi-
tado alcance da lei, após a queda da monarquia constitucional apoiarem-se
na mesma lei para enfrentarem aqueles senhorios. Sem que isso significas-
se, porém, “identificação política” quer com o regime absoluto quer com o
regime liberal.
Diferente era a situação em outras partes do Reino, nomeadamente
no Minho, região transmontana e parte da Beira Alta. Aí, nas zonas onde
predominavam a enfiteuse e a subenfiteuse (sobretudo no Minho e parte
de Trás-os-Montes) eram generalizados os benefícios da estabilidade da
posse da terra quer para os que a trabalhavam quer para os que beneficia-
vam de foros enfitêuticos. Eles viam com apreensão a legislação liberal que
desencadeara uma certa confusão entre bens da Coroa e bens patrimoniais,
pois a contestação rural estendeu por vezes as reduções à enfiteuse particu-
lar, numa contaminação pelas pensões foraleiras que as Cortes haviam ten-
tado a todo o custo evitar. Nestas regiões, a mobilização das populações ru-
rais contra o regime liberal foi facilitada, pois, pelos receios sobre a seguran-
ça da propriedade. A “insegurança dos proprietários” era referida nas Cor-
tes como um fator de desapego à ordem constitucional. Deverá ter-se em
conta, também, a influência pessoal de grandes senhorios laicos que na re-
gião duriense se encontravam presentes em maior número, nos seus domí-
nios: mantinham com as populações rurais uma relação simultaneamente
de opressão e proteção (alguns tinham mesmo chefiado a luta contra os in-
vasores e defendido os povos), numa atitude que poderíamos qualificar
como de “duro paternalismo”. Além de que era aí, também, que a igreja
conservadora exercia maior influência, como se viu nas lutas de 1808, que

212
CONTESTAÇÃO RURAL E REVOLUÇÃO LIBERAL EM PORTUGAL

por isso tiveram um caráter dominante de “guerra religiosa” contra os ím-


pios jacobinos franceses e, agora, contra os liberais portugueses.
A interpretação do comportamento do rural a partir de motivações
exclusivamente ideológicas, sem ter em conta a ligação às suas condições
materiais de existência nem a complexidade da relação que entre esses pla-
nos se estabelece, tem conduzido, pois, a uma visão redutora na historio-
grafia portuguesa. A idéia de que o “projeto” do rural se limitava ao abso-
lutismo ou ao miguelismo fazia esquecer o essencial: não se pode identifi-
car a sua contestação social com um “modelo” ou um “projeto” político.
Nem sequer a afeição de uma parte do campesinato ao miguelismo
se poderá confundir com apoio ao regime absoluto e à organização senho-
rial da sociedade em que este assentava. Tenho defendido que tal afeição,
como fenômeno coletivo bastante generalizado, encontra a sua mais forte
raiz no vazio psicossocial que se gerou nas populações, sobretudo rurais,
mesmo com alguns tons dramáticos, quando da ida da Corte para o Brasil
em dezembro de 1807, à aproximação das tropas de Junot. E agravado com
a longa permanência do outro lado do Atlântico, muito além da saída das
tropas francesas do território nacional. O que fez correr, nas províncias, o
rumor de que o monarca abandonara o Reino, entretanto confiado a uma
Junta Governativa integrada por um general inglês, e estava mesmo dispos-
to a entregá-lo à Espanha, em troca de territórios a sul do Brasil (região cis-
platina). Outros tinham o anseio de que – tal como no passado, em mo-
mentos de crise nacional, se visionara a chegada do rei Sebastião, perdido
na derrota de Alcácer-Quibir – também D. João VI estava prestes a chegar
ao Tejo. Este vazio foi agravado com a morte do rei e a crise de sucessão que
se seguiu, considerada afastada a investidura do primogênito D. Pedro por
se ter assumido como imperador de um reino independente.
O fundo da questão era que, ao transferir o centro dos sentimentos
de dependência e solidariedade dos portugueses da ordem pessoal, o rei,
para a ordem impessoal, a pátria, operava-se uma verdadeira revolução
sentimental: porém, o valor simbólico do primeiro diminuíra (mero primei-
ro magistrado, que também devia obediência às decisões dos que represen-
tavam a Nação) sem que a segunda já se impusesse, pois assente num con-
ceito de soberania nacional ainda não suficientemente estruturado, numa
base muito instável e frágil de organização jurídica da democracia. Criava-
se, assim, um vazio de representação de poder e autoridade gerador de for-
te instabilidade psicossocial, que D. Miguel preencheria. Seria ele a con-
substanciar, de algum modo, um projeto unificador, mas socialmente retró-
grado e fora do quadro constitucional.55
O fenômeno do apoio de largas massas rurais a D. Miguel está longe
de significar, pois, a sua identificação com o regime absoluto e a opressão
senhorial. Tentar preservar os valores tradicionais como garantia de segu-

213
José Tengarrinha

rança e estabilidade não implicava defender o sistema social que os gera-


va. Eram valores que, na mente do rural, existiam fora de uma organiza-
ção social determinada e temporalmente circunscrita, como se fossem de
todos os tempos e lugares.
Estava impedida, assim, a possibilidade de o campesinato desenvol-
ver ação e projeto autônomos no processo transformador da sociedade de
Antigo Regime e desempenhar papel relevante na construção do novo re-
gime. Não estava, porém, eliminada a influência sobre o Poder que a mo-
vimentação rural exercia, correspondente a fases do desenvolvimento des-
ta: o âmbito local, onde predominava o isolamento das comunidades cam-
pesinas, criando dificuldades à transmissão; a ressonância dos alarmes dos
agredidos nas instâncias do Poder; e as consonâncias desses alarmes com
aqueles que julgavam dispor de soluções. Assim, o encaixe do protesto po-
pular agrário nas estruturas da sociedade e do Poder vai-se alterando, crian-
do diferentes dinâmicas que estão presentes quer nas propostas reformistas
pré-liberais quer nos trabalhos das Cortes vintistas. Contribuem para radi-
calizar as posições de uns, no sentido não da reforma mas da abolição dos
forais (o que só seria feito em 1832), e para atemorizar outros, receosos de
que a abolição dos foros foraleiros arrastasse à abolição dos foros enfitêuti-
cos, provenientes de emprazamentos particulares, de que beneficiavam.
As novas dinâmicas da intervenção popular após as Invasões, na se-
qüência das linhas de contestação rural desde o último quartel do século
XVIII, dão argumentos aos que defendem a necessidade inadiável de refor-
mas e tornam mais nítidas as clivagens no campo liberal, após a Revolução.
Mas não se poderá dizer que a extinção do Antigo Regime e o advento da
sociedade liberal ocorram a culminar um processo opondo irredutivelmen-
te “classes feudais” e “classes burguesas”. O processo será conduzido – como
se deduz do que atrás ficou brevemente exposto – por um bloco social, do-
minado por um senhorialismo renovado, em que a burguesia tem um pa-
pel subalterno. O percurso será feito mais pela sucessão de “readaptações”
do que de “descontinuidades”.

214
CONTESTAÇÃO RURAL E REVOLUÇÃO LIBERAL EM PORTUGAL

N OTA S
1. ANTT, CF, Consultas, L. 31,f. 67.
2. Manifesto das Contendas do Cabido da Sé de Coimbra com o Prior e Moradores do Couto de Vila
Nova de Monsarros (Anônimo). Lisboa: Impressão Régia, 1815.
3. Muito abundante documentação sobre este assunto consultamos em ANTT, MJ, vários maços
(exº. nº. 184 e 233) e CF, Consultas, diversos livros (exº. nº. 25).
4. Os que arrendavam a cobrança das multas sobre os que punham os seus gados a pastar, irregu-
larmente, em terras que não lhes pertenciam ou em períodos não-autorizados.
5. Balanças Gerais do Comércio do Reino de Portugal..., elaboradas por Maurício Teixeira de Mo-
rais (INE, AHMOP, e ANTT). Adrien Balbi, Essai Statistique, I, p. 152. NEVES, A. das Memória sobre
os Meios de Melhorar a Indústria Portuguesa... In: Obras Completas. Porto: Afrontamento, s.d. v.4,
p.125. E ALEXANDRE, V. Os Sentidos do Império. Questão Nacional e Questão Colonial na Crise do Antigo
Regime Português. Porto: Afrontamento, 1993. p.787-92.
6. ANTT, MNE, Cx. 899.
7. ANTT, MR, Governadores do Reino..., L. 316, f. 110, conta de 7.1.1815 e f. 125v.-126, conta de
21.2.1815 e L. 317, p.50-1, conta de 16.2.1816 e p.201-5, conta de 17.9.1816.
8. ANTT, CF, Consultas, L. 25, f. 12; MR, Governadores do Reino..., L. 316, f. 110 e L. 317, p.201-
205, contas, respectivamente, de 7.1.1815 e 17.10.1816.
9. ANTT, MR, Governadores do Reino..., L. 315, f. 269-273 v., conta de 15.1.1814.
10. ANTT, MR, M. 356, n.16.
11. ANTT, MR, Governadores do Reino..., L. 319, p.452-65, conta de 2.6.1820.
12. ANTT, MR, Governadores do Reino..., L. 319, p.126-8.
13. Ver, por exemplo, ANTT, DP – Corte..., M. 612, n. 9 e M. 613, n. 1.
14. Ver, por exemplo, o movimento de protesto das populações da área de Coimbra, em julho de
1814, que teve consideráveis repercussões (ANTT, DP – Beira, M. 367, n. 27 768).
15. ANTT, MR, M. 460.
16. Nesse ano, a renda líquida do Estado foi de 5.625.541$694 réis e, só com o Exército, os gastos
subiram a 5.971.334$122. Para o conhecimento da situação no Reino e das políticas de Lisboa e do
Rio de Janeiro neste período foi fundamental o estudo exaustivo que fizemos da correspondência
trocada entre o Governo de Lisboa e a Corte no Brasil entre 1808 e 1821: ANTT, MR, “Governado-
res do Reino. Registro de Cartas ao Príncipe Regente (1808 a 1821)”, LL. 314-321 e “Ordens do
Príncipe Regente para os Governadores do Reino (1809 a 1820)”, LL. 380-383.
17. Globalmente, a média anual dessas receitas passou de 9.299.335$185 no triênio de 1801-1803
para 6.444.718$274 réis em 1809-1811, com base em dados de um relatório redigido em 31.5.1812
e enviado para o Rio de Janeiro (ANTT, Ministério dos Negócios Estrangeiros, Cx. 894, s.n.).
18. Admitiam ter, assim, a segurança da pontualidade com que lhes pagavam os juros e sem o en-
cargo de tributos à Fazenda.
19. Terá resultado da maior eficácia da Secretaria de Estado dos Negócios da Fazenda (cuja compe-
tência e expediente passaram a ser regulados pelo Decreto de 8.10.1812), bem como do período de
paz e da recuperação econômica que se vive.
20. ANTT, CF, Consultas, L. 24, f. 70 v.
21. ANTT, DP - Beira, M. 209, nº. 13 637.
22. Considerando em conjunto as alfândegas e todos os mais rendimentos dos cofres de correntes,
do triênio de 1801-1803 para o de 1809-1811 há um abaixamento da receita anual média de
7.290.954$759 para 5.082.232$852.
23. ANTT, DP – Beira, M. 160, nº. 11 490.
24. A receita anual média, no triênio 1801-1803, fora de 121.605$697, ao passo que no de 1809-

215
José Tengarrinha

1811 descera para 30.713$426


(ANTT, MNE, Cx. 894).
25. ANTT, CF, Consultas, L. 26, f. 6.
26. ANTT, CF, Consultas, L. 30, ff. 145 e 188.
27. ANTT, CF, Consultas, L. 31, f. 67.
28.Ver TENGARRINHA, J. Venda dos Bens da Coroa em 1810-1820: os Reflexos de uma Crise Na-
cional. Análise Social, v.XXVIII (122), p.607-19. 1993. (3º)
29. É o que se depreende das informações, sobre o estado do espírito público nas províncias, envia-
das regularmente pelos corregedores de todas as comarcas do Reino ao intendente geral da Polícia,
após circular urgente que este lhes dirigiu em 12 de março de 1817 (ANTT, MR, M. 461).
30. Não se nega a influência, porventura decisiva, que D. Rodrigo de Sousa Coutinho, conde de Li-
nhares, então ministro dos Estrangeiros e da Guerra no Rio de Janeiro e de conhecidas tendências
anglófilas, teria tido na elaboração destas medidas em 1809 e 1810. Mas a verdade é que, após a
morte deste (janeiro de 1812), sairam do governo do Rio duas outras disposições mais lesivas dos
direitos senhoriais, sendo então desembargador do Paço e depois ministro do Reino Tomás Antô-
nio de Vila-Nova Portugal, colaborador das Memórias Econômicas da Academia Real das Ciências
de Lisboa, mas tão exacerbado antiliberal que em 1821, quando da chegada de D. João VI a Lisboa,
foi impedido pelo governo liberal de desembarcar.
31. Veja-se, sobretudo, a polêmica entre Manuel Fernandes Tomás, que seria considerado o patriar-
ca da Revolução de 1820, e o conservador Manuel de Almeida e Sousa de Lobão.
32. Relatórios secretos dos governadores do Reino para o Rio de Janeiro em 14.5.1810 e 27.3.1811
( ANTT, MR, Governadores do Reino..., L. 314, f. 102 v.-103 e f. 165-170).
33. Trata-se da Comissão para Exame dos Forais e Melhoramentos de Agricultura, criada só em
1812, e de que sairam pareceres que, alguns anos depois, irão informar os deputados vintistas e tam-
bém a comissão encarregada de reformar os forais, após o termo do primeiro período constitucional.
Apesar dos seus escassos efeitos práticos, os resultados dos trabalhos desta comissão têm muito inte-
resse tanto do ponto de vista teórico como para o conhecimento dos principais pontos que então
opunham reformistas e conservadores ( ANTT, DP – Corte, Estremadura..., M. 1530, nº.16).
34. Relatório dos governantes de Lisboa para o Rio de Janeiro em 24.8.1813 (ANTT, MR, Gover-
nadores do Reino..., L. 315, f. 217-19 v.).
35. ANTT, MR, Governadores do Reino..., L. 316, ff. 108 v. ss.
36. ANTT, DP-Beira, M. 512, nº. 38 322.
37. ANTT, DP-Beira, M. 372, nº. 28 161 e M. 373, nº. 28 261.
38. ANTT, DP-Beira, M. 352, nº. 26758.
39. ANTT, DP-Corte..., M. 1972, nº. 116.
40. Foi um período de abastança para os que usufruíam de rendas e para os que detinham a terra
em elevado grau, mas de grandes dificuldades para os que estavam sujeitos a rendas e tinham, mui-
tas vezes, ao mesmo tempo, de trabalhar como assalariados noutras terras. Tenha-se em conta que,
na segunda metade do século XVIII, a subida das jornas se atrasou muito sobre a dos preços.
41. Cf. LE ROY LADURIE E. Révoltes et contestations rurales en France de 1675 à 1788. Annales
E.S.C., jan.-fev. 1974. p.11.
42. Cf. BOUTIER,J. Jacqueries en pays croquant. Les révoltes paysannes en Aquitaine (Décembre
1789-Mars 1790). Annales E.S.C., jul-ago. 1979. p.760-86.
43. Duas das exceções mais significativas dizem respeito: uma, à utilização de meios de produção
fixos (“banalidades”), sobretudo as prensas em lagares de azeite e vinho que lavradores abastados
e rendeiros tinham tido meios para construir, facultando-os em melhores condições do que os se-
nhoriais; outra, às restrições ao comércio agrícola, desde as portagens e medidagens ao relego.
44. Relatório para o Rio de Janeiro em 27.3.1811 (ANTT, MR, Governadores do Reino..., L. 314, f. 165-70).
45. ANTT, MR, M. 461.

216
CONTESTAÇÃO RURAL E REVOLUÇÃO LIBERAL EM PORTUGAL

46. Informações recolhidas de um conjunto documental, até agora não estudado, constituído pe-
los relatos dos corregadores e juízes de fora ao intendente geral da Polícia sobre o estado do espíri-
to público no Reino em 1817 (ANTT, MR, M. 461); além de pasquins e panfletos e informações
contidas nos Livros de Secretarias da Intendência Geral da Polícia, de que utilizei uma parte na mi-
nha História da Imprensa Periódica Portuguesa, 2. ed., p.69-74 e 82-3.
47. No limitado espaço deste artigo, apenas poderíamos ficar às portas da Revolução. O estudo que
fizemos das contestações e lutas agrárias que se desenvolveram em Portugal nos primeiros anos do
liberalismo não cabia aqui.
48. Manifesta-se também, entre outras medidas, pela retomada das audiências régias semanais ao
povo.
49. Após a Revolução liberal, abrem-se condições mais favoráveis ao impulso do movimento peti-
cionário, que, em contraste com o caráter organizado dos “cahiers de doléances” franceses de 1789,
apresenta uma predominante espontaneidade. Este movimento peticionário do primeiro triênio
constitucional encontra-se na seqüência do anterior. Até o formulário usado ao dirigir-se às Cortes
liberais era idêntico ao das antigas petições ao monarca instruídas pelo Desembargo do Paço: “So-
berano Congresso”, “Augusto Congresso”, “Vossa Majestade”.
50. Colectivismo Agrário en España, 1.ed., 1899.
51. Ver, por exemplo, Coleção Geral e Curiosa de Todos os Documentos Oficiais e Históricos Publi-
cados por Ocasião da Regeneração de Portugal desde 24 de agosto, Lisboa, Tip. Rollandiana, 1820;
ANTT, IGP, Correspondências dos Corregedores das Comarcas; e, entre os vários livros, DULAC, A.
M. Vozes dos Leais Portugueses. Lisboa: Impressão Régia, 1820.
52. Sabe-se que muitos foram os párocos que assim procederam e tiveram assinalável influência no
esclarecimento das populações rurais. Porém, a maior parte do Reino teria ficado à margem da in-
fluência liberal dos clérigos, que foi em decréscimo do sul para o norte, sendo a maior resistência a
do clero regular.
53. Além do Algarve (onde foram abrangidas, pelo menos, todas as câmaras a barlavento de Faro),
temos notícias mais expressivas que nos chegaram de sessões efetuadas na região entre o Douro e
o Tejo, onde as terras foraleiras eram em muito maior número e se haviam desenrolado as mais
agrestes lutas anti-senhoriais. Algumas dessas sessões assumiram particular significado: por exem-
plo, em terras dominadas pela poderosa Ordem de Cristo (comarca de Tomar), nos domínios do não
menos poderoso mosteiro de Alcobaça ou na região de Feira-Aveiro e da Guarda, onde se localiza-
vam importantes e exigentes donatários eclesiásticos e laicos. Aí, foram vivamente mostrados os
sentimentos anti-senhoriais das populações rurais.
54. Desenvolvimento desta idéia em TENGARRINHA, J. Da Liberdade Mitificada à Liberdade Subver-
tida. Uma exploração no interior da repressão à imprensa periódica de 1820 a 1828. Lisboa: Coli-
bri, 1993. p.76-7.
218 Dela saiu o trabalho Movimentos Populares Agrários em Portugal. 1751-1825. Lisboa: Publicações
Europa-América, 1994. 2v. Entre as fontes em que me apoiei, em diversos núcleos de vários arqui-
vos, tiveram maior importância os tribunais superiores do Desembargo do Paço e do Concelho da
Fazenda, a Intendência Geral da Polícia e o Ministério do Reino nos Arquivos Nacionais-Torre do
Tombo.

217
capítu lo 12

D IVERSID A D E E CRESCIMEN TO
IN D USTRIA L
Miriam Halpern Pereira*

A sociedade portu gu esa oitocen tista, en tre 1820 e 1890, assen tava
n a atividade agrícola e n o com ércio extern o a ela ligada n u m a proporção
m aior qu e em qu alqu er ou tro período da su a h istória, a época m edieval
excetu ada. Perdida estava a prin cipal base colon ial da econ om ia portu gu e-
sa desde o sécu lo XVII, o Brasil, as possesões orien tais eram in sign ifican tes
h á m u ito, e as colôn ias african as dem orariam a adqu irir papel de relevo.
En tre dois im périos, a econ om ia portu gu esa teve qu e adaptar-se à n ova di-
visão in tern acion al de trabalh o. Algu n s setores da produ ção agrícola, com
destaqu e para a vitivin icu ltu ra, adqu iriram prim azia n o com ércio extern o,
em proporção n u n ca an teriorm en te atin gida. A atividade in du strial viu o
seu escoam en to regridir violen tam en te: o Brasil in depen den te com praria
vin h o ou azeite portu gu ês, ao lado do espan h ol, m as n ão tecidos de lin h o,
algodão, seda ou lã. Apen as ch apéu s, sapatos, ren das con tin u aram ain da,
em bora em qu an tidade redu zida, a en con trar clien tela do ou tro lado do
Atlân tico. A m em ória do m ercado colon ial perdido seria ain da perceptível
em testem u n h os n orten h os do fin al do sécu lo, tão forte fora a su a m arca
n a proto-in dú stria do n oroeste atlân tico.
Ao sair do rescaldo dos an os 1808-1820, a an tiga estru tu ra in du s-
trial en con trava-se destroçada, com o os in qu éritos dessa época o testem u -
n h am . Len tam en te prin cipia u m a recon versão. Revolu to o tem po das
gran des m an u fatu ras reais, das qu ais pou cas sobreviveriam , vai operar-se
u m a tran sform ação sem gran diosidade, tan to m ais discreta qu an to será
acom pan h ada n algu m as regiões por u m fen ôm en o de ru ralização. Um a
recon versão qu e apresen ta traços com u n s com a evolu ção n o n orte da Itá-
lia, estu dada por Dewerpe.1 Men or dim en são das u n idades in du striais,
m aior articu lação com o ritm o da atividade agrícola, seria u m a form a de
redu ção de cu stos, de m aior flexibilidade e adequ ação às flu tu ações da
procu ra qu e se situ ava a u m n ível in ferior. In ferior em qu an tidade, em
qu alidade. A recon versão, orien tada para o m ercado in tern o, far-se-á em
fu n ção da procu ra dos estratos da popu lação com m en or poder de com -
pra. É o segm en to do m ercado m en os atin gido pelos artefatos estran gei-
ros. Na região do Porto, foram os tecidos m ixtos de seda e algodão qu e aju -
daram a sair da crise len tam en te, n a Covilh ã foram os baetões. O cresci-

219
Miriam Halpern Pereira

m en to in du strial será con dicion ado pela con figu ração do m ercado in tern o,
en qu an to n ão su rgem oportu n idades de in tegração n o m ercado in tern a-
cion al. A estru tu ra social do m ercado oferece oportu n idades desigu ais aos
diferen tes setores da in dú stria. A elite abastada, o m elh or segm en to do
m ercado n o m u n do an terior à "sociedade de con su m o", privilegia a pro-
du ção de qu alidade, qu e m esm o n o setor básico da in dú stria, qu e é n esta
época o têxtil, ten de a ser de origem estran geira. A m atriz das relações co-
m erciais extern as delin eada desde o fim da prim eira década do sécu lo fa-
cilitaria esta preferên cia.2
Aprofu n dar a con figu ração qu e a estru tu ra in du strial veio a adqu i-
rir du ran te a segu n da m etade do sécu lo XIX n este con texto, foi o n osso
prin cipal objetivo n esta abordagem de algu n s aspectos do crescim en to in -
du strial. Desen volvim en to in du strial, crescim en to fabril e m ecan ização
tem sido con siderados im plicita ou explicitam en te fen ôm en os equ ivalen -
tes. Aqu i qu estion a-se esta iden tificação, m ostran do qu e o crescim en to
in du strial pode ter assu m ido form as diversas, tal com o a h istoriografia tem
vin do a apon tar em relação a ou tros países.3 A h ipótese de qu e se partiu
n esta abordagem sobre as form as do crescim en to in du strial portu gu ês oi-
tocen tista assen ta n a idéia de u m a possível diversidade de opções n o esfor-
ço dos in du striais portu gu eses n a adaptação à n ova divisão in tern acion al
do trabalh o n o sécu lo XIX-XX. Essa diversidade, em bora presen te desde o
estu do pion eiro de Arm an do de Castro e n ou tros estu dos sobre a in dú stria
oito e n ovecen tista, m erece ser objeto de u m a rein terpretação.

P EQUENA INDÚSTRIA E FÁBRICAS: UMA REAVALIAÇÃO

Os an os 70 a 80 são geralm en te con siderados com o coin ciden tes


n os países in du strializados com a predom in ân cia das n ovas form as de or-
gan ização e de tecn ologia in du strial, iden tificadas de form a su m ária com a
revolu ção in du strial.4 É in teressan te averigu ar o pon to da situ ação n esse
m om en to em Portu gal. Tem os a sorte de dispor para esse efeito do in qu é-
rito de 1881. Nen h u m ou tro in qu érito à escala n acion al, reu n iu equ iva-
len te m assa de in form ação sob a form a de in qu érito in direto e direto. Pa-
rece ter h avido particu lar dispon ibilidade dos in qu iridores para percorrem
o país e das in stitu ições para editarem este vasto m aterial.5 O en qu adra-
m en to tem poral será alargado, a m on tan te e a ju san te, com base em do-
cu m en tação vária, ou tros estu dos, in qu éritos parciais e estatísticas de co-
m ércio extern o. Privilegiam os dois setores, o algodoeiro e os lan ifícios
pela su a relevân cia n a econ om ia e n o m ercado de trabalh o. Em term os re-
gion ais isso sign ificou dar particu lar relevo ao distrito do Porto, à Covilh ã

220
DIVERSIDADE E CRESCIMENTO INDUSTRIAL

e à região serran a da Estrela. Os dois con celh os do Porto e da Covilh ã ocu -


pavam u m lu gar ím par n o con texto n acion al: a popu lação ativa in du strial
represen tava 42% e 43% em 1890, qu an do em Lisboa atin gia apen as
31% e n acion alm en te era ain da m en or, 19% .
Um dos gran des problem as con ceptu ais com o qu al os in qu iridores
de 1881 se defron taram pren de-se com a gran de variedade de form as de
organ ização qu e caracterizava en tão a paisagem in du strial. A classificação
em três gran des gru pos, fábricas, oficin as e in dú stria a dom icílio vai orien -
tar o con ju n to do in qu érito e m edian te ela pode obter-se u m a visão siste-
m ática do con ju n to. O problem a é qu e a aplicação desta classificação es-
partilh a a realidade su bjacen te à qu al n ão se aju sta, con du zin do a agru pa-
m en tos de pou co rigor.
A flu tu ação n a aplicação do con ceito de fábrica e oficin a com prova
as dificu ldades de defin ição en con tradas dian te de u m m u n do in du strial
diversificado. Tradu z a in existên cia real de u m a fron teira. Desde lon ga
data qu e esta flu tu ação de vocabu lário existia, e n ada obrigara ain da a
u m a separação de águ as, de u m pon to de vista ju rídico e fiscal.6 Não exis-
tiria n ecessariam en te gran de diferen ça de dim en são com a in trodu ção das
prim eiras m áqu in as. É o qu e n o caso do Porto explicitam en te ju stificou a
inclusão de fábricas de moagem a vapor na categoria de oficinas.7 Pelo con-
trário a oficina de fechaduras comuns do mestre Venâncio da Silva Cambra
encontra-se mencionada anonimamente entre as sete oficinas de Ramalde,
Bouças: ora, tratava-se de uma pequena fábrica, onde cinqüenta homens
trabalhavam a braço, em seis forjas, quarenta a cinqüenta tornos de banca-
da, além de outros utensílios, enquadrados por uma acentuada divisão do
trabalho.8
O caso de u tilização m ais in exata da design ação de fábrica, e qu e
n ão foi objeto de qu alqu er crítica n a apreciação fin al do in qu érito, é o da
Covilh ã e Gu arda. Todas as u n idades in du striais, in depen den tem en te da
su a estru tu ra e dim en são, foram design adas por fábricas, o qu e in trodu z
u m erro con siderável qu e n ão foi corrigido. Com pren der-se-á m elh or m ais
adian te a dificu ldade em efetu ar tal correção.9
No caso das oficin as, a form a globalizan te com o foram descritas n as
visitas locais o con ju n to das oficin as ou in dú strias em dom icílio, existen -
tes em cada con celh o ou localidade, ocasion ou u m a con tagem com o u n i-
dades in du striais de con ju n tos qu e n ão tin h am n ecessariam en te articu la-
ção en tre si. A su a desagregação perm ite a reavaliação da parte represen -
tada pelo trabalh o oficin al n os vários ram os in du striais.10 Fábricas e ofici-
n as agru pavam aparen tem en te parcelas qu ase idên ticas da m ão de obra,
cerca de 23% cada gru po, m as n ote-se qu e elevado n ú m ero de oficin as
n ão in dicaram a m ão de obra. Con tu do, a gran de au sen te do in qu érito é

221
Miriam Halpern Pereira

a in dú stria em dom icílio, só n o Porto ela foi in clu ída de form a sign ificati-
va. Mesm o assim os trabalh adores em dom icílio n o con ju n to do território
n acion al som avam 45.095, 49,55% do total, ou seja qu ase igu alavam o
total da m ão-de-obra in serida n as fábricas e oficin as. Desse total, 30 m il
eram tecelões da cidade do Porto.
Apon tada a dom in ân cia das pequ en as u n idades in du striais e do tra-
balh o m an u al, a qu estão qu e se coloca é a da su a in terpretação. Ao lado
de artesãos in depen den tes, por vezes bem prósperos e n ada decaden tes,
coexistiam m ú ltiplas form as de articu lação en tre produ tor e m ercado e de
articu lação en tre fábrica, trabalh o oficin al e em dom icílio. São as partes do
In qu érito referen tes aos distritos do Porto, Castelo Bran co – estes dois ape-
n as cobertos pelo in qu érito direto, o m ais fidedign o – da Gu arda e algu -
m as zon as do Norte, qu e m elh or n os in form am a este respeito.

A IN D ÚSTRIA A LGOD OEIRA

Lin h o e seda foram len tam en te sen do destron ados pelo pan o de al-
godão, de in ício m esclado com seda. Evolu ção m ais m arcada n a Região
Norte, on de as prim eiras fábricas de fiação fabril de in icativa portu en se se
situ aram n ão n a cidade, m as n a região em redor do Porto, on de o cu sto da
m ão-de-obra e da en ergia h idraú lica eram fatores favoráveis.11 Tin h am
com o fin alidade evitar a im portação de fio in glês. Com o acon teceu n ou -
tros países, a m ecan ização da fiação veio ao en con tro da expan são da te-
celagem m an u al, em dom icílio e em oficin as. Um crescim en to qu e im -
pression ou Oliveira Marreca em m eados do sécu lo: "A tecelagem do algo-
dão em teares m ovidos pelas forças an im adas tem m ostrado n o Porto u m a
progressão espan tosa". Tradu zira-se pelo au m en to da im portação de fio, só
em três an os, en tre 1845 e 1848, de 638.703 para 999.706 arráteis.12
Decorridos 30 an os, o fen ôm en o repete-se. Em 1881, o crescim en to da
tecelagem m an u al em relação à situ ação m eio sécu lo m ais cedo era en orm e,
passara-se de 2.500 trabalh adores em dom icilio n o têxtil portu en se em 1830,
para 30 m il, ou seja u m a alteração de 4,8% para 28,34% da popu lação u rba-
n a.13 Nú m eros qu e valem com o estim ativa, em bora possam h oje parecer-n os
excessivos, desabitu ados da dim en são do trabalh o m an u al, n a época n ão fo-
ram qu estion ados. No caso da in dú stria do Porto o papel desem pen h ado pe-
los tecelões é cen tral e in trigan te. On de se in tegravam e a qu e estru tu ra in -
du strial correspon diam os 30 m il tecelões em dom icílio n a cidade do Porto,
qu e con stam com o u m a u n idade n os qu adros-sín tese? Não foram in clu ídos
n as pequ en as in dú strias da cidade, m as n a popu lação fabril.14 Na realidade
são tecelões qu e trabalh am para fabrican tes do Porto e para u m a fábrica, a fá-
brica de Asn eiros. Só para esta fábrica trabalh avam à tarefa 229 teares – 126

222
DIVERSIDADE E CRESCIMENTO INDUSTRIAL

n a cidade, 103 n os con celh os lim ítrofes – e oitocen tos tecelões com pravam
fio da fábrica, ven den do-lh e depois o tecido, retribu in do parte em din h eiro,
parte em fio. Asn eiros era o prin cipal destin atário da tecelagem m an u al por-
tu en se, m as de m odo algu m o ú n ico. Um a dezen a de fabrican tes con trolavam
en tre cem a oitocen tos teares, calcu lan do-se qu e a m édia ron daria os du zen -
tos teares; ou tros qu atrocen tos a qu in h en tos fabrican tes con trolavam u m a
m édia de qu in ze a vin te teares cada u m . Todos estes fabrican tes eram an tigos
operários qu e tin h am en riqu ecido, ou seu s filh os, algu n s ter-se-iam m esm o
se torn ado "opu len tos". No total calcu lava-se em 10 m il o n ú m ero de teares,
o qu e con tan do u m m ín im o de três pessoas por tear – além do tecelão, a m u -
lh er dobadora ou fian deira, o rapaz qu e en ch e as can elas – perfaz 30 m il in -
divídu os.15 Mais de u m qu arto da popu lação portu en se, 28,34% , trabalh ava
n u m a ú n ica atividade in du strial, o qu e represen ta u m a forte especialização
da popu lação desta cidade, isto sem con tar a popu lação n ela en volvida n a
área ru ral en volven te. 16
A estru tu ra em presarial dos fabrican tes era m u ito variável, se algu n s
n em oficin a própria possu íam , ou tros tin h am pequ en as oficin as de tecela-
gem , bem m en os im portan tes qu e os teares qu e trabalh avam fora por su a
con ta, ou tros dispu n h am de tin tu rarias an exas, e fin alm en te h avia aqu eles
qu e tin h am pequ en as fábricas em su as próprias casas, in staladas n o fu n do
dos qu in tais. Estes pequ en os em presários n ão eram alh eios à tecn ologia do
vapor, dois u tilizavam m otores de vapor para dobar e fiar.
Esta exten sa rede têxtil, qu e produ zia baetas, cobertores, cotin s e
riscados tin tos, era muito mais considerável em número que as fiações e tecelagens
a vapor, afirm ava-se n o in qu érito. A ela se deve ain da ju n tar u m con ju n -
to de pequ en as oficin as qu e produ ziam colch as e toalh as. Situ adas n a área
u rban a, eram oficin as an exas das h abitações, on de se reu n ia u m n ú m ero
variável de teares, qu e podiam elevar-se a 28. Nas oficin as visitadas os tea-
res eram todos Jacqu ard. Tal com o n as an teriores, qu an do existia u m m o-
tor m ecân ico ele destin ava-se às dobadou ras, torcedeiras ou cardas. O fio
com a grossu ra n ecessária para este tipo de tecido n ão era im portado, só
era u tilizado fio n acion al.17
De tu do isto se con clu ía em 1881, n a visita às fábricas do distrito do
Porto: "A m an u fatu ra do algodão aparece com o u m a irradiação ou depen -
dên cia da gran de in dú stria. En tre n ós a preparação do algodão n asceu ca-
pitalista e pau talm en te".18 Estava-se dian te de u m a en orm e m assa de tra-
balh adores em dom icílio qu e produ ziam à peça para fabrican tes ou fábri-
cas. A organ ização da in dú stria da tecelagem do algodão, sobretu do n a
área u rban a do Porto assem elh ava-se à das "fábricas coletivas".19 A exten -
são do trabalh o em dom icílio apresen ta-se com o u m fen ôm en o qu e n ão se
deve opor às criações fabris, às qu ais pelo con trário se articu la.
E a este segundo e notável crescimento da tecelagem manual corres-
pondeu desta vez um verdadeiro boom da fiação mecânica organizada em

223
Miriam Halpern Pereira

fábricas entre 1874 e1880. Na época, esta criação fabril não ofuscou contu-
do o significado da extensão do trabalho manual como vimos,20 mas isso cu-
riosamente aconteceu posteriormente na historiografia. Das 44 fábricas al-
godoeiras existentes em 1881, dezesseis dedicavam-se à fiação, nove das
quais lhe associavam a tecelagem.21 No conjunto do país, as sete fábricas de
fiação e as nove que associam fiação e tecelagem concentram 66% da mão
de obra do setor têxtil fabril. Metade deste tipo de fábricas situavam- se no
distrito do Porto, onde se concentrava também, como já vimos, a tecelagem
oficinal e doméstica. Em grau variável, todas utilizavam a energia a vapor,
com a exceção de uma unidade de catorze operários em Belém.22
Destas dezesseis fábricas, dez tin h am m ais de cem operários, u m a
delas u ltrapassava qu in h en tos. O con traste com as qu in ze fábricas exclu -
sivam en te dedicadas à tecelagem – das qu ais seis estão sediadas n o distri-
to do Porto – é con siderável: oito em qu in ze têm m en os de cin qü en ta ope-
rários, e ou tras qu atro en tre cin qü en ta e cem . Apen as qu atro se servem
em pequ en a escala do vapor. Na tecelagem fabril a pequ en a em presa e o
trabalh o m an u al coin cidiam , com o n a in dú stria a dom icílio.
Situ ação diferen te era a da estam paria, con siderada o setor m ais
próspero do têxtil, du ran te gran de parte do sécu lo até 1881, e con cen tra-
da em Lisboa. Os in du striais deste ram o eram h erdeiros da an tiga fu n ção
dos m ercadores de tecidos, com o eles dedicavam -se ao acabam en to de te-
cidos qu e n ão produ ziam : os tecidos, qu e em tem pos idos vin h am da Ín -
dia, eram agora de proven iên cia in glesa.23A su a m en talidade refletia essa
proxim idade do m eio com ercial.24 Eram treze as u n idades de estam paria,
de dim en são m édia e pequ en a, cin co com qu an tidade de operários abaixo
de cin qü en ta, três en tre cin qü en ta e cem . Mas só três n ão u tilizavam a
en ergia a vapor e o setor era con siderado m u ito bem apetrech ado de u m
pon to de vista técn ico. Era a estam paria qu e colocava Lisboa ligeiram en te
acim a do Porto n a ocu pação de m ão-de-obra fabril têxtil (39% e 32% ),
qu e n o con ju n to totalizava apen as 5.517 operários. Con tu do a in clu são da
m ão-de-obra trabalh an do em oficin as e em dom icílio desequ ilibraria m ar-
cadam en te a relação en tre as du as zon as em sen tido in verso. Além dos 30
m il tecelões a dom icílio portu en ses, qu ase todas as oficin as de algodão e li-
n h o se situ avam n o Porto.25
A produ ção têxtil destin ada a estratos sociais m édios e popu lares
en volvia além da região do Porto, diferen tes pólos de produ ção n a área ru -
ral dos distritos de Braga, Vian a e Aveiro, don de aflu íam cotin s e riscados
para abastecer o distrito do Porto, n o fin al dos an os 80.26 Esses tecidos de
baixa qu alidade eram com petitivos e capaz de ven cer a con corrên cia fabril.
Em m eados do sécu lo, Oliveira Marreca apon tara-o: "Estes produ tos obs-
cu ros do pobre cu ja produ ção se n ão regu la pela m edida do capital, priva-
dos com o o foram do au xílio dos gran des m otores, e do ben efício da bara-

224
DIVERSIDADE E CRESCIMENTO INDUSTRIAL

teza qu e estes con ferem a qu alqu er fabricação … com todas as con dições
de in ferioridade ven deram -se, ven dem -se a u m preço m ais baixo qu e o
dos produ tos, ou an álogos, ou sim ilares qu e saiem das gran des fábricas".27
Decorridos 30 an os, a con corrên cia n o m ercado in tern o da in dú stria m a-
n u al portu en se, articu lada ou n ão à fábrica, apresen tava-se com o tem ível
àqu elas fábricas do su l qu e n ão dispu n h am do seu apoio. A Com pan h ia de
Torres Novas declarava qu e praticava preços feitos para esm agar essa con -
corrên cia, m esm o com preju ízo.28
A com petitividade deste setor in du strial provin h a em prim eiro lu -
gar do baixo cu sto da produ ção, desta produ ção caseira ou em pequ en as
oficin as, levada a cabo por u m a popu lação operária qu e sobrevivia n u m
lim iar de m iséria, qu e im pression ou os in qu iridores tan to aqu i com o n ou -
tras zon as da in dú stria têxtil. Dispu n h a além disso de proteção pau tal con -
siderada su ficien te em 1881: n ão se im portavam cotin s e riscados, su bm e-
tidos a direitos proibitivos, os tecidos de pêlo e os alcoch oados tam pou co,
pois os direitos sobre o peso desin cen tivavam -n o. Não im pedia con tu do
con siderável con corrên cia do con traban do.29 A pequ en a e m édia in dú stria
algodoeira vivia n u m equ ilíbrio qu e u m a proteção am pla e diversificada ao
setor, solicitada pelas fábricas de fiação e tecelagem rom peria. Seria por
isso desacon selh ada pelos relatores da su bcom issão de in qu érito do Porto,
qu e con sideravam a fábrica m aior perigo para esta con siderável popu lação
in du strial qu e a con corrên cia estran geira. No fin al da década este equ ilí-
brio parecia ter-se qu ebrado com o aparecim en to de n ovos con corren tes,
tecidos de algodão cardados de origem alem ã, m u ito leves, pagan do por
isso m en os direitos, riscados e cotin s fran ceses, ben eficiados pelo recen te
tratado, e ain da tecidos espan h óis (provavelm en te catalães), em bora n ão
seja especificado se am bos setores, fabril e pequ en a in dú stria, estariam
sen do afetados.30 No in ício do sécu lo XX, pelo m en os n a região de Braga,
depois de u m prim eiro em bate a in dú stria m an u al se recu perara e vivia
n u m "relativo desafogo", e isso se devia a "seu s produ tos de con textu ra
sim ples, m as forte, próprios para o gran de con su m o das popu lações ru rais,
poderem con correr em preço com os de fabricação m ecân ica". Tam bém o
geren te de u m a das fábricas "m odern as" de Gu im arães in form ava qu e o
setor m an u al da fábrica produ zia para o abastecim en to de "tecidos para as
classes pobres".31
A segm en tação social do m ercado in tern o fazia-se a dois n íveis. A
presen ça de m ercadorias estran geiras, qu e m ereciam a preferên cia da eli-
te abastada, era estim u lada pelo m ecan ism o pau tal de direitos em virtu de
do peso e n ão ad valorem – os tecidos de qu alidade eram leves, pagavam
m en os qu e os tecidos grosseiros. Ou tro fator de preferên cia, m ais su til e
difícil de ven cer, era o poder da m oda. Um a qu estão qu e con vin h a con h e-
cer era a relação en tre o setor têxtil e a in dú stria da con fecção. Esta podia

225
Miriam Halpern Pereira

con tribu ir para orien tar as preferên cias da clien tela, n u m a época em qu e
a pu blicidade já tin h a algu m a in cidên cia n o m ercado. Maior in cidên cia ti-
n h a, con tu do, ou tro n ível de segm en tação do m ercado qu e derivava da
própria estru tu ra da in dú stria. As ten tativas de pen etrar n o estrato eleva-
do do m ercado in tern o por parte dos in du striais da fiação e da tecelagem
esbarravam n a privilegiada situ ação da in dú stria da estam paria, qu e colo-
cava tecidos de m elh or qu alidade n o m ercado, tecidos im portados qu e
apen as estam pava.
Desde qu e a in dú stria algodoeira n ão se restrin gisse a ficar con fin a-
da às qu alidades in feriores de tecidos, en con trava, com o u m dos prin cipais
gargalos de estran gu lam en to, a proteção preferen cial da estam paria, du -
plam en te favorecida pela con ju gação de elevados direitos sobre os tecidos
tin tos e estam pados e direitos baixos sobre os tecidos lisos, cru s e bran cos.
Estes tipos de tecido con stitu íam o essen cial da im portação de tecidos:
77% en tre 1875 e 1879 e con tin u aram a represen tar a parcela m ais con -
siderável até ao fin al do sécu lo. Lim itava-se assim a diversificação tan to da
fiação como da tecelagem.32 Um mecanismo alfandegário complexo associa-
va a proteção da estam paria orien tada para o estrato social m ais elevado
do m ercado, qu e agregava u m gru po pequ en o de in du striais, à proteção
do setor m an u al da tecelagem de cotin s e riscados para as classes m en os
favorecidas, proteção in direta através do peso do têxtil. Este m ecan ism o
qu e pen alizava a in ovação n a tecelagem e n a fiação tin h a sen tido con ser-
vador. Tin h a tam bém a van tagem , do pon to de vista das relações com er-
ciais extern as, de n ão ter gran de in cidên cia n as im portações: é pou co pro-
vável qu e algu m a vez se tivessem im portado tecidos grosseiros em qu an -
tidade sign ificativa. As alterações pau tais do fin al da década de 1880 e a
su bseqü en te criação de u m m ercado preferen cial n as colôn ias african as
abriram u m n ovo can al de escoam en to qu e m elh orou u m pou co a situ a-
ção, apesar de se exportarem essen cialm en te tecidos de baixa qu alidade.33
Len tam en te, o crescim en to da in dú stria algodoeira fora-se refletin -
do n a com posição das en tradas de algodão, ten do au m en tado a parcela do
algodão em ram a n as im portações globais de algodão e dim in u ído em pro-
porção relativa os tecidos, qu e represen tavam 75% deste gru po em 1875-
1879. É a partir de 1890-1894 qu e tem lu gar u m a m u dan ça qu alitativa, a
qu ota-parte do algodão em ram a im portado passou a ser su perior à en tra-
da de tecidos – 47% e 43% – in ician do-se u m a in versão qu e prossegu ia às
vésperas da Prim eira Gu erra Mu n dial. A parcela de fio im portado ao lon -
go de 34 an os (1865-1899), m an têm -se qu an titativam en te pou co im por-
tan te, en tre 4% -7% .34 Na origem das qu eixas dos in du striais, estaria o tipo
de fio im portado e o seu preço, n ão tan to a qu an tidade. A dom in ân cia do
setor têxtil vai refletir-se n a m aqu in aria in du strial im portada: en tre 1888
e 1897, 46% destin ava-se a ele, qu ase toda destin ada à fiação e à tecela-

226
DIVERSIDADE E CRESCIMENTO INDUSTRIAL

gem . Os 54% restan tes correspon dem a parcelas dispersas, n en h u m a re-


presen tan do valor com parável. Mas os valores absolu tos são relativam en -
te baixos. E, a produ tividade m esm o n o têxtil era m u ito baixa. Com paran -
do com a situ ação n a In glaterra, su blin h ar-se-ia qu e en qu an to u m operá-
rio podia m an ejar en tre seis e catorze teares n aqu ele país, em Portu gal u m
operário n ão con segu ia u tilizar m ais de dois ou três teares sim u ltân eam en -
te. Form ação técn ica in su ficien te, m as tam bém graves carên cias alim en ta-
res, para n ão referir ou tros fatores com o o alojam en to e a situ ação san itá-
ria, estariam n a origem desta discrepân cia.35
Em 1917, m esm o n o têxtil, on de 8% das fábricas con cen travam
m ais de m etade da m ão de obra, a gran de m aioria das em presas con tin u a-
vam a ser de pequ en a e m édia dim en são: 41% tin h am dez a cin qü en ta
operários, 28% m en os de dez operários.36 O recu rso ao trabalh o dom iciliar
tam bém con tin u ava a ser m u ito con siderável, seria estim ado em 20 m il
pessoas, e é bem provável qu e a m aioria estivesse sediada n o Porto.37
O algodão, prim eiro associado à seda, depois isolado, foi in vadin do
o m ercado in tern o, su bstitu in do len tam en te o tradicion al lin h o e a seda.
A in dú stria n acion al foi evolu in do: a mule-jenny su bstitu iu a roca m ais rá-
pidam en te qu e o tear Jacqu ard, e o tear m ecân ico su bstitu iu o tear m a-
n u al. O crescim en to tom ou diferen tes form as, criações fabris e tam bém
m u ltiplicação de pequ en as u n idades. Não foi diferen te n ou tros países. Mas
com periodizações e prin cipalm en te ritm os distin tos. No próprio con texto
da Eu ropa m eridion al, Portu gal distan ciara-se da Espan h a e da Itália. O
con su m o de algodão em ram a por h abitan te em ton eladas era em 1910 o
segu in te: Portu gal 2,7, Espan h a 3,7, Itália 5, Grã-Bretan h a 21.38 A situ ação
n ão fora m u ito diferen te n os 50 an os an teriores, apen as se delin eara u m a
ligeira m elh oria em relação à vizin h a Espan h a. A posição relativa da in -
dú stria têxtil n o con texto in tern acion al n ão se m odificara, apesar do seu
in discu tível crescim en to.

O S LA N IFÍCIOS
A in dú stria de lan ifícios teve u m a n otável expan são após os an os
40, prin cipalm en te em dois dos cen tros tradicion alm en te m ais im portan -
tes, a Covilh ã e os con celh os de Gou veia e Seia, n a zon a da serra da Estre-
la. A m aioria das em presas existen tes n a Covilh ã em 1881 tin h a qu atro
décadas de existên cia, m ais de m etade tin h a alterado pelo m en os a den o-
m in ação da em presa in icial, sin al de forte m obilidade. Apen as oito em pre-
sas tin h am sido fu n dadas an tes de1839: u m a datava de 1765, J. Gom es
Barata, ou tra de 1784, J. Men des Veiga, J. Silva Ran ito de 1800, das ou -
tras con sta só a in dicação su m ária de "an tiga". Em 1881, detin h am a pri-
m azia do m ercado n acion al de lan ifícios.

227
Miriam Halpern Pereira

Regiões de proto-in dú stria secu lar sofrem u m a con siderável tran s-


form ação em 20 an os. No in qu érito de 1839/ 1840, o qu adro geral desan i-
m ava ain da a com issão: os processos eram an tigos, apen as n u m a fábrica se
in trodu zira m áqu in as de cardar, fiar e tozar, descon h ecia-se a arte da tin -
tu raria, o acabam en to dos tecidos era im perfeito. Tam bém em Seia o pro-
cesso m ecân ico n ão se alterara, n ão se u savam m áqu in as.39 Escreven do
por volta de 1860, Fradesso da Silveira n ão con tin h a a su a adm iração pelo
progresso técn ico: "Qu em en tra n a Covilh ã, vin do de Coim bra pelas Pe-
dras Lavradas, ou de Castelo Bran co por Alpedrin h a, pasm a ao ver fu n cio-
n ar n as fábricas as m áqu in as aperfeiçoadas de Verviers. Qu e sacrifícios e
esforços, para levar ali os m aqu in ism os pesados e volu m osos, qu e a in dú s-
triae de tecidos requ er! Qu e série de tran sform ações, qu e pertin ácia de en -
saios e ten tativas para passar do m étodo aprovado pelo regim en to de 7 de
jan eiro de 1690 para o processo m odern o!" 40.
Nos 18 an os segu in tes a in dú stria dos lan ifícios da Covilh ã e da re-
gião serran a atravessaram u m dos períodos m ais au spiciosos da su a exis-
tên cia. A produ ção de tecidos da Covilh ã era em 1878, su perior a toda a
im portação de tecidos de lã em Portu gal.41
O equ ipam en to das fábricas alterou -se su bstan cialm en te. O n ú m e-
ro de fu sos su biu de 13.195 para 22.175, os teares Jacqu ard m an u ais m ais
do triplicaram e os com u n s cresceram . Mas pou cos foram os teares m ecâ-
n icos in trodu zidos, as dispon ibilidades en ergéticas locais cerceavam o seu
u so e os teares m ecân icos ch egavam a ficar parados por falta de en ergia.
Os lim ites en ergéticos eram desde os an os 60 referidos com o a razão do re-
du zido u so de pisões cilín dricos, teares m ecân icos, e da preferên cia dada
às m áqu in as belgas, m en os exigen tes em força m otriz. O parcial estran gu -
lam en to tecn ológico era u m a con seqü ên cia do próprio crescim en to. Os re-
cu rsos h idraú licos revelavaram -se in su ficien tes para abastecim en to sim u l-
tân eo da agricu ltu ra e da in dú stria du ran te a estiagem , o ritm o de traba-
lh o in du strial dim in u ía e torn ava-se n otu rn o. O cu sto do carvão era proi-
bitivo.42 Nos an os segu in tes, os lim ites dos recu rsos en ergéticos e a gran de
dispon ibilidade de m ão-de-obra m an têm o padrão da evolu ção, m as com
algu m as alterações. Crescim en to m oderado da fiação, m ecân ica, qu e au -
m en tou ligeiram en te, m as m elh orou em qu alidade e se diversificou com
o fio retorcido – m ais do qu e triplicou o n ú m ero de fu sos das retorcedei-
ras – e a gran de expan são da tecelagem . Neste caso, em bora se ten h a ob-
servado a in trodu ção de m aior n ú m ero de teares m ecân icos, a base deste
en orm e crescim en to da tecelagem en tre 1881 e 1890 con tin u ou a assen -
tar fu n dam en talm en te n a en ergia h idraú lica e n a m u ltiplicação do tear
m an u al, qu e o au m en to dem ográfico viabilizou .
A Covilh ã torn ou -se u m forte pólo de atração e foi a cidade portu -
gu esa com m ais in ten so crescim en to n este período, e u m dos con celh os
com m aior pon deração da popu lação in du strial, ao lado do Porto.43

228
DIVERSIDADE E CRESCIMENTO INDUSTRIAL

A con figu ração da estru tu ra in du strial tin h a u m cariz específico,


qu e se en caixava m al n as classificações existen tes. O con ceito de fábrica
u tilizado n os in qu éritos sobre a Covilh ã abran ge todo o tipo de u n idades
in du striais, in clu i oficin as e trabalh o em dom icílio. Mas en con tra-se aqu i
u m a design ação específica, de fábricas com pletas e in com pletas, in existen -
te n o resto do país.44
Pou cas eram as fábricas com pletas, qu e praticavam por si todas as
operações, desde o tratam en to in icial da lã até ao acabam en to fin al da fa-
zen da. Em 1839 existiam apen as n a Covilh ã "qu atro fábricas de m an u fa-
tu ras de pan os qu e pela reu n ião de diferen tes oficin as qu e tem em m ovi-
m en to e pela regu laridade qu e n elas se observa podem ser con sideradas
com o tais. Além destas porém h á m u itas oficin as particu lares com diferen -
tes den om in ações a qu e são destin adas".45 Era u m a paisagem in du strial
qu e se pren dia com a evolu ção ocorrida n o segu n do qu artel do sécu lo XIX,
qu an do o m odelo da fábrica com pleta fora aban don ada, a organ ização in -
du strial fragm en tara-se e ru ralizara-se, com o form a de adequ ação à con -
ju n tu ra econ ôm ica.46 Em 1863, regressava-se len tam en te às fábricas com -
pletas, o seu n ú m ero du plicara, existiam oito fábricas com pletas, três ti-
n h am u m n ú m ero elevado de operários, de 211 a 291, ou tras três de 72 a
101, m as du as só ocu pavam cin qü en ta e 27 operários.47 Em 1881, este tipo
de fábrica m ais do qu e du plica, som am dezessete as fábricas com pletas.
Nalgu n s casos são oficin as qu e já existiam e qu e alargaram a su a ativida-
de, n ou tros são m ercadores-fabrican tes qu e se torn aram proprietários de
fábricas com pletas, as próprias fábricas já existen tes tam bém terão au m en -
tado de dim en sões.48
Con tu do, as fábricas com pletas con tin u avam a ser u m a m in oria do
tecido in du strial, on de eram m u ito m ais n u m erosas as pequ en as e m édias
u n idades in du striais: das 27 fábricas com m ais de dez operários, oito eram
com pletas e dezen ove in com pletas, as restan tes 32 u n idades in com pletas
recen seadas em 1863, eram pequ en as oficin as e de trabalh o a dom icílio. A
isto h avia ain da qu e ju n tar 218 teares dispersos n a vila e em Tortozen do e
Teixoso.49 O tecido in du strial con tin u ava em 1881 dom in ado em n ú m ero
pela pequ en a e m édia em presa: 66 oficin as tin h am de zero a n ove operá-
rios, 45 tin h am dez a 25 (ver Qu adro 2).
A pon deração das fábricas com pletas e das pequ en as e m édias u n i-
dades in du striais diverge con soan te se olh a para o m ercado de trabalh o ou
para o parqu e tecn ológico. Em 1863, as fábricas com pletas desem pen h a-
vam u m papel decisivo n o m ercado de trabalh o, n elas trabalh avam 68%
da m ão-de-obra. Mas a situ ação era diferen te n a distribu ição dos u ten sí-
lios: apen as 43% dos fu sos estavam sediados n este tipo de em presa, e u m
pou co m en os se con siderarm os só a fiação m ecân ica, já qu e das dezessete
fiações m an u ais, doze eram da fábrica com pleta An tôn io Pessoa Am orim

229
Miriam Halpern Pereira

& Irm ão – qu e con tin u ava a fu n cion ar n o edifício da an tiga real fábrica, de
qu e fora ren deiro – on de n ão h avia fiação m ecân ica.
Um traço m arcan te das m édias e pequ en as em presas de cardar e fiar
– em presas com u m n ú m ero de operários en tre cin co e 39 – era o grau de
m ecan ização con siderável. Todas praticavam fiação m ecân ica – detin h am
57% dos fu sos do parqu e in du strial – e apen as du as em dezesseis lh e agre-
gavam fiação m an u al; das 28 cardas con tín u as existen tes n o con celh o,
doze (ou catorze, se se ju n tar du as em presas qu e estavam a m on tá-las) si-
tu avam -se n o seu âm bito; cin co tin h am perch eas m ecân icas, m ais qu e n as
prin cipais fábricas. Na tecelagem , a situ ação era diferen te: n ão h avia tea-
res m ecân icos e os 37 Jacqu ard eram qu ase todos propriedade das fábricas
com pletas, apen as a fábrica (in com pleta) Paiva & Rogeiro de cardar e fiar
qu e tam bém tecia, u tilizava qu atro teares deste tipo. Dos teares m an u ais,
39% estavam n as prin cipais oito fábricas, du as delas con cen travam cada
u m a cin co dezen as, m as a m aioria dos teares m an u ais en con trava-se dis-
persa, poden do as oficin as reu n ir en tre três e n ove u ten sílios.
A isto h á ain da qu e acrescen tar a m alcon h ecida in dú stria em dom i-
cílio, era provavelm en te o caso dos 218 teares sediados n a Covilh ã, Torto-
zen do, Teixoso e ou tras fregu esias, de qu e n em se in dica o proprietário
n em o n ú m ero de braços. Máqu in a a vapor só existia n a fábrica Marqu es
de Paiva e servia para acion ar seis pisões cilín dricos, u ten sílio de qu e pou -
cos dispu n h am , sen do ain da dom in an te o u so das m aceiras de pau .50
A con cen tração era em 1881 m en or qu e em 1863 em todos os as-
pectos: as prin cipais on ze em presas u tilizavam 57,4% da m ão-de-obra, u m
pou co m en os qu e em 1863, e apen as 29,3% dos fu sos e 42,2% dos teares
m an u ais com u n s. Das 38 pequ en as em presas, 21 são oficin as de cardar e
fiar qu e têm fiação m ecân ica .51No gru po in diferen ciado de 55 fábricas pe-
qu en as de tecelagem , em bora o trabalh o seja todo m an u al, u tilizavam -se
12 jacqu ard. A m ecan ização da tecelagem len ta e m in oritária, foi sobretu -
do efetu ada n o âm bito das prin cipais on ze em presas, n elas se aplicavam
além de 78% dos Jacqu ard m an u ais, 84% dos teares m ecân icos. A m ão-
de-obra fem in in a e in fan til estava presen te de form a sign ificativa n as prin -
cipais fábricas, e n ão só n a pequ en a in dú stria.52
Mas o que é particularmente específico no tecido industrial covilha-
nense é o caráter segmentado da produção, as fábricas incompletas eram ofi-
cinas que apenas desempenhavam uma ou duas fases da produção. Existiam
em 1863: quinze fábricas de cardar e fiar, algumas também tinham pisões e
tesouras de correr; doze estabelecimentos de pisões, alguns com tinturaria;
nove tinturarias; quatro de ultimação e de acabamento; uma fábrica de pape-
lão preparada para prensar as fazendas, um laboratório de ácido nítrico.
Acrescente-se os 218 teares instalados em "edifícios exclusivamente destina-
dos à tecelagem", e em casas de fabricantes e tecelões na Covilhã e arredores.53
A segm en tação das fases da produ ção em u n idades in du striais dife-
ren ciadas é u m a característica do tecido in du strial qu e determ in a u m a m u l-

