Você está na página 1de 11

A teoria de conjuntos entre 1909 e 1930: o

amadurecimento formal de uma teoria axiomática


Carlos G. Gonzalez∗†

Instituto de Filosofia — IFILO


Universidade Federal de Uberlândia — UFU

Abstract
This paper aims to show the historical development of an axiomatic system, empha-
sizing the logical aspects in the context of the evolution of mathematical logic in general
and the logic ideas on the same period. The example chosen was the axiomatic set theory
what begins in 1908 with E. Zermelo and the discussions and changes occurring until 1930
when ZF was presented, axiomatic system of set theory which is used until today.

Resumo
Este artigo pretende apresentar o desenvolvimento histórico de um sistema axiomático,
ressaltando os aspectos lógicos como parte da evolução da lógica matemática no período
referido, incluindo as ideias lógicas pertinentes. O exemplo utilizado foi a axiomática da
Teoria de Conjuntos que começa em 1908 com E. Zermelo e as discussões e mudanças acon-
tecidas até 1930 quando é apresentado ZF, o sistema axiomático da Teoria de Conjuntos
que é usado até hoje.

1 Introdução
Ernst Zermelo (1871–1953) foi um lógico e matemático alemão que formava parte do círculo
de David Hilbert1 e preocupava-se, entre outros tópicos, pela Teoria de Conjuntos e a mate-
mática transfinita de Georg Cantor. Neste contexto, e motivado pelos paradoxos da teoria de
conjuntos, propõe em 1908 um sistema axiomático para formalizar a Teoria de Conjuntos em
[Zermelo, 1908], base da denominada “Teoria de Conjuntos de Zermelo”.
Num período no qual a lógica matemática ainda estava em desenvolvimento com relação
a problemas fundamentais, várias questões dessa teoria foram discutidas até chegar em 1930
à teoria de conjuntos de Zermelo-Fraenkel que se impôs como a principal teoria axiomática
envolvendo o conceito de conjunto.
A finalidade deste trabalho é assinalar —e discutir brevemente— algumas questões da Teoria
de Conjuntos relativas ao período 1909–1930.

gonzalcg@gmail.com

Agradeço ao Prof. Walter Carnielli e ao Prof. Marcelo Coniglio por comentários a uma versão prévia deste
trabalho.
1
Com referência ao período 1897–1910 em Gotinga (Götingen) e às pesquisas fundacionais de Hilbert, em
[Ebbinghaus & Peckhaus, 2007] podemos ler: “Zermelo ficou profundamente envolvido desde a primeira hora.
Ele cresceu até ser o colaborador mais importante de Hilbert em estudos em fundamentos neste importante
período precoce” ([Ebbinghaus & Peckhaus, 2007], p. 28).

1
Na seção 2 apresentamos brevemente a axiomatização de Zermelo de 1908 e na seção os
problemas relativos a essa axiomatização. Nas seções 4, 5 e 6 analisamos as críticas e con-
tribuições principais por Fraenkel, Mirimanoff e Skolem. Na seção 7 discutimos o axioma de
substituição em particular. Como fechamento da nossa história, na seção 8 é citado o artigo
de Zermelo de 1930, no qual ele enuncia a teoria de Zermelo-Frankel, seguido de algumas umas
breves conclusões na seção 9.

2 O formalismo hilbertiano e a axiomatização de Zermelo


de 1908
No início do século XX, os matemáticos interessados em fundamentos ficaram preocupados pela
aparição de contradições na matemática2 , também denominadas como “paradoxos” e “antino-
mias”. Entre os hilbertianos, que pretendiam dar uma resposta formalista ao problema das
antinomias, Zermelo e os seus partidários

Pensavam que o nosso erro consistia em assumir ingenuamente que toda con-
dição deve corresponder a certa entidade, expressamente, o conjunto de todos os
objetos que satisfazem essa condição. Por uma restrição adequada do axioma de
compreensão, [. . . ] eles tentaram construir sistemas que estiveram livres das anti-
nomias conhecidas, mas suficientemente fortes como para permitir a reconstrução
de uma parte suficiente da matemática clássica. ([Fraenkel et al., 1973]., p. 275.)

