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Violência e Resistência
problematizações estéticas

1ª Edição

Rosani Umbach
Carla Lavorati
Adriana Yokoyama
(Organizadoras)

Rio de Janeiro
Mares Editores
2016
Copyright © da editora, 2016.

Capa
Anderson Antikievicz Costa

Editoração
Mares Editores

Dados Internacionais de Catalogação (CIP)

Violência e resistência: problematizações


estéticas/ Rosani Úrsula Ketzer Umbach; Carla
Lavorati; Adriana Yokoyama – Rio de Janeiro:
Mares, 2016.
501 p.
ISBN 978-85-5927-017-4
1. Análise e crítica literária. 2. Violência. 3.
Estéticas I. Título.

CDD 801.95
CDU 82

2016
Todos os direitos desta edição reservados à
Mares Editores
Contato: mareseditores@gmail.com
Sumário

Apresentação .................................................................................................. 9

Violencia y resistencia en Os Sertões de Euclides Da Cunha ........................21

Literatura negro-brasileira e resistência na produção ensaística e ficcional


de Cuti ...........................................................................................................44

Resistência e ética em W. G Sebald ..............................................................73

Persépolis, de Marjane Satrapi: Identidade e Alteridade; Violência e


Resistência ....................................................................................................95

Hip hop e educação: sobre resistência e ruptura na arte das periferias


urbanas .......................................................................................................120

Resistência ao genocídio nas composições do Racionais MC´S: criminologia e


violência urbana .........................................................................................157

Representações literárias da Guerra do Paraguai em Joaquim Manuel de


Macedo e Machado de Assis ......................................................................196

A ditadura militar e a importância de expressões culturais como arma “anti-


esquecimento” ............................................................................................231

Sob (re) o Tropical Sol (o) brasileiro: a escrita da perda em Ana Maria
Machado .....................................................................................................258

Os discursos do poder em Mineirinho de Clarice Lispector ........................278


O devir horribilis e a violência na modernidade kafkiana: ecos de uma
literatura de terror ......................................................................................314

Hip-Hop e Direitos Civis: o reflexo da cultura de resistência estadunidense na


representatividade do negro brasileiro.......................................................346

“A escrita tomou as ruas!”: a tática black bloc como crítica da linguagem


....................................................................................................................380

Êxodos: O corpo, a memória e a tarefa persistente....................................411

A figuração da Ditadura Militar em três obras literárias posteriores à época:


uma reflexão ...............................................................................................440

Marcas de violência na literatura clariceana .............................................462

Sobre os autores .........................................................................................493


“A escrita tomou as ruas!”: a tática black bloc como crítica
da linguagem

José Antonio Rego Magalhães122

Introdução
A partir da irrupção, em junho de 2013, do novo tipo de
manifestações de rua que transformou o horizonte do debate político
brasileiro, e notadamente do recurso, no seu seio, à tática conhecida
como “black bloc”, voltou a colocar-se fortemente a questão da
relação entre, de um lado, a violência de uma ordem instituída e, de
outro, todas as violências, “físicas” ou “simbólicas”, que se propõem
desestabilizar essa ordem. Me proponho, aqui, a pensar essa
violência crítica não como “violência simbólica”, e sim como uma
intervenção material que vem desestabilizar um sistema simbólico
que, ele mesmo, também é melhor pensado como material.
O texto é composto de três partes. Na primeira, critico um
ensaio de Eugênio Bucci para defender que as manifestações são
menos “linguagem” do que uma crítica concreta da linguagem. Na
segunda, analiso o caso de uma intervenção “simbólica” praticada

122
Doutorando em Direito, PUC-Rio.

- 380 -
por manifestantes em face de um político brasileiro, a fim de pôr em
questão uma dimensão estratégica da ação. Na última, e mais
extensa, abordo a questão da tática black bloc para pensá-la como
paradigma da relação entre a ordem instituída, a violência crítica e a
linguagem simbólica.
Defendo que, embora a tática black bloc tenha tido, em certos
momentos, um papel crítico importante, ela logo deixou-se capturar
por uma ordem simbólica que, mais do que desestabilizar, acabou
por reforçar. Coloca-se, assim, no percurso desse debate, a questão
das estratégias de ruptura, isto é, de como os aspectos complexos e
contingentes, a cada caso singular, podem determinar a efetividade
ou a frustração de uma ação de ruptura. A partir dessas
considerações, gostaria de mostrar que as estratégias de ruptura
nunca podem ser julgadas em abstrato ou fora de contexto, mas sim
em uma relação concreta com o campo em que intervêm.

