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Este livro reúne um conjunto de artigos com reflexões

sobre os significados que o esporte foi assumindo na so-


ciedade moderna. São apresentadas as principais aborda-
gens teóricas sobre o tema, com a finalidade de levar o
ensino da história do esporte para além da memorização
de datas e nomes, assim corno de estimular a discussão
das questões atuais colocadas pela conexão entre o passa-,
do e o presente. Nesse sentido, é importante ressaltar a
CP
diversidade de enfoques originários das ciências sociais, 1J
eu
seja para um entendimento.mais amplo das várias dimen- 1J
CP
sões dos fenômenos esportivos, seja para incentivar a dis- .-
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cussão acadêmica. ,ti)
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EDITORA@
AUTORES
ASSOCIADOS

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Ao ler o livro Esporte: história e socieda-
de, texto coletivo produzido sob a liderança
de Marcelo Weishaupt Proni e Ricardo de
Figueiredo Lucena, pude perceber a grandio-
sidade do tempo para aqueles que estudam
e pesquisam o fenômeno esportivo sob o
olhar das ciências humanas no Brasil. Só o
tempo histórico pode justificar a generosi-
dade, paciência histórica, maturidade inte-
ESPORTE
lectual e experiência teórica diversa reunida HISTÓRIA E SOCIEDADE
agora nos capítulos de cada co-autor, após
mais de uma década de proximidade e dis-
tanciamento.
a conjunto do livro, ainda que cada ca-
pítulo seja singular em sua especificidade
teórica e nas questões levantadas, confirma Ademir Gebara
o dito já consagrado que a distância excessi- Alexandre Fernandez Vaz
va gera a indiferença e, por sua vez, a proxi-
midade demasiada leva à compaixão e à ri-
Antonio Jorge Soares
validade. a livro constitui-se num exemplo Luiz Alberto Pilatti
de democracia no pensar e produzir conhe- Mara L. Cristan
cimento ao tempo que possibilita a cada lei-
Marcelo Weishaupt Proni (org.)
tor encontrar a justa distância das idéias e
dos co-autores de cada capítulo. Distância Ricardo de Figueiredo Lucena (org.)
essa que não será outra senão aquela que per- Valter Bracht
mitirá apreender o sentido último do todo Wanderley Marchi Ir.
que cada co-autor pretendeu refletir, proble-
matizar, comunicar.
a fenômeno esportivo foi captado por
diferentes aportes teóricos: Elias, Bourdieu,
Brohm, Guttmann, DaMatta, Guerreiro Ra-
mos, entre outros. Trabalho autoral de fôle-
go, como o é a produção
cada co-autor
já veiculada por
individualmente:
Gebara, Alexandre Fernandez Vaz, Antonio
Ademir S
Respeite o direito autoral
Reprodução não autorizada é crime
Jorge Soares, Luiz Alberto Pilatti, Mara Cristan,
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ESPORTE
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Conselho Editorial "Prof. Casemiro dos Reis Filho"


Dermeval Saviani MARCELO WEISHAUPT PRONI
Gilberta S. de M. [annuzzi
Maria Aparecida Motta RICARDO DE FIGUEIREDO LUCENA (ORGS.)
Walter E. Garcia

Diretor Executivo
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Diretora Editorial
Gilberta S, de M. [annuzzi

Coordenadora Editorial
Érica Bombardi

Revisão
Marco Antônio Storani
Valéria Cristina da Silva

Diagramação e Composição
João Pereira de Souza
CHANCELA CBCE
Capa e Arte-final
Ilustração baseada em O jóquei (detalhe), 1899, Toulouse-Lautrec
LEÇÃO EDUCAÇÃO FíSICA E ESPORTES
Érica Bombardi

Impressão e Acabamento
EDITORA@
Gráfica Paym AUTORES
ASSOCIADOS
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) SUMÁRIO
Esporte: história e sociedade / Marcelo Weishaupt Proni, Ricardo de Figueiredo
Lucena (orgs.). - Campinas, SP : Autores Associados, 2002. - (Coleção educação
física e esportes).

Vários autores. Apresentação 1


ISBN 85-7496-057-8
1. História do esporte: novas abordagens 5
1. Esportes - Aspectos sociais 2. Esportes - História I. Proni, Marcelo Ademir Gebara
Weishaupt lI. Lucena, Ricardo de Figueiredo m. Série.
2. Brohm e a organização capitalista do esporte 31
02-5168 CDD-796.01
Marcelo Weishaupt Proni
Índices para catálogo sistemático:
3. Guttmann e o tipo ideal do esporte moderno 63
1. Esporte: História e sociedade 796.01
Luiz Alberto Pilatti

Bourdieu e a teoria do campo esportivo 77


Wanderle)!.Marchi Tr._

Impresso no Brasil- novembro de 2002


113
Copyright © 2002 by Editora Autores Associados

-
6. DaMatta: o fiifêbõl comoârama
Alexandre Fernandez Vaz
e mitologia 139

7. Identidade nacional e racismo no futebol brasileiro 165


Antonio Jorge Soares
Depósito legal na Biblioteca Nacional conforme Decreto n" 1.825, de 20 de dezembro de
1907.
Todos os direitos para a língua portuguesa reservados pela Editora Autores Associados Ltda. 8. Esporte, história e cultura 191
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ou por qualquer meio, seja eletrônico, mecânico, de fotocópia, de gravação, ou outros, sem
prévia autorização por escrito da Editora. O Código Penal brasileiro determina, no artigo
184: 9. Políticas de esporte: uma metodologia de estudo 207
"Dos crimes contra a propriedade intelectual Mara Cristan
Violação de direito autoral
Art. 184 - Violar direito autoral
Pena - detenção de três meses a um ano, ou multa. Sobre os autores 249
1°- Se a violação consistir na reprodução, por qualquer meio, de obra intelectual, no todo
ou em parte, para fins de comércio, sem autorização expressa do autor ou de quem o represente,
ou consistir na reprodução de fonograma e videograma, sem autorização do produtor ou de
quem o represente:
Pena - reclusão de um a quatro anos e multa."
'-

ÀPRESENTAÇÃO

idéia de organizar um livro como este - reunindo a colabora-


ção de vários amigos e oferecendo um conjunto de leituras so-
hl" relações entre esporte, história e sociedade - surgiu quando
unl s estávamos cursando a pós-graduação na UNICAMP. Na época,
01. rvávamos a carência de obras destinadas a alunos de graduação
I" • S distanciassem dos tradicionais manuais, os quais costumam
., ar a história do esporte de modo linear e sem problematizar as
I li ações que são oferecidas para a espantosa transformação do
11111ndo esportivo no século XIX e no século XX. E considerávamos
fundarnental,para uma boa compreensão dos significados que foi as-
umindo o esporte na sociedade moderna, que fossem apresentadas
til. studantes as principais abordagens teóricas, com a finalidade de
II v Ir ensino para além da mernorização de datas e nomes, estimu-
I i1\ I a reflexão em torno das questões atuais colocadas pela conexão
utr passado e o presente. Dessa forma, queremos ressaltar a im-
2 ESPORTE ÀPRESENTAÇÃO 3

portância da multiplicidade de enfoques contidos neste livro, seja para Provavelmente, a leitura do livro não será linear, mesmo porque
um entendimento mais amplo das várias dimensões dos fenômenos não há uma ordem temática ou cronológica na seqüência dos capítu-
esportivos, seja para incentivar a discussão acadêmica. los, que foram preparados de modo autônomo. Deixamos ao leitor a
O momento para a publicação deste livro parece-nos muito opor- tarefa de identificar as temáticas examinadas em cada capítulo, assim
tuno. O amadurecimento dos estudos nessa área, no Brasil, com a como de comparar as ricas abordagens. Certamente, as preferências
proliferação de pesquisas científicas que vêm perseguindo um diálo- por certos temas e as sintonias com este ou aquele autor irão elencar
go permanente com os grandes autores das ciências humanas, é uma prioridades de leitura. Mas aconselhamos o leitor a manter acesa a
tendência bastante evidente. Cremos que é desnecessário mencionar chama da curiosidade e explorar todos os capítulos, pois será recom-
os vários trabalhos que vêm sendo apresentados e debatidos em con- pensado. Temos a certeza de que todos os artigos aqui reunidos são
gressos e em revistas especializadas, assim como talvez seja redundante fruto de pesquisa competente e de um longo processo de amadureci-
enaltecer a nítida melhoria de qualidade dos cursos que tratam des- mento intelectual. Portanto, estão prontos para ser saboreados como
sas temáticas nos programas de pós-graduação mais respeitados do fruta madura, bastando saber colhê-Ia e apreciá-Ia.
país. Portanto, há certamente um número razoável de professores que Por fim, queremos expressar nossos agradecimentos a todos os que
não só estão buscando novas metodologias de ensino como também ajudaram a tornar realidade aquela idéia ambiciosa, que sabíamos re-
estão produzindo novas leituras e, dessa forma, saberão não apenas presentava uma longa caminhada e acabou se mostrando extrema-
aproveitar as análises aqui reunidas para suas aulas, mas inclusive mente gratificante, justamente porque tivemos sempre muitas pessoas
questioná-Ias e revisá-Ias. a nos incentivar. E é com esse espírito de motivação, de expectativa
Evidentemente, não desconhecemos os limites do livro em rela- de quem inicia um jogo, que passamos a bola ao leitor. .. É chegada a
ção ao tratamento de abordagens complexas e muito ricas em pou- hora do envolvimento.
cas páginas. Aqueles que já têm alguma intimidade com autores como
Elias, Bourdieu, Guttmann, Brohm, entre outros, sabem que é difícil Outono de 2002
resumir suas contribuições e reproduzir seus pensamentos em arti-
gos relativamente pequenos. Todos os autores por nós convidados a Marcelo W Proni e Ricardo F. Lucena
escrever aqui reconhecem que a tarefa é desafiadora e que, mais do
que uma análise exaustiva das diferentes abordagens, o que deve ser
priorizado é a identificação das possibilidades de investigação que
foram e permanecem abertas aos novos pesquisadores. Além disso,
queremos reconhecer que o livro, também por uma restrição de es-
paço, deixa de lado alguns pensadores cujas contribuições vêm sen-
do enaltecidas em outros estudos, mas acreditamos que tais ausên-
cias não serão sentidas por aqueles que estão ainda começando suas
pesquisas.
1
HISTÓRIA DO ESPORTE
NOVAS ABORDAGENS