Seguindo um modo de proceder típico para aqueles que aderiam ao formalismo hilbertiano, em
[Zermelo, 1908] pretende-se caracterizar um domínio (Bereich) B de objetos com sete axiomas.
Os conjuntos serão então os objetos desse domínio B. A formalização atual dessa teoria é
denominada Teoria de Conjuntos de Zermelo, assinalada com Z. A teoria madurecida e com
o acréscimo de axiomas chama-se Teoria de Conjuntos de Zermelo-Fraenkel, abreviada como
ZF .

2.1 Os axiomas de 1908


Lembremos brevemente os axiomas propostos por Zermelo em 19083 .
O primeiro axioma do sistema de Zermelo estabelece que um conjunto está determinado
pelos seus elementos, ou seja, sua extensão, motivo pelo qual é denominado Axioma de Exten-
sionalidade, que já encontramos em Frege e forma parte de teorias de conjuntos atuais, como
ZF .
O II é denominado Axioma do Conjuntos Elementares e estabelece a existência do conjunto
vazio Ø e, dados objetos a e b do domínio B, a existência do conjunto unitário {a} e do par
{a, b}.
O III é o Axioma de Separação. A ideia intuitiva é que, dada uma propriedade qualquer
P (x), pode ser afirmada a existência do conjunto que contém todos os objetos com a proprie-
dade P (x), tinha levado a contradição quando Frege formalizou esse princípio no seu sistema 4 .
Como uma maneira de evitar essa contradição, podemos enfraquecer esse procedimento, de
modo que, dado um conjunto A e uma propriedade qualquer P (x) podemos afirmar a existên-
cia de um subconjunto B ⊆ A que contém os elementos de A que satisfazem a propriedade
2
Ver [Fraenkel et al., 1973], cap. 1, especialmente §2.
3
Originariamente em [Zermelo, 1908] (os axiomas estão nas pp. 263–267), reimpresso com tradução inglesa
em [Zermelo, 2010], pp. 160–229 e tradução inglesa em [van Heijenoort, 1967], pp. 199–215.
4
Fato conhecido como “paradoxo de Russell”. Ver [van Heijenoort, 1967], pp. 124–128.

2
P (x). O axioma separa os elementos de A que satisfazem P (x). Zermelo fala dessa proprie-
dade como “propriedade definida”, usando funções proposicionais. Trataremos das propriedades
definidas na seção 3.1.
O problema que enfrenta Zermelo é que operações tais como a união e o conjunto de partes,
que eram deduzidas do axioma inconsistente de Frege, não podem ser obtidas de maneira
análoga usando o Axioma � de Separação5 . Nesse sentido, os axiomas IV e V estabelecem a
existência de P (x) e (x) para cada conjunto x.
O VI é o Axioma da Escolha, AE, que já estava criando polêmica desde 19046 e algumas
das discussões prolongaram-se até os dias de hoje7 . A versão de Zermelo do AE é a refente a
famílias disjuntas:
Seja T um conjunto, tal que cada um dos seus elementos são conjunto diferentes de
0 e mutuamente disjuntos, então a sua união, ∪T , inclui pelo menos um subconjunto
S1 que tem em comum com cada elemento de T um e só um elemento.
Em termos atuais ficaria:
Dada uma família T de conjuntos não vazios e disjuntos dois a dois, ou seja T =
{ci : i ∈ I}, tal que ci �= Ø e ci ∩ cj = Ø para ci �= cj , existe um conjunto S1 que tem
um � e só um elemento em comum com cada ci , i ∈ I, S1 ∩ ci = {a} para um único
a ∈ T.
Essa versão é equivalente a que deu Zermelo em [Zermelo, 1904], na presença dos demais axio-
mas.
O VII e último, é o Axioma de Infinito:
O domínio contém pelo menos um conjunto Z, que contém o conjunto vazio como
elemento e para cada elemento a, pertence também um outro correspondente a ele da
forma {a}, ou para cada elemento a seu, pertence também como elemento o conjunto
correspondente {a}.
Em linguagem moderna:
Ø∈Z
se a ∈ Z, então {a} ∈ Z

esses elementos são referidos como “os número naturais de Zermelo:

0 = Ø
1 = {Ø}
2 = {{Ø}}
..
.
n = {· · · {Ø} · · ·} com n pares de chaves
..
.