Protesto urbano e graffiti


Após, em maio de 1968, os estudantes franceses terem
tomado as ruas por uma renovação da sociedade em geral e da
universidade em específico, uma série de debates polêmicos se
seguiram no âmbito universitário. Em um desses debates, o filósofo
marxista Lucien Goldmann teria indagado ao estruturalista Jacques

- 381 -
Lacan: “Você viu suas estruturas em maio? Aquilo eram pessoas nas
ruas!” Ao que Lacan teria respondido, “Se os acontecimentos de
maio demonstraram alguma coisa, foi justamente que as estruturas
tomaram as ruas!” (DOSSE, 1998, p.122).
Se quisermos, porém, ir além do estruturalismo, então talvez
devesse ser dito, com Derrida (1967), que não as estruturas ou a
linguagem, mas a escrita tomou as ruas, no sentido de uma série de
marcas sem centro ou significado garantidos, cujo contexto e código
não estão necessariamente disponíveis, cujo autor está ausente, e
que precisam, assim, ser decifradas.
“A escrita tomou as ruas” – essa formulação remete a
expressões urbanas contemporâneas como o grafite e a pichação, e a
relação não é sem sentido. De fato, embora o senso comum diga que
um grafite procura comunicar alguma coisa, isso não explica a força
desses “atos materiais [...] gravados na superfície mesma da cidade,
riscadas em formas previamente construídas” (SCHATER, 2014, p.20).
Não explica, acima de tudo, o fato de que o grafite se apresenta
muitas vezes como deliberadamente incompreensível, senão para
todos, para a maioria das pessoas.
É verdade que há muitas mensagens em busca de
comunicação, como os “Fora ALCA” ou “Não vai ter copa”. Porém, a
exemplo do tagging – um dos tipos mais onipresentes de arte de rua

- 382 -
– muitos grafites costumam se caracterizar pela sua caligrafia
“incompreensível” que, ao invés de passar uma mensagem, evoca
uma “resposta especial” dos espectadores (SCHATER, 2014, p.25). As
paredes de uma cidade como São Paulo estão repletas dessas runas
indecifráveis, pelo menos, para aqueles que não pertencem a um
grupo muito restrito. Nesse sentido, poderia se dizer que a
“mensagem” dessa escrita que toma as ruas poderia ser formulada
assim: “Há – talvez – uma linguagem aqui, mas você não é capaz de
compreendê-la”. Há, antes de mais nada, escrita.
Em seu ensaio “Violência na linguagem: a forma bruta dos
protestos”, apresentado no colóquio “Mutações: Fontes passionais
da violência”, Eugênio Bucci escreve que os protestos urbanos (como
os de maio de 1968 ou os de junho de 2013),

a partir das ranhuras da cidade, projetam


mensagens em signos que combinam palavras,
imagens e coreografias próprias que podem incluir
a pancadaria e escorrem nas praças e avenidas
não como selvageria desgovernada – mas como
linguagem. Os protestos assumem a forma de
precipitados sígnicos líquidos em contraste direto
com as cristalizações linguísticas fixas do espaço
urbano, como uma estátua, um monumento ou
uma catedral (Bucci, 2015, p.410, grifos meus)

Bucci (2015, p.410, grifos meus) afirma que os protestos


“[mobilizam] códigos que fazem alusão à violência e, em tensões

- 383 -
extremas, são violentos em si mesmos”. Ele ressalva, contudo, que,
mesmo nestas últimas situações, “os protestos são comunicação”.
Em que sentido seria possível, no marco da presente discussão,
concordar com isso? Apenas, é claro, em uma certa medida. Afinal, se
há um aspecto de comunicação na escrita urbana dos protestos, eles
sem dúvida não são redutíveis a esse aspecto. Sempre há um resto
que corresponde à ordem do irrepresentável e da pura manifestação,
que não representa nada para além de si mesma, mas apenas
manifesta-se a si mesma123.
Nesse sentido, há muito nas manifestações que não tem a ver
com comunicar algo, mas com afirmar um irrepresentável; não com
expressar-se em uma dada linguagem, mas com desestabilizar a
linguagem dada. Bucci (2015, p.410) não deixa de nota-lo. Ele escreve

123
Em Benjamin (2011), há uma oposição entre a manifestação, ligada à ordem do
imediato, e a comunicação, ligada à ordem do mediato, da representação, etc.
Proponho, com base nessa distinção, uma diferenciação entre as noções de
protesto e manifestação. Todo protesto é um protesto por ou contra alguma coisa,
de modo que algo deve ser comunicado em uma linguagem, um significado deve
ser expresso por um significante, e essa mensagem deve poder ser recebida e
interpretada por certas instituições capazes de responder a elas, mesmo obrigadas
a isso, geralmente instituições representativas. A representação está ao lado do
protesto, seja na medida em que a sua interlocução com as autoridades deve se
dar por meio de alguma espécie de liderança, seja porque outros órgãos de
representação, como a imprensa, são necessários para a difusão das suas
demandas. Já a manifestação simplesmente se manifesta. Ela não comunica ou
significa nada, e é avessa a toda mediação ou representação. No momento em que
é representada, já não é propriamente manifestação. Nesse sentido, poder-se-ia
dizer que o protesto é transitivo, ao passo que a manifestação é absolutamente
intransitiva. A distinção, porém – é preciso ressaltar –, não significa que protesto e
manifestação não possam conviver e misturar-se.