230
DIVERSIDADE E CRESCIMENTO INDUSTRIAL

tiplicidade de relações in terfabris de dois tipos: vertical, pela m ediação de


m ercadores-fabrican tes ou produ zin do diretam en te para as fábricas com ple-
tas de form a su pletiva; h orizon tal, en tre pequ en os produ tores.
A relação en tre pequ en os produ tores podia ser direta ou por m eio
de pequ en os fabrican tes. Dispu n h am de u m a rede diferen ciada de abaste-
cim en to de m atéria-prim a, m edian te alm ocreves, já as em presas de m aior
dim en são se abasteciam diretam en te n os prin cipais pólos de produ ção n o
Alen tejo, Beiras e Espan h a.54 Um a parcela do u n iverso dos pequ en os pro-
du tores dispõe de algu m a au ton om ia, o kauf-system coexistia com o verlag-
system , em proporções qu e se descon h ecem . Um exem plo dessa coexistên -
cia está paten te n o caso das fábricas com pletas de Alçada Men des e Ma-
n u el Mou zaco qu e tin h am tecelões fora trabalh an do por su a con ta a qu em
forn eciam o fio, e tam bém com pravam fazen das dos pequ en os in du striais.
Os prin cipais com pradores dos pequ en os produ tores eram em qu alqu er
caso as gran des fábricas.55 O tecido in du strial da Covilh ã apresen tava u m a
estru tu ra segm en tada qu e toda ela tem u m m esm o objetivo, a produ ção
de tecidos de lã, com o u m a gran de "fábrica coletiva". A popu lação in du s-
trial via-se a si própria com o parte de u m am plo con ju n to produ tivo.
"Con sideram os a vila da Covilh ã com o u m a só fábrica dedicada ao fabrico
de lan ifícios…", diriam os fabrican tes da Covilh ã em 1858.56 Esta form a de
organ ização segm en tada era o traço m arcan te de u m a das m ais poderosas
in dú strias têxteis da época, a da Filadélfia, com ou tras proporções. 57
Na região serran a, on de os cen tros de lan ifícios tam bém se ben efi-
ciaram da con ju n tu ra favorável, m u ltiplicaram -se as fábricas, prin cipal-
m en te em Seia e em Gou veia.(ver Qu adro ). A estru tu ra in du strial asse-
m elh ava-se à da Covilh ã, coexistin do fábricas com pletas com as in com ple-
tas, em m aior n ú m ero, e u m a rede de trabalh o em dom icílio efetu ado com
freqü ên cia pela fam ília do fabrican te. Com o n a Covilh ã, a m ecan ização
abran ge os pequ en os produ tores, qu e em algu n s casos se associavam para
se ben eficiar da m ecan ização em com u m . Tal com o n a Covilh ã, observa-
se desigu aldade de apetrech am en to en tre a fiação e a tecelagem n esta re-
gião: n otável ritm o de m ecan ização n a fiação, in teiram en te m ecan izada,
estavam in stalados 18.543 fu sos, 26,5% do total n acion al, ligeiram en te
m ais qu e em Lisboa (16.125 fu sos) en qu an to a tecelagem m ecân ica dava
os prim eiros passos com m eia dú zia de teares. Os lim ites en ergéticos afe-
tavam esta região de form a em tu do sim ilar à Covilh ã.
As deficiên cias da rede de estradas, de qu e a região da Covilh ã sofria,
torn avam-se aqu i mais dramáticas, o dorso de mu ar era o ú n ico tran sporte
u tilizável em diversos pon tos, e o próprio percu rso pedestre foi imperativo n a
visita a u ma das localidades, ain da em 1881. A vitalidade in du strial desta re-
gião mon tan h osa distan te, con segu ida apesar destas con dições, con stitu iu
u ma descoberta para os in qu iridores, cau sou -lh es su rpresa e admiração.58

231
Miriam Halpern Pereira

Em qu atro décadas, a região da Covilh ã, Gou veia e Seia h aviam adqu i-


rido u m peso determin an te n a produ ção n acion al de lan ifícios. Nos distritos de
Castelo Bran co e Gu arda trabalh avam em 1881: 46% da mão-de-obra do
setor, 58% dos fu sos, 58% dos teares man u ais. Era u ma estru tu ra in du strial
cu jo crescimen to assen tara n a pequ en a in dú stria e n a articu lação en tre a fia-
ção mecân ica e a tecelagem man u al.
Na segu n da década do sécu lo XX, o modelo de crescimen to covilh an en -
se parecia ter en trado em crise: desde 1890, o escoamen to da produ ção come-
çara a ter dificu ldade em en fren tar a con corrên cia estran geira n o mercado in -
tern o, o ú n ico de qu e dispu n h a esta in dú stria.59 Esta região con stitu i u m caso
de crescimen to e relativa modern ização do aparelh o produ tivo com base n a
pequ en a e média empresa n u ma região in terior sem estrada de ferro. A carên -
cia en ergética viera en travan do a ren ovação tecn ológica desde os an os 60, e a
modern ização dos tran sportes an tes da resolu ção do abastecimen to de en ergia
teria efeito desestru tu rador. Qu an do a estrada de ferro ch egou , em 1891, li-
gan do a Covilh ã a Man gu alde e à capital, parece ter viabilizado mais facilmen -
te a en trada de tecidos estran geiros do qu e o escoamen to da produ ção local.60
Apesar de a empresa h idroelétrica da Sen h ora do Desterro (serra da Estrela)
ter sido a primeira do con tin en te, o desfasamen to en tre a ligação ferroviária e
o forn ecimen to de en ergia elétrica foi dramático.
Em modelo diverso se organizaram os lanifícios em Lisboa: em 1881, as
oito fábricas do distrito representam por si só 30% da mão-de-obra, 23% dos
fusos, 24% da tecelagem manual, 51% da tecelagem mecânica e 64% dos ca-
valos-vapor do setor. A grande empresa, o vapor e a mecanização da tecelagem,
apontavam caminho diverso na capital. Constituía escolha minoritária, contra-
riamente ao que se poderia concluir de análise acrítica baseada no uso da de-
signação de fábrica nos inquéritos sobre a Covilhã e a região serrana, que po-
deria sugerir elevada ponderação do trabalho fabril no setor dos lanifícios.61
Os lanifícios portugueses conseguiram ocupar um espaço crescente no
mercado nacional. Num primeiro tempo, entre a década de 1840 e os anos 80,
foram preenchendo as necessidades do consumo dos estratos médios e popula-
res, em nível local e interregional, com maior difusão a norte do Mondego. Dife-
rente seria a franja do mercado atingida pela importação de tecidos estrangeiros.
Contudo, a produção nacional foi tentando a sua sorte também a esse nível.62

CON CLUSÃ O
Na passagem para o século XX estava-se bem longe da situação vivida
nos anos 1808-1820. Mas a atividade industrial conservava ainda o seu papel
complementar em relação à agricultura, como se idealizara em meados do sé-
culo. "Olhou(o jurado) as fábricas como continuação ou complemento do la-
boratório dos campos". Concebiam-se a agricultura e a indústria como os dois

232
DIVERSIDADE E CRESCIMENTO INDUSTRIAL

seios do Estado, parafraseando Oliveira Martins.63 O crescimento de alguns


setores da agricultura na segunda metade do século teve um efeito estimulan-
te sobre o setor industrial, e reciprocamente. Nesta conjuntura que se conser-
va de sentido favorável em termos genéricos até cerca de 1890, deve evocar-se
também o papel dos ferroviários no aumento do mercado interno, neste perío-
do de construção da rede ferroviária.64
Os dois prin cipais setores da in dú stria portu gu esa, os tecidos de algodão
e os lan ifícios desen volveram-se com base em estru tu ras in du striais diferen tes,
mas em ambas, a pequ en a e média in dú stria, tiveram u ma fu n ção domin an te
pelo men os até 1890. Estes setores dispu seram em gran de escala de mão-de-
obra, a baixo cu sto, e parte da en ergia h idráu lica de cu sto qu ase n u lo, fatores
de competitividade qu e lh es permitiu ir pren ch en do segmen tos con sideráveis
do mercado in tern o, n omeadamen te com men or poder de compra, e atin gir
porven tu ra progressivamen te estratos mais elevados, qu er diretamen te qu er
talvez median te a pen etração n o circu ito de abastecimen to da estamparia lis-
boeta, dedicada ao acabamen to de tecidos essen cialmen te estran geiros. A de-
sigu al proteção n o in terior do setor algodoeiro teve u m sen tido con servador,
n ão en corajou a in ovação tecn ológica n o con ju n to. No caso da Covilh ã, u m
dos fatores de retardamen to tecn ológico foi o tardio in vestimen to n a en ergia
h idroelétrica: as carên cias en ergéticas torn aram-se particu larmen te graves
qu an do a estrada de ferro facilitou a con corrên cia extern a.
A forma de crescimen to do setor têxtil n ão viabilizou a pen etração em
mercados extern os. Apen as o mercado colon ial viria a permitir aos tecidos de
algodão virar-se para a exportação essen cialmen te de tecidos de baixa qu ali-
dade. A ou tras três in dú strias mais recen tes, igu almen te "labou r in ten sive",
baseadas em matérias-primas n acion ais, o min ério de cobre, a cortiça e o pei-
xe, estavam destin ada vocação diferen te: seu crescimen to esteve desde o in í-
cio ligado à exportação para o mu n do in du strializado. No caso das du as ú lti-
mas, trou xeram n ovos mercados para os proprietários de mon tados e para os
armadores. Mas a forma de in tegração n o mercado in tern acion al destes três
n ovos ramos in du striais determin ou u m con torn o pou co propício tan to ao
progresso tecn ológico como a efeitos mu ltiplicadores em ou tros setores in du s-
triais.65 Apesar do crescimen to in du strial de 1840 em dian te, Portu gal perma-
n eceu u m país predomin an temen te agrícola até meados do sécu lo XX. Com-
pren de-se qu e fosse ain da possível ao Estado Novo, até à Segu n da Gu erra
Mu n dial, defen der como modelo o equ ilíbrio en tre in teresses agrários e in du s-
triais: este modelo, explicitado freqü en tes vezes, estivera su bjacen te à política
econ ômica du ran te gran de parte do sécu lo XIX, embora desigu al n a aplicação.

233
Miriam Halpern Pereira

1 IN D ÚSTRIA A LGOD OEIRA EM 1881

Ramos Fiação Fiação Tecelagem Estamparia Rendas Total


industiais tecelagem tinturaria

Fábricas/total 7 9 15 13 44

Lisboa 1 2 4(a) 13 20

Porto 5 3 5 13

Produção/contos 612 968 424 1.381 3.385

Operários 840 2. 832 916 929 5.517

F. vapor/cv 256 1.062 73 1.152 2.543

F. hidraúlica/cv 185 335 53 573

Cv por unidade 63 155 8,4 82

Oficinas (b) 131 15 147

Lisboa, distrito 1 - 1

Porto, distrito 124 15 142

Operários 1.014 48 1.062

Ind. domicílio 1 23 2 26
(c)9

Porto 1 20 1 22

Operários 1.600 30.100 2.300 33.000

Obs. qu adro: Fon te: In q. In d.1881,qu adro n .15. Con sideraram -se fábricas todas as u n idades
com m ais de 10 operários qu e n ão tivessem m en ção de oficin a ou in dú stria em dom icílio.
a) Um a fábrica agrega u m a seção de tin tu raria; b) As ou tras qu atro oficin as situ avam -se em
Ton dela, distrito de Viseu . Não se con h ece o n ú m ero de operários de sessen ta oficin as, n em
o valor de produ ção de seten ta; c) o in qu érito in dica as localidades em qu e existe em in dú s-
tria em dom icílio, m as n ão o n ú m ero de u n idades, n em sem pre in dica o n ú m ero de traba-
lh adores. Só se con h ece o n ú m ero de operários em cin co cen tros de produ ção.

234
DIVERSIDADE E CRESCIMENTO INDUSTRIAL

2 IN D ÚSTRIA A LGOD OEIRA FA BRIL EM 1881.


D IMEN SÃ O D A S FÁ BRICA S

Operários Fiação Fiação e tecelagem Tecelagem Estamparia

10-49 1 1 8 5

50-100 3 1 4 3

101-200 2 1 3 5

201-300 1 2 - -

301-500 - 3 - -

+500 1

Total 7 9 15 13

3 MECA N IZA ÇÃ O N A TECELA GEM E N A FIA ÇÃ O D E


A LGOD Ã O EM 1881

Distritos Cardas Cardas Fusos Fusos Teares Teares


ativas inativas ativos inativos mecânicos manuais

Lisboa 74 - 24..320 711 68

Porto 135 3 43.509 1.214 633 11.452

Santarém 17.932 254 192

Leiria 7.806 124 14

Braga 600 - 211

Total 94.167 1.720 11.996

235
Miriam Halpern Pereira

4 LA N IFÍCIOS: PRIN CIPA IS CEN TROS EM 1881

Distritos Fábricas* Operários Fusos Teares Teares


mecânicos manuais

Castelo Branco 73 2.713 22.715 57 802

Guarda 44 1.385 18.543 22 309

Leiria 11 1.000 6.800 40 40

Lisboa 8 2.661 16.125 182 457

Porto 7 567 4.600 34 82

Total ** 160 8.964 70.007 356 1.911

* No quadro-síntese por tipos de unidades industriais constam 151 fábricas e nove oficinas
(Inq. Ind. 1881, Resumo, p.86-7). Não sendo explicitado o critério de classificação utilizado, e
dado que, como se pode ver pelos quadros anteriores, só nos distritos de Castelo Branco e no
da Guarda, o número de oficinas é muito mais elevado, não se considerou esta classificação
justificada e manteve-se a classificação do quadro-síntese do setor de lanifícios (ibidem, n.16).
** In clu ídas as fábricas de Aveiro, Bragan ça, Faro, Portalegre, San tarém e Viseu , qu e n ão se
explicitam aqu i.

236
DIVERSIDADE E CRESCIMENTO INDUSTRIAL

N OTA S
1. NEVES, J. A. das. Variedades sobre os objetos relativos às artes, com ércio e m an u fatu ras.
In : Obras Completas. v.III, t.I, p.239-70; PEDREIRA, J. Estrutura industrial e comércio colonial:
Portu gal e Brasil, 1780-1830. cap.II, p.129, 137; NUNO, M. Mercado e privilégios na indústria
portuguesa, 1850-1834, ruralização na Covilhã. p.528-532 (Mim eogr.). DEWERPE, A. L' industrie
aux champs. Essai sur la proto-industrialisation en Italie du Nord (1800-1880), 1985; crítica in teres-
san te ao m odelo da proto-in du strialização do pon to de vista dem ográfico, salien tan do qu e n o
caso do n orte de Itália se caracteriza por u m crescim en to m oderado.
2. PEREIRA, M. H. Atitu des políticas e relações econ ôm icas in tern acion ais n a 1ª. m etade do
sécu lo dezan ove em Portu gal. In : Das Revoluções liberais ao Estado Novo, 1994
3. RAPHAEL S. Workshop of the world: steam power an d h an d tech n ology in m id - victorian
Britain . In : History Workshop Journal. 1977. v.3, p.18. Um estu do clássico, m u ito bem docu -
m en tado. Con tém u m qu adro m u ito ú til da u tilização da en ergia a vapor por setor in du strial
em 1870. Boa sín tese do caso in glês em BERG, M. La era de las manufacturas, e em JOYCE, P.
Cambridge Social History of Great Britain. v.I. SABEL, C., ZEITLIN, J. Historical altern atives to
m ass produ ction . In : Past in Present, Au gu st 1985. LEQUIN, Y. Les ouvriers de la région lyonnai-
se (1848-1914); COTTEREAU, A. Th e distin ctiven ess of workin g-class cu ltu res in Fran ce,
1848-1890. In : KATZNELSON, ZOLBERG. Working-class formation. SCRANTON, P. Proprietary
Capitalism : th e Textile Man u factu rer at Ph iladelph ia, 1983, in ZEITLIN, J. Les voies m u ltiples
de l'in du strialisation . In : Mouvement Social, 1985. p.133. DEWERPE, A. L' industrie aux champs.
Essai su r la proto-in du strialisation en Italie du Nord (1800-1880), 1985.
4. Au tores acim a citados, n om eadam en te Sam u el, Joyce e Cottereau , op. cit.; LEQUIN, Y. Le
m étier. In : NORIA, P. Lieux de la mémoire, e DEWERPE, A. Le monde du travail en France (1800-
1950).
5. Nem sem pre se pu blicaram os resu ltados in tegrais dos in qu éritos, a docu m en tação do in -
qu érito à tecelagem do Porto de 1898 n u n ca ch egou a ser editado de form a com pleta, para
n ão referir os in qu éritos an teriores a 1860.
6. Abu sava-se das palavras fábrica e fabricante n as repartições de fazen da, com o se observava
n o in qu érito, a propósito do An u ario da Direção-Geral das con tribu ições diretas, In q. In d.
1881, II, III, p.57. Acerca da im precisão do con ceito de fábrica n o in ício do sécu lo, ver PE-
DREIRA, J, op. cit., p.178-182.
7. Relatório da su bcom issão en carregada da visita aos estabelecim en tos in du striais, In qu éri-
to In du strial 1881, II-II, Direto.
8. In qu érito Dir. Visita, II-II, p.35-37
9. Ver n ota 45. Há ain da a con siderar as om issões de fábricas, m as em bora n ão ten h am sido
in clu ídas algu m as em presas im portan tes, n o con ju n to essas lacu n as n ão alteram sign ificati-
vam en te a pon deração das fábricas n o con ju n to.
10. In qu érito…, In trodu ção ao Resu m o, p.XXX-V: explica-se esta situ ação e in dica-se qu e
esta correção n ão foi efetu ada n os qu adros-sín tese (qu adro sem correção, p.86-7) m as pu bli-
ca-se a desagregação das oficin as, o qu e m e perm itiu fazer a correção setor a setor. Feita a
correção, o con ju n to das oficin as passa de 907 para 2.515 u n idades.
11. CORDEIRO, J. L. Indústria e energia na bacia do Ave 1845-1959. Braga, 1993 p.107-10. Dis-
sertação (Mestrado, Mim eogr.).
12. Relatório Geral do Ju rado in Exposição da Indústria 1849, Sociedade Prom otora da In dú s-
tria Nacion al, p.6 atribu ído a Oliveira Marreca, m as assin ado con ju n tam en te por José Maria
Gran de, Hen riqu e Nu n es Cardoso, Fran zin i, João An drade Corvo.
13. In qu érito de 1830, Ju n ta do Com ércio, em SERRÃO, J. Temas oitocentistas. v.I p.142-5.,
JUSTINO, D. A formação do espaço econômico nacional. v.I, p.98.
14. In q. In du str, Dir., Parte II, L.II, relatório da Com issão Cen tral do Distrito do Porto, qu a-
dros p. 272-5 e p. 279-80.

237
Miriam Halpern Pereira

15. Esta estim ativa n ão con diz com os dados do In qu érito In du strial de 1890, m u ito in ferio-
res, IV, p. 486-7, 508-509, 615-619; recorde-se qu e se trata de in qu érito in dreto. Já n o Inqué-
rito à Tecelagem do Porto, 1898, p.8-9, aceita-se a estim ativa de 10 m il teares, e eleva-se ain da
m ais o cálcu lo do n ú m ero de pessoas correspon den tes, qu atro em m édia por tear, ou seja,
u m total de 40 m il.
No m esm o período, com pare-se com Lyon , u m cen tro de forte especialização in du strial e com
organ ização da produ ção do tipo de fábrica coletiva: existiam 35 m il teares de seda, m ais do
dobro qu e n o fim do An tigo Regim e, qu an do eram calcu lados em 14 m il (LEQUIN, Y. Les ou-
vriers de la région lyonnaise (1848-1914). v.I, p.65-66, GARDEN, M. Lyon et les lyonnais au XVIII.e
siècle. p.209), parcela ain da pequ en a da expan são da segu n da m etade do sécu lo XIX, qu e fora
particu larm en te im portan te n a região em redor de Lyon , on de o n ú m ero de teares passou de
60 m il a 120 m il en tre 1850 e 1872.
16. In qu érito de 1889, já referido, p.8-9. PERY, G. refere 277 pequ en as fábricas de tecelagem
de algodão e três de fiação n o distrito do Porto, em Geografia e estatística geral de Portugal e co-
lónias, 1875, p.147.
17. In qu érito In d. 1881, visita às fabricas do Porto, p.138 a 151.
18. Op. cit., p.43-44
19. Con ceito u tilizado n a época por Leplay, retom ado por Yves Lequ in para a in dú stria oito-
cen tista da seda em Lyon e Alain Cottereau em term os m ais gen éricos.
20. Ver n .18.
21. Nesta con tagem , in clu íram -se todas as u n idades com dez ou m ais operários, critério qu e
pelo m en os tem a van tagem de ser u n iform e. O n ú m ero de fábricas é portan to su perior ao
in dicado n os qu adros-sín tese do In q. 1881, qu e é de trin ta.
22. Cerca de m etade dos fu sos ativos fu n cion avam n o Porto, m as o n ú m ero de teares m ecâ-
n icos era ligeiram en te su perior em Lisboa, on de os teares m an u ais recen seados eram in sig-
n ifican tes, o qu e já sabem os n ão ser o caso n o Porto.
23. Acerca dos m ercadores de tecidos e a in dú stria da estam paria n o in ício do sécu lo XIX, ver:
PEDREIRA, J. Indústria e negócio: a estam paria da região de Lisboa, 1780-880. A.S. p.112-113,
1991; Estrutura industrial e mercado colonial (1780-1830), 1994. Acerca do con flito de in teres-
ses en tre m ercadores e in du striais deste setor n o m esm o período, PEREIRA, M. H. Negocian-
tes, fabricantes e artesãos entre velhas e novas instituições, 1992.
24. PEREIRA, M. H. Portugal e a partilha do mercado mundial nos séculos XIX e XX , 1976, reedi-
tado com aditam en tos em Das Revoluções liberais ao Estado Novo, 1994. cap.IV, p.159-60.
25. Oficin as de algodão e lin h o (tecelagem , tin tu raria, fitas e passam an aria): distritos de Lis-
boa -1, Porto - 142, Viseu - 4, em Ton dela. No distrito do Porto, 58 oficin as localizavam -se
n o con celh o do Porto, 51 n o con celh o de Pen afiel, as restan tes disperavam -se por vários con -
celh os. Dados extraídos do In q. In d. 1881, Resu m o, qu adro 15, e corrigidos pela leitu ra do
in qu érito.
26. Inquérito à tecelagem no Porto, 1889, p.7.
27. Relat. do Ju rado, op. cit., p.12-3, situ ação qu e é atribu ida à in existên cia de ju ro, en qu an -
to a fábrica paga ju ro pelo crédito, ao qu e se segu e u m a apologia de u m a taxa do ju ro re-
du zida para a in dú stria.
28. In q. In d. 1881, I, p.82. Aban don ado o fabrico de lon as por esta Com pan h ia, em razão da
direitos desfavoráveis, h aviam passado a produ zir brin s, passadeiras de ju ta, pan o de lin h o e
toalh as adasm acadas. Neste dom ín io a con corrên cia estran geira n ão en trava. Mas en con tra-
vam a con corrên cia portu en se.
29. Relatório da su bcom issão do distrito do Porto, In q. In d. 1881. Dir, II, p.151-2
30. Inquérito à tecelagem do Porto, 1889, p. 8-9.
31. GIRALDES, M. M. N. Mon ografia sobre a in dú stria de lin h o n o distrito de Braga, 1913.
p.106 e 102. In : CORDEIRO, J. L. Indústria e energia no vale do Ave 1845-1959. Braga, 1993.
p.87-8 (Mim eogr.).

238
DIVERSIDADE E CRESCIMENTO INDUSTRIAL

32. Cálcu los feitos por m im com base n as estatísticas do com ércio extern o. Acerca de toda
esta com plexa situ ação pau tal, e a in existên cia de su ficen te diferen ciação de direitos, ver a
excelen te m em ória sobre a in dú stria do algodão oferecida à com issão cen tral do In qu érito de
1881, pelo proprietário da fábrica de algodão torcido e tin to H. P. Taveira, Porto, In q. In d.
1881, v.I, p.110 e ss., e o depoim en to do diretor da Com pan h ia de Torres Novas, p.86-89. Ver
tb. PEREIRA, M. H. Portu gal e a partilh a do m ercado m u n dial. In : Das Revoluções liberais …
p.159-160.
33. Filom en a Môn ica m ostra bem os efeitos do "boom " african o e seu s lim ites m edian te a
an álise da evolu ção da Real Fábrica de Tom ar, Os tecelões de algodão. In : Artesãos e operários,
p.163-4.
34. Estatísticas do com ércio extern o, dados organ izados por m im ; referem -se aqu i valores,
n ão qu an tidades.
35. SIMÕES, O. Escorço dalgu n s aspectos da in dú stria fabril portu gu esa. In : BTI, n .83, p.20
ss. Neste en saio Oliveira Sim ões forn ece dados acerca da situ ação com parativa da produ tivi-
dade e igu alm en te da alim en tação, salários, con dições de vida do operário e form ação técn i-
ca em Portu gal e n ou tros países eu ropeu s, fatores qu e n o seu con ju n to explicariam a baixa
produ tividade. Dados acerca da produ tividade com parada n a in dú stria portu gu esa e eu ropéia
on de são relacion ados u n icam en te com a edu cação e a form ação técn ica em REIS, J. A in -
du strialização n u m país de desen volvim en to len to e tardio. In : O atraso econômico português:
1850-1930. Acerca da evolu ção do con su m o alim en tar, ver, PEREIRA, M. H. Níveis de con -
su m o e n íveis de vida em Portu gal (1874-1922). In : Das Revoluções liberais ao Estado Novo,1994
36. Dados do In qu érito In du strial de 1917 em MEDEIROS, F. A sociedade e a economia portu-
guesa nas origens do salazarismo, 1978. p.75-77. In felizm en te n ão foi efetu ada u m a an álise por
ram os in du striais e por zon as, qu e perm ita com parar m ais aprofu n dadam en te com a in for-
m ação de 1881 tratada acim a.
37. PERDIGÃO, J. A. A in dú stria em Portu gal. In : Arquivos da Universidade de Lisboa, 1916.
v.III, p.115.
38. Cálcu los efetu ados por m im com base n as estatísticas de Mitch ell, 1978.
39. Relatório da com issão en carregada de con h ecer o estado da in dú stria agrícola, com ercial
e fabril do con celh o da Covilh ã, 6 de dezem bro de 1839, idem con celh o de Ceia, 18 de Mar-
ço de 1840 in Correspondência do M. Reino com a Câmara dos Pares, secção VI., Cx. 2, A.H.P.
40. SILVEIRA, F. da As fábricas da Covilhã, 1863. p.10 e 35. Acrescen taria qu e u m a fábrica, de
Marqu es de Paiva tin h a seis pisões cilín dricos m ovidos a vapor. Con su lte-se tam bém PEREI-
RA, J. M. E. A Covilh ã e a in dú stria dos lan ifícios. Ocidente, n .699, 1897, reeditado em A in-
dústria portuguesa, 1979; baseia-se fu n dam en talm en te em Fradesso da Silveira, m as con têm
algu n s dados ú teis para a situ ação posterior.
41. In q. In d. 1881. III,p.205
42. Acerca dos recursos energéticos: em 1860, SILVEIRA, F., op. cit., p.101-2, 107, 1881,. Nos
meses de verão, os meses da "vela", chegava-se a fazer 6 horas de trabalho noturno. Calcula-
ra-se em 1881 que mesmo a estrada de ferro não faria baixar o preço do carvão o suficiente,
e assim aconteceu: ainda em 1933 o preço da tonelada de carvão na Covilhã era o quadruplo
do custo em Inglaterra (GALVÃO, J. A. L. In: Iº CONGRESSO INDÚSTRIA PORTUGUESA,
1933. In: CORDEIRO, J. L. op. cit., p.54). Mais flagrante no caso da Covilhã, em razão do pre-
ço do carvão, os limites dos recursos hidraúlicos afetavam também alguns centros algodoeiros,
como a bacia do Ave, ver CORDEIRO, J. L., op. cit., p.89 e a propósito de cada fábrica. Quiçá
também tenha sido um dos limites da mecanização da tecelagem nesta região.
43. Nº de h abitan tes da cidade da Covilh ã:
1864 1878 1890
9.022 10.809 17.562
A população da Covilhã (quatro freguesias) aumentou 62,47% entre 1878 e 1890, enquanto Lisboa
nesse período apenas aumenta 28,4% . Para a população industrial, recenseamentos de 1890 e 1911:
concelho da Covilhã (maior que a cidade, para a qual não existe esta informação) 43% e 39% .

239
Miriam Halpern Pereira

44. Para torn ar com parável a con tagem de fábricas aqu i e n o resto do país, n ão m e pareceu
correto con tar só as fábricas com pletas. No algodão tam bém existiam fábricas in com pletas, só
de estam paria, de tecelagem ou de fiação. O m otivo porqu e n ão se lh es daria essa design a-
ção pren de-se ao fato de elas n ão con stitu írem u m elo de u m a cadeia produ tiva com o aqu i.
Pareceu -m e preferível m an ter a design ação de origem , qu e correspon de a u m a diferen ça de
estru tu ra.
45. In qu érito de 1839/ 1840, op.cit.
46. MADUREIRA, N. Mercado e privilégios na indústria portuguesa, capítu lo sobre a Covilh ã,
p.498.
47. No total de operários estão in clu ídos os m estres e os escritu rários, qu e, on de existem , ra-
ram en te passam da u n idade.
48. A oficin a de Sebastião Rato de pisoam en to, tesou ra e tin te em 1863, com três operários,
tem em 1881 tam bém teares, fiação e oiten ta operários. A fábrica de José Men des Veiga, an -
tigo m ercador, u m a das m ais an tigas, data de 1784 passa de 92 a qu atrocen tos operários.
(MADUREIRA, N. op. cit., p.484; SILVEIRA, F. In dagações…, p.112-3, n .30 ; In q. In d. 1881,
p.186, n .6 e 8). Ou tras ligações parecem possíveis, m as seria n ecessário ter elem en tos com -
plem en tares; advin h am -se bastan tes m u dan ças de n om e, resu ltan tes de prováveis agrega-
ções de firm as an teriores.
49. SILVEIRA, F., op. cit., qu adro à p.117.
50. Ibidem , m apas 112 e ss.
51. Das restan tes oficin as, dez são tin tu rarias, u m a de apisoar, seis são de tecer.
52. 1881: Total das m u lh eres n a in dú stria: 39,4% ,(ligeiram en te m en os qu e em 1863, 41% ).
Nas prin cipais on ze em presas em 1881: 41,5% . O trabalh o fem in in o n a gran de in dú stria ti-
n h a tradição an tiga, fora u m exclu sivo da Real Fábrica. (MADUREIRA, N., op. cit., p.501).
Men ores: em 1863, m ascu lin os 315, fem in in os 26; em 1890, m ascu lin os 1.202, fem in in os
272. Ver, tam bém , qu adro 1. Com o já acon tecia an teriorm en te n esta região, a u tlização de
m en ores afetava sobretu do a popu lação m ascu lin a, ver MADUREIRA, N., op. cit., p.498.
53. Ibidem , p.88-92. A afirm ação de David Ju stin o de qu e a pequ en a produ ção tin h a pou ca
im portân cia sobretu do por se dedicar a fases parcelares da produ ção, m ostra a su a in com -
pren são peran te a organ ização específica da Covilh ã. (v.I, p.102) .
54. A form a com o o forn ecim en to da prin cipal m atéria-prim a, a lã, estava organ izada era ou -
tro dos problem as graves da in dú stria da Covilh ã e da região serran a. A in existên cia de for-
n ecim en to regu lar obrigava a com pras an u ais n as gran des feiras, o qu e im plicava ou u m
gran de em pate de capital ou o recu rso ao crédito com ju ro elevado. SILVEIRA, F., op. cit.,
p.48; In q. In d. 1881, III. Visita ao distrito da Gu arda, p.84-151. O abastecim en to de lã era
efetu ado n os prin cipais pon tos de produ ção relativam en te próxim os, o Alen tejo, Beiras, Es-
pan h a, m as para os tecidos su periores era in dispen sável com prar lã proven ien te da Alem a-
n h a, Au strália e da Am érica. Silveira, F., op. cit., p.92.
55. Ibidem , p.90-2.
56. Resposta dos fabrican tes da Covilh ã aos qu esitos propostos pela com issão das Pau tas em
1858. Jorn al da Associação In du strial Portu en se, n .8, p.59, 24 m arço de 1860.
57. SCRANTON, P. Proprietary capitalism : th e textile m an u factu rer at Ph iladelph ia, 1983. In :
ZEITLIN, J. Les voies m u ltiples de l'in du strialisation . In : Mouvement Social, 1985, p.133.
58. Con clu são do relatório de dois delegados da Com issão Cen tral de In qu érito qu e visitaram
a região, 1881, In q. In d. v.III, p.172-3 e o con ju n to do relatório p.88 ss., dos m ais com pletos
de todo in qu érito.Ver tam bém SILVEIRA, F., op. cit.
59. PERDIGÃO, J. A. A in dú stria em Portu gal. In : Arquivos da Universidade de Lisboa, 1916,
v.III, p.117 ss. POINSARD, L. Le Portugal inconnu , 1910. p.209, con sidera a região decaden te;
porven tu ra u m a visão exagerada.
60. O prin cipal m ercado n a distribu ição dos tecidos da Covilh ã, pelo m en os n os an os 60, era
Man gu alde, on de os prin cipais fabrican tes da Covilh ã tin h am arm azén s e ali ven diam por
grosso aos com ercian tes do Norte, n a feira do 1º dom in go do m ês. SILVEIRA, F., op. cit., p.92.

240
DIVERSIDADE E CRESCIMENTO INDUSTRIAL

61. Ver Qu adro 3: n o total das 160 fábricas, 117 situ am -se n os distritos de Castelo Bran co e
da Gu arda e a m aioria eram pequ en as e m édias u n idades in du striais.
62. Dados organ izados por m im , com base n as estatísticas do com ércio extern o.
63. Relatório do Ju rado, 1850, p.29, con cepção qu e se espraia n as p.26-30. MARTINS, O. Fo-
mento rural e emigração, p.197.
64. Teriam ch egado a 22 m il os trabalh adores n a con stru cção das lin h as do Norte e do Leste
en tre 1861 e 1864, dim in u in do posteriorm en te, PINHEIRO, M. Chemins de fer, structure finan-
ciére de l' Etat et dépendance extérieure. Tese (Dou torado), p.224-5, (Mim eogr.). Acerca do papel
da agricu ltu ra n a segu n da m etade do sécu lo XIX, ver o m eu livro Livre câmbio e desenvolvimen-
to econômico: Portu gal n a segu n da m etade do sécu lo XIX 2.ed. 1971, 1983.
65. Acerca da in dú stria corticeira e con serveira e as su as relações com o m ercado in tern acio-
n al, ver MIRANDA, S. O círculo vicioso da dependência (1890-1939),1991. Um a versão diferen te
em REIS, J. A in du strialização n u m país de desen volvim en to len to e tardio: Portu gal,1870-
1913. In : O atraso econômico português 1850-1930.

241
capítu lo 13

CA USA S HISTÓRICA S D O ATRA SO


ECON ÔMICO PORTUGUÊS
Jaim e Reis*

O atraso econ ôm ico portu gu ês n o lon go prazo, em bora u m tem a


cen tral n a atu alidade, apen as com eçou a gan h ar esse foro n a h istoriogra-
fia portu gu esa a partir de fin s da década de 1960. Para este arran qu e con -
tribu íram prin cipalm en te três fatores. O prim eiro e o m ais im portan te foi
o com eço, por essa altu ra, de u m a ren ovação n o estu do da História Eco-
n ôm ica em Portu gal, qu e, se pau tou , além de ou tros aspectos, pela colo-
cação de qu estões con sideradas relevan tes para a com preen são da socie-
dade portu gu esa con tem porân ea. Neste con texto, as origen s h istóricas da
situ ação atu al da econ om ia n acion al em com paração com ou tras sem e-
lh an tes ou m ais avan çadas n ão podia deixar de con cen trar as aten ções.
Um segu n do fator foi o progresso, en tre vários ou tros realizados em Por-
tu gal n o con h ecim en to h istórico, ocorrido n o dom ín io da qu an tificação,
sobretu do m acroecon ôm ica, e qu e, graças à con stru ção, pela prim eira
vez, de séries de preços, salários, com ércio extern o, m oeda e m esm o do
produ to n acion al, veio torn ar possível u m estu do sério deste tem a. Em
terceiro lu gar, realce-se a explosão do in teresse em n ível m u n dial pela
qu estão do crescim en to econ ôm ico n o lon go prazo, u m tem a qu e, du ran -
te as ú ltim as décadas, tem ocu pado n ão só h istoriadores e econ om istas
m as as ciên cias sociais em geral.
Se bem qu e n ovo por esta óptica, o problem a está lon ge de o ser
n o debate pú blico em Portu gal. Pelo m en os desde o sécu lo XVI qu e,
du m a form a ou de ou tra, pu blicistas, dou trin adores econ ôm icos, con se-
lh eiros e m in istros da coroa ou do govern o, periodistas e parlam en tares
se têm in terrogado sobre a decadên cia da Nação, a debilidade dos seu s re-
cu rsos m ateriais, a escassez e pobreza da su a popu lação, a su a fraca capa-
cidade produ tiva, a fragilidade de m eios para en fren tar as am eaças exter-
n as. Com o sécu los XIX e XX, porém , tais dú vidas parecem ter-se torn a-
do m ais prem en tes e m ais persisten tes, ao m esm o tem po qu e form u ladas
com m aior clareza an alítica e cada vez m ais focadas sobre o atraso in du s-
trial do país. A isto n ão terá sido alh eia a percepção crescen te e, com o ve-
rem os, n ão in fu n dada, de qu e Portu gal estava efetivam en te fican do m ais
e m ais para trás à m edida qu e n a Eu ropa, n a Am érica e m esm o n o resto

243
Jaime Reis

do m u n do, a civilização in du strial avan çava a passos largos, geran do cada


vez m ais riqu eza e m eios de a reprodu zir.
O estu do atu al desta qu estão n u m a perspectiva de lon go prazo é
an tes de m ais u m exercício em h istória com parada. Dado qu e o con ceito
de atraso econ ôm ico é de su a n atu reza relativo, a su a aplicação apen as
fará sen tido através do con fron to do caso em apreço com a experiên cia
de ou tros países, su bsistin do apen as a dú vida sobre qu ais as econ om ias
qu e deverão ser tom adas com o term o de aferição. Em segu n do lu gar, este
estu do tem com o requ isito prim acial u m esforço sign ificativo de qu an ti-
ficação retrospectiva da atividade econ ôm ica n acion al. Sem isto torn a-se
im possível traçar, com rigor, os in dispen sáveis paralelos e con trastes en -
tre os países em con fron to, qu e façam sobressair as diferen ças n o desem -
pen h o das respectivas econ om ias. Nesta caracterização, são sobretu do
cen trais con ceitos com o o n ível de ren dim en to per capita e a taxa an u al
de crescim en to do produ to n acion al. Por ú ltim o, salien te-se qu e a an áli-
se do atraso econ ôm ico se tem circu n scrito, n a gen eralidade, ao âm bito
cron ológico da Época Con tem porân ea. De fato, foi só du ran te os sécu los
XIX e XX qu e o crescim en to teve u m caráter ú n ico n a História, tan to pela
su a in ten sidade com o pela su a n atu reza su sten tada e pelo seu im pacto
n as estru tu ras socioecon ôm icas, perm itin do, deste m odo e a despeito de
fortes pressões dem ográficas, atin gir n íveis de bem estar e de con su m o in -
dividu ais in im agin áveis n ou tros tem pos. Mas a rapidez do progresso e da
difu são da tecn ologia, a crescen te circu lação in tern acion al do capital e do
trabalh o e a expan são das trocas com erciais, qu e estiveram n a raiz deste
processo, n ão afetaram a econ om ia m u n dial de u m a form a h om ogên ea.
Daqu i terem n ascido divergên cias de com portam en to cu jo efeito cu m u -
lativo, ao fim de decên ios, viria a redu n dar em con trastes m ais ou m en os
acen tu ados en tre n ações com relação à respectiva prosperidade e din a-
m ism o econ ôm ico.
No con texto geográfico das econ om ias ociden tais a qu e perten ce,
Portu gal tem ocu pado persisten tem en te u m lu gar de traseira ao lon go dos
ú ltim os 150 an os. Seja a com paração feita com a In glaterra da Revolu ção
In du strial, ou com os EUA, a econ om ia líder m u n dial do sécu lo XX, ou
ain da com u m con ju n to m ais ou m en os alargado de “econ om ias desen vol-
vidas”, a resposta é sem pre a m esm a. Na prim eira m etade dos oitocen tos,
o país era dos m ais pobres da Eu ropa, com u m ren dim en to per capita pro-
vavelm en te 40% ou m en os do in glês e en tre 50% e 60% do n ível atin gi-
do en tão por econ om ias periféricas do Norte da Eu ropa com o a Din am ar-
ca ou a Su écia.1 A partir daqu i e até à Prim eira Gu erra Mu n dial, a econ o-
m ia portu gu esa cresceria de form a su sten tada, m as a u m ritm o qu e ficou
bastan te aqu ém da expan são in tern acion al qu e en tretan to ocorria e o fos-
so, qu e já existia, foi-se cavan do cada vez m ais fu n do. Os portu gu eses aca-

244
CAUSAS HISTÓRICAS DO ATRASO ECONÔMICO PORTUGUÊS

bariam por ficar certam en te m ais ricos – ao lon go destas décadas, o acrés-
cim o n o seu ren dim en to real cifrou -se en tre os 40% e os 65% – m as,
com o se figu ra, a su a posição relativa tin h a decaído acen tu adam en te. Em
1913, o produ to n acion al per capita era cerca de 30% da m édia de u m con -
ju n to de 19 países qu e à época se poderiam con siderar avan çados.2
Com os an os 20 deste sécu lo in iciava-se u m a in versão n esta ten -
dên cia e despon tava u m a n ova era. Não só m an tin h a-se o crescim en to

Logaritm o natural do PNB pe r capita e m Portugal com o pe rce ntage m do


logaritm o natural PNB pe r capita e m paíse s de se nvolvidos (1850-1992)

70

65

60

55
Pe rce ntage m

50

45

40

35

30

25
1850

1990
1854
1858
1862
1866
1870
1874
1878
1882
1886
1890
1894
1898
1902
1906
1910
1914
1918
1922
1926
1930
1934
1938
1942
1946
1950
1954
1958
1962
1966
1970
1974
1978
1982
1986
su sten tado da econ om ia, com o, graças a taxas agora relativam en te m ais
elevadas, cessava o seu declín io relativo e, a partir da década de 1930, o
país en trava n o ram o ascen den te da cu rva em U, n a figu ra, qu e tradu z a
progressiva recu peração em relação às econ om ias qu e n os servem de ter-
m o de com paração.3 En tre 1930 e 1939, o produ to n acion al per capita em
Portu gal su bia para 35% da m édia acim a referida; n a década de 1950,
elevava-se para 37% ; e n os prin cípios dos an os 70, n a seqü ên cia dos
“An os de Ou ro” do pós-gu erra e an tes do prim eiro ch oqu e petrolífero,
atin gia os 54% .4 Con trariam en te à perspectiva tradicion al sobre este pe-
ríodo e qu e ain da en con tra aderen tes, o Estado Novo, lon ge de ter sido
u m tem po de estagn ação, foi u m a das épocas m ais din âm icas, em term os
econ ôm icos, da h istória portu gu esa.5
Peran te com portam en tos de lon go prazo tão con trastan tes, n ão
su rpreen de qu e tam bém a h istoriografia os ten h a procu rado separar n a
su a bu sca de explicação para os ritm os da econ om ia portu gu esa n o con -
fron to com as dem ais. No caso do atraso cada vez m ais acen tu ado do sé-
cu lo XIX, a ên fase tem sido posta n as barreiras, in tern as e extern as, qu e
im pediram qu e os fatores in tern acion ais estim u ladores do crescim en to ti-
vessem tido u m im pacto sem elh an te ao registrado n ou tras econ om ias si-
m ilarm en te atrasadas e qu e com eçavam tam bém en tão a crescer em bora

245
Jaime Reis

de form a m ais din âm ica. Para o segu n do período, do sécu lo XX, a qu es-
tão qu e se coloca é algo diferen te. Con siste em saber com o e até qu e pon -
to aqu elas barreiras terão caído e qu e im pu lsos an tigos ou n ovos terão
en tretan to proporcion ado a n otável elevação n o ritm o de expan são veri-
ficado desta vez.
Para u m a prim eira geração de estu diosos, n os in ícios dos an os 70,
o acen to deveria ser posto em três aspectos do problem a. Um a revolu ção
liberal in com pleta, du ran te as prim eiras décadas do sécu lo XIX, e u m de-
sen volvim en to in com pleto do capitalism o, su bseqü en tem en te, terão tido
com o con seqü ên cias u m a estru tu ra agrária, assen tada n u m du alism o m i-
n ifú n dio/ latifú n dio, qu e n ão en corajava n em a eficiên cia produ tiva, n em
u m a repartição de ren dim en tos m ais equ ilibrada. Por ou tro lado, circu n s-
tân cias políticas im pu n h am ao país, a partir de 1840, u m livre-cam bism o
qu e expu n h a a su a in cipien te in dú stria a u m a feroz con corrên cia exter-
n a e o em pu rrava em sim u ltân eo para u m a especialização agrícola e de
exportação de produ tos prim ários, sobretu do para a In glaterra. Em tais
con dições, faltou ao setor m an u fatu reiro o im pu lso com pen satório de
u m a procu ra in tern a forte qu e o fizesse crescer e, m odern isan do-se, lh e
possibilitasse com petir in tern acion alm en te, pelo qu e o seu con tribu to
para o crescim en to n ão cu m priu aqu ilo qu e seria de esperar dele. À agri-
cu ltu ra estava destin ada, a prazo, a estagn ação, dada a con corrên cia cada
vez m ais in ten sa n o m ercado extern o e a in abilidade estru tu ral, em n ível
socioecon ôm ico e técn ico, para su perar a su a produ tividade proverbial-
m en te baixa.6 As dificu ldades su scitadas por esta depen dên cia extern a
con ju gavam -se com u m a h eran ça sociocu ltu ral provin da do An tigo Regi-
m e e de qu e resu ltava, por u m lado, u m a sociedade fech ada aos valores
em presariais m odern os e ao espírito racion al e cien tífico e, por ou tro, a
falta de u m a ordem política bu rgu esa forte e qu e abraçasse o progresso
econ ôm ico acelerado.7
O debate acerca das cau sas do atraso econ ôm ico portu gu ês n o sé-
cu lo XIX con h eceu u m n ovo im pu lso a partir da década de 1980, m ercê
de u m a série de trabalh os qu e vieram levan tar dú vidas em relação às in -
terpretações vigen tes e propor n ovas solu ções. Um a destas objeções cen -
trava-se sobre a tese da depen dên cia extern a. Nu m a com paração in tern a-
cion al, Portu gal afin al n ão só estava lon ge de ser livre-cam bista – an tes,
tin h a u m a das proteções alfan degárias m ais altas da Eu ropa – com o tin h a
u m a das depen dên cias extern as m ais fracas. En tre as econ om ias pequ e-
n as e m ais atrasadas da época, a razão das su as exportações para o pro-
du to n acion al bru to, qu e n os serve para m edir esta dim en são, era dos
m ais baixos.8 Ao m esm o tem po argu m en tava-se qu e, pelo m en os n a su a
dim en são latifu n diária, a estru tu ra agrária n ão seria respon sável pelo
atraso técn ico do setor prim ário, an tes revelava u m a capacidade de adap-

246
CAUSAS HISTÓRICAS DO ATRASO ECONÔMICO PORTUGUÊS

tação à in ovação e às con dições de m ercado perfeitam en te com parável


com a de ou tras econ om ias con tem porân eas, em algu m as das qu ais, aliás,
o progresso da agricu ltu ra estava lon ge de se revelar in com patível com a
gran de propriedade rú stica.9 Por ú ltim o, qu estion ava-se se o m en or em -
pen h o da bu rgu esia portu gu esa n o processo de m odern ização resu ltaria
da persistên cia da “força e [da] rigidez da dom in ação aristocrático-religio-
sa da sociedade de An tigo Regim e”; ou se n ão seria an tes fru to da escas-
sez de oportu n idades de in vestim en to ren tável em setores avan çados qu e
só u m a econ om ia m ais rica e din âm ica podia proporcion ar.10
A rein terpretação qu e se propu n h a assen tava em vários pon tos. Pri-
m eiro qu e tu do, h avia qu e especificar com clareza qu al o term o de com -
paração para a econ om ia portu gu esa oitocen tista. Em vez da In glaterra, da
Fran ça ou da Alem an h a, dem asiado desen volvidas para o efeito, defen dia-
se com o m ais apropriado o recu rso a econ om ias sem elh an tes do pon to de
vista da dim en são, do grau de desen volvim en to in icial e da depen dên cia
extern a. A Escan din ávia parecia forn ecer u m padrão adequ ado n a m edi-
da em qu e era com posta por econ om ias pequ en as e pobres à partida, de
base agrária e tam bém elas com u m a acen tu ada depen dên cia em relação
à In glaterra. No en tan to, tin h a con segu ido taxas de crescim en to a lon go
prazo n otáveis ao lon go de toda a segu n da m etade do sécu lo XIX, su gerin -
do qu e o papel das exportações, m esm o de produ tos prim ários, podia ser
u m fator im portan te n a din am ização de qu alqu er econ om ia periférica e
logo da portu gu esa. Don de u m segu n do pon to posto à con sideração era o
de saber se em vez de depen dên cia extern a excessiva, o problem a n ão te-
ria an tes sido o da su a falta. Um exem plo con trafactu al para testar esta as-
serção su geria qu e o resu ltado de u m a h ipotética in du strialização pela
su bstitu ição de im portações, resu ltan te de u m proibicion ism o extrem o, di-
ficilm en te atin giria o de u m a plau sível expan são das exportações tradicio-
n ais do país, pelo qu e a terceira qu estão torn ou -se a de saber por qu e m o-
tivos Portu gal exportou tão pou co en tre 1850 e 1913.11
Um destes m otivos era a su a fraca dotação de recu rsos n atu rais. Por
u m lado, faltavam a Portu gal os recu rsos m in erais e florestais qu e perm i-
tissem su sten tar qu er u m a in dú stria qu er u m a exportação vigorosa n es-
tas áreas, com o su cedeu n a Su écia. Aliás, os dois setores exportadores de
m aior su cesso n o período – as con servas de peixe e a cortiça – defron ta-
vam lim itações deste cariz qu e os im pediam de ser “m otores do desen vol-
vim en to” n acion al. Por ou tro lado, o solo e o clim a eram tu do m en os fa-
voráveis à in trodu ção n o setor agrícola de algu m as das in ovações técn i-
cas m ais sign ificativas destes an os, qu e possibilitaram n o Norte da Eu ro-
pa elevados gan h os de produ tividade e u m a forte expan são produ tiva e
das su as exportações. Pelo con trário, em Portu gal a especialização agríco-
la possível era em cereais, vin h o e azeite, produ tos qu e n estes an os en -

247
Jaime Reis

fren taram u m a procu ra in tern acion al fraca e crescen tes dificu ldades com -
petitivas n os m ercados extern os. O problem a estava em qu e n em o país
tin h a van tagen s com parativas n a produ ção de carn e, laticín ios e ovos,
qu e eram os gên eros agrícolas tem perados com ercialm en te m ais van tajo-
sos n esta época, n em a su a agricu ltu ra era capaz de levar a cabo os m e-
lh oram en tos precisos para lh e gran gear u m estatu to verdadeiram en te
com petitivo. Con vém acrescen tar qu e a terra n ão só era m á com o era
pou ca relativam en te ao n ú m ero dos qu e a cu ltivavam . Em 1900, h avia 3
h ectares de terra por ativo, en qu an to n a Fran ça e n a In glaterra h avia 5,4
e 10 h ectares respectivam en te.
À escassez de recu rsos n atu rais som ava-se u m a n ão m en os m arca-
da deficiên cia de recu rsos h u m an os. Du ran te a segu n da m etade do sécu -
lo XIX, Portu gal foi u m dos países eu ropeu s m en os dotados n este aspec-
to, em virtu de de u m an alfabetism o em prin cípio esm agador, qu e atin gia
qu atro qu in tos da popu lação e logo a vasta m aioria da força de trabalh o
por volta de 1850; e de u m a taxa de escolarização baixa dem ais para ven -
cer esta con dição de atraso social. Em 1911, os iletrados con stitu íam ain -
da 75% dos portu gu eses en qu an to n a Itália esta proporção era de 46% e
n a Espan h a de 53% , sin al de qu e o problem a, n a su a verten te portu gu e-
sa, n ão era sim plesm en te explicável por fatores cu ltu rais ou religiosos.12
Em bora lon ge de ser m atéria pacífica, a relação en tre n ível cu ltu ral
e edu cativo e produ tividade parece su ficien tem en te explícita, m esm o n o
qu e toca ao sécu lo passado, para n ão cau sar estran h eza qu e as m ais altas
taxas de crescim en to econ ôm ico n a Eu ropa se ten h am verificado, du ran -
te o período em con sideração, em países, com o a Din am arca e a Su écia,
com u m a elevada form ação e dotação de capital h u m an o. Nesta lin h a de
raciocín io e em bora carecen do ain da de u m a am pla in vestigação, as in di-
cações atu alm en te dispon íveis sobre Portu gal apon tam para qu e, qu er n a
in dú stria qu er n a agricu ltu ra, este terá sido u m fator sign ificativo para ex-
plicar o fraco desem pen h o de am bos os setores, u m a circu n stân cia qu e,
aliás, n ão passava despercebida dos em presários con tem porân eos, com o
fator de atraso tecn ológico e de baixa ren tabilidade do trabalh o in du strial.
A fraca qu alificação da m ão de obra a todos os n íveis do aparelh o
produ tivo n ão era, n o en tan to, a ú n ica razão para qu e a produ tividade da
in dú stria portu gu esa fosse geralm en te m etade ou m en os daqu ilo qu e se
registrava n os países m ais avan çados. Argu m en tava-se qu e con tribu ía
igu alm en te para este resu ltado a redu zida dim en são do m ercado qu e esta
servia e qu e im pedia a m u itos setores de poderem gozar das econ om ias
de escala qu e a tecn ologia m odern a possibilitava e a algu n s, m orm en te n a
in dú stria pesada, vedava m esm o a su a im plan tação. O problem a radica-
va-se n u m a popu lação excessivam en te pequ en a e com u m ren dim en to
pessoal de tal form a baixo qu e a procu ra agregada de ben s m an u fatu ra-

248
CAUSAS HISTÓRICAS DO ATRASO ECONÔMICO PORTUGUÊS

dos n ão ch egava para su sten tar, por exem plo, a in stalação de sequ er u m
con versor Bessem er para a produ ção de aço. A solu ção para con torn ar
esta dificu ldade era am pliar o m ercado pela exportação, m as a baixa pro-
du tividade com parada da in dú stria portu gu esa exclu ía eviden tem en te
esta possibilidade. Por ou tro lado, a elevada proteção alfan degária de qu e
ela gozava retirava-lh e o in cen tivo para m elh orar as con dições de produ -
ção sob o im pu lso da con corrên cia extern a, e obrigava-a a procu rar refú -
gio n o m ercado dom éstico som en te. Estava assim in stalado u m círcu lo vi-
cioso de qu e parecia difícil sair, u m a vez qu e n ão era possível abater es-
tas barreiras tarifárias sem grave lesão para o tecido in du strial existen te
n o país e os in teresses a ele ligados. Man ten do-as porém o progresso tec-
n ológico era in adequ ado para u m crescim en to econ ôm ico m ais veloz.
A década de 1990 n ão alterou fu n dam en talm en te os term os deste
debate, m as acrescen tou -lh e n ovas dim en sões e perm itiu levá-lo m ais lon -
ge n ou tras. Um a destas ú ltim as é a qu estão da deficiên cia da fu n ção em -
presarial a qu e Helder Fon seca deu u m a n ova profu n didade, estu dan do as
“atitu des econ ôm icas” dos gran des lavradores e proprietários do Alen tejo
du ran te a segu n da m etade do sécu lo passado, u m gru po tradicion alm en te
tido por refratário à m u dan ça técn ica e à m axim ização do lu cro. Segu n do
este au tor, pelo con trário, a região caracterizou -se por u m a gran de adap-
tabilidade à evolu ção das con dições de m ercado. As in ovações foram adap-
tadas por estes “em presários agrícolas” com a celeridade e a exten são qu e
as circu n stân cias econ ôm icas ditavam e as form as de in vestim en to e de or-
gan ização da produ ção den otaram u m a flexibilidade m u ito distan te do
“paradigm a da crôn ica falta de in iciativa e din am ism o”.13
Em bora n ão focan do diretam en te a qu estão da terra n a óptica qu e
aqu i n os ocu pa, a qu an tificação cu idadosa dos valores e qu an tidades en -
volvidos n a ven da dos Ben s Nacion ais, n os an os após a Gu erra Civil
(1835-1843), veio de n ovo pôr à con sideração o argu m en to, tam bém tra-
dicion al, segu n do o qu al esse processo teria fru strado a oportu n idade de
u m a reform a econ ôm ica ú n ica e com im portan tes con seqü ên cias para o
desen volvim en to do país. É verdade, sem dú vida, com o se tem afirm ado,
qu e esta ven da em n ada con tribu iu para alterar, com o poderia h ipoteti-
cam en te ter feito, a estru tu ra agrária latifu n diária/ m in ifu n diária e assim
poder-se-á dizer qu e esta reform a n ão aju dou a erradicar certas caracte-
rísticas peren es do m u n do ru ral portu gu ês. Mas os dados agora dispon í-
veis tam bém perm item con clu ir qu e o valor e a exten são das terras em
qu estão n ão eram de ordem tal qu e, m esm o se tivessem sido estru tu ra-
das em propriedades m édia, com u m a u tilização presu m ivelm en te m ais
eficaz, o im pacto sobre o produ to n acion al pu desse ter sido m ais do qu e
exígu o. Nu m a altu ra em qu e este ú ltim o seria de cerca de 200 m il con -
tos, os Ben s Nacion ais ren deram , em h asta pú blica, cerca de 8.500 con tos