Logo é separado o menor conjunto que cotem os números naturais:

Zω = {Ø, {Ø} , {{Ø}} , {{{Ø}}} , . . .}


5
Resultados ulteriores mostram que os axiomas de partes e da união são independentes no sistema de Zermelo,
assumindo que dito sistema seja consistente. Ver Apêndice 10.2 e 10.3.
6
Ver, por exemplo, [González, 1991], onde é analisada a discussão de quatro importantes matemáticos fran-
ceses: Baire, Borel, Lebesgue e Hadamard.
7
Ver [Moore, 1982] para um panorama dessas discussões e [Jech, 1973] para ver mais especificamente as
teoremas nos quais é usado.

3
3 Problemas da teoria de Zermelo de 1908
3.1 O Axioma de separação e as “propriedade definidas”
Zermelo enuncia esse axioma nos seguintes termos:

Axioma III. Se uma função proposicional E (x) está definida para todos os elementos de um
conjunto M , então M sempre tem um subconjunto E ⊆ M , tal que todos aqueles
elementos x de M para os quais E (x) é verdadeira pertencem [a E], e somente eles
pertencem.8

Uma aplicação do axioma de Zermelo seria feita da maneira habitual: suponha que tem o
conjunto dos números naturais ω e a “propriedade definida” I (x) interpretada como “x é impar”.
Então podemos separar o conjunto ωI dos números ímpares ωI ⊆ ω.
Como em 1908 ainda não haviam sido formalizadas as linguagens de predicados de primeira
ordem da maneira atual9 , a “propriedade definida” torna-se problemática. As linguagens de
primeira ordem atuais tem constantes para predicados mas só variáveis para objetos e não
variáveis para predicados. Se entendermos a propriedade P (x) deste axioma como “qualquer
propriedade P (x)” então estamos quantificando propriedades, coisa que não acontece nas lin-
guagens de primeira ordem mas somente nas de ordem superior, como as linguagens de segunda
ordem.10
Segundo van Heijenoort:

. . . como Zermelo não presta nenhuma atenção para a lógica subjacente [. . . ]


a noção de propriedade definida permanece vaga. Este defeito será removido, de
diferentes maneiras, por Weyl, Fraenkel, Skolem e von Neumann. 11

3.2 Inexistência de ℵω e cardinais maiores


No seu desenvolvimento da aritmética transfinita realizado a partir de 1870, Georg Cantor
afirma a existência de uma sequência de cardinais infinitos bem-ordenados, assinalados com a
letra alef, ℵ, munida de subíndices.
Numa carta a Dedekind, Cantor escreve:

. . . Como você sabe, muitos anos atrás eu já tinha chegado a uma sequência de
cardinalidades bem-ordenadas, ou números transfinitos, que denominei “alefs”:

ℵ0 , ℵ1 , ℵ2 , . . . , ℵω0 , . . .

ℵ0 significa a cardinalidade dos conjuntos “enumeráveis” no sentido usual, ℵ 1 é o


cardinal seguinte maior, ℵ2 o próximo ainda maior, etc.; ℵω0 é o próximo seguinte
(ou seja, o próximo maior que) todos os ℵν e é igual a

lim ℵν ,
ν→ω0

etc.12
8
Axiom III. Ist die Klassenaussage E(x) definit für alle Elemente einer Menge M , so besitzt M immer eine
Untermenge ME , welche alle diejenigen Elemente x von M , für welche E(x) wahr ist, und nur solche als Elemente
enthält.
9
Por exemplo, ainda não tinha sido proposta a definição recursiva de fórmula. Ver Seção 6.
10
Ver a discussão de U. Felgner sobre as “propriedades definidas em [Zermelo, 2010], p. -179-181.
11
Em [van Heijenoort, 1967], p. 199.
12
[Cantor, 1932], p. 443, tradução própria. Tradução ao inglẽs em [van Heijenoort, 1967], p. 113–114.

4
Apesar de Zermelo aderir à teoria dos cardinais de Cantor, na sua teoria não pode ser provada
a existência de ℵω .13
O cardinal ℵω tem muito pouco uso no desenvolvimento das teorias matemáticas habituais,
ficando a sua relevância virtualmente reduzida às teorias que tratam de cardinais infinitos, como
a demonstração de König de que o contínuo não pode ter cardinalidade ℵω .