Ademir Gebara

ste artigo apresenta uma análise da evolução recente que o trata-


mento da história do esporte tem recebido. Cabe esclarecer que a
111 1is está fundada em mais de dez anos de experiência de orientação
1\ trabalhos sobre o tema (mestrado e doutorado), bem como de in-
I lisa permanente participação nos encontros de história do esporte
pl'0111vidos desde 1994. Neste sentido, trata-se de uma reelaboração
I l t 5 de alg-\Jm~maneira discutidos durante estes eventos.
'I' m-se tornado bastante comum, atualmente, o desenvolvimen-
10 d modelos de análise voltados para a compreensão do esporte. )
Nuda mais natural, na medida em que estamos diante de um fenõ-
"I Il( universalmente crescente, economicamente em expansão e.re- /
ses modelos de análise se têm concentrado em compreender
III ' .•

I sI ' ificidade do esporte moderno, distinguindo-o dos jogos e das


6 ESPORTE HISTÓRIA DO ESPORTE 7

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formas ancestrais de competição física que estes esportes assumiram. Na tentativa de formular este argumento privilegiando a histori-
Tal desenvolvimento bibliográfico pode ser bem avaliado e sintetiza- cidade da formação do esporte moderno, pretendo discutir seu sig-
do com base na abordagem de Allen Guttmann (1978), na qual o nificado a partir de sua constituição, em finais do século XIX, e suas
autor estabelece sete características distintivas do esporte moderno t ensões atuais, Este procedimento possibilitará, acredito, senão uma
(secularismo, igualdade de oportunidades na competição e em suas melhor compreensão do tema, ao menos apontar um outro ângulo de
/ condições, especialização das regras, racionalização possibilitando sua bservação, que permita -iexercitando o "presentismo'i-rnas sem as-
I internacionalização, organização burocrática, impulso para a sumi-lo enquãnto procedimento metodológico - indicar a possibili-
. '" quantificação e a busca dos recordes). Esta mesma tentativa de siste- dade de continui~ades e rupturas neste processo, ainda carente de )
~rtipologicamenfe ésporte moderno já havia sido apresenta-
õ
studos que valonzem os dados empíricos, fundamentais para um/
I róximo passo no aprofundamento das discussõss-r" ----
da por Ingham anteriormente'.
Esses modelos de análise contribuíram substancialmente para co- Hobsbawm -'
rr9-S--zr)7"aoreferir-se ao surgimento da política de
locar a discussão sobre o esporte moderno em um patamar teórico massas em finais do século XIX, coloca a questão do ressurgimento
menos descritivo. Guttmann (1978, pp. 57-89), por exemplo, apresen- ti s elementos "irracionais" na manutenção da estrutura e da ordem
ta uma excelente análise bibliográfica de autores inspirados em Marx e ocial. Neste sentido, três novidades seriam mais importantes: a edu-
\
Weber - segundo ele, os primeiros a tentarem explicar o surgimento do \ ção primária secular, as cerimônias públicas e a produção em massa
esporte moderno. \\ I, monumentos públicos. Afirma ainda que a invenção das tradi-
Sem recusar essa linha de análise, e reconhecendo a substancial \ cs políticas
mais universais foi obra dos Estados, não obstante
contribuição, especialmente, da chamada Escola de Frankfurt- e do I nharn participado deste processo movimentos de massa que rei-
modelo de análise weberiano, sintetizado nas sete características apon- vi nd icavam status independente, como os movimentos socialistas
tadas por Guttmann, gostaria de propor neste texto uma abordagem li \rá~'ios ~m .?--!
de maio l.jlisse processo apresentou tradições)
mais "histórica", no sentido de valorizar o processo de constituição do pl'ópnas, entre elas o esporte; particularme_nte o futeb~ tornar-se-
I esporte moderno em relação à possibilidade de distingui-Io do não- \ um "culto proletário de mas~jk'-EStá modalidade se modernizou \
moderno. Dito em outras palavras, o esporte moderno é um objeto -m t mo dos anos de 1880, fu~cionando em escala local e nacional:
em constituição, ele não está ainda constituído a ponto de permitir I .sporte amador das escolas particulares inglesas, tornou-se, a
sua compreensão com base em um modelo de análise preconcebido, I irtir de 1885, proletarizado e profissionalizadó. Os clubes passa-
não obstante serem, os modelos de análise, fundamentais para o de- I 111 a ser organizados e dirigidos por comerciantes. De uma certa
11\(1/\ ira, no continente europeu o mesmo fenômeno se verificaria
~ senvolvimento problematizador do tema.
0111 ciclismo.
I esta explosiva expansão do esporte a partir da Inglaterra, duas
Cf. A. G. Ingham (1979, pp. 206-208). Trata-se de um modelo de tipo ideal do esporte "organi-
11I1t'1l'l cs novas tornaram-se visíveis e fundamentais. De um lado, com
zado", pensado em dois momentos históricos distintos, um denominado pré-rnoderno e o ou-
tro moderno. I -xpansão vitoriosa da burguesia e seu crescimento, a identidade de
2 Para uma abordagem crítica sobre a Escola de Frankfy-r+,-em~ção à sua função niveladora li. membros estabelecia-se também pela participação em alguma
(Habermas) e adaptadora ao trabalho (Adorno), ver/Hans Lenk \~ 972).
8 ESPORTE
H1STORIA DO ESPORTE 9

atividade ociosa, especialmente o esporte". De outro lado, a sociali- talvez, acima de tudo, de atribuição de um novo papel às mulheres
zação da mulher, especialmente pela sua possibilidade de maior liber- burguesas.
dade motora, encontraria na massificação dos esportes importante
componente'. É preciso alertar que esta análise proposta por A conclusão desses movimentos apontados por Hobsbawm propi-
Hobsbawm se refere ao processo histórico europeu, e particularmen- iou a constituição de identidades nacionais, obscurecendo diferenças
te ao caso inglês; é arbitrário pensar a história dos esportes no Brasil, I cais e regionais; eis aí uma possibilidade de entendermos a evolução
transformando este caso em modelo de análise, não obstante sua das competições internacionais, rapidamente suplantando os campeo-
importância pedagógica. Mais ainda, estas colocações são formuladas n tos nacionais. O grande momento desse processo foi a recriação dos
sempre ressalvando o pouco conhecimento existente sobre o esporte J gos Olímpicos em 1896. A construção e organização de espaços para
de massas, tanto na Grã-Bretanha quanto no continente europeu. Não romover espetáculos de massa, como os estádios de futebol, talvez não
obstante, algumas deduções são possíveis com base no argumento de- l nham implicado, necessariamente, a democratização do esporte; pro-
senvolvido por Hobsbawm (1984, p. 306): vavelmente massificação e democratização não devam ser confun-
didas, quer o processo ocorra em Cuba ou no Brasil.
Em primeiro lugar, que as últimas três décadas do século XIX assi- Passados aproximadamente cem anos do início desse processo,
nalam uma transformação decisiva na difusão de velhos esportes, na uais seriam as grandes questões colocadas hoje, em torno deste mes-
invenção de novos e na institucionalização da maioria, em escala na- n O fenômeno: o esporte-i
cional e até internacional. Em segundo lugar, tal institucionalização Maguirre (1990), estudando o desenvolvimento do futebol ameri-
constituiu uma vitrina de exposição para o esporte, que se pode com- ano na Inglaterra, afirma que sua difusão se deveu a um processo de
parar (sem muito rigor naturalmente) à moda dos edifícios públicos e 11 ericanização da cultura inglesa, alimentado pela comercialização dos
estátuas na política, e também um mecanismo para ampliar as ativi- sportes na Inglaterra, o que favoreceu o desenvolvimento de esportes
dades até então confinadas à aristocracia e à burguesia endinheirada comercializáveis. Kidd (1991), pesquisando o desenvolvimento do
capaz de assimilar o estilo de vida aristocrático, de modo a abranger ••p rte no Canadá, afirma que, do ponto de vista canadense, o termo
uma fatia cada vez maior das "classes médias". O fato de que ela, no 111 mericanização" seria bastante adequado. Evidentemente, nesse caso
continente, restringiu-se a uma elite consideravelmente reduzida, an- II gemonia do capitalismo norte-americano especialmente no Cana-
tes de 1914, não nos interessa aqui. Em terceiro lugar, a institucionali- I ) om a presença cultural e de mídia, é uma explicação bastante plau-
zação constituiu um mecanismo de reunião de pessoas de status social v I. Entre os franco-canadenses, nos quais estas influências são me-
equivalente, embora sem vínculos orgânicos sociais ou econômicos, e 1\( I' S, os fatos ocorreram de maneira diferente, havendo inclusive mo-
vim ntos de resistência às modalidades esportivas de origem norte-
I IIll ricana, Esse mesmo fenômeno foi detectado no Caribe.
3 Ver Eric Hobsbawm (1988). No capítulo VII, o autor discute detidamente este processo de
mudanças do estilo de vida da burguesia, no qual os esportes modernos têm papel funda-
mental.
11' cho que segue foi preliminarmente desenvolvido por mim em estudo anterior. Ver Giovanni;
4 Para um maior aprofundamento sobre o tema, além das referências circunstanciais feitas à
, bora & Proni (1994).
questão da emancipação feminina, ver Hobsbawrn, 1988, capoVIII.
10 ESPORTE HISTÚRIA DO ESPORTE 11