249
Jaime Reis

e o produto do seu cultivo não deveria portanto exceder os 4 mil contos por
an o, u m qu an titativo qu e ain da qu e du plicado, h ipoteticam en te, pou co
afetaria o estado econ ôm ico da n ação n o lon go prazo. 14
Tam bém o Estado, u m com pon en te cen tral n as in terpretações m ais
recu adas qu e assen tavam n a tese da depen dên cia extern a, ressu rge n esta
n ova vaga revision ista, em bora com ou tras vestes. Segu n do u m a das
perspectivas abertas n a presen te década, on de o seu papel se revelou pou -
co propiciador do crescim en to, n ão foi n a su a in capacidade para proteger
a in dú stria su ficien tem en te da con corrên cia estran geira, qu e, com o vi-
m os, terá sido afin al u m falso problem a. An tes o qu e faltou foi a prom o-
ção, através de tratados com erciais adequ ados, das exportações dos pro-
du tos prim ários ou sem im an u fatu rados em qu e h avia algu m a van tagem
com petitiva, m as qu e em certas in stân cias se viram em dificu ldades co-
m erciais em con seqü ên cia de discrim in ações sofridas em m ercados qu e
eram im portan tes para a su a expan são.15
Ain da n este cam po, u m segu n do aspecto in ovador deriva do esta-
tu to do Estado com o prin cipal e m aior agen te econ ôm ico do país. Com
u m a despesa pú blica de cerca de 14% do produ to n acion al e u m papel
prim acial n o m ercado de capitais, de on de dren ava im portan tes recu rsos
fin an ceiros, qu e de ou tro m odo poderiam ter sido orien tados para aplica-
ções produ tivas, o seu im pacto era n ecessariam en te su bstan cial e o po-
ten cial para retardar o crescim en to sign ificativo. No qu e toca à prim eira
destas dim en sões, é agora possível argu m en tar, com base em estu do de
Eu gên ia Mata, qu e u m a gran de parte dos recu rsos assim absorvidos fo-
ram realm en te “esterilizados” e logo perdidos para o crescim en to da eco-
n om ia, n a m edida em qu e, em m édia, apen as 10% da despesa pú blica foi
can alizada du ran te as décadas em apreço para objetivos “econ ôm icos” e
m u ito do restan te u tilizado para su sten tar u m a bu rocracia de fraco valor
n este con texto.16 Sobre a segu n da destas dim en sões, apen as possu ím os
resu ltados prelim in ares qu e in dicam , n o en tan to, u m efeito n egativo so-
bre a econ om ia portu gu esa da segu n da m etade dos oitocen tos. A pu n ção
sobre o m ercado fin an ceiro resu ltan te das n ecessidades creditícias do Es-
tado teve efetivam en te u m efeito dissu asor sobre o in vestim en to privado,
m as apen as de form a “m oderada”.17
Na su a verten te ban cária, tem m erecido tam bém algu m a aten ção
o possível papel propu lsor do m ercado de crédito sobretu do em relação à
in dú stria, u m con ceito de aplicação freqü en te aos países de desen volvi-
m en to tardio, de acordo com os en sin am en tos de Gersch en kron . Du ran -
te todo este período, a ban ca teve u m a evolu ção excepcion alm en te rápi-
da e parece ter can alizado u m a parte n ão despicien da dos seu s m eios para
algu n s setores in du striais, o qu e à prim eira vista deveria ser favorável ao
crescim en to global. O sistem a ban cário portu gu ês caracterizou -se, n o en -

250
CAUSAS HISTÓRICAS DO ATRASO ECONÔMICO PORTUGUÊS

tan to, por u m a pu lverização qu e lh e retirou boa parte da possibilidade de


ter econ om ias de escala, sofreu de in stabilidade ocasion ada por u m a ex-
cessiva dispersão geográfica e, talvez por a pou pan ça n acion al ser tão li-
m itada, n ão logrou jam ais atin gir u m a dim en são su ficien te para con se-
gu ir desem pen h ar u m papel de relevo n a m odern ização da econ om ia.
Apesar de estreito, o seu relacion am en to com a in dú stria pau tou -se sem -
pre por u m con servadorism o qu e pode ter tido as su as raízes n os proble-
m as apon tados, m as qu e de qu alqu er form a poderá ter travado u m a
tran sform ação m ais rápida do setor in du strial, em particu lar de setores
tecn ologicam en te m ais avan çados e por isso m ais caren ciados de fin an -
ciam en to a lon go prazo.18
Para além destes aspectos parcelares su rgiram , du ran te a década de
1990, três n ovas abordagen s qu e, em con traste, preferiram en carar de
form a global o problem a do atraso econ ôm ico portu gu ês do sécu lo XIX.
Nu m a delas, O’Rou rke & William son m ostraram qu e, n o caso de Portu -
gal, dois fatores tin h am sido igu al e especialm en te im portan tes em deter-
m in ar o ritm o de crescim en to atin gido en tre 1870 e 1913: a escolarização
e a em igração. Esta dedu ção, baseada n u m a an álise econ om étrica das di-
feren ças en tre sete países da periferia eu ropéia n o qu e respeita à con ver-
gên cia dos respectivos ren dim en tos per capita em relação aos EUA e à In -
glaterra, con clu ía tam bém qu e a abertu ra ao com ércio extern o, o in flu xo
de capitais estran geiros e o progresso tecn ológico apen as tin h am tido u m
im pacto residu al.19 Segu n do estes au tores, o m ecan ism o cau sal era sim -
ples. A rarefação da m ão-de-obra associada à em igração, assim com o a
elevação da razão trabalh o/ capital e trabalh o/ terra, teriam en gen drado a
elevação geral da produ tividade e do n ível salarial qu e caracterizaram o
período e de qu e resu ltou su cessivam en te a progressão do ren dim en to per
capita dos portu gu eses. O im pacto disto seria aproxim adam en te 50% do
au m en to total registrado n esta ú ltim a variável du ran te estes decên ios, ca-
ben do ou tro tan to à form ação de capital h u m an o, u m efeito discu tido an -
teriorm en te e assim agora con firm ado e qu an tificado.
Vários aspectos deste estu do m erecem realce pelo seu caráter in ova-
dor. É a prim eira vez qu e, n o caso de Portu gal, para além de se qu an tificar
o fen ôm en o do crescim en to em si se faz o m esm o para os seu s fatores ex-
plicativos, o qu e tem o m érito de, m ais do qu e sim plesm en te iden tificá-los,
perm itir orden á-los con form e a im portân cia relativa. Em segu n do lu gar,
em vez de se partir de u m a an álise das con dições especificam en te portu -
gu esas, ch ega-se a estas partin do, pelo con trário, de u m m odelo de âm bito
global em qu e Portu gal é apen as u m a peça do “pu zzle”. Por ú ltim o, dá-se
destaqu e a u m aspecto da realidade socioecon ôm ica oitocen tista portu gu e-
sa cu ja im portân cia tem sido sem pre am plam en te recon h ecida, m as cu jo
papel n o processo qu e ora n os ocu pa n ão tem sido até aqu i form u lado com

251
Jaime Reis

a clareza de qu e agora passam os a dispor.20 Não obstan te, ficam ain da em


aberto algu m as qu estões. Um a delas é o con tribu to adicion al para o ren di-
m en to n acion al represen tado pelo valor im en so das rem essas en viadas pe-
los em igran tes para a pátria e qu e carece de ser in clu ído aqu i e m elh or
qu an tificado, sen do provável qu e n este caso a em igração gan h asse ain da
m aior relevo com o fator explicativo. Por ou tro lado, poder-se-ia dedu zir do
m odelo qu e, n ou tras circu n stân cias, favoráveis a u m a em igração ain da
m aior, o crescim en to teria sido m ais rápido, perm itin do u m a recu peração
do atraso econ ôm ico portu gu ês? Se a resposta for positiva, ou tra dú vida é
su scitada, ou seja, ficam por saber as razões qu e im pediram a taxa em igra-
tória de ser m ais elevada, u m a possibilidade verossím il, n a m edida em qu e,
em todas as décadas con sideradas, ou tros países sofreram perdas m aiores
de popu lação do qu e Portu gal por este m otivo.21
Se bem qu e focan do u m período relativam en te cu rto (1910-1926),
o estu do de K. Sch wartzm an sobre a Prim eira Repú blica Portu gu esa ofe-
rece u m pon to de vista qu e é exten sível a toda a segu n da m etade do sé-
cu lo XIX e é bastan te diverso do an terior. Para esta au tora, foram fu n da-
m en talm en te du as as raízes do atraso econ ôm ico portu gu ês. Ao abrigo de
u m a m atriz de in spiração “wallerstein ian a”, a prim eira era o estatu to
“sem iperiférico” do país, fortem en te in ibitório do desen volvim en to de
econ om ias deste tipo. A segu n da, decorren te desta, era a profu n da “desar-
ticu lação” de u m a econ om ia qu e se dividia em qu atro setores fu n dam en -
tais. A debilidade dos laços en tre eles era tal qu e qu an do u m deles logra-
va u m com portam en to din âm ico – por exem plo, o agroexportador – a re-
percu ssão disto sobre os dem ais era tên u e e o efeito global dim in u to.22 Em -
bora atraen te, existem problem as de con sistên cia com os fatos h istóricos
qu e colocam algu m as reticên cias a esta in terpretação. Por u m lado, estão
por con stru ir in dicadores fiáveis de salários e lu cros em n ível setorial qu e
perm itam ju stificar o caráter “desarticu lado” atribu ído à econ om ia portu -
gu esa. Por ou tro, essa desarticu lação n ão é u m dado absolu to, m as sim in -
trin secam en te relativo e só faz sen tido qu an do apreciada em perspectiva
com parada e n a su a evolu ção ao lon go do tem po. David Ju stin o, qu e se
ocu pou exten sivam en te desta ú ltim a tarefa, forn ece-n os u m a ach ega ao
con clu ir qu e já n o prin cípio do sécu lo XX estava em gran de parte con clu í-
do o processo de in tegração do “m ercado n acion al”, o qu e retira força ao
argu m en to da “desarticu lação”, m as qu e esta con tin u ava n o en tan to in -
flu en cian do n egativam en te o crescim en to da econ om ia.23 Em qu e m edida
e se n u m grau m aior do qu e n as restan tes pequ en as econ om ias da perife-
ria da Eu ropa, eis o qu e con tin u a a carecer de aprofu n dam en to.
A terceira destas três perspectivas globais n ovas põe em cau sa u m a
aqu isição im portan te da an álise qu e se desen volveu du ran te a década de
1980. Trata-se da n oção de qu e a evolu ção das exportações portu gu esas

252
CAUSAS HISTÓRICAS DO ATRASO ECONÔMICO PORTUGUÊS

ten h a sido cru cialm en te afetada qu er pela dotação de recu rsos n atu rais
qu er pela con figu ração da procu ra in tern acion al, am bas an teriorm en te
alegadas com o barreiras de m on ta ao crescim en to econ ôm ico. A segu n da
é qu e a relação cau sal en tre exportações e produ to n acion al, se existiu ,
ten h a tido a direcção qu e lh e tem sido atribu ída, an tes parecen do qu e é
o n ível do produ to qu e determ in a a capacidade para exportar e n ão o
con trário. Em con seqü ên cia, segu n do Pedro Lain s, em Portu gal era o
atraso econ ôm ico e social qu e travava a exportação, u m a situ ação qu e só
podia ser su perada através de “u m processo dem orado” de len ta evolu ção
qu e países com o os escan din avos tin h am já con segu ido levar a cabo an -
tes de m eados dos oitocen tos.24 Este en ten dim en to vai ao en con tro de
u m a corren te n a literatu ra in tern acion al qu e afirm a qu e, n o lon go prazo,
existem gru pos de países com ren dim en to per capita baixo m as sem elh an -
te e qu e ten dem a aproxim ar-se en tre si, m as raram en te dos qu e con sti-
tu em o gru po dos países com ren dim en to m ais elevado e tam bém sem e-
lh an te en tre si. Visto deste m odo, Portu gal perten ceria a u m “clu be de
con vergên cia” eu ropeu de ren dim en to baixo e por isso aí teve de perm a-
n ecer du ran te estas décadas sem con segu ir u ltrapassar os bloqu eios a u m
crescim en to m ais rápido.25 Esta abordagem represen ta u m avan ço in dis-
cu tível m as su scita dificu ldades. A m ais salien te reside, por su a vez, n a
au sên cia, de explicação adequ ada para o atraso portu gu ês n a época qu e
an tecede o período em apreço, para on de é rem etida agora a ch ave do
problem a. Em segu n do lu gar, a au sên cia de u m a an álise qu e elu cide por
qu e m eios é qu e algu n s países con segu iram escapar à perten ça ao “clu be”
dos m ais pobres e in gressar n o das econ om ias m ais din âm icas porqu e
m ais ricas deixa u m a área de in certeza n a com preen são do fen ôm en o.
Esta in certeza é im portan te n ão só para a com preen são do proble-
m a do atraso econ ôm ico oitocen tista, m as tam bém para explicar a recu -
peração qu e, em con traste, a econ om ia portu gu esa logrou efetu ar n o de-
correr do sécu lo XX. A in terrogação qu e aqu i se coloca é se, depois de
u m a lon ga e len ta evolu ção n o sécu lo XIX, Portu gal terá atin gido fin al-
m en te, após a Prim eira Gu erra Mu n dial, o patam ar de riqu eza m in ím a
para poder fazer parte do gru po das n ações avan çadas e con vergen tes.
Ou , em lu gar disso, se terão su rgido fatores im pu lsion adores do cresci-
m en to an tes au sen tes a alterar radicalm en te a situ ação passada? Metodo-
logicam en te, su rgem com isto du as qu estões. A prim eira é a de iden tifi-
car, com o fizem os até aqu i, u m m odelo in terpretativo qu e in tegre satisfa-
toriam en te a evolu ção do caso portu gu ês em si e em perspectiva com pa-
rada. A segu n da é a de assegu rar a coerên cia desse qu adro com a in ter-
pretação qu e se preten deu dar para o atraso verificado n o decu rso do sé-
cu lo XIX. Assim , se h ou ver circu n stân cias qu e an tes obstacu lizaram u m

253
Jaime Reis

m elh or desem pen h o, estas devem ser recon sideradas para se apu rar se,
n o sécu lo atu al, deixaram de existir, de atu ar, ou se por qu alqu er m otivo
passaram a ter u m efeito diverso do an terior. Da m esm a form a, se n ovos
fatores em ergem a im pelir m ais fortem en te o crescim en to a partir das dé-
cadas de 1920 ou 1930, a su a in existên cia n a época preceden te deve ser
assin alada e explicada.26 Tal com o fizem os para o prim eiro su bperíodo
aqu i con siderado, será a dim en são estru tu ral, de lon go prazo, de qu e n os
vam os ocu par, e n ão a dim en são con ju n tu ral, de cu rto prazo da h istória
econ ôm ica portu gu esa.
O com portam en to da econ om ia n acion al n o sécu lo XX da óptica
qu e estam os an alisan do tem m erecido m en os aten ção dos h istoriadores
do qu e acon teceu n o caso do sécu lo XIX. As dim en sões políticas associa-
das à em ergên cia e lon gevidade do Estado Novo e a relevân cia deste para
a m ais recen te viven cia dem ocrática do país são in du bitavelm en te razões
sobejas para isto. Não obstan te, o volu m e de in vestigação já dispon ível so-
bre este capítu lo de h istória econ ôm ica forn ece pistas abu n dan tes e é evi-
den te qu e, m esm o se m u itas qu estões restam por esclarecer, as lin h as ge-
rais de u m qu adro an alítico adequ ado às n ecessidades já se en con tram
traçadas.
Do pon to de vista do crescim en to, a gran de viragem para a econ o-
m ia portu gu esa data do fim da segu n da gu erra m u n dial. No período en -
tre as gu erras assistiu -se à in terru pção do processo de atraso secu lar qu e
tem os con siderado até aqu i (ver figu ra) e m esm o a u m a pequ en a m elh o-
ria da posição portu gesa relativa n este dom ín io. Estru tu ralm en te, n ão se
tin h am ain da verificado, porém , as gran des alterações qu e assin alaram os
an os 1945-1973, qu e são aqu eles em qu e disparou a expan são da econ o-
m ia – a u m a taxa m édia an u al de 5,6% a preços con stan tes – e teve lu -
gar, pela prim eira vez n a h istória do país u m a sign ificativa recu peração
relativam en te às econ om ias desen volvidas. É sobre esta ú ltim a experiên -
cia qu e con cen tram os portan to a n ossa aten ção.
O aspecto porven tu ra m ais salien te desta época é a con versão de
Portu gal n u m país in du strial, cu jo setor secu n dário n ão só su perou fin al-
m en te o prim ário com o, com u m a taxa de crescim en to an u al de 10,7%
ao an o, passou a determ in ar a evolu ção global da econ om ia.27 Um a ele-
vação im portan te da produ tividade in du strial perm itiu qu e a exportação
de m an u fatu ras dom in asse o setor extern o, com 64% das ven das n o ex-
terior, en qu an to a agricu ltu ra, o esteio tradicion al das exportações, se li-
m itava agora a 10% desse flu xo. Os ram os da in dú stria previam en te m ais
im portan tes – os têxteis, o calçado e a alim en tação – m an tiveram u m pa-
pel relevan te n esta evolu ção, m as perderam o seu lu gar preem in en te
para u m con ju n to se setores m odern os, m ais avan çados tecn ologicam en -
te e m ais capital in ten sivos – o aço, a m etalu rgia, a qu ím ica, o m aterial

254
CAUSAS HISTÓRICAS DO ATRASO ECONÔMICO PORTUGUÊS

elétrico e de tran sportes, o papel e o petróleo. A este fen ôm en o esteve li-


gado o aparecim en to de sete gran des gru pos econ ôm icos em qu e se com -
bin avam as atividades fin an ceiras com os in teresses colon iais e in du striais
e qu e lograram ocu par posições predom in an tes n as áreas m ais din âm icas
do tecido produ tivo e con dicion ar a política econ ôm ica.28 A esta n otável
expan são tam bém n ão podia ser alh eio u m au m en to sign ificativo do grau
de abertu ra da econ om ia, qu e se tradu ziu por três facetas prin cipais. Au -
m en taram as exportações e as im portações a ritm os ain da m aiores do qu e
o do produ to n acion al. Recom eçou a em igração, cu jo cau dal era pratica-
m en te n u lo desde 1930 e qu e agora, n o seu au ge (1970), atin giu u m a
taxa de 21 por m il h abitan tes.29 Assistiu -se, du ran te os an os 1960, a u m
in flu xo de capitais e de tecn ologia estran geira, graças à liberalização de
u m a legislação an teriorm en te con trária a tais m ovim en tos e à m aior
atração exercida pelas oportu n idades agora oferecidas pela econ om ia por-
tu gu esa sobre os in vestidores in tern acion ais.
Segu n do recen tes an álises baseadas n a técn ica do growth accounting,
este rápido crescim en to da econ om ia portu gu esa deveu -se em gran de
parte (70% ) ao au m en to dos seu s fatores produ tivos – trabalh o, capital e
capital h u m an o – m as tam bém , em bora em m en or grau (30% ) a u m a sig-
n ificativa elevação da produ tividade n a u tilização destes fatores.30 Para
obterm os u m a visão adequ ada das cau sas qu e estiveram por detrás de u m
e do ou tro tipo de in flu ên cia são cin co as áreas de an álise para qu e pre-
cisam os de aten tar.
Um a das tran sform ações m ais im portan tes da sociedade portu gu e-
sa, n esta óptica, foi o en orm e in vestim en to feito du ran te este sécu lo em
m atéria edu cativa. Em bora largam en te criticada e criticável por n ão ter
ido m ais além , n ão se pode n egar qu e foi con siderável e de gran de im pac-
to econ ôm ico o acréscim o n a dotação de capital h u m an o qu e daqu i resu l-
tou . No caso paradigm ático da alfabetização, passou -se de u m n ível de
75% de an alfabetos n a popu lação, em 1900, para 40% , em 1940, e 25% ,
em 1970. Se forem tom ados em con sideração ao m esm o tem po o en sin o
in term ediário e o u n iversitário o progresso é ain da m ais im pression an te,
se bem qu e tardio em relação à n orm a eu ropéia con tem porân ea. O ín di-
ce de Harrison e Meyers, qu e reflete con ju n tam en te todos estas in stân -
cias, elevou -se de u m valor de 0,4 em 1900 para 1,3 em 1940, atin gin do
3,9 em 1960.31 Qu an to ao efeito disto, as opin iões são u n ân im es. A qu a-
lificação crescen te da m ão-de-obra a todos os n íveis con tribu iu sobrem a-
n eira para a elevação da produ tividade e do produ to n acion al. Um estu -
do de âm bito in tern acion al dem on strou , para o caso de Portu gal, qu e a
taxa de retorn o sobre o dispen dido com a edu cação n o an o de 1977 foi
de 10% , u m a in dicação razoável do qu e se terá podido obter n as décadas
preceden tes.32 Por ou tro lado, a forte correlação detectada para o lon go

255
Jaime Reis

prazo en tre a form ação de capital h u m an o e o m ovim en to do produ to n a-


cion al tem a su a con trapartida n o resu ltado m ais recen te do growth ac-
counting segu n do o qu al este fator foi respon sável por u m qu arto do cres-
cim en to econ ôm ico total en tre 1951 e 1973.33
A crescen te abertu ra ao exterior du ran te estas décadas tem sido
igu alm en te recon h ecida n o geral com o u m a das cau sas prin cipais do di-
n am ism o en tão verificado. Terá sido ela o m eio pelo qu al a econ ôm ia por-
tu gu esa foi “con tagiada” pela gran de expan são econ ôm ica in tern acion al
destes an os, exportan do e im portan do cada vez m ais e su jeitan do-se a
u m a m obilidade do trabalh o, do capital e da tecn ologia qu e só lh e podiam
ser ben éficos. Apesar de u m regim e com u m a in clin ação de raiz para o
protecion ism o e a au tarqu ia econ ôm ica, pela n ecessidade das coisas, as
políticas segu idas n o pós-gu erra pelo Estado Novo foram n o sen tido opos-
to, da liberalização e da ligação às organ izações in tern acion ais, cu lm in an -
do com o tratado de adesão de Portu gal à Associação Eu ropéia de Com ér-
cio Livre, em 1959. Em qu e m edida isso aju dou a econ om ia a crescer é
algo qu e está, porém , ain da por resolver. A opin ião geral é qu e este terá
u m fator cru cial de tran sform ação. Na in dú stria, os setores exportadores
já referidos terão se ben eficiado, sem dú vida, com o m ais fácil acesso aos
gran des m ercados eu ropeu s e com isso terão recebido u m im portan te es-
tím u lo para sim u ltan eam en te expan dir e au m en tar su a eficiên cia. Um
exam e m ais aten to su gere, n o en tan to, qu e n a su a m aior parte a econ o-
m ia con tin u ou refu giada atrás de barreiras alfan degárias qu e, apesar de
n om in alm en te em qu eda, se m an tin h am , em term os efetivos, qu ase tão
altas em 1970 com o 20 ou 30 an os atrás. Os setores in du striais n ão ex-
portadores e a m aior parte da agricu ltu ra e dos serviços n ão experim en -
taram o desafio da con corrên cia extern a, pelo qu e “m u itas em presas be-
n eficiaram con tin u am en te de n íveis de proteção elevados e pu deram so-
breviver em fu n ção do m ercado in tern o”, com efeitos qu e n ão terão sido
positivos para a produ tividade geral.34
A im portân cia qu e a form ação de capital fixo teve em todo este
processo, tradu zida por u m con tribu to de cerca de 50% para o crescim en -
to global da econ om ia e n u m erosas referên cias n a literatu ra, obriga-n os
a pon derar sobre as circu n stân cias qu e torn aram possível u m au m en to
tão acen tu ado e in u sitado deste fator produ tivo. Não existem dados qu e
proporcion em u m a com paração com épocas an teriores. Tu do leva a crer,
porém , qu e n este dom ín io deva ter h avido u m a alteração profu n da n o
com portam en to dos agen tes econ ôm icos graças à qu al os recu rsos fin an -
ceiros m obilizados para este fim cresceram em 600% en tre 1950 e 1973.
O elem en to m ais im portan te n este en orm e esforço foi in du bitavelm en te
a pou pan ça das fam ílias portu gu esas, qu e se elevou de u m a form a n otá-
vel ao lon go do período, até atin gir u m m áxim o de 30% do ren dim en to

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CAUSAS HISTÓRICAS DO ATRASO ECONÔMICO PORTUGUÊS

dispon ível, em 1972, partin do de u m valor de 10% n o im ediato pós-gu er-


ra. Qu ais as razões de u m fen ôm en o tão su rpreen den te é u m tem a de
m om en to praticam en te ign oto e qu e, pela su a im portân cia n a in terpreta-
ção destes “An os de Ou ro” da econ om ia portu gu esa, carece de in vestiga-
ção. A elevação progressiva do ren dim en to per capita será u m a parte ób-
via da explicação para este au m en to n o esforço de pou pan ça. Ou tra de
n ão m en or sign ificado será a atu ação do sistem a ban cário, cu ja expan são
e tran sform ação estru tu ral du ran te estes an os lh e facu ltou u m a capacida-
de m u ito acrescida n ão só para captar recu rsos de tal m on ta, m as tam bém
para con segu ir reciclá-los em larga m edida para o in vestim en to das em -
presas e dar-lh es por con segu in te u m fim produ tivo.35
Mais fácil de explicar é a segu n da fon te m ais relevan te, con stitu ída
pela pou pan ça das em presas, as qu ais pela reten ção de parte dos seu s lu -
cros con segu iram fin an ciar u m a fração su bstan cial da su a form ação de ca-
pital fixo. Em bora u m a h ipótese ain da por testar rigorosam en te, é opin ião
de vários au tores qu e as con dições de m on opólio ou de oligopólio de qu e
n ão pou cas gozaram à som bra da regu lam en tação oficial terá torn ado
possível lu cros su ficien tem en te elevados para isso assim com o o estím u -
lo para agir n esse sen tido. Em con trapartida, o papel do Estado e dos in -
vestidores estran geiros n a form ação de capital talvez n ão ten h a tido u m
im pacto com en su rável com o in teresse de qu e tem sido alvo por algu n s
au tores. No prim eiro caso, é in egável o au m en to dos in vestim en tos esta-
tais ao lon go deste sécu lo e tam bém o fato de estes se orien tarem cada vez
m ais para as in fra-estru tu ras in dispen sáveis ao crescim en to, com o os
tran sportes, as com u n icações e a en ergia, para além de u m com pon en te
n ão desprezível de apoio ao in vestim en to in du strial e à edu cação. E a par-
tir de 1953, su cessivos Plan os de Fom en to govern am en tais vieram disci-
plin ar e even tu alm en te con ferir m aior eficiên cia a este esforço. Ao lado
do privado, o in vestim en to pú blico n u n ca deixou de ter u m lu gar secu n -
dário – cerca de 10% a 15% do total até m eados da década de 1960, al-
tu ra em qu e ascen deu aos 30% .36 De igu al m odo, o in vestim en to estran -
geiro tem recebido bastan te aten ção, m as o seu im pacto restrin giu -se es-
sen cialm en te aos an os 60 e 70 e aos escassos, m as im portan tes setores in -
du striais em qu e se con cen trou . Assim , m esm o du ran te a época da libe-
ralização por via legislativa da en trada destes capitais, o seu volu m e n u n -
ca excedeu os 4% do produ to n acion al, n u m m om en to em qu e o total da
form ação bru ta de capital n u n ca estava abaixo dos 20% desta variável.37
Paralelam en te a ou tros m ovim en tos sem elh an tes em todo o su l da
Eu ropa, o su rto em igratório recom eçado logo depois da segu n da gu erra
m u n dial tem sido iden tificado com o “o fator qu e m ais decisivam en te in -
flu en ciou a situ ação econ ôm ica global” em Portu gal.38 Para a econ om ia
foram várias as con seqü ên cias qu e advieram de u m êxodo qu e com eçou

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Jaime Reis

por ser da ordem dos 1,7 por m il h abitan tes, até 1950, e qu e n o seu au ge,
por volta de 1970, correspon dia a u m a taxa de 21 por m il. Por u m lado,
a estagn ação popu lacion al resu ltan te possibilitou u m processo de cresci-
m en to m arcadam en te capital in ten sivo e absorvedor de n ova tecn ologia,
u m a forte dim in u ição da m ão-de-obra agrícola sem o aparecim en to de
u m desem prego in du strial pertu rbador e au m en to da produ ção qu e n ão
se dissiparam por u m a base dem ográfica em rápida expan são, com o su -
cedeu n ou tros casos con tem porân eos de desen volvim en to econ ôm ico.39
Por ou tro, gerou -se u m con siderável e crescen te cau dal de rem essas para
o país n atal, captado e can alizado m ajoritariam en te pelo setor ban cário
portu gu ês e cu jo efeito foi assin alável em du as áreas cru ciais para a tran s-
form ação da econ om ia. A prim eira era a do com ércio extern o, em qu e a
expan são das im portações de equ ipam en tos e m atérias-prim as n orm al-
m en te associada a processos de in du strialização rápida n ão con du ziu a
u m estran gu lam en to graças às abu n dan tes divisas assim obtidas e refor-
çadas pelas receitas do tu rism o en tão em fu lgu ran te ascen são. A segu n da
foi o con tribu to prestado por estas rem essas para o con su m o e particu lar-
m en te para a econ om ia das fam ílias, qu e viram o seu ren dim en to au m en -
tar em virtu de disso, em m édia, de 3,5% du ran te os an os 1960-1965 e de
7,7% em 1966-1973, u m valor qu e con trasta fortem en te com os 2% ob-
tidos da m esm a origem n o prin cípio do sécu lo, ou tra época de gran de
em igração, m as de fraco crescim en to econ ôm ico.
O qu in to e ú ltim o dos tópicos essen ciais para a h istória da recu pe-
ração da econ om ia portu gu esa após 1945 é de todos o m ais com plicado e
difícil de avaliar. Trata-se da vasta e com plexa teia regu latória qu e o Es-
tado Novo com eçou a tecer desde o seu in ício, n os an os 30 e m an teve es-
sen cialm en te até o fim , em parte com o u m a série de respostas pragm áti-
cas a problem as con ju n tu rais qu e iam su rgin do, e, em parte, com o resu l-
tado de u m a forte descon fian ça ideológica em relação aos m ecan ism os de
m ercado. Em con seqü ên cia e sob a capa de u m m u ito apregoado “estado
corporativo”, estabeleceram -se circu itos com erciais obrigatórios para
gran de n ú m ero de produ tos, fixaram -se preços e salários n u m largo âm -
bito produ tivo e com ercial e regu lou -se a im portação por via adm in istra-
tiva. No dom ín io in du strial em particu lar im plem en tou -se u m a política
altam en te in terven cion ista, “o con dicion am en to in du strial”, qu e con feria
às au toridades poderes discricion ários para licen ciar a criação de n ovos
estabelecim en tos, a reabertu ra e a expan são dos já existen tes e até a su bs-
titu ição dos respectivos m aqu in ism os. Os objetivos, oficialm en te, eram
diversos – corrigir os excessos de capacidade produ tiva, fom en tar econ o-
m ias de escala, im pu lsion ar a m odern ização tecn ológica, dim in u ir a de-
pen dên cia extern a – em bora n a prática o acen to ten h a estado em travar
a con corrên cia, lim itan do a en trada de n ovos produ tores ou de processos

258
CAUSAS HISTÓRICAS DO ATRASO ECONÔMICO PORTUGUÊS

n ovos n os diferen tes setores.40


Em algu n s aspectos, a in terven ção do Estado n a econ om ia poderá
ter sido ben éfica. Além de en corajadora do in vestim en to ao facilitar, por
m eio de práticas restritivas, com o já vim os, a realização de lu cros eleva-
dos e in cen tivar a su a aplicação produ tiva, o “con dicion am en to in du s-
trial” foi u m in stru m en to essen cial para a im plan tação de algu n s dos seto-
res m ais m odern os da in dú stria portu gu esa, qu e sem a garan tia de u m
m on opólio ou oligopólio e a proteção do seu m ercado provavelm en te n ão
teriam su rgido. Globalm en te, n o en tan to, os ju ízos são n egativos.41 As dis-
torções qu e os m ercados de produ tos e de fatores de produ ção sofreram
foram trem en dos, m u itos in teresses in stalados pu deram sobreviver sem
excessivas preocu pações de con corrên cia e logo de eficiên cia, perderam -
se os gan h os poten ciais de u m a m aior especialização e n eu tralizaram -se
in iciativas n ovas e a in trodu ção de m elh ores tecn ologias. O paradoxo des-
ta situ ação é a coexistên cia deste vasto e n ocivo en qu adram en to regu la-
tório com u m dos períodos m ais brilh an tes para a econ om ia portu gu esa
e a qu estão qu e ela provoca é saber qu an to do poten cial de crescim en to
se perdeu em virtu de de todas estas distorções e alocações m en os efica-
zes. Teria sido possível, com u m a organ ização econ ôm ica m ais liberal, fa-
zer ain da m elh or do qu e o já n otável desem pen h o con segu ido du ran te a
m aior parte do sécu lo XX?
As in vestigações sobre este e a m aioria dos tem as restan tes qu e se
rastrearam e an alisaram n este texto estão ain da em fase de todo in cipien -
te. Na qu estão do atraso econ ôm ico portu gu ês n o lon go prazo con tin u am
a ser m ais n u m erosas as lacu n as e os pon tos obscu ros do qu e as áreas com
respostas claras. No en tan to, o progresso feito du ran te os três ú ltim os de-
cên ios tem sido con siderável e en corajador de n ovos esforços. Assim , é de
esperar qu e den tro de m ais u m a década dispon h am os de u m a com preen -
são m u ito su perior à atu al de u m problem a qu e é cen tral n a h istória eco-
n ôm ica portu gu esa con tem porân ea.

259
Jaime Reis

N OTA S
1. REIS, J. How Poor Was th e Eu ropean Periph ery before 1850? In : XVII ENCONTRO DA AS-
SOCIAÇÃO PORTUGUESA DE HISTÓRIA ECONÔMICA E SOCIAL, 1997, Pon ta Delgada.
2. Não existe con sen so qu an to à expressão qu an titativa exata desta evolu ção. Ver: NUNES,
A. B., MATA, E., VALÉRIO, N., 1989; LAINS, P., REIS, J., 1991; LAINS, P., 1995. JUSTINO,
D. A evolu ção do Produ to Nacion al Bru to em Portu gal, 1850-1919 – Algu m as Estim ativas
Provisórias. Análise Social, p.451-611,1987.
3. TORTELLA, G., 1994, iden tificou com o “Mediterrân ica” esta cu rva em U represen tativa
do rácio en tre o produ to n acion al per capita e u m a m édia da m esm a variável em vários paí-
ses avan çados, u m a vez qu e ela esteve presen te em sim u ltân eo n ão só em Portu gal com o
n a Itália e n a Espan h a.
4. Estes dados, ain da n ão pu blicados, são tirados do trabalh o de L. AMARAL Is the Theory of
Convergence Useful for the Study of Growth in Portugal in the Postwar Period? Floren ça, 1997. (Mi-
m eogr.).
5. Ver, por exem plo, BIRMINGHAM, D. A Concise History of Portugal. Cam bridge: Cam brid-
ge Un iversity Press, 1993.
6. PEREIRA, M. H., 1983. Para u m a reafirm ação recen te destas idéias, ver, MIRANDA, S.
de. Portugal: o círculo vicioso da dependência (1890-1939). Lisboa: Teorem a, 1991.
7. GODINHO, V. M., 1975.
8. Ver JUSTINO, D., 1988-1989. Ver tam bém LAINS, P. Exportações Portu gu esas, 1850-
1913: a tese da depen dên cia revisitada. Análise Social, p.381-419, 1986.
9. Ver REIS, J. Latifú n dio e progresso técn ico: a difu são da debu lh a m ecân ica n o Alen tejo,
1860-1930. Análise Social, p.371-443, 1982.
10. Sobre este argu m en to, ver FONSECA, H. A., REIS, J. José Maria Eu gén io de Alm eida,
u m capitalista da regen eração. Análise Social, p.865-904, 1987. A citação é de SERRÃO, J.,
MARTINS, G. Da indústria: do An tigo Regim e ao capitalism o. Lisboa: Horizon te, 1978. p.32.
11. REIS, J., 1993.
12. Ibidem .
13. FONSECA, H. A., 1996.
14. Dados obtidos por SILVA, A. M. da. Desamortização e venda dos bens nacionais em Portugal
na primeira metade do século XIX . Coim bra: Facu ldade de Letras, 1989. Ver o argu m en to em
REIS, J., 1992.
15. LAINS, P.,1995.
16. MATA, E., 1990.
17. ESTEVES, R. P. O Crowdin g-Ou t em Portu gal, 1879-1910. In : XVII ENCONTRO DA AS-
SOCIAÇÃO PORTUGUESA DE HISTÓRIA ECONÓMICA E SOCIAL, 1997, Pon ta Delgada.
18. REIS, J., 1991.
19. O’ROURKE, K., WILLIAMSON, J. G. , 1997.
20. São vários e excelen tes os estu dos sobre o tem a da em igração portu gu esa. Ver PEREI-
RA, M. H. A política portuguesa de emigração, 1850-1930. Lisboa: A Regra do Jogo, 1981. BA-
GANHA, M. Portuguese Emigration to the United States, 1820-1930. Nova York: Garlan d, 1990.
LEITE, J. C. Portu gal an d Em igration , 1855-1914. Tese (Dou toram en to) – Un iversidade de
Colu m bia, 1993. ALVES, J., 1994.
21. Um prin cípio de discu ssão sobre este tem a en con tra-se em HATTON, T. J., WILLIAM-
SON J. G. Late Com ers to Mass Em igration . Th e Latin Experien ce. In :___. Migration in the
International Labour Market, 1850-1939. Lon don : Rou tledge, 1994.
22. SCHWARTZMAN, K., 1989.

260
CAUSAS HISTÓRICAS DO ATRASO ECONÔMICO PORTUGUÊS

23. A fomação do espaço econômico nacional, con clu são.


24. A economia portuguesa no século XIX .
25. LONG, J. B. de. Produ ctivity Growth , Con vergen ce an d Welfare: A Com m en t. American
Economic Review , p.1138-54, 1988.
26. REIS, J., 1992.
27. A in form ação estatística é relativam en te abu n dan te para este período e pode ser con su l-
tada em NEVES, J. C. das, 1994. PINHEIRO, M. et a1., 1997. BATISTA, D. et al., 1998.
28. RIBEIRO, J. M. F. et al. Gran de in dú stria, ban ca e gru pos fin an ceiros. Análise Social,
p.945-1018, 1987.
29. BAGANHA, M. I. B., 1994.
30. NEVES., J. C. das,1994. p.72-90; AMARAL, L., op. cit., 1997.
31. Ver REIS, J., 1992. Texto em qu e é explicitada a con stru ção deste ín dice.
32. Citado por Neves, J. C. das, 1994, p.136.
33. Ver, respectivam en te, Nu n es, A. B., Edu cation an d Econ om ic Growth in Portu gal: A
Sim ple Regression Approach . Estudos de Economia, p.181-205, 1993, e AMARAL, L., op. cit.,
1997.
34. CONFRARIA, J. Desenvolvimento econômico e política industrial. A economia portuguesa no pro-
cesso de integração européia. Lisboa: Un iversidade Católica Portu gu esa, 1995. p.80.
35. Sobre a h istória ban cária dos an os 50 existe u m estu do valioso, m as por en qu an to pou -
co se sabe sobre o período segu in te. Ver SÉRGIO, A., 1995.
36. Sobre os Plan os de Fom en to, ver o artigo respectivo em ROSAS, F. & BRITO, J. M. B. de,
1996.
37. MATOS, L. S. de. Investimentos estrangeiros em Portugal. Lisboa: Seara Nova, 1973.
38. LOPES, J. S., 1996, p.236.
39. LAINS, P. O Estado e a in du strialização em Portu gal, 1945-1990. Análise Social, p.943,
1994.
40. CONFRARIA, J., 1992.
41. NEVES, J. C. das, 1994, p.66. BRITO, J. M. de, 1989; LOPES, J. S., 1996; CONFRARIA,
J. Desenvolvimento econômico e política industrial. cap. IV p.21 e 185.

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Jaime Reis

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263
capítu lo 14

JACOBINOS, LIBERAIS E
DEMOCRATAS NA EDIFICAÇÃO DO
PORTUGAL CONTEMPORÂNEO
Am adeu Carvalh o Hom em *

D E COMO UM REINO À DERIVA PROCURA RESGATAR-SE

As três in vasões fran cesas qu e assolaram Portu gal en tre 1807 e


1810 foram a resposta en con trada por Napoleão Bon aparte para im por
aos govern an tes portu gu eses a obediên cia à in tim ação do “bloqu eio con -
tin en tal”, a cu jas con seqü ên cias eles se tin h am procu rado fu rtar, recor-
ren do a m an obras dilatórias. Logo qu e o exército de Ju n ot, n a prim eira
in vasão, ch egou às portas de Lisboa, a fam ília real, os n obres m ais repre-
sen tativos e as altas dign idades eclesiásticas em barcaram apressadam en te
para o Brasil. Sob a in stigação da In glaterra, abriram -se sem reservas os
portos brasileiros ao com ércio in tern acion al, o qu e represen tou a qu ebra
do sistem a do “pacto colon ial” e o correspon den te declín io da h egem on ia
m etropolitan a. No plan o cu ltu ral e ideológico, a ocu pação m ilitar in cre-
m en tou a difu são das “idéias fran cesas”, qu e já n o decu rso do rein ado de
D. Maria I tin h am sido objeto de cerrada persegu ição por parte da reale-
za. O exército portu gu ês, com pletam en te desorgan izado, n ão poderia
opor qu alqu er resistên cia ao avan ço das tropas fran cesas. Assim , foi soli-
citado à Grã-Bretan h a o n ecessário apoio bélico, o qu al se tradu ziu pelo
en vio de con tin gen tes m ilitares e de algu n s oficiais de en qu adram en to.
En tre estes, destacou -se especialm en te a figu ra de William Carr Beresford,
cu jo ascen den te n a govern ação perdu rou m u ito para além do período
con creto das in vasões.
O aprofu n dam en to da crise econ ôm ica, com bin an do-se com a in su -
portável h egem on ia do estran geiro Beresford e com o desejo, u n iversal-
m en te partilh ado pelos portu gu eses, de ver regressar a corte, alim en tará
u m u n iverso de preven ções e descon ten tam en tos, pron tos a m an ifestar-se
n o m om en to m ais oportu n o. A ch am ada “con spiração” de Gom es Freire de
An drade, ocorrida em 1817 e pu n ida com o en forcam en to dos im plicados,
prefigu ra já o m ovim en to revolu cion ário de 24 de Agosto de 1820, qu e in i-
cia em Portu gal o com plexo processo da afirm ação do liberalism o. A revo-
lu ção vin tista foi preparada n o âm bito do “Sin édrio” portu en se, con clave

265
Amadeu Carvalho Homem

secreto ch efiado por Man u el Fern an des Tom ás. A form ação ju rídica do
ch efe do “Sin édrio” con du ziu -o a estu dar o travejam en to con stitu cion al de
algu m as repú blicas da Am érica do Su l e a n u trir especial adm iração pela
person alidade em blem ática de Sim ão Bolívar. Fern an des Tom ás com eçou
por cooptar ou tros colegas ju ristas, com o Ferreira Borges e Silva Carvalh o,
com qu em se dedicou ao estu do da decaden te situ ação in tern a do país.
Logo con clu íram , porém , qu e deveriam passar de an álises acadêm icas a
form as m ais decisivas de in terven ção. O “Sin édrio” abriu -se en tão a perso-
n alidades m ilitares igu alm en te descon ten tes e en cam in h ou -se decidida-
m en te para a atividade con spiratória. Porém , n ão era com pleto o acordo
en tre ju ristas e m ilitares. Aqu eles opin avam qu e a im posição do regresso da
Corte ao rein o deveria ser com plem en tada com profu n das tran sform ações,
de teor liberal, a serem in trodu zidas n o fu tu ro orden am en to ju rídico-con s-
titu cion al; para os m ilitares, con tu do, a revolu ção esgotar-se-ia com o cu m -
prim en to da obrigação de retorn o por parte de D. João VI e dos seu s fam i-
liares. Man obran do h abilm en te, Man u el Fern an des Tom ás con segu irá im -
prim ir à revolu ção, desen cadeada n o Porto em 24 de agosto e secu n dada
em Lisboa em 15 de setem bro de 1820, u m sign ificado liberal e con stitu cio-
n alista bem eviden te. Eleito u m Soberan o Con gresso Con stitu in te e redigi-
das as “bases” da fu tu ra con stitu ição, parecia estar escon ju rado, n o essen -
cial, o risco da m an u ten ção do An tigo Regim e.
D. João VI regressou a Portu gal acom pan h ado por su a m u lh er, a
rain h a D. Carlota Joaqu in a, e pelo seu filh o, o in fan te D. Migu el. Deixa-
ra n o Brasil, exercen do u m a regên cia em seu n om e, o seu ou tro filh o
m ais velh o, D. Pedro. Os regressados adotarão atitu des m u ito diferen tes
qu an to à im posição revolu cion ária do ju ram en to das “bases” con stitu cio-
n ais. D. João VI, con trafeito m as tem eroso, su bm ete-se ao im perativo dos
revoltosos. Pelo con trário, D. Carlota Joaqu in a e D. Migu el n egam -se a
fazê-lo, con stitu in do-se ch efes de fila da reação an tiliberal e in cen tivan -
do algu n s expoen tes do alto clero e da n obreza a adotarem posições igu al-
m en te rebeldes. A en trada em vigor da Con stitu ição de 1822, a declara-
ção u n ilateral da in depen dên cia do Brasil e o falecim en to de Fern an des
Tom ás são acon tecim en tos cron ologicam en te próxim os. O legitim ism o
jogará a su a cartada sediciosa por m eio dos golpes da “Vilafran cada”
(1823) e da “Abrilada” (1824), am bos execu tados por D. Migu el, m as en -
corajados pela rain h a su a m ãe. O pron u n ciam en to de Vila Fran ca su spen -
de a vigên cia da Con stitu ição; por seu tu rn o, o golpe de abril obriga D.
João VI a im por ao seu filh o a expu lsão do Rein o, sob o pretexto de u m a
vilegiatu ra por países eu ropeu s, para alegadam en te com pletar a su a ilu s-
tração. Com o falecim en to do m on arca rein an te in stala-se viru len tam en -
te a discu ssão dos direitos su cessórios. A corren te legitim ista advoga qu e
o tron o seja en tregu e a D. Migu el, aten den do ao fato de os direitos de pri-

266
JACOBINOS, LIBERAIS E DEMOCRATAS NA EDIFICAÇÃO DO PORTUGAL CONTEMPORÂNEO

m ogen itu ra terem cadu cado a partir do m om en to da en tron ização de D.


Pedro com o im perador do Brasil; a corren te liberal bate-se pela observân -
cia das praxes tradicion ais da su cessão, as qu ais im plicavam a en trega da
coroa ao filh o m ais velh o, su gerin do vagam en te a con federação de Por-
tu gal e do Brasil. O perigo da gu erra civil, de cu ja im in ên cia n in gu ém du -
vidava, pareceu afastado qu an do D. Pedro abdicou do tron o portu gu ês a
favor da su a filh a D. Maria da Glória, desde qu e D. Migu el aceitasse des-
posar a in fan ta su a sobrin h a, fu tu ra rain h a de Portu gal, e se pron tificas-
se a observar o articu lado de u m a Carta Con stitu cion al, ou torgada pelo
en tão im perador do Brasil.
Este arrazoado factu al perm ite-n os con textu alizar a origem con sti-
tu cion al bicéfala do n osso liberalism o, qu e se n os an tolh a com o u m a das
ch aves fu n dam en tais para a com preen são da con tem poran eidade portu -
gu esa. Com efeito, a Con stitu ição de 1822 irá in au gu rar u m a tradição de
radicalism o, do m esm o m odo qu e a Carta Con stitu cion al de 1826 será re-
con h ecida com o o diplom a em qu e se irão rever os liberais con servado-
res. Do pon to de vista da su a gên ese, a prim eira reveste o cariz de u m a
im posição revolu cion ária, u n ilateralm en te im posta ao soberan o. A se-
gu n da, ao con trário, resu lta de u m ato de m u n ificên cia régia qu e desde
logo lh e dim in u i o sign ificado tran sform ador. En qu an to a Con stitu ição
con sagra abertam en te o prin cípio da soberan ia n acion al, a Carta recon h e-
ce n a figu ra do rei o depositário e o garan te do travejam en to do Estado.
O diplom a de 1822 prevê u m a divisão tripartida de poderes e, redu zin do
o m on arca à su a sim ples expressão sim bólica, sin gu lariza a Câm ara dos
Depu tados com o o eixo decisivo da vida política. A Carta Con stitu cion al
de 1826 con fere ao poder m oderador, iden tificado com a potestade rea-
len ga, u m a fu n ção arbitral e cen sória sobre os restan tes poderes, qu e as-
sim lh e ficam su bm etidos. En qu an to o poder legislativo se en con tra ex-
clu sivam en te com etido, n os term os da Con stitu ição de 1822, à represen -
tação dos depu tados eleitos, esse m esm o poder partilh a-se, n o caso da
Carta Con stitu cion al de 1826, en tre a Câm ara dos Depu tados e a Câm a-
ra dos Pares, sen do esta ú ltim a de n om eação régia. En qu an to, n os term os
da Con stitu ição, o m on arca dispõe de u m sim ples direito de veto su spen -
sivo em relação às in iciativas legislativas, este veto con verte-se em abso-
lu to n o clau su lado da Carta. Fin alm en te, a filosofia do diplom a vin tista
afasta-se do su frágio cen sitário previsto n o texto con stitu cion al de 1826 e
defin e u m m odelo de participação política qu e n ão se en con tra su bm eti-
do à am plitu de do patrim ôn io dos votan tes poten ciais. Estas n otórias di-
feren ças situ am a Con stitu ição de 1822 n o terren o qu e perm itirá a desen -
volu ção do civilism o in dividu alista, o qu al se perfila n os an típodas da su b-
m issão dos sú ditos à soberan ia real.

267
Amadeu Carvalho Homem

A CA MIN HO D A MOD ERN IZA ÇÃ O POSSÍVEL

O período qu e se escoa en tre a im posição de D. Migu el com o rei


absolu to (1828) e a vitória liberal, alcan çada após u m in certo in terregn o
de gu erra civil e con sagrada pela Con ven ção de Évora-Mon te (1834) n ão
favoreceu a explicitação da clivagem prefigu rada n os dois textos con stitu -
cion ais, u m a vez qu e vin tistas e cartistas in tegravam por igu al, para os se-
qu azes do absolu tism o m igu elista, a pestilen ta “cáfila de pedreiros livres”
qu e u rgia esm agar in distin tam en te. As discordân cias qu e se m an ifesta-
ram n o cam po liberal du ran te as lu tas civis – en tre Palm ela e Saldan h a,
por exem plo – tradu zem fu n dam en talm en te u m a dispu ta de cau dilh os
em bu sca de h egem on ias pessoais e n ão são o corolário de in con ciliáveis
propostas ideológico-políticas. É certo qu e o com an do m ilitar e estratégi-
co do con tra-ataqu e liberal com petiu a D. Pedro, o “dador” da Carta
Con stitu cion al, após este ter sido forçado a abdicar do tron o im perial bra-
sileiro. Mas a u n idade das h ostes liberais n ão foi pertu rbada por esse fa-
to, já qu e o tem or de u m a even tu al vitória absolu tista fu n cion ou com o o
cim en to agregador das du as sen sibilidades, as qu ais só m ais tarde dispu -
tariam en tre si a prim azia. Se o triu n fo liberal sign ificou a vitória da cor-
ren te cartista, n ão é m en os certo qu e a m em ória da Con stitu ição de 1822
n ão perm itirá qu e esse cartism o se estabilize em defin itivo. Até 1851, o
liberalism o radical pertu rbará, a espaços, a tôn ica con servadora do libera-
lism o in stalado, por m eio da eclosão de su rtos revolu cion ários periódicos.
O an acron ism o das estru tu ras econ ôm icas e sociais e a literal in e-
xistên cia em Portu gal de relações capitalistas de produ ção, distribu ição e
con su m o obrigavam a profu n das m odificações ju rídicas, a fim de qu e se
pu dessem pu lverizar as peias qu e tipificavam o An tigo Regim e. O prin cí-
pio da liberdade n egocial pressu pu n h a u m a isonomia ou igu aldade peran -
te a lei qu e n ão era con tem plada pelas form ações econ ôm icas tradicio-
n ais. A obra legislativa de Mou zin h o da Silveira, depois aprofu n dada e
prossegu ida por Joaqu im An tôn io de Agu iar, dará com bate aos m ecan is-
m os tradicion ais de con cen tração e im obilização da riqu eza. E com o esta
residia basicam en te n a fixação e im obilização do patrim ôn io fu n diário, as
m edidas de Mou zin h o visaram à libertação da terra, até aí vin cu lada a
m orgadios aristocráticos ou a terraten ên cias detidas por orden s religiosas.
É certo qu e esta política desam ortizadora n ão erradicou de u m a vez por
todas a con cen tração fu n diária, n em extin gu iu totalm en te os dispositivos
qu e lh e serviram de su porte. Os vín cu los do m orgadio, por exem plo, su b-
sistiram para lá da própria Con ven ção de Évora-Mon te. Mas Mou zin h o
da Silveira in au gu rou u m a ten dên cia libertadora qu e atin girá o seu au ge,
já depois de alcan çada a vitória liberal, com a in corporação n o dom ín io
pú blico, n os “Próprios Nacion ais”, do vasto patrim ôn io aristocrático-abso-

268
JACOBINOS, LIBERAIS E DEMOCRATAS NA EDIFICAÇÃO DO PORTUGAL CONTEMPORÂNEO

lu tista e clerical e com a su a su bseqü en te ven da em h asta pú blica. Esta


tran sferên cia de propriedade, origin an do a criação de u m a n ova casta de
terraten en tes diretam en te ben eficiados pela tran sform ação social em cu r-
so, garan tiu à m on arqu ia con stitu cion al a reserva de apoios qu e lh e era
im prescin dível para o seu recon h ecim en to e u lterior sobrevivên cia.
O prim eiro con fron to qu e ocorreu , após a vitória liberal, en tre a
sen sibilidade n eovin tista de teor radicalizan te e a sen sibilidade cartista,
doravan te iden tificada com os m ais diretos ben eficiários da m on arqu ia
con stitu cion al in stalada, foi o da revolu ção de setem bro de 1836. Os seu s
prin cipais m en tores, Man u el da Silva Passos e José da Silva Passos, su bor-
din avam -se a u m a eviden te in spiração de ten dên cia dem ocrática. Não
obstan te o azedu m e da Corte, tradu zida n o qu alificativo com qu e aí era
tratado Man u el Passos – o “rei Passos” – do qu e se tratava era de “cercar
o tron o de in stitu ições repu blican as”. Mas este radicalism o revolu cion á-
rio só vin gou episodicam en te qu an do plasm ou n a Con stitu ição de 1838 a
eqü idistân cia en tre o vin tism o e o cartism o. Apesar disso, o setem brism o
foi apodado de dem agógico e os seu s ch efes apon tados com o agitadores
das tu rbas in scien tes. Iron icam en te, cou be a u m dem agogo de cepa, An -
tón io Bern ardo da Costa Cabral, a m issão de su focar, com o aplau so do
Paço, a breve experiên cia dos govern os setem bristas. Mais do qu e o retor-
n o à con stitu cion alidade cartista, o cabralism o assu m irá o sign ificado de
u m a prática ven al, m an iqu eísta e person alista n o desem pen h o do poder.
As persegu ições aos adversários políticos, as grosseiras violações das pra-
xes eleitorais, o alastram en to do favoritism o e da corru pção e a proteção
descom edida dispen sada por D. Maria II ao seu valido determ in aram qu e
o cabralism o tivesse perm an ecido com o u m a m em ória pou co edifican te
da h istória con tem porân ea portu gu esa. Recon h eça-se, con tu do, o seu lar-
go lequ e de in iciativas de fom en to e as realizações m ateriais qu e en tão fo-
ram levadas à prática.
O excessivo rigor das pesadas cargas tribu tárias a qu e Costa Cabral
teve de recorrer exacerbaram os protestos popu lares. E estes recru desce-
ram ain da m ais qu an do a m en talidade religiosa popu lar se viu atacada
por u m a legislação qu e preten dia in stitu cion alizar os en terram en tos em
cem itérios, qu ebran do a tradição das in u m ações n o solo sagrado dos tem -
plos. Ocorrem en tão os m otin s plebeu s da Maria da Fonte (1846), con glo-
ban do n u m a vasta fren te de con testação in dividu alidades setem bristas,
elem en tos do clero u ltram on tan o e de setores afeitos ao absolu tism o m i-
gu elista. Dada a su a flu idez ideológica, parece ser im possível filiar este
protesto n o veio do n eovin tism o. Porém , é já u m a van gu arda liberal, co-
n otada com o radicalism o, qu e criará n o an o segu in te u m a rede de ju n -
tas políticas locais in cen tivadoras da su blevação da Patuléia. Este m ovi-
m en to revolu cion ário virá a ser travado m edian te o pedido de au xílio de

269
Amadeu Carvalho Homem

D. Maria II a potên cias estran geiras, ao qu al se segu iu u m a in terven ção


m ilitar qu e fru strou defin itivam en te as in ten ções dos pata ao léu .
A con figu ração social do liberalism o portu gu ês apresen ta-n os u m
rem an escen te de recorrên cias h istóricas qu e ilu dem os pressu postos de
m odern ização e de ru ptu ra qu e seria legítim o esperar. Pesava sobre o país
u m a forma mentis e u m trilh o de h ábitos com portam en tais qu e só a in te-
riorização de valores bu rgu eses avan çados, solidam en te firm ados n a livre
in iciativa em presarial, poderiam tran sform ar. Mas essa m odificação de
con teú dos de con sciên cia e de práticas de ação n ão foi alcan çada. É certo
qu e a com pra de “ben s n acion ais” pela n ova bu rgu esia ascen den te pode-
ria teoricam en te forn ecer-lh e os m eios m ateriais adequ ados à profu n da
reform u lação da realidade social. Con tu do, este n ovo estrato h egem ôn i-
co estabilizará o seu qu erer em con cordân cia com m odelos cadu cos. Em
term os su bstan ciais, as von tades de afirm ação in dividu al n ão diferiam
m u ito das qu e se h aviam expressado n a sociedade pré-liberal. A n ova
bu rgu esia liberal aspirava à n obilitação, m an tin h a u m ideal de riqu eza
predom in an tem en te cen trado n os ben s fu n diários, especu lava im produ -
tivam en te, am arrava-se o m elh or qu e podia aos n ich os da adm in istração
pú blica e con servava sob su speita o valor da in iciativa in dividu al, já en -
tão decididam en te vitoriosa n as paragen s eu ropéias m ais desen volvidas.
O qu e o liberalism o sign ificou , n o exterior, de libertação de forças produ -
tivas, cristalizou , em Portu gal, n o m odesto cadin h o de u m a sim ples tran s-
ferên cia de títu lo de propriedade. Desta m an eira, a triu n fan te sociedade
liberal sedim en tou -se ao redor de n obilitados bu rgu eses, n a m aior parte
dos casos de fresca data, os qu ais am bicion aram para si e para os seu s des-
cen den tes u m n ich o segu ro e garan tido n o exército dos servidores do Es-
tado. Alh eios a qu alqu er tradição de in iciativa econ ôm ica particu lar e
m olecu larm en te refratários ao risco dos n egócios, estes u su fru tu ários do
con servadorism o cartista procu raram as posições m ais con fortáveis n o
pequ en o m u n do da adm in istração pú blica. Fizeram -se caciqu es e “n otá-
veis locais” em razão de su a com provada in capacidade de se fazerem em -
presários capitalistas de vistas largas.
Em 1851, com a revolu ção da Regen eração, in iciou -se em Portu gal
a experiên cia do capitalism o possível. Mas este pou co se assem elh ará aos
su rtos de desen volvim en to econ ôm ico in du strial levados a cabo pela Eu ro-
pa tran spiren aica. A dim en são predom in an tem en te ru ralista da econ om ia
portu gu esa, associada a toda a sorte de atavism os e recorrên cias m en tais,
torn aram in evitável o protagon ism o estatal qu an do se tratou de im prim ir
din am ism o ao m ercado in tern o. É bom qu e se diga qu e este m ercado m al
se esboçava por altu ras de 1851. Por isso é qu e a revolu ção regen eradora
de Rodrigo da Fon seca Magalh ães e de Saldan h a esgotará a su a eficácia n a
criação de in fra-estru tu ras m ateriais, n ão se abalan çan do a ou tras ou sadias.