3.3 Possibilidade da existência de conjuntos mal fundados


Conjuntos tais que x ∈ x foram muitas vezes considerados anômalos. Esses conjuntos geram
sequências infinitas decrescentes, como:

x � x � x � ... � x � ...

fato que pode ser interpretado com carecendo de uma “fundação”.14


Na teoria de Zermelo a existência de conjuntos não bem-fundados não pode ser demonstrada,
embora sua existência nao seja contraditória com os axiomas — se eles são consistentes.

4 As pesquisas de Fraenkel e a independência do


Axioma da Escolha
Em 1920 Fraenkel propõe em seu trabalho O conceito “definido” e a independência do axioma
da escolha 15 uma alternativa ao axioma de separação de Zermelo:
Axioma III. se é dado um conjunto M , e também, numa ordem definida, duas
funções φ e ψ, então M possui um subconjunto ME , (ou um subconjunto) contendo
como elementos todos os elementos x de M para os quais φ (x) é um elemento de
ψ (x) (para os quais φ (x) não é um elemento de ψ (x)) e não outros.
Fraenkel define “função”, como uma alternativa, segundo a seguinte regra:
um objeto φ (x) será formado por um objeto (“variável”) x que toma va-
lores nos elementos de um conjunto, e possivelmente de outros objetos dados
(“constantes”) por meio de aplicações prescritas (repetidas somente um número
finito de vezes, obviamente, e denotada por φ) de Axiomas II–VI. Por exemplo,
φ (x) = {{x}, {0}, Ux + {{0}}}
Hoje, considerando o desenvolvimento atual da teoria da recursão e da recursão sobre estruturas,
preferiríamos uma definição recursiva das funções de Fraenkel, que seriam os elementos de F x 16 :

{x} ∈ Fx (1)
{c} ∈ Fx sendo c uma constante, como Ø, ω, etc.
{y} ∈ Fx com y ∈ Fx
y∪z ∈ Fx com y, z ∈ Fx

y ∈ Fx com y ∈ Fx
Py ∈ Fx com y ∈ Fx
13
Ver 10.5 no Apêndice.
14
Ver [Mirimanoff, 1917], p. 42.
15
Tradução em [van Heijenoort, 1967], pp. 284–299.
16
As constantes referidas na linha 2 implicam o uso de axiomas para provar a existência do objeto correspon-
dente, p.ex. o axioma de infinito para provar a existência de ω. São constantes de objetos cuja existência pode
ser provada na teoria.

5
O Axioma III seria aplicado da seguinte maneira: suponha que quer separar os números ím-
pares de ω. Primeiro teríamos que representar as operações de adição (+), e produto (·)
de números naturais com operações com conjuntos. Depois definimos φ (x) = (2 · x) + 1 e
ψ (x) = {(2 · x) + 1}, tomando x valores em ω. O conjunto M do enunciado do Axioma III de
Fraenkel é o conjunto dos números naturais ω, do qual separamos os elementos de ω da forma
(2 · x) + 1, que são os ímpares.

4.1 Extensões divergentes consistentes


Zermelo não tem uma prova da consistência relativa do Axioma da Escolha (AE), prova que só
será feita por Gödel em 193817 . Entretanto, Zermelo parece acreditar na consistência do sistema
que apresenta e, portanto, na consistência relativa de AE com relação aos demais axiomas do
sistema.
No trabalho de Fraenkel que estamos analisando, é apresentada uma prova da consistência
relativa de uma negação do AE, determinando a sua independência. Para essa prova Fraenkel
introduz o método dos modelos de permutação18 . Entretanto, é importante assinalar que o
método [de modelos de permutação] de Fraenkel-Mostowski é aplicado a teorias de conjuntos
que admitem a existência de “Urelemente” [elementos primitivos}, ou seja, objetos que não são
conjuntos19 .
A ideia simplista de que podemos afirmar a existência de um objeto matemático a partir da
falta de contradição encontra aqui um problema, porque tanto a afirmação como a negação do
AE são consistentes com os demais axiomas, sob o suposto de que esses axiomas são consistentes.