o conceito de "americanização", excluído talvez o caso canaden- //IGuttmann e Wagner fixam-se na tese da modernização. Para-eles,
se, não tem significado teórico; de fato, ao utilizarmos tal conceito, o argumento básico é o de que a industrialização e a modernização
estamos na verdade reduzindo um fenômeno de amplitude muito maior são decisivas para o processo de difusão cultural (inclusive em seus
do que os eventuais
universo político.
processos
Seria o mesmo
de supremacia
que falarmos
nacional presentes
de "jap~neização" para
no
I aspectos
substituídas
lúdicos), no qual as práticas
e/ou transformadas
tradicionais
(institucionalizadas)
são gradualmente
em modalida-
compreender o desenvolvimento esportivo asiático. ~portivas no sentido moderno.
Wagner (1990) aprofunda a discussão partindo de estudos na Outro grupo de autores - formado basicamente por economistas,
África e Ásia, sugerindo a utilização do termo "rnundialização" em vez entre os quais se encontram os já mencionados Kidd, Maguirre, Mc
de "americanização", posto que o fenômeno em análise se refere a um Kaye Miller, Mc Kay e outros, além de Cantelon e Murray (1993) -
processo de homogeneização da prática e do consumo esportivos, afirma que a análise não se refere a um processo universal de moder-
fenômeno que se explica fundamentalmente por: a) maior ganho de nização, mas sim a um processo derivado do próprio desenvolvimento
popularidade do esporte em escala mundial; b) motivação internacio- do capitalismo, no qual floresce a mercantilização do esporte.
nal para participar de eventos competitivos; c) influência da mass Em resumo, para os autores que argumentam na direção da tese
media nos países do Terceiro Mundo, gerando interesse crescente pe- do imperialismo (como Kidd e Maguirre, por exemplo), a expansão
los esportes ocidentalizados; d) importância política do esporte. do capitalismo e sua imposição aos países economicamente depen-
Guttmann (1991) tem posição similar à de Wagner. dentes criam um processo de supremacia cultural, redundando na
Outros autores também contestam o conceito de americanização". absorção de valores e práticas sociais pelos países subordinados;
Para eles, o que se verifica com os esportes é um processo similar ao da nesse caso temos "americanização", "japoneização" etc. Outros auto-
globalização do capital, independente de sua origem nacional. O que se res, como Mc Kay e Miller (1991) e Mc Kay e outros (1993), suge-
verifica no esporte é a constituição de uma elite de atletas em escala mun- rem que uma economia política do esporte pode ser mais bem abor-
dial, elite esta que, rigorosamente falando, não tem apenas uma bandeira dada eom base em conceitos como "pós-fordismo", "globalização do
nacional, mas sim um conjunto de marcas multinacionais a defender. cons~~ "lógica capitalista", conceitos que transceiidem-es-espa-
Exemplo antológico disso foi a Comunidade dos Estados Independentes ços nacionais.
(CEI) desfilando nos Jogos Olímpicos de Barcelona com a bandeira Outra perspectiva de abordagem do esporte moderno foi assumida
olímpica. Com base nesta discussão, permeada por características nacio- por Bourdieu (1983; 1990), para quem o esporte moderno, no nível
nais e regionais, impõe-se naturalmente o argumento relativo à possível das práticas e dos consumos, corresponde a "uma oferta destinada a
existência de um imperialismo cultural; em contrapartida, a questão da ncontrar uma certa demanda social", de modo que as relações entre
interdependência econômica e da difusão da modernidade fazem o ferta (novos esportes, novos equipamentos, por exemplo) e deman-
contraponto à perspectiva mais ortodoxa relativa ao imperialismo. da (dada pelas transformações dos estilos de vida) explicariam as
1
transformações das práticas e dos consumos esportivos. ,.
Seria de todo conveniente agregar aos aspectos apontados, no sen-
6 Nesta posição se encontram autores que eentram a análise no processo de desenvolvimento do
esporte na Austrália. Cf. Mc Kay & Miller (1991) e Me Kay, Lawrence, Miller & Rowe (1993). tido de permitir uma melhor compreensão do esporte moderno, o papel
12 ESPORTE HIST6RIADOESPORTE 13

da indústria do entretenimento, especialmente no que diz respeito à Outro aspecto que não deve ser negligenciado, e que é evidente
televisão. Este componente tem uma dimensão tanto regional/cultu- neste processo vivido pelos esportes nos últimos cem anos, é o seu
ral (por exemplo, o hóquei sobre o gelo no Canadá) como uma di- deslocamento da área de saber articulada pelo lazer e tempo livre para
mensão universal (como no caso do futebol). As televisões regionais aproximar-se do mundo do trabalho e da mercantilização. Trata-se de
e as grandes redes ocupam espaços diferentes e complementares ten- um duplo movimento: de um lado, o atleta moderno, um profissio-
do em vista a compreensão do fenômeno esportivo atual. Trata-se de nal altamente qualificado, executando tarefas possíveis com base em
um fenômeno que pode ser definido pela espetacularização do even- um ritmo e processo de treinamento, que fazem inveja aos que
to esportivo, colocando-o na dimensão tanto do cotidiano quanto do cultuam a qualidade total. De outro lado, as imagens produzidas por
acontecimento único e universal, como os Jogos Olímpicos. esses virtuoses se tornam elas mesmas mercadorias. Estamos falando
Vale a pena referenciar o mais recente livro de Hobsbawm (1995, de novos consumos culturais e, neste sentido, a discussão "pós-mo-
pp. 196-197); retomando a questão do esporte moderno, coloca so- derna" não seria estranha às ocorrências que se verificam no esporte
bre um aspecto novo a questão da globalização. Para ele, no campo em nossos dias. Não se trata mais de definir "quem é quem" no inte-
da cultura popular o mundo tornou-se americano com algumas to- rior da burguesia inglesa de fins do século XIX)trata-se de produzir
nalidades regionais. O esporte, contudo, tornou-se uma exceção: nesse e controlar eventos, imagen-s e o cotidiano espetacularizado, trata-se
setor "a influência americana permaneceu restrita à área de domina- de mercadorias de um novo tipo, não diretamente produzidas pelo tra-
ção política de Washington". Segue um argumento inquestionável, pois balhador assalariado (o operário da Revolução Industrial), mas pela
o futebol foi o esporte "que o mundo tornou seu". Se do ponto de vis- mercadorização de símbolos e signos produzidos por um processo /
ta canadense a "americanização" tem sentido, tanto quanto o tem no cultural de múltiplas dimensões, a um tempo local e regional, e glo'!
caso da cultura popular, especialmente da música, do ponto de vista bal no momento seguinte.
da grande explosão esportiva mundial- o futebol- a história parece Com referência às questões relativas à democratização da prática
ser outra. • portiva e de sua relação com a educação, o desenvolvimento dos
Colocada a questão dessa maneira, é necessário afirmar a grande , portes nestes cem anos parece apresentar um ângulo de análise que,
importância dos sul-americanos nesse processo. A Copa do Mundo s m negar o processo histórico apresentado, indica a constituição de
de 1930, a primeira, foi conquistada pelo Uruguai. O futebol, na cul- outras relações conjunturais.
tura brasileira, é um fenômeno que não carece de maiores considera- O problema da democratização do esporte, hoje, deve ser com-
ções, tanto quanto na Argentina. É evidente que o potencial de pro-
dução de espetáculos futebolísticos a partir do que hoje denomina-
-----
ndido em sua am--ºigüidade. A massificação do esporte não irn-
-------------
pli a necessãfiamente sua democratização. Não são poucos os regi- )
mos MERCOSUL é um aspecto que não deve ser negligenciado, particu- 1\1 S autoritários, ou mesmo ditatoriais, que têm massificado a práti-
larmente se articulado com o novo e dramático papel que a juventu- , sporti~a, is.so s~m, contud~, .democratizar, n~ sentid~ ~e possibi- \
de desempenha a partir dos anos de 1950. É bom lembrar que os es- I 1.11"às mmorras (Idosos, de.ÍIG-Ie-nte-s-etc.)efetiva participação. De \
portes são, cada vez mais, afirmação da supremacia da juventude, par- III )a inter"Venção d;Estado no mundo esportivo tem sido, freqüen-
ticularmente quando possibilitam definir ambições de fortuna e fama. em mte, no sentido de induzir a prática esportiva na direção de pro-
<:»
14 ESPORTE HISTORIA DO ESPORTE 15

<,
jetos políticos nacionais voltados para a propaganda e a doutrinação. rização e expansão do esporte moderno, em países carentes. Hoje,
É recente, data de Barcelona, o distanciamento esportivo dos boico- o esporte coloca-se na escola, e nos sistemas não-formais de educa-
, tes e da Guerra Fria; apenas a partir daí a vitória do esporte multimi-
lionário e superproduzido se tornou evidente. -r:": --- ) ção, como um componente do processo de socialização e profissio-
nalização de setores carentes da população jovem. Tanto quanto se
É legítimo entender por democratização do esporte apenas a / coloca como produto de consumo privilegiado, quer no nível do au-
possibilidade de levar suas imagens a milhões e milhões de pessoas? tomobilismo, quer no nível das práticas corporais de manutenção,
Ou seja, estamos falando da existência de um fenômeno cada vez ~a um espectro de população cujo nível de renda permite esse-t-ipo
mais privativo de profissionais altamente qualificados (tal qual de consumo.
acontece com a pintura e a dança)? As questões relativas à partici- 1Finalmente, mas não menos importante, dentre os produtos cul-
pação no esporte estão, provavelmente, deslocando-se para a área turais, o esporte, e particularmente o futebol, foi o primeiro senão o
do lazer pago. As construções contemporâneas, particularmente de único fenômeno cuja universalização precedeu os processos de mo-
edifícios nas grandes cidades, demonstram claramente que o fenô- dernização das telecomunicações. Além disso, quando o mundo ain-
meno está sendo incorporado pela indústria da construção civil. da vivia os rescaldos nacionalistas das duas grandes guerras e a Guer-
Mais ainda, é surpreendente o número de praticantes de bilhar nas ra Fria que se seguiu, o futebol jáhavia ganhado qiIfíosão universal
periferias e favelas. É difícil mensurar se aumentou a popularidade e se "globalizado". 'kA" - ( I) ,.""