270
JACOBINOS, LIBERAIS E DEMOCRATAS NA EDIFICAÇÃO DO PORTUGAL CONTEMPORÂNEO

O in térprete m ais qu alificado do program a da Regen eração foi Fon tes Pe-
reira de Melo. O fon tism o tradu ziu -se, portan to, n u m a política de “m elh o-
ram en tos m ateriais” ou de obras pú blicas. Estas foram qu ase exclu siva-
m en te su portadas pelos cofres oficiais, em razão da in existên cia de u m a
bu rgu esia forte e em preen dedora. Mas com o o erário pú blico era an êm ico,
teve qu e recorrer por sistem a ao crédito extern o. Foi com libras esterlin as
pedidas de em préstim o à praça de Lon dres qu e se su priu a rarefação dos
m eios creditícios n acion ais. Assim , a obra de fom en to liberal origin ou o
crescim en to in con trolável da dívida pú blica e o desequ ilíbrio crôn ico da ba-
lan ça de pagam en tos. O serviço da dívida, aliado à pressão dos credores ex-
tern os, ditará os gravosos term os da política tribu tária levada a efeito pelos
su cessivos govern os regen eradores. A correlação qu e forçosam en te se esta-
beleceu en tre o volu m e dos em préstim os e a carga in tern a dos im postos
explica a próxim a eclosão de crises sociais, qu e vitim arão sobretu do os es-
tratos popu lacion ais de ren dim en tos m ais débeis. A filosofia de tribu tação
dos govern os regen eradores segu iu os trilh os da ortodoxia liberal, u m a vez
qu e recorreu à gam a dos im postos in diretos, in ciden tes sobre o con su m o,
e evitou on erar os ren dim en tos gerados pelos capitais privados. Ficou para
a h istória o ju ízo em itido por Fon tes Pereira de Melo, qu an do o con fron ta-
ram com as reclam ações dos setores sociais m ais fragilizados pelo agrava-
m en to tribu tário: “O povo pode e deve pagar m ais”.
A partir de 1851, o Partido Regen erador açam barcou os lu gares de
represen tação política e redu ziu a tradição n eovin tista e setem brista a
com parsas m en ores da realidade rotativa. Nu m a prim eira fase dessa prá-
tica rotativa, a oposição ao con servadorism o cartista será debilm en te de-
sem pen h ada pelo Partido Histórico do Marqu ês de Lou lé. Mas era u m tão
fraco con traste en tre am bos qu e em 1865 foi possível organ izar u m “ga-
bin ete de fu são”, n o qu al regen eradores e h istóricos con vivem placida-
m en te. A con testação ao “fu sion ism o” partirá de u m setor de partidários
“h istóricos” qu e, clam an do por reform as, con sideraram espú ria e an tin a-
tu ral a coligação “fu sion ista” qu e n asceu deste diverso m odo de ver a pa-
tru lh a partidária do Reform ism o.
A revolu ção espan h ola de 1868 e o dram a san gren to da Com u n a
de Paris de 1871 virão a ser os in spiradores diretos de altern ativas exte-
riores à lógica da m on arqu ia, m edian te a u lterior fu n dação dos partidos
repu blican o e socialista. Den tro do cam po m on árqu ico, porém , foi a in e-
gável prim azia do Partido Regen erador qu e forçou à u n ificação das forças
qu e lh e eram opon en tes. O Pacto da Gran ja de 1876 u n iu os “reform is-
tas” de D. An tón io Alves Martin s, bispo de Viseu , e os “h istóricos” ch efia-
dos por An selm o Braam cam p, fazen do n ascer o Partido Progressista e
in au gu ran do o ch am ado “segu n do rotativism o”. O com prom isso da
Gran ja apresen tava as m elh ores poten cialidades para qu e o n ovo partido

271
Amadeu Carvalho Homem

pu desse vir a in terpretar os an seios do liberalism o radical, u m a vez qu e o


seu program a ou sava situ ar-se n a lin h a de con tin u idade h istórica qu e en -
carecia os n om es de u m Man u el Fern an des Tom ás, de u m Man u el Passos
ou de u m Joaqu im An tôn io de Agu iar. Mas o desen can to provocado pela
su a govern ação, qu an do alcan çou o poder, sin gu larizou o repu blican ism o
com o a ú n ica força ideológica su scetível de recolh er o legado da tradição
vin tista, setem brista e “patu léia”.

B REVE N OTA SOBRE A PROPOSTA REPUBLICA N A

Acan ton ado defen sivam en te n u m pequ en o n ú m ero de cen tros m i-


litan tes, n u m ericam en te rarefeitos, sediados em Lisboa, n o Porto e em
Coim bra, o repu blican ism o do decên io de 70 apresen ta-n os du as corren -
tes program áticas: a do federalism o (Teófilo Braga, Carrilh o Videira, Tei-
xeira Bastos, Silva Lisboa etc.) e a do u n itarism o dem ocrático (José Elias
Garcia, Bern ardin o Pin h eiro, Gilberto Rola etc.). En qu an to perdu raram
as su gestões revolu cion árias vin das da Fran ça e sobretu do de Espan h a, o
federalism o portu gu ês desen volveu a su a propagan da em efêm eros ór-
gãos da im pren sa periódica ( O Rebate, A República Federal). Na lin h a das
dou trin as de Pi y Margall, de Em ílio Castellar, de Eu gèn e Varlin e qu ejan -
dos, os federalistas bateram -se pela descon cen tração das riqu ezas priva-
das, pela ch efia colegial da fu tu ra federação repu blican a, pelo m an dato
im perativo dos represen tan tes parlam en tares e pela descen tralização ad-
m in istrativa e territorial. Com o esm agam en to da Com u n a de Paris e o
alu im en to da repú blica espan h ola de 1873, o federalism o en tra em retro-
cesso e tran sfere a h egem on ia para a corren te u n itária. Esta prescin de da
tôn ica socializan te glosada pelo federalism o, alijan do tam bém os tem as da
ch efia coletiva do Estado, do m an dato im perativo e da descen tralização.
O seu eixo referen cial passará a ser o da dign ificação e am pliação do su -
frágio, ten den cialm en te dirigido à su a u n iversalização. A par disto, pre-
ten de-se tam bém racion alizar o sistem a econ ôm ico vigen te e reforçar a
cidadan ia, com a con sagração dos direitos, liberdades e garan tias in divi-
du ais, tidos com o falseados n a in terpretação restritiva do con stitu cion a-
lism o m on árqu ico. A n ovidade trazida pelo repu blican ism o ao liberalis-
m o portu gu ês oitocen tista será a de lh e aditar a n ota dem ocrática con -
su bstan ciada n a reclam ação do su frágio u n iversal. A ideologia repu blica-
n a n ão preten deu m u dar a n atu reza econ ôm ica do liberalism o. Con ten -
tou -se em precon izar qu e a ortodoxia cen sitária do sistem a evolu ísse po-
liticam en te n u m sen tido dem oliberal. É isto qu e explica a vocação eleito-
ralista da prim eira propagan da repu blican a. Os cen tros do repu blican is-
m o u n itário apresen tavam -se com o verdadeiras escolas de civism o eleito-

272
JACOBINOS, LIBERAIS E DEMOCRATAS NA EDIFICAÇÃO DO PORTUGAL CONTEMPORÂNEO

ral, in sistin do n o aspecto pedagógico da propagan da a ser realizada. Con -


victos da su a expressão m in oritária e u rban a, os repu blican os desta gera-
ção preten deram en sin ar aos seu s destin atários os ru dim en tares valores e
as básicas n oções da su a cren ça m atricial. Fizeram -n o cien tes da esm aga-
dora expressão do an alfabetism o popu lar, o qu al atin gia porcen tagen s es-
can dalosas n os m eios ru rais. Era u m ideal dem opédico qu e se en con tra-
va sem pre presen te n os com ícios, n as con ferên cias proferidas em associa-
ções popu lares, n os folh etos de divu lgação e até n os préstitos com em ora-
tivos – com o o qu e se realizou , por exem plo, n a festividade do tricen te-
n ário de Cam ões, celebrado em 1880. A in ten ção de difu n dir às m assas
ign aras ru dim en tos de cu ltu ra político-social su ficien tem en te acessíveis,
deu origem a broch u ras redigidas em lin gu agem in gên u a. Estão n este
caso a Cartilha do Povo, de José Falcão, e o Catecismo Republicano para uso
do Povo, de au toria de Carrilh o Videira e de Teixeira Bastos. Um a ou tra ra-
zão, de ín dole filosófica, con feria a este su rto propagan dístico a su a n ota
de pedagogism o pacífico. Referim o-n os à relevân cia assu m ida pelo posi-
tivism o n a m en talidade dos ch efes repu blican os dos decên ios de 70 e de
80. Tan to Au gu sto Com te com o Em ílio Littré propu n h am u m a filosofia de
desen volvim en to h istórico regido pela fam osa “lei dos três estados”. A h u -
m an idade tran sitaria de u m in icial estado m en tal teológico para u m defi-
n itivo estado m en tal positivo ou cien tífico, por m eio da m ediação provisó-
ria de u m estado m en tal m etafísico. O term o fin al da evolu ção con fu n dia-
se, em term os políticos, com o adven to da repú blica. Im perava assim , n o
evolver h istórico, u m determ in ism o rígido, o qu al postu lava a n ecessida-
de in trín seca do triu n fo dem ocrático. Assim se en ten de qu e esta geração
repu blican a, em balada pela can tata positivista, qu e lh e reforçava a credu -
lidade n a in evitabilidade do resu ltado fin al, se ten h a fixado n as fórm u las
da propagan da ordeira, pacífica, pedagógica e evolu cion ista. Do qu e se tra-
tava, afin al, era de elevar a sociedade n éscia à altu ra do esclarecim en to so-
ciológico. Um a vez qu e esta em presa tivesse sido realizada, a Repú blica
su rgiria fatalm en te, qu al fru to am adu recido e pron to a ser colh ido.

O SONHO IMPOSSÍVEL DE UM NOVO BRASIL NA ÁFRICA:


O ULTIMATO INGLÊS DE 1890 E OS SEUS EFEITOS

A bon an ça em qu e vogava o Partido Regen erador com eçou a ser


pertu rbada pelo efeito de con ten ciosos colon iais m an tidos com a Grã Bre-
tan h a. As preten sões in glesas à ilh a de Bolam a e à baía de Lou ren ço Mar-
qu es foram resolvidas a favor de Portu gal, respectivam en te em 1870 e
1875, por sen ten ças arbitrais proferidas pelos presiden tes Ulisses Gran t,
dos Estados Un idos da Am érica, e Mac-Mah on , da Fran ça. Mas as crises

273
Amadeu Carvalho Homem

de sobreprodu ção in du strial com qu e a Eu ropa desen volvida se debateu


a partir de m eados do sécu lo acicataram projetos de colon ização sistem á-
tica das plagas african as, ten do em vista a obten ção de m ercados altern a-
tivos para o escoam en to dos stocks paralisados. A Eu ropa m ercan til pres-
tara especial aten ção às deam bu lações realizadas por David Livigston e en -
tre 1840 e 1873 ao lon go do Zam beze e n as regiões do Niassa e do Tan -
gan ica. As descobertas das jazidas de diam an tes de Kim berley, em 1867,
e das m in as de ou ro do Tran svaal, em 1885, torn aram im parável o m ovi-
m en to de “corrida à África” e despertaram in su speitadas vocações colo-
n ialistas. Alcan çado o protetorado da Tu n ísia, a Fran ça procu rava trazer à
su a órbita de in flu ên cia o cen tro equ atorial african o. O rei Leopoldo II da
Bélgica, acolitado pelo jorn alista am erican o Stan ley, procu rou in stitu cio-
n alizar o Estado-Livre do Con go. O ch an celer alem ão Bism arck con cedeu
cobertu ra a associações colon iais fin an ciadas por capitais privados, procu -
ran do firm ar-se n o su doeste african o, n a África orien tal, n o Togo e n os
Cam arões. A In glaterra con segu ira libertar-se da parceria fran cesa n o pro-
tetorado do Egito e in stalara-se n a colôn ia do Cabo. O n egocian te e aven -
tu reiro Cecil Rh odes, qu e fu n cion ava com o u m verdadeiro agen te da Rai-
n h a Vitória, pression ou a ch an celaria britân ica para a m aterialização do
plan o de con stru ção de u m a via férrea qu e pu desse u n ir o Cabo ao Cai-
ro, oferecen do ao m ercan tilism o in glês o tu tan o das riqu ezas e m atérias-
prim as do con tin en te n egro. Era previsível, portan to, a eclosão de con fli-
tos in tern acion ais, gerados por preten sões colon ialistas con corren tes. No
tratado lu so-britân ico de Lou ren ço Marqu es, firm ado em 1879, a In gla-
terra era leon in am en te favorecida por u m a paridade con dom in ial qu e ja-
m ais ela pu dera alcan çar pela arbitragen s. A reação n acion alista aos ter-
m os do con vên io foi protagon izada em Portu gal pela opin ião repu blica-
n a, sobretu do pela criação dos jorn ais O Século e O Trinta. Assim , os in ícios
dos an os 80 acrescen tarão aos m otes con ven cion ais da argu m en tação
an tim on árqu ica o tem a, torn ado proverbial, da in cú ria e da in com petên -
cia do govern am en talism o régio relativam en te à m an u ten ção e desen vol-
vim en to do patrim ôn io colon ial portu gu ês.
As potên cias colon iais proem in en tes procederão à defin ição de n o-
vos critérios de apropriação colon ialista n o decorrer da Con ferên cia de
Berlim (fin s de 1884 – in ícios de 1885), realizada com o patrocín io de Bis-
m arck. Se até en tão h avia vigorado o prin cípio da prioridade da descober-
ta e a vaga n oção das “zon as de in flu ên cia”, a partir de agora irá exigir-se
u m a efetiva ocu pação territorial. Era u m a exigên cia in com portável para
a an em ia fin an ceira do Estado portu gu ês, visto qu e a fatu ra dos “m elh o-
ram en tos m ateriais” regen eradores se apresen tava cada vez m ais pesada.
Por ou tro lado, o período qu e m ediou en tre os protestos su scitados pelo
tratado de Lou ren ço Marqu es e o m om en to em qu e en cerrou a con ferên -

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JACOBINOS, LIBERAIS E DEMOCRATAS NA EDIFICAÇÃO DO PORTUGAL CONTEMPORÂNEO

cia de Berlim sin gu larizou -se por avolu m adas restrições às liberdades pú -
blicas fu n dam en tais. São disso exem plo as persegu ições m ovidas à im -
pren sa pela portaria de 12 de ou tu bro de 1881 e a féru la persecu tória pro-
tagon izada em 1884 por Lopo Vaz, au tor da “lei das rolh as”. Esta acen -
tu ação do au toritarism o receberá in cen tivos com o falecim en to do rei D.
Lu ís e com a su bseqü en te en tron ização de D. Carlos. En qu an to o prim ei-
ro observou cu idadosam en te os lim ites do seu papel con stitu cion al, o se-
gu n do qu is in tervir ativam en te n a política, correspon den do ao pedido
qu e lh e era dirigido por m u itas in dividu alidades sim patizan tes do cesaris-
m o germ ân ico. No gru po in telectu al e gastron ôm ico dos Vencidos da Vida,
próxim o de D. Carlos, form ado por algu m as das glórias literárias do país
(Oliveira Martin s, Gu erra Ju n qu eiro, Ram alh o Ortigão, Eça de Qu eirós)
e por aristocratas perten cen tes à prim eira n obreza do Rein o (Con de de Fi-
calh o, Con de de Sabu gosa, Bern ardo Correia de Melo, Lu ís Pin to de So-
veral, Carlos Lobo de Ávila), eram freqü en tes as in vectivas con tra a situ a-
ção rotativa e con tra o parlam en tarism o. Só u m a factível proxim idade
desses pon tos de vista perm item com preen der a cobertu ra qu e D. Carlos
dispen sou aos m odos de govern ação extrapartidária por on de se en vere-
dou após o Ultim ato in glês de 1890 e a gabin etes apostados em fazer vin -
gar processos ditatoriais. Este agravam en to das con dições da in terven ção
cívica prepara u m a profu n da in flexão n o estilo da propagan da repu blica-
n a. A u m a geração de pedagogos dou trin ários, cren tes n as virtu alidades
do evolu cion ism o político e n a eficácia dos m eios pacíficos de difu são do
seu ideário, su cederá u m a ou tra, m ais jovem , m ais in sofrida e m en os
iden tificada com o determ in ism o teleológico do positivism o.
Peran te a legislação in tern acion al con sagrada n o Ato Fin al da Con -
ferên cia de Berlim , algu n s govern an tes portu gu eses, com o José Vicen te
Barbosa de Bocage, Man u el Pin h eiro Ch agas e An tôn io En es, abraçaram a
idéia de Portu gal poder vir a estabelecer n a zon a m eridion al african a u m
eixo de expan são en tre An gola e Moçam biqu e, su scetível de brin dar o país
com u m a zon a de soberan ia sem solu ção de con tin u idade. Un ir-se-ia o
ociden te an golan o ao orien te m oçam bican o. Sabia-se, porém , qu e a reali-
zação do projeto portu gu ês im olava a expectativa britân ica e o son h o qu e
Cecil Rh odes atiçara com os con ciliábu los servidores da Rain h a Vitória. A
delim itação territorial das preten sões portu gu esas con stava de dois con -
vên ios n egociados em 1885 com a Fran ça e a Alem an h a. Os m apas an e-
xos aos tratados, coloridos a rosa, pu n h am o Zam beze a correr in teiram en -
te em áreas de soberan ia portu gu esa. En tre 1884 e 1889, a Sociedade de
Geografia patrocin ou várias explorações dirigidas às zon as sertan ejas n e-
vrálgicas para a con su m ação do porten toso objetivo. A irritação britân ica
foi su bin do de tom à m edida qu e a estratégia portu gu esa preten dia con so-
lidar posições n a fron teira leste de Moçam biqu e, en tre o Lim popo e o

275
Amadeu Carvalho Homem

Zam beze. Com efeito, a am bição portu gu esa de criar n a África u m n ovo
Brasil colidia com o plan o da estrada de ferro tran safrican a qu e os in gleses
alm ejavam con stru ir en tre o Cabo e o Cairo. De tu do isto resu ltou o u lti-
m ato qu e Salisbu ry fez en tregar ao govern o portu gu ês em 11 de jan eiro
de 1890. Nele se in tim ava Portu gal a retirar im ediatam en te todas as su as
forças m ilitares das regiões em litígio. A im plícita am eaça de u tilização de
m eios bélicos con feriu à in tim ativa a força do in apelável.
Os in térpretes do ideário dem oliberal au feriram das van tagen s con -
seqü en tes à gravidade deste m om en to h istórico. É qu e os su cessivos go-
vern os, para ten tarem con trariar a vozearia an ôn im a das ru as e a m aré
dos protestos, en du receram flagran tem en te os seu s m eios de ação. O re-
cu rso a elen cos m in isteriais extrapartidários e a ditadu ras adm in istrativas
foi determ in an te para a ten tativa de in stitu cion alização de agrem iações
in depen den tes qu e pu dessem salvagu ardar a tradição valorativa do radi-
calism o liberal e restau rar o abalado prestígio da n ação. Tan to a Liga Libe-
ral, ch efiada por Au gu sto Fu sch in i e dirigida sobretu do ao elem en to m i-
litar, com o a Liga Patriótica do Norte, presidida por An tero de Qu en tal, obe-
deceram ao propósito de in stalar assem bléias con su ltivas de reflexão, à
m argem da lógica partidária rotativa, n as qu ais se pu dessem debater so-
lu ções de resgate fu tu ro. Foram ten tativas bem in ten cion adas, m as fin al-
m en te abortadas. Con tu do, a crise do u ltim ato porá em relevo u m a n ova
geração repu blican a de propagan distas “ativos”, em fran ca dissidên cia
com os m étodos pu ram en te eleitoralistas, verbalistas e pacíficos até en tão
em voga. Su rgiu u m jorn alism o de com bate, sobretu do iden tificado com
círcu los estu dan tis in vu lgarm en te au dazes. O órgão da Academ ia repu bli-
can a lisbon en se, A Pátria, revelou os n om es de Higin o de Sou sa, Brito Ca-
m ach o e João de Men eses; o estu dan te de m edicin a Edu ardo de Sou sa
pu blicou n o Porto a folh a O Rebate; em Coim bra im prim iu -se O Ultimatum ,
qu e estam pou os agrestes artigos de An tón io José de Alm eida e de Afon -
so Costa. Mas n ão foram apen as os estu dan tes qu e se m ovim en taram . O
jorn alista João Ch agas, con qu istado para a cau sa repu blican a pelo ch oqu e
patriótico do u ltim ato, in cen diou as págin as dos periódicos A República e
A República Portuguesa, am bos su rgidos n o Porto. O segu n do destes órgãos
de im pren sa passou a exarar n u m erosos depoim en tos de m ilitares de bai-
xa paten te, clam an do por u m a exem plar desafron ta qu e restau rasse os
brios feridos do exército portu gu ês.
Foi esta a an tecâm ara da revolta portu en se de 31 de jan eiro de 1891,
ten tativa in gên u a e rom ân tica em qu e em barcaram em otivam en te os três
oficiais a qu e se redu ziu o Estado-Maior dos su blevados (Alferes Malh eiro,
Ten en te Coelh o e Capitão Leitão) e u m a pequ en a m u ltidão de praças de
pré, cabos e sargen tos. Agu en taram -se 8 h oras n a con ten da, an tes de se-
rem obrigados a capitu lar peran te as forças fiéis à m on arqu ia. A revolta fi-

276
JACOBINOS, LIBERAIS E DEMOCRATAS NA EDIFICAÇÃO DO PORTUGAL CONTEMPORÂNEO

liava-se flagran tem en te n a m em ória do vin tism o. A prova m ais irrefu tável
desta filiação en con tra-se n o fato de terem sido fielm en te repetidos pelos
su blevados os itin erários e os cerim on iais da distan te – m as recorren te e
obsidian te – revolu ção de 24 de agosto de 1820! Qu e u m tal atavism o de
postu ras se desen cadeie assim , tão sim bolicam en te, a tam an h a distân cia
tem poral, é bem a prova do veio em qu e m ergu lh am as raízes do repu bli-
can ism o portu gu ês. Na su a pan óplia ideológica en con tram os a reivin dica-
ção de u m liberalism o expu rgado da m ácu la cartista, a reclam ação de u m
con stitu cion alism o defen sor dos foros da soberan ia n acion al e a exigên cia
de u m parlam en tarism o sem o açaim o do veto real e do pariato.
A dou trin a do “en gran decim en to do poder real” acabou por sedu -
zir os ch efes dos partidos m on árqu icos m ais represen tativos n u m m o-
m en to em qu e a m orte já ceifara vu ltos com o o de An selm o Braam cam p
e Fon tes Pereira de Melo, defen sores de u m cartism o m ais respeitador do
con vívio plu ral. Tan to a ch efia regen eradora, en tregu e a Hin tze Ribeiro,
com o a progressista, n as m ãos de José Lu cian o de Castro, se m ostraram
perm eáveis a apelos e ten tações liberticidas. Esta n ota é especialm en te vi-
sível n o período qu e m edeia en tre 1893 e 1897. A ditadu ra en cetada por
Hin tze Ribeiro e João Fran co em fin s de de 1893, in au gu ra u m lon go pe-
ríodo de com pressão política e de vigilân cia social. Su prim e-se o pariato
eletivo, im possibilita-se a represen tação das m in orias, fu n da-se u m Ju ízo
de In stru ção Crim in al com en orm es e discricion ários poderes, pu blica-se
legislação fortem en te lesiva das garan tias fu n dam en tais – com o a triste-
m en te fam osa lei an tian arqu ista de fevereiro de 1896, qu e os repu blica-
n os apelidaram de “lei celerada” – e qu erela-se por razões pu eris o jorn a-
lism o oposicion ista. No cam po dem ocrático lavrava a desorien tação. Um
setor repu blican o m ais m oderado ch egou a firm ar com o Partido Progres-
sista u m a “coligação liberal”, sob a vivíssim a discordân cia de correligion á-
rios opositores a tal pacto. A su baltern ização a qu e ficaram con den adas as
oposições, dim in u ídas por u m a legislação eleitoral cerceadora dos seu s di-
reitos de represen tação, determ in ou o seu aban don o su m ário das u rn as
n o ato eleitoral de n ovem bro de 1895, ao qu al só se apresen taram can di-
datos regen eradores. A Câm ara dos Depu tados viu -se redu zida a u m a si-
tu ação m on opartidária, sen do forçada a sim u lar debates parlam en tares
de pu ra circu n stân cia. Qu an do, em fevereiro de 1897, José Lu cian o de
Castro arredou fin alm en te a situ ação regen eradora, os repu blican os ob-
jetores da “coligação liberal” con firm aram as su as pretéritas descon fian -
ças. Man tiveram -se, n o essen cial, todos os aparelh os repressivos h erda-
dos da govern ação an terior. Por isso, o Partido Repu blican o irá persistir
n a su a postu ra de absten cion ism o eleitoral, só vin do a regressar ao su frá-
gio em fin s de 1899. Aliás, a su a desarticu lação era tão preocu pan te qu e
An tón io José de Alm eida, n u m artigo su rgido em fin s de 1903 n o jorn al

277
Amadeu Carvalho Homem

O Mundo, de Lisboa, falava n a n ecessidade de “fazer desde o prin cípio” a


obra de organ ização.

A CRISE D O ROTATIVISMO MON Á RQUICO E O


A D VEN TO D A REPÚBLICA

A braços com esta profu n da crise, os repu blican os n ão pu deram apro-


veitar-se das irreversíveis m u tações qu e irão fragm en tar o cam po m on árqu i-
co. Desde 1876 qu e o rotativism o en tre regen eradores e progressistas se pra-
ticava, estabilizan do o m odelo político. Mas o reverso desta estabilização con -
sistia n a descaracterização profu n da dos dois partidos qu e en tre si dividiam o
poder. Na prática, qu ase n ada diferen ciava u m m in istério regen erador de u m
m in istério progressista. Mas se ou tras form ações m on árqu icas pu dessem
em ergir, a tradição rotativa teria de fazer variar o seu estilo de expressão, de
m odo a con ceder algu m espaço de m an obra a n ovos com parsas. No Partido
Regen erador ferm en tava u m a dissen ção, an u n ciadora de u m a ru ptu ra. Dota-
do de u m a person alidade en érgica e am biciosa, João Fran co con solidará, en -
tre 1901 e 1903, a cisão qu e se adivin h ava. Levan do atrás de si u m a pequ en a
falan ge de depu tados regen eradores rebeldes, irá fu n dar o Partido Regen era-
dor Liberal, em aberto con fron to com Hin tze Ribeiro. Com o m ote do seu
fracion ism o, en fatizará o efeito perverso do rotativism o n a tran sparên cia da
vida pú blica e o “lu díbrio” revezadam en te in trodu zido por regen eradores e
progressistas n a con du ção adm in istrativa do rein o. Um a idên tica cisão irá
ocorrer n o in terior do Partido Progressista. José de Alpoim , qu e desem pen h a-
ra o cargo de m in istro da Ju stiça n u m gabin ete de 1904 presidido por José Lu -
cian o de Castro, tam bém se afasta das fileiras do seu partido de origem , viabi-
lizan do n o an o segu in te o pequ en o agru pam en to da Dissidên cia Progressista.
Os ódios in testin os qu e se geraram a partir destes atos objetivos de rebelião,
con su bstan ciados em violen tos tu m u ltos n a Câm ara dos Depu tados e n a im -
pren sa, aceleraram o descrédito das in stitu ições com a opin ião pú blica.
O episódio m ais salien te do desm an telam en to do sistem a rotativo
rem on ta à alian ça estabelecida en tre José Lu cian o de Castro, líder pro-
gressista, e João Fran co, ch efe dos regen eradores-liberais, u n idos n u m a
“con cen tração liberal” qu e preten dia apear do poder Hin tze Ribeiro, pri-
m eira figu ra do Partido Regen erador. Em m aio de 1906, Hin tze sofre a
afron ta de ser ren dido pelo ch efe dos regen eradores-liberais, com o ativo
patrocín io de Lu cian o de Castro. Este vexam e era a retaliação dos favores
eleitorais com qu e o govern o de Hin tze cu m u lara a Dissidên cia Progres-
sista en qu an to estivera n o poder. Com o se verifica, a ocorrên cia das ci-
sões m on árqu icas in trodu zira n o jogo político os m ais graves fatores de
in stabilidade. En qu an to o Partido Regen erador se servia de Alpoim para

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JACOBINOS, LIBERAIS E DEMOCRATAS NA EDIFICAÇÃO DO PORTUGAL CONTEMPORÂNEO

desfeitear os progressistas, estes in stru m en talizavam João Fran co para ir-


ritar os regen eradores. Arriscada tavolagem era esta, em qu e os dois ch e-
fes dos m aiores partidos se serviam de in terposições odiosas para se de-
prim irem m u tu am en te... Faltou aos gran des partidos m on árqu icos clari-
vidên cia bastan te para m argin alizarem as patru lh as dissiden tes, as qu ais,
caso tivessem sido aban don adas ao seu próprio valim en to, se teriam de
con form ar com a su a fatal su baltern idade.
A form ação do gabin ete m in isterial fran qu ista, em m aio de 1906,
era com patível com as regras con stitu cion ais, u m a vez qu e a in clu são de
in dividu alidades do Partido Progressista con feria ao m in istério o su porte
de legitim idade qu e lh e era in dispen sável. João Fran co m an ifestara a in -
ten ção de “govern ar à in glesa”, ou seja, sob a vigilân cia do Parlam en to, e
retratara-se pu blicam en te do seu passado político ditatorial. Porém , tu do
se com plicou qu an do foi levada à discu ssão da Câm ara dos Depu tados a
ch am ada “qu estão dos adian tam en tos”. Tratava-se de regu lar os débitos
da Coroa para com o Erário pú blico, em ergen tes de verbas en tregu es por
diversos m in istros da Fazen da à realeza, para cobertu ra de gastos excep-
cion ais e qu e excediam , con seqü en tem en te, as cifras con stan tes da “lista
civil” qu e legalm en te eram atribu íveis à Casa Real. O debate parlam en tar
desta m atéria am otin ou as oposições an tifran qu istas e forn eceu aos depu -
tados repu blican os (An tôn io José de Alm eida, Afon so Costa, Alexan dre
Braga e João de Men eses) o desejado pretexto para a exau toração da m o-
n arqu ia. À agitação dos setores políticos correspon deu a in tran qü ilidade
de segm en tos sociais relevan tes. A partir de m arço de 1907, a Un iversi-
dade de Coim bra con vu lsion ou -se com u m a greve acadêm ica, acaban do
por ser en cerrada pelo govern o. João Fran co ten tou persu adir José Lu cia-
n o de Castro a aprofu n dar a “con cen tração liberal”, através do recu rso a
u m a rem odelação m in isterial valorizada pela en trada n o gabin ete de al-
gu n s dos n om es m ais son an tes do progressism o. Mas o ch efe do Partido
Progressista fu rtou -se a este desiderato. A “con cen tração liberal” esgota-
ra-se. Regressar-se-ia ao rotativism o? É n esta con ju n tu ra qu e se revela
com clareza o desígn io de D. Carlos. Em vez de em pu rrar João Fran co
para a dem issão, o m on arca in citou o seu valido a exercer a ditadu ra. Ao
decreto qu e en cerrou o parlam en to, em 10 de m aio de 1907, su cederam -
se ou tros diplom as lim itativos dos direitos e garan tias in dividu ais. Todas
as oposições se u n ificaram in form alm en te. Era com o se de u m lado exis-
tisse a barricada com u m de João Fran co e de D. Carlos, e do ou tro su rgis-
se u m a vasta fren te, en globan do todo o país político. O processo en con -
trado para resolver a “qu estão dos adian tam en tos” levan tou larga celeu -
m a. Os setores críticos acu savam o govern o de ter avaliado com excessos
de parcim ôn ia as dívidas reais. Abateu -se sobre Fran co u m ven daval de
cen su ras, sen do este apresen tado pelo jorn al Correio da Noite, ligado aos

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Amadeu Carvalho Homem

h om en s de José Lu cian o, com o u m ven al m an datário do locu pletam en to


din ástico. Talvez por isto, n ão foi con tem porizadora a en trevista qu e D.
Carlos con cedeu , em 13 de n ovem bro, a Joseph Galtier, redator do jorn al
fran cês Le Temps. O rei ju stificava a vigen te ditadu ra, declaran do, aliás
com verdade, qu e ou tros políticos, an tecessores do fran qu ism o, lh e ti-
n h am igu alm en te solicitado poderes ditatoriais. Um a das su as afirm ações
foi especialm en te desastrada: aqu ela em qu e D. Carlos derivava a su a a-
tu al con fian ça n o ch efe do govern o das “garan tias de caráter” qu e ele lh e
oferecia. Deste m odo, o rei parecia im olar toda a classe política estran h a
ao fran qu ism o, du vidan do qu e ela fosse portadora das tais “garan tias de
caráter” qu e exorn ariam o seu ditador privativo. Estas declarações tive-
ram u m efeito devastador en tre certos áu licos, até en tão fiéis ao tron o. As
defecções qu e logo foram con h ecidas abran geram person alidades rele-
van tíssim as. Au gu sto José da Cu n h a, an tigo m in istro da Coroa e ex-pre-
ceptor de D. Carlos, An selm o Braam cam p Freire, Par do Rein o, e Fau s-
tin o de Sá Nogu eira, descen den te do Marqu ês de Sá da Ban deira, con si-
deraram -se divorciados do credo m on árqu ico.
Foi sob os rigores do fran qu ism o qu e o m ovim en to dem ocrático se
reorgan izou . Mas agora esta reorgan ização n ão se en cam in h ou para a di-
fu são pedagógica e pacífica do seu ideário. O ativism o revolu cion ário da
geração do Ultim ato n ão preten deu segu ir os processos in ofen sivos da
m era dou trin ação. A con spiração revolu cion ária obedeceu a u m a
arqu itetu ra sediciosa qu e com bin ou u m plan o de relativa visibilidade com
u m ou tro de m aior opacidade. Preten dem os com isto dizer qu e do m es-
m o m odo qu e o Partido Repu blican o coorden ava a ação do protesto pú -
blico, trabalh an do em com u m com ou tras organ izações cívicas, toleradas
pela exígu a legalidade vigen te – com o, por exem plo, a Liga Liberal, de
Migu el Bom barda –, tam bém n ão desprezava o con tribu to de ou tras or-
gan izações secretas ou clan destin as. Era o caso da Maçon aria e da Carbo-
n ária Portu gu esa. Se a prim eira gozava de larga tradição, a Carbon ária,
espécie de braço arm ado m açôn ico, n ascera do em pen h o de Artu r Du ar-
te da Lu z Alm eida, o qu al com eçara por fu n dar u m a Maçon aria Acadê-
m ica qu e posteriorm en te viria a perder o seu caráter exclu sivam en te es-
tu dan til.
Em 28 de jan eiro de 1908 abortou em Lisboa o m ovim en to revo-
lu cion ário qu e os repu blican os e os “dissiden tes” de Alpoim h aviam for-
jado. Segu n do José Relvas, foi este even to qu e alu cin ou João Fran co e o
despen h ou n a “fase deliran te” do seu con su lado. Com efeito, a resposta
en con trada para a gravidade dos acon tecim en tos con sistiu n a preparação
do decreto de 31 de jan eiro, san cion ado por D. Carlos em Vila Viçosa. O
decreto con figu rava u m a au tên tica declaração de gu erra para todos os
opositores do fran qu ism o. Nele se previa a facu ldade govern am en tal de
“expu lsar do Rein o ou fazer tran sportar para u m a provín cia u ltram ari-

280
JACOBINOS, LIBERAIS E DEMOCRATAS NA EDIFICAÇÃO DO PORTUGAL CONTEMPORÂNEO

n a”, em n om e dos “in teresses gerais da n ação”, todos aqu eles qu e fossem
in diciados pela au toridade ju dicial. Ficavam tam bém su spen sas as im u n i-
dades parlam en tares dos qu e se m an ifestassem “con tra a segu ran ça do
Estado” ou se apresen tassem com o “in im igos da sociedade”. No dia se-
gu in te, 1º. de fevereiro de 1908, ao regressar a Lisboa n a com pan h ia da
su a fam ília, D. Carlos su cu m biu n u m a esqu in a do Terreiro do Paço, sob
os disparos dos regicidas Man u el dos Reis Bu iça e Alfredo Lu ís da Costa.
O prín cipe real D. Lu ís Filipe foi a ou tra vítim a da san h a assassin a.
A preparação do revolu cion arism o carbon ário acelerou n otoria-
m en te n o período su bseqü en te ao regicídio. A “Alta Ven da”, órgão deli-
berativo da organ ização, passou a in clu ir com o ch efes as person alidades
de Mach ado San tos e de An tôn io Maria da Silva. A palavra de ordem do
triu n virato dirigen te ia n o sen tido de serem aliciadas as bases da h ierar-
qu ia castren se por repu blican os qu e pu dessem in sin u ar-se n os qu artéis
da gu arn ição de Lisboa. Mas n em todos os repu blican os advogavam a so-
lu ção revolu cion ária im ediata. O jorn al O Mundo, acolh en do as orien ta-
ções de Bern ardin o Mach ado e Afon so Costa, passou a exprim ir, após o
regicídio, opin iões de gran de m oderação. Fazia-lh e fren te o gru po do jor-
n al A Luta , arregim en tan do Brito Cam ach o, José Relvas, Malva do Vale,
In ocên cio Cam ach o e José Barbosa. Um dos m ais ativos pregoeiros do re-
volu cion arism o im ediato era João Ch agas, o qu al con vertera os fascícu los
das su as Cartas Políticas em libelos in cen diários.
O tron o era agora ocu pado por D. Man u el II. In experien te, m u ito
in flu en ciado por su a m ãe, algo perm eável aos avan ços do u ltram on tan is-
m o, o jovem rei teve ain da con tra ele o com pleto desm an telam en to do
cam po m on árqu ico. Com efeito, a crise lavrava n o in terior dos partidos
tradicion ais da realeza. A agrem iação dos progressistas ressen tia-se pela
debilidade de m an do de José Lu cian o de Castro, já m u ito alqu ebrado pela
idade avan çada e pela doen ça. O Partido Regen erador, por seu tu rn o,
m ergu lh ou n u m a verdadeira orgia dissolu tória. O falecim en to de Hin tze
Ribeiro, em agosto de 1907, tran sform ara a lu ta pela su cessão n u m circo
de dispu tas sem freio. Em bora Jú lio de Vilh en a tivesse con segu ido o
triu n fo da su a can didatu ra, tal h egem on ia n u n ca foi acatada por ou tros
“n otáveis”. A in stabilidade govern ativa foi o corolário n ecessário deste
con tu rbado pan o de fu n do. Ten h am os presen te qu e en tre fevereiro de
1908 e ou tu bro de 1910 se su cederam , em estado perm an en te de pertu r-
bação e fragilidade, os gabin etes de Ferreira do Am aral, Cam pos Henri-
ques, Sebastião Teles, Wenceslau de Lima, Veiga Beirão e Teixeira de Sou-
sa. Neste agitado cenário, foram completamente ignorados os apelos de Jú-
lio de Vilhena e do próprio D. Manuel II para que se reconstruíssem os par-
tidos históricos.
O congresso republicano que se reuniu em Setúbal entre 23 e 25 de
abril de 1909 ditou a vitória tangencial da facção revolucionária. A Carbo-

281
Amadeu Carvalho Homem

nária no seu conjunto e as figuras individuais de José Relvas, Inocêncio Ca-


macho, José Barbosa, Antônio José de Almeida e João Chagas rejubilaram
com o revés sofrido por Afonso Costa e Bernardino Machado, paladinos da
tendência moderada. Afonso Costa, contudo, aceitou sem azedume os re-
sultados do congresso, não se furtando, sequer, a integrar um comitê revo-
lucionário civil, na companhia de João Chagas e Antônio José de Almeida.
Organizou-se um comitê revolucionário militar sob o comando do almiran-
te Cândido dos Reis. E do mesmo modo que a Carbonária prosseguiu a todo
o vapor a sua tarefa de sedução às baixas patentes militares, assim o almi-
rante tratou de aliciar, por seu turno, individualidades militares de mais alta
hierarquia. Em 30 de janeiro de 1910 realizou-se na capital uma reunião
republicana com os “correligionários mais prestigiosos de todo o país” para
ponderar sobre a viabilidade de promover no espaço nacional uma “forte
agitação”. Os que defendiam a imediata passagem à ação sobrelevavam a
militância dos mais reticentes. Além do proselitismo revolucionário que
João Chagas continuava a desenvolver nas Cartas Políticas, também Antônio
José de Almeida, na recém-criada revista Alma Nacional, manifestava e di-
fundia os mesmos pontos de vista. O congresso republicano de abril de
1910, convocado para o Porto, selou o pacto entre a Carbonária e o restan-
te associativismo democrático não clandestino, fazendo aprovar uma mo-
ção de solidariedade para com as associações políticas secretas que coope-
ravam na obra revolucionária. O Partido Republicano irá obter nas eleições
de 28 de agosto de 1910 a maior vitória jamais alcançada por ele, com os
seus catorze deputados eleitos. Os resultados das urnas não demoveram,
contudo, os adeptos da metodologia revolucionária. Como é sabido, foi de
armas na mão, no decurso da madrugada de 4 para 5 de outubro, que Ma-
chado Santos fez singrar a república, resistindo nas barricadas da Rotunda
aos augúrios pessimistas que ditaram o suicídio de Cândido dos Reis. João
Chagas vaticinara que se o novo regime pudesse implantar-se em Lisboa,
pelo veredito da violência, os novos poderes seriam decretados pelo telégra-
fo, pacificamente, para o resto do país. Foi isso que se verificou. Portugal
era – é ainda – uma Grei centralista. Se tal constituiu e constitui uma das
suas maiores fraquezas ou, pelo contrário, o segredo da sua perenidade, tal
questão é matéria para desenvolvimentos que ultrapassam os limites deste
trabalho.

282
JACOBINOS, LIBERAIS E DEMOCRATAS NA EDIFICAÇÃO DO PORTUGAL CONTEMPORÂNEO

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283
capítu lo 15

DA MONARQUIA PARA A REPÚBLICA


A. H. de Oliveira Marqu es*

Pela sua grande variedade, a história do primeiro terço do século XX


oferece diversas possibilidades de periodização. A mais freqüente autono-
miza a Primeira República, situando-a entre as datas de 5 de outubro de
1910 e 28 de maio de 1926. As características políticas presidem, assim, à
delimitação do período.
Poder-se-ia argumentar que a Primeira República esteve longe de ser
homogênea, subdividindo-se, por sua vez, em dois períodos de democracia
parlamentar (1910-1917; 1919-1926), separados por um terceiro, de autocra-
cia, que de democrático só tinha o nome (1917-1919). E que houve porven-
tura mais semelhanças entre algumas fases da Ditadura que se seguiu ao 28
de maio de 1926 e certos momentos da Primeira República do que entre esta
e o Sidonismo institucionalizado de 1918. E ponderar-se-ia ainda que, mesmo
em termos políticos, e abstraindo da figura do rei, a República parlamentar es-
teve mais próxima da Monarquia de 1908-1910 do que esta da Ditadura fran-
quista, cujo paralelo se encontraria antes no Dezembrismo de Sidônio Pais.
Na verdade, e dadas as sucessivas experiências políticas ocorridas no
Portugal de então, ou se tende a cair num atomismo periodista, tentando
homogeneizar as muitas pequenas fases que o caracterizaram ou, pelo con-
trário, se prefere uma única época de conjunto, situada entre os períodos de
grande estabilidade que foram a Regeneração oitocentista e o Estado Novo
novecentista. Esta época de conjunto iniciar-se-ia com os primeiros anos do
século XX – quando os fermentos de mudança se introduziram definitiva-
mente – e terminaria com a definição de Estado Novo e com a adoção defi-
nitiva de um Estado autoritário e antiliberal, por volta de 1930. Ao longo de
trinta atribulados anos sucederam-se, por vezes vertiginosamente, uma Mo-
narquia constitucional assente num desprestigiado rotativismo partidário
(1900-1906), uma Monarquia constitucional renovada (1906-1907), uma
Monarquia despótica e autoritária (1907-1908), uma nova Monarquia cons-
titucional assente na multiplicidade dos partidos e na sua instabilidade con-
seqüente (1908-1910), uma Ditadura republicana visando um Estado parla-
mentar (1910-1911), uma República democrática parlamentar (1911-
1915), uma Ditadura militar visando a correção das instituições (1915), uma

285
A. H. de Oliveira Marques

segunda República democrática parlamentar caracterizada pelo predomínio


de um partido (1915-1917), um Regime presidencialista autocrático (1917-
1918), uma restauração da Monarquia (em parte do país; 1919), uma Ter-
ceira República democrática parlamentar assente na multiplicidade de parti-
dos e na instabilidade sua conseqüente (1919-1926), uma Ditadura militar
indecisa visando a correção das instituições (1926-1928) e, por fim, uma Di-
tadura sabendo já “o que queria e para onde ia” (1928 e seguintes).
Variedade e instabilidade caracterizam também, naturalmente, as es-
truturas políticas e as ideologias políticas. Multiplicaram-se os partidos po-
líticos e os grupos de pressão, acentuando-se a diversificação ideológica. Na
organização de cada grupo, também se esteve longe de um modelo único.
Partidos de massas e partidos de quadros disputaram entre si poder e in-
fluência. Sucederam-se as eleições autárquicas, legislativas e presidenciais.
O número de governos atingiu o máximo em toda a história portuguesa do
passado e do futuro. A classe política alargou-se e democratizou-se. Nunca,
como então, o acesso ao poder foi tão fácil e a queda desse mesmo poder
tão rápida e definitiva. Não admira que a atividade legislativa de todo o pe-
ríodo se mostrasse também intensa, variada e instável. Se o corpo de leis
edificado foi imponente e válido, já a efetividade dessas mesmas leis e o seu
impate na sociedade se revelaram muito menores. De uma maneira geral,
a legislação do primeiro terço do século XX, até durante a Monarquia, dis-
tanciava-se muito, na vanguarda que a definia, das reais possibilidades de
Portugal para a absorver e frutificar. Era uma legislação esclarecida e ideal,
feita por gente bem-pensante e apostada na modernização rápida do país,
mas inadequada às suas condições de base. Os homens do tempo acredita-
vam na ação direta, de cima para baixo, como arma eficaz para corrigir e
remodelar a sociedade em que se integravam.
Mas a verdade é que a toda essa variedade e instabilidade dos meios
e dos agentes políticos correspondiam estruturas econômicas e sociais arcai-
cas, cuja solidez só pouco foi abalada e só pouco podia ser abalada. A orga-
nização da propriedade, por exemplo, reconhecida por todos como impró-
pria para o desenvolvimento da agricultura, dificilmente podia ser tocada
sem uma dinâmica revolucionária que de todo faltava. Os pequenos pro-
prietários recusavam-se ao emparcelamento, ao passo que os latifundiários
rejeitavam in limine qualquer reforma que lhes amputasse a terra.
Na economia, por seu turno, continuava a insistir-se nos produtos
tradicionais – os cereais, o vinho, o azeite, a cortiça – com técnicas ultrapas-
sadas e com formas de comercialização já de há muito exploradas. Não era
fácil, por seu turno, conseguir uma modificação de mercados externos. E
todo o comércio com o estrangeiro girava em torno das relações com a Grã-
Bretanha e das facilidades, até de transporte, que aquele país proporciona-
va. O peso esmagador da Grã-Bretanha na vida portuguesa não se limita-

286
DA MONARQUIA PARA A REPÚBLICA

va, evidentemente, ao comércio externo nem à economia em geral. Por via


deles condicionava toda a política externa – e, às vezes, até a interna – su-
bordinando-a aos seus desejos, interesses e objetivos. Era impensável tri-
lhar um caminho independente, afastado da aliança e da proteção britâni-
cas, que assim se revelavam um pesado fator de estabilidade na diplomacia
de Portugal.
É certo que se tentou, e com alguns resultados, a via da industriali-
zação. As conservas de peixe atestam-no. Mas a estrada a percorrer era lon-
ga e trinta anos não chegavam para conseguir, por meio dela, uma maior
independência econômica. Aliás, tanto a agricultura como a indústria se
debatiam com a inadequação da rede de transportes internos, imperfeita,
incompleta e facilmente deteriorável. Por seu turno, o comércio interno
continuava a assentar numa multiplicidade de formas tradicionais pouco
desenvolvidas, privilegiando a pequena loja, os mercados e as feiras.
Malgrado a renovação causada pela guerra, esses modelos persistiram,
freando grandes concentrações de capital e grandes complexos comerciais.
Assim, o pequeno comerciante e o pequeno industrial, ao lado do
pequeno proprietário, controlavam ou, pelo menos, dominavam numeri-
camente o espaço econômico da época. Rotineiros e timoratos, constituíam
uma força conservadora, flutuante em simpatias políticas, pronta a apoiar
quem quer que lhe proporcionasse pequenos aumentos de lucro mas tam-
bém quem quer que lhe garantisse segurança e tranqüilidade. Os próprios
proletários, quer rurais quer urbanos, em aumento constante, partilhavam
desse conservantismo de base já que, na sua maioria, detinham alguma coi-
sa de seu. Com poucas exceções, o movimento operário português mos-
trou-se sempre tímido e pouco vanguardista, contentando-se com peque-
nos avanços no nível de vida e nas condições de trabalho. Quase todos os
grupos sociais, aliás, sofreram duramente com as conseqüências da guerra,
vendo reduzido, durante muitos anos, o seu poder de compra.
Enquadrando estas forças, existia uma Igreja ultramontana, compos-
ta por uma maioria de sacerdotes e de congregacionistas dos dois sexos,
pouco instruídos e pouco esclarecidos. O seu peso na sociedade era muito
grande, embora variasse com os grupos sociais e com as regiões do país. A
Igreja receava o aumento da descristianização em curso, que atribuía ao
avanço do republicanismo e da Maçonaria. Por isso lutou com todas as for-
ças e por todos os meios contra o regime implantado em 1910, temendo
que a sua influência entre as massas pudesse diminuir.
Conservadoras ainda se mostravam grande parte das Forças Arma-
das, nomeadamente o Exército, onde coexistiam o recruta analfabeto
oriundo dos meios rurais e o oficial orgulhoso, cônscio dos seus privilégios
de casta e da sua “missão” defensora e redentora. Temperado pelas campa-
nhas da África e pela participação na Primeira Guerra, o oficial do Exército

287
A. H. de Oliveira Marques

viu na arena política um campo onde se julgava com o dever de intervir, a


fim de “salvar a Pátria”. A seu lado encontrou outros corpos militarizados,
como a Guarda Nacional Republicana, porventura mais radicalizada mas
não menos interessada em cumprir a sua missão de intervenção.
Outra força conservadora eram as colônias. A sua manutenção indi-
visível e a sua valorização a todos os níveis constituíam um pesado lastro,
travando um desenvolvimento mais acelerado da Metrópole. Das colônias
saíam também benefícios, é certo. Por via delas Portugal continuava a fazer
alguma figura e a ter alguma relevância nesse conserto de nações ambicio-
sas e pouco escrupulosas que definiam a época. As colônias serviam de es-
cudo contra o imperialismo absorcionista da Espanha e de moeda de troca
para obter a proteção da Inglaterra. Mas foram as colônias que, em grande
parte, motivaram a intervenção na guerra, com as conseqüências trágicas
que daí resultaram para todo o país.
Com tempo, o Portugal republicano conseguiria talvez minorar a
defasagem entre forças progressivas e bases conservadoras, esbater assime-
trias e fazer vingar a legislação mais avançada. Mas esse tempo não lhe foi
concedido. A quatro anos de existência, a eclosão da Primeira Guerra e os
seus resultados puseram fim prático a projetos e a empreendimentos gran-
diosos, reduzindo a obra governativa à difícil gestão do cotidiano. A Repú-
blica deixou de se distinguir da Monarquia e de representar uma alternati-
va de progresso e de bem-estar. Os Messias passaram a ser outros.
Embora um esboço de ideologia republicana se pudesse fazer remon-
tar a 1820, foi só nos meados do século XIX que o republicanismo surgiu como
doutrina expressa com clareza e repercussão popular. O seu ideário pôde as-
sim cristalizar no Manifesto e Programa de 1891, elaborado pouco antes da re-
volta republicana de 31 de janeiro desse ano, e que persistiria até à proclama-
ção da República. Nele se fundiam os princípios das gerações de 48, 65-70 e
90. Foi seu autor o grande historiador e filósofo positivista Teófilo Braga (este
Manifesto foi publicado muitas vezes. Veja-se, por exemplo, o texto apenso ao
Boletim do Partido Republicano Português, Lisboa, p., 463-70, 1912.
O Manifesto e Programa, posteriormente chamado ora Manifesto ora
Programa, abria com uma introdução de caráter histórico e ideológico. Des-
crevia os acontecimentos do ano decorrido desde o Ultimatum (1890), sin-
tetizando nele a falência do regime monárquico-constitucional da Carta, a
exautoração dos partidos rotativos e a crise, “na expectativa de uma tre-
menda catástrofe nacional”, e a que um e os outros haviam arrastado a Na-
ção. Separava, conseqüentemente, esta da Monarquia, que se mantinha
“apenas pela indiferença geral”. E apontava para a necessidade de a Nação
ter “um partido seu, que pugne pela sua dignidade e independência, tiran-
do da civilização moderna as bases de uma nova reorganização política”.
Esse partido era o Partido Republicano Português, identificado assim como

288
DA MONARQUIA PARA A REPÚBLICA

partido nacional (e, portanto, único), de vanguarda, e cientificamente pro-


gramado. O Partido Republicano desenvolver-se-ia “na razão direta do de-
salento público e da propaganda do moderno saber, trazido na fecunda cor-
rente européia”. E, mais adiante, definia-se “República” como “uma nacio-
nalidade exercendo por si mesmo a própria soberania, intervindo no exer-
cício normal das suas funções e magistratura”. Monarquia e monárquicos
relegavam-se, pois, para o campo do obscurantismo, do passado pré-cientí-
fico, do quase absolutismo, do não-europeu, do antinacional. Não se trata-
va de uma opção pluralista, mas de uma dicotomia entre progressismo e
reacionarismo. A introdução do Manifesto e Programa encerrava-se por uma
evocação das grandes gerações do passado – as de 1384, 1640, 1820 e 1834
– e por um apelo à “obra gloriosa da reorganização de Portugal”.
O texto continuava com a definição de liberdade e de igualdade – em
termos políticos – e com um primeiro parágrafo dedicado à “Organização
dos Poderes do Estado”. Nele apontava para os três poderes tradicionais, o
legislativo, o executivo e o judicial, rejeitando conseqüentemente o poder
moderador da Carta Constitucional e perfilhando as bases da Constituição
de 1822. O poder legislativo seria exercido, em nível municipal, pelas fede-
rações de municípios legislando em assembléias provinciais e, em nível na-
cional, pela federação de províncias legislando numa assembléia nacional.
De dez em dez anos funcionaria uma Constituinte destinada à revisão pe-
riódica da Constituição e à reforma da codificação. O poder executivo divi-
dir-se-ia em três superministérios, o da Segurança Pública (Exército e Ma-
rinha de Guerra, Interior, Justiça e Negócios Estrangeiros), o da Educação
Pública (Educação, Cultura e Assistência) e o da Economia Pública (Agri-
cultura, Comércio, Indústria, Marinha Mercante, Comunicações, Obras Pú-
blicas e Finanças). No poder judicial existiriam “juízes de conciliação, pre-
paração, arbitragem e revisão”, juízes cíveis (“singular, coletivo e especial”),
criminais, policiais e administrativos.
A segunda parte, ou parágrafo, do Manifesto e Programa continha as
chamadas “liberdades essenciais”, as “liberdades políticas” e as “liberdades
civis”. Nas primeiras incluíam-se, além das tradicionais liberdade de cons-
ciência, liberdade de imprensa e liberdade de discussão, certas aspirações
muito caras aos republicanos, tais como a igualdade entre todos os cultos,
a abolição do juramento religioso, o registro civil obrigatório, o ensino ele-
mentar secular e a secularização dos cemitérios, além de outras bastante
originais, como a divisão do professorado em docente e examinante, a
educação progressiva da mulher, a abolição dos graus e da freqüência obri-
gatória no ensino superior e a harmonização e simplificação dos vários
códigos. Nas liberdades políticas entravam, como novidades, o sufrágio uni-
versal, a autonomia municipal e a descentralização (e administração civil)
das colônias, a abolição dos monopólios particulares, a abolição do corpo di-

289
A. H. de Oliveira Marques

plomático e a transformação do corpo consular numa magistratura para as


relações internacionais e, por fim, a abolição do serviço militar obrigatório
(com o Exército reduzido a quadros e milícias), além das tradicionais liber-
dades de associação, reunião e representação, liberdade de trabalho e in-
dústria, autonomia da Nação etc. Finalmente, no âmbito das liberdades ci-
vis, entravam a extinção das derradeiras formas senhoriais de propriedade
(foros, laudêmios, lutuosas etc.), a obrigatoriedade do cultivo da terra sob
pena de expropriação, a reforma do crédito, um novo sistema de regula-
mentação do trabalho de menores, o fomento do cooperativismo a todos os
níveis, a não concorrência do Estado com as indústrias particulares, a cria-
ção de colônias penais agrícolas, a extinção de loterias e dos jogos de azar,
a revisão pautal, a abolição dos direitos de consumo, a criação de tribunais
arbitrais de classe para conflitos sociais, o estabelecimento de bolsas de tra-
balho, o reconhecimento da dívida pública “com o resgate da externa e re-
gularizando a interna como meio de capitalização dos pequenos possuido-
res”, etc. (a este programa convirá aditar o Manifesto dos emigrados da re-
volução de 31.1.1891, por acentuar e precisar melhor alguns dos pontos re-
feridos na “Introdução” ao programa republicano – Manifesto dos Emigrados
de 31 de Janeiro, prefácio e notas de Alexandre Cabral, Lisboa, 1974).
Importa, todavia, acentuar que muito republicano jamais lera o pro-
grama ou os manifestos do seu partido. Sobre a futura República, não tinha
idéias definidas. Ser republicano, por 1890, 1900 e 1910, queria dizer ser
contra a Monarquia, contra a Igreja e os Jesuítas, contra a corrupção polí-
tica e os partidos monárquicos. Mas a favor de quê? As respostas mostra-
vam-se vagas e variadas. Subsistia, como objetivo preciso, a descentraliza-
ção. Mas, quanto ao resto, a tendência geral era antes para se conceder à
palavra “República” algo de carismático e místico, e para acreditar que bas-
taria a sua proclamação para libertar o país de toda a injustiça e de todos os
males. “Eu, meu senhor”, dizia no tribunal um dos soldados implicados na
revolta de 31 de janeiro de 1891, “não sei o que é a República, mas não
pode deixar de ser uma coisa santa. Nunca na igreja senti um calafrio as-
sim”. E, com as mudanças inevitáveis que uma maior instrução implicaria,
a idéia era a mesma entre os camponeses, os operários, os pequenos e os
médios burgueses, sem distinção de classe.
É importante acentuar este aspecto para compreender as desilusões
e as contradições dos republicanos quando, por fim, triunfaram, em 1910.
Na verdade, o republicanismo veio a findar também como uma espécie de
utopia, que implicava um regime perfeito “do povo para o povo”, baseado
em completa igualdade, liberdade e “justiça democrática”. O ideário repu-
blicano, na sua última fase, mostrava pouca diferença do de 1820 (ou seja,
o da Revolução Francesa), que a Monarquia Constitucional tentara inter-
pretar e aplicar de uma forma pragmática. Este fato esvaziou a República

290
DA MONARQUIA PARA A REPÚBLICA

de muitas realizações práticas (que haviam cimentado e institucionalizado


a monarquia liberal), reduzindo-a, em grande parte, a um aperfeiçoamen-
to difícil ou impossível de fórmulas já experimentadas.
Seria, no entanto, errado supor que o republicanismo estagnou com
a proclamação da República. Se a ideologia de base sofreu poucas ou ne-
nhumas mudanças, a verdade é que se instituiu uma política de governo
que foi evoluindo à medida que a realidade abria os olhos aos republicanos
e lhes mostrava a necessidade de objetivos mais determinados.
Três grandes questões caracterizaram o período 1900-1930, indivi-
dualizando-o de certa maneira e concedendo-lhe unidade: a questão do re-
gime, a questão religiosa e a questão colonial. Nenhuma delas, é fato, foi
específica do primeiro terço da centúria, quer por derivar de épocas ante-
riores quer por prosseguir em épocas subseqüentes. Mas a somatória das
três, a sua inter-relacionação e a elevação de qualquer delas a base da exis-
tência de Portugal independente só nessa época puderam ser encontrados.
A questão do regime foi porventura a mais específica do seu tempo
e a que mais diferenciou o país em termos internacionais. É verdade que a
mudança de instituições sacudira a França e a Espanha na década de 1870.
Uma geração depois, todavia, não representava problema grave nem agita-
va a opinião pública de qualquer dos dois países. Embora o Partido Repu-
blicano estivesse bem representado no Parlamento de Madri e a República
tivesse até sido proclamada em algumas cidades catalãs durante a revolta
de outubro de 1908, a Monarquia espanhola assentava ainda em funda-
mentos sólidos e eram sobretudo as questões autonomistas que davam for-
ça ao republicanismo espanhol de então. Noutros Estados da Europa, a
questão do regime achava-se ancilarmente ligada à mudança das bases da
própria sociedade, essa sim, considerada prioritária. Era o que sucedia na
Alemanha com o forte Partido Social-Democrata, de ideologia marxista e,
de uma maneira geral, nos países mais evoluídos, com movimentos socia-
listas afins. Na própria Espanha, o Partido Socialista tinha uma importante
votação popular em nível de municípios, estando representado no Parla-
mento desde 1910.
Ora, em Portugal, e embora o republicanismo se apresentasse, em
muitos casos, colorido de socialismo (quer “utópico” quer “científico”), a
questão política sobrelevava claramente a questão social. Entendia-se que
a mudança de funcionamento da sociedade seria inoperante sem a mudan-
ça prévia das instituições políticas definidoras do Estado. Não se aceitava
uma subversão social “de baixo para cima”, arrastando consigo o próprio
regime ou tornando-o secundário. Acreditava-se, sim, que as alterações so-
ciais se fariam “de cima para baixo” por ação legislativa e que, para tal, ha-
via que mudar primeiramente o regime político. Era, no fundo, o resulta-
do da fraqueza da classe operária portuguesa em face da força e da politi-

291
A. H. de Oliveira Marques

zação da pequena e média burguesias urbanas, receosas de “revoluções”


profundas que abalassem o direito de propriedade e o conjunto de direitos
civis e políticos pouco a pouco conseguidos a partir de 1820.
Um rei popular e político hábil, como outrora o haviam sido D. Luís
e D. Pedro V, poderia ter arredado ou, pelo menos, minorado, o perigo re-
publicano. Mas, à exceção da rainha-mãe Maria Pia, a família real portu-
guesa, na primeira década do século XX, era tudo menos popular. O rei D.
Carlos, inteligente e culto, artista e homem de ciência, orgulhoso, despre-
zava os seus conterrâneos, viajava muito, ausentando-se tempo demais no
estrangeiro, onde se divertia e gastava o que a opinião pública julgava ex-
cessivo. Conheciam-se e eram mal vistas pela sociedade hipocritamente pu-
ritana do tempo as suas aventuras galantes em Paris, as suas amantes no-
tórias, as suas fracas qualidades de pai de família. E entendia-se, numa épo-
ca em que o desprestígio dos partidos monárquicos e dos seus chefes polí-
ticos atingira o ponto máximo, que o rei não prestava suficiente atenção
aos negócios públicos e que não escolhia para governar os homens mais
qualificados, entregando o poder a ministros corruptos e corruptores, cuja
obra conduziria, em última análise, à perda da independência. A rainha D.
Amélia, malgrado a sua constante ação caritativa e filantrópica, era tida
como “beata” e dócil instrumento do clero secular e regular, nomeadamen-
te da Companhia de Jesus. Acusavam-na de constituir um mau exemplo
para os príncipes seus filhos, educados sob uma tutela clerical tida por ex-
cessiva e nefasta. Também a achavam gastadora e pouco simpática, muito
dada a validos e favoritas, não se lhe perdoando as más relações notórias
com a rainha-mãe D. Maria Pia, a “filha de Vítor Manuel”.
A questão religiosa tinha paralelo em outros países, nomeadamente
na França, na Itália, na Bélgica e, décadas atrás, na Alemanha. Em Portu-
gal, contudo, e dada a sua ligação íntima com a questão do regime, assu-
mia aspectos muito próprios e diferenciados. O anticlericalismo era timbre
da opinião pública mais esclarecida e vanguardista. Entendia-se que, sem
extirpar a ação do clero na vida individual e coletiva, não valia a pena em-
preender medidas revolucionárias de reforma da sociedade. Como dizia o
estadista Afonso Costa, em discurso de 16 de outubro de 1911, avaliando a
obra já então realizada pelo Novo Regime: “ela [a República] desceu até às
raízes do mal, e arrancou-as, expulsando os Jesuítas, dispersando as con-
gregações e aconselhando o padre, desde o tonsurado bispo até ao humil-
de cura da aldeia, a resignar-se com o estabelecido ou a lutar contra princí-
pios que o governo tinha combatido e estava disposto a esmagar”. Comba-
ter e destruir o clericalismo, portanto, era tão indispensável como derrubar
o regime. Igreja e Monarquia identificavam-se e mutuamente sustenta-
vam-se. E, tal como a família real em relação ao regime, assim também o
clero português no iníco do século não ajudava a uma dignificação da Igre-
ja nem a uma atitude simpática da opinião pública para com ela.