5 Mirimanoff e a hierarquia cumulativa


Para evitar os conjuntos mal fundados, como exemplificado na seção 3.3, [Mirimanoff, 1917]
parte de um conjunto dado N de elementos primitivos (noyaux ) e, f, g, . . . 20 de modo que
N = {e, f, g, . . .} e estabelece os “conjuntos ordinários” 21 a partir dele, usando os seguintes
postulados:

Postulado 1. — Se um conjunto de conjuntos ordinários existe, também existe


o conjunto de todos os subconjuntos distintos (Potenzmenge 22 ).
Postulado 2. — Se um conjunto {E, F, . . .}, onde os elementos E, F, . . . são
conjuntos ordinários, existe, também existe a soma [união] dos conjuntos E, F, . . .
(Vereinigungsmenge 23 ).
Postulado 3. — Se um conjunto {a, b, c, . . .} existe, também existe todo conjunto
equivalente {E, F, G, . . .}, onde E, F, G, . . . são conjuntos ordinários existentes.24

No restante desse artigo, Mirimanoff argumenta que usando essas operações não se pode de-
monstrar a existência de conjuntos que gerem paradoxos, como nos casos de Russell e Burali-
Forte, e que todos os conjuntos assim gerados são ordinários.
17
Em [Gödel, 1938].
18
Para uma apresentação moderna desse método, que inclui as contribuições de Mostowski e Specker, ver
[Felgner, 1971], pp. 46–75.
19
Ver [Felgner, 1971], p. 46.
20
[Mirimanoff, 1917], p. 43.
21
Mirimanoff define como “conjunto ordinário” o que não tem sequências infinitas descendentes da pertinência,
que são sequências do tipo x0 � x1 � x2 � . . . � xn � . . ., ibid. p. 42.
22
Conjunto potência ou conjunto das partes.
23
Conjunto da união.
24
Esse postulado é uma forma do Axioma de Substituição.

6
Em notação atual e usando recursão transfinita sobre os ordinais, dado um conjunto A de
elementos primitivos, temos:

V0 (A) = A
Vα+1 (A) = P (Vα )

Vα (A) = Vβ se α limite
β<α

V (A) = Vα
α∈On

sendo On a classe dos ordinais.


Na teoria de Zermelo-Fraenkel o primeiro nível é definido como V 0 = Ø, pois não tem
elementos primitivos. Nesse caso, V é denominada a “hierarquia cumulativa” e não possui
conjuntos mal fundados. Dessa maneira, foi introduzido um novo axioma:

∀x (x ∈ V )

que nega a existência de conjuntos mal fundados e que foi incorporado à ZF, ora usando essa
fórmula ou usando alguma outra que seja equivalente na presença dos demais axiomas.
O interessante da proposta de Mirimanoff é que ele se afasta do enfoque habitual hilbertiano
de estabelecer um “domínio de objetos” que será caracterizado por axiomas. Talvez pudéssemos
dizer que Mirimanoff abandona a ideia de proceder da maneira mais sintática possível e introduz
considerações semânticas, pois em termos atuais ele está definindo um modelo.

6 A definição recursiva de fórmula de Skolem e os esque-


mas de axiomas em primeira ordem
Em 1922 Skolem apresenta sua definição recursiva de fórmula (ver [van Heijenoort, 1967],
pp. 292–293), mas no caso especial da teoria de conjuntos. A forma de exposição é diferente,
mas a maneira de proceder é similar à definição das linguagens de primeira ordem atuais, como
pode ser encontrada nos manuais de lógica matemática.
A linguagem definida por Skolem não possui termos para funções, só a pertinência e a
igualdade, sendo a base da definição recursiva as fórmula a ∈ b e a = b. Além disso, inclui na
sua linguagem “cinco operações”: conjunção, disjunção, negação e as quantificações universal e
existencial. Toda expressão é construída aplicando um número finito de vezes as “operações”
partindo das fórmulas base, como é usual.
Usando esta definição de fórmula, Skolem pode expressar as ideias dos axiomas de separação
e substituição de uma maneira formal mais rigorosa, mas como esquemas de axiomas. Esse é o
enfoque usual até hoje.
Segundo [van Heijenoort, 1967], p. 285:

Skolem [Skolem, 1929] mostrou que o método de Fraenkel pode ser reduzido ao
seu próprio.