de um esporte. Se tomarmos o futebol na dimensão de sua prática Apresentadas estas referências sobre o esporte na literatura inter-
pela população, seria muito importante dispor de dados sobre o nacional, devemos olhar como a discussão foi encaminhada no Brasil.
número de equipes e de participantes dos campeonatos amadores Em linhas gerais, identificavam-se três tendências de abordagem.
tão arduamente disputados nas décadas de 1950 e 1960 (obviamen- sm primeiro lugar, tínhamos os trabalhos que tratavam o tema em uma
te tomando o cuidado de ponderar esses dados tendo em vista a perspectiva mais descritiva; um outro grupo de pesquisadores voltava-
população da época). Outro ponto bastante intrigante, especialmen- e para uma perspectiva mais crítica, buscando explicitar as deterrni-
te no caso brasileiro, é a relação ambígua do esporte com a educa- nações socioeconômicas da história do esporte e da educação física. Por
ção. De um lado, associando-o às sociedades disciplinadoras e au- último, tomava corpo um conjunto de abordagens exteriores à área de
toritárias, o que se verifica claramente no período do Estado Novo, ducação física, apontando para questões tais como controle social,
a questão aí era ocupar o tempo livre dos jovens. De outro lado, ~ rrnação da nacionalidade, urbanização e modernidade. Esta tendên-
colocando-o como elemento lúdico e socializador, mesmo no nível i. contribuiria fortemente para uma maior qualificação da áre 8
do Estado, os programas para tirar crianças da rua e recuperar me- Do ponto de vista da bibliografia e tematização do assunto, estas eram
nores e adolescentes estão pipocando nas últimas décadas", No sé- I • r ferências em torno das quais as mais relevantes pesquisas produzi-
~lo XIX as escolas deram o arranque fundamental para a popula- dos no Brasil se articulavam até então. Em outubro de 1993, pesquisa-
dor s da história do esporte, lazer e da educação física no Brasil reuni-
7 Para uma organização da discussão sobre programas que utilizam o esporte e o trabalho, ver
Zaluar (1996). especialmente os capítulos 1.2.3 e 4.
H 1'01'0 um maior detalhamento dessas tendências, ver Gebara (1989),
16 ESPORTE HISTORIA DO ESPORTE 17

ram-se pela primeira vez na Faculdade de Educação Física (FEF) da porte. Vejamos como tem evoluído esta discussão no interior do
UNICAMp9Essa
• primeira reunião foi organizada pelo Grupo de História Grupo de História. S
do Esporte, Lazer e Educação Física, naquele momento centrado no De- A questão da possível autonomia da história do esporte, de iní-
partamento de Estudos do Lazer da FEF/UNICAMP. cio, recoloca sua relação com a área de educação física. Freqüentemen-
Não obstante termos já um volume sugestivo de análises em torno te nos defrontamos, inclusive na historiografia mais tradicional inglesa
da produção acadêmica em história do esporte, lazer e educação física e norte-americana, com argumentos que tentam compreender o es-
no Brasil, como se pode ver com base em um rápido manuseio das co- porte como sendo um elemento constitutivo da educação física. Na
letâneas desses encontros, gostaria de recuperar para esta discussão medida em que qualquer atividade física na qual o jogo esteja presente
uma questão central nos debates do Grupo de História, que me parece pode ser definida como esporte, este "anacronismo essencial" confun-
não ter, ainda, recebido a devida aten-ção dos pesquisadores de outros de as práticas físicas lúdicas das sociedades não-capitalistas, com um
núcleos. Trata-se do fenômeno da esportivização das práticas corpo- fenômeno dotado de uma lógica própria, e, aí sim, com uma história
rais e da invenção de jogos esportivos; de maneira mais didática para a também específica. Buscar as origens do futebol em um amontoado
nossa realidade, poderíamos dizer, da constituição do esporte moder- de práticas, ainda que formalmente impliquem chutar algo parecido
no no Brasil. Nesta medida, gostaria de aprofundar a contribuição teó- com uma bola, é sem dúvida arbitrário. Não pensem que estou falan-
rica de Pierre Bourdieu e Norbert Elias ao desenvolvimento dos traba- do de algo enigmático; afinal de contas, não são poucos os professo-
lhos do Grupo de História", aproveitando esta oportunidade para res de faculdades de educação física, especialmente da disciplina fu-
socializar as discussões que temos desenvolvido nos últimos anos. tebol, que afirmam - e o que é pior, apoiados em bibliografia
------Bourdieu (1983; 1990) chamou a atenção para algumas questões realmente existente - que a origem desta modalidade está ligada a um
centrais em relação ao problema que nos propusemos discutir. Vou jogo no qual os contendores chutavam os crânios dos adversários. Ob-
<, sumarizá-Ias: 1) a relativa autonomia da história do esporte; 2) a servem que nossa questão central, a esportivização das práticas cor-
produção da demanda esportiva, quer seja enquanto prática ou en- porais, é, arbitrariamente, reduzida a uma verdade genérica univer-
~uanto espetáculo; e 3) a constituição de uma ciência social do es- sal. Pouco importa que muitas coisas tenham sido chutadas em tempos
espaços diferentes. A questão não respondida, ou sequer pensada, é
9 Algumas análises desse primeiro encontro foram já formuladas, entre elas destacam-se as de justamente saber por que aqueles chutes, dados na Inglaterra a partir
Freitas Iunior (1995, 1996). Manuseando as coletâneas dos sete encontros realizados até agora, de meados do século XIX, estes sim, tornaram-se universais, "ditaram
o leitor encontrará outros textos de análise historiográfica que fazem referência marginal, mas
importante, ao I Encontro; é o caso de Victor Andrade de Melo e Amarílio Ferreira Neto. a regras" para ser mais preciso.
10 Vou me abster de indicar os trabalhos de mestrado e doutorado que, de alguma maneira, foram É neste sentido que, ao pretender fundar uma história do esporte, es-
elaborados com inspiração nestes autores. É uma maneira de não amarrar meu próprio racio-
cínio às contribuições pessoais de muitos ex-orientandos. Contudo, para possibilitar melhor
tomos realmente falando da existência de um "campo esportivo", campo
acompanhamento de minha argumentação, basta verificar os trabalhos de Mara Lucia Cristan, .ste em que se defrontam múltiplos agentes: técnicos, médicos, jornalis-
Marcelo Weishaupt Proni, Luiz Alberto Pilatti, Ricardo Lucena, Fernando Mezzadri, Edson
I ,jogadores, juízes, dirigentes, aficionados etc. Aqui é possível articular
Valente, Verter Paes Cavalcanti, Ney Alberto Salles Filho, Maria Izabel Kowalski e, mais recente-
mente, Edilson Fernandes de Souza, Kleber Sacramento Maciel, Wanderley Marchi [únior, Es- 111 gunda questão proposta, a existência de uma demanda esportiva am-
ses pesquisadores têm, de maneira mais enfática, aprofundado a discussão na direção das pre-
missas teóricas apontadas.
pln, com a especificidade destes objetos (esporte, lazer e educação física).
18 ESPORTE HISTOR1A DO ESPORTE 19

Quando fazemos ou pensamos em intervenções pedagógicas na nossos tempos. Não somos mais uma sociedade capitalista gue se
motricidade humana, pensamos sobretudo nas questões relativas às explica apenas pela produção e circulação de mercadorias". eblen)
práticas corporais, quer sejam esportivas, quer sejam brincadeiras, (1965) já no século XIX indicava a natureza desta problemãtical" O
quer sejam exercícios ginásticos. Pois bem, se vamos às áreas de co- consumo, no século XX, é central para a compreensão de inúmeros
nhecimento que nos permitem teorizar sobre esta matéria (história, fenômenos, especialmente relativos aos espetáculos esportivos e aos
sociologia, antropologia) e se temos entranhada esta dimensão da estilos de vida. Vejamos esta questão em termos práticos, justamente
atividade física, na qual a sua prática é o elemento encaminhador de para apontar a complexidade das relações entre o pedagógico e o con-
nosso raciocínio, cometemos um equívoco perigoso. Creio mesmo que sumo.
a chamada "crise da educação física" é fruto desse equívoco. Simples- Um dedicado professor de educação física, em qualquer escola bra-
mente nos esquecemos de que, do ponto de vista do esporte, mais ni- sileira, estará empenhado em desenvolver valores nos educandos, va-
\ tidamente exemplificado com a NBA, ou mesmo na ótica do lazer, lores que se definem eticamente, quando não politicamente; trata-se
como por exemplo com os parques temáticos, o aspecto condutor de de construir um processo de aprendizagem participativo, crítico e
nosso raciocínio deve ser o consumo, que se verifica claramente a socializante. Em suma, propomos até mesmo uma educação física
partir da espetacularização dessas atividades 11. adjetivada (revolucionária e/ou transformadora, por exemplo). O
Isso significa que, sob a ótica da educação física, ao privilegiar como desconfiado leitor de Bourdieu diria: Não estaríamos, de fato, apesar
referência teórica a prática da atividade física, na análise do esporte e do de nossas intenções, preparando consumidores para ampliar esta de-
lazer, tornou-se inevitável um reducionismo imobilizado r e asfixiante. manda esportiva?
Que profissionais de educação física pensem o esporte, o lazer, o jogo, a Esta simples questão nos faz observar com mais cuidado a dificul-
brincadeira como conteúdos possíveis de estratégias pedagógicas, pare- dade de explicar, ou mesmo compreender, a educação física quando
ce claro e inquestionável. O que se está questionando aqui é que, enquanto entramos a análise na prática de atividades, quer denominemos essa
pesquisadores, não podemos ter o mesmo comportamento de um pro- prática de educativa, participativa ou de rendimento. É o consumo do
fissional que intervém pedagogicamente. Para pesquisadores, objetos spetáculo e da indústria do esporte que parecem permitir melhor
dotados de especificidade, como o esporte e o lazer, devem ser construídos compreender estes fenômenos. A questão nova a colocar refere-se ao
na sua dimensão e peculiaridade, para além da sua dimensão pedagógi- que é efetivamente mais representativo na massificação e democrati-
ca. Não podem ser, portanto, previamente delimitados na perspectiva da zação de atividades lúdico-esportivas: defender sua prática pela po-
educação física, o que se caracteriza como sendo um reducionismo; de pulação, ou também, e talvez hoje de maneira mais evidente, defen-
fato, estamos reduzindo fenômenos autônomos e de amplitude crescente.
Uma outra conseqüência que se pode extrair destas formulações 12 Para indicações mais detalhadas, inclusive com indicações bibliográficas, ver Giovanni; Gebara
& Prorii (1994). Para manter o foco em Bourdieu, ver sobre esta questão a conferência de [ohn
de Bourdieu é justamente a radicalização do "consumo de massas" em Beasley-Murray proferida no ciclo "Píerre Bourdieu: Fieldwork in Philosophy" com o tema
value and capital in Bourdieu and Marx, Duke University, 1995.
I I Trata-se de um texto pouco trabalhado no Brasil. Para indicações iniciais ver a Coletânea do III
II A este respeito, a tese de doutorado de Marcelo Weishaupt Proni (1998) é leitura obrigatória. E Encontro Nacional de História do Esporte, Lazer e Educação Física, Curitiba, UFPR, 1995.
a de Luiz Alberto Pilatti (2000) constitui indicação relevante. Paulo de Salles Oliveira e Cacilda P.Widmer exploram o estudo de Veblen.
20 ESPORTE HISTÓRIA DO ESPORTE 21