292
DA MONARQUIA PARA A REPÚBLICA

A questão colonial, especificamente portuguesa na sua forma de re-


ceio e desconfiança em face das demais potências com patrimônio ultrama-
rino e de corrida contra o tempo para o aproveitar e valorizar, esteve inti-
mamente ligada à questão do regime. Foi um dos grandes motivos do des-
crédito da Monarquia, da proclamação da República e da intervenção de
Portugal na guerra. E, embora apaziguada e relegada a segundo plano após
1919, continuou a desempenhar papel de relevo na política, na economia e
na sociedade portuguesas no decênio seguinte. O patrimônio colonial era
considerado – malgrado algumas opiniões em contrário – inalienável e in-
destrutível. A “lusitanização” dos territórios possuídos na África e Ásia tinha-
se por evidente, pensando-se pouco em hipóteses de independência “à bra-
sileira”. Além disso, e como já foi dito atrás, as colônias permitiam a Portu-
gal manter ainda alguma figura no conserto internacional.
A questão da dívida pública externa foi outro quebra-cabeças de en-
tão, como aliás de toda a história portuguesa. O país, pouco produtivo e em
vias de desenvolvimento, exigira sempre gastos avultados. Parte deles, aliás,
respeitara a guerras civis e a questões políticas diversas. Pedia-se então di-
nheiro emprestado ao estrangeiro. Pagava-se mal, com sucessivos atrasos e
moratórias. Os credores protestavam e ameaçavam. Recorria-se a expe-
dientes, a conversões forçadas, a manobras financeiras sempre insatisfató-
rias para os interesses nacionais. Em março de 1900, o tribunal arbitral de
Berna, a quem Portugal recorrera numa dessas questões com os credores
estrangeiros – a questão da estrada de ferro de Lourenço Marques –, profe-
riu sentença altamente desfavorável ao país. Foi necessário pagar 3 mil con-
tos aos governos britânico e norte-americano. Em 1902 resolveu-se outra
questão de dívida pública externa, sendo aprovado um convênio que le-
vantou tempestade nas tribunas e na imprensa.
A atribulada história da Primeira República Portuguesa passou por
três grandes fases. Na primeira, de 1910 a 1917 – a “República forte” –, o
novo regime justificou-se e aguentou-se à mercê de uma atitude agressiva
e pouco contemporizadora, tanto no interior como no exterior. Na segun-
da, de 1917 a 1919, dominado pelas forças de direita e subjugado pelas con-
seqüências desastrosas da guerra, tentou enveredar por caminho diferente,
que se revelou então impossível. Finalmente, na terceira, de 1919 a 1926 –
a “República fraca” –, aceitou compromisso atrás de compromisso, abando-
nando, na prática, os princípios revolucionários de 1910 e renovando toda
uma política de hesitações e incoerências que caracterizara os finais da Mo-
narquia. Vítima sobretudo do conflito mundial, cujos efeitos começou a
sentir logo em 1914, a Primeira República Portuguesa foi, de certa manei-
ra, um regime sem sorte, que os acontecimentos internacionais impediram
de se fortalecer e cristalizar (veja-se o paralelo com a Segunda República
Espanhola, à qual faltou, igualmente, o tempo indispensável para deitar

293
A. H. de Oliveira Marques

raízes). Foi também um regime excepcional na Europa do seu tempo, van-


guardista na contestação e, em muitos casos, na subversão que propunha,
o que tornava difícil a sua consolidação num período curto. E foi, por fim,
um regime apoiado sobretudo nas massas urbanas e flutuando ao sabor da
instabilidade social que elas atravessaram entre 1910 e 1926. Em qualquer
destes aspectos, a Primeira República contrastou flagrantemente com o re-
gime que lhe sucedeu, o qual, em perfeita sintonia com os movimentos au-
toritários e fascistas da Europa, solidariamente ancorado nas massas rurais
e conservadoras, e dispondo de suficiente tempo de paz para se estabilizar,
pôde aguentar-se durante dezenas de anos.
A política agressiva da “República forte” dirigiu-se, no plano interno,
em primeiro lugar contra a Igreja, reconhecida como o baluarte mais peri-
goso do conservantismo e do reacionarismo. Dirigiu-se igualmente contra
os monárquicos, contra a oligarquia financeira e econômica, contra o anar-
co-sindicalismo e a organização operária em geral, contra o caciquismo ru-
ral tradicional etc. No plano externo, e obviamente mitigada pelos melin-
dres diplomáticos e pelos perigos de isolamento internacional, dirigiu-se
contra a Espanha e, conjunturalmente, contra a Alemanha, numa tentati-
va para minorar a hegemonia espanhola na Península e para assegurar o
futuro desanuviado do patrimônio colonial. Neste sentido, e também para
sacudir o peso protetor da Inglaterra, adotou, desde os primeiros dias do
conflito de 1914-1918, uma política belicista e intervencionista, ao lado dos
Aliados, a contrastar com a neutralidade do país vizinho.
A República surgiu e triunfou em Portugal ao abrigo de dois mitos:
o da pátria decadente, “à beira do abismo”, conduzida pela Monarquia “à
ruina e à desonra”, e o da possibilidade do seu ressurgimento com novas
instituições, iniciado pela geração de 1890 e desde essa data. A decadência
da pátria dever-se-ia sobretudo a múltiplos fatores morais, todos eles incor-
porados na Monarquia: o jesuitismo, a “corrupção moral”, o servilismo, os
“preconceitos e os privilégios das castas” e outros conceitos mais ou menos
vagos, difundidos e partilhados pela opinião pública. Por isso se aspirava a
uma república “pura”, “imenso e grande ideal”, perfilhado por homens ins-
truídos e politicamente responsáveis como um Afonso Costa ou um Paulo
Falcão. Mas rejeitava-se que fosse apenas uma corrente filosófica a deter-
minante do ideário republicano. Para muitos, a República era a “conse-
qüência lógica e fatal” da própria evolução histórica portuguesa, caracteri-
zada por instituições e costumes “fundamentalmente democráticos”.
A monarquia constitucional, estabelecida depois da revolução liberal
de 1820 e estabilizada a partir dos meados do século, seguira os padrões co-
muns à maioria dos Estados europeus da época. O rei “reinava mas não go-
vernava”, ainda que as suas funções em Portugal estivessem acrescidas do
chamado “poder moderador” que lhe dava certos direitos intervenientes,
como o de dissolver as Câmaras quando necessário.

294
DA MONARQUIA PARA A REPÚBLICA

Durante a Monarquia, a representação parlamentar era em grande


parte uma farsa. Tal como acontecida na Espanha, embora o regime fosse
teoricamente constitucional, continuava na prática uma monarquia abso-
luta, que confiava o poder aos partidos; e os partidos, manipulando habil-
mente o maquinismo político, impunham esse poder a um povo ignorante
e indiferente na sua maioria. Luis Araquistain viu muito bem este proble-
ma, salientando que o poder não emanava do povo para os partidos e des-
tes para a Coroa, mas sim da Coroa para os partidos e destes para as orga-
nizações locais de caciques. “O povo votava por quem era mandado ou por
quem mais lhe pagasse os votos”. Os partidos não passavam de agrupamen-
tos heterogêneos, em torno de chefes. As suas ideologias eram vagas e pou-
co se diferenciavam umas das outras. Embora os Regeneradores fossem um
pouco mais conservadores e os Progressistas um pouco mais radicais, seria
absurdo tentar classificá-los como Direita ou Esquerda. Ambos eram pro-
fundamente conservadores e ambos se compunham de elementos oriundos
dos mesmos grupos sociais e com interesses semelhantes. O Partido Repu-
blicano parecia, à primeira vista, completamente diferente. Apresentava
um programa de ação radical, contava com gente mais dinâmica, mais nova
e mais consciente dos interesses do país. Apelava para as massas, prome-
tendo-lhes melhoria de nível de vida. Clamava contra a corrupção política,
contra o reacionarismo clerical e contra a nobreza. No entanto, como vi-
mos, o Partido Republicano definia-se muito mais pelo que não era do que
pelo que era. Era contra a Monarquia, contra a Igreja, contra a corrupção,
contra os grupos oligárquicos. Mas o seu programa mostrava-se muito vago
na afirmação de realidades positivas. E não podia ser de outro modo, dada
a filiação heterogênea dos seus membros. Se o grosso se compunha de re-
presentantes da classe média, não faltavam proletários e até camponeses,
de interesses contraditórios com os daquela; e mesmo aristocratas idealistas
ou despeitados militavam nas suas fileiras. Era uma espécie de Frente Po-
pular, formidável e eficiente na luta contra a situação que estava; mas inep-
to para operar logo que conquistasse o poder e presa de lutas intestinas que
o levariam à desagregação. O mais que se poderia afirmar do Partido Repu-
blicano era o seu caráter fundamentalmente urbano: mas ainda aqui as ex-
ceções se mostravam numerosas.
Feita a revolução de 1910, conquistado o poder pela força, o Partido
Republicano desagregou-se rapidamente, e a instabilidade política prosse-
guiu. Os elementos mais conservadores abriram cisão, agrupando-se em
torno de duas personalidades dominantes, uma mais popular e demagoga,
a outra mais intelectual e autenticamente crítica. O grosso do partido man-
teve a unidade, sob a chefia do mais hábil e dotado dos estadistas da Repú-
blica, Afonso Costa. Compunham-no sobretudo as massas da pequena bur-
guesia, com muitos proletários também. No entanto, os vícios herdados

295
A. H. de Oliveira Marques

mantiveram-se. Os partidos da República, ainda que mais definidos ideolo-


gicamente, nunca conseguiram eximir-se ao prestígio do “chefe” e ao auto-
ritarismo do cacique. Quando o chefe morria, fraquejava ou se retirava da
vida política, o partido declinava, abria cisão, extinguia-se muitas vezes.
Depois de 1919, a tendência para a especialização ideológica acen-
tuou-se. Na ala esquerda formaram-se alguns partidos ou associações polí-
ticas interessadas pela estruturação programática e pela relativa coerência
de atitudes; sirvam de exemplos o Partido Comunista (1919), o grupo Sea-
ra Nova (1921) e a Esquerda Democrática (1925), além de uma maior afir-
mação parlamentar e prática do velho Partido Socialista. Na ala direita, o
movimento era menos perceptível: grupos como o dos Católicos, ou o dos
Monárquicos, mostravam-se tão heterogêneos como o antigo Partido Re-
publicano. O único agrupamento coeso era o do Integralismo Lusitano, da-
tando já de antes da guerra, e que iria fornecer a essência da ideologia do
Corporativismo português depois de 1930.
Não obstante esta tendência política, o grosso do eleitorado conti-
nuava firmemente sob a alçada dos partidos tradicionais, detentores de um
maquinismo complexo e de um “savoir-faire” que escapava ainda (ou por
vontade) aos novos. Era o Partido Democrático (nome por que era geral-
mente conhecido o P R P), era o Partido Nacionalista (resultado final e her-
deiro da fusão de Evolucionistas com Unionistas) que geralmente governa-
vam sozinhos ou combinados, e que ganhavam as eleições.
A revolução de 28 de maio de 1926, que pôs fim à República Demo-
crática, foi, superficialmente, uma rebelião de todos os partidos contra a su-
premacia do Partido Democrático, enquistado no poder. Analisada em pro-
fundidade, contudo, foi muito mais do que isso: foi um autêntico movi-
mento de reação antiurbana, a resposta da maioria conservadora das
províncias à maioria radical das cidades-capitais. À semelhança da revolu-
ção republicana de 1910, o 28 de maio foi uma coligação de elementos he-
terogêneos, definida antes pelo que não queria do que pelo que queria. Ao
contrário dela, foi um movimento majoritário da estabilização, que triun-
fou, porque soube utilizar as camadas inertes, subjacentes, da população, as
interpretou no seu conservadorismo e as representou na defesa dos chama-
dos valores tradicionais: a Religião, o Exército, a Nação, a Família, a Ordem,
a Terra. À semelhança do que aconteceu com os vários movimentos con-
servadores ocorridos por toda a Europa pela mesma época, a situação polí-
tica portuguesa oriunda do 28 de maio foi provavelmente apoiada pela
maioria da Nação.
A República evoluía logicamente para um radicalismo de feição so-
cialista ou socializante. Reforma agrária, aumento de tributação sobre os
possidentes, nacionalizações, desenvolvimento da assistência social, melho-
ria do nível de vida das classes populares, contavam-se entre os assuntos

296
DA MONARQUIA PARA A REPÚBLICA

em discussão e inseriam-se na agenda dos partidos, quando não se acha-


vam já em vias de efetivação. Era o resultado óbvio da gradual industriali-
zação do país e da lenta alfabetização das massas.
Mas esta evolução, se parecia excessivamente demorada a uns – os
intelectuais, os operários –, afigurava-se espantosamente rápida a outros –
os proprietários rurais, os capitalistas, parte da classe média, a Igreja. De
uma maneira geral, todos estavam descontentes. De uma maneira geral, to-
dos se uniam contra o status quo. De uma maneira geral, todos aplaudiram
o golpe, muitos porque foram incapazes de o compreender, muitos porque
julgaram poder aproveitar-se dele. Como sucedera em 1910, com a Monar-
quia, a República Democrática caía agora por falta de defensores.
O movimento produziu-se. Desencadeara-o o exército – as altas e
médias patentes, cujo poder de compra estava reduzido à metade do que
fora em 1910. Apoiaram-no: o alto e médio funcionalismo público, por
idênticas razões; os bancos, o alto comércio e a grande indústria, agravados
pela crise econômica e financeira, aterrorizados pelo surto do socialismo; o
clero, decadente pela progressiva descristianização, ansioso por recuperar a
influência perdida; parte da classe média das cidades, descontente com a
crise econômica, saturada de instabilidade política e de ameaças revolucio-
nárias; parte da intelligentzia, desiludida com o decair dos ideais republica-
nos, atraída pela novidade do Integralismo. Como grande pano de fundo, a
Nação agrária, a Nação conservadora, a Nação feminina.
Depois de uma natural instabilidade política durante os três ou qua-
tro primeiros anos – semeada de revoluções, de golpes de Estado e de mi-
nistérios – o Novo Regime consolidou-se por volta de 1931. Símbolo des-
sa consolidação foi a entrega da chefia governamental a Salazar (1932) que,
na realidade, dominava já desde 1928.

297
capítu lo 16
A D EMOCRA CIA FRÁ GIL:
A PRIMEIRA REPÚBLICA
PORTUGUESA (1910-1926)
“um regime débil e caótico que acabou por comprometer a
sorte da democracia em Portugal.”
João Medin a*

“As revoluções são o imprevisto; em nenhum país como este, o imprevisto, se não é
impossível que represente a sorte grande, é provável que seja um bilhete que
saiu branco – uma desilusão e um prejuízo.“

Basílio Teles, As ditaduras (1911; reed. de artigos pu blicados em 1907).

“O mais grave erro da República foi o de não ter sabido realizar-se.”

João Chagas, A última crise (1915) .

O D ESMORON A R D A REA LEZA E A CON QUISTA


D O POD ER PELOS REPUBLICA N OS (1980-1910)

O desm oron am en to da m on arqu ia con stitu cion al coin cide com o


fin al do rein ado de D. Lu ís (falecido em ou tu bro de 1889), o qu e levaria
Oliveira Martin s, artista sen sível aos pren ú n cios do dram a n acion al qu e
se m u ltiplicavam n o fin al daqu ela década, a resu m ir o tran se escreven do
qu e, ao fech ar-se o ataú de régio, se dera o sin al para o in ício da tragédia,
soltan do “lu gu brem en te as fú rias da desgraça Eu m ên ides, qu e pairavam
en qu an to a roda de u m a fortu n a falaz ia acu m u lan do, em voltas su cessi-
vas, as cau sas da ru ín a próxim a” (artigo de 1892, in clu ído n o volu m e II
de Política e História, de O. Martin s). Lin gu agem som bria, m esm o fú n ebre,
m as qu e de fato correspon dia fielm en te ao acu m u lar de catástrofes qu e
se abateriam sobre o n osso país n o in ício do rein ado de D. Carlos: Ultima-
tum in glês de 11.1.1890, crise econ ôm ico-fin an ceira de 1891-1892, revol-
ta repu blican a n o Porto (31.1.1981), gu erras colon iais em Moçam biqu e
... Eram de fato, com o escrevia ain da Martin s n o m esm o texto, os estre-
m eções du m “já lon go terrem oto cu jo fim n ão vim os ain da”...

299
João Medina

DESAGREGAÇÃO DO ROTATIVISMO

Politicam en te, a Regen eração baseava-se n o rotativism o, ou seja,


n a altern ân cia pacífica, n o poder, das du as alas do liberalism o m on árqu i-
co, e qu e seriam , depois do pacto da Gran ja (fu são de h istóricos e refor-
m istas n o Partido Progressista, o “partido patu léia”, em 1876), os sem pi-
tern os Regen eradores, liderados pelo etern o Fon tes (qu e h avia de falecer
em 1887), e os Progressistas, n a prática con du zin do am bos as m esm a po-
líticas e revelan do os m esm os vícios, m as in capazes de caberem n a m es-
m a m esa orçam en tal. “Eles n ão estão divididos, eles cabem n os m esm os
prin cípios – on de eles n ão cabem é n a m esm a sala de jan tar!”, satiriza o
pan fletário repu blican o João Ch agas ( Posta restante, 1906). A lei eleitoral,
de base cen sitária, e a perversão sistem ática do su frágio torn avam aliás o
voto u m a farsa qu e foi tem a obrigatório de qu an tos caricatu ristas, jorn a-
listas e até rom an cistas trataram desse tem a,1 den u n cian do, com ju sta
pertin ácia, ao lon go de toda a segu n da m etade do sécu lo XIX e n a prim ei-
ra década da cen tú ria segu in te, a m en tira eleitoral, as m ais diversas for-
m as de caciqu ism o e a con stan te desvirtu ação do voto “livre” n o Portu -
gal con stitu cion al, ten do sido tam bém tópico in variável da propagan da
repu blican a n a crítica aos m ales da realeza liberal. Os partidos n ão passa-
vam de pequ en os gru pos fixados em Lisboa. Com a su a clien tela certa e
os seu s caciqu es n a provín cia – ou “in flu en tes” – qu e serviam às su as
clien telas pagas o con sabio “carn eiro com batatas” das “ch apeladas” elei-
torais, fabrican do as m aiorias n ecessárias para qu em fora ch am ado a for-
m ar govern o. De fato, as eleições saíam dos govern os e n ão estes daqu e-
las: a Coroa n om eava u m m in istro, este form ava o seu gabin ete en tre os
seu s am igos e m aiorias do partido, dissolvia o parlam en to e preparava a
m aioria parlam en tar in dispen sável para govern ar com ela. Qu an do já n ão
lograva m an ter-se n o poder, cabia ao rei n om ear ou tro prim eiro-m in is-
tro, qu e repetia o processo. As m u dan ças freqü en tes de gabin etes e a di-
ficu ldade em assegu rar govern os de legislatu ra torn avam qu ase im possí-
vel m an ter u m a política estável e coeren te por m u ito tem po.
As qu ezílias in tern as dos partidos m on árqu icos ir-se-iam agravan -
do n o fin al do sécu lo XIX, dan do origem a dissidên cias qu e afetaram tan -
to progressistas (os Dissiden tes de Alpoim su rgiram em 1905) com o Re-
gen eradores (dos qu ais se h avia de separar João Fran co ao criar o Cen tro
Regen erador Liberal em 1901); pela m esm a altu ra ten tou -se ain da a cria-
ção du m Partido Nacion alista, fortem en te en feu dado ao catolicism o re-
trógrado, liderado por u m dissiden te regen erador, Jacin to Cân dito da Sil-
va. O partido “legitim ista, o Migu elism o – m an ter-se-ia todavia arredado
da vida parlam en tar. O operariado, u m a vez desfeitas já n a década de
1880 as ilu sões dos h om en s qu e tin h am fu n dado em 1875 o Partido So-

300
A DEMOCRACIA FRÁGIL: A PRIMEIRA REPÚBLICA PORTUGUESA (1910-1926)

cialista, viu -se depressa sem u m órgão partidário do Repu blican ism o, qu e
garan tiam aos trabalh adores qu e a fu tu ra Repú blica seria “social”. Qu an -
to aos repu blican os, esses n ão logravam sair dos m in ú scu los redis a qu e
os tin h am con den ado as leis eleitorais feitas para favorecer a m aqu in aria
partidária da m on arqu ia, o qu e seria agravado com diplom as verdadeira-
m en te escan dalosos; u m deles, da lavra de Hin tze, ficou m esm o design a-
do por “ign óbil porcaria” (lei eleitoral de 1901) ... por fim , n ota-se qu e o
partido h egem ôn ico por excelên cia, ao lon go de todo o n osso sistem a par-
lam en tar m on árqu ico, o Regen erador – qu e por essa razão m ais tem po
ocu pou o poder en tre 1851 e 1910 –, sofreria, além da referida cisão fran -
qu ista, u m en orm e en fraqu ecim en to in tern o por via das capelas agru pa-
das em torn o de líderes qu e n ão se en ten diam , en tre eles (Teixeira de
Sou sa, Jú lio Vilh en a, Veiga Beirão, Cam pos Hen riqu es etc.). Assim , arre-
dado do jogo parlam en tar a altern ativa in stitu cion al do repu blican ism o e
en tran do em fragm en tação os partidos rotativistas, crescen do en tre algu -
m as facções dissiden tes a ten tação ditatorial ou cesarista – de qu e o Fran -
qu ism o foi a expressão m ais agressiva e calam itosa (J. Vilh en a, n u m arti-
go de 20.X.1907, n o Popular, profetizara qu e aqu ela ditadu ra term in aria
“fatalm en te por u m crim e ou u m a revolu ção”, acaban do aliás por am bos,
pois ao Regicídio – 1.II.1908 – se h avia de su ceder, dois an os volvidos, a
revolu ção do 5 de ou tu bro... ), o Liberalism o oitocen tista torn ara-se, so-
bretu do depois da prim eira experiên cia ditatorial de Fran co (feita de par-
ceria com Hin tze Ribeiro, 1895-1897), u m sim ples cen ário pin tado, u m
m ero acervo de prin cípios em qu e n in gu ém já acreditava.

DO TERREMOTO AO “DIES IRAE”

O en dividam en to extern o, a em igração crescen te, a estagn ação


econ ôm ica in tern a, o predom ín io da bu rgu esia m ercan til e fin an ceira,
ban cária, a depen dên cia extern a em vários setores, desde o tecn ológico
aos dem ais, o erro de u m a opção livre – cam bista n u m país on de a pro-
du ção fabril era fru ste, o defeitu oso fu n cion am en to do sistem a liberal
parlam en tar, todos estes problem as se agravaram de m odo dram ático n os
com eços da década de1890, sobretu do n a gravíssim a crise de 1891-1892,
gerada pelas flu tu ações cam biais n a Am érica do Su l, com o n efasto refle-
xo n a rem essa das pou pan ças dos em igran tes, sem esqu ecer a sim u ltân ea
trepidação in tern a trazida pelo Ultimatum in glês de jan eiro de 1890, m o-
m en to de verdadeira h u m ilh ação coletiva n acion al qu e h avia de desper-
tar para a ação u m in cipen te Partido Repu blican o, su rgin do n aqu ele pe-
ríodo de an gú stia e cólera com o u m a espécie de Sebastian ism o verm elh o
qu e tran sform ava a idéia da Repú blica n u m m ito de tipo m essiân ico – ela

301
João Medina

era, ao m esm o tem po, D. Sebastião e a Virgem Maria à qu al se reza pela


salvação –, com o aliás o su speitaram , com bastan te apreen são, as figu ras
m ais lú cidas do clã an tim on árqu ico (Basílio Teles, v.g.).
O déficit do tesou ro, já de si m u itíssim o preocu pan te, fazia pairar n o
com eço da década de 1890 o espectro m u ito real da ban carrota; a esta so-
m ava-se, com a crise colon ial de qu e resu ltara a afron ta do Ultimatum in -
glês, o perigo da perda do n osso im pério african o, esse “terceiro im pério”
cu ja preservação patriótica se torn ara u m m ito n acion al de in calcu láveis
con seqü ên cias: a du pla derrocada do sistem a regen erador (ou seja, por
u m lado, o desm oron am en to do liberalism o en qu an to tal, e, por ou tro, a
am eaça da ban carrota com plicada com a am eaça das perda do im pério
african o em proveito da n ossa “Fiel Aliada” agu dizaria a m en talidade
m essiân ica lu sa, despertan do em algu n s setores políticos e cu ltu rais a m i-
tologia do “en direita” e o ditador ou salvador capaz, ao m esm o tem po, de
an iqu ilar o crescen te perigo repu blican o e, por ou tro, de ven cer os dois
dem ôn ios m ais in stan tes, a ban carrota e a am eaça im perial vin da da Grã-
Bretan h a. Destes pân icos e aspirações saiu verdadeiram en te o fim do sis-
tem a liberal, desacreditado n a política e n a vida prática efetiva dos portu -
gu eses, torn an do afin al sin ôn im o de bu rlas eleitorais n a adm in istração,
com padrios gritan tes e in cú ria econ ôm ico-fin an ceira.
Em m eados da década de 1890, com algu m as retu m ban tes vitórias
m ilitares african as (geração de An tôn io En es, vitórias m ilitares em Mo-
çam biqu e, de 1895 em dian te), o son h o du m regim e au toritário e reden -
tor vai crescen do em torn o do n ovo rei, D. Carlos, apostado em desm an -
telar o velh o sistem a m on árqu ico-con stitu cion al em proveito de “en direi-
tas” ou “m essias” qu e estabelecessem en tre n ós u m cesarism o, qu er civil,
qu er m ilitar, capaz de ven cer a crise, ou seja, san ear as fin an ças, expu lsar
os partidos do sistem a, qu ebrar a espin h a ao repu blican ism o qu e am eaça-
ra tu do su bverter desde 1891 com a falh ada revolta portu en se. Mou zin h o
de Albu qu erqu e, o apoteoticam en te aclam ado h erói african ista, foi u m
desses h om en s providen ciais em qu e o Paço pen sou para estabelecer a al-
m ejada ditadu ra en direitadora, m as foi afin al o civil e ju rista João Fran co
(1855-1929) qu e, em 1906 acabaria por ten tar a (aliás catastrófica) expe-
riên cia do dito en gradecim en to do poder régio ou cesarism o m on árqu ico
– de qu e o trân sfu ga Oliveira Martin s fora o m ais resolu to pregoeiro ideo-
lógico e até prático –, qu e se h avia de saldar com o assassin ato do próprio
m on arca qu e patrocin ara essa tão afron tosa ten tativa de se afastar dos pa-
râm etros do liberalism o estabelecido en tre n ós desde 1834. Caberia en tão
aos repu blican os lu sos, depois do triu n fo da revolu ção de 1910, ten tar res-
tau rar ou recom eçar o liberalism o em Portu gal.

302
A DEMOCRACIA FRÁGIL: A PRIMEIRA REPÚBLICA PORTUGUESA (1910-1926)

A SEGUN D A EXPERIÊN CIA LIBERA L


A REPÚBLICA D EMOLIBERA L (1910-1926)

A REVOLUÇÃO LISBOETA

A crise colon ial fora explorada pelos Repu blican os, cu ja prim eira
ten tativa de tom ada do poder, a im pacien te e desastrada revolta portu en -
se em 1891 era, com o o su blin h aria Basílio Teles n u m a obra célebre ( Do
Ultimatum ao 31 de Janeiro, 1905), o desfech o lógico daqu ele “dia [qu e] va-
leu sécu los”, o do Ultimatum in glês de 11.I.1990. O tron o dos Bragan ças
era apon tado com o o fau tor de todas as desgraças n acion ais, poetas de-
m agógicos com o Ju n qu eiro ou Edo Metzn er celebravam em verso o ódio
an tibrigan tin o, apelan do sem rebu ços ao assassin ato com o qu e ritu al do
m on arca, ao qu al se deitavam todas as cu lpas, o loiro e sibarita D. Carlos,
qu e de fato acabaria varado, assim com o o Prín cipe real, por dois exalta-
dos, Alfredo Costa e Man u el Bu ica, n o Terreiro do Paço (1.11.1908).
Com esse crim e caía a in feliz experiên cia ditatorial de João Fran co
e acelerava-se n os setores repu blican os m ais in trépidos a idéia de con fiar
a u m a associação secreta con spirativa, de in spiração e m odelo m açôn ico,
a Carbon ária portu gu esa – criada em fin s de oitocen tos e liderada en tão
por u m triu n virato a qu e perten ciam Mach ado San tos, Lu z de Alm eida e
An tôn io Maria da Silva, u m oficial de m arin h a, u m bibliotecário e u m en -
gen h eiro civil, respectivam en te –, a tarefa de “pôr a revolu ção n a ru a”,
derru ban do pelas arm as a realeza, o qu e se decidiu por fim n o con gresso
de Setú bal (abril de 1909) do PRP (Partido Repu blican o Portu gu ês),
abrin do assim a via à revolta arm ada, já qu e as eleições n u n ca seriam m é-
todo viável para ascen der ao poder.
Graças a u m form idável trabalh o de sapa e de proselitism o por todo
o país, trein o n o m an ejo de arm as e sobretu do de bom bas, in filtran do os
seu s “bon s prim os” n as Forças Arm adas, m orm en te n a Marin h a, com
seu s bastiões con spirativos solidam en te im plan tados em bairros operários
ribeirin h os de Lisboa, a Carbon ária, ou “m açon aria florestal”, preparou a
revolu ção repu blican a sem n u n ca ver os seu s m an ejos su bversores abor-
tados pela vigilân cia policial, an tes logran do m obilizar algu n s m ilh ares de
h om en s e sobretu do h eroísm os bastan tes para, n o m eio du m a con fu sa e
a todos os pon tos de vista caótica revolta civil e m ilitar, após dois dias de
lu ta, do 4 ao 5 de ou tu bro de 1910, deitar abaixo de u m a m on arqu ia m u l-
tissecu lar, forçan do o jovem D. Man u el II (n ascido em 1889, n o an o m es-
m o em qu e, n o Brasil, triu n fara a Repú blica) a fu gir para a In glaterra,
on de aliás viveria assistido pela galan te colaboração dos h om en s do n ovo
regim e, qu e tin h am previam en te solicitado ao Foreign Office a au torização

303
João Medina

para m u dar de regim e e as con dições em qu e o fariam , com o esperado


respeito pela pessoa – e pelos ben s – do próprio rei ...
O n ovo regim e fora o resu ltado de décadas de propagan da m essiâ-
n ica, on de, a par de arden tes son h os de reden ção n acion al, se m istu ra-
vam prom essas dem agógicas de “bacalh au a pataco” ou , pelo m en os, de
u m a m elh oria da con dição e do passadio das classes popu lares e da m é-
dia e pequ en a bu rgu esia qu e n a prom etida Repú blica tin h am con fiado os
seu s m ais fu n dos an seios de em en da dos m ales pátrios, agravados com a
crise gen eralizada dos an os 90 e os sobressaltos colon iais sem esqu ecer os
clam orosos escân dalos dos “adian tam en tos” qu e tin h am degradado por
com pleto a im agem da fam ília real.

RECOMEÇAR O LIBERALISMO

De fato, tom ada a revolu ção n o seu m ais fu n do an seio e sign ifica-
do, 1910 foi an tes de m ais a terceira ten tativa de estabelecer en tre n ós o
Estado bu rgu ês liberal, após os ten tam es pom balin os e a revolu ção de
1820-1834, e de m odelar u m a sociedade realm en te bu rgu esa, de in stalar
em Portu gal a (até ali falh ada) civilização bu rgu esa. O qu e sign ificava qu e
se tin h am de fato gorado os propósitos sem elh an tes in ten tados sobretu -
do pela revolu ção liberocapitalista do prim eiro m odelo liberal, aqu ele qu e
se en saiara en tre 1820 e 1851. Agora ia ten tar-se u m remake do liberalis-
m o qu e se fru stara e fora ren egado pelos seu s próprios filh os desde os
an os 90, ten tan do de n ovo ergu er u m a sociedade, u m Estado, u m a cu l-
tu ra e u m a sociedade realm en te bu rgu eses sobre os escom bros do fiasco
da an terior ten tativa com prom etida por D. Carlos e João Fran co, para só
citar as cabeças visíveis do im en so processo de desm an telam en to e in u -
m ação dos ideais vin tistas, m in deleiros e regen eradores. O Estado e a so-
ciedade, a econ om ia e a cu ltu ra ressen tiam -se ain da, à altu ra do 5 de ou -
tu bro, do arcaísm o de An tigo Regim e qu e perdu rara apesar da desam or-
tização das propriedades, do en cerram en to das orden s religiosas, da ex-
tin ção do m orgadio, da laicização do en sin o e da vida em geral, e de
qu an tas reform as ju rídicas, fiscais, adm in istrativas, fu n diárias da Silveira,
tin h am en saiado para im plan tar en tre n ós o regim e represen tativo co-
m an dado pela bu rgu esia, segu n do valores bu rgu eses.
Con tu do, com o se disse, Portu gal n ão se m odern izara a fu n do, an -
tes acabar, n a fase da crise n oven tista, por ter sau dades do “an tigam en te”
au toritarista e clerical, em su m a “m igu elista”, de qu e o fran qu ism o, com
os seu s m étodos bru tais, fora u m a varian te atu alizada. Um dos m elh ores
e m ais lú cidos críticos repu blican os do cesarism o fran qu ista, João Ch agas,
debru çan do-se sobre as qu erelas em torn o do clero e do ressu rgir de u m

304
A DEMOCRACIA FRÁGIL: A PRIMEIRA REPÚBLICA PORTUGUESA (1910-1926)

sen tim en to clerical n o Paço e n a classe política dirigen te, observara n as


su as Cartas políticas – u m dos m aiores m on u m en tos da prosa dou trin al e
pan fletária portu gu esa –, qu e algu n s fen ôm en os do rein ado fin al da m o-
n arqu ia, o de D. Man u el II, com provavam qu e se ren egaram as origen s
voltairian as e racion alistas do n osso liberalism o, acrescen tan do:

É o Portu gal dos sécu los XVII e XVIII, o Portu gal absolu tista, edu cado pe-
los frades e pelos jesu ítas, com o m esm o fu n do étn ico e a m esm a m en ta-
lidade. É u m Portu gal de torvos in qu isidores, de grotescos ch ech és, de ca-
pitães-m ores, de beatas, de peraltas, de sécias, de vates de eirado e de ra-
tos de sacristia, trescalan do ao fartu m dos tem pos om in osos. Esse Portu gal
reviveu com a crise fin al da din astia. Era u m sedim en to social, u m depó-
sito com o o qu e existe n o fu n do de garrafas. A sociedade agitou -se. Ele
veio acim a e tu rvou -a. O qu e restou de extin to, de m orto n a alm a portu -
gu esa adqu iriu vida, adqu iriu m ovim en to, en trou em atividade. ( Cartas po-
líticas, 2ª série, 21.IV.1909).

Em ou tras palavras, o tal “sedim en to” do An tigo Regim e sobrevi-


veria às ten tativas su perficiais de liberalização e m odern ização, resistira
in cólu m e às reform as e aos ten tam es de in du strialização capitalista, vol-
tava à su perfície da sociedade com a crise de 1890 – a própria geração de
90 exaltara esses valores passadistas e retrógrados (v. g., A. Nobre e Al-
berto de Oliveira) –, e fazia agora bloco com os esforços de “en direitas”,
com o João Fran co, a fim de arrasar de vez todo o edifício liberal. A tal
“oligarqu ia fin an ceira tem perada por ficções con stitu cion ais” (O. Mar-
tin s) dava lu gar aos ven cidos de 1834, de regresso ao poder, don de afin al,
n u n ca tin h am sido com pleta e estru tu ralm en te afastados. A Repú blica
era, destarte, a ten tativa de recom eçar o liberalism o, aliás em parâm etros
econ ôm icos e sociais qu e n ão divergiam de todo os m oldes vin tistas qu e
o seu im agin ário tan to aperfeiçoara, cu ltu an do h om en s com o José Este-
vão, Passos Man u el, Mou zin h o da Silveira e ou tros gran des próceres do
espírito liberal e reform ista de oitocen tos.

A VERGONHA DA “ADESIVAGEM”

A Repú blica ten tou , pois, a reform a radical, o regresso ao pu ro li-


beralism o. Fê-lo a vários n íveis, pren den do-se desde logo com a reform a
dos sím bolos e da m en talidade: a ban deira, o escu do, a topon ím ia, a or-
tografia, as in stitu ições do en sin o (por exem plo, criaram -se as Facu ldades
de Letras e Direito, em 1911 e 1913, respectivam en te), os feriados, os
form u lários oficiais ( o afran cesado “Saú de e Fratern idade!” su bstitu iu a
fórm u la de en cerram en to dos ofícios da m on arqu ia, qu e era “Deu s gu ar-
de V. Exa!”), as n ovas estam pilh as postais, a criação de u m cu lto cívico

305
João Medina

popu lar e n acion al em torn o do m ito de Cam ões etc. Nu m a Eu ropa con -
servadora e predom in an tem en te m on árqu ica, a isolada Repú blica lu sa –
só h avia m ais du as, a h elvética e a fran cesa – posta de qu aren ten a pela
“fiel aliada” e m alvista pela Espan h a de Afon so XIII, qu e n ão h esitaria em
dar gu arida aos m on árqu icos portu gu eses – ou “talassas”, com o eram en -
tão design ados – ali h om izados com in tu itos de organ izarem as in cu rsões
arm adas con tra o n ovo regim e (o qu e fariam em 1911 e 1912) – h esita-
va en tre o certo radicalism o extrem o n os propósitos e u m a pru den te n e-
cessidade de se “con solidar” an tes de pôr em prática as su as reform as.
Estas tin h am m u ito a ver com os escân dalos de corru pção, com pa-
drio e sobretu do com os “adiam en tos” qu e a fam ília real se h abitu ara a
pedir ao erário pú blico, con fu n din do-o com o erário régio, com m an ifes-
to preju ízo do prim eiro, casos qu e tin h am de fato m an ch ado a repu tação
tan to da din astia com o do pessoal político dirigen te, sen do im pu tada a
Fran co a m an eira atrabiliária com o liqu idara esse caso, em plen a ditadu -
ra, e forn ecen do con tas m an ipu ladas de m olde a darem essas dívidas
com o saldadas. Em pen h ado em m oralizar e in iciar vida n ova, o n ovo re-
gim e com eçou portan to por qu erelar o an tigo dotador Fran co, qu e aca-
baria aliás ilibado, prim eira das m u itas desilu sões e falh an ços do projeta-
do “Dies Irae” repu blican o qu e, com o o con fessaria de n ovo João Ch agas,
era m ais u m “idílio” do qu e o prom etido dia do castigo.
O fenômeno da “adesivagem”, um dos mais impressionantes e curio-
sos m ovim en tos sociais e políticos da n ossa classe política n os tem pos m o-
dern os, com plicaria ain da m ais os ru bros propósitos de barrela, castigo,
em en da e cau térico qu e se tin h am desde sem pre associado à idéia de in s-
tau ração en tre n ós du m regim e de barrete frígido, ou seja, h on esto, reto,
fratern o, igu alitário e livre, abn egadam en te devotado à regen eração da
vida portu gu esa; os “aderen tes” ou “adesivos” eram aqu eles qu e, ten do
servido à Mon arqu ia em lu gares de destaqu e ou m esm o em fu n ções m a-
n ifestam en te repressivas (gu arda m u n icipal, polícia, exército), se passa-
vam para o n ovo regim e, m u dan do de cam isa, lábaro e con vicções com
u m a fu lm in an te rapidez, su scitan do assim a in dign ação com preen sível
dos pou cos m on árqu icos qu e se m an tin h am fiéis à ban deira azu l e bran -
ca, assim com o dos velh os repu blican os “h istóricos”, qu e viam en trar de
roldão n os arraiais da Repú blica aqu eles m esm os qu e, ain da on tem , os
persegu iam , descrim in avam , espadeiravam ou espin gardeavam .
O fen ôm en o da “adesivagem ”, cu ja am plidão im pression ou e des-
gostou as alm as retas e fez as delícias dos gazetilh eiros e caricatu ristas,
su scitan do m esm o u m a revista satírica ch am ada O Adesivo (1911), ali-
m en taria até o fin al da Repú blica os protestos, a irritação, a cólera ou a
sim ples m ofa de qu em via deste m odo im oral o tem plo do n ovo regim e
assaltado por clien telas fam élicas e deson estas, raceosas de perderam po-

306
A DEMOCRACIA FRÁGIL: A PRIMEIRA REPÚBLICA PORTUGUESA (1910-1926)

sições, em pregos, preben das ou sin ecu ras. Foram pou qu íssim os os qu e,
com o Paiva Cou ceiro ou Parati, se n egaram a “aderir” a n ova ban deira
verde-ru bra e se m an tiveram fielm en te in tran sigen tes n o seu am or pelo
an tigo regim e caído. Figu ras m in isteriais, da m agistradu ra, da diplom acia,
do exército, da polícia, do clero, da u n iversidade, do fu n cion alism o pú bli-
co ou in telectu ais fam osos celebrizaram -se pela su a “adesivagem ” qu e
iam do rábido Pe. Matos (qu e com eçara por fu gir para Espan h a, don de
m an daria a su a en vergon h ada declaração de adesão à Repú blica), a polí-
ticos com o José Maria de Alpoim , Teixeira de Sou sa, Ferreira do Am aral,
Cerveira de Albu qu erqu e, Leote do Rego, Norton de Matos, ou escritores
com o Hen riqu e Lopes de Men don ça, Abel Botelh o, Jú lio Dan tas etc. O
m oderan tism o prático e a au sên cia de au tên tico “Dies Irae” repu blican o
derivam em larga m edida deste fen ôm en o de “adesivagem ” qu e m u ito
degradou as gran des esperan ças de verdadeira reform a e em en da dos m a-
les n acion ais depositadas n o adven to do n ovo regim e. Se, com o dizia u m
jorn al sin dicalista lisboeta, a realeza m orrera “pu lh am en te” ( A Sementeira,
n º. 26, ou tu bro de 1910), a verdade é qu e a im acu lada im agem da espe-
ran çosa Repú blica, m u lh er virgin al, aparecia desde as prim eira h oras
con spu rcada pelo lodo dos “adesivos”, qu e se lh e colavam ao corpo com o
san gu essu gas, com o aliás o explicava u m desen h o do Suplemento Ilustrado
(27.XI.1910, des. De A. Moraes): “Percebo, m en in os ... Aderem , com o as
san gu essu gas!”

A “BALBÚRDIA SANGUINOLENTA”

A fragilidade da ordem pú blica, o desen ten dim en to perm an en te


dos prin cipais líderes políticos do n ovo regim e (A. Costa, B. Cam ach o e
A. J. Alm eida, dirigen tes, respectivam en te, dos Dem ocráticos, Un ion istas
e Evolu cion istas), a in stabilidade política tradu zida em govern os efêm e-
ros cu ja du ração n ão excederia os três m eses, a geral in capacidade de pre-
parar e execu tar reform as de fu n do decepcion ariam assim os qu e tin h am
esperado da repú blica u m a gran de barrela, e qu e agora, m u itas vezes do-
lorosam en te m agoados (Basílio Teles, Mach ado San tos, Sam paio Bru n o,
Cu n h a e Costa etc.), ora se abstin h am de participar do n ovo estado de
coisas, ora se afastavam en ojados ou até m u davam de cam po; as cizân ias
perm an en tes, a in capacidade de u n ir em torn o de u m n ú cleo cen tral e
fu n dam en tal de reform as os esforços dos n ovos dirigen tes e das n ovas
forças partidárias, a con stan te in stabilidade govern am en tal, o agravar dos
velh os problem as de sem pre, n o cam po econ ôm ico e fin an ceiro, as qu e-
relas da sociedade civil e, agora, n ovos con flitos qu e se agu çariam de
m odo exasperan te – n om eadam en te com a Igreja católica – fragilizaram

307
João Medina

a Repú blica, torn aram -n a an êm ica, in capaz, paralizada por in decisões, re-
voltas, bern ardas castren ses, sobressaltos, – era a “balbú rdia san gu in olen -
ta” prevista u m a vez por Eça de Qu eirós –, e erros fu n estos.
Destes, u m dos m ais graves talvez ten h a sido a declaração de gu er-
ra, lan çada n os prim eiros dias e depois extrem ada por Afon so Costa com
a su a lei de Separação das Igrejas (u m plu ral in ju stificado...) e do estado
(20.IV.1911), verdadeiro aríete lan çado con tra os católicos, o clero e tu do
o qu e em Portu gal, para o m elh or e para o pior, represen tava a vivên cia
da religião tradicion al. Esta gu erra cu staria im en so à Repú blica, n a m edi-
da em qu e, som ada a ou tros con flitos n ão m en os can den tes, redu ziria
cada vez m ais o cam po dos qu e apoiavam o Novo Regim e: os 16 an os qu e
m edeiam en tre a revolu ção de 1910 e o golpe castren se de Braga em 1926
são a crôn ica m on óton a, fren ética, qu ase sem pre san gu in olen ta, de desi-
lu sões con stan tes e desvarios in fin dáveis, em ritm o cada vez m aior, crô-
n ica du m a progressiva degradação do ideal, da fé e da esperan ça n u m re-
gim e qu e fora, con tu do, proclam ado, sau dado e apoiado com u m a u n a-
n im idade en tu siástica e qu ase m essiân ica, qu e raram en te se terá con h e-
cido n ou tras épocas da n ossa História de oito sécu los. Os assassin atos da
“Noite San gren ta” (19.X.1921) – a “n oite in fam e”, com o lh e ch am ou
Rau l Bran dão –, du ran te a qu al tom bam fu n dadores da Repú blica com o
Mach ado San tos, An tôn io Gran go e Carlos da Maia, leva ao clím ax esta
dan sa m acabra qu e só term in aria de vez cin co an os depois.
Ao n ú m ero dos in im igos da Repú blica con vém acrescen tar o ope-
rariado, depressa desilu dido com os preten sos in tu itos sociais do n ovo re-
gime – “Oh! A República!...” , gemeria a revista Terra Livre (nº. 11, 24.IV.1913),
desen gan ada da u tilidade de ter trocado u m m on arca por u m Presiden te
da Repú blica –, qu e n ão tardaria aliás em fazer m an ifestações con tra as
greves e em disparar sobre u m cortejo de m u lh eres qu e pediam au m en -
to de salário, em Setú bal (m arço de 1911), ao m esm o tem po qu e a “lei
bu rla” de Brito Cam ach o sobre a greve, com o lock-out igu alm en te garan -
tido, levaria os sin dicalistas e as m assas trabalh adoras em geral a in icia-
rem u m con ten cioso com a repú blica, qu e teria m om en tos dram áticos em
1912 (declaração do estado de sítio em Lisboa, prisões em m assa de sin -
dicalistas, m etidos em porões de n avios su rtos n o Tejo, en cerram en to da
Un ião Operária Nacion al, deportações de sin dicalistas para presídios alen -
tejan os...), 1913 (en cerram en to da Casa Sin dical, repressão violen ta con -
tra os “an arqu istas”, expu lsão de Pin to Qu artim para o Brasil), 1917,
1918 etc.
Este divórcio en tre operariado e repú blica n u n ca m ais seria san a-
do, em bora aqu i e além , m u ito pon tu alm en te com o du ran te a revolta
m on árqu ica de Mon san to (jan eiro de 1919), trabalh adores pegassem em
arm as con tra sedições talassas, para defen der u m regim e qu e, afin al, lh es

308
A DEMOCRACIA FRÁGIL: A PRIMEIRA REPÚBLICA PORTUGUESA (1910-1926)

pagava sem pre com tiros, assaltos à Casa Sin dical, deportações, prisões ar-
bitrárias e leis an ti-sociais.
Ou tro setor qu e depressa se afastaria da repú blica foi o exército,
cu jo con ten cioso de algu m m odo com eçara n o próprio dia da revolu ção
de ou tu bro de 1910: im plan tado pelas ram as. O regim e n u n ca lograria,
porém , reform ar e dem ocratizar o exército de m olde a tran sform á-lo n o
seu braço arm ado, preferin do criar a Gu arda Repu blican a com o força pre-
torian a, aliás in clin ada a segu ir o seu próprio cam in h o. A en trada n a
gu erra, em 1916 – m as desde 1914 qu e com batíam os em An gola con tra
as tropas alem ãs –, u m dos erros m ais obstin adam en te levados adian te
pela Repú blica, com o álibi da defesa das colôn ias – cu ja partilh a a Ale-
m an h a e a In glaterra tin h am projetado em 1898 e depois em 1913 –,
acarretou dram as su plem en tares para as Forças Arm adas, m an dadas m or-
rer sem glória n a Flan dres ou n as “epopéias m alditas” dos sertões africa-
n os, prim eiro em An gola, depois em Moçam biqu e. Destes trau m as deri-
varia u m con stan te m al estar n as fileiras, en tre as qu ais cresceria aliás a
idéia de qu e delas devia partir precisam en te a derru bada do regim e qu e,
n ascido das arm as, com elas h avia de perecer.
Nu n ca as ten do con segu ido con trolar, a Repú blica m orreria logica-
m en te degolada pelas du rin dan as. In capaz de criar u m exército realm en -
te repu blican o, de m odelo h elvético com o son h ara a propagan da dos
apóstolos repu blican os, in capaz de o dotar de ch efes de con fian ça, ideo-
logicam en te en qu adrados n a m en talidade triu n fan te em 1910, a Prim eira
Repú blica lim itara-se afin al a abalar a velh a in stitu ição m ilitar com h u m i-
lh ações e tarefas in glórias, de qu e a n ossa in terven ção n a gu erra de 1914-
1918 foi o episódio m ais calam itoso.

A REPUBLICA PROPÕE-SE ACABAR COM O CATOLICISMO

A h ostilidade à religião, m an ifestada logo n os prim eiros dias da re-


volu ção por u m a en xu rrada de diplom as qu e retom avam m edidas pom -
balin as e liberais para expu lsar as orden s religiosas e laicizar a vida do
país, con h eceria desde 20 de abril de 1911, com a já referida lei da Sepa-
ração, u m passo m ais a fim de criar n a sociedade portu gu esa u m fosso
im en so en tre católicos e repu blican os, em vez de se lim itar a proceder à
m u tu am en te van tajosa m era separação dos foros estatal e religioso. Afon -
so Costa, Min istro da Ju stiça e u m dos ideólogos e estrategos fu n dam en -
tais da Primeira República, anunciou numa reunião maçônica, a 21.III.1911
– lei qu e doravan te seria sign ificativam en te design ada pelos seu s defen -
sores com o “a In tan gível” ... –, qu e esta iria elim in ar com pletam en te o ca-
tolicism o em du as gerações. Estava criado u m “casu s belli” m ortal para o

309
João Medina

próprio regim e qu e assim , acin tosa e fron talm en te, desafiava a m ilen ar
in stitu ição con fession al, tão fu n dam en te en raizada n a m en talidade e n os
costu m es portu gu eses. Se as ch am adas “aparições” de Fátim a ocorreram
em 1917, em plen o govern o (o terceiro e ú ltim o) de Afon so Costa, tal fa-
to n ada tem de casu al: o m ilagrism o ou m essian ism o du m país com o o
n osso reagia deste m odo, pelo cu lto m ariân ico e pelo recu rso ao m ilagre,
em plen a gu erra, a rábida h ostilização afron tosam en te decretada pelo
dito político beirão, esse “Costa Cabral da Repú blica”, com o lh e ch am ou
Carlos Malh eiro Dias ( Zona de Tufões, 1912; repetiu -o Roch a Martin s n ’ Os
Fantoches, 1ª série, 20.I.1914).
Qu an do Sidôn io Pais, fortem en te apoiado por todos os setores h os-
tis ao “gu errism o” e ao seu partido (o Partido Dem ocrático de Afon so Cos-
ta), desde os operários à aristocracia, passan do pelo clero, tom a o poder
(dezem bro de 1917), u m a das su as prim eiras m edidas seria a de pôr fim às
disposições qu e, desde 1910, os m in istros da Ju stiça do Novo Regim e ti-
n h am vin do a decretar con tra todos os bispos, a pon to de, já em 1912, doze
prelados estarem su spen sos, destru ídos ou desterrados (m edidas tom adas
por apen as dois m in istros da referida pasta, A. Costa e An tôn io Macieira).
Sidôn io pu n h a assim fim à “irritan te qu estão” (com o lh e ch am aria,
m ais tarde, Salazar), dan do os passos diplom áticos n ecessários para reatar
relações com a San ta Sé, e com eçan do por dar ele m esm o o exem plo do
n ovo espírito de relacion am en to Igreja/ Estado, ao ser o prim eiro Presi-
den te da Repú blica portu gu esa a en trar n u m tem plo católico para ali as-
sistir a u m a cerim ôn ia em m em ória dos n ossos soldados tom bados n a
gu erra. Praticam en te liqu idado en tão o con ten cioso Repú blica/ Igreja, res-
tabelecidas as relações en tre a Repú blica portu gu esa e o Vatican o (teve
papel de relevo n estas n egociações o n osso fu tu ro prêm io Nobel da Me-
dicin a, Egas Mon iz, en tão Min istro de Sidôn io Pais), a fase pós-sidon ista
(1918-1926) – a qu e se ch am ou “a n ova Repú blica Velh a” (já qu e o sido-
n ism o ou dezem brism o fora design ado por Repú blica Nova”) – já n ão co-
n h eceria as en orm es dificu ldades qu e tin h am pau tado as relações Igre-
ja/ Estado. Mas n ão deixaria esse con ten cioso de acicatar o m ovim en to
político católico, qu e desde o fim da Prim eira Gu erra Mu n dial decide afir-
m ar-se au ton om am en te n o cam po partidário, estim u lado n esse sen tido
pelos Papas Ben to XV e Pio XI, caben do a Salazar papel de relevo n esta
estratégia “dem ocrata cristã”.