- 384 -
que “nos nossos dias, a ordem urbana conforma, mantém e expressa
[...] uma linguagem própria” nas suas placas de trânsito, no traçado
das vias, nas conexões elétricas e digitais. Esses “protocolos
linguísticos” apresentam-se hoje “bastante globalizados”, de modo
que “todas as cidades do mundo, cada vez mais, parecem falar uma
mesma língua ordenadora”.
Diante disso, Bucci afirma que o “pulo do gato dos protestos
de rua” é que

eles compreenderam intuitivamente a gramática


dessa urbe como linguagem e aprenderam a
problematizá-la, a sabotar o fluxo de sentidos que
aí tem lugar e atuar como um vírus [...]
contradiscursivo. Como num curto-circuito à
revelia, como numa disfunção, os protestos
desorganizam o ordenamento linguístico urbano
para se afirmar como dissidência ou como crítica
do poder (BUCCI, 2015, p.411)

Diante dessas menções ao vírus informático e à sabotagem,


cabe lembrar que, ao falar, em Força de Lei, de uma “greve geral no
interior da interpretação”, Derrida (2005, p.92) escreve que àquela
altura (era 1989), para a greve geral, era “suficiente cortar a
eletricidade em alguns lugares privilegiados”, como os serviços de
comunicação, ou ainda “introduzir certos vírus eficazes em uma rede
de computadores bem escolhida ou [...] no Gespräch [conversa, mas
também ligação telefônica] hermenêutico”.

- 385 -
Nesse sentido, a linguagem das manifestações de que fala
Bucci já não é uma linguagem, mas o oposto da linguagem, o outro
lado da linguagem que age apenas para suspender e deslocar uma
linguagem posta. Uma dimensão de violência pura, puramente
suspensiva da ordem, como a que queria Benjamin (2011) e, mais
recentemente e sob sua influência, Agamben (2004; 2010). É nesse
sentido que as manifestações “se dirigem às câmeras do mundo”
para “capturar as formas de representação instituídas pelas
instituições da comunicação social, pela mídia, pelo jornalismo e
também pela indústria do entretenimento” (Bucci, 2015, p.411). Não
para que esses dispositivos hermenêuticos possam interpretá-las,
mas justamente para esculhambar todo esse aparato interpretativo.
A “violência que escreveu seu texto sobre o chão das cidades
brasileiras”, não está simplesmente, como escreve Bucci (2015,
p.413), “na linguagem e a serviço da linguagem, mais do que da
política”. Ela se volta em grande medida contra a linguagem – e nada
é mais político que isso.

Purpurina – intervenção e interpretação


Em janeiro do conturbado ano de 2016, houve um incidente
que pode servir aqui como primeiro exemplo a partir do qual pensar
a questão das estratégias de ruptura e da sua relação com a

- 386 -
violência, com a performatividade e com a estética. Trata-se da
ocasião em que um grupo de ativistas ligados ao Levante Popular da
Juventude, em atitude de protesto, jogou purpurina sobre o
deputado federal de extrema direita Jair Bolsonaro.
Na ocasião – que gerou, é claro, muito debate nas redes
sociais – houve quem levantasse a questão de que benefícios essa
tática traz. Segundo o Levante, tratava-se de uma intervenção
“simbólica” para fins de “combater um projeto de sociedade
antidemocrático e conservador”. A inspiração dos ativistas tinha, sem
dúvida, a ver com a arte, e especialmente com as performances e
intervenções artísticas, voltadas a interromper e desestabilizar um
sistema simbólico. A despeito das boas intenções, porém, coloca-se a
questão se essa ação não poderia gerar mais benefícios do que
malefícios para o próprio deputado, e, portanto, para o
desenvolvimento do projeto de sociedade objeto da crítica. Afinal, é
perceptível o quanto um certo discurso de vitimização é essencial
para a narrativa por trás do mesmo projeto.
Questão, assim, relacionada à capacidade problematizadora
da intervenção “artística”, mas também à problematização da
própria intervenção como escolha tática. Se uma atitude de
confronto como essa pode gerar efeitos mais negativos que positivos,
então ficam proibidas as estratégias de ruptura – artísticas ou não?

- 387 -
Aqueles que não estão conformados com uma dada situação deverão
ser sempre, necessariamente, diplomáticos? Essa conclusão, sem
dúvida, é problemática. Não se pode transformar, a priori, toda
manifestação em passeata, todo protesto em carnaval fora de época.
Há, porém, distinções a serem feitas. A primeira, que anda
esquecida, é a diferença importantíssima entre que uma tática seja
condenável e que ela seja simplesmente uma má estratégia em uma
dada situação. O exemplo paradigmático, ao qual voltaremos em
extensão mais adiante, é a tática black bloc. É possível condenar a
violência contra a polícia ou contra as agências de bancos,
comparada à violência da polícia e dos bancos? Dificilmente. Mas isso
não significa que ela não possa ser vista, em retrospecto, como tendo
ajudado a entregar o espaço interpretativo das manifestações a
grupos mais conservadores. O fato de que a maioria das
interpretações dirigidas aos black blocs – seja da parte da mídia, seja
da parte da esquerda tradicional – são abusivas e equivocadas não
obsta que a tática seja contraproducente.
Nesse ponto, torna-se necessário levantar diretamente a
questão do que é, afinal, uma estratégia de ruptura. Admitindo-se
que não se possa simplesmente condenar todas as estratégias de
ruptura, ainda resta a questão: O que é uma? O paradigma que
gostaria de propor, no seio desta discussão, é aquele trazido por