Com referência as funções propostas por Fraenkel discutidas na Seção 4, de modo que os axiomas
de Fraenkel usando as suas funções não geram mais teorema que os esquemas de axiomas que
usam a definição recursiva de fórmula.

7
7 O axioma de substituição
Uma crítica semelhante à da Seção 3.2 (sobre a impossibilidade de provar a existência de ℵ ω )
foi feita por Skolem em 1922. Em notação atual e sendo ωZ os números naturais definidos por
Zermelo, a ideia de Skolem é que, a partir da sequência do Pn (ωZ ):
P0 (ωZ ) = P (ωZ )
Pn+1 (ωZ ) = P (Pn (ωZ ))
podemos definir {Pn (ωZ ) : n ∈ ω}. Skolem argumenta que a existência desse conjunto não
pode ser provada na teoria de Zermelo25 .
Segundo [van Heijenoort, 1967], p. 291:
Para remediar esta deficiência, Skolem propôs um novo axioma: o axioma de
substituição, que se transformou numa parte padrão da teoria de conjuntos. Quase
ao mesmo tempo, Fraenkel ([Fraenkel, 1922c], mas veja também [Fraenkel, 1921] e
[Fraenkel, 1922a]) e Lennes [Lennes, 1922] fazem sugestões similares.
Em [Skolem, 1922], p. 297, podemos ler:
Seja φ uma proposição definida que vale para certos pares (x, y) do domínio
B. Suponha, ademais, que para cada x existe no máximo um y tal que φ é verda-
deira. Então, como x toma valores num conjunto Mx , y toma valores sobre todos
os elementos de um conjunto My .
Em [Fraenkel, 1922c], p. 231 podemos ver a versão de Fraenkel do Axioma de Substituição:
Axioma de Substituição. Seja M um conjunto e seja substituído cada ele-
mento de M por um “objeto do domínio B” (Cfr. [Zermelo, 1908], p. 262) então M
se transforma a sua vez num conjunto.
A ideia de substituição é exemplificada por Fraenkel, que usa o conjunto dos números naturais
tal como é definido por Zermelo: Z0 = {Ø, {Ø} , {{Ø}} , . . . }, e logo define:
Zn+1 = P (Zn )
Fraenkel afirma que na teoria de Zermelo não pode ser provada a existência de {Z 0 , Z1 , Z2 , . . .}.
Atualmente, para provar a existência desse conjunto, usamos o Axioma de Substituição em
Z0 , colocando Z0 no lugar de Ø , o conjunto Z1 no lugar de {Ø}, etc.
Similarmente, a existência de ℵω pode ser provada substituindo � n por ℵn em ω. Desta
maneira obtemos {ℵ0 , ℵ1 , ℵ2 , . . . , ℵn , . . .} = {ℵn : n ∈ ω} e ℵω = {ℵn : n ∈ ω} = limν→ω ℵν .
Um enunciado de Cantor de 1899 é considerado um antecedente do Axioma de Substituição:
Um dos enunciados de Cantor sobre multiplicidades (“duas multiplicidades equi-
valentes são ambas ‘conjuntos’ ou são ambas inconsistentes”) pode ser considerado
uma versão precoce do axioma de substituição.26
Fraenkel formaliza a operação de substituição definindo funções como em [Fraenkel, 1922b] (ver
equações 1 na p. 5).
É importante ressaltar que se a função usada na substituição for um conjunto 27 , então o
Axioma de Substituição não é criativo, pois para toda função conjunto, o codomínio da mesma
pode ser obtido usando o Axioma de Separação.
25
Sob o suposto de que a teoria de Zermelo tem um modelo e, portanto, da sua consistência. Ver
[van Heijenoort, 1967], pp. 291 e 296.
26
Ibid. p. 113.
27
Como acontece na formalização comum que representa um função por um conjunto de pares ordenados.