A QUEDA DA PRIMEIRA REPÚBLICA

As dificu ldades do Novo Regim e tam bém tin h am sido n otáveis n os


ou tros dom ín ios, com o n o cam po econ ôm ico e fin an ceiro. A in flação, so-
bretu do desde a en trada de Portu gal n a gu erra, reforçara o afastam en to

310
A DEMOCRACIA FRÁGIL: A PRIMEIRA REPÚBLICA PORTUGUESA (1910-1926)

crescen te das classes m édias u rban as em relação a u m regim e n o qu al ti-


n h am depositado tão fu n das esperan ças. O aparecim en to, em 1914, de
u m a n ova ideologia m on árqu ica e ao ressu rgir do sen tim en to afeito à rea-
leza, reclam an do-se ain da por cim a do velh o m igu elism o tem perado com
con tribu tos fran ceses da Action Française – o In tegralism o Lu sitan o – dava
ao cam po con servador an ti-repu blican o u m dos pilares m ais agressivos e
atu an tes da con tra-revolu ção, aqu ele qu e m ais pesaria n o derru be da
Prim eira Repú blica, de par com o con servador sidon ista e u m a ou ou tra
su gestão ditatorialista própria do espírito do tem po, esses an os 20 tão pro-
lifícos em m odelos cau dilh istas.
O exército aparecia n atu ralm en te, aos olh os destes gru pos e seto-
res ideológicos, com o a força ideal, o in stru m en to providen cial destin ado
a cortar o n ó górdio da repú blica dem oliberal, caótica e desgovern ada, o
m on opólio in con testável do sistem a eleitoral e partidário n as m ãos do
afon sism o, ou seja, do Partido Dem ocrático, a facção h egem ôn ica do ve-
lh o Partido Repu blican o Portu gu ês. O sidon ism o fora já u m exem plo de
com o podiam federar-se e triu n far todos os clãs e m eios qu e se opu n h am
a este predom ín io afon sista, dem oliberal, an ticlerical e dem agógico – este
ú ltim o gru po era geralm en te sin tetizado n a expressão aliás apropriada de
“dem agogia”. O cu lto da ditadu ra e o lou vor da espada com o solu ção tor-
n aram -se com u n s, ao m esm o tem po qu e proliferavam as ten tativas de
derru be do regim e parlam en tar, o qu e seria fin alm en te con segu ido du -
ran te o segu n do m an dato do catastrófico Bern adin o Mach ado n a Presi-
dên cia da Repú blica, em m aio de 1926. O Exército estava fin alm en te n o
poder, os m ilitares iriam procu rar estabelecer u m a ditadu ra, e só faltava
o ditador – o qu e levaria pelo m en os dois an os a ach ar, depois de se apre-
sen tarem algu n s can didatos can h estros ao cargo (Gom es da Costa, Sin el
de Cordes, João de Alm eida, Filom en o da Câm ara, Vicen te de Freitas).
Paradoxalm en te – ou , m u ito ao in vés, com bastan te lógica e, de al-
gu m m odo, sim bolicam en te tam bém –, a lideran ça resu ltan te do golpe de
espadas de 1926 acabaria por ser con fin ada a u m civil aliás de cepa cleri-
cal, já qu e o Min istro das Fin an ças fin alm en te ch am ado pelos m ilitares
em 1928, após algu n s m eses de catastrófica con du ta da n au do Estado,
An tôn io de Oliveira Salazar (n ascido em 1889, n o m esm o an o em qu e
Ch arlot, Heidegger e Hitler vieram ao m u n do) – freqü en tara o sem in ário
e recebera m esm o orden s m en ores, m as optara afin al pela carreira acadê-
m ica, en tran do em Coim bra pou co depois da revolu ção repu blican a ter
eclodido. Em su m a, as du rin dan as en gen draram u m ditador glacial vin do
do cam po católico, ch am ado com o m ero técn ico fin an ceiro, com o se
tratasse apen as de con sertar u m a cadeira estragada e n ão de fu n dar u m
n ovo tipo de tron o para o poder, de govern ação – e de ditadu ra. Qu e u m
an tigo dirigen te das h ostes católicas, reagru padas depois da gu erra sem

311
João Medina

qu artel qu e a Prim eira Repú blica m overa à Igreja portu gu esa e com an da-
das por este estratego e teorizador form ado n o C. A. D. C. de Coim bra aca-
basse por ser o ditador esperado pela ditadu ra in iciada em 1926 era, ao fim
e ao cabo, u m “ju ste retou r des ch oses”: o regim e im plan tado em 1910
persegu ira a Igreja e ten tara esm agá-la, caben do agora, m u ito n atu ral-
m en te portan to, a u m dos prin cipais dirigen tes católicos form ados n esses
an os de ch u m bo e h u m ilh ação assen h orear-se do Estado, desterrar a de-
m ocracia e govern ar com m ão de ferro u m país on de os m ilitares degolada
a repú blica, tin h am procu rado qu em fosse capaz de segu rar o tim ão do go-
vern o, e m an tê-lo fixo n u m a direção certa e ordeira. E este sabia o qu e
qu eria e para on de ia, com o o disse com sibilin o lacon ism o n u m discu rso
de 1930…

312
A DEMOCRACIA FRÁGIL: A PRIMEIRA REPÚBLICA PORTUGUESA (1910-1926)

N OTA S
1. Lem brem os algu n s n om es de escritores e an alistas políticos – e títu los de jorn ais ou pan -
fletos – n os qu ais a crítica à bu rla do su frágio do con stitu cion alism o m on árqu ico foi con s-
tan te e particu larm en te agu da: Rafael Bordalo Pin h eiro n os sem in ários satíricos An tôn io
Maria (du as séries: 1879-1884 e 1891-1898) e Pontos nos ii (1885-1889), o pan fleto A Lan-
terna, Jú lio Din is n a Morgadinha dos Canaviais (1868), Eça e Ram alh o Ortigão n as Farpas
(desde 1871 em dian te), Gu ilh erm e de Azevedo e Gu erra Ju n qu eiro n a peça satírica Viagem ,
Pin to em O Sr. Deputado (1882), o rom an cista repu blican o Teixeira de Qu eirós em Saústico
Nogueira (1883), o m on árqu ico Con de de Ficalh o em Uma eleição perdida (1888), o político
m on árqu ico dissiden te Au gu sto Fu sch in i n o seu exam e crítico da Regen eração in titu lado O
presente e o futuro de Portugal, etc.

313
João Medina

B IBLIOGRA FIA

OBRAS GERAIS

MEDINA, J. (Dir.) História de Portugal dos tempos pré-históricos aos nosso dias.
15v. Alfragide: Ediclu be, 1993.
___. História de Portugal Contemporâneo – político e in stitu cion al. Lisboa:
Un iversidade Aberta, 1994.

OBRAS ESPECÍFICAS

HOMEM, A. C. A idéia republicana em Portugal. O con tribu to de Teófilo


Braga. Coim bra: Livraria Min erva, 1989.
___. A Propaganda republicana (1870-1910). Coim bra: s.n ., 1990.
MEDINA, J. Oh! a República!... Estu dos sobre o repu blican ism o e a Prim ei-
ra Repú blica portu gu esa. Lisboa: INIC, 1990.
TELO, A. J. Decadência e queda da Primeira República portuguesa. Lisboa: A
Regra do Jogo, 1980, 1984. 2 v.

314
capítu lo 17

O ESTA D O N OVO.
FA SCISMO, SA LA ZA RISMO E EUROPA
Lu ís Reis Torgal*

O PROBLEMA D A S FON TES


Poderíam os com eçar por falar das dificu ldades em an alisar este e
ou tros tem as sem qu e se con h eça profu n dam en te os arqu ivos do Estado
Novo, n om eadam en te, para o caso presen te, o Arqu ivo do Min istério dos
Negócios Estran geiros, e os espólios pessoais de Salazar, de qu e saiu o res-
pectivo catálogo.1 Não in sistirem os, todavia, exageradam en te n esta difi-
cu ldade, porqu e, pese em bora a im portân cia dessas fon tes, ou tras, im -
pressas, n ão são de m en or relevân cia para con h ecer esta problem ática,
qu e vam os abordar à m an eira de en saio.
Com efeito, a qu estão qu e n os preocu pa é, fu n dam en talm en te, de
ordem ideológica e cu ltu ral. Isto é, o qu e desejam os estu dar é a posição
pú blica de Salazar e dos salazaristas (salazaristas estru tu rais ou de con ju n -
tu ra) relativam en te à qu estão da Eu ropa,2 qu e, ao con trário do qu e se
possa pen sar, é m u ito debatida n o tem po, de tal form a qu e se en con tram
verdadeiros n ú cleos bibliográficos especializados n as n ossas bibliotecas.3
Ora, tratan do-se de u m a tem ática desse tipo, pode dizer-se qu e os textos
pu blicados n os dão u m a im agem su ficien tem en te esclarecedora das posi-
ções do regim e, qu e n ão seriam por certo essen cialm en te con trariadas em
atitu des privadas ou n a prática diplom ática. Aliás, estas qu estões da polí-
tica extern a do Estado Novo são as qu e se en con tram , ain da assim , m e-
lh or docu m en tadas e estu dadas, qu er pelos “h istoriadores” e in telectu ais
do regim e,4 qu er m esm o pelos n ovos h istoriadores e politólogos do Sala-
zarism o, qu e sobre o tem a escreveram livros ou algu n s artigos de in teres-
se. Neste particu lar, devem destacar-se os estu dos sobre a Gu erra Civil da
Espan h a 5 ou sobre a Segu n da Gu erra Mu n dial,6 en carados n u m a perspec-
tiva política, diplom ática e econ ôm ica. Mas, con tin u ava por qu estion ar,
de u m a m an eira global, a posição assu m ida peran te a qu estão da Eu ropa,
problem a de gran de oportu n idade, qu e vam os abordar, portan to, à m a-
n eira de en saio, n u m a lin h a política ideológico-cu ltu ral.7

315
Luís Reis Torgal

FA SCISMO E SA LA ZA RISMO
Ao su bin titu larm os este texto “Salazarism o, Fascism o e Eu ropa”,
n ão preten dem os repor u m a velh a polêm ica qu e se desen volveu em dois
plan os com plem en tares: por assim dizer, de fora para den tro e de den tro
para fora. Expliqu em os m elh or: n ão desejam os voltar a discu tir a qu estão
ou as qu estões de saber se é ou n ão legítim o falar de “Fascism o” com o u m
con ceito fu n dam en tal para caracterizar regim es qu e, apesar de diferen tes,
são com u n s em pon tos essen ciais e qu e con stitu em sistem as próprios de
“u m a época”, e, por ou tro lado, de qu estion ar sobre o problem a da legiti-
m idade de con siderar o Estado Novo portu gu ês u m a form a de “Fascism o”.8
O qu e desejam os foi sim , pela ju n ção dos três con ceitos, abarcar m elh or
toda a profu n didade e latitu de do problem a em debate. Qu er dizer, segu n -
do pen sam os n ão seria possível en ten der a qu estão do posicion am en to do
Salazarism o peran te a Eu ropa, se n ão n os in terrogássem os sobre as su as
relações com os “fascism os” (con ceito qu e con sideram os poder con tin u ar
a u tilizar) e tam bém – acrescen tam os – com ou tros con ceitos e realidades
políticas básicas, tais com o “dem ocracia” e “com u n ism o”.
A dem arcação das origin alidades do Estado Novo parte de afirm a-
ções in sisten tes do próprio Salazar, m an ifestadas n o prin cípio do seu con -
su lado e qu e se prolon gam du ran te o a su a govern ação.
Logo n a en trevista dada a An tôn io Ferro, em 1932, afirm ou , falan do
da ditadu ra m ilitar portu gu esa: “A n ossa ditadu ra aproxim a-se, eviden te-
m en te, da ditadu ra fascista n o reforço da au toridade, n a gu erra declarada a
certos prin cípios da dem ocracia, n o seu caráter acen tu adam en te n acion alis-
ta, n as su as preocu pações de ordem social. Afasta-se, n os seu s processos de
ren ovação. A ditadu ra fascista ten de para u m cesarism o pagão, para u m Es-
tado Novo qu e n ão con h ece lim itações de ordem ju rídica ou m oral, qu e
m arch a para o seu fim , sem en con trar em baraços ou obstácu los”.9
Portan to, Salazar qu e adm irava Mu ssolin i, a pon to de ter a su a fo-
tografia n a m esa de trabalh o 10 e de ter preparado u m a su a foto com dedi-
catória en dereçada ao Duce11 qu is salien tar o caráter próprio do sistem a,
con sideran do a ain da existen te ditadu ra, saída do 28 de m aio, em bora a
dar o passo decisivo para o n ovo regim e, com o u m a form a de au toritaris-
m o “m oral”, ao passo qu e en ten dia o fascism o com o u m a ditadu ra “am o-
ral”, “m aqu iavélica”. In clu sivam en te, para distin gu ir bem os dois regi-
m es, argu m en tou com a célebre afirm ação de Mu ssolin i, cau sa de algu -
m as con fu sões sobre a caracterização dos regim es au toritários da Eu ropa
do tem po: “O fascism o é u m produ to típico italian o com o o bolch evism o
é u m produ to ru sso. Nem u m n em ou tro podem tran splan tar-se e viver
fora da su a n atu ral origem ”.12
E apen as para dar m ais u m exem plo, em bora este m en os claro n o
con fron to com o fascism o, m as m ais rico em ou tros aspectos, vejam os o

316
O ESTADO NOVO. FASCISMO, SALAZARISMO E EUROPA

qu e disse Salazar n o 1º. Con gresso da Un ião Nacion al, em 26 de m aio de


1934: “Sem dú vida se en con tram , por esse m u n do, sistem as políticos com
os qu ais tem sem elh an ças, pon tos de con tacto, o n acion alism o portu gu ês
– aliás qu ase só restritos à idéia corporativa. Mas n o processo de realiza-
ção e sobretu do n a con cepção do Estado e n a organ ização do apoio polí-
tico e civil do Govern o são bem m arcadas as diferen ças. Um dia se reco-
n h ecerá ser Portu gal dirigido por sistem a origin al, próprio da su a h istória
e da su a geografia, qu e tão diversas são de todas as ou tras, e desejávam os
se com preen desse bem n ão term os posto de lado os erros e vícios do fal-
so liberalism o e da falsa dem ocracia para abraçarm os ou tros qu e podem
ser ain da m aiores, m as an tes para reorgan izar e fortalecer o país com os
prin cípios da au toridade, de ordem , de tradição n acion al, con ciliados com
aqu elas verdades etern as qu e são, felizm en te, patrim ôn io da h u m an ida-
de e apan ágio da civilização cristã”.13
O m esm o tipo de argu m en tos en con tram os em au tores salazaristas
e tam bém , cu riosam en te, n os n acion alistas estran geiros, especialm en te
fran ceses, qu e elegeram Portu gal para cam po dos seu s ideais e das su as
“experiên cias” políticas.14 Em relação ao prim eiro caso, tom em os com o
exem plo o h istoriador e ideólogo do regim e, se bem qu e origin ário das
corren tes m on árqu icas in tegralistas, João Am eal. Nu m pequ en o livro de
1938, Construção do Novo Estado, após elogiar o regim e fascista, com o u m
dos sistem as do qu e ch am a a “Revolu ção n ecessária”,15 fala do “m odelo
portu gu ês”, con stru ído n a base da Revolu ção Nacion al do 28 de m aio e n o
plan o de Salazar: “... o Estado Novo Corporativo ergu eu -se pou co a pou -
co, n a su a arqu itetu ra firm e, h arm on iosa, logicam en te adequ ada ‘ao n os-
so tem peram en to e às n ossas n ecessidades’”.16 E Gon zagu e de Reyn old –
qu e n u m livro sobre a crise da Eu ropa, de 1935, lou vara tam bém o Fas-
cism o,17 con siderou , n u m a obra sobre Portu gal do an o segu in te, n a qu al,
apesar de tecer algu m as críticas à realidade ain da existen te n o n osso país,
elogiou a experiên cia portu gu esa, qu e Portu gal n ão poderia im itar as ex-
periên cias estran geiras, m esm o o Fascism o: “Et m êm e l’im itation , la copie
du fascism e n e serait san s dan ger d’in féodation à la politiqu e italien n e.
Car tou t régim e im porté de l’étran ger est u n e su bm ission à l’étran ger”.18
Mas esta origin alidade afirm ada e reafirm ada n ão exclu ía a idéia ou
a esperan ça n u m a “revolu ção n ecessária” – para em pregar a expressão de
Am eal – qu e se deveria passar, com as su as nuances próprias, u m pou co
por todo o m u n do. Não poderem os esqu ecer qu e Salazar e os salazaristas,
para além de an ticom u n istas sistem áticos, foram tam bém sistem atica-
m en te an tiliberais e an tidem ocratas. Qu an tos exem plos poderíam os u ti-
lizar para com provar esta prem issa! Basta por isso só recordar a con stan -
te lu ta de Salazar con tra aqu eles qu e pejorativam en te apelidavam o seu
sistem a de “ditadu ra”, aos qu ais con trapu n h a a idéia de qu e a “ditadu ra”,

317
Luís Reis Torgal

ou o au toritarism o, era em si m esm o u m regim e, em bora em processo de


aperfeiçoam en to e de tran sform ação. Foi isso exatam en te o qu e afirm ou ,
logo em 1934, n o 1º. Con gresso da Un ião Nacion al, repetin do as palavras
qu e dissera a “u m crítico fran cês”: “As ditadu ras n ão m e parecem ser h oje
parên teses du m regim e, m as elas próprias u m regim e, sen ão perfeitam en -
te con stitu ído, u m regim e em form ação. Terão perdido o seu tem po os qu e
voltarem atrás, assim com o talvez tam bém o percam os qu e n elas su pu se-
rem en con trar a su m a sabedoria política”.19 Em m aio de 1940, n u m dis-
cu rso n a Assem bléia Nacion al, dirá explicitam en te, com o o disse, de for-
m a m ais ou m en os expressa, n ou tras ocasiões: “... n ós qu e n os afirm am os
por u m lado an ticom u n istas e por ou tro an tidem ocratas e an tiliberais, au -
toritários e in terven cion istas...”.20 E afirm ações deste tipo con tin u arão a
ser expressas m ais tarde, por exem plo em 1958,21 ou depois, em m om en -
to de “revivescên cia” do sistem a e das su as form as repressivas.
A verdade é qu e, ain da qu e pu desse m u ito tran sitoriam en te ter feito
crer qu e o regim e se poderia abrir a eleições livres, Salazar afirm ou -se sem -
pre con tra a dem ocracia, m esm o n o an o de 1945, com o term o da gu erra.
Criticou os erros dos sistem as au toritaristas da Alem an h a e da Itália, con de-
n ou o seu “totalitarism o”, 22 m as n u n ca aceitou os sistem as dem ocráticos,
m u ito especialm en te em Portu gal (tin h a sem pre presen te o qu e con siderava
a “balbú rdia san gu in olen ta” da experiên cia da Prim eira Repú blica), 23 e m es-
m o n ou tros países, em bora adm ita qu e em algu n s os seu s preju ízos sejam
m en ores. 24 Qu an do m u ito procu rou provar, em estratégia de fim de gu erra,
qu e o sistem a corporativo con stitu ía, do pon to de vista social e n ão político,
a verdadeira dem ocracia: “Eu n ão qu ero forçar con clu sões – afirm ava, n u m
discu rso proferido n a Assem bléia Nacion al em m aio de 1945 – m as, se a de-
m ocracia pode ter, além do seu sign ificado político, sign ificado social, en tão
os verdadeiros dem ocratas som os n ós”. 25 É claro qu e depois da gu erra, Sala-
zar terá com eçado a descrer n a “revolu ção n ecessária”, isto é, a ter algu m as
dú vidas sobre o processo de desaparecim en to das dem ocracias e da su a su bs-
titu ição por sistem as au toritários; n o en tan to, peran te o n ovo “descon certo
da Eu ropa” do pós-gu erra, con tin u ou a afirm ar qu e as dem ocracias passavam
por u m a crise dolorosa 26 e a n ecessidade de Estados fortes27 para fazer fren te
ao perigo com u n ista.
Não seria possível en ten der a posição de Salazar peran te a Eu ropa e
a política m u n dial sem partirm os deste pon to fu n dam en tal. É este seu
an tidem ocratism o sistem ático, este “in tern acion alism o au toritário”, qu e,
em con ju gação com ou tros fatores con ju n tu rais e n acion ais, vão explicar
o seu “eu ropeísm o” e, ao m esm o tem po, o seu “an tieu ropeísm o”.

318
O ESTADO NOVO. FASCISMO, SALAZARISMO E EUROPA

N A CION A LISMO E EUROPEÍSMO


Qu an do em abril de 1948 se celebraram os 20 an os da en trada de
Salazar para o govern o, in titu lou -se a pu blicação, editada pela Un ião Na-
cion al, dos discu rsos en tão proferidos, Um grande português e um grande eu-
ropeu: Salazar. Esta du pla im agem , n acion al e eu ropéia, vai servir de pre-
texto para refletirm os sobre a qu estão do Salazarism o e a Eu ropa. Para
m elh or en ten derm os essa situ ação, deverem os n otar qu e, para Salazar e
para toda u m a vasta e m u ltifacetada lin h a de pen sam en to eu ropeísta de
sen tido tradicion al, “Eu ropa” n ão sign ificava propriam en te u m con tin en -
te, n em u m a estru tu ra econ ôm ica e m u ito m en os u m a estru tu ra políti-
ca su pran acion al, m as u m “patrim ôn io cu ltu ral”, m arcado pelo Cristian is-
m o, por valores éticos e ju rídicos assen tes n a tradição. Daí partir-se para
u m con ceito m ais geral, qu e tem , con tu do, com o base, a Eu ropa – o con -
ceito de “Ociden te”. Portan to, a “Eu ropa” para esta corren te, de qu e par-
ticiparam as várias lin h as n acion alistas, n ão con tradizia u m a forte afirm a-
ção de n acion alidade, m as qu eria sign ificar qu e a “idéia eu ropéia” u ltra-
passava a Eu ropa e tin h a qu e ver com o patrim ôn io am erican o e africa-
n o, de con stru ção essen cialm en te eu ropéia.
Assim , este m ovim en to, n o tem po en tre as du as gu erras e, sobre-
tu do, com a vitória com u n ista n a Rú ssia e o avizin h ar da Segu n da Gu er-
ra Mu n dial, tem a idéia de qu e a Eu ropa, ou , m ais vastam en te o “Ociden -
te”, está em crise de m orte, só poden do ergu er-se com a con stru ção de
u m a “Nova Eu ropa”. Era essa a idéia, com as su as varian tes, do Nacion al-
Sin dicalism o, do Fascism o e tam bém dos n acion alism os e au toritarism os
de todos os m atizes.
Desta form a, a Alem an h a em gu erra, n a su a fase vitoriosa, con sti-
tu ía u m a Internationale Rechskammer, u m a Câm ara Ju rídica In tern acion al
– a cu ja reu n ião, cu riosam en te, assistiu Cabral Mon cada, com a aqu ies-
cên cia de Salazar, qu e se m an tin h a n a expectativa, con form e n os con ta
aqu ele professor de Coim bra n as su as im pression an tes Memórias,28 Câm a-
ra essa qu e preten dia reestru tu rar a Eu ropa e o Mu n do de acordo com
prin cípios de u m a “n ova ordem ”. Na Itália an tes da gu erra falava-se de
u m “Pan fascism o”, de u m a “In tern acion al Fascista”, da con cepção de
u m a “Nova Eu ropa”29 – apropriação abu siva das idéias revolu cion árias do
carbon ário Mazzin i, de m eados do sécu lo XIX30 –, prom oven do o Istituto
Nazionale di Cultura Fascista, em plen a gu erra, u m con gresso sobre o tem a
“Idea dell’Europa”,31 qu e procu rava sen sibilizar a opin ião para u m a con -
cepção de Eu ropa feita n a base de valores “fascistas” ( lato sensu ).32 En tre-
tan to, os in telectu ais de direita, falavam da “decadên cia do Ociden te”
(para em pregar as palavras de Spen gler) ou da Eu ropa, procu ran do criar
u m “cordão san itário” con tra o com u n ism o, e tam bém con tra o liberalis-

319
Luís Reis Torgal

m o e a dem ocracia, e ch am an do a aten ção para a u rgên cia de u m a “re-


volu ção n ecessária”, feita n a base de valores tradicion ais ren ovados. Ape-
n as para exem plificar com u m a obra de gran de im pacto em Portu gal, re-
cordem os o livro do su íço Gon zagu e de Reyn old, L’Europe tragique (1935).
João Am eal, com a obra de 1938 Construção do Novo Estado, ou com as su as
reflexões de 1945, A Europa e os seus fantasmas,33 são bem o exem plo típi-
co deste gên ero de pen sam en to, prim eiro n u m a fase ain da in depen den -
te, de tipo m on árqu ico e “fascista” (en tre aspas) e depois n u m a perspec-
tiva de “regim e”, de con torn os ideológicos m ais vagos. No con texto da
gu erra, tam bém o tradicion alista m on árqu ico Edu ardo Freitas da Costa,
n o seu Testamento da Europa, esperava o ren ascer da Eu ropa das ru ín as,
sen do Portu gal o arau to dessa n ova m en sagem de “civilização”.34 Era, em
certo sen tido, a idéia de “Qu in to Im pério” qu e ressu rgia. E ain da a pró-
pria polêm ica de Silva Dias35 con tra Abel Salazar 36 dos an os 40, aqu ele de-
fen den do u m a idéia católica de Eu ropa, em oposição a u m a vaga e con -
fu sa con cepção de n ova Eu ropa assen te em valores dem ocráticos, é reve-
ladora de idên tico espírito.
Mas é claro qu e as idéias de Salazar, em bora in tegran do-se n este
vasto m ovim en to, têm a su a origin alidade, resu ltan te de fatores reais da
política e da “razão do Estado”. Vam os an alisá-las de segu ida, de u m
m odo sistem ático e orden ado, para u m a m elh or com preen são das várias
qu estões qu e su põe. An tes de m ais ch am em os, todavia, a aten ção para o
fato de, apesar do seu caráter idên tico por toda a su a lon ga vida política
– parafrasean do a afirm ação de u m jorn alista belga, Salazar con siderou -
se u m “h om em qu e jam ais se en gan ou ”37 – h aver n o seu pen sam en to al-
terações de tom e de expressão em razão das con ju n tu ras diferen tes de
Portu gal, da Eu ropa e do Mu n do. De qu alqu er form a, em bora salien tan -
do sem pre a posição pessoal e pú blica de Salazar, com o presiden te do
Con celh o e político in con testado do sistem a qu e fu n dou , an alisarem os,
m ais latam en te, a idéia de “Eu ropa” do Salazarism o, isto é, do m ovim en -
to qu e brotan do de Salazar teve os seu s in térpretes, qu e ain da h oje fazem
ecoar, em bora de m odo tên u e e in con seqü en te a su a voz.

S A LA ZA R, SA LA ZA RISMO E “EUROPA ”
As idéias do Salazarism o sobre a “Eu ropa” su põem ou têm su bja-
cen te as segu in tes qu estões e posições:

ANTICOMUNISMO, ANTILIBERALISMO E ANTIDEMOCRATISMO

Con form e já foi dito e provado, o Salazarism o, com o os ou tros “fas-


cism os”, m an ifesta em prim eira lin h a um sistemático anticomunismo e um

320
O ESTADO NOVO. FASCISMO, SALAZARISMO E EUROPA

não menos sistemático antiliberalismo e antidemocratismo. Este prin cípio expli-


ca, em parte, com o tam bém afirm am os e vam os ain da m elh or esclarecer,
a posição do Salazarism o qu an to à Eu ropa.
Por u m lado, Salazar e os salazaristas n ão adm itiam qu e, de qu al-
qu er form a, os países com u n istas, n om eadam en te a Rú ssia, pu dessem par-
ticipar da “aven tu ra eu ropéia”. Tal com o Gon zagu e de Reyn old, a Rú ssia
com u n ista aparecia-lh es com o u m a “an ti-Eu ropa”.38 Este an ticom u n ism o
obsessivo – até certo pon to explicável, ten do presen te a ditadu ra estalin is-
ta – con dicion ou toda a política extern a portu gu esa. De on de a posição
pron ta de Portu gal a favor dos “n acion alistas” espan h óis, com o objetivo
de evitar o qu e se con siderava im in en te, isto é, o perigo da con cretização
do plan o com u n ista de con stitu ir n a Pen ín su la as “repú blicas soviéticas
ibéricas”.39 Daí qu e Salazar e os seu s ideólogos tivessem en ten dido a posi-
ção germ ân ica com o “fron teiro do Ociden te”, com preen den do, de form a
m ais ou m en os explícita, a posição de Hitler, e, depois da derrota da Ale-
m an h a, tivessem defen dido a n ecessidade da su a recon stitu ição.
Pela su a im portân cia e sign ificado este pon to m erece-n os u m pou -
co m ais de aten ção.
Na verdade algu n s pen sadores m ais ou m en os próxim os de Salazar
en ten deram explicitam en te o papel da Alem an h a n azi, revelan do a su a
sim patia por Hitler. Ain da em 38, aqu ele qu e h averia de ser o h istoriógra-
fo do regim e, João Am eal, afirm ava: “Hitler, pela su a reação vigorosa e
triu n fal, sou be levan tar a barreira m ais eficaz – barreira in tran spon ível –
à m arch a para oeste da epidem ia m arxista. Títu lo de glória su ficien te para
lh e ren der a ju sta gratidão de todos os povos do Ociden te em perigo.40 E
o ten en te José Gon çalves An drade – person alidade m u ito pou co im por-
tan te, m as cu jas idéias são sign ificativas com o fen ôm en o de m en talidade
– ch egou a tran screver, n u m a obra de elogio de Salazar, u m a carta qu e
terá en viado ao Führer, con vidan do-o a colaborar ativam en te n a organ i-
zação de u m a Liga In tern acion al con tra o com u n ism o.41
Salazar n u n ca terá tido especial sim patia por Hitler e pelo n azism o,
ao con trário do qu e se passou com Mu ssolin i, por ele con siderado u m
“gên io político”,42 e com o fascism o, em bora – com o vim os – sem pre te-
n h a afirm ado qu e era u m sistem a só aceitável n a Itália; n o en tan to, as
parcas afirm ações pú blicas sobre a Alem an h a e, sobretu do, as su as en tre-
lin h as e os seu s silên cios provam com o con siderava fu n dam en tal o seu
papel n o con texto da Eu ropa. Com efeito, em bora se tivesse esforçado por
explicar qu e a n eu tralidade portu gu esa n a gu erra fora, n o seu dizer, u m a
“n eu tralidade colaboran te”,43 colaboran te com os Aliados – o qu e n a rea-
lidade acon teceu depois de 1942-1943 – é eviden te a su a com preen são
pela qu estão alem ã. Assim su cedeu qu an do, n u m im portan te discu rso
proferido n a Em issora Nacion al, em 27 de ou tu bro de 1938, criticou o

321
Luís Reis Torgal

Tratado de Versalh es pela situ ação de “m en oridade” qu e atribu íra à Ale-


m an h a,44 elogiou o Tratado de Mu n iqu e, qu e – n o seu dizer – se n ão ori-
gin ou u m a “n ova Eu ropa”, ao m en os criou as perspectivas de “u m a Eu -
ropa m u ito diferen te”,45 e ch am ou a aten ção para o papel da Itália e da
Alem an h a n o apoio à “Espan h a n acion alista” com o objetivo de “ergu er
barreiras à in vasão com u n ista”.46 A Rú ssia era sem pre o prim eiro objeti-
vo da su a lu ta. Daí o seu m edo em qu e ela tivesse u m papel in terven ien -
te n a gu erra, qu e criasse u m a situ ação de alian ça com países am igos. Por
isso, n u m discu rso de 39 afirm ará tam bém qu e jam ais a Rú ssia poderia
aju dar o Ociden te n o restabelecim en to da paz, parecen do in clu sivam en -
te com preen der, ou pelo m en os n ão criticar com veem ên cia, a in vasão
pela Alem an h a da Polôn ia – qu e h om en ageia pelo “seu h eróico sacrifício”
e pelo “seu patriotism o” – para au m en tar a fren te an tibolch evista.47 E, em
1940, n u m discu rso qu e já referim os, m an ifestar-se-á “an ticom u n ista”,
m as igu alm en te “an tidem ocrata” e “an tiliberal”.48
Salien tam os ou tra vez este ú ltim o pon to, porqu e ele será fu n da-
m en tal para en ten derm os a posição do salazarism o, depois da gu erra, an -
te a Eu ropa com u n itária em form ação. Efetivam en te, Salazar e os salaza-
ristas viam com m ágoa qu e o pós-gu erra trou xe a “vitória das dem ocra-
cias”,49 o qu e im plicava, segu n do o seu m odo de ver – ten do em con ta a
su a idéia de qu e as dem ocracias estavam em crise e qu e a su a esperan ça
apon tava para a afirm ação dos Estados fortes e de cu n h o n acion alista –,
u m n ítido retrocesso. São elu cidativas estas palavras de Salazar proferidas
em ou tu bro de 1945, em qu e fala do “ven to da dem ocracia” e da “gravi-
dade das con tradições e dos equ ívocos em qu e a Eu ropa se debate”: “Para
m im creio qu e o pen sam en to político eu ropeu , n o sen tido da revisão ob-
jetiva, à lu z da razão e da experiên cia, dos prin cípios qu e devem reger a
organ ização e o govern o das n ações, acu sa u m n ítido recu o, isto é, u m re-
trocesso”.50 Mas, m ais do qu e o “perigo da dem ocracia”, Salazar receava
sobretu do o “perigo com u n ista” qu e ressu rgia com esses “ven tos” e qu e
perm itia a in trom issão dos com u n istas n os Estados dem ocráticos. Afin al a
Eu ropa batera-se e arru in ara-se para se opor à “n ova ordem germ ân ica”,
“m as – são palavras textu ais de Salazar, ditas em 1946 – é sobre as su as ru í-
n as ain da fu m egan tes qu e se vê alastrar a ‘n ova ordem com u n ista’”.51 O
m edo con stan te do com u n ism o e da Rú ssia soviética persegu iu sem pre Sa-
lazar, n ão possibilitan do ou tra lógica política. Dirá in sisten tem en te, de res-
to, qu e a Rú ssia tem u m a m ística e u m a estratégia expan sion ista,52 ao pas-
so qu e a Eu ropa se m an tin h a em con stan tes h esitações. E igu al crítica aca-
bará por fazer aos Estados Un idos, já em m om en to de con flito com os
am erican os.53 A Alem an h a ocu para sem pre u m lu gar estratégico n a Eu ro-
pa – fora desde tem pos passados o seu “fron teiro” –, pelo qu e era n ecessá-
rio n ão a deixar an iqu ilar, dado qu e o perigo n ão vin h a daí e sim do Les-

322
O ESTADO NOVO. FASCISMO, SALAZARISMO E EUROPA

te.54 Será, de resto, com am argu ra qu e criticará, já em 1960, a “capitu lação


in con dicion al do III Reich ” e a su a divisão, qu ebran do, assim a “barreira
qu ase in tran spon ível” con tra a “pressão eslava”.55
Mas a lógica an tidem ocrática de Salazar n ão lh e perm itiu tam bém
verificar qu e se estava a procu rar aos pou cos a form ação de u m a Eu ropa
com u n itária, dem ocrática, e igu alm en te con trária ao com u n ism o de sis-
tem a. Aden au er, ch an celer da Alem an h a Federal, qu e Salazar elogiou
n esse an o de 1958 56 do Tratado de Rom a, era u m dos obreiros dessa “Eu -
ropa”, qu e, com o verem os, o estadista portu gu ês por várias vezes con tes-
tou , por razões estratégicas e de prin cípio.

A IMAGEM DE ORIGINALIDADE DE PORTUGAL NA EUROPA

Ou tra qu estão fu n dam en tal para en ten der a posição do salazaris-


m o relativam en te à Eu ropa diz respeito à realidade e à im agem de Portu -
gal com o u m país sui generis.
No seu in ício o Estado Novo foi apresen tado com o u m regim e de
rein tegração de Portu gal n a realidade eu ropéia, depois da vergon h osa si-
tu ação da dívida pú blica e da “balbú rdia san gu in olen ta” em qu e caiu a
I Repú blica. No en tan to, à m edida qu e as con vu lsões eu ropéias se iam di-
latan do com o avizin h ar da gu erra e qu e as n ações dem ocráticas iam to-
m an do posições con tra as “ditadu ras”, Portu gal ia-se sen tin do m ais isola-
do, sobretu do porqu e n ão qu eria, por u m lado, aban don ar a tradicion al
Alian ça In glesa e, por ou tro, receava u m a ligação dem asiado com prom e-
tedora com os Estados “fascistas”, para qu e n atu ralm en te iam as sim patias
políticas do salazarism o. E a situ ação torn ava-se m ais com plexa porqu e co-
m eçavam a ecoar os prim eiros ru m ores an ticolon ialistas n a Eu ropa.
Salazar foi, assim , crian do a idéia de qu e Portu gal possu ía o seu
próprio “espírito”, o qu e explica, à distân cia, a su a fam osa expressão “or-
gu lh osam en te sós”,57 de gran de im pacto n os an os 60, qu an do a política
m u n dial se voltou praticam en te toda con tra as posições assu m idas pelo
n osso país. O prim eiro passo n esse sen tido é dado n o tem po da gu erra,
qu an do Salazar afirm a a n eu tralidade portu gu esa. Essa atitu de estratégi-
ca – em qu e provavelm en te estiveram in teressadas as potên cias aliadas,
m ais do qu e as do Eixo – foi afin al pon to de partida, em bora n o dom ín io
ideológico as origen s deste processo sejam an teriores, dado qu e se radi-
cam n o prin cípio logo afirm ado por Salazar n o in ício da su a govern ação
e corroborado pelos seu s partidários e sim patizan tes estran geiros (espe-
cialm en te da Action Française) de qu e Portu gal con stitu ía u m caso à parte
n o con texto dos estados au toritários da Eu ropa.
Em 1937, qu an do as con vu lsões eu ropéias se agu dizavam , já Sala-
zar, n u m discu rso proferido n a sala dos “Passos Perdidos” da Assem bléia
Nacion al, m an ifestava a in depen dên cia portu gu esa n o con texto das rivali-

323
Luís Reis Torgal

dades em con fron to e con siderava qu e se arriscava n a batalh a “a própria


civilização do ociden te”.58 E, além disso, defen dia-se das gran des críticas
qu e se com eçavam a se avolu m ar con tra o seu regim e, vin das da Eu ropa
dem ocrática. Dirigin do-se aos oficiais de terra e do m ar, reu n idos para ce-
lebrar o m alogro do aten tado qu e lh e tin h a sido dirigido dias an tes, pro-
clam ava: “Vós sabeis qu e este regim e a qu e ain da h oje ch am am ditadu ra,
e agora carregado com o apodo de fascista, é bran do com o os n ossos cos-
tu m es, m odesto com o a própria vida da Nação, am igo do trabalh o e do
povo. Não h á agitação su perficial ou profu n da, n em divisões das classes,
n em ódios irreprim íveis n a gran de m assa, irm an ada h oje n a aspiração su -
prem a do en gran decim en to n acion al”.59 (p. 302) Esta idéia de “paraíso
perdido”, n o m eio de u m a Eu ropa em delírio, será obviam en te fortalecida
n o con texto da gu erra. Poderíam os apresen tar várias fon tes com provató-
rias. Mas citem os apen as algu m as qu e tiveram com certeza gran de im pac-
to n acion al.
*Recordem os, assim , n o dom ín io do cin em a,60 o film e de gran de
au diên cia O pátio das cantigas, de 1941, realizado por Fran cisco Ribeiro, ir-
m ão de An tôn io Lopes Ribeiro, u m dos m ais im portan tes cin eastas do re-
gim e, qu e de resto foi o produ tor e o au tor dos diálogos. Ele retrata as pe-
qu en as qu ezílias de u m pacato e alegre pátio lisboeta, afastado das gran -
des batalh as qu e abalavam o Mu n do. Explicitam en te, u m dos figu ran tes
prin cipais, Narciso (Vasco San tan a), n o m eio de u m a côm ica lu ta em qu e
redu n daram os festejos de San to An tôn io, gu arda as crian cin h as n u m pa-
lan qu e qu e tem por cim a escrita a palavra “Salazar”. E o realizador foi ao
pon to de gracejar com a gu erra, im itan do os soldados em lu ta e a Cru z
Verm elh a em ação, en qu an to o san gren to con flito fazia m ilh ões de m or-
tos. Um an o an tes, em 1940, realizava-se a Exposição do Mu n do Portu -
gu ês. Era assim qu e o jorn al O Século com en tava a Sala Portu gal: “é o pa-
vilh ão da n ossa paz in tern a, do n osso labor, da n ossa von tade de viver; é
a apoteose da n ossa fé coletiva, a disciplin a do n osso espírito. É a n ossa
h ospitalidade aberta com o zon a de refú gio e de paz aos estran geiros; é a
fidelidade ao n osso destin o.61 O volu m e IV (pu blicado em 1956) dos Anais
da Revolução Nacional, obra dirigida por João Am eal, in titu lava-se “O
Mu n do em Gu erra. Portu gal em Paz”, sen do o capítu lo IV dedicado ao
tem a “Um a zon a de paz n o m eio da gu erra”. Aliás qu an do a gu erra ter-
m in ou foi organ izada u m a m an ifestação a Salazar para agradecer ao Pre-
siden te do Con celh o o fato de ter salvo Portu gal do gran de cataclism o. In -
tern am en te Salazar tirava os seu s dividen dos e preparava-se para o gran -
de con fron to político.
No con texto do pós-gu erra, Portu gal procu rava in tegrar-se n a “co-
m u n idade in tern acion al”. Foi essa a própria expressão u sada por Salazar,
ao m esm o tem po qu e ten tava iden tificar-se, n a m edida do possível, com

324
O ESTADO NOVO. FASCISMO, SALAZARISMO E EUROPA

a lu ta da “dem ocracia” con tra o n azism o, isto é, con tra o “Estado totali-
tário”. Esta in tegração tin h a os seu s cu stos teóricos e práticos e, assim ,
com o já dissem os, Salazar teve tam bém de salien tar qu e essa afirm ação e
essa lu ta “n ão en volviam o ataqu e a form as diversas de organ ização do
Poder”, qu eren do com isto exclu ir Portu gal da acu sação de Estado fascis-
ta. Ao con trário, n u m verdadeiro jogo de cin tu ra, preten deu m ostrar qu e,
em term os de “alcan ce social”, os “verdadeiros dem ocratas” éram os
“n ós”. É n u m discu rso n otável proferido n a Assém bleia Nacion al em 18
de m aio de 1945 qu e deparam os com este raciocín io de circu n stân cia,62
de qu e ain da se ou vem ecos n a lógica de algu n s “salazaristas”, qu e con ti-
n u am a acreditar n a eficácia do Estado corporativo. Mas n esse m esm o
discu rso, Salazar volta a exclu ir o país da aceitação do parlam en tarism o e
das solu ções federalistas da Eu ropa, ao m esm o tem po qu e salien ta o pa-
pel especial de Portu gal n a recon stitu ição do Ociden te”.63
A posição do Estado Novo portu gu ês procu rava, pois, afirm ar-se e
m an ter-se n u m a situ ação sui generis, só aceitan do pactu ar o m ín im o in -
dispen sável com os “ven tos da História”. É qu e Salazar con tin u ava a afir-
m ar, agora em razão da “vitória das dem ocracias” e do avan çar do perigo
com u n ista, qu e a Eu ropa e o Mu n do estavam em crise m oral acelerada –
“O Mu n do está ch eio de idéias falsas e palavras vãs”, proclam ava ele,64 de
qu e era n ecessário salvar o país. Portu gal esteve n a Sociedade das Nações
(SDN), propu n h a-se en trar n a ONU, m as isso n ão alteraria su bstan cial-
m en te a su a lin h a de ru m o. E a lin h a da su a política extern a seria de tipo
atlân tico. “Den tro ou fora das Nações Un idas, a n ossa política extern a n ão
tem sen ão de segu ir, ao lado dos tradicion ais im perativos h istóricos e geo-
gráficos, as claras in dicações do ú ltim o con flito. O cen tro de gravidade da
política eu ropéia… sen ão da política m u n dial, deslocou -se m ais ain da
para oeste e situ ou n o prim eiro plan o o Atlân tico, com os estados qu e o
rodeiam . Em recon h ecê-lo n ão deixam os de ser eu ropeu s; o qu e dam os é
m ais largo sen tido ao Ociden te.65
Está aqu i traçado, n este texto fu n dam en tal de u m seu discu rso de
1946, o perfil da su a con cepção de “Eu ropa”, qu e depois an alisarem os
com u m pou co m ais de cu idado. Por en qu an to preocu pem o-n os com as
qu estões qu e a explicam . Um a das m ais im portan tes será a realidade pró-
pria de Portu gal com o u m país colon izador e qu e teim ava em con tin u ar
a ju stificar essa posição. Se essa situ ação teve de levar Salazar a alterar
n os an os 50 a estru tu ra ju rídico-política do Estado – só desta form a lh e
foi perm itido en trar em 1955 n a ONU, pelas m ãos dos Estados Un idos e
da Grã-Bretan h a – o certo é qu e ela con stitu iu o gran de problem a portu -
gu ês e a cau sa do aban don o do apoio dos países Aliados, bem com o, a cer-
to prazo, o m otivo da qu eda do regim e.
Salazar, à m edida qu e se esforçava por m an ter a im agem paradisía-
ca de Portu gal – ain da em 1951, falan do das “su bversões” do Mu n do, “n a

325
Luís Reis Torgal

m aior parte catastróficas”, referia-se à n ossa situ ação privilegiada,66 lu ta-


va con tra as posições an ticolon ialistas, qu e iam crescen do n o con texto in -
tern acion al. Com efeito, se n a África, m ercê da descolon ização qu e se in i-
cia n o pós-gu erra, se verificavam os prim eiros m ovim en tos con tra as po-
sições portu gu esas n o con tin en te, vai ser in icialm en te a Un ião In dian a a
m ovim en tar-se con tra a presen ça portu gu esa n o Estado da Ín dia e a criar
o prim eiro gran de con ten cioso “colon ial” portu gu ês. As pressões su rgi-
ram n os fin ais dos an os 40 67 e disseram respeito a qu estões do Padroado,
m as foi n os an os 50 qu e se efetu ou a ação sistem ática de Nh eru , qu e cu l-
m in aria com a in vasão dos territórios in dian os de colon ização portu gu e-
sa. Peran te este com bate aceso e peran te a falta de apoios, in clu sive da
su a aliada In glaterra, Salazar qu eixa-se por várias vezes de a Eu ropa se
sen tir “en vergon h ada” do seu passado colon izador.68
Mas o dram a de Salazar au m en ta ain da qu an do verifica qu e o
fen ôm en o da descolon ização e da au todeterm in ação é im parável. Para
além , com o dissem os, de se ter alterado o estatu to das colôn ias portu gu e-
sas, qu e passaram a ser apelidadas de Provín cias Ultram arin as, defen de o
direito da colon ização por parte de Portu gal e da Eu ropa. Ain da em 1957
afirm ava: “Nós crem os qu e h á raças, decaden tes ou atrasadas, com o se
qu eira, em relação às qu ais perfilh am os o dever de ch am á-las à civiliza-
ção...69 Em 1960, em en trevista a Le Figaro, in sistia qu e “a palavra colôn ia
n o seu m ais pu ro sign ificado” con tin u ava a ser “respeitável”70 e su blin h a-
va, dian te da im in ên cia da descolon ização e da lu ta pela in depen dên cia
dos territórios da África: “Se tem os ju ízo, n ão separem os as coletividades
african as dos seu s gu ias secu lares qu e pou co a pou co, e n ão com o torren -
te devastadora, lh es vão tran sm itin do a su a civilização”.71
A gu erra colon ial african a ia com eçar e Salazar ia fican do cada vez
m ais isolado. A ONU tom ará posições con tra Portu gal e a favor da au to-
determ in ação dos territórios colon izados e os EUA, govern ados por Ken -
n edy, votarão a favor dessas m oções.72 Os discu rsos de Salazar passarão a
versar predom in an tem en te os problem as u ltram arin os e afirm ará a céle-
bre e já referida posição de “orgu lh osam en te sós”, qu e con stitu iu o ch a-
vão da ú ltim a fase do seu con su lado.

“EUROPEÍSMO” E “ANTIEUROPEÍSMO”

A ideologia salazarista em relação à Eu ropa e ao Mu n do m an teve-


se essen cialm en te con stan te. Só se alteraram as su as con dicion an tes. Ve-
jam os, pois, agora, com o corolário desta an álise, a idéia aparen tem en te
con traditória de Salazar dian te da realidade eu ropéia e en ten dam os por-
qu e n ele se con ju gam , logicam en te aliás, u m “eu ropeísm o” e u m
“an tieu ropeísm o”. An tes, porém , para u m a m elh or com preen são do as-

326
O ESTADO NOVO. FASCISMO, SALAZARISMO E EUROPA

su n to, esbocem os, em lin h as gerais, as corren tes eu ropeístas qu e se per-


filam , sobretu do, n o pós-gu erra.
O projeto eu ropeísta é velh o, com o se sabe, sen do com u m dizer-se
qu e, de u m a form a pré-m odern a, rem on ta a Pierre Du bois (qu e m orreu
cerca de 1321). As in ten ções desse projeto ou desses projetos estão liga-
das a con cepções diversas e de variado tipo, desde a idéia de u n idade cris-
tã, ten do com o base política de h egem on ia “sacerdotal” ou “im perial”, à
idéia de paz e de solidariedade en tre os povos, ou a desígn ios m ais con -
cretos de m an u ten ção de u m a “ordem con servadora”, ou de idéias de in -
tern acion alism o liberal, dem ocrático ou socialista, ou até a pragm áticos
plan os de organ ização econ ôm ica. Depois da Prim eira Gran de Gu erra,
m as em especial depois da Segu n da, esses projetos en tram n u m a ordem
de in iciativas m ais direta, n ão só n u m a m era con cepção eu ropeísta m as
m esm o m u n dial. Foi n esse con texto qu e su rgiu a SDN em 1919-1920, e
em 1945 a ONU, e qu e apareceu , só em 1957, com o Tratado de Rom a,
a Com u n idade Econ ôm ica Eu ropéia (CEE), precedida em 1947 da criação
do BENELUX, em 1949 do Con celh o da Eu ropa e em 1951 da Com u n i-
dade Eu ropéia do Carvão e do Aço (CECA), para falar apen as em algu -
m as etapas fu n dam en tais.
No en tan to, para u m m elh or en ten dim en to das lin h as em con fron -
to, sem o qu e n ão será fácil en ten der com u m a certa exatidão as posições
do Salazarim o, parece-n os ain da im portan te falar das ten dên cias qu e se
esboçavam n o cam po das idéias e das realizações. Pode dizer-se, em pri-
m eiro lu gar, qu e se desen h am plan os apen as con cretizados n o cam po das
ideologias m ilitan tes. Um deles, assu m ido pela esqu erda socialista in de-
pen den te, qu e criara n o pós-gu erra o Movim en to para os Estados Socia-
listas da Eu ropa, pen sava n a possibilidade de alterar a face eu ropéia capi-
talista, n u m a perspectiva política, cu ltu ral e socioecon ôm ica socialista,
fora, n o en tan to, do sistem a de in flu ên cias soviético. Em 1947 tran sfor-
m a-se n o Movim en to Socialista Eu ropeu , perden do, segu n do algu n s dos
seu s in iciais organ izadores e depois dissiden tes, adeptos de u m esqu erdis-
m o radical, o seu idealism o de prin cípio, e in tegran do-se n u m certo
“pragm atism o eu ropeu ”.73 Ou tra lin h a, diam etralm en te oposta a esta,
con stitu ía a extrem a direita n acion alista e católica, qu e n ão propen dia
para u m projeto con creto e su pran acion al de “Eu ropa”, em bora estabele-
cesse algu m as pon tes com os projetos pragm áticos e im perialistas do n a-
zism o e do fascism o italian o. Acim a de tu do, pen sava tam bém n u m a al-
teração da face da Eu ropa, m as – in vocan do a experiên cia da cristan dade
m edieval e as idéias revivalistas rom ân ticas – n u m a perspectiva corpora-
tiva, au toritária e católica. Nou tro sen tido, em con fron to direto com o n a-
zi-fascism o, en con trava-se o com u n ism o soviético, qu e, m ais do qu e u m
plan o eu ropeu , tin h a objetivos in tern acion alistas de “poder proletário” e
projetos con cretos de expan são n a Eu ropa e n o Mu n do.

327
Luís Reis Torgal

Mas as lin h as eu ropeístas e in tern acion ais qu e realm en te acabaram


por se in stitu cion alizar depois da gu erra n ão foram estas. Foi sim , por u m
lado, u m a corren te eu ropeísta prática, de tipo econ ôm ico, m as tam bém
de ten dên cias políticas, defen dida por dem ocratas-cristãos, liberais e so-
cialistas m oderados. A “Eu ropa dos Seis” (Alem an h a, Fran ça, Itália, Ho-
lan da, Bélgica e Lu xem bu rgo), qu e lh e deu in ício, m arca a afirm ação de
u m a Eu ropa cen tro-ociden tal. Por ou tro lado, diferen tes lin h as com u n i-
tárias afirm avam -se n ou tros qu adran tes geográficos e n ou tras áreas de
Poder. É o caso da OECE (Organ ização Eu ropéia de Cooperação Econ ô-
m ica), qu e su rgia em 1948 n o con texto do Plan o Marsh all (1947), isto é,
do plan o de apoio dos EUA à Eu ropa destru ída pela gu erra. Trata-se, pois,
de u m a con cepção eu ropéia atlân tica sob lideran ça am erican a qu e aca-
bou por desaparecer com a criação da OCDE (Organ ização de Cooperação
e de Desen volvim en to Econ ôm ico), criada em 1960 e qu e abarca 24 paí-
ses, da Eu ropa (algu n s da CEE), da Am érica (os EUA e o Can adá) e da
Ocean ia (Au strália e Nova Zelân dia). En tretan to, para a defesa do Atlân -
tico con tra o “perigo com u n ista” – ao qu al respon derá n o Leste o Pacto
de Varsóvia –, organ izava-se jogo em 1949, com a presen ça dom in an te
dos EUA e com algu n s países da fu tu ra Com u n idade Eu ropéia, a OTAN
ou NATO (Organ ização do Tratado do Atlân tico Norte). No plan o econ ô-
m ico, de algu m a form a com o con trapon to a u m a con cepção de “com ér-
cio fech ado” da CEE, su rgia em 1960 n a Eu ropa a EFTA (Eu ropean Free
Trade Association ). Associação Eu ropéia de Com ércio Livre).
É n o seio desta rede com plexa de organ izações, on de se cru zam
con cepções políticas e econ ôm icas diferen tes, qu e vam os en con trar, em
parte, o Estado Novo portu gu ês.
Nu m discu rso de 1949, proferido n a Sala das Sessões da Assem bléia
Nacion al, n o qu al se pron u n ciou sobre a adesão de Portu gal ao Pacto do
Atlân tico, Salazar sin tetizou a su a opin ião sobre a Eu ropa. Assim , depois
de afirm ar qu e Portu gal n ão poderia ser acu sado de precon ceitos raciais,
disse: “Não é, porém , precon ceito racial a verificação de u m fato h istóri-
co – qu al a m arcada su perioridade do eu ropeu , n a tarefa civilizadora, en -
tre todos os povos da Terra. Desta Eu ropa gerada n a dor das in vasões, sa-
crificada em gu erras in testin as, cu rtida n o trabalh o in san o, revolvida a
cada passo, por avalan ch es de idéias e revolu ções qu e se assem elh am a
fu riosos tem porais, descobridora, viageira, m ission ária, m ãe das n ações,
desta Eu ropa sim u ltan eam en te trágica e gloriosa ain da h oje se pode asse-
verar qu e m an tém o prim ado da ciên cia e das artes, u tiliza n o m ais alto
grau os segredos da técn ica, con serva o in stin to de afin ar as in stitu ições e
de su blim ar a cu ltu ra e é deten tora de in com parável experiên cia política.
Não esqu eçam os o qu e se deve a ou tros em criação artística, esplen dor li-
terário, su tileza de filosofias aqu i e além criadas e desen volvidas; m as só

328
O ESTADO NOVO. FASCISMO, SALAZARISMO E EUROPA

da Eu ropa se pode afirm ar qu e criou , sob in spiração cristã, valores u n i-


versais, gen erosam en te, gratu itam en te, postos ao dipor do Mu n do, n a
su a ân sia de tran splan tar civilização. Cada u m de n ós deveria sen tir o or-
gu lh o de se afirm ar eu ropeu .” E con tin u ou n ou tro sen tido: “Seria, n o en -
tan to, desrazoável fech ar os olh os à crise da Eu ropa n o presen te m om en -
to; devastada, em pobrecida, dividida, m oralm en te desfeita, corroída pelo
desân im o, a braços com u m a perigosa desorien tação m en tal e o claro de-
clin ar das virtu des em qu e se form ou , m u itos pergu n tam se n ão são estes
sin tom as da decadên cia e se esta n ão será defin itiva: finis Europae”.74
Com o se vê, é u m a “Eu ropa trágica” qu e Salazar n os apresen ta –
“l’Europe tragique” (Gon zagu e de Reyn old), “a Eu ropa e os seu s fan tas-
m as” (João Am eal) –, m as tam bém u m a “Eu ropa gloriosa”. Na verdade,
o seu “eu ropeísm o” tem sobretu do este sen tido vago, qu ase diríam os ro-
m ân tico, “espiritu al”, este sen tido de Eu ropa com o “patrim ôn io cu ltu ral”.
Mas n ão só. Com o homo politicus, Salazar viu tam bém a qu estão em ter-
m os estratégicos. Daí a adesão de Portu gal ao Pacto do Atlân tico. É qu e
para ele – com o procu ram os provar – h á dois prin cípios essen ciais qu e es-
tão n a base da su a política extern a e n a su a idéia de Eu ropa e de Mu n do:
o seu an ticom u n ism o sistem ático, em ligação com u m tam bém sistem áti-
co an tiliberalism o e an tidem ocratism o, e a im agem da “origin alidade” de
Portu gal, ten do em con ta a su a ação própria de civilizador de vastas re-
giões, em particu lar da África. Esta ú ltim a posição ju stificava em parte o
afastam en to do país em relação aos con flitos da Eu ropa: “Sem pre qu e o
fizem os” – afirm ava n esse m esm o discu rso – “livrem en te ou com pelidos
por ou tros e pelas circu n stân cias, distraím o-n os das n ossas tarefas u ltra-
m arin as, e sem lu cros, an tes com graves dan os e perdas de vidas e fazen -
da, voltam os para a Pátria, se às vezes com glória, sem pre desilu didos das
n ossas in terven ções”.75 Os dois prin cípios con ju n tam en te explicavam , por
su a vez, u m a con cepção de Eu ropa alargada, de tipo atlân tico, n a base de
u m a ação fu n dam en tal dos Estados Un idos, com o potên cia m essiân ica:
“A Eu ropa n ão pode sem o au xílio am erican o salvar n esta h ora o qu e res-
ta do seu patrim ôn io m oral e da su a liberdade”.76
Afin al o qu e defen deu Salazar n ão foi u m a Eu ropa com u n itária, de
tipo con tin en tal e m u ito m en os de tipo federalista. Desde m u ito cedo –
pelo m en os em 1936 – qu e o vem os a criticar o qu e con sidera a “fan ta-
sia” dos Estados Un idos da Eu ropa,77 assim com o, pou cos m eses após o
Tratado de Rom a, o en con tram os den u n cian do a “Eu ropa dos Seis” e o
Mercado Com u m , con sideran do qu e qu ebrava o sistem a de relações dos
países qu e con stitu íam a OECE e repu tava-a u m a organ ização preju dicial
em n om e do “com ércio livre” (recorde-se qu e em 1960 Portu gal in tegrar-
se-á n a OCDE e aderirá à EFTA).78

329
Luís Reis Torgal

A Eu ropa é, para Salazar, o cen tro n evrálgico do m u n do. Mas n ão


a en ten de som en te n u m a perspectiva estritam en te “eu ropéia”, e sim
n u m a perspectiva eu ro-am erican a 79 e eu ro-african a. Se, por u m lado, os
EUA salvarão os valores da Eu ropa – “o cen tro de gravidade da política
m u n dial” (segu n do dizia) “n ão é n em pode já ser eu ropeu , m as qu an do
m u ito eu ro-am erican o” –, a Eu ropa tam bém n ão pode viver sem a Áfri-
ca, qu e é o seu “com plem en to n atu ral”, com o por diversas vezes dirá, an -
tes e depois dos con flitos da descolon ização.80 Portan to, a Eu ropa só con -
segu irá refazer os seu s valores se m an tiver a su a posição civilizadora n a
África, se se opu ser term in an tem en te ao com u n ism o soviético e se con -
segu ir, assim , fazer reviver o seu espírito secu lar. Nesta m edida, se a Am é-
rica tem u m papel político im portan te n esta tarefa, u m país pequ en o, m as
h istoricam en te sign ificativo com o Portu gal, n ão desem pen h ará u m a fu n -
ção m en os relevan te: “con tribu ição qu e o portu gu ês deu para o alarga-
m en to do espaço su jeito à in flu ên cia eu ropéia, a expan são qu e ele pró-
prio realizou da civilização ociden tal e a ação qu e n o m esm o sen tido con -
tin u a a desen volver n os territórios su jeitos à su a soberan ia fazem deste
pequ en o país u m obreiro n ão despicien do da tarefa coletiva da Eu ropa”.81
Eis, pois, por qu e Salazar é u m “eu ropeísta” e u m “n ão eu ropeísta”.
Mas o certo é qu e foi a su a posição eu ropéia qu e saiu derrotada n a bata-
lh a estratégica da Eu ropa e do m u n do. A lu ta an ticolon ial gen eralizada e
o aban don o dos EUA, e da própria Eu ropa, em relação à política portu gu e-
sa eu ro-african a, bem com o as n ovas estratégias – cada vez m ais toleran -
tes, apesar da “gu erra fria” – para fazer fren te ao com u n ism o soviético,
acabaram por arrastar o Portu gal salazarista para u m a posição solitária. Daí
qu e Portu gal só “voltará” à “Eu ropa”, a “ou tra Eu ropa”, após o 25 de Abril,
depois de en trar n a via dem ocrática. Por isso, é possível ain da h oje en con -
trar vozes de resson ân cia salazarista qu e criticam a “in tegração eu ropéia”,
em bora su rjam tam bém várias posições, igu alm en te críticas, com ou tras
origen s ideológicas, por vezes diam etralm en te diferen tes.