- 388 -
Walter Benjamin (2011) sob o nome de violência “divina” ou “pura”
ou ainda de “puro meio” – a estratégia de ruptura por excelência, no
seu estado mais puro.
O que cabe contestar, nesse contexto, não é a pertinência das
estratégias de ruptura, e sim se esses atos específicos (tática black
bloc, purpurina lançada contra deputado) são de fato exemplos dessa
categoria, já que isto não está dado de antemão. Afinal, o que define
essas práticas como estratégias de ruptura? O mero fato de serem
escrachadas? Ou ainda o fato de não se apresentarem à
interpretação, desde logo, como meios legítimos (adequados aos
procedimentos normais da democracia como a conhecemos, etc.)?
Algo que Derrida (2008), na sua discussão sobre Benjamin,
ajuda a perceber, é a importância da dimensão interpretativa na
questão da violência, do direito (legitimidade, etc.) e, portanto, da
estratégia de ruptura. Qualquer ruptura deve, de alguma forma,
suspender os meios interpretativos vigentes, romper justamente com
a “ordem de leitura” instituída a fim de possibilitar o advento de
outra. O senso comum vigente condiciona todas as interpretações,
de modo que a possibilidade de uma interpretação irruptiva, de um
“olhar novo”, depende da sua suspensão/ruptura. Isso implica que
uma estratégia de ruptura se caracterize não pelo seu escracho, mas
pela sua capacidade de gerar desconcerto interpretativo, isto é, de se

- 389 -
subtrair dos dispositivos de leitura presentemente disponíveis. Ao
deparar-se com algo que é irredutível ao nosso senso comum, somos
obrigados a olhar novamente, e assim podemos desenvolver novas
interpretações, incomensuráveis às anteriores. Poder-se-ia dizer que
é em conflitos assim que acontece toda evolução histórica, de
concepção de direitos etc.
Para Raquel Rolnik (2013, p.12), toda proposta alternativa a
um sistema atualmente dominante tem “seu tempo de formulação e
experimentação”. É natural que, em um primeiro momento, essas
propostas apareçam como incompreensíveis e insustentáveis.
Também Slavoj Žižek (2012a, p.19) ressalta a importância de, em
alguma medida, permanecer-se retirado “do campo pragmático das
negociações e propostas ‘realistas’”. Segundo ele, qualquer debate
que pretenda se pautar estritamente em argumentos razoáveis é
“um debate no território do inimigo”, de modo que “é preciso tempo
para posicionar um novo conteúdo”.
Nesse sentido, Žižek propõe que se mantenha, paralelamente
às propostas realistas, um certo “silêncio violento”, “agourento e
ameaçador como deve ser”. Por que o momento da ruptura deve ser
um momento silencioso? Porque a dimensão do legível ainda está
tomada pela ordem precedente. Toda tentativa de expressão, nesse
momento, será produzida através dessa ordem de leitura, que só

- 390 -
poderá levar à repetição do anteriormente possível, isto é, a “tomar”
ou “recuperar” os discursos para o ciclo da reprodução do direito.
Como a dimensão da expressão e da compreensão – e portanto a das
demandas legíveis por direitos – ainda está sob a autoridade anterior,
esse é o momento em que uma estratégia de ruptura é necessária, e
essa estratégia não é da ordem da expressão, mas do silêncio. Ela
está ligada à interrupção das atividades, que procura, em primeiro
lugar, subtrair essas atividades aos dispositivos de interpretação e de
conhecimento que poderiam torná-las inócuas.
Não é impossível, do ponto de vista epistemológico, ter uma
boa ideia de quais são os dispositivos interpretativos dominantes em
um dado contexto. No caso do black bloc, por exemplo, criou-se
claramente uma narrativa, em especial da parte da grande mídia, em
que o par pacíficos/baderneiros ou legítimos/vândalos servia para
enquadrar essa suposta estratégia de ruptura de forma altamente
azeitada em um quadro que não só a tornava inofensiva, como
ajudava a deslegitimar outras táticas.
No caso da purpurina, o que ocorre não é tão diferente. Já
existe todo um aparato interpretativo, toda uma fôrma pré-pronta
em que esse ato se encaixa perfeitamente. Uma interpretação que o
subsume à “intolerância dos LGBT a Bolsonaro” cai nele como uma
luva, não porque seja uma interpretação verdadeira (coisa que não

- 391 -
existe em si mesma), mas porque o aparato social para produzir essa
interpretação está colocado. Em que sentido, a final de contas,
podemos falar nesse caso de uma ruptura?
Isso posto, parece necessário um exercício de interpretação,
de estudo detalhado do campo de jogo, antes de qualquer passagem
ao ato. A partir daí, é preciso criar ações que causem desconcerto, no
sentido de que para elas não exista, a priori, nenhuma interpretação
óbvia. É a especialidade dos artistas. Nesse sentido, pode-se sugerir
que o ativismo – e, em especial, é claro, aquele que se pretende
“performático” ou “simbólico” – tem a aprender da arte
contemporânea e performática, do teatro, do mundo da estética e do
humor. As ações estratégicas de ruptura aparecem, nesse ponto de
vista, ligadas justamente a uma sensibilidade que poderia ser
chamada “estética” no sentido de relacionar-se a uma percepção
aguda do sistema simbólico que está em questão, voltada a intervir
para desestabilizá-lo.