der o direito de a população "ver" os grandes espetáculos esportivos termos práticos: a violência imbricada no cotidiano dos guerreiros
que estão sendo monopolizados pelas indústrias do entretenimento? cede lugar ao debate e ao refinamento das atitudes dos cortesãos. A
Sem dúvida estamos indicando novos temas e novas abordagens de solução dos conflitos e o controle da violência passam a ser encami-
pesquisa. nhados de formas distintivas em relação ao uso imediato e explícito
Avançando na direção da questão nuclear, a da esportivização, da força/violência. Longe de constituírem uma antítese, violência e
Bourdieu (1983, p. 138) oferece-nos o gancho para o pensamento de Elias: civilização são processos complementares, são formas específicas de
interdependência. A civilização dependerá do estágio de controle da
Isto leva ao questionamento de todos os estudos que, por um ana- violência, do monopólio dos impostos que permitem constituir
cronismo essencial, aproximam os jogos das sociedades pré-capitalis- uma força suficientemente efetiva para impor a pacificação interna.
tas européias ou não, tratados erroneamente como práticas pré-espor- Ou seja, o crescimento da economia e o estabelecimento do Estado
tivas, aos esportes propriamente ditos cuja aparição é contemporânea à jogam um papel fundamental nesse processo.
constituição de um campo de produção de "produtos esportivos". Esta Concentrando a síntese da teoria de Elias nos aspectos mais cen-
comparação só tem fundamento quando, indo exatamente na direção trais para o desenvolvimento deste argumento, podemos tornar mais
inversa da busca das "origens", tem como objetivo, como em Norbert clara a compreensão à medida que observamos como são sistemati-
Elias, apreender a especificidade da prática propriamente esportiva, ou zados os controles, através dos quais se torna possível balizar o está-
mais precisamente, de determinar como alguns exercícios físicos pré- gio de desenvolvimento da sociedade. Esse estágio pode ser determi-
existentes passaram a receber um significado e uma função radicalmente nado com base em uma "tríade de controles básicos", ou seja:
novos ...
1) centralização política, administrativa e controle da paz inter-
Para aprofundar a posição de Elias sobre a questão da esportivi- na (surgimento dos Estados);
zação, e sobre o esporte enquanto objeto de análise acadêmica, temos 2) um processo de democratização, em razão do aumento das ca-
que necessariamente agregar os trabalhos de Eric Dunning (EUAS & deias de interdependência, especialmente pelo nivelamento e
DUNNING,1986). O ponto de partida para compreender as posições pela democratização funcional do exercício do poder;
destes autores é assumir que as formas e os significados do esporte 3) refinamento das condutas e crescente auto controle nas relações
moderno se desenvolveram como parte do processo civilizador!'. sociais e pessoais. Neste sentido, há um evidente aumento da
O ponto central no qual se apóia a teoria do processo civiliza- consciência (superego) na regulação do comportamento.
dor é a existência de um processo "cego" (não planejado) e empiri-
camente evidente. Trata-se do processo de "cortenização" e/ou par- Os esportes modernos desenvolveram-se, então, neste quadro de
lamentarização dos guerreiros medievais; isso equivale a dizer em referências moldado por uma teoria que pretende tratar as pessoas em
sociedade de maneira "global", possibilitando a integração do traba-
lho acadêmico, sem a fragmentação disciplinar. Algumas conclusões
14 Ver também a conferência de Eric Dunning, "Football in the civilizing process'; no V Encontro
Nacional de História do Esporte, Lazer e Educação Física, UFAL, Maceió, 1997. possíveis na direção do nosso eixo temático seriam:
22 ESPORTE HISTORIA DO ESPORTE 23

a) Os jogos existentes anteriormente à formação dos Estados mo- Dunning e Elias aprofundaram a questão específica do esporte e
dernos, dada a ausência de controles estáveis e centralizados, do lazer, indicando que, à medida que a processo civilizador avança-
eram menos civilizados, ou, dito de outra forma, mais sujeitos va, as práticas esportivas e de lazer tornavam-se também mais con-
a práticas sistemáticas de violência. Esta circunstância impe- troladas, menos violentas e mais regradas. Neste sentido, esporte e
diria a generalização de qualquer sistema de regras para além civilização são processos encapsulados.
das fronteiras de uma cidade. Sintetizando algumas conclusões de Eric Dunning (1997, pp. 36-
b) Esse mesmo processo envolveu mudanças, mais ou menos con- 37) relativas às contribuições da sociologia configuracional aos estu-
comitantes, na estrutura da personalidade das pessoas, tanto dos do esporte e do lazer, teríamos pelo menos quatro vantagens evi-
quanto em seus habitus. Crescentemente as pessoas passavam dentes na postura dos configuracionistas:
a divertir-se mais, participando de atividades físicas "regradas",
ao contrário de seus antepassados medievais, que se divertiam 1) coloca as emoções no centro da abordagem teórica;
com a prática da violência nas atividades físicas. 2) desenvolve seus conceitos, hipóteses e teorias no cruzamento
do empírico e do teórico, sem priorizar uma das vertentes;
Em resumo, uma sociedade mais civilizada implica um conjunto de 3) busca evitar a simplificação da análise dualista do tipo "traba-
rotinas, levando multidões a "constrangimentos" impostos por contro- lho" e "lazer" ou "corpo" e "mente";
les internos e externos. Esta colocação não é exclusiva de Elias e 4) e desenvolve sua abordagem afastando-se das pressões de mo-
Dunning; o que é original nestes autores é a forma pela qual eles enca- mento, paixões, ansiedades e preocupações. É importante
minham a discussão, propondo a possibilidade da existência de tensões alertar que, tendo estes objetivos, o autor reconhece que existe
prazerosas. É certamente um caminho diferente do tomado por Freud e um longo trabalho a ser feito, tanto no que se refere à pesquisa
Marcuse ". É possível concluir, afirmando que os aspectos centrais da empírica, quanto à busca de refinamentos na interpretação
temática de Elias, ao referir-se aos esportes e ao lazer, são: a violência, seu teórica. De qualquer maneira, julgo fundamental atentar para
controle e a agressividade. O enfoque é social, no sentido de que nenhum a recusa dos configuracionistas de construírem suas análises
destes fatores pode ser explicado por forças inatas. É o processo civiliza- com base em teorizações apriorísticas, ou seja, trabalhar os te-
dor, são as figurações sociais interdependentes 16, e não questões genéti- mas tendo em vista leituras e conclusões de autores proeminen-
cas ou psicológicas, que fornecem a chave para a compreensão destas tes (Marx, Gramsci, Foucault, Baudrillard, Bourdieu e o pró-
questões. O esporte e o lazer têm, nesta medida, estreita conexão com os prio Elias). O propósito é centrar o debate em pesquisas teori-
processos de parlamentarização e com o controle da violência. camente orientadas, dando proeminência aos fenômenos em-
. piricamente observados do mundo social.

15 Esta mesma questão. de resto não resolvida.foi tratada por Freud em O mal-estar da civilização
e por Marcuse em Eros e civilização. Tanto Freud quanto Marcuse, este em uma perspectiva
Há ainda uma sugestão dos configuracionistas que merece aten-
marxista, tratam os problemas da civilização na direção do excesso repressivo. çr o, trata-se da observação segundo a qual as reações emocionais têm
16 Para compreender os conceitos "figurações" e "interdependência"ver Elias (1969). um papel central no esporte e no lazer, isso porque desempenham fun-
24 ESPORTE HISTÓRIA DO ESPORTE 25

ções desrotinizadoras. As rotinas corporificam práticas cotidianas É decorrência natural das formulações de Elias a percepção de que
seguras, neste sentido as práticas de lazer podem trazer riscos contro- historiador do esporte e do lazer tem um caminho de entrada es-
lados e processos de ruptura de rotinas crescentemente verificáveis na truturalmente legítimo no debate específico dos historiadores profis-
sociedade industrial. Conforme Elias (1995, p. 71) esclarece: sionais. A história do esporte e do lazer é a história do processo de
construção do comportamento e das instituições humanas, tanto
Se perguntarmos de que modo é que se animam os sentimentos, quanto de suas contradições - afinal, é bom não esquecer que os re-
como é que a excitação é favorecida pelas atividades de lazer, descobre- tornos à violência, tanto no esporte (torcidas organizadas) quanto na
se que isso é dinamizado, habitualmente, por meio da criação de tensões. política (nazismo), são processos descivilizadores. Em todos os casos,
Perigo imaginário, medo ou prazer mim ético, tristeza e alegria são pro- fundamental nunca perder de vista uma perspectiva de longa dura-
duzidos e possivelmente resolvidos no quadro dos divertimentos. o. Tais processos não são marcados por rupturas, mas por maior
ntinuidade ou descontinuidade. E, em qualquer estudo dessa natu-
É evidente que, se a atividade de lazer se tornar também uma roti- I' za, a pluralidade das relações entre seres humanos é o universo pri-
na, ela perderá a capacidade de provocar excitação. Este é um processo vilegiado de análise.
vivido de ganhos e perdas, é um processo no qual balanceamos nossas Tendo em vista estas colocações sintéticas a respeito da contribui-
opções no cotidiano, não é apenas sublimatório ou compensador. , O de Elias para uma nova tematização e periodização da história do
Neste campo relativamente novo, apontar uma direção em torno porte e do lazer, e sem desconhecer aspectos não satisfatoriamente
da qual se possa refletir e buscar alternativas é um avanço substanci- t rabalhados, dada a natureza das preocupações de Elias 18, é necessá-
al. Neste sentido, ao colocar a questão mimética do lazer, indicando I'i apontar algumas questões específicas que emergem ao pensarmos
como questão central não a libertação das tensões, ou os mecanismos Ipossibilidade de aplicação de sua teoria em um mundo colonial.
compensatórios tão enfatizados pelos "frankfurtianos", mas sim o Afinal, qual o significado de processos civilizadores e descivilizadores
desenvolvimento de uma tensão agradável, de uma "excitação", como r ra do contexto europeu? Dito de outra maneira, sendo o processo
o mecanismo central da satisfação no esporte/lazer é um avanço con- ivilizador um fenômeno empiricamente centrado no estudo da his-
siderável. Os escritos de Elias e Dunning apontaram para uma maior t ria da Europa, especialmente da França, Inglaterra e Alemanha, se-
complexidade destas questões; não são fenômenos puramente bioló- ria, por isso mesmo, a construção teórica aí embasada, eurocêntrica?
gicos que explicam este conceito mais dinâmico das tensões. mo pensar a "importação" de técnicas esportivas, regras e sistemas
Este processo de esportivização ocorreria inicialmente na Ingla- or anizacionais, operadas por marinheiros, engenheiros e estudantes
terra, justamente dada a forma pela qual lá se deu a formação do Es- in leses em países como o Brasil? Como já apontou Edgar De Decca
tado, implicando um processo de autonomização das classes médias (I 97, p. 12) de maneira polêmica:
e altas em relação ao Estado".

unlversalização) dos esportes modernos e as tensas definições da burguesia em acelerada ex-


17 Para uma análise penetrante da estrutura de classes inglesa nesse momento, ver Hobsbawm pansão. como forma de identificar o "pertencimento" a certos estratos sociais.
(1988), capítulos VII e VIII, onde ele traça um criterioso e criativo paralelo entre a explosão (e 111 V r a respeito Dunning; Murphy & Waddington (1992).