8
8 O artigo de 1930 de Zermelo
Em 1930 Zermelo apresenta um novo artigo28 sobre os axiomas da Teoria de Conjuntos e os
seus modelos29 . Nesse artigo podemos ler:

O sistema de axiomas que forma a base das nossas pesquisas é essencialmente o


sistema de axiomas de “Zermelo-Fraenkel”, ou seja, o sistema que resulta quando o
meus axiomas de 1908 são acrescidos com o “axioma da substituição” de Fraenkel e
modificado de tal modo que, por uma parte, o meu “axioma de infinito” é eliminado
porque ele não pertence à teoria de conjuntos “geral”, e por outra parte, é agregado
o “axioma da fundação”, mediante o qual conjuntos “circulares” e “não-fundados”
são excluídos. Seguindo isso, nós chamamos a totalidade dos seguintes axiomas o
“sistema ZF acrescido” ou, abreviadamente “sistema ZF � ”

Enunciando a continuação sete axiomas: extensionalidade, separação, pares, do conjunto po-


tência, da união, substituição e fundação.
Zermelo continua rejeitando as propostas de Fraenkel e Skolem e enuncia os axiomas de
separação e substituição com “funções proposicionais”, bastante semelhante à axiomatização
original de 1908. Apesar dessa persistência de Zermelo, generaliza-se o uso de esquemas de
axiomas e a definição recursiva de fórmula. Além disso, o artigo de Zermelo aprofunda-se em
várias questões, principalmente em cardinais e modelos da teoria de conjuntos com importantes
conceitos, como o de cardinal inacessível.
Noventa anos depois, a Teoria de Conjuntos de Zermelo-Fraenkel continua sendo a axioma-
tização mais usual em livros e aulas do mundo inteiro.

9 Conclusões
Apesar de terem sido vistos de maneira sucinta, espero que os problemas apresentados tenham
ficado o suficientemente interessantes como para incentivar pesquisas na história da lógica
matemática que envolveram discussões conceituais.
Analisar problemas e apresentar possíveis soluções é a maneira típica da matemática e a
ciência progredirem de uma maneira qualitativamente significativa.
Como é usual no desenvolvimento da ciência, enquanto Zermelo fecha uma porta, outra
é aberta no mesmo artigo de 1930, ao se ocupar com o conceito de cardinal inacessível, que
muito tem a ver com o posterior “programa dos grandes cardinais” de Gödel. Mas, claro, essa
é mais uma história que começa logo depois de acabar a nossa e que corresponde a uma etapa
posterior, fora do alcance deste artigo.

10 Apêndice: Síntese de resultados sobre reduzibilidade,


consistência e independência em Z.
10.1 Conjuntos elementares
1. A existência do conjunto vazio Ø pode ser demonstrada usando o Axioma de separação.

2. A do conjunto unitário{x}, para cada x, usando o Axioma do Conjunto Potência e Sepa-


ração.
28
[Zermelo, 1930]. Reimpresso em alemão e tradução ao inglês em [Zermelo, 2010], p. 400–430.
29
Que ele denomina “domínios” (Bereiche). Entretanto, neste artigo ele utiliza também o termo “modelo”
(Modelle).

9
3. O axioma de pares é independente em Z, supondo a consistência dos demais axiomas (ver
[Boffa, 1972]). Também é consistente, se Z sem o Axioma de União nem o Axioma de
pares for consistente (ver [Gonzalez, 1992]).

10.2 Axioma de União


Dada a consistência de Z menos o Axioma da União, este axioma é independente (ver
[González, 1990]) e consistente (ver [Gonzalez, 1992]).

10.3 Axioma de Partes


Em ZF pode ser demonstrado que Vω+1 é um modelo de Z menos o Axioma de Partes com as
mesmas técnicas usadas para demonstrar que Vω+ω é um modelo de Z.

10.4 Axioma de infinito


O Axioma de Infinito é independente, pois Vω é um modelo de Z menos o axioma de infinito.

10.5 A existência de ℵω não pode ser provada em Z


Vω+ω é um modelo de Z e não contém ℵω .

Referências
[Boffa, 1972] Boffa, M. (1972). L’axiome de la paire dans le système de Zermelo. Archive for
Mathematical Logic, 15(3–4), 97–98.

[Cantor, 1932] Cantor, G. (1932). Gesammelte Abhandlungen: mathematischen und philo-


sophischen Inhalts. Berlin: Springer.