A tática black bloc como crítica da linguagem


A violência como puro meio, em Benjamin (2011), não projeta
seus efeitos para o futuro, mas se confunde com eles de imediato. Na
época em que escreve, Benjamin pensa no exemplo da greve geral,
mas caberia perguntar se, no Brasil de hoje, não há outros exemplos

- 392 -
a partir dos quais seja possível pensar essa violência não-violenta e
imediata que se manifesta em uma interrupção da ordem vigente.
Sem dúvida uma modalidade de ação observada em junho
cujo caráter pode ser considerado fortemente anti-representacional,
promovendo uma ruptura com todas as instâncias de representação,
é a chamada ação direta adotada por dois dos grupos que tiveram
mais protagonismo nas manifestações de junho, o MPL e os black
blocs.
A rigor, a expressão “black bloc” não designa um grupo, mas
“um tipo de ação coletiva, uma tática” (DUPUIS-DERI, 2003, p.5),
embora a urgência do discurso midiático em referir-se de alguma
forma aos seus praticantes sem rosto tenha resultado no uso
metonímico que designa de black bloc o indivíduo ou o grupo. A
prática apareceu inicialmente na Berlim Ocidental durante o inverno
de 1980, em uma ocasião em que a polícia vinha desocupando
violentamente os squats de militantes do movimento autonomista
(DUPUIS-DERI, 2003). Francis Dupuis-Deri (2004, p.6) explica que
"não há um black bloc, mas black blocs, cada um formando-se à
ocasião de uma manifestação para depois dissolver-se junto a ela. O
tamanho dos black blocs varia de algumas dezenas a alguns milhares
de indivíduos. Em certos casos, vários black blocs permanecem ativos

- 393 -
simultaneamente no seio de um mesmo acontecimento de
contestação”.
No contexto das manifestações de 2013 no Brasil, inúmeros
mal-entendidos se proliferaram em torno dos black blocs, ao ponto
de predominarem sobre as informações mais qualificadas. Bruno
Fiuza (2013) escreve que “uma das questões que mais saltam aos
olhos no debate sobre os black blocs no Brasil é a impressionante
falta de disposição dos críticos em se informar sobre essa tática
militante que existe há mais de 30 anos”. Ele adiciona que “ao não
compreenderem a novidade do fenômeno [tanto as vozes
dominantes quanto pensadores críticos] tentaram enquadrá-lo à
força em esquemas conhecidos”.
Obviamente, é impossível saber quais os motivos de ordem
pessoal ou psicológica que levam cada indivíduo a aderir à prática
black bloc, mas o fato é que o seu desenvolvimento histórico não
pode ser reduzido, como muito se fez, ao mero desejo de violência.
Dupuis-Deri (2003, p.12) reconhece que “os black bloc atraem, é
claro, muitos indivíduos que pensam seu engajamento político
unicamente em termos de violência”. Contudo, ele sublinha que “os
black bloc não recorrem sempre à força: eles são favoráveis ao
respeito à diversidade de táticas e julgam apropriado que, de acordo
com a sensibilidade e a lógica de cada um, alguns se manifestem

- 394 -
pacificamente e outros se expressem através da força” (DUPUIS-DERI,
2003, p.9).
Assim, os adeptos do black bloc não se resumem a jovens
revoltados com um desejo incontrolável por destruição, e sim
dispõem de uma narrativa de ordem política, quer se concorde com
ela ou não. Levar isso em conta é indispensável para discutir
seriamente o fenômeno. Para além disso, parece haver uma falta
geral de clareza sobre o funcionamento da tática, que procurarei
elucidar a seguir.
Bucci (2015, p.416), no ensaio citado mais acima, fala de uma
“natureza sígnica do black bloc” – semelhante à que ele atribui às
manifestações em geral – tendo em vista que, na sua ação direta,
“signos do dinheiro, da ostentação e do Estado viraram alvos de
guerra, guerra simbólica, guerra das imagens”. Francis Dupuis-Deri
(2004, p.34), no mesmo sentido, escreve que a violência black bloc “é
acima de tudo simbólica e se inscreve em uma vontade de
comunicação política”. Para Dupuis-Deri (2003, p.5), "a primeira
função de um black bloc é a de expressar uma presença anarquista e
uma crítica radical no coração de uma manifestação”. Segundo ele,
“a ação direta permite ao ator indicar aqui e agora o julgamento
crítico que ele esposa em relação a um sistema imoral” (DUPUIS-
DERI, 2004, p.34). O autor ressalta que

- 395 -
A ação dos black blocs é direta porque ela é levada
a cabo pelo autor ele mesmo, e não por seus
representantes, mas também porque o objeto da
injustiça do Estado, do Capital e da Globalização
se incarna em um policial, na vitrine de um
McDonald’s [etc.] e pode ser diretamente atingida
(DUPUIS-DERI, 2004, p.35)

Apesar da ênfase dada ao caráter direto dessa ação simbólica,


inclusive com o cuidado de usar o verbo “incarnar” no lugar de
“representar”, é difícil pensar como atacar uma agência de banco
pode ser atacar “o Capital” senão através de uma operação simbólica
e, portanto, de representação. Ademais, quebrar a agência de um
banco evidentemente não leva o banco a quebrar no sentido que
teria consequências para além do meramente simbólico. Parece claro
que o caráter dessas ações é, sim, comunicativo.
Com base na afirmação desse caráter “sígnico” da violência
black bloc, torna-se complicado, na presente discussão, decidir se
essa ação direta é de fato direta no sentido de imediata ou se, ao
contrário, é da ordem do signo e da comunicação e, portanto, da
representação. Não cabe, é claro, negar de forma determinante que
a violência dos black blocs tenha o objetivo de transmitir uma
mensagem, mas eu arriscaria supor que essa dimensão comunicativa
tenda a ser sublinhada em excesso, até porque existem formas mais
efetivas de comunicar uma crítica do que quebrando objetos nas