)
26 ESPORTE HISTORIA DO ESPORTE 27

Não basta, portanto, absorver Norbert Elias apenas naquilo que se ria do esporte, do lazer e da educação física, a abertura de novas refe-
rências teóricas é indispensável.
refere às suas proposições teóricas. Compensa muito mais acompanhar
os procedimentos de análise de suas fontes para melhor entender de Por fim, cabe sempre ressaltar que a grande contribuição do his-
que maneira e a partir de que pressupostos ele selecionou os materiais toriador continua sendo a construção de suas fontes, independente-
necessários para sua pesquisa histórica. Aliás, é isto que tem sido valo- mente das opções metodológicas. Tarefa repleta de dificuldades, es-
rizado na recente descoberta deste autor. Visto do ponto de vista socio- pecialmente porque outras áreas de conhecimento histórico têm já um
lógico, seu modelo teórico torna-se extremamente formalista, mas ao avançado tratamento de fontes, tanto quanto um trabalho de ternati-
ser confrontado com o trabalho das fontes ele ganha uma dimensão zação consistente e diversificado. A historiografia que está sendo
nova. [...] construída em torno dos esportes, do lazer e da educação física está
Aos historiadores do esporte e do lazer cabe a tarefa difícil de dar justamente enfrentando esta questão: temas, objetos de análise e fon-
e s, como construí-Ios?
visibilidade e reconhecimento a esta área de pesquisa histórica. Este
trabalho exige muito investimento de formação profissional, uma vez Se é verdade que o caminho do historiador é demarcado pela exis-
que a configuração dos historiadores não tem dado muita atenção aos tência e produção do documento, pelo diálogo com as fontes, é tam-
temas do esporte e do fazer. Estes temas talvez ainda sejam tabu entre bém verdade que a confiança ilimitada no documento nos conduz a
li lUa posição enganosa. Afinal, quem sabe qual é o melhor documen-
historiadores formados, em sua maioria, dentro da tradição marxista,
que deu ênfase histórica à atividade do trabalho e viu o esporte e o lazer t ? Estão os fatos mais importantes mais bem documentados? Qual o
em suas conotações negativas do não trabalho. volume e a qualidade dos documentos que exigimos para estabelecer
nosso argumento?
Esta parece ser uma questão fundamental no interior da historio- Ser historiador implica, mais do que dialogar com o documento,
grafia da educação física em especial, do esporte e do lazer no Brasil. mpreender o documento e, algumas vezes, construir evidências da
Quer seja no interior de um modelo teórico ortodoxo, no qual a com- 1rópria ausência de documentos. Ser historiador implica, ainda, a
pra de força de trabalho define a fronteira entre o bem e o mal, quer apacidade e o engenho de dialogar, compreender e construir suas
~ ntes.
seja no modelo mais sofisticado, no qual as atividades físicas têm um
caráter compensatório, para repor a força de trabalho despendida, as
análises sobre educação física, esporte e lazer, no Brasil, têm caminha-
~ EFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
do afirmando a centralidade da categoria trabalho.
No que se refere às pesquisas individuais, diferentes autores de-
vem tomar suas perspectivas de análise e seguir seu caminho; ocorre HOUROIEU,.P.(I ~83): "Como é possível ser esportivo?': ln: BOURDIEU, P.Questões
de SOCIOlogia. RIO de Janeiro, Marco Zero, pp. 137-153.
que, no nível de um grupo de pesquisa, a imposição de uma categoria
---.-. (1:90). "Programa para uma sociologia do esporte". In: BOURDIEU,
de análise central pode empobrecer e comprometer o desenvolvimento
P. COIsas ditas. São Paulo, Brasiliense.
de pesquisas criativas; neste sentido, enquanto grupo de pesquisa, res-
LANTELO~, H.,,& ~URRAY, S. (1993). "Globalization and Sport: the debate
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2
BROHM E A ORGANIZAÇÃO
CAPITALISTA DO ESPORTE

Marcelo Weishaupt Proni

OCiologie politique du sport é uma das principais obras de Iean-


S Marie Brohm'. Foi publicada na França, em 1976, num momen-
I m que amadureciam as reflexões sobre os objetivos e conteúdos
d,1 ducação física e sobre as dimensões sociopolíticas do esporte. De-
h.uia-se a instauração de uma crise dos valores esportivos, a qual es-
(ur ia associada a uma série de desvios ideológicos: a escravidão do
111 ta, a obsessão pela vitória a qualquer preço, a utilizaçãopolítica
dos ventos, a prioridade para a formação de campeões, a comercia-
llzução predatória, a influência crescente da publicidade. Para o au-
1111, esses desvios refletiam a ambientação do esporte a um mundo

Utilizamos uma versão espanhola, Sociología política dei deporte, publicada em 1982. Todas as
It ções feitas aqui se referem ao texto em espanhol, com tradução livre para o português.
32 ESPORTE BROHM E A ORGANIZAÇÃO CAPITALISTA DO ESPORTE 33

organizado em torno do capitalismo industrial (que se expressa na li rbano-industrial; mencionamos a vocação dos meios de comunica-
ênfase no máximo rendimento, na especialização do trabalho, no ~. para alimentar a construção de mitos esportivos; e tratamos da
movimento corporal robotizado) e a utilização do esporte como apa- utilização do esporte como aparelho ideológico. Ao final, tecemos
relho ideológico do Estado (que se manifesta na transformação do rl uns comentários sobre a pertinência e as limitações de estudar o
espetáculo em meio de distração das massas, desviando os homens I orte com base nesse modelo de análise, procurando assim delimi-
adultos de uma participação política consciente). O movimento olím- °
tnr âmbito da contribuição de Brohm para a sociologia do esporte,
pico internacional era visto, dessa perspectiva, como uma instituição fl zemos algumas considerações adicionais sobre as razões do autor
altamente conservadora, um gigantesco empreendimento de despo- I Ira se opor ao avanço da lógica capitalista, ou melhor, dos princí-
litização, baseado numa ideologia imperialista reacionária. pi s mercantis sobre a organização esportiva.
Essa crítica ao papel social do esporte de alto rendimento já vi-
nha sendo consolidada pela escola alemã, em especial por autores
como Bero Rigauer, Gerhard Vinnai e Hans Lenk, que foram além da S FUNDAMENTOS DA SOCIOLOGIA POLÍTICA DO ESPORTE
denúncia ideológica e indicaram a necessidade de uma crítica mais
profunda e fecunda. Apesar das diferenças de enfoque e de ênfase, Brohm define seu livro como um ensaio de sociologia geral do es-
pode-se dizer que a críticas feitas por Rigauer (1969), Vinnai (1970) p rt ,que procura hierarquizar e examinar as categorias centrais do
e Lenk (1972) estão contidas ou referidas no estudo de Brohm '. Es- I t ma esportivo, as quais devem permitir entender sua estrutura de
colhemos a abordagem de Brohm porque, além de ser consistente e Iuncionamento e seu desenvolvimento histórico contraditório. Nes-
bem articulada, teve o propósito de oferecer um modelo sociológico que I1 S ção, procuramos apresentar os fundamentos metodológicos que

pretende dar conta de explicar a relação di aiética entre esporte e so- Ilst ntam a construção de uma teoria geral do esporte.
ciedade. Em razão da natureza polissêmica do seu objeto de estudo, da mul-
É nosso interesse apresentar tal modelo e discutir em que medida IiPIi idade de questões a serem examinadas e da dificuldade de dis-
as suas categorias de análise podem contribuir para o estudo do es- 1'01" de uma linguagem conceitual suficientemente abrangente, o au-
porte contemporâneo. Ao longo do capítulo, a exposição procura se- 1111 S vê obrigado a constituir uma "rede de conceitos" (cap. 1, p. 22)

guir um percurso bastante didático: indicamos os fundamentos do JlIIIlOda em diferentes contribuições teóricas. Sua opção é claramen-
modelo de Brohm; procuramos esclarecer como ele entende o nasci- I li r buscar uma fundamentação teórica em Marx: trata o esporte
mento do esporte moderno e sua natureza sistêmica; explicamos qual 11111 uma totalidade, cuja complexidade só pode ser desvendada por
a sua concepção sobre o funcionamento e a lógica do sistema espor- IlIt de uma "síntese de abstrações" e cuja evolução é guiada pelas
tivo; passamos pela discussão das funções do esporte na sociedade 11 ntradições que lhe são inerentes. Também se inspira no modelo
turalista de Lévy-Strauss, ao estudar o sistema esportivo em fun-
I/li
I unnrnento, privilegiando as propriedades e os princípios que dão co-
2 Brohm cita especialmente os seguintes estudos: B. Rigauer, SpOTt und arbeit [Esporte e traba- lO movimento a essa "armação conceitual". Em sua análise insti-
lho]; G. Vinnai, Fussballsport ais ideologie [Futebol como ideologia]; e H. Lenk. Leistungssport:
ideologie oder mythos! [Esporte de rendimento: ideologia ou mito?]. IIlt onal, na qual procura ordenar os entre cruzamentos das distintas