V OZES “SA LA ZA RISTA S” SOBRE A EUROPA


Os n acion alistas fran ceses – qu e n a Fran ça perderam a “batalh a das
idéias” – en ten deram Portu gal com o o “bastião do Ociden te” (“le bastion
avançé de l’Occident”, com o disse Hen ri Massis, au tor da obra Défense de
l’Occident”.82 Jacqu es Plon card d’Assac, qu e, desem pen h an do u m papel de
“in telectu al orgân ico” n o Estado Novo, foi o m ais salazaristas desses fran -
ceses, ao estabelecer u m “dicion ário político de Salazar”, realçou n a pala-
vra “Eu ropa” exatam en te essa posição de Salazar con tra a com u n idade
eu ropéia e essa ou tra idéia de Eu ropa com o patrim ôn io estru tu rado
n u m a Eu ro-afro-am érica.83

330
O ESTADO NOVO. FASCISMO, SALAZARISMO E EUROPA

Matos Gom es, u m m on árqu ico qu e dedicou em 1953 u m a obra à


“Política Extern a de Salazar”, acen tou , com sim patia, apesar da “seren ida-
de objetiva” qu e dizia m an ifestar n esse estu do, exatam en te os aspectos
com qu e caracterizam os o pen sam en to de Salazar sobre a Eu ropa. Isto é,
procu rou desen h ar as su as con cepções n a base da idéia de qu e Salazar –
“qu e jam ais se en gan ou ” –, teve sem pre presen te o perigo com u n ista, a
com preen são pela Alem an h a, con sideran do o germ an o com o “o fron teiro
da Eu ropa em face do eslavo in vasor”, a “m aldita h eran ça” das dem ocra-
cias. Daí qu e ch egasse a u m “eu ropeísm o toleran te e com preen sivo”, tole-
ran te de todos os sistem as políticos, à exceção do com u n ism o, e repu dias-
se as u topias eu ropeístas de base dem ocrática.84 Sin tetizan do, afirm ava:
“Portu gal defen de o seu eu ropeísm o e, com ele, a su a fidelidade à Verda-
de, à Hon ra, à Ju stiça, à Legitim idade do Direito, ao Bem -Com u m dos Ho-
m en s e das Nações. Mas repele com apru m o a in sídia do bolch evism o.85
Mas foi João Am eal o ideólogo e o h istoriador do regim e qu e m ais
se dedicou à an álise e à reflexão sobre a realidade eu ropéia. Para além de
livros teóricos, direta ou in diretam en te, sobre o tem a, lecion ou n o In sti-
tu to Su perior de Ciên cias Sociais e Política Ultram arin a u m cu rso acerca
da “idéia de Eu ropa” e pu blicou u m a “História da Eu ropa”.
O seu texto de 1945 A Europa e os seus fantasmas reprodu z – ele qu e
acreditava, veem en tem en te, an tes da gu erra, n a con stru ção de u m “Novo
Estado” – as velh as teses caras ao pen sam en to n acion alista em crise, cri-
se qu e n ão o leva a crer com igu al en tu siasm o em solu ções con cretas de
m u dan ça, m as apen as em vagas idéias rom ân ticas. Os “fan tasm as” da Eu -
ropa eram a “h eresia liberal”, o com u n ism o, o “am erican ism o” (a “dita-
du ra da m áqu in a”)... A “Idade Nova” teria de assen tar n a História, n o Na-
cion alism o (n o “bom n acion alism o”, fu n dam en tado n o catolicism o) e n o
“Novo Estado”, corporativo, m u n icipalista, qu e tem com o célu la a Fam í-
lia. “Sob o sign o de São Tom ás” – n esta vaga esperan ça de teoria política
católica term in a o seu livro de pessim ism o e de esperan ça. Na in trodu ção
dissera: “Não estam os, de fato, em plen a atm osfera de tragédia? À sem e-
lh an ça de Electra, n ão sofre a Eu ropa o assalto da ron da dos fan tasm as –
dos seu s fan tasm as – qu e a afogam e estran gu lam com desm edidos bra-
ços de som bra? Mas os fan tasm as poderão ser ven cidos, dissolvidos – se a
Eu ropa se pu ser n ovam en te em m arch a para on de se descerram as gran -
des claridades, de acordo com as bases profu n das da civilização do ociden -
te e com as lições e os apelos dos n ovos tem pos; se a Eu ropa voltar a ser
aqu ilo qu e foi n o seu período áu reo: cristan dade, u n ida con tra as h ere-
sias, fiel à lei de Deu s e às leis da n atu reza h u m an a...”.86
Nas su as lições sobre a Idéia de Europa n ão são su bstan cialm en te di-
feren tes as esperan ças de Am eal, ain da qu e as idéias corram com preocu -
pações didáticas m ais “objetivas” e ain da qu e ten h a com o con dim en tos os

331
Luís Reis Torgal

novos condicionalismos dos anos 60. Lá temos, por um lado, a recusa de


qualquer esquema de soberania supranacional e, por outro, a idéia, ainda
subsistente, de que os Estados Unidos deveriam ajudar a não morrer a “ci-
vilização ocidental”.87 Em 1969, falando do Ocidente, está subjacente a luta
travada por Portugal no Ultramar: “O Ultramar Português será fator deter-
minante do projeto do futuro Portugal nos quadros do Ocidente futuro!”.88
Mas o m ais in teressan te em João Am eal é qu e ele foi o au tor da
ú n ica História da Europa até agora pu blicada em Portu gal por u m portu -
gu ês.89 Obviam en te é u m a h istória m arcada pelas gran des lin h as da ideo-
logia in tegralista e salazarista, u m a h istória qu e con siderou com o “h ere-
sias” os m ovim en tos revolu cion ários qu e vão da Revolu ção Fran cesa e do
liberalism o, ou m esm o do Ren ascim en to e do Ilu m in ism o, ao com u n is-
m o e à dem ocracia. Mas acim a de tu do trata-se de u m a h istória vista “sob
o ân gu lo portu gu ês”. Um dos objetivos con siste em m ostrar o con tribu to
qu e “Portu gal deu à Civilização Ociden tal”. Aí tem os o n acion alism o por-
tu gu ês n a base do “ociden talism o”.90
Um ou tro caso dign o de n ota é o Pau lo de Pitta e Cu n h a, docen te
da Facu ldade de Direito de Lisboa, qu e esboçou sobre os problem as da
Eu ropa algu m as reflexões de cu n h o “cien tífico”, con dicion adas pelas
idéias salazaristas dos an os 60. Nu m bem docu m en tado estu do acerca do
“Movim en to Eu ropeu ”, n o qu al apresen tou os textos fu n dam en tais da
com u n idade eu ropéia, e das etapas qu e a precederam , qu estion ou sobre
as dificu ldades em articu lar a soberan ia dos Estados e as in stitu ições su -
pran acion ais da CEE Tam bém a sim patia de Pitta e Cu n h a se dirigia para
a idéia de u m a com u n idade eu ro-am erican a, qu e, n o en tan to, os proces-
sos de descolon ização preju dicariam .91
Poderíam os discu tir agora se o m arcelism o trou xe algo às con cep-
ções portu gu esas de Eu ropa 92 ou m esm o se algu n s m in istros m ais de Sa-
lazar, com o Adrian o Moreira – com o m in istro e depois com o professor –,
abriram já a qu estão a ou tras perspectivas.93 Fosse com o fosse, o certo é
qu e a política portu gu esa n ão se alterou su bstan cialm en te. Apesar de afir-
m ações de “cooperação” e da m aior abertu ra ao m ercado in tern acion al,
aban don an do, assim , aos pou cos o “m ercado ú n ico eu ropeu ”, m an tive-
m o-n os essen cialm en te em idên tica atitu de de solidão política n o espaço
eu ropeu e m u n dial.
Ain da recen tem en te se ou viram ecos das teses salazaristas... Não é
por acaso qu e Silva Cu n h a, qu e foi m in istro de Salazar n os an os 60, em
1980 falava de u m a Eu ropa en fraqu ecida, de Portu gal desde sem pre in -
teressado n as organ izações eu ropéias, aceitan do a n ova in tegração só
com o u m desafio à crise agôn ica do país – u m país sem Ultram ar, de qu e
ele próprio fora Min istro.94 E tam bém n ão é por acaso qu e Kaú lza de Ar-
riaga, qu e perten ceu ao govern o de “extrem a direita portu gu esa”, m an ti-
n h a a idéia – em palavras dirigidas ao jorn al Expresso, n o con texto do de-

332
O ESTADO NOVO. FASCISMO, SALAZARISMO E EUROPA

bate sobre o tratado de Maastrich t, qu e apon tou para a organ ização da


Un ião Eu ropéia – qu e Portu gal “com eteu u m erro ao en trar para a CE,
porqu e a n ossa com u n idade n atu ral tem a ver com a In glaterra e a Am é-
rica do Norte e os an tigos territórios u ltram arin os”.95

333
Luís Reis Torgal

N OTA S
1. GARCIA, M. M. Arquivo de Salazar. Inventário e Índices. Lisboa: Estam pa, 1991.
2. Este texto qu e agora pu blicam os é u m a refu n dição e atu alização do artigo Salazarism o,
Fascism o e Eu ropa. Vértice, p.41-52, jan .-fev., 1993; n ova edição: O Estu do da História. Bo-
letim da Associação de Professores de História ( Lisboa), II série, n .12-13-14-15, p.111-34, 1990-
1993. No con texto da m esm a tem ática e retom an do, em boa parte, idéias desse artigo, pu -
blicam os tam bém : Salazarism o, Alem an h a e Eu ropa. Discu rsos Políticos e Cu ltu rais. Revista
de História das Ideias, n .16. Do Estado Novo ao 25 de Abril, 1994, p.73-104; pu blicado tam -
bém em SANTOS, M. L. dos, KNEFELKAMP, U., HANENBERG, P. (Org.) Portugal und Deuts-
chland auf dem Weg nach Europa (Portugal e a Alemanha a caminho da Europa. Cen tau ru s-Ver-
lagsgesellsch aft, Pfaffen weiler, 1995. p.193-219, e em TELO, A. J. (Coord.) O fim da Segun-
da Guerra Mundial e os novos rumos da Europa. Lisboa: Cosm os, 1996. p.241-262.
3. Na BGUC o “Fu n do Pedro de Mou ra e Sá” tem u m a excelen te coleção de obras sobre a
Eu ropa. Relativam en te à bibliografia sobre a Eu ropa em Portu gal n o sécu lo XX, ver LAN-
DUYT, A. (Org., Ed.) Europa Unita e Didactica Integrata. Storiografie e Bibliografie e Confronto / A
United Europa and Integrated Didactics. Historiographies and Bibliographies Compared / Europe
Unie et Didactique Intégrée. Historiographies et Bibliographies Comparées. Sien a: Protagon Editori
Toscan i, 1995. - Portu gal e a In tegração Eu ropéia / Portu gal an d th e Eu ropean In tegration ”
(Lu ís Reis Torgal e Maria Man u ela Tavares Ribeiro), p.130-139 e seleção bibliográfica in te-
grada.
4. Ver AMEAL, J. (Dir.) Dez anos de política externa. 10 v., Lisboa: Im pren sa Nacion al, Anais da
Revolução Nacional, particu larm en te v.V, Barcelos, Com pª. Editora do Min h o, 1956; TEIXEI-
RA, L. Neutralidade colaborante. Lisboa, 1945 (Prêm io Afon so de Bragan ça, do Secretariado
Nacion al de In form ação); CASTRO, A. de Subsidios para a história da política externa portugue-
sa durante a guerra. Lisboa: Livraria Bertran d, s.d.; GOMES, M. Política Externa. Edições Além ,
1953 e NOGUEIRA, F. História de Portu gal, II su plem en to. 1933-1974. In : BARCELOS (Ed.)
História de Portugal. Porto: Civilização, 1981 e Salazar, especialm en te v. III e IV.
5. OLIVEIRA, C. Salazar e a Guerra Civil de Espanha. Lisboa: O Jorn al, 1987.; LOFF, M. Sala-
zarismo e Franquismo na época de Hittler (1936-1942). Porto: Cam po das Letras, 1996, e RODRÍ-
GUEZ, A. P. El Estado Novo de Oliveira Salazar y La Guerra Civil Española: In form ación , Pren sa
y Propagan da (1936-1939). Madri, 1997. Tese (Dou torado) – Un iversidade Com plu ten se de
Madrid, (Policopiada).
6. TELO, A. J. Portugal na Segunda Guerra Mundial. Lisboa: Perspectivas e Realidades, 1987;
___. Propaganda e guerra secreta, 1939-1945. Lisboa: Perspectivas e Realidades, 1990; ___. Por-
tugal na Segunda Guerra (1941-1945). Lisboa: Veja, 1991. 2v.; ROSAS, F. O Salazarismo e a
aliança luso-britânica. Lisboa: Fragm en tos, 1998; ___. Portugal entre a Paz e a Guerra. Lisboa:
Estam pa, 1990; CARRILHO, M., et al. Portugal na Segunda Guerra Mundial. Con tribu tos para
u m a Reavaliação. Lisboa: Dom Qu ixote, 1989; ANDRADE, L. V. de. Neutralidade colaborante.
O Caso de Portu gal n a Segu n da Gu erra Mu n dial. Lisboa: Pon ta Delgada, 1993. ROLLO, F.
Portugal e o Plano Marshall. Lisboa: Estam pa, 1994.
7. Note-se, todavia, qu e esta qu estão tem sido por vezes abordada, em algu m as obras gerais
sobre o Salzarism o. Por exem plo, C. OLIVEIRA apresen tou sobre ela algu m as reflexões n o
seu livro Salazar e o seu tempo. Lisboa: O Jorn al, 1991. Sobretu do cap. III.
8. Pode-se en con trar u m levan tam en to do problem a n a obra de PINTO, A. C. O salazarismo
e o fascismo europeu . Problem as de In terpretação n as Ciên cias Sociais. Lisboa: Estam pa, 1992.
En tre ou tros, e destacam os aqu i o recen te en saio de SCHIRÓ, L. B. de. A experiência fascista
em Itália e em Portugal. Lisboa: Edições Un iversitárias Lu sófon as, 1997, poderem os dizer qu e
n ós próprios participam os n este debate com u m artigo, pu blicado n o Brasil e qu e em breve
terá u m a edição refu n dida em Espan h a: Estado Novo em Portu gal: En saio de Reflexão so-
bre o seu Sign ificado. Estudos Ibero-Americanos (Porto Alegre), PUCRS, n .1, v.XXIII, p.3-32,
ju n . 1997.

334
O ESTADO NOVO. FASCISMO, SALAZARISMO E EUROPA

9. FERRO, A. Salazar. O h om em e a su a obra. Lisboa: Em presa Nacion al de Pu blicidade,


1933. p.74.
10. Veja-se a su a reprodu ção em Vértice, n .13, p.87, abr. 1989.
11. En con tram os essa fotografia n o arqu ivo particu lar de u m descen den te de Salazar. Ver
su a reprodu ção em ALVES, C. T. A biblioteca e o arqu ivo de Salazar. Notas para u m Catálo-
go. Revista de História das Ideias (Coimbra), n .17, p.281, 1995.
12. FERRO, A., op . cit., p.74.
13. O Estado Novo Portu gu ês n a evolu ção política eu ropéia. (Discu rso proferido n a sessão
in au gu ral do 1º. Con gresso da Un ião Nacion al, n a Sala Portu gal da Sociedade de Geografia
de Lisboa, em 28 de m aio de 1934). Discursos (Coimbra), Coim bra Editora, v.I, p.334-5, 1935.
14. Sobre as relações do Salazarism o com os n acion alistas fran ceses, ver MEDINA, J. Sala-
zar em França. Lisboa: Ática, 1977.
15. Construção do Novo Estado. Porto: Tavares Martin s, 1938. p.21 ss.
16. Ibidem ., p.29.
17. “L’État fasciste est u n m agn ifiqu e oeu vre arch itectu rale. Sa con tem plation , son étu de,
provoqu en t u n plaisir esth étiqu e. C’est la seu le con stru ction politiqu e, parm i tou tes celles
qu ’on a élevées ou ébau ch ées depu is la gu erre, qu i soit h arm on ieu se dan s sa n ou veau té”
( L’Europe Tragique. Paris: Spes, 1935. p.292-3).
18. Portugal. Paris: Spes, 1936. p.326.
19. O discu rso está em Op. cit., p.346.
20. Discu rso proferido n a Assem bléia Nacion al, em 26 de m aio de 1940, du ran te a sessão
em qu e a Câm ara aprovou a Con cordata e o Acordo Mission ário, assin ados n o Vatican o em
7 de m aio an terior. Discursos (Coimbra), Coim bra Editora v.III, p.236. s.d.
21. “Pan orâm ica da política m u n dial”, en trevista con cedida ao jorn al Le Figaro e ali pu bli-
cado em 2-3 de setem bro de 1958, Discursos(Coimbra), v.VI, Coim bra Editora, 1967. p.40-1.
Ali afirm ou : “Se a dem ocracia con siste n o n ivelam en to pela base e n a recu sa de adm itir as
desigu aldades n atu rais; se a dem ocracia con siste em acreditar qu e o Poder en con tra a su a
origem n a m assa e qu e o Govern o deve ser obra da m assa e n ão do escol, en tão efetivam en -
te, eu con sidero a dem ocracia u m a ficção. Não creio n o su frágio u n iversal, porqu e o voto
in dividu al n ão tem em con ta a diferen ciação h u m an a. Os h om en s, n a m in h a opin ião, de-
vem ser igu ais peran te a lei, m as con sidero perigoso atribu ir a todos os m esm os direitos po-
líticos. Se o liberalism o con siste em con stru ir toda a sociedade sobre as liberdades in divi-
du ais, en tão eu con sidero m en tira o liberalism o. Não creio n a liberdade, m as n as liberdades.
A liberdade qu e n ão se in clin a peran te o in teresse n acion al ch am a-se an arqu ia e destru irá
a n ação”.
22. “Portu gal, a gu erra e a paz”, discu rso proferido em sessão da Assem bléia Nacion al de 18
de m aio de1945, em Discursos, v.IV, p.114-5, e “Miséria e m edo, características do m u n do
atu al”, discu rso proferido n u m a sala da biblioteca da Assem bléia Nacion al, em 25 de setem -
bro de 1947, ibidem , p.300.
23. Por exem plo, “Votar é u m gran de dever”, discu rso proferido n u m a das salas da bibliote-
ca da Assem bléia Nacion al em 7 de ou tu bro de 1945, Discursos, v.IV, p.187-8; “Relevân cia do
fator político e a solu ção portu gu esa”, discu rso proferido n a sessão in au gu ral da I Con ferên -
cia da Un ião Nacion al, em 9 de n ovem bro de 1946, n o Liceu D. Filipa de Len castre, ibidem ,
p.261; “Atm osfera Mu n dial e os Problem as Nacion ais”, discu rso proferido em 1º. de n ovem -
bro de 1957 ao m icrofon e da Em issora Nacion al, Discursos, v.V, p.416-7.
24. Por exem plo, en trevista ao jorn al m exican o Excelsior, pu blicado em 9 de abril de 1960,
Entrevistas, Coim bra: Coim bra Editora, 1967, p.7.
25. Discu rso citado, “Portu gal, a gu erra e a paz”, Discursos, IV, p.119-20.
26. “Govern o e Política”, discu rso proferido n a posse da n ova com issão execu tiva da Un ião
Nacion al, em sessão realizada n u m a sala da biblioteca da Assem bléia Nacion al, em 4 de m ar-
ço de 1947, Discursos, IV, p.269.

335
Luís Reis Torgal

27. Ibidem , p.268.


28. MONCADA, L. C. Memórias ao longo de uma vida. Lisboa: Verbo, 1992. p.194 ss.
29. Registrem os algu m as obras características deste m ovim en to de idéias; GRAVELLI, A. Di-
fesa dell’Europa e funzione antieuropea del Fascismo. Rom a: Nu ova Eu ropa, 1932; ___. Europa
com noi. Rom a: Nu ova Eu ropa, 1933; ___. Panfascismo. Rom a: Nu ova Eu ropa, 1935; ___. Ver-
so l’Internazionale fascista. Rom a: Nu ova Eu ropa, 1932; NARDELLI, M. Fascismo, idea univer-
sale. Tren to: Editrice Tren tin o, 1936; ___. Nuova civiltà per Nuova Europa. Rom a: Un ion e Edi-
toriale d’Itália, 1942; WINSCHUH, J. Costruzione della Nuova Europa. Firen ze: Cya, 1941.
30. Por exem plo, LODOLINI, A. La vita di Mazzini narrata ai Giovani Fascisti. Firen ze: Bem po-
rad, 1929; ROSSI, R. Mazzini e il Facismo. Livorn o: Massim a Casa, 1931.
31. Istitu to Nazion ale di Cu ltu ra Fascista. Primo convegno nazionale dei gruppi scientifici. Rom a,
23-26 n ovem bre 1942, XXI, II tem a “Idea dell’Europa”, Rom a, s. e., 1943.
32. Esses con gressos já vin h am se realizan do an tes. Gon zagu e de Reyn old fala-n os n a su a
presen ça em u m qu e se efetu ou n a Academ ia Real de Itália em Novem bro de 1932 ( L’Euro-
pe Tragique, p.393). As atas desse con gresso foram pu blicadas: Reale Accadem ia d’Italia. Fon -
dazion e A. Atti dei convegni. Convegno di scienze morali e storiche 14-20 novembre 1932, XI. Tem a:
Europa, Rom a: Reale Accadem ia d’Italia, 1933.
33. A europa e os seus fantasmas. Porto: Tavares Martin s, 1945.
34. Testamento da Europa. Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1942.
35. O problema da Europa. Lisboa: Edições Gam a, 1945.
36. A crise da Europa. Lisboa: Cosm os, 1942.
37. La Lanterne, 16.4.1952, citado em : GOMES, M., Política externa de Salazar. Lisboa: Edições,
Além , 1953. p.264.
38. L’Europe tragique, op. cit., p.398.
39. Por exem plo, “A Em baixada da Colôn ia Portu gu esa n o Brasil e a n ossa política exter-
n a”, discu rso proferido n o Gabin ete do Presiden te do Con celh o em 15 de abril de 1937, pe-
ran te os com ission ados pela Colôn ia Portu gu esa do Brasil para cu m prim en tar o Govern o,
Discursos, II, p.279.
40. Construção do Novo Estado, op. cit., p.34.
41. Doutor Oliveira Salazar. O seu tem po e a su a obra. Porto: Editora Edu cação Nacion al,
1937, en tre as p.10 e 11.
42. “Preocu pação da paz e preocu pação da vida”, discu rso proferido n a Em issora Nacion al,
n o en cerram en to da cam pan h a eleitoral para a n ova Assem bléia Nacion al, em 27 de ou tu -
bro de 1938, Discursos, II, p.105. Salazar pron u n ciava-se n o con texto da con ferên cia de Mu -
n iqu e (29 de setem bro de 1938), n a qu al a Alem an h a reforçou as su as posições n a Eu ropa,
ocu pan do os Su detas, adian do-se, assim , o gran de con flito. Salazar elogia Ch am berlain ,” a
qu em – n o seu dizer – o Ch efe do Govern o italian o deve ter dado a colaboração decisiva do
seu gên io político”.
43. Essa tese, qu e Salazar expen deu , foi con cretam en te exposta e ju stificada por TEIXEIRA
L. Portugal e a guerra. Neu tralidade colaboran te. Lisboa, 1945.
44. Discu rso in lugar cit., p. 107.
45. Ibidem, p.110.
46. Ibidem, p.112.
47. “Eu ropa em gu erra. Repercu ssão n os problem as n acion ais”, discu rso proferido n a As-
sem bléia Nacion al, em 9 de ou tu bro de 1939, du ran te a sessão em qu e a Câm ara se con gra-
tu lou pela viagem do Ch efe do Estado à África portu gu esa, Discursos, III, p.185.
48. “Problem as político-religiosos da Nação Portu gu esa e do seu Im pério”, discu rso proferi-
do n a Assem bléia Nacion al em 25 de m aio de 1940, Discursos, III, p.236.

336
O ESTADO NOVO. FASCISMO, SALAZARISMO E EUROPA

49. “Exposição sobre a política in tern a e extern a”, n otas taqu igráficas de u m discu rso diri-
gido às n ovas com issões da Un ião Nacion al, n u m a sala de biblioteca da Assem bléia Nacio-
n al, em 18 de agosto de 1945, Discursos, IV; p.142.
50. “Votar é u m gran de dever”, discu rso proferido n u m a das salas da biblioteca da Assem -
bleia Nacion al em 7 de ou tu bro de 1945, Discursos, IV, p.175.
51. “Relevân cia do fator político...”, discu rso já citado, Discursos, IV, p.254.
52. Ibidem , p.255 ss.
53. “A Posição Portu gu esa em face da Eu ropa, da Am érica e da África”, discu rso proferido
n a sede da Assem bléia Nacion al em 23 de m aio de 1959, Discursos, VI, p.67.
54. “Miséria e m edo...”, discu rso citado (25.11.1947), Discursos, IV, p.289 ss.
55. “Pan oram a da política m u n dial”, en trevista cit. ( Le Figaro, 2-3.9.1958), Discursos, VI, p. 6.
56. Ibidem , p.3 ss.
57. Cf. “Erros e fracassos da era política”, discu rso proferido n a posse da Com issão Execu ti-
va da Un ião Nacion al, em 18 de fevereiro de 1965, Discursos, v.VI, p.368.
58. “Portu gal, a Alian ça In glesa e a Gu erra de Espan h a”, discu rso proferido n a sala dos “Pas-
sos Perdidos” da Assem bléia Nacion al, em 6 de ju lh o de 1937, ao agradecer aos oficiais de
terra e m ar as h om en agen s qu e lh e prestaram pelo m alogro do aten tado de qu e foi alvo n o
dia 4, Discursos, v.II, p.304.
59. Ibidem, p.302.
60. Em especial sobre os film es Revolução de Maio (1937) e Feitiço do Império (1940), de An tô-
n io Lopes Ribeiro, ver o n osso artigo Cin em a e Propagan da n o Estado Novo. “A con versão
dos Descren tes”. Revista de História das Ideias ( Coimbra) , n .18, p.277-337, 1996.
61. O Século, 2.8.1940.
62. “Portu gal, a gu erra e a paz”, discu rso cit., Discursos, v.IV, passim , n om eadam en te p.106,
114, 119-120.
63. Ibidem , p.110 ss. Ver tam bém “Exposição sobre política extern a”, n otas sobre u m dis-
cu rso cit. (18.8.1945), p.142 ss., e “Votar é u m gran de dever”, discu rso cit. (7.10.1945),
p.169 ss.
64. “Ideias falsas e palavras vãs (Reflexões sobre o ú ltim o ato eleitoral)”, discu rso proferido
n a reu n ião das com issões dirigen tes da Un ião Nacion al, realizada em 23 de fevereiro de
1946, n u m a sala da biblioteca da Assem bléia Nacion al, Discursos, v.IV, p.213.
65. Ibidem , p.211-12.
66. “In depen dên cia da política n acion al – su as con dições”, discu rso proferido n a sessão
in au gu ral do III Con gresso da Un ião Nacion al, em Coim bra, a 22 de n ovem bro de 1951, Dis-
cursos, v.V, p.51 ss.
67. “Qu estões de política in tern a”, discu rso proferido n u m a das salas da biblioteca da As-
sem bléia Nacion al, dirigido aos Govern adores Civis, às com issões distritais da Un ião Nacio-
n al e aos can didatos a depu tados, em 20 de ou tu bro de 1949, Discursos, v.IV, p.449 ss.
68. “Goa e u n ião in dian a (Aspectos econ ôm ico, político e m oral)”, discu rso proferido em 12
de abril de 1954, ao m icrofon e da Em issora Nacion al, Discursos, v.V, p.189.
69. “A atm osfera m u n dial e os problem as n acion ais”, discu rso proferido em 1º. de n ovem -
bro de 1957, ao m icrofon e da Em issora Nacion al, Discursos, v.V, p.427.
70. En trevista cit., Discursos, v.VI, p.11.
71. Ibidem , p.27.
72. “O u ltram ar portu gu ês e a ONU”, discu rso proferido n a sessão extraordin ária da Assem -
bléia Nacion al, em 30 de ju n h o de 1961, Discursos, v.VI, p.128 ss. Ver sobre os con flitos en -
tre Salazar e Ken n edy, ANTUNES, J. F. Kennedy e Salazar. O leão e a raposa. Lisboa: Difu são
Cu ltu ral, 1991.

337
Luís Reis Torgal

73. Ver sobre este tem a BOURDET, C. A farsa da Europa. Paris: Segh ers, 1977.
74. “Portu gal n o pacto do Atlân tico”, discu rso proferido n a sala de sessões da Assem bléia
Nacion al, em 25 de ju lh o de 1949, Discursos, v.IV, p.419-20.
75. Ibidem , p.412.
76. Ibidem , p.420.
77. “In depen dên cia da política n acion al”, discu rso proferido n u m a das salas de São Ben to,
em 21 de fevereiro de 1936, Discursos, v.II, p.117.
78. “A atm osfera m u n dial e os problem as n acion ais”, discu rso proferido em 1º. de n ovem -
bro de 1957 aos m icrofon es da Em issora Nacion al, Discursos, v.V, p.439.
79. Ver o n osso artigo, qu e retom a algu m as con siderações aqu i expostas, “Salazarism o, Eu -
ropa e Am érica”. Revista Portuguesa de História (Coimbra), tom o XXXI, p.615-34. Facu ldade de
Letras.
80. Cf. Por exem plo, “Preparação n acion al para o pós-gu erra”, discu rso proferiso n a sessão
de abertu ra do II Con gresso da Un ião Nacion al, em 25 de m aio de 1944, n o Liceu D. Filipa
de Len castre, Discursos, v.IV, p.61, “Apon tam en tos sobre a situ ação in tern acion al”, discu rso
proferido n a Sociedade de Geografia, em 30 de m aio de 1956, n a sessão de abertu ra do Con -
gresso da Un ião Nacion al, ibidem , v.V, p.371 ss., “A posição portu gu esa em face da Eu ropa,
da Am érica e da África”, discu rso proferido n a sede da Un ião Nacion al em 23 de m aio de
1959, idem, p.64 ss.
81. “Portu gal com o elem en to de estabilidade n a Civilização Ociden tal”, palavras de Salazar
pu blicadas n o Journal de Genève n o n ú m ero de 13 de ou tu bro de 1953, dedicado a Portu gal,
Discursos, v.V, p.157 e passim .
82. No volu m e Défense de l’Occident, qu e o au tor ofereceu à Biblioteca Geral da Un iversida-
de de Coim bra, pode ler-se este passo, qu e foi depois tran scrito n o opú scu lo (coletân ea ex-
traída da obra Les idées restent) Occidente ou Oriente? No lim iar da Hora Trágica. Coim bra: Casa
do Castelo, 1949: “La civilisation ne vivra que dans la mesure ou nous voudrons, ou nous en ferons
une idée-maîtresse, idée-chef – c’est ce le Portugal a compris et qui en fait le bastion avancé de la dé-
fense de l’Occident”.
83. D’ASSAC, J. P. Dictionnaire politique de Salazar. Lisboa: S. N. I., 1964. p.135 ss.
84. Cf. GOMES, M. Política externa de Salazar. Lisboa: Edições Além , 1953. cap.XI, p.261 ss.
85. Ibidem , p.271.
86. Op. cit., p.XIV.
87. Ideia de Europa. Cu rso Professado n os An os Lectivos de 1965-1966 e 1966-1967. Lisboa:
In stitu to Su perior de Ciên cias Sociais e Política Ultram arin a, 1967. Ver sobretu do p.165 ss.
88. O Ocidente e Portugal Separata do Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, ju lh o-se-
tem bro, 1969, p.195.
89. Note-se todavia, qu e, n o con texto da n ova situ ação eu ropéia, o didata da História, A. S.
RODRIGUES, colaborou n u m a obra con ju n ta: História da Europa. Escrito por doze h istoria-
dores eu ropeu s. Coim bra: Min erva, 1992, tradu ção da obra pu blicada em Paris: Hach ette,
1992.
90. Ver História da Europa. Porto: Tavares Martin s, 1961, 1964, 1969. 3v. (2.ed, Lisboa: Ver-
bo, 1982-1984, 5v.). Cf. Prefácio da 1.ed., p.XVII.
91. O movimento político europeu e as instituições supranacionais, Lisboa, Separata do Boletim do
Ministério da Justiça, 1963, em particu lar p.152-53.

338
O ESTADO NOVO. FASCISMO, SALAZARISMO E EUROPA

92. Ver, por exem plo, a coletân ea do pen sam en to de CAETANO, M. Eu ropa. In : ZORRO, A.
M. (Com p.) Princípios e definições. Lisboa: Pan oram a, 1969. (Textos de 1936 a 1967). Ali, so-
bretu do n o títu lo “Eu ropa” (p.67-69), verifica-se qu e Marcello, apesar de m an ter as su as
descon fian ças em relação aos Estados Un idos da Eu ropa e de con ceber a Eu ropa essen cial-
m en te com o u m a “cu ltu ra”, fala com certa ên fase da “cooperação eu ropéia” e parece per-
ceber a dificu ldade de países pequ en os com o Portu gal em su bsistirem isolados. Procu rava-
se a “abertu ra”, em gran de parte desm en tida pelas realidades. No en tan to, recorde-se o pa-
pel de algu n s m em bros m ais liberais do govern o m arcelista, com o, por exem plo, Rogério
Martin s, qu e tiveram , n o dom ín io teórico e prático (vide, de su a au toria, Caminho de país
novo. Lisboa, 1970), u m papel im portan te n essa “abertu ra”. Esta qu estão, m eram en te esbo-
çada, precisa de ser profu n dam en te an alisada em várias perspectivas, o qu e está fora das
n ossas in ten ções de m om en to.
93. Ver Espaço Europeu , Discu rso proferido pelo Min istro do Ultram ar [...], em 5 de n ovem -
bro de 1962, n a sessão solen e in au gu ral do Cen tro Portu gu ês de Estu dos Eu ropeu s, Lisboa,
Agên cia-Geral do Ultram ar, 1962, e A Europa em formação, Lisboa, Separata do Boletim da
Sociedade de Geografia, 1974. No discu rso referido, Moreira m ostra a su a desilu são peran -
te a ONU e defen de, n u m a altu ra em qu e se in au gu rava em Lisboa o Cen tro Portu gu ês de
Estu dos Eu ropeu s, o reforço da Eu ropa, qu e precisa de en con trar o seu “espírito” e de sal-
var a “ou tra m etade”. No segu n do estu do, m ais pen sado e pen sado n ou tra época, fala do
equ ívoco da NATO, qu e n ão foi u m a in stitu ição de diálogo en tre a Eu ropa e URSS, m as sim
dos EUA, o ú n ico in terlocu tor, e a URSS E fala da velh a idéia de a Pen ín su la con stitu ir u m
espaço Atlân tico-Su l.
94. Cf. A idéia de Europa. Raízes históricas. evolução. Concretização atual. Portugal e a Europa, Gu i-
m arães, Separata da Revista de Guimarães, 1982. Silva Cu n h a apresen ta-se n este opú scu lo
com o Professor da Un iversidade Livre do Porto.
95. Expresso Revista, v.6, n .6, p.12, 1992.

339
capítu lo 18

APÓS O 25 DE ABRIL
José Medeiros Ferreira*

Eduardo Lourenço, no Labirinto da saudade, dedica algumas das me-


lhores páginas da sua reflexão à atitude dos portugueses perante a descolo-
nização.
Nesse ensaio de psicanálise mítica do destino português, Eduardo
Lourenço salienta “Pelo império devimos outros, mas de tão singular ma-
neira que na hora em que fomos amputados à força (mas nós vivemos a
amputação como “voluntária”) dessa componente imperial da nossa ima-
gem, tudo pareceu passar-se como se jamais tivéssemos tido essa fagimera-
da existência “imperial” e em nada nos afetasse o regresso aos estreitos e
morenos muros de pequena casa lusitana”.
Eduardo Lourenço escrevia assim entre o verão de 1997 e a prima-
vera de 1978, entre S. Pedro em Portugal e Vence na França. Hoje a “ima-
gem” imperial não estará tão ausente do imaginário de alguns como pare-
cia naquele momento. Mas então como detectou o mesmo filósofo: “Num
dos momentos de maior transcendência da história nacional, os Portugue-
ses estiveram ausentes de si mesmos...”.1
Essa “ausência” durou pelo menos um ano e meio, exatamente o
tempo necessário para se operar a alienação da soberania portuguesa nos
territórios sob administração colonial com a conhecida singularidade apli-
cada a Macau, e a exceção constituída pelo caso de Timor.
A questão africana estava no centro dos problemas nacionais a serem
resolvidas e estivera certamente na origem da sublevação das Forças Arma-
das. Como afirmou transparentemente o então general Costa Gomes:

O que tornou inevitável a revolta do 25 de Abril foi a necessidade de resol-


ver o problema da guerra em África. As reivindicações dos oficiais do Qua-
dro Permanente foram quase na totalidade satisfeitas... o problema colonial
era, não só o mais importante, como aquele que os oficiais conheciam me-
lhor, tendo certamente chegado à conclusão de que só poderia ser solucio-
nado depois de derrubar o regime então existente.2

A grande clivagem entre os oficiais do MFA e o General Spínola si-


tuou-se exatamente no rumo a dar à descolonização e esteve presente na

341
José Medeiros Ferreira

elaboração e na apresentação do programa do movimento das Forças Ar-


madas, tendo o general Spínola conseguido suprimir da versão original a
referência ao direito das colônias à autodeterminação.
A visita a Lisboa do secretário-geral da ONU, Kurt Waldheim, de 2 a
4 de agosto de 1974, foi um marco importante nas pressões internacionais
para que a descolonização portuguesa se fizesse o mais rapidamente possí-
vel, sem que isso viesse a significar um maior empenho das Nações Unidas
nas conversações entre as partes.
Nos contactos que o secretário-geral da ONU manteve com os res-
ponsáveis portugueses foi explicada a posição das Nações Unidas quanto à
questão dos territórios sob administração colonial, assim como a atitude da
Organização de Unidade Africana (OUA) sobre o reconhecimento dos mo-
vimentos de independência como os representantes desses territórios.3
As conversações entre Kurt Waldheim e as autoridades portuguesas
deram mesmo lugar a um comunicado conjunto Portugal-ONU em que se
explicita o entendimento da ONU e da OUA sobre essa matéria assim como
o comprometimento de Portugal a respeitar as pertinentes soluções da ONU
e a reconhecer o direito à autodeterminação e à independência de todos os
territórios ultramarinos sob a sua administração, posição já consagrada
constitucionalmente com a publicação de Lei 7/74 de 26 de julho.
Aliás só a publicação dessa lei terá permitido a visita do Secretário-
Geral da ONU naquela altura.
As relações entre Portugal e a ONU durante o processo de descolo-
nização não foram depois tão intensas conforme deixara antever esse en-
contro. Notar-se-á até uma débil presença da ONU no processo de descolo-
nização em causa.
A nomeação do professor Veiga Simão para chefe da Missão Portu-
guesa junto da ONU inscrevia-se no entanto no propósito de “criar
responsabilidades aos Movimentos de Libertação não só perante as autori-
dades portu gu esas com o, tam bém , peran te en tidades in tern acion ais
idôneas que, co-responsabilizando-se no processo serviriam de forças mo-
deradoras aos setores extremistas”.4
Tal política teria sido “frontalmente contrariada pela Comissão Coor-
denadora do MFA e pelo general Costa Gomes, que consideravam aquela
estratégia como abertura à interferência da ONU no processo de descoloni-
zação e, conseqüentemente, desprestigiante para o país. A única via, di-
ziam, era a das negociações diretas com os Movimentos de Libertação”.5
O MFA irá ter, de qualquer maneira, um papel decisivo na definição
dos interiocutores para as negociações de trégua, cessar-fogo, paz e transfe-
rência de soberania. Neste particular as condições militares nos teatros de
guerra tiveram uma enorme influência e foram os responsáveis pelo MFA
na Guiné, em Moçambique e em Angola que pressionaram Lisboa a legiti-

342
APÓS O 25 DE ABRIL

mar as conversações locais por meio de negociações com os movimentos


independentistas que tinham de fato expressão militar.
Insista-se neste ponto. Os militares portugueses privilegiaram como
interlocutores necessários para o cessar-fogos os movimentos que tinham
expressão armada nos territórios em guerra. Como esses movimentos não
desligaram a questão do cessar-fogo da questão do acesso à independência,
as transferências de soberania fizeram-se por meio daqueles movimentos.
Não por eles aparecerem envolvidos em ideologias “esquerdistas” mas por
terem adotado a via do combate militar para impôr a autodeterminação.
A questão do cessar-fogo só dizia respeito aos territórios da Guiné, de
Moçambique e de Angola. O que acontecerá nas outras colônias, nomea-
damente em Timor já é de outra natureza e não entra neste ciclo inicial do
cessar-fogo. As preferências posteriores em Angola e Timor no verão de
1975 não são da mesma natureza interpretativa do ciclo do cessar-fogo do
último semestre do ano de 1974. O princípio de que a paz se negociava en-
tre quem estava em guerra apareceu com toda a naturalidade aos oficiais
que estavam na Guiné, em Moçambique e em Angola. Nas zonas de com-
bate os militares tomaram a iniciativa de estabelecer conversações para se
alcançar tréguas imediatas. Além disso pressionaram a fim de que as auto-
ridades portuguesas evoluissem para posições mais conformes com as rea-
lidades militares e mais consensuais em termos internacionais. O membro
da Comissão Coordenadora da MFA, e Ministro dos Governos Provisórios,
Melo Antunes, será a expressão política dessa confluência de critérios.
Só mais tarde se poderá detectar a preferência política por certos mo-
vimentos de independência sobretudo nos casos de Angola e Timor. Mas
quer na Guiné quer em Moçambique foi a situação militar que ditou o
comportamento dos oficiais do MFA, dos militares em geral, e também dos
negociadores governamentais.

GUINÉ-BISSAU
A descolonização da Guiné apresentava-se como a de mais difícil ne-
gociação política, já porque o PAIGC declarara unilateralmente a indepen-
dência da Guiné-Bissau em 24 de setembro de 1973 em Madina de Boé e
o fato fora reconhecido por 82 países membros da ONU, já porque o PAIGC
pretendia ver também reconhecido o direito à independência para o arqui-
pélago de Cabo Verde.
Essas condições são apresentadas logo na primeira reunião entre as dele-
gações do governo português e do PAIGC em Londres, a 25 de maio de 1974.
A particularidade de o general Spínola ter sido Governador-Geral da
Guiné não teria ajudado a rapidez das tomadas de decisão sobre essas matérias.

343
José Medeiros Ferreira

A apreciacão de Mário Soares sobre o envolvimento de Spínola no


processo de descolonização da Guiné não foi muito positiva na altura:

Indiscutivelmente, a sua atuação não beneficiou em nada o processo. Pelo


contrário: a sua intransigência, a sua incapacidade de avaliar corretamente a
situação, impedem-nos de assinar em Londres um acordo com o PAIGC em
melhores condições do que aquele que nós tivemos finalmente de assinar
três meses mais tarde, em Argel.6

As reuniões de 25 de maio e de 13 de junho entre o PAIGC e a de-


legação portuguesa, presidida por Mário Soares na sua qualidade de MNE,
são inconclusivas. Só depois da tomada de decisão do MFA na Guiné, numa
assembléia realizada em 1º de julho, se consegue cortar o nó górdio da
questão, ou seja, passar da fase da discussão sobre a natureza da descoloni-
zação (se com consulta eleitoral, se com um maior ou menor período tran-
sitório) à fase da transferência do poder.
Nessa moção, aprovada pelo MFA da Guiné, numa reunião com de-
legações de base de todas as unidades militares, no qual participaram cerca
de oitocentos militares, considera-se que a ideologia do PAIGC tem uma
grande adesão popular e domina o panorama político da Guiné; que os gru-
pos políticos surgidos naquele território após o 25 de Abril careciam de le-
gitimidade e de representatividade “apenas tendo servido para envenenar
o ambiente político da Guiné”; que o reconhecimento internacional do
PAIGC é um fato “tão forte que o número de países que reconhecem a re-
pública da Guiné-Bissau é já superior ao daqueles que mantêm relações di-
plomáticas com Portugal”; que a Resolução nº. 03061 da Assembléia Geral
da ONU de 9 de setembro de 1973 torna ilegal a presença de tropas portu-
guesas; que o PAIGC é o único agrupamento político cuja ideologia e pro-
grama “asseguram a conivência e a igualdade de direitos de todas as etnias
da Guiné e o respeito pelos legítimos interesses dos europeus radicados”, e
assim por diante.
Como corolário de todos esses considerandos que revelam uma
grande atenção quer a situação militar quer a situação internacional, essa
reunião deliberou:
1. Repudiar qualquer solução local e unilateral que não fosse aceita
pelo governo central de Portugal;
2. Exigir que o governo português reconhecesse imediatamente “e
sem equívocos” a República da Guiné-Bissau e o direito à autodetermina-
ção e independência dos povos de Cabo Verde;
3. Exigir que fossem imediatamente reatadas as negociações com o
PAIGC, “não para negociar o direito à independência, mas tão só os meca-
nismos conducentes à transferência dos poderes”.7
Em síntese, nessa reunião de cerca de oitocentos militares, em 1º de
julho de 1974, reconhece-se a legitimidade exclusiva do PAIGC como re-

344
APÓS O 25 DE ABRIL

presentante do povo da Guiné e exige-se o recomeço das negociações en-


tre as autoridades de Lisboa e aquele movimento de independência, con-
versações que haviam sido interrompidas por decisão do Presidente da re-
pública Antônio Spínola.
Semanas mais tarde, nas matas do Cantanhez, uma delegação de mi-
litares portugueses, chefiada pelo governador da Guiné Carlos Fabião, e
uma delegação do PAIGC, chefiada por José Araújo, concordam num ces-
sar-fogo em todo o território da Guiné.
O acordo de Argel, assinado em 26 de agosto de 1974 e ratificado
pelo presidente Spínola em 29 do mesmo mês, reconhecia dois dados de fa-
to: a República da Guiné-Bissau e o cessar-fogo, já estabelecido no interior
da Guiné.

CABO VERDE
O acordo assinado em 26 de agosto de 1974 entre o Governo Portu-
guês e o PAIGC continha, além dos preceitos destinados à transferência de
soberania da Guiné, o reconhecimento do direito do povo do arquipélago
de Cabo Verde à autodeterminação e à independência. As negociações para
esse efeito seriam, no entanto, separadas das conversações sobre a Guiné
depois daquele acordo.
Dos nove artigos do Acordo entre o Governo Português e o PAIGC,
dois são dedicados a Cabo Verde.
É essa sem dúvida uma das decisões mais discutíveis do processo de
descolonização dado que a unidade pretendida pelo PAIGC entre a Guiné e
Cabo Verde acabou por não se verificar. Mas não é menos verdade que a
Assembléia Geral da ONU havia reconhecido na sua Resolução A/2918
(XXVII) de 14 de novembro de 1972 o dito PAIGC como “representante
único e autêntico do povo da Guiné e Cabo Verde”.
Enquanto a descolonização da Guiné era obviamente inevitável em
1974, já a independência concedida ao arquipélago de Cabo Verde foi um
ato voluntário do poder em Portugal e tem, pois, uma interpretação mais
vasta radicando nas causas da descolonização, que não se resumem às ne-
cessidades dos militares e à pressão das Forças Armadas para o efeito.
O processo de transferência de soberania de Portugal para a Repúbli-
ca de Cabo Verde teve as suas especificidades. Assim não há qualquer acor-
do publicado, como os de Alger, Lusaca ou Alvor realizados para a Guiné-
Bissau, Moçambique ou Angola respectivamente, embora tivesse havido
um documento formalizado em 19 de dezembro de 1974 no qual se previa
a eleição de uma assembléia constituinte em Cabo Verde que decidiria so-
bre o futuro político do território.
No plano jurídico existiu, sim, o Estatuto Orgânico de Cabo Verde
para o período de transição que terminaria em 5 de julho de 1975 (Lei nº.
13/74 de 17 de dezembro).

345
José Medeiros Ferreira

Nesse Estatuto são definidos os órgãos políticos de transição: um alto


comissário, nomeado pelo presidente da República, a quem competia re-
presentar a soberania portuguesa e era o comandante-chefe das Forças Ar-
madas no arquipélago; um Governo de Transição, composto pelo Alto Co-
missário enquanto Primeiro Ministro e mais cinco ministros, três nomea-
dos pelo PAIGC e dois pelo presidente da República Portuguesa. Esse gover-
no teria em acumulação os poderes legislativo e executivo mas o seu fim
principal era o de conduzir o território à independência por meio de elei-
ção, por sufrágio direto e universal, prevista para 30 de junho de 1975, de
uma Assembléia Constituinte, prevista para a mesma data, dotada de ple-
nos poderes soberanos para decidir sobre o futuro de Cabo Verde e sobre o
seu regime político. Logo a 5 de julho, essa Assembléia declara a indepen-
dência da República de Cabo Verde. Não se caracteriza a nova república
como Popular como o farão a Guiné, Moçambique e Angola.
Não deixa de ser significativo saber-se que as operações de prepara-
ção dessas eleições culminaram com um recenseamento robusto tendo-se
registrado cerca de 120 mil cidadãos cabo-verdeanos. Apresentou-se ape-
nas uma lista com os nomes de 56 candidatos a deputados sob a forte in-
fluência política e militar do PAIGC.
Logo depois das independências da Guiné e de Cabo Verde foi evi-
dente que ambos os territórios queriam aparecer como Estados na socieda-
de internacional. Tanto assim que, quer Bissau, quer a Praia, têm a sua pró-
pria representação diplomática no exterior, a começar por Lisboa. A unida-
de política dos dois territórios não estava na ordem do dia. Mas ambos ha-
viam prestado serviços recíprocos para o acesso à independência um do ou-
tro: os militantes cabo-verdianos do PAIGC lutando política e militarmente
na Guiné e ajudando a criar uma situação militar nesse território que leva-
ria as autoridades colonialistas a encararem aí a própria derrota. Pelo seu
lado, o PAIGC só aceita o cessar-fogo na Guiné se o princípio da indepen-
dência também for estendido ao arquipélago de Cabo-Verde.
Prestados esses serviços mútuos, cada qual seguiria o seu caminho
depois da independência.
A facilidade com que o Governo Português, nesse verão de 1974, irá
aceitar o acesso à independência dos arquipélagos de Cabo Verde e São
Tomé e Príncipe, onde não havia luta armada, dá a idéia que as autorida-
des de Lisboa pretendem resolver de uma vez por todas a questão dos ter-
ritórios ultramarinos, vistos doravante como possíveis sorvedouros das fi-
nanças metropolitanas por meio dos chamados Planos de Fomento, e como
passíveis de virem a constituir, no futuro, focos de tensões políticas ao re-
tardador. Assim, ao mito do Portugal Uno e Indivisível do Minho a Timor,
opõe-se a metodologia da descolonização uniforme. É a forma que a me-
trópole européia encontra de se libertar de uma vez por todas da lógica ul-
tramarina. É o centro que dispensa a periferia.

346
APÓS O 25 DE ABRIL

A descolonização assim concebida não se destina apenas a ceder nos


territórios onde a situação militar é má. Ela estende a sua compreensão a
todas as parcelas que possam pesar no futuro sobre a lógica da liberdade de
ação de Lisboa. Daí a aceleração dos processos em Cabo Verde, S. Tomé e
Timor.

S . TOMÉ E PRÍNCIPE
Se a luta armada na Guiné-Bissau teve conseqüências sobre o aces-
so à independência do arquipélago de Cabo Verde, onde o PAIGC não tive-
ra expressão militar, a independência de Cabo Verde, por sua vez, vai cons-
tituir um paradigma para a transferência de soberania noutro arquipélago:
o de S. Tomé e Príncipe.
Em S. Tomé e Príncipe a repressão colonial havia sido brutal no pas-
sado mesmo sem luta armada por parte dos emancipalistas. Quando em
1960 é fundado o Comitê de Libertação de S. Tomé e Príncipe (CLSTP), ain-
da está bem viva na memória de todos o massacre de Batepá ocorrido em
fevereiro de 1953 em que teriam sido mortos mais de mil são tomenses por
se recusarem a trabalhar nas roças de cacau.
O ambiente local não é pois muito propício à defesa da manutenção
da soberania portuguesa por parte da população de S. Tomé e Príncipe.
Pelo seu lado a ONU havia reconhecido desde 1962 o CLSTP como
único e legítimo representante do povo do arquipélago. Quando surge o 25
de Abril os seus principais dirigentes estavam exilados na República do Ga-
bão onde, em 1972, haviam alargado o conceito de Comitê de Libertação
para o de Movimento de Libertação.
No caso da descolonização de S. Tomé também tem particular rele-
vância o papel da visita a Portugal do secretário-geral da ONU, Kurt Wald-
heim, em agosto de 1974 e das repetidas reuniões de militares em serviço
no território. Assim numa reunião realizada em S. Tomé, a 12 de outubro
de 1974, os oficiais dos três ramos das Forças Armadas declararam o MLSTP
como único interlocutor para as negociações que se avizinham.
Essas negociações principiam no mês seguinte em Argel, tendo sido
assinado um Protocolo de Acordo entre o Governo português e o MLSTP
em 26 de novembro. Nesse acordo, o Governo português reconhecia o
MLSTP como representante legítimo do povo daquele arquipélago. À seme-
lhança dos casos anteriores, os órgãos políticos para o período de transição
eram um alto-comissário e um Governo de Transição com competências le-
gislativa e executiva.
Embora oficialmente se trate de um Protocolo de Acordo,8 este diplo-
ma está mais aperfeiçoado nos seus termos e no articulado jurídico geral do
que os anteriores acordos similares: são dezessete os seus artigos em que,

347
José Medeiros Ferreira

para além dos órgãos políticos de transição, está prevista a constituição de


um Banco Central em S. Tomé com o ativo e o passivo do Departamento
de S. Tomé e Príncipe do Banco Nacional Ultramarino. A eleição da assem-
bléia representativa do povo de S. Tomé e Príncipe é conformada “com os
princípios da Declaração Universal dos Direitos do Homem”. Nota-se nesse
protocolo um apuramento das cláusulas da descolonização como resultado
dos anteriores acordos celebrados por Portugal na matéria, nomeadamente
o Acordo de Lusaca entre Portugal e a Frelimo.
A principal tarefa dos órgãos de transição era a de prepararem as
condições para a eleição de uma Assembléia Constituinte. Mas nem em S.
Tomé o processo de transição foi isento de peripécias. No interior do pró-
prio governo não se entenderam os membros da Associação Cívica com os
membros do MLSTP, e também entre o governo e o alto-comissário portu-
guês (Pires Veloso) haverá uma prova de força, em março de 1975, sobre a
dissolução do contigente militar indígena que o MLSTP pretendia ver cons-
tituído em milícia popular antes das eleições, tendo o alto-comissário con-
seguido impôr o acordado na Argélia sobre essa matéria. Com um corpo
eleitoral de cerca de 21 mil membros, procedeu-se à eleição da Assembléia
Constituinte que, em 12 de julho de 1975, proclamava a independência da
República de S. Tomé e Príncipe.
S. Tomé e Príncipe é um dos primeiros territórios independentes a
encetar uma política de aproximação a Portugal pro meio assinatura de vá-
rios acordos de cooperação em domínios muito diversos.