- 396 -
ruas. Gostaria, por outro lado, de ressaltar justamente o lado anti-
representacional da tática black bloc, inclusive no próprio âmbito de
uma manifestação, cuja importância não raro parece ser
subestimada.
Dupuis-Deri (2004, p.32), em seu artigo “Penser l’action
directe des black blocs”, deixa transparecer a tendência anti-
representacional dessa tática. Ele explica que, para os participantes
dos black blocs, uma manifestação é heterogênea, e “essa multidão
[multitude] não pode ser ‘representada’ sem que haja
necessariamente simplificação [...] da vontade geral, ela mesma
necessariamente heterogênea”. Em um vocabulário que lembra
muito o de Derrida, Dupuis-Deri (2004, p.29) escreve que os
partidários do black bloc “se inscrevem em uma lógica política toda
outra [tout autre]124”, na medida em que “eles não objetivam
introduzir seus porta-vozes nos meios de comunicação ou nas mesas
de negociação”. Eles inclusive servem como “contraponto aos
dirigentes de organizações que procuram [...] garantir uma imagem
homogênea, respeitável e calma ao movimento que eles querem
representar” (DUPUIS-DERI, 2004, p.28). Em contraposição a atitudes
desse tipo, os black bloc, para Dupuis-Deri, (2004, p.31), “mostram

124
Expressão cara a Derrida, “tout autre” se refere à alteridade absoluta que chega
em um acontecimento. “Desconstruir é preparar a vinda do outro [...], heterogêneo
e incalculável” (Derrida, 1987, p.53). Ao final de “Prenome de Benjamin”, Derrida
(2005) chega a equalizar le tout autre à violência “divina” de Banjamin.

- 397 -
[...] que a multidão [multitude] pode coletivamente deliberar” e
“muitas vezes transborda e faz explodir o quadro político da
representação”.
Assim, faz parte da vontade desses grupos de manifestantes
“viver ‘outramente’ sua participação política” (DUPUIS-DERI, 2004,
p.7). Por vezes, seu objetivo é recusar-se a “deixar o monopólio da
violência ao Estado” (Dupuis-Deri, 2003, p.12). Nesse sentido, a ação
direta deve permitir ao agente “sair do papel de vítima passiva,
mudar a sua forma de pensar a sua relação com a cidade, com a
propriedade e com a política”. A ação direta já se mostra como um
puro meio, cuja função não é de comunicar algo, mas de produzir em
si mesma a circunstância política que almeja. Ademais, essa violência
pura é capaz de desestabilizar a economia da violência, expondo a
violência daquilo que, normalmente, é considerado não-violento.
Ainda que em tom descrente, Marco Aurélio Nogueira (2013)
escreve que um dos objetivos dos black blocs é, “supostamente”,
“revelar a face brutal do Esado”. De forma não menos crítica, Bucci
(2015, p.421) afirma que a atuação “mais pirotécnica do que
propriamente destrutiva” dos black bloc “serviria para desnudar e
denunciar aquela que efetivamente é a violência maior (mais
silenciosa, oculta, subliminar), qual seja, a violência materializada na
rotina da ordem estabelecida”.

- 398 -
O autor considera essa, porém, uma “justificativa moral um
tanto rasa”, e, embora a abordagem adotada aqui seja diferente, não
deixa de ser necessário recolocar, a esta altura, a questão levantada
mais acima: Será que a tática black bloc, como estratégia de
intervenção e ruptura em relação à violência de um sistema
simbólico posto, é defensável do ponto de vista da sua efetividade
estratégica, independentemente de considerações dispensáveis
sobre a sua justificação abstrata?

Violência e frustração
É que, em que pese sua vocação anti-representacional e
desestabilizadora, a estratégia black bloc parece ter terminado, com
maior frequência do que seria desejável, por produzir efeitos
negativos para a insurgência política.
Para Bucci (2015, p.417), os adeptos do black bloc
“produziram o oposto do que pretendiam” e que, “em lugar de
fortalecer as passeatas [...], só conseguiram esvaziá-las”. O autor não
nega que os mascarados, inicialmente, através de uma certa aura
revolucionária, foram um dos elementos que trouxeram as multidões
às ruas, mas argumenta que “depois essa relação finalmente se
inverteu e o signo black bloc operou mais como fator de repulsa do
que de atração” (Bucci, 2015, p.438).