)
34 ESPORTE BROHM E A ORGANIZAÇÃO CAPITALISTA DO ESPORTE 35

esferas de ação social, concebe o sistema esportivo como uma cons- I mente a concorrência econômica e industrial". A partir dessa ótica,
trução teórica de "tipos ideais", conforme a linguagem de Weber. De -, acredita que seja possível compreender as condições que permiti-
qualquer modo, no que diz respeito à problemática e às hipóteses do " II'n a aparição do esporte moderno, o funcionamento e as estruturas
estudo, Brohm é fiel à sua formação marxista, procurando sempre li I instituição esportiva, assim como as instâncias que determinam
estabelecer um paralelo entre a mercantilização do esporte e a lógica 11 )s ibilidades de mudanças desse sistema.
de organização capitalista da sociedade, e recorrendo à definição de conceito de processo de produção esportivo visa a dar coerên-
ideologia de Althusser, especialmente ao examinar o esporte como interna à análise estrutural e, ao mesmo tempo, integrá-Ia em uma
"aparelho ideológico do Estado". Além disso, remete o leitor aos es- 101alidade mais ampla (o sistema de formação socioeconômico, o sis-
critos filosóficos de Freud para entender as funções psicossociais do I 111. de relações de produção, o sistema político etc.), permitindo
esporte, entre as quais a "sublimação da violência agressiva". Trata-se, I im pensar teoricamente a experiência concreta. Porém, ele ressal-
em suma, da proposição de um modelo de análise conceitualmente V I qu o modelo estrutural nunca corresponde à realidade como ela
abrangente mas não eclético, porque tem uma linha de interpretação 111 nifesta exteriormente, e que também as abstrações são produ-
bem definida. I I 11 istóricos.
O ponto de partida de Brohm é semelhante ao escolhido por Marx A noção de produção esportiva justifica-se na medida em que o
em O capital, no qual a constituição do sistema capitalista é explicada I orte, como forma abstrata da tecnologia corporal baseada no ren-
partindo de sua categoria mais elementar: a mercadoria. No caso, é o 1111 n to, inseriu-se organicamente nas formas lúdicas de exercícios
processo histórico que, ao desenvolver novas e complexas formas es- 111I1 titivos, convertendo-as
t em técnicas altamente racionalizadas e
portivas, produz a categoria mais simples - o esporte moderno - como I I t IZ . O princípio de rendimento surge então como o "motor do
expressão abstrata, pura e simples da prática esportiva diversificada I 1\1 esportivo" (cap. 1, p. 25), uma espécie de centro de gravidade
(cap. 1, pp. 26-27). O esporte antigo não pode ser compreendido em • 111 torno do qual se situam os demais elementos, um princípio pelo
sua forma elemental, embrionária, sem que haja a comparação com 1'1111 uiam as mudanças estruturais.
as formas evoluídas e modernas do esporte industrial capitalista e pós- -gundo Brohm, é tarefa da sociologia política do esporte inves-
capitalista. Somente com a forma histórica mais desenvolvida se con- I f. II I que há de específico nesse campo de estudo. Como dissemos,
verte o esporte em categoria abstrata e simples. O esporte aparece, • " I . ificidade do processo de produção esportivo está na finalida-
assim, como "continuidade histórica e descontinuidade capitalista- I ti I ntidades esportivas: produzir campeões, em quantidade e
industrial" (cap. 1, p. 29). (1.11 ln d , para o mercado ou para o olimpismo. Dessa ótica, a uni-
O sistema esportivo é analisado por Brohm sob o conceito de "pro- du I, 1" dutiva básica do sistema (o que seria a "empresa") é o clube
cesso de produção esportivo" (Introdução, p. 14), o qual se insere em I I" 11 IIv I que pode ser qualificado como "célula básica do tecido es-
um sistema de produção dado (capitalista) produzindo "mercadorias" 1".llvI "( ap. 1, p. 69). E pode-se antever que a produção esportiva
muito particulares: campeões, espetáculos, recordes, competições. Ao I 111 1I I próprias leis, originais, particulares, com sua respectiva "taxa
mesmo tempo, o esporte é estudado como uma instituição social ori- I. 1"lldlltividade". Mas, como esse produto evanescente não é essen-
ginal, ou melhor, "a instituição da competição física que reflete estri- I ti "r dução social, Brohm qualifica o sistema esportivo como
36 ESPORTE BROHM E A ORGANIZAÇÃO CAPITALISTA DO ESPORTE 37

"não-produtivo" - está inserido no tempo de lazer das pessoas - e do sporte como sendo a constituição progressiva de um sistema de
como "linearmente acumulativo" - não tem crises, e sua produtivi- 11 m nsões mundiais. Mas deve ficar claro que o seu propósito não é
dade é crescente (cap. 1, p. 67). r 'ver uma história do esporte, e sim extrair lições dessa história
Um dos problemas que uma sociologia política do esporte deve P li'] poder tecer uma teoria geral do esporte. Vejamos quais são os
examinar é a razão de todas as formas sociais avançadas ou em de- 1\ p' tos históricos destacados nessa leitura.
senvolvimento, independentemente do regime político' e das relações Embora o esporte seja, de acordo com o senso comum, um pro-
sociais internas, adotarem princípios similares no sistema esportivo - dlll( transistórico, Brohm afirma que é possível ver uma clara "rup-
ou melhor, a mesma "superestrutura esportiva", baseada na produção 1111' I J istórica" (cap. 2, p. 70) na aparição do esporte moderno. Para
de campeões e na maximização do rendimento. A hipótese central de , II I sporte moderno difere do antigo não apenas por introduzir a
Brohm a esse respeito é que "o sistema esportivo em vias de mundia- '1I1~ de recorde, mas fundamentalmente no que se refere aos respec-
lização é o reflexo da universalização e da extensão para todas as for- I VI) "cimentos sociais" (relação de produção escravista versus capi-
mações sociais do globo do modo de produção capitalista (era do I ti I I) e à concepção de corpo associada às tendências dominantes
imperalismo)" (cap. 1, p. 63), porque as categorias mercantis corres- 1111 I" pectivos modos de produção (metafísica do finito versus teo-
pondentes a esse modo de produção determinam as leis de funciona- , ,d( progresso linear e contínuo). O fato é que o esporte, tal como
mento do sistema esportivo. Portanto, no entendimento do autor, as IJ 111 ndemos, i) nasce com a sociedade industrial e é inseparável de
formações sociais do planeta tendem para o mesmo tipo de sistema "' struturas e funcionamento; ii) evolui estruturando-se e orga-
esportivo porque, apesar dos diferentes regimes políticos, têm as " ~ 111 I -se internamente de acordo com a evolução do capitalismo
mesmas relações de produção - conclusão bastante questionável, '" \11 I ti i I; e iii) assume forma e conteúdo que refletem essencialmen-
mesmo no plano de análise em que ele desenvolve sua argumentação. I I ti' logia burguesa. Vejamos como cada um destes aspectos é exa-
Outro problema a examinar, que emerge ao se estudar a gênese e 111 III1 I pelo autor.
o funcionamento do sistema esportivo, são as causas e os desdobra- ( ) un cimento do moderno esporte de competição está relaciona-
mentos de uma série de contradições, que dizem respeito à heteroge- I" I 1111\ U introdução da medição, em especial a cronometragem. Note-
neidade do sistema, ao caráter político das instituições e à desfigura- '1"1' u mensuração exata dos resultados e a comparação da
ção da ética esportiva. No limite, tais contradições poderiam implicar I , 1'/111/(/ nce dos atletas em diferentes ocasiões não faziam parte das
"o fim do esporte" (cap. 1, p. 65), isto é, a impossibilidade da compe- I I'"
1 1'1 i es atléticas antigas. O mesmo sucede com o treinamento,
tição esportiva como a entendemos. 1'1 f' onverteu num sistema científico de melhorar o desempenho
II 1111 11\ i mo. Por isso, na era industrial, o esporte transformou-se
II I "1111 rialização abstrata do rendimento corporal" (cap. I, p. 27).
o ADVENTO DO ESPORTE MODERNO 111 I im do esporte moderno, segundo Brohrn, deve ser buscada
\ 1111/ II 'rra, em consonância com a consolidação do modo de pro-
Para Brohrn, o sistema esportivo constituiu-se historicamente I, II1 tpitalista e de um Estado burguês. Em meados do século XVIII,
como uma totalidade estruturada, e só faz sentido pensar a história 1,1 111111\ interesse crescente pela velocidade, a obsessão pelo mensu-
BROHM E A ORGANIZAÇÃO CAPITALISTA DO ESPORTE 39
38 ESPORTE

rável e a perseguição de recordes. Em 1750 foi fundado o Jocke! Club. Ao analisar a constituição histórica do sistema esportivo mundial,
A aposta era a incitação à superação de marcas, mas as cor.ndas de Hrohm identifica quatro fatores responsáveis pelo desenvolvimento
cavalos também contribuíam para aperfeiçoar métodos de tremamen- I esporte moderno (cap. 2, pp. 76-80):
to sistemático. Pouco a pouco, essas características se transferiram para
a corrida a pé e para outras competições físicas, à medida que se de- (a) o aumento do tempo livre e o desenvolvimento do ócio (que
senvolveu o "esporte patrocinado", no qual a aristocracia desempe- ocupa um lugar de destaque na civilização do lazer);

nhou papel decisivo (cap. 2, p. 70). . (b) a universalização dos intercâmbios mediante os transportes e
A organização institucional das principais modalidades esportivas os meios de comunicação de massa (o esporte converte-se em
praticadas na Inglaterra só ocorreria bem depois, entre 1860 .e 1900: "mercadoria cultural" graças à sua natureza cosmopolita);
futebol (FootballAssociation, 1863), atletismo (Amateur Athletic Club, (c) a revolução técnico-científica (que reflete-se na busca da efi-
1866), natação (Amateur Metropolitan of Swim~i~g Asso.ciati.on; ciência corporal, nos novos materiais e equipamentos, inclu-
1869), rugby (Rugby FootbaU Association, 1871), ciclismo (Bicyclists sive no surgimento de novas modalidades esportivas);
Union, 1878), remo (Metropolitan Rowing Association, 1879), boxe (d) e a revolução democrático-burguesa e o enfrentamento das nações
(Amateur Boxing Association, 1884), hóquei (Hockey Associat~on, no plano internacional (isto é, a dinâmica político-ideológica).
1886), tênis de campo (Lawn Tennis Association, 1895) e esgnma
(Amateur Fencing Association, 1898). Dessa forma, foi na soc~edade sporte é, nesta perspectiva, um produto da sociedade burgue-
industrial da segunda metade do século XIX que floresceu o sistema 1\ II lustrial. Do ponto de vista histórico, ele é "o último sistema
institucional esportivo, o qual não tardaria em difundir-se para outros lIP\" \ trutural no qual floresce o direito burguês humanista e pro-
países, à medida que o modo de produção capitalista se instalou e se II l. Ia, que havia iniciado uma brilhante carreira no código comer-
consolidou no continente europeu e na América do Norte. I "I no direito civil" (cap. 3, p. 121), lembrando que no esporte bur-
Concomitantemente, o império britânico espalhou aos quatro II íurnbém se impõe a noção clássica de "sujeito jurídico". A idéia
ventos os esportes de sua aristocracia e de sua burguesia industrial. I, 11 rte é inconcebível em uma sociedade feudal agrária, pois exi-
Na visão de Brohm, a concordância na época da aparição de federa- \ lluidez do mercado, o livre intercâmbio de idéias, a liberdade
ções nacionais na Inglaterra, nos EUA e na Alemanha mostra o "ca~á- 111 li \ I s indivíduos. Portanto, o esporte nasce não só com o modo
ter estrutural do fato esportivo" (cap. 2, p. 74), ligado de maneira I, I" 1111 O capitalista, mas sobretudo com o estado nacional-demo-
indissolúvel ao modo de produção capitalista e à sua eclosão expan- I I li, Pruto da dinâmica da sociedade moderna, o esporte reduz as
sionista. Nessa era de imperialismo, os intercâmbios de mercadorias I III IS ntre as classes, multiplica os contatos, promete mobilida-
e de capital e os fluxos de trabalhadores tiveram como conseqüê~cia lIt tl vai progressivamente abolindo as discriminações sociais.
o intercâmbio de idéias e a difusão de práticas esportivas. Pode-se dlzer 111 1111111, esporte exige instituições "democráticas", e por isso se
que a história do esporte é, em última instância, a história. de su~ d~- 1111 \ [u lm iro nas duas grandes democracias: Inglaterra e EUA.
fusão progressiva por todo o planeta, especialmente a partir de finais I II gim s, assim, ao que Brohm acredita ser a essência do espor-
do século XIX e começo do século XX. 111( di 1110: é a ideologia democrática típica de uma sociedade que
40 ESPORTE
BROHM E A ORGANIZAÇÃO CAPITALISTA DO ESPORTE 41