M OÇAMBIQUE
As pressões para Portugal clarificar a sua posição quanto à descolo-
nização eram também muito fortes no plano internacional. As dúvidas so-
bre o comportamento do Estado português na matéria eram tantas que até
os governos da Zâmbia e da Tanzânia procuram no verão de 1974 o sepa-
ratista branco Jorge Jardim para avaliarem as possibilidades de indepen-
dência mais claras para Moçambique de imediato.
Entre junho e julho de 1974, ou seja nos dois meses de maior inde-
finição sobre o rumo a dar à questão ultramarina, várias entidades procu-
ram Jorge Jardim, encarando este como alguém que, à sua maneira, pre-
tendia a transferência da soberania de Portugal para Moçambique.
Lisboa está pois, na mira de todos.
Há aqui um conjunto de circunstâncias que concorrem para que os
poderes africanos se auscultem mutuamente perante o que julgam ainda
ser a tentativa de protelamento da descolonização por parte do novo poder
político instaurado em Portugal.

348
APÓS O 25 DE ABRIL

Ora, esse novo poder político em Portugal atravessava então, e precisa-


mente por causa da natureza da descolonização, uma verdadeira crise que só
terminaria com a queda do 1º Governo Provisório prisidido pelo professor Pal-
ma Carlos e a formação de um 2º Governo Provisório chefiado por um militar,
o coronel Vasco Gonçalves. Mais exatamente era o aparecimento do MFA como
agente político determinante. Como já havia concluído Jorge Jardim “o centro
de decisão mais válido residia no MFA e fiquei de lhes fazer chegar as nossas
recomendações”. 9
O centro principal de decisão era o MFA não só em Portugal como ain-
da em Moçambique e nos outros territórios ultramarinos.
Em Moçambique o papel dos militares não pára de crescer nesse perío-
do. Deste modo o MFA de Moçambique envia, a 22 de julho de 1974, uma
mensagem para a Comissão Coordenadora do Movimento em Lisboa recomen-
dando o reconhecimento imediato da Frelimo como legítimo representante do
povo moçambicano e do direito desse povo à independência.
Essa reunião realizou-se em Nampula tendo as comissões regionais do
MFA de Cabo Delgado e de Tete anunciado aí que davam um prazo até o fim do
mês de julho para se encontrar um acordo global de cessar-fogo com a Frelimo;
caso contrário as tropas estacionadas nos referidos distritos imporiam um cessar-
fogo unilateral. Mais, o pessoal dos helicópteros negava-se a fazer os reabasteci-
mentos das tropas terrestres depois daquele prazo.10
Em Moçambique, como aliás na Guiné, a seleção do interlocutor
para as negociações sobre a transferência de soberania foi claramente dita-
da pela existência de um movimento que lutara militarmente contra a pre-
sença do colonialismo português. A Frelimo foi esse movimento para Mo-
çambique. Esse entendimento entre as Forças Armadas portuguesas e a
Frelimo deitará por terra a procura de outras vias como as procuradas por
Jorge Jardim e por Joana Simião.
O percurso desde o 25 de Abril até ao Acordo de Lusaca de 7 de setem-
bro foi muito acidentado no interior de Moçambique, com o aparecimento de
vários movimentos que tentavam tirar à Frelimo pelo menos o exclusivismo de
representatividade política no território. Apareceu assim o Grupo Unido de Mo-
çambique (GUMO) que viria a dissolver-se em fins de junho de 74 em razão de
sua conhecida proximidade ao governo colonial anterior. Mas também surgem
outros agrupamentos que proclamam propósitos semelhantes como o Movi-
mento Federalista de Moçambique ou a Frente Independente de Convergên-
cia Ocidental (FICO). Ou os que querem concorrer no terreno próprio à Freli-
mo como o Movimento de Libertação de Moçambique (MOLIMO).
Com efeito, logo nos princípios de junho, começam em Lusaca encon-
tros exploratórios nos quais participam o ministro português dos Negócios Es-
trangeiros Mário Soares e Samora Machel, presidente da Frelimo, embora sem
resultados conclusivos. Reabrem as hostilidades na Zambézia e seguem-se as
peripécias relatadas por Antônio Spínola no seu livro País sem rumo.

349
José Medeiros Ferreira

Finalmente o MFA, dentro do princípio de que a paz se faz entre


quem está em guerra, decide pelo lado português que as negociações de-
vem fazer-se e dar resultados rápidos.
O Acordo entre Estado Português e a Frelimo, celebrado em Lusaca
em 7 de setembro de 1974, é muito claro nos seus objetivos. Trata-se de um
“acordo conducente à independência de Moçambique”, embora o seu pon-
to nº 1 proponha a “transferência progressiva dos poderes” que o Estado
detinha. Já o ponto nº 2 decide que “A independência completa de Moçam-
bique será solenemente proclamada em 25 de junho de 1975, dia do ani-
versário da Fundação Frelimo”.11
O Acordo de Lusaca estabelece os órgãos de governo transitório e ofi-
cializa o cessar-fogo já assegurado na prática entre as partes militares.
Os órgãos do governo transitório foram constituídos por um Alto-
Comissário, de nomeação do presidente da República Portuguesa, por um
Governo de Transição nomeado por acordo entre a Frente de Libertação de
Moçambique e o Estado Português, e por uma Comissão Militar Mista no-
meada também por acordo entre o Estado Português e a Frente de Liberta-
ção de Moçambique (art. 3º.).
Do ponto de vista financeiro têm particular importância os artigos 14
e 16 que tratavam da responsabilização por parte da Frelimo dos compro-
missos “assumidos pelo Estado Português em nome de Moçambique desde
que tenham sido assumidos no efetivo interesse deste território”, e de cons-
tituição em Moçambique de um Banco Central que teriam funções de ban-
co emissor sendo para o efeito necessário transferir para aquele Banco, “as
atribuições, o ativo e o passivo do Departamento de Moçambique do Ban-
co Nacional Ultramarino”, respectivamente.
Enquanto em 7 de setembro de 1974 se celebra em Lusaca o Acor-
do entre o Estado Português e a Frente de Libertação de Moçambique para
a transferência de soberania, em Lourenço Marques assiste-se à insurreição
de forças contrárias ao processo de descolonização, prontamente domina-
das pelos oficiais do MFA. Este episódio irá marcar as relações futuras en-
tre militares e entre o MFA e a Frelimo.
Daí por diante fica entendido que o processo de descolonização em
Moçambique irá levar a um grande êxodo de portugueses radicados naque-
le território apesar do artigo 15º. do Acordo de Lusaca.
O general Spínola, insuspeito de qualquer simpatia pelo Acordo de
Lusaca não deixou de reconhecer que “apesar de tudo, muito dependeria
da forma como o Acordo fosse posto em execução, não só no campo ime-
diato correspondente ao período do Governo de Transição, como depois da
independência.”
Ora, o Acordo de Lusaca aparece assinado pelo lado da Frelimo ape-
nas por Samora Machel, enquanto pelo lado português figuram oito nomes

350
APÓS O 25 DE ABRIL

representativos do Governo Provisório, do MFA e do Concelho de Estado,


pondo-se assim a Frelimo a coberto de qualquer mudança de responsáveis
em Lisboa que invalidasse o Acordo.
Mas até à independência, em 25 de setembro de 1975, Samora Ma-
chel manteve-se fora do território de Moçambique “permanecendo afasta-
do dos compromissos estabelecidos durante o período de transição”.12
Permanecer afastado dos compromissos estabelecidos durante o pe-
ríodo de transição não era de molde a criar um clima de confiança entre os
portugueses estabelecidos e residentes em Moçambique: um fator a mais
no desencadeamento do amplo fenômeno dos “retornados” que marcará a
descolonização de Moçambique e de Angola assim como a caracterização
social de Portugal após a independência das colônias. O que se analisará
mais adiante.
Além do fenômeno do regeresso a Portugal de milhares de residen-
tes em Moçambique (o Censo Geral da População de 1981 cifrou-os em
164.065), a descolonização desse território traria grandes conseqüências fi-
nanceiras derivadas dos compromissos anteriores do Estado Português re-
ferentes à constituição da barragem de Cabora-Bassa.
Com efeito, os credores do Consórcio, criado por decreto-lei nº
49225 de 4 de setembro de 1969, exigiram que a dívida da hidroelétrica de
Cabora-Bassa fosse assumida sob a forma de dívida direta pelo Estado por-
tuguês, o que teve como conseqüência o aumento muito significativo da dí-
vida direta do Estado.

A NGOLA
O processo de descolonização de Angola foi o mais complexo e aque-
le que mais conseqüências internas e internacionais teve.
Foi o mais complexo, porque do ponto de vista militar a situação não
era alarmante embora se mantivessem cerca de 65 mil homens em armas
do lado português. Por outro lado, o entendimento entre os movimentos de
independência não se apresentava pelas realidades étnicas e pelas rivalida-
des políticas em que se baseavam: FNLA, UNITA e MPLA eram movimentos
armados rivais. No território angolano o elemento branco era significativo e
tinha expectativas de poder desempenhar um papel político relevante. Fi-
nalmente, a divisão entre os movimentos de libertação veio dar azo a uma
internacionalização dos conflitos internos que muito perturbou o acesso à
independência de Angola e o período subseqüente, aumentando a rivalida-
de entre a URSS e os Estados Unidos na África negra.
O processo de descolonização de Angola foi também aquele que maio-
res preocupações provocou em Portugal. Angola estivera sempre no centro

351
José Medeiros Ferreira

das políticas ultramarinas de Lisboa, e era, em última instância o que moti-


vara a construção da doutrina do Espaço Econômico Português em 1961.
Ora, mais do que a situação militar no território angolano em 1974,
o que funcionava mesmo mal, em relação à de articulação entre Portugal e
Angola, era o desequilíbrio comercial agravado pelo desequilíbrio da balan-
ça de pagamentos portuguesa. O problema dos “atrasados” apenas veio dar
uma expressão financeira a essa negativa relação.
Logo em outubro de 1963 Angola foi obrigada a recorrer ao crédito
automático do Fundo Monetário da Zona Escudo, e em novembro desse
mesmo ano esgotara já os limites máximos do crédito a que tinha direito,
tendo a partir de então começado a acumulação de “atrasados”, ou seja, de
pagamentos devidos à metrópole e não liquidados.
A partir de 1964, os atrasados cresceram irreversivelmente.

A credibilidade do sistema foi seriamente posta em causa quando o volume


de atrasados se tornou insustentável, na ordem dos 9 milhões de contos, em
1971.13

Essa crescente dificuldade nos pagamentos de Angola à metrópole


levou os industriais portugueses a investirem diretamente na produção em
Angola, contribuindo assim para uma drenagem de capitais de Portugal
para Angola, ao arrepio da industrialização da metrópole.
Acresce que, como esse desequilíbrio na balança de pagamentos se
devera à falta de proteção aduaneira no território angolano, as autoridades
“provinciais” vão conseguir introduzir em fins de 1971 certas medidas res-
tritivas às importações de bens e serviços metropolitanos (decreto 478/71
de 8 de novembro). O decreto considerava que toda a solução realista do
problema seria em bases restritivas.
A grande novidade destas medidas residia na “generalização do re-
gistro prévio para as importações de mercadorias que passa a ser extensivo
às compras na Metrópole”.14
Estas medidas restritivas são agravadas por um despacho do Governo
Geral de Angola de 17 de janeiro de 1972 que insere disposições sobre a con-
cessão de licenças de importação de bens de equipamento, limitando-o nos
casos em que a respectiva aquisição não beneficie de financiamentos exter-
nos ou de condições de pagamento diferido, assegurado pelo fornecedor.
Deste protecionismo angolano “resultou uma aceleração da tendên-
cia centrífuga perante a Metrópole: não sendo a principal fornecedora de
bens de equipamento, matérias-primas e produtos intermediários necessá-
rios à industrialização de Angola, a política de licenciamento na importação
veio, por um lado, reforçar o papel do estrangeiro nas importações angola-
nas, e, por outro, dar novo âmbito à produção doméstica essencialmente
dirigida à sua procura interna”.15

352
APÓS O 25 DE ABRIL

O que precipitou a descolonização de Angola foi assim mais da or-


dem das razões econômicas do que motivações militares.
É certo que a situação militar no teatro de operações de Angola não
era tão grave como o que se vivia em Moçambique e na Guiné. Mas, mes-
mo assim, o volume dos efetivos militares em Angola não decrescia. Pelo
contrário, exigia cada vez mais tropas mobilizadas.
Se antes dos acontecimentos de março de 1961 o efetivo em Angola
era de apenas 1.500 soldados metropolitanos, já no fim desse ano estacio-
nam 28.477 homens. Esse número não deixará de subir, com a única ex-
ceção do ano de 1972. Assim, o efetivo total das tropas era, em 1973, de
65.592 homens, sendo 27.819 de recrutamento local e 37.773 mobilizados
de Portugal.16
Mas se a guerra não colocava qualquer questão urgente como em
Moçambique ou na Guiné, o simples fato de haver no território mais de 60
mil homens em armas atribuía ao elemento militar uma posição determi-
nante para o futuro daquele território. E na medida em que eram os oficiais
da metrópole que controlavam o dispositivo militar, principalmente naque-
le território, era necessário contar com ele no período em que a descoloni-
zação se ia decidir.
Foi o caso de Angola onde, numa reunião realizada em Luanda em
18 de setembro de 1974, cerca de quinhentos oficiais se pronunciaram no
intuito de a descolonização ser protagonizada por aqueles movimentos que
haviam adquirido uma “legitimidade revolucionária” pelo fato de terem lu-
tado contra o regime colonialista:

Foi na noite de 18 de setembro que se reuniram no salão nobre do Palácio


do Governo cerca de 500 oficiais dos três ramos das forças armadas que vie-
ram a aprovar uma moção por 427 votos a favor, 7 contra e 48 abstenções.
Considerava o seu texto, no essencial… a necessidade de respeitar o já pro-
clamado princípio do direito à autodeterminação e independência dos povos
colonizados.17

Esta reunião de militares em Luanda efetuou-se no preciso momen-


to em que em Lisboa o general Spínola pretendia chamar a si o caso espe-
cial de Angola.
Exatamente três dias antes efetuara-se na Ilha do Sal um encontro
entre o presidente português e o presidente Zairense, Mobutu. Nesse en-
contro de 15 de setembro teriam sido tratados temas como os de Cabinda,
possíveis contactos com Holden Roberto para efeitos de cessar-fogo no nor-
te de Angola, e o comportamento dos ex-gerdarmes catangueses refugiados
naquela província.
A entrevista entre Spínola e Mobutu, realizada na ilha do Sal em cabo
Verde em 14 de Setembro de 1974, foi interpretada na África como um con-

353
José Medeiros Ferreira

vite para que a FNLA avançasse sobre Angola, onde entretanto uma sua co-
luna militar havia sido feita prisioneira na região de Toto pelo exército por-
tuguês. E a declaração feita por Spínola, em 22 de setembro, de que assumi-
ria pessoalmente a responsabilidade da descolonização de Angola terá sido
acolhida pelo elemento branco aí residente, pela FNLA e pela Unita.18
O último ato político ligado à descolonização do general Spínola
como presidente da República foi exatamente a realização de uma reunião
com vários elementos da Província de Angola, realizada no Ministério de
Coordenação Interterritorial em 25 de setembro a que também assistiu o
ministro Almeida Santos.
Mais do que todo o resto foi a descolonização que dividiu Spínola e
o MFA. Essa divisão iniciara-se com a supressão já referida na alínea c do
ponto 8 do Programa do MFA, na noite de 25 para 26 de abril, e irá apro-
fundar-se na reunião da Manutenção Militar em 13 de junho para culmi-
nar na demissão do primeiro presidente da Junta de Salvação Nacional em
30 de setembro. Spínola não se entendia com ninguém quer sobre a Gui-
né, quer sobre Moçambique, quer sobre Angola. Nem interna nem exter-
namente, a sua política encontrava apoios que a viabilizassem.
Os acontecimentos do 28 de setembro de 1974, se desencadeados
por razões atinentes à evolução política interna portuguesa, acabaram por
ter incidência sobretudo na questão da descolonização de Angola.
O impacto destes acontecimentos em Angola não foi porém abrup-
to. A FNLA continuou a sua penetração no interior do norte de Angola de-
pois do 28 de setembro e, após conversações com dirigentes do MFA em
Kinshasa, aceitou um cessar-fogo com o exército português que entrou em
vigor em 15 de outubro.
Não era porém o primeiro movimento guerrilheiro a fazê-lo. Já em
14 de junho de 1974 a Unita, pelo próprio Jonas Savimbi, havia aceito for-
malmente a suspensão das hostilidades num encontro com representantes
das Forças Armadas portuguesas (tenente-coronel Passos Ramos, Major Pe-
zarat Correia, capitão Moreira Dias) na Zona Militar Leste, numa região do
rio Lungue-Bungo controlada por forças da Unita.19
A partir daí a Unita pôde desenvolver atividade política naquela par-
te do território angolano.
Por sua vez, o MPLA, por meio de Agostinho Neto, assinou um ces-
sar-fogo, em 21 de outubro, com uma delegação portuguesa presidida pelo
comodoro Leonel Cardoso, e composta pelo major Emílio da Silva, briga-
deiro Ferreira de Macedo e major Pezarat Correia. Foi na Chana do Lunha-
mege, no Leste, perto da fronteira com a Zâmbia.
A partir daí o MPLA vai encetar uma estratégia de implantação polí-
tica do “poder popular”, organizado em nível de bairro e de empresa e da

354
APÓS O 25 DE ABRIL

ocupação de municípios. Depois vai estender as suas atividades aos centros


urbanos nas áreas habitacionais dos Quimbundos e dos Bacongos.
Em Kinshasa, a 12 de outubro, autoridades portuguesas têm uma
reunião com o presidente do Zaire, Mobutu, e com o presidente do FNLA,
Holden Roberto, e chegam a um acordo sobre a cessação das hostilidades a
partir do dia 15 de outubro.
Em 28 de outubro uma delegação presidida pelo almirante Rosa
Coutinho encontra-se perto da cidade do Luso (atual Luena) com uma de-
legação da Unita presidida por Jonas Savimbi. A Unita passa a desenvolver
a sua atividade em várias cidades incluindo Lobito e Benguela. Em novem-
bro a Unita marca presença em Luanda.
O principal, no entanto, passava por um entendimento entre os três
movimentos de libertação, FNLA, MPLA e Unita, pois esses movimentos
apareciam como rivais.
A cimeira de Alvor no Algarve foi precedida de um encontro entre
os três movimentos FNLA, MPLA e Unita, realizado em Mombaça entre 3
e 5 de janeiro de 1975. Concordam em negociar com Portugal na base de
uma plataforma da qual constatavam, como pontos fundamentais, a exclu-
são de qualquer outra organização angolana na fase de conversações e
transferência de soberania, a necessidade de um período de transição, o
princípio da manutenção da integridade territorial de Angola, nela incluin-
do explicitamente o enclave de Cabinda em que forças da FLEC pretendiam
a separação de Luanda, e ainda critérios bastante abrangentes para uma fu-
tura lei de nacionalidade de cidadãos angolanos.
Só então a Unita foi reconhecida pela Organização de Unidade Africa-
na como movimento de libertação de Angola. “Para isso contribuíra decisi-
vamente a ação portuguesa, conduzida pelos responsáveis governamentais,
militares e do MFA de Angola, ao reconhecerem à Unita o mesmo estatuto
e legitimidade dos outros dois movimentos, como aliás lhe era devido em
face da situação militar objetiva que vigorava em 25 de Abril de 1974”.20
O acordo de Alvor entre o Estado Português e os três movimentos
nacionalistas angolanos, assinado em 15 de janeiro de 1975, teve por base
a plataforma de compromisso alcançada dez dias antes em Mombaça pelos
representantes de Angola.
O acordo de Alvor apenas teve um começo de execução: Portugal
nomeou o general da Força Aérea Silva Cardoso para alto-comissário em
Angola e a 31 de janeiro tomou posse o Governo de Transição. Depois só
houve dificuldades no seu cumprimento.
Discutem-se muito as causas do fracasso do acordo de Alvor e quase
se sepultou a primeira e mais viva das evidências: o desentendimento en-
tre os três movimentos de libertação co-signatários do dito Acordo.
Chegou-se a considerar que a própria radicalização política e social em
Portugal entre o 11 de março de 1975 e o 25 de novembro desse ano se de-

355
José Medeiros Ferreira

via a uma estratégia que visava promover a independência de Angola por


meio do MPLA como forma de expandir a influência soviética na África.
Estava-se em pleno período de conflito Leste/Oeste em que os prin-
cipais protagonistas eram os EUA e a URSS, mas nem tudo o que é verosí-
mil é verdadeiro.
A competição no nível político, de janeiro a maio, ainda pôde ser
considerada uma campanha eleitoral num sentido muito amplo. Cada mo-
vimento tentava mobilizar a seu favor a maior parte da população, inclusi-
ve a população branca, tendo vista as eleições para a futura assembléia
constituinte, mas também tendo em conta outros possíveis cenários, como
os do confronto violento.
Por outro lado e contrariamente ao estipulado no acordo de Alvor,
somente parcelas muito pequenas das Forças Armadas dos três movimen-
tos foram transferidas para as Forças Armadas Integradas que não conse-
guiram fazer muito mais do que organizar patrulhas mistas, sobretudo na
cidade de Luanda.
Cada movimento manteve as suas Forças separadas. Calcula-se que
a FNLA tivesse, por altura do acordo de Alvor, cerca de 25 mil soldados; o
MPLA perto de 6 mil assim como a Unita.21
A internacionalização do conflito angolano em meados de 1975 teve
uma característica curiosa que foi a vontade manifesta das partes em afas-
tar Portugal da condução do processo político no período de transição para
a independência.
Assim, entre 16 de 21 de junho de 1975, vão reunir-se em Nakuru,
no Quênia, os presidentes dos três movimentos signatários do Acordo de
Alvor na ausência de qualquer representante português o que contrariava
o espírito do artigo58 do acordo de Alvor, segundo o qual “Quaisquer ques-
tões que surjam na interpretação e na aplicação do presente acordo e que
não possam ser solucionadas nos termos do artigo 27 serão resolvidas por
via negociada entre o Governo Português e os movimentos de libertação”.
Ora, as conclusões da cimeira de Nakuru omitem qualquer referên-
cia ao papel de Portugal no período de transição e incluem mesmo disposi-
ções que contrariavam o acordo de Alvor como a medida preconizada de se
constituir um Exército Nacional angolano dada a “ineficácia até aqui veri-
ficada nas Forças Militares Mistas”.
As conclusões da cimeira de Nakuru são porém mais interessantes de
um ponto de vista histórico por reconhecerem já então “a introdução pelos
Movimentos de Libertação de grandes quantidades de armamento”.
Quem primeiro recebeu ajuda externa em Angola capaz de destro-
çar o laborioso acordo de Alvor tem sido uma discussão próxima do deba-
te sobre quem nasceu antes se a galinha ou o ovo.22
Fontes norte-americanas variadas indicam que a FNLA recebeu 300
mil dólares da CIA, no início do ano de 1975, via Zaire,23 e depois teria usu-
fruído de ajudas em armamento, homens e outros recursos logísticos.

356
APÓS O 25 DE ABRIL

As mesmas fontes indicam que a partir de abril de 1975 o MPLA co-


meçou a receber armamento pesado da Rússia e de outros países da Euro-
pa de Leste que eram transportados em barcos iugoslavos até Brazaville e
depois encaminhados para Angola. Desde o momento em que o MPLA pas-
sou a dominar a cidade e o porto de Luanda, esse armamento passou tam-
bém a entrar por aí.
John Stockwell que foi um dos responsáveis pela ação da CIA em
Angola, nessa altura, revelou mais tarde uma cronologia dos diferentes
apoios externos aos movimentos angolanos:24
• em maio de 1974, a China envia um carregamento de 450 tonela-
das de armas para a FNLA e 112 conselheiros militares;
• em julho de 1974, a CIA inicia o financiamento do FNLA de Hol-
den Roberto;
• em fins de 1874, os soviéticos começaram a enviar armas para o
MPLA, e vão intensificar essas remessas de armamento a partir de março
de 1975;
• em julho de 1975, os EUA enviam armas para Angola e uma aju-
da de 14 milhões de dólares é aprovada para apoiar a FNLA e a Unita;
Em 9 de julho de 1975, o MPLA lançou a “segunda batalha de Luan-
da”.25 Por meio de uma ação combinada das suas forças regulares, as FAPLA
(Forças Armadas populares de Libertação de Angola), e da milícia da capi-
tal angolana. O conflito angolano entra, então, numa fase de internaciona-
lização cada vez mais acentuada: a FNLA e a Unita recebem ajudas dos
EUA, Zaire e África do Sul; do MPLA dos soviéticos, países da Europa de
Leste, Cuba e Congo-Brazza.
Em 22 de agosto de 1975 tendo em conta a evolução da situação em
Angola para um autêntico estado de guerra, o V Governo Provisório, o úl-
timo presidido pelo general Vasco Gonçalves, declara suspensa a vigência
do acordo de Alvor no respeitante aos orgãos de Governo de Angola (de-
creto-lei nº. 458- a/75).
Portugal não conseguira impedir a internacionalização do conflito
angolano. No mês de outubro essa internacionalização do conflito em An-
gola deixa de ser caracterizada apenas pela ajuda efetiva de tropas estran-
geiras em território angolano: uma coluna, constituída majoritamente por
tropas regulares sul-africanas, entrou em Angola proveniente do então su-
doeste africano em meados desse mês. “Altamente móvel, dispondo de
uma logística sólida, e equipada num nível técnico superior ao que os três
movimentos haviam alcançado naquela altura, esta coluna varreu literal-
mente o MPLA do seu caminho. No início de novembro, chegou à cidade
de Lobito, permitindo assim que a Unita e os seus aliados reocupassem todo
o território a oeste e a sul do Huambo que haviam anteriormente perdido.

357
José Medeiros Ferreira

Ao mesmo tempo a FNLA lançou uma nova ofensiva ao norte, e conseguiu


chegar até à periferia de Luanda...”.26
Em data não determinada, mas possivelmente a partir de outubro de
1975, começou a chegar pessoal cubano e mais material de guerra soviéti-
co para apoiar o MPLA.
Cerca de 15 mil homens passaram a constituir o exército regular
afeto ao MPLA, dotado de carros de combate soviéticos T-34 e T-54, de pe-
ças de artilharia e de mísseis, e ainda de aviões Mig-21.
As autoridades dos Estados Unidos estavam divididas quanto ao tipo
de apoio a fornecer aos movimentos tidos como mais pró-ocidentais como
o FNLA e a Unita: sobretudo o Congresso manisfestava-se reticente em
continuar a apoiar as operações secretas da CIA, enquanto Kissinger havia
adotado a postura de ver os acontecimentos de Angola do prisma do con-
flito Leste/Oeste já um pouco tarde e perante opiniões contraditórias dos
seus conselheiros.27
A atitude das autoridades portuguesas, pelo seu lado, acabou por fa-
vorecer objetivamente a estratégia do MPLA, embora o fato de este movi-
mento se ter conseguido impor em Luanda tenha sido determinante para
aquela posição. O próprio fato de Luanda ser a capital política e administra-
tiva e de possuir um porto e um aeroporto internacionais ajudou a essa
convergência final.
Mesmo o fenômeno de retorno da população branca por uma pon-
te aérea cujo terminal era Luanda favoreceu essa coexistência com o poder
do MPLA na capital, e até levou a ameaças em relação aos outros movi-
mentos. Assim a FNLA terá sido avisada que as autoridades militares por-
tuguesas reagiriam com todos os meios à sua disposição caso alguma Força
desse movimento pretendesse ocupar Luanda antes do dia da independên-
cia, data limite para o funcionamento da ponte aérea sob responsabilidade
portuguesa.
E, com efeito, tanto o alto-comissário almirante Leonel Cardoso
como o restante pessoal português deixaram Luanda no dia 11 de novem-
bro de 1975, transferindo a soberania para o Estado de Angola e não ten-
do reconhecido qualquer governo pois na altura declararam-se dois: um,
sediado em Luanda, tomou o nome de Governo da República Popular de
Angola e era uma emanação do MPLA; outro, sediado no Huambo (Nova
Lisboa), apoiado pela FNLA e pela Unita, proclamou a República Democrá-
tica de Angola, de efêmera duração.
O governo português resolveu não reconhecer nenhum dos governos,
o que era aliás a posição da OUA naquela emergência, e assim se manteve
até 22 de fevereiro de 1976, quando o VI Governo Provisório, muito pressio-
nado pelo presidente da República Costa Gomes e pelo ministro dos Negócios
Estrangeiros Melo Antunes, resolveu reconhecer o governo do MPLA em
Luanda. Como se escrevia num documento doutrinal a esse propósito:

358
APÓS O 25 DE ABRIL

O reconhecimento da República Popular de Angola é a única forma de ga-


rantir os direitos e expectativas dos refugiados e de assegurar as negociações
relativas ao contencioso existente entre os dois Estados, derivado da situa-
ção colonial, decorram de maneira mais favorável aos interesses nacionais.28

Além disso o MPLA havia dado provas de pretender e de defender a


integridade territorial de Angola (como no caso de Cabinda e que coadju-
varam a resposta dos militares portugueses à FLEC em várias ocasiões).
Por muito tempo se julgou que a posição portuguesa, na ocasião,
fora ditada por pretensas afinidades ideológicas, mas como se verá mais
adiante, a propósito das conseqüências da descolonização, essa explicação
não dá conta dos múltiplos aspectos em que o acesso à independência de
Angola se processou.

O S CASOS DA ÍNDIA, TIMOR E MACAU


Foram atípicos, no processo geral da descolonização saída do movi-
mento histórico do 25 de Abril, três casos diferentes de cessação de sobera-
nia portuguesa nos territórios da Índia, de Timor e de Macau.
O caso mais difícil de analisar é o de Timor por não ser claro o que
se passou naquela ilha no verão de 1975 e por suscitar as maiores polêmi-
cas sobre as atitudes das autoridades portuguesas.
Por causa de Timor, o Estado português cortou relações diplomáticas
com a Indonésia, em dezembro de 1975, no seguimento da invasão de Ti-
mor-Leste por tropas daquele país. Ficou assim incompleto o processo de
descolonização daquele território.

CONSEQÜÊNCIAS INTERNACIONAIS
Lisboa, desde a década de 1960, mais do que capital de um império
colonial, estava subjugada por este, gastando na defesa diplomática e mili-
tar da manutenção da soberania política o melhor do seu tempo, fazenda e
energia.
Mas, se prestarmos atenção quer ao programa do MFA quer às teses
federalistas do general Spínola, mesmo depois do 25 de Abril, muitas e di-
versas forças nacionais apostaram na continuação de uma política integra-
da entre Lisboa, Bissau, Praia, Maputo e Luanda. O que diferia, e era o es-
sencial, era o peso relativo atribuído às capitais referidas: Spínola tentando
libertar Lisboa do beco em que a haviam introduzido Salazar e Caetano e
querendo dar-lhe papel determinante na condução da nova comunidade
federativa; Melo Antunes desejando a emergência de um eixo tropical não-

359
José Medeiros Ferreira

alinhado constituído pela dupla Luanda-Maputo em que Lisboa se deveria


apoiar. Vasco Gonçalves aceitando teses pró-soviéticas de uma descoloniza-
ção da qual resultaria o enquadramento de Lisboa numa teia tecida de
Moscou a Havana passando por Maputo e Luanda.
Embora sem se confundirem, essas diferentes posições tinham em comum
uma visão pessimista sobre a integração mais acelerada de Portugal na CEE.
De uma forma geral, a descolonização portuguesa foi encarada com
simpatia pela comunidade internacional sem que tivesse notado um movi-
mento de positiva solidariedade para com este país em transe tão revolu-
cionário. O auxílio prestado na ponte aérea entre Angola e Portugal se be-
neficiou as pessoas que queriam partir também ajudou a desertificar África
do elemento branco, e poderia ter introduzido na metrópole elementos de
pertubação social e política que, ao fim e ao cabo, não se produziram.
Pode-se concluir do testemunho do general Spínola um certo alhea-
mento do então presidente Richard Nixon dos EUA diante dos problemas
decorrentes, para Portugal, do processo de descolonização e a fraca impor-
tância que atribuía a Portugal na transição para a independência dos territó-
rios africanos. Diferente parece ter sido a atitude de Moscou que terá empre-
gado esforços, também em Lisboa, no sentido de o acesso à independência
das colônias portuguesas se fazer num sentido que lhe fosse mais favorável.
Com efeito, no seguimento do estabelecimento de algumas zonas de
influência soviética na África, primeiro na Somália, depois na Etiópia e fun-
damentalmente na república do Congo-Brazzaville, Moscou vai-se interes-
sar mais empenhadamente na descolonização portuguesa. Essa penetração
foi facilitada pelos apoios que a URSS havia dado aos movimentos de liber-
tação durante a luta armada contra o colonialismo português, apoio tanto
mais fácil quanto Moscou não tinha sequer relações diplomáticas com Por-
tugal nem havia efetuado investimento na zona, o que sempre dificultava
a liberdade de manobra de outras potências diante de Lisboa.
Aliás um dos argumentos com que os responsáveis pela política co-
lonialista portuguesa procuravam sensibilizar os governos dos países oci-
dentais aliados consistia em afirmar que caso Portugal saísse da África se-
riam os soviéticos que tomariam o seu lugar.
Assim, desde 1960 que a diplomacia britânica considerava “inevitá-
vel um aumento da influência comunista em certas áreas da África”, mas
não considerava que essa presença pudesse criar raízes na medida em que
nas antigas potências coloniais se fomentassem laços comuns com os novos
países independentes baseados na língua, na educação, na cultura, nas prá-
ticas administrativas e no comércio. Era o que recomendava tranquilamen-
te o funcionário do Foreign Office que preparava, no verão de 1960, umas
conversações quadripartidas sobre a África entre Portugal, Bélgica, França
e reino Unido, que aliás foram adiadas por desinteresse dos três últimos paí-
ses. Era já o isolamento de fato para Portugal na questão africana.

360
APÓS O 25 DE ABRIL

Ora, após a descolonização de 1975, uma das primeiras questões que


se colocaram aos novos responsáveis portugueses foi a de compreender
qual a natureza de penetração russa em África.
Portugal aliás não era virgem na gestão de confrontos entre potên-
cias continentais na África Austral
Quando a Alemanha bismarquiana e sobretudo pós-bismarquiana
revelou algum interesse pela penetração na África, logo houve quem, em
Portugal, festejasse o aparecimento ultramarino da potência continental e
se quisesse apoiar nela. Barros Gomes simboliza essa tendência. Porém a
natureza da expansão alemã na África revelou-se adventícia e verificou-se
precária. Seria assim a natureza da influência russa nas ex-colônias portu-
guesas como o previra desde 1960 a diplomacia britânica?
Houve quem afirmasse que o comportamento revolucionário do PCP
em 1974-1975 se devera a esses apetites soviéticos pela África de expressão
portuguesa, apresentando-se como fato a merecer reflexão a forma como,
conseguida a independência de Angola em 11 de novembro de 1975, quan-
do em Luanda se estabelecera um governo do MPLA – movimento cujas li-
gações com Moscou eram conhecidas, – logo a 25 de novembro de 1975 o
PCP se entrega em Lisboa às delícias da democracia parlamentar que antes
repudiara com veemência e alguma brutalidade.
Esta tese foi veiculada sobretudo nos meios da produção teórica estra-
tégica mais tradicional, nomeadamente entre os estrategos da ditadura sala-
zarista e os estrategos oficiais dos países ocidentais: residia na importância
geoestratégica em atribuir à África Austral a perspectiva de uma generaliza-
ção do conflito Leste/Oeste. Para os portugueses essa importância era deci-
siva (controle da rota do Cabo, acesso a matérias-primas fundamentais…)
pelo que os russos sempre dariam prioridade a uma operação de cerco à Eu-
ropa Ocidental via África, enquanto os pensadores aliados mantinham as
posições que haviam determinado a articulação de missões da Aliança
Atlântica em certas áreas localizadas da Europa Central, do Mediterrâneo e
do Atlântico Norte.
Foi necessário deixar correr algum tempo para se verificar que o interes-
se russo não ultrapassava facilmente o grau de aproveitamento de alguns “alvos
de oportunidade” para empregar um conceito desses meios de pensamento es-
tratégico, conceito que significa não ser aí que se exerce o esforço principal.
Não sendo do interesse português acentuar a emergência de uma
grande potência hegemônica na região da África Austral, a política externa
portuguesa orientou-se empiricamente para os seguintes objetivos naquela
região depois da descolonização:
• acentuar a influência russa mas sem pretender eliminá-la, dado as
circunstâncias não permitirem a Moscou o estabelecimento de uma hege-
monia duradoura;

361
José Medeiros Ferreira

• promover soluções que reduzissem as probabilidades de conflitos


armados na área;
• manter a sua margem de manobra entre diversas entidades ou es-
tados interessados direta ou indiretamente na região, de modo a não facili-
tar o aparecimento de uma potência regional hegemônica;
• facilitar acordos entre a RP de Moçambique e a República da África
do Sul de forma a permitir a venda e a cobrança de energia elétrica fornecida
pelo funcionamento da barragem de Cabora Bassa, cuja construção e manu-
tenção onerava pesadamente o serviço de dívida externa do Estado Português;
• apoiar a integridade territorial dos novos Estados assim como o es-
tabelecimento da língua portuguesa como língua oficial;
• promover uma política de cooperação com os PALOP em nível bi-
lateral ou multilateral;
O princípio da década de 1980, com a vitória do presidente republi-
cano Ronald Regan nos Estados Unidos, vai presenciar um aumento da vio-
lência armada na África Austral, que passará a ter uma leitura mais direta
pelas grelhas de interpretação do conflito Leste/Oeste, sobretudo em Ango-
la. Mas entre 1975 e 1980 a ação dos Estados Unidos não foi determinante
na evolução da África Austral, embora o fato de haver tropas cubanas em
Angola tivesse sempre constituído um fato que pesou nas relações entre
Washington e Luanda a ponto de as não estabelecerem diplomaticamente.
Um dado extremamente importante foi o fato de todas as ex-colô-
nias portuguesas se terem determinado a aderir à Convenção de Lomé II
que regia a cooperação Norte/Sul entre a Comunidade Européia e o con-
junto de países da África, Caraíbas e Pacífico (ACP), a maior parte dos quais
fora colônia de um dos Estados membros da CEE, criando assim um espa-
ço econômico entre a CEE e muitos países africanos, entre os quais todos
os PALOP.

A SPECTOS POLÍTICOS
O Estado português teve que definir uma política imediata em rela-
ção à África depois das transferências de soberania, tantos eram os proble-
mas a resolver: retorno de nacionais, segurança dos portugueses que pre-
tendiam continuar nos territórios agora independentes, interesses econô-
micos e financeiros a defender para não onerar ainda mais o povo portu-
guês com as seqüelas da organização e da guerra, diversificação dos merca-
dos tradicionais de abastecimento em café, açúcar, algodão, petróleo etc.
Tratava-se, pois, de definir qual o lugar que as relações com África ocupa-
riam na estrutura das relações internacionais de Portugal sem colônias.

362
APÓS O 25 DE ABRIL

A primeira preocupação foi a de estabelecer acordos de cooperação


entre Portugal e as ex-colônias, geralmente negociados durante o processo
de acesso à independência daqueles territórios.
Assim, a 22 de junho de 1975, é assinado em Lisboa um Acordo de
Cooperação cientifíca e técnica entre Portugal e a República da Guiné-Bis-
sau. Em 5 de julho, é concluído, na cidade da Praia, um Acordo Geral de
Cooperação e Amizade com a república de S. Tomé e Príncipe que acedia
naquele mesmo dia à independência.
A República Popular de Moçambique, cuja independência fora pro-
clamada em 25 de setembro, assina, a 2 de outubro, um Acordo de Coope-
ração com Portugal.
Em relação a Angola, o processo de normalização diplomática foi
mais complexo e moroso. Assistiu-se primeiro às dificuldades portuguesas
na definição de um critério para o reconhecimento do governo angolano
logo depois da independência, reconhecimento esse que aconteceu em fe-
vereiro de 1976, ou seja, três meses depois da passagem formal dos pode-
res em Luanda. Em maio daquele ano era a República Popular de Angola
que rompia as relações diplomáticas, para só reatar em outubro, depois de
um encontro entre os Ministros dos Negócios Estrangeiros dos dois países
em Cabo Verde. Mesmo assim demoram os angolanos a enviar um embai-
xador-residente para Lisboa, enquanto o Governo Português apóia a entra-
da da República Popular de Angola nas Nações Unidas, o que ocorre duran-
te a 31ª Assembléia Geral daquela organização em 1976.
Só com o encontro entre o general Eanes e Agostinho Neto, em maio
de 1978, ocorrido em Bissau, se enceta um período de maior colaboração
entre os dois Estados, formalizada no Acordo Geral de Cooperação e Ami-
zade datado daquele ano.
O Estado português teve ainda que criar rapidamente novos depar-
tamentos e instrumentos políticos e diplomáticos para essas novas relações.
Criou-se assim, em 4 de setembro de 1975, na orgânica do IV Gover-
no Provisório, o Ministério da Cooperação que seria extinto em julho de
1976 com o advento do 1º Governo Constitucional. No 1º Governo Cons-
titucional, o MNE dota-se de um Gabinete Coordenador para a Cooperação
que vigorou até ao estabelecimento, em 1980, num governo da Aliança De-
mocrática, de uma Direção-Geral para a Cooperação. Por outro lado, elabo-
ram-se vários estatutos para o Instituto Português para a Cooperação, uma
espécie de “holding” dos interesses econômicos e financeiros portugueses
na África.
Como já referido, Portugal passou a ser um país doador em relação à
cooperação internacional, novidade absoluta para o Estado português.
A cooperação, depois da independência das colônias, foi, pois, uma
novidade como vertente das ações externas do Estado português. Em ter-

363
José Medeiros Ferreira

mos internacionais está consagrado que a cooperação se destina a apoiar o


desenvolvimento dos Estados, centrado no homem e na cultura de cada
povo, tendo por objetivo promover e acelerar esse desenvolvimento nos
domínios econômico, cultural e social, aprofundando e diversificando as re-
lações entre Estados beneficiados e doadores num espírito de solidariedade
e interesse mútuo, segundo a Convenção de Lomé que liga os países da Co-
munidade Européia ao conjunto dos países menos desenvolvidos da Áfri-
ca, Caraíbas e Pacífico (ACP).
Ponto importante é o que determina que o apoio do estado doador
só será concedido a pedido do estado beneficiário que terá todo o direito de
determinar as suas opções políticas, sociais, econômicas e culturais.
Embora dedicando escassas verbas governamentais para o efeito, a
cooperação entre Portugal e os PALOP caracterizou o novo tipo de relações
entre as partes e permitiu manter o contato necessário de estado a estado
durante o delicado período imediatamente posterior à descolonização. E
nem sempre foram fáceis as relações políticas entre Portugal e os novos paí-
ses de expressão portuguesa.
Desde logo as relações políticas foram mais estreitas com Cabo Ver-
de e Guiné-Bissau, seguindo-se depois S. Tomé e Príncipe. Nenhuma difi-
culdade houve no início das relações diplomáticas e mesmo na cooperação
militar foi rápido o entendimento com as Forças Armadas portuguesas, no-
meadamente nos domínios da balizagem de costas, faróis, apetrechamento
e dragagem de portos, treino de pessoal etc. A República da Guiné-Bissau
pedirá o apoio português para a demarcação dos limites das suas águas ter-
ritoriais num difirendo que a opôs à Guiné-Conakry.
E quando, em outubro de 1978, Portugal formalizou a sua candida-
tura a membro não permanente do Concelho de Segurança, esses países
apoiaram a sua candidatura contra a de Malta.
Um ponto de encontro na política externa de Portugal e das ex-co-
lônias foi a promoção e a maior visibilidade da língua portuguesa na cena
internacional. De fato, enquanto não foram independentes aqueles territó-
rios, eram dois os Estados que falavam português. Depois do acesso à inde-
pendência dos territórios africanos, passaram a sete os Estados de língua
oficial portuguesa presentes em três continentes: Europa, América do Sul e
África. Estavam criadas as condições políticas para a promoção do portu-
guês como língua internacional.

CONCLUSÃO
Embora o desencadeador do movimento do 25 de Abril se deva, em
primeiro lugar, à necessidade de resolver a questão colonial, esta efetivamen-

364
APÓS O 25 DE ABRIL

te só domina a cena política portuguesa até os primeiros meses de 1975. Se


houver que utilizar um acontecimento histórico como marco, pode-se erigir
a cimeira de Alvor em 15 de janeiro de 1975. A partir daí, – e contrariando
muitas opiniões sobre a influência determinante do processo de transferên-
cia de soberania de Portugal para Angola no curso do poder político em Lis-
boa –, o centro das preocupações dos portugueses tornou-se mesmo o Por-
tugal europeu. Para a opinião pública, nessa altura, o papel de Portugal na
descolonização esgotava-se nos diplomas que formalizavam o tempo e o
modo de transferência de soberania. De certa maneira, raramente a metró-
pole foi tão egocêntrica como durante o processo de descolonização.
A evolução do poder político em Portugal é determinada essencial-
mente pela descolonização entre o 25 de Abril de 1974 e 28 de setembro
inclusive. Já os acontecimentos cristalizados por volta do 11 de março de
1975 têm um forte componente português e europeu.
Mas se essa interpretação é genericamente correta, e só ela permitiu
que a esta altura se apresentasse a descolonização saída do 25 de Abril
como uma “descolonização exemplar“, isso não significa que as conseqüên-
cias da descolonização não tenham afetado a sociedade portuguesa duran-
te muito mais tempo e de forma muito profunda, durável e variada.
As conseqüências imediatas foram de ordem militar, social e econômica.
Em 1990 as relações públicas do Estado-Maior-General das Forças
Armadas revelaram à agência noticiosa Lusa os seus números oficiais sobre
as baixas sofridas durante “as campanhas de África”, entre 1961 e 1975.
Segundo Manuel Carlos Freire, daquela agência, o número total de
vítimas fatais durante a guerra na África foi de 8.831. O maior número de
mortos pertenceu ao Exército (8.290) seguindo-se a Força Aérea (346) e a
Marinha (195).
Relativamente ao número de feridos, as estimativas apontam para
cerca de 30 mil, sendo o exército mais atingido, com mais de 25 mil feridos.
Dos totais anuais de vítimas fatais verifica-se que 1973 foi o ano em
que as Forças Armadas tiveram maior número de mortos (Exército, 856;
FAP, 27; Marinha, 40). A pressão sobre os militares que, entre 1961 e 1974,
estiveram mobilizados na África terá sido de 117 mil efetivos.
Assim, calcula-se que o número total aproximado de militares que
participaram nos três principais teatros de operações na África (Guiné, An-
gola e Moçambique) terá sido de 1.368.900 (um milhão, trezentos e sessen-
ta e oito mil e novecentos indivíduos).
Tendo sido a guerra colonial conduzida pelas Forças Armadas da Me-
trópole, os colonos radicados na África só tiveram duas soluções após a de-
cisão de descolonizar. Ou se colocavam sob a proteção dos partidos africa-
nos ou preferiam regressar à metrópole, vista esta como Mãe Pátria para
dar a certas expressões consagradas o seu verdadeiro sentido.

365
José Medeiros Ferreira

O resultado de todas essas realidades e contigências foi o fenômeno


social do retorno de cerca de meio milhar de residentes nos territórios afri-
canos para Portugal, num concentrado período de tempo pouco superior a
um ano. O fenômeno do retorno feriu tanto a sensibilidade contemporânea
dos portugueses que o seu número se encontra quantificado por órgãos ofi-
ciais do Estado.
O Recenseamento de 1981, por perguntar a residência dos inquiri-
dos em 31 de dezembro de 1973, apurou a existência, em Portugal, de
505.078 cidadãos que regressaram de África depois daquela data.
Que conseqüências teve esse retorno sobre a geografia humana do
território metropolitano?
Segundo dados elaborados pelo Instituto Nacional de Estatística, no
censo de 1981, o total de “retornados” terá sido de 505.078, sendo 309.058
provenientes de Angola e 164.065 de Moçambique, de fato as duas colô-
nias de “povoamento”. Dos valores obtidos pelo Recenseamento Geral da
População de 1981 ressaltam os seguintes indicadores: quase dois terços dos
retornados vieram de Angola e os retornados, nascidos em Portugal, eram
originários majoritariamente das áreas urbano-industriais de Lisboa e do
Porto (cerca de 23% ) e das regiões deprimidas do norte e centro interiores
do país (34% ).
O impacto demográfico do fenômeno do retorno da África, entre
1974 e 1976, pode ser quantitativamente medido pelo Recenseamento Ge-
ral da população, ocorrido em março de 1981, quando todo, Portugal se es-
tabilizava depois do período revolucionário.
A população total de Portugal ficou cifrada em 9.833.014 (nove mi-
lhões, oitocentos e trinta e três mil e catorze indivíduos), sendo 505.078
(quinhentos e cinco mil setenta e oito) considerados retornados.
Mas não foram só os expatriados que regressaram num lapso de
tempo intenso e condensado. Também os dispositivos dos acordos de trans-
ferência de soberania não foram muito favoráveis a uma diluição no tem-
po do retorno das tropas.
Do ponto de vista econômico quando se verificou a descolonização
já a efêmera quimera política do mercado comum português estava destruí-
da e nenhum responsável em Lisboa, ou em qualquer outro lado, ousava
retomar esse objetivo criado pela pressão doutrinária, presente no Decreto-
lei 44.016 de 8 de novembro de 1961, que instituía uma zona de comércio
livre entre Portugal e o Ultramar.
As trocas comerciais entre Portugal e os territórios ultramarinos não
ultrapassaram os 13% do total da balança comercial da metrópole em
1973, com esta já pesadamente envolvida no intercâmbio com os países eu-
ropeus da EFTA e da CEE. E o problema financeiro que os “atrasados” das
colônias representavam não era de molde a encorajar o aumento das ex-

366
APÓS O 25 DE ABRIL

portações para a África portuguesa. Esses territórios vão aliás implementar


medidas protecionistas nos inícios dos anos 70.
Essa redução das trocas comerciais entre Portugal e as suas colônias
mais realçava a desproporção existente com o aumento constante das des-
pesas militares devidas ao esforço de guerra na África.
Assim, e observando a evolução das despesas militares em relação ao
total das despesas públicas, em porcentagem, verificamos que, durante a
década de 1960, elas passam de cerca de 25% , no início da década, para
cerca de 40% no fim. Até 1974 essa porcentagem não é nunca inferior a
35% , para, entre 1974 e 1980, decaír abaixo dos 10% e se situar à volta dos
6,5% em 1985. Em relação ao PIB, a porcentagem das despesas militares
passa de 6,85, em 1974, para 2,44% em 1985.29
Do ponto de vista comercial, a principal conseqüência da descoloniza-
ção foi a diminuição drástica das exportações dos territórios descolonizados
para Portugal, que caíram para valores percentuais abaixo de 1% .
Quanto às exportações de Portugal para os PALOP, a evolução depois
das independências, se bem que irregular, demonstra uma amplitude situa-
da entre os 5% do total das exportações portuguesas em valor (1982) e o
teto dos 10% .
Esse desequilíbrio na balança comercial entre Portugal e os PALOP, obri-
gou o Estado português a conceder linhas de crédito à exportação para as mer-
cadorias com destino a esse grupo de países, durante o período em análise.
Portugal ocupa na balança comercial com os PALOP um lugar mais
importante como fornecedor do que como comprador. A importância dos
PALOP na balança comercial portuguesa é muito menor do que a de Por-
tugal na balança comercial daqueles países.
Mas Portugal como país exportador sentiu menos os efeitos da des-
colonização. A balança comercial entre Portugal e os antigos países da zona
escudo manteve-se excedentária desde 1976, sendo a taxa de cobertura fa-
vorável a Portugal.
Angola, por exemplo, continuou como o quarto cliente português após o
Reino Unido, a RFA e a França até entrada de Portugal na Comunidade Européia.
No que se refere às exportações, Portugal ocupava o segundo lugar
entre os fornecedores de Moçambique no quadro dos países da OCDE e o
quinto em geral, e contribuía com 5,8% do total das importações moçam-
bicanas entre 1976 e 1980. No período quinquenal seguinte, 1980-1985, as
exportações portuguesas representavam 7,6% das importações do Estado
moçambicano, mantendo o segundo lugar como fornecedor depois da Re-
pública Federal da Alemanha. Na década de 1980 o saldo da balança co-
mercial acumulado em favor de Portugal nas suas transações com Moçam-
bique foi superior a 31 milhões de contos.
De uma maneira geral, Portugal aparece como parceiro comercial
muito importante para os PALOP´s em todo este período, sobretudo como

367
José Medeiros Ferreira

fornecedor já que como cliente a sua posição desceu depois da descoloni-


zação. Alguém já chamou “ciclo comercial” a este período posterior às in-
dependências.
Os interesses econômicos de Portugal nas colônias não se resumiam,
no entanto, aos seus aspectos comerciais. A vertente investimento tinha
um significado tal que, por altura da visita a Lisboa do secretário-geral da
ONU, Kurt Waldhein, no verão de 1974, foram os investimentos privados
portugueses, efetuados em Angola e em Moçambique, estimados em 190
milhões de contos e em 150 milhões de contos respectivamente, em docu-
mentos preparados para conversações entre as autoridades portuguesas e o
secretário-geral da ONU.
Pode-se mesmo interpretar as nacionalizações, nomeadamente as
dos Bancos, efetuadas em Portugal a partir de março de 1975, como uma
medida capaz de facilitar um certo tipo de descolonização, e colocar do lado
português, como interlocutor dos novos Estados, não uma multidão de in-
teresses privados, mas o próprio Estado português. As relações econômicas
entre Portugal e esse conjunto de países tornaram-se assim, no período pos-
terior à descolonização, eminentemente políticas, tanto mais que às nacio-
nalizações efetuadas pelos governos em Lisboa se seguiram as nacionaliza-
ções operadas pelos governos na África. Por causa dessas nacionalizações,
efetuadas tanto em Portugal como nos novos países africanos, as questões
econômicas situaram-se freqüentemente no nível das relações políticas en-
tre os Estados.

368
APÓS O 25 DE ABRIL

N OTA S
1. LOURENÇO, E., 1978, p.47.
2. GOMES, C. 1979, p.17.
3. No caso de Angola só mais tarde a OUA reconhecerá também a UNITA como movimento
de independência.
4. SPÍNOLA, A., 1978, p.270.
5. Ibidem, p.271.
6. SOARES, M., 1976. p.36.
7. Moção aprovada pelo MFA da Guiné. Reunião de 1º. de julho de 1974 (Documento datilo-
grafado de quatro páginas, consultado no Centro de Documentação sobre o 25 de Abril. Uni-
versidade de Coimbra).
8. DG, nº. 293, 3º supl., 1ª. série de 17.12.1974.
9. JARDIM, J., 1976, p.278.
10. SPÍNOLA, A., op. cit., p.437-438.
11. DG, nº. 210, 2º. supl., 1ª. série de 9 de setembro de 1974.
12. Mozambique a Country Study, Federal Research Division. 3. ed. Washington: Library of
Congress, 1985. p.58
13. NETO, A. M., 1991.
14. FERREIRA, M. E., 1990, p.131.
15. Ibidem, p.139
16. Estado Maior do Exército, Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-
1974). Lisboa, v. 1, 1988, p.260-261.
17. HEIMER, F. W., 1980, p.93.
18. Ibidem, 1980, p.63.
19. CORREIA, P. P., 1991, p.98.
20. Ibidem, p.105-106.
21. HEIMER, F. W., op. cit., p.76.
22. KISSINGER, W. I. A biography. London, Boston: Faber and Faber, 1992.
23. BELL, C. The diplomacy of detente. The Kissinger Era. London: M. Robertson, 1877. p.173.
24. Ver STOCKELL, J. A CIA contra Angola. Lisboa: Ulmeiro, 1979.
25. HEIMER, F. W., op. cit., p.81.
26. Ibidem, p.84.
27. ISAACSON, op. cit., p.673-685.
28. Memorando de 3 páginas, datilografado, arquivado no Centro de Documentação de 25 de
Abril, Universidade de Coimbra.
29. Cf. Ministério da Defesa Nacional, Livro branco da defesa nacional, MDN, 1986, p.150-1.

369
José Medeiros Ferreira

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FERREIRA, J. M. Portu gal em tran se. In : História de Portugal. Lisboa: Es-
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370
A UTORES

José Mattoso
*Professor da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da
Universidade Nova de Lisboa desde 1977. Diretor do Instituto
dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo entre 1996 e 1998.

Maria He le n a d a Cru z Co e lh o
*Professora Catedrática da Facu ldade de Letras da
Un iversidade de Coimbra.

Hum berto Baquero Moreno


*Professor Catedrático da Faculdade de Letras do Porto. Vice-
Reitor da Universidade Portucalense.

A n tô n io Bo rge s Co e lh o
*Professor aposen tado da Facu ldade de Letras de Lisboa.

A n tô n io A u gu sto Marqu e s d e A lm e id a
*Professor Catedrático da Un iversidade de Lisboa.
A n tô n io Man u e l He sp an h a
Pesqu isador do In stitu to de Ciên cias Sociais da Un iversi-
dade de Lisboa. Professor da Facu ldade de Direito das
Un iversidades Nova de Lisboa e de Macau .

Maria do Rosário Them udo Barata


Professora Catedrática da Faculdade de Letras da Universi-
dade de Lisboa.

N u n o Go n çalo Fre itas Mo n te iro


Pesqu isador do In stitu to de Ciên cias Sociais da Un iversi-
dade de Lisboa e Professor con vidado n o In stitu to
Su perior de Ciên cias do Trabalh o e da Em presa.

Francisco Calazans Falcon


Professor Associado do Departam en to de História da
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Jo sé Jo bso n d e A n d rad e A rru d a


Professor Titu lar do Departam en to de História da USP e
do In stitu to de Econ om ia da UNICAMP.

372
José Te ngarrinha
Professor da Universidade de Lisboa.

Miriam Halp e rn Pe re ira


Professora Catedrática de História Modern a e Con tem -
porân ea do In stitu to Su perior de Ciên cias do Trabalh o e
da Em presa em Lisboa, Diretora da revista Ler História.

Jaim e Re is
Professor Catedrático do In stitu to Un iversitário Eu ropeu
de Floren ça.

A m ad e u Carvalh o Ho m e m
Professor Associado da Un iversidade de Coim bra.

A. H. de Olive ira Marque s


Professor Catedrático da Universidade de Lisboa.

373
Jo ão Me d in a
Professor Catedrático da Facu ldade de Letras da Un iver-
sidade de Lisboa.

Lu ís Re is To rgal
Professor Catedrático da Facu ldade de Letras da Un iver-
sidade de Coim bra, m em bro do In stitu to de História e
Teoria das Idéias.

Jo sé Me d e iro s Fe rre ira


Professor da Un iversidade Nova Lisboa.

374
375
So bre o Livro

Formato: 16x23 cm
Mancha: 27x43 paicas
Tipologia: Meriden Rom an 10 (texto),
Meriden Rom an 12 (títu los)

Equ ip e d e re alização

Coordenadora Executiva
Lu zia Bian ch i

Revisão Técnica
Maria Helen a Martin s Cu n h a

Produção Gráfica
Edson Fran cisco dos San tos

Preparação e Revisão de Texto


João Edu ardo Pedroso de Oliveira
Carlos Valero

Catalogação
Valéria Maria Cam pan eri

Projeto Gráfico e Criação da Capa


Cássia Letícia Carrara Dom ician o

Diagramação e Capa
Ren ato Valderram as

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