- 399 -
Signo, agora sim, pois os dispositivos de significação e
representação já discutidos aqui, notadamente a grande mídia,
operaram a tradução do que acontecia nas ruas para o signo
“vândalos”, “baderneiros” e assim por diante. O resultado, de todo
modo, é que os black blocs logo passaram a ser rejeitados, por
exemplo, por 95% dos paulistanos, contribuindo para que o índice de
rejeição das manifestações em geral, que segundo o instituto
Datafolha era de 15% em junho de 2013, tivesse escalado para 42%
até fevereiro de 2014 (GOHN, 2014). Isso permite a Nogueira (2013)
concluir que se trata de “uma via torta, contraproducente”, ainda
que haja “um tipo de política nela” que, segundo o autor, deve ser
compreendida.
De certo modo, é um cacoete iluminista tentar explicar de
modo exaustivo a violência black bloc em termos de uma ação
calculada e razoável. Ao contrário, poderia ser interessante pensá-la
como sintoma, à maneira das explosões coléricas que Žižek qualificou
como “protestos em grau zero”, mesmo porque essa não deixa de ser
a forma como seus adeptos muitas vezes a pensam. Segundo o
próprio Dupuis-Deri (2003, p.10), o confronto entre os black blocs e a
polícia é pensado, em parte, como “a oportunidade de uma vingança
que funciona como válvula de escape” para aqueles que sofrem, nos

- 400 -
demais contextos de suas vidas, com a violência policial, a exemplo
dos moradores de periferias.
Dupuis-Deri explica que “entramos aqui no domínio das
justificações de caráter sociopsicológico: o tumulto da ação direta
provoca uma espécie de gozo” que, além de psicológico, é também
político. O autor cita um manifestante que descreve a ação direta
violenta como “uma manifestação de frustração”, e “uma catarse da
parte de pessoas que compreenderam ter interesses contraditórios
àqueles das instituições que atacam” (Dupuis-Deri, 2003, p.10, grifos
meus).
Quanto ao caso do Brasil, Nogueira (2013) escreve que
“muitos dos que quebram e destroem são jovens revoltados com as
vida infame da periferia”. Segundo ele, “adrenalina não sobra para
enfrentar a polícia, pois a polícia é um dos piores pesadelos das
periferias urbanas, onde entra sem pedir licença, sem dialogar,
matando com espantosa facilidade”. Nesse sentido, os black blocs
mais politizados não se distinguiriam tanto dos jovens negros e
pardos que, de torso nu e com blusas de cores quaisquer enroladas
na cabeça, causaram tumulto em algumas manifestações mais
conturbadas. “A democracia política não lhes faz muito sentido”,
escreve Nogueira, “pois seus resultados não são palpáveis, não são

- 401 -
decodificados. [Na periferia] agem operadores e associações de outro
tipo, algumas delas especializadas em fomentar violência”.
Para Nogueira (2013) a violência colérica, black bloc ou não,
“é, na verdade, o efeito colateral de uma via bloqueada, sem
esperança, sem utopia, individualizada e fragmentada, de uma
sociedade em que a violência entrou na corrente sanguínea, de um
Estado pouco eficiente, de uma cultura que homenageia o
espetáculo, mas não se complementa com uma ética pública
consistente. Produto das contradições de um capitalismo sem freios
e do descontrole que afeta a vida coletiva”.
Žižek (2008, p.76) argumenta que, diante desses protestos em
grau zero125, o que “deve ser resistido” é o que ele chama de
“tentação hermenêutica: a busca de um sentido ou de uma
mensagem mais profunda escondida nessas explosões de cólera”. O
que precisamos aceitar, segundo o autor, é que esse tipo de revolta
não tem sentido, não é senão uma passagem cega à ação deflagrada
por uma frustração intolerável. Seu objetivo é “criar um problema,

125
Žižek (2008, p.75) dá o exemplo dos protestos de 2005 nos subúrbios de Paris.
Segundo ele, “não havia demandas específicas” nesses protestos. Havia apenas
“um ressentimento vago e não articulado”. A mensagem desses protestos não era,
para Žižek (2008, p.77), “que os manifestantes viam sua identidade étnico-religiosa
ameaçada pelo universalismo republicano francês, mas, ao contrário, que eles não
eram incluídos nele, que eles se encontravam do outro lado da parede que separa
a parte visível do espaço social republicano da sua parte invisível. Eles não estavam
nem oferecendo uma solução nem constituindo um movimento para encontrar
uma. Seu objetivo era criar um problema”.

- 402 -
mostrar que há um problema que já não pode ser ignorado” e, para
isso, Žižek (2008, p.77) aponta que a violência era necessária: “se eles
tivessem organizado uma passeata [march] não-violenta, tudo o que
teriam obtido seria uma pequena nota de pé de página”. Essas
manifestações coléricas são assim, como já eram em Benjamin, um
meio puro. O meio é a mensagem. Não se trata de uma demanda por
reconhecimento ou pela aceitação de uma demanda, mas da
“rejeição da estrutura [framework] mesma através da qual o
reconhecimento se dá” (Žižek, 2008, p.78). O que se faz necessário é
uma nova estrutura.
Embora esse sintoma indique a exaustão de um modelo que
parece aproximar-se do seu limite, contando assim com algo como
uma justificativa política (ainda que projetada em um porvir
indeterminado), há que se fazer aqui, novamente, a distinção entre
condenar uma prática e considerá-la estrategicamente
contraproducente. Afinal, não se pode condenar moral ou
politicamente um sintoma, uma reação desesperada. Mas pode-se
considerar equivocada uma tática de ruptura quando ela falha em
produzir ruptura. Para Nogueira (2013), a violência do black bloc “não
gera comunidade ou democracia, mas seu oposto [...]; ataca o
sistema e seus ícones, mas não os põe em xeque, antes os reforça;