[Ebbinghaus & Peckhaus, 2007] Ebbinghaus, H.-D. & Peckhaus, V. (2007). Ernst Zermelo. An
Approach to His Life and Work. Heidelberg: Springer.

[Felgner, 1971] Felgner, U. (1971). Models of ZF-Set Theory. Number 223 in Lecture Notes in
Mathematics. Heidelberg: Springer.

[Fraenkel, 1921] Fraenkel (1921). Über die Zermelosche Begründung der Mengenlehre. Jahres-
bericht der Deutschen Mathematiker-Vereinigung, 30(2), 45–46.

[Fraenkel, 1922a] Fraenkel, A. (1922a). Axiomatische Begründung der transfiniten Kardinal-


zahlen. I. Mathematische Zeitschrift, 13(1), 153–188.

[Fraenkel, 1922b] Fraenkel, A. (1922b). Der Begriff “definit” und die Unabhangigkeit
des Auswahlaxioms. Sitzungsberichte der Preussischen Akademie der Wissenschaften,
Physikalisch-mathematische Klasse, (pp. 253–257).

[Fraenkel, 1922c] Fraenkel, A. (1922c). Zu den Grundlagen der Cantor-Zermeloschen Mengen-


lehre. Mathematische Annalen, 86(3-4), 230–237.

[Fraenkel et al., 1973] Fraenkel, A. A., Bar-Hillel, Y., & Levy, A. (1973). Foundations Of Set
Theory. Amsterdam: Elsevier.

10
[Gödel, 1938] Gödel, K. (1938). The consistency of the axiom of choice and of the generalized
continuum-hypothesis. Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States
of America, 24(12), 556.

[González, 1990] González, C. G. (1990). The Union Axiom in Zermelo Set Theory.
Zeitschrift für mathematische Logik und Grundlagen der Mathematik, 36, 281–284.
MR#1085691(92e:03073).

[González, 1991] González, C. G. (1991). La crítica de los matemáticos franceses a la prueba


de Zermelo. Análisis Filosófico (Buenos Aires), 11, 17–37.

[Gonzalez, 1992] Gonzalez, C. G. (1992). A note on Zermelo set theory. Bulletin of the Section
of Logic, Lodz, 21(1).

[Jech, 1973] Jech, T. (1973). The axiom of Choice. Amsterdam: Elsevier.

[Lennes, 1922] Lennes, N. J. (1922). On the foundations of the theory of sets. Bulletin of the
American Mathematical Society, 28, 300.

[Mirimanoff, 1917] Mirimanoff, D. (1917). Les antinomies de Russell et de Burali-Forti et le


probleme fondamental de la théorie des ensembles. L’Enseignement mathématique, 19(1–2),
37–52.

[Moore, 1982] Moore, G. H. (1982). Zermelo’s axiom of choice: Its origins, development, and
influence. New York: Springer.

[Skolem, 1922] Skolem, T. (1922). Some remarks on axiomatic set theory. In


[van Heijenoort, 1967], (pp. 290–301).

[Skolem, 1929] Skolem, T. (1929). Über einige grundlagenfragen der mathematik. Skrifter
utgitt av Det Norske Videnskaps-Akademi i Oslo, I. Matematisk-naturvidenskapelig klasse,
no. 4.

[van Heijenoort, 1967] van Heijenoort, J. (1967). From Frege to Gödel: a source book in mathe-
matical logic, 1879–1931. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press.

[Zermelo, 1904] Zermelo, E. (1904). Beweis, daß jede Menge wohlgeordnet werden kann. Mathe-
matische Annalen, 59(4), 514–516.

[Zermelo, 1908] Zermelo, E. (1908). Untersuchungen über die Grundlagen der Mengenlehre. I.
Mathematische Annalen, 65(2), 261–281.

[Zermelo, 1930] Zermelo, E. (1930). Über Grenzzahlen und Mengenbereiche. Neue untersu-
chungen über die grundlagen der mengenlehre. Fundamenta Mathematicae, 16(1), 29–47.

[Zermelo, 2010] Zermelo, E. (2010). Collected Works — Gesammelte Werke, volume 1. Heidel-
berg: Springer.

11

Você também pode gostar