- 403 -
empurra as pessoas de volta para casa” e, portanto, para longe da
política.
Aqui talvez se torne clara a razão pela qual a violência
colérica126, já em Benjamin (2011), está do lado da violência “mítica”,
e não da “divina”, muito embora seja, como esta última, um meio
puro. É que a cólera, ao contrário da violência pura, deixa-se capturar
no ciclo da instituição e da manutenção do direito, tornando-se
impotente. Na medida em que as instituições de mediação e
representação colocam em funcionamento os dispositivos
interpretativos necessários para capturar uma violência livre (por
exemplo através do par “pacíficos”/“baderneiros”) ela perde a sua
capacidade de deslocar o aparato institucional, passando a servir, ao
contrário, como meio para a sua conservação.
Respondendo, então, à grande pergunta colocada mais acima,
e que muitas vezes foi levantada, desde 2013, em âmbitos
acadêmicos ou não, creio poder dizer que talvez em algum momento
o black bloc tenha se manifestado como o que Benjamin chama de

126
Para Benjamin (2011, p.146), a violência “Mítica” estaria ligada à cólera como
violência que não se relaciona como meio a um fim determinado, mas apenas
mostra a si mesma enquanto violência. Quem externa colericamente uma violência
não pretende com isso nada além de externá-la. A violência da cólera “não é meio,
e sim manifestação”, escreve Benjamin (2011, p.146). Ele explica que “a violência
mítica em sua forma arquetípica” está na “manifestação dos deuses”. Benjamin
(2011, p.144) escreve que a violência colérica “é comparável muito menos a uma
máquina, que para quando o foguista a abandona do que a uma fera que, logo que
o domador lhe dá as costas, enlouquece desvairadamente”.

- 404 -
violência “divina”, e talvez isso tenha continuado a dar-se, por vezes,
em alguma medida, mas seu papel parece ter se tornado em primeiro
lugar o de uma violência colérica frustrada, que reforça o aparato
contra o qual se bate.
O que define, afinal, uma estratégia de ruptura? Nos termos
discutidos aqui, parece insuficiente (ou mesmo irrelevante) que uma
prática apareça claramente como violenta (como violência
“subjetiva”) ou que rejeite de forma absoluta um estado vigente de
coisas. Antes, o essencial é que ela produza uma suspensão ou
deslocamento nos dispositivos interpretativos vigentes, de maneira a
criar um espaço em que novas interpretações, incomensuráveis com
o que as precede, possam irromper.
Que o black bloc, em certas circunstâncias, tenha acabado
tornando-se uma estratégia de ruptura frustrada, não implica,
contudo, que as estratégias de ruptura não sejam possíveis, ou não
mais, no nosso contexto. Significa apenas que essas estratégias
devem ser, justamente, estratégicas, no sentido de lançar mão de
uma sensibilidade e uma inteligência aguçadas, sempre que se
puserem em movimento. E sempre novamente, tendo em vista a
característica essencial da noção de estratégia, conforme procura-se
pensá-la aqui, relacionada à singularidade da situação: cada caso é
um novo caso, absolutamente singular, e tomar uma posição

- 405 -
estratégica em relação a ele implica justamente em não tomar por
garantido nenhum efeito anterior, obtido em outra situação por uma
prática afim.

Conclusão
Nesta discussão, defendi que as ações de ruptura em relação
a uma ordem estabelecida não podem ser entendidas em termos
gerais, mas apenas em relação a casos singulares, e diante, portanto,
de considerações estratégicas.
No que toca à ação política, a consequência disso parece ser
que nenhuma fórmula geral, nenhuma metodologia, nenhuma ideia e
nenhuma utopia podem orientar, de forma garantida, a prática
política insurgente. Isso implica em que nem, de um lado, a
condenação definitiva de qualquer violência como antidemocrática,
nem, de outro, uma apologia cega e redentora da violência pela
violência, se justificam. Antes, é preciso a cada caso avaliar a relação
entre um dado impulso de força e as estruturas colocadas para
recebê-lo, de modo a encontrar o ponto e o momento exatos em que
uma intervenção é capaz de reorganizar produtivamente um sistema.
“É uma arte”, dir-se-ia, sem que fosse preciso temer as conotações –
questão de uma sensibilidade tanto de interpretação quanto de ação,
de leitura como de poética.

- 406 -
Antes das ideias, então, as práticas do dia-após-dia. Antes de
uma utopia futura, várias heterotopias presentes, a cada vez. Falar
em estratégias de ruptura e nas rupturas como estratégicas é dizer,
finalmente, que nenhuma ruptura é uma ruptura em sentido estrito,
que em toda ruptura há uma dimensão de continuidade.
Se ainda hoje podemos e devemos olhar para os estranhos
acontecimentos de junho de 2013 em busca de inspiração para novas
práticas políticas, democráticas, críticas e até poéticas, não deve ser
para buscar, naquele momento passado, uma revolução que poderia
ter sido e não foi, e para assim recuperá-la, ou para encontrar ali um
paradigma de ação política cuja repetição nos levará ao futuro. Se
2013 pode ensinar-nos, ainda, novas formas de agir politicamente, é
a partir da noção de que, naquele momento e a cada momento
desde então, novas práticas políticas são possíveis. As temos visto
desde sempre, onde houve resistência, mas também onde houve
arte, poesia, sátira. Ao mesmo tempo, nenhuma dessas instâncias
jamais garantiu a próxima. Depois de junho de 2013, nada está
garantido, nada se repetirá. O que talvez se repita é somente o que
se deu: algo sem precedentes.

- 407 -
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