precisa cultivar um ideal humanitário (liberdade, igualdade, fraterni- r to) e o esporte como relação específica do homem com seu corpo
dade) e, ao mesmo tempo, velar suas estruturas de classe e seus me- Ou com o mundo a sua volta; e iii) a visão positivista, de neutralidade,
canismos de dominação (cap. 2, pp. 80-81). Por isso, o autor enfatiza lU vê o esporte como subsistema autônomo corrompido (apropria-
o papel da instituição esportiva como estrutura simbólica e aparato I pela burguesia) mas que pode ser "salvo" do capitalismo.
ideológico do Estado. Na sua leitura, o esporte tornou-se necessário Para Brohm, uma definição sociológica apropriada não deve ser
para a reprodução ampliada das relações sociais de produção, inter- 11 rmativa e axiológica, nem parcial, e sim dialética e explicativa, en-
pretando o mesmo papel que a democracia republicana, a ideologia I -udendo o esporte como "fato social total". Por isso, em sua expla-
jurídica e o trabalho assalariado. 11 I ao, oferece uma definição de esporte que explicita as relações so-
l iais implicadas nesse campo e engloba quatro dimensões (cap. 1, pp.
t 43):
DEFINIÇÃO DE ESPORTE NA SOCIEDADE URBANO-
INDUSTRIAL I) sistema institucionalizado de práticas competitivas (com pre-
domínio do aspecto físico) delimitadas, reguladas, codificadas
Brohm argumenta que, quando se olha para a complexidade do e regulamentadas convencionalmente, cujo objetivo é designar
fenôme-no esportivo (o qual delimita um campo específico e original O melhor concorrente ou registrar o melhor desempenho;
no espectro das atividades físicas em geral), depara-se com a necessi- 2) sistema de competições físicas universalizadas aberto a todos,
dade de superar a polissemia do termo "esporte" e a dificuldade de que se estende no espaço e no tempo sociais, cujo objetivo é
percebê-Ia como uma totalidade integrada. No entendimento do au- medir e comparar o rendimento corporal humano;
tor, esporte é algo preciso, os quais exclui de seu domínio os fenôme- n sistema cultural dedicado a registrar o progresso corporal hu-
nos anexos os quais, embora parecidos, não fazem parte desse domí- mano (o positivismo institucionalizado do corpo), a institui-
nio (como as ginásticas, os jogos infantis etc.). E concebê-Io como uma ção devotada à progressão física continuada e à ininterrupta
totalidade não significa desconhecer a multiplicidade de suas facetas, busca de superação das façanhas;
porque "o esporte não é uma instituição unitária, senão uma unidade ) campo de relações sociais no qual impera o espírito novo, in-
diferenciada, altamente hierarquizada, na qual se entrecruzam distin- lustrial, a mentalidade do rendimento e do êxito.
tas instâncias e níveis de competição" (cap. 1, p. 38).
Uma segunda dificuldade deriva das concepções correntes do fe- 1'111 cardo com essa concepção sistêmica emergem as principais
nômeno esportivo, que acabam restringindo ou deturpando a com- \I I t rísticas do esporte moderno, isto é, seus elementos estrutu-
preensão do dinamismo e das especificidades do desenvolvimento da I 11111 : ) princípio do rendimento, b) sistema de hierarquização, c)
instituição esportiva. Ele critica particularmente três posições (cap. 1, It 111 pi de organização burocrática, e d) princípio de publicidade
pp. 57-62): i) a concepção idealista, supra-histórica, que busca uma ten- I 111 I irência. Tais características tornam o esporte o modelo ide-
dência esportiva instintiva no ser humano; ii) a atitude fenomenoló- I, I I'i o, da sociedade industrial (cujo eixo é o princípio do rendi-
gica, que vê o corpo como "encarnação" (modo de estar no mundo con- 111 1110 pl' dutivo e competitivo); explicam por que o esporte repro-
42 ESPORTE BROHM E A ORGANIZAÇÃO CAPITALISTA DO ESPORTE 43

duz, do ponto de vista da organização e da superestrutura ideológi- que se estrutura conforme um esquema piramidal no qual há uma
ca, o modelo burocrático de sociedade capitalista de Estado (legiti- hierarquia de poder e uma determinada escala de valores.
mando a reprodução de hierarquias sociais); e indicam que, por exi- O importante, do ponto de vista da lógica que preside o sistema, é
gir uma massa de espectadores, um público, sua função pedagógica que se verifica uma "homologia estrutural" entre a rivalidade mercantil
acaba sendo direcionada para reafirmar a existência da·"sociedade do capitalista e a competição esportiva, assim como entre a universaliza-
espetáculo". ção da forma mercantil e a da forma esportiva (cap. 3, pp. 98-101). Do
Como se pode notar, a definição do autor contempla predominan- mesmo modo que há uma racionalidade que organiza os mercados e
temente o esporte de alto rendimento (ou de "alta competição"), em a concorrência capitalista, há um quadro de normas que regulam a
detrimento do esporte de recreação (ou "esporte para todos") prati- competição esportiva. E como os princípios da sociedade capitalista
cado informalmente e numa perspectiva lúdica. A justificativa é que mercantil determinam estruturalmente o esporte, as categorias socioe-
o primeiro imprime seu caráter específico ao conjunto das práticas conômicas encontram correspondência nas categorias esportivas: a
esportivas, além de ser a matriz constitutiva de todo o sistema espor- especialização esportiva é produto da divisão social do trabalho (téc-
tivo. É como se houvesse uma relação dialética (ao mesmo tempo nica do corpo); a busca do máximo rendimento torna o recorde simi-
contraditória e complementar) entre o esporte praticado por uma elite lar a uma medida da capacidade produtiva almejada; o esporte é uma
de atletas de alto rendimento e o esporte recreativo acessível a uma corrida contra o relógio (o tempo capitalista); o espetáculo esportivo
massa de praticantes - relação na qual o primeiro é dominante. torna-se uma mercadoria; os esportistas perdem sua individualidade
(despersonalização e massificação). A produtividade do sistema espor-
tivo é medida pelo número de atletas internacionais produzidos e/ou
A LÓGICA CAPITALISTA-BURGUESA DE ORGANIZAÇÃO DO pelo número de medalhas obtidas.
SISTEMA ESPORTIVO Para Brohm, a competição é a relação dominante na instituição es-
portiva e o recorde é a "noção-chave da sociologia do esporte" (cap.-4,
Para entender como o sistema esportivo está organizado, suas p. 138) - como ocorre com a categoria valor na análise do sistema
normas e leis, é preciso começar explicando que se trata de uma ins- capitalista. A analogia é imediata: o recorde é uma espécie de "fetiche
tituição social. Na análise institucional, uma certa instituição é con- típico do esporte" (cap. 4, p. 140), o reflexo de uma sociedade basea-
siderada um entrecruzamento de instâncias de uma formação social, da na concorrência, na medição e comparação de desempenhos e na
o lugar em que se cruzam todos os níveis (econômico, político, ideo- classificação dos indivíduos.
lógico, cultural etc.). No caso do esporte, a dominação de uma ou Em contrapartida, há uma clara relação entre as categorias jurídi-
outra instância varia de acordo com suas diferentes vertentes: no es- cas que regulam o sistema esportivo e as categorias jurídicas da socie-
porte profissional predomina a instância econômica; no esporte mi- dade capitalista, isto é, uma correspondência com o conceito de direi-
litar, a política; no esporte olímpico, a ideológica; no esporte escolar to burguês moderno. Como mostra Marx, os sujeitos jurídicos são for-
e universitário, a pedagógica. O sistema esportivo constitui, então, malmente iguais perante o mercado. Analogamente, na competição es-
"uma totalidade articulada de instâncias dominantes" (cap. 3, p. 88), portiva as condições da concorrência devem ser equivalentes em ter-
44 ESPORTE BROHM E A ORGANIZAÇÃO CAPITALISTA DO ESPORTE 45

mos das normas. Porém, Brohm é obrigado a reconhecer que a analo- gos Olímpicos modernos. Ou seja, a lógica de organização esportiva traz
gia não é perfeita: no esporte o valor atribuído aos atletas (sujeitos es- embutida a contradição entre o discurso e a prática.
portivos) é mutável e inerentemente desigual, dependendo da sua
performance (atlética) em comparação com a de outros competidores.
O que importa destacar é que o esporte também se organiza segun- A FUNCIONALIDADE DA INSTITUIÇÃO ESPORTIVA
do os princípios do associativismo burguês e os fundamentos da de-
mocracia burguesa: "a igualdade formal dos sujeitos autônomos e a . Do ponto de vista sociológico, quando se pensa na função de uma
associação voluntária em uma célula de base representativa" (cap. 3, instituição, o que está em discussão é a satisfação de desejos ou de ne-
p. 127). Para que a esfera esportiva seja democrática, é preciso que a hi- cessidades socialmente partilhados. Alguns autores descrevem as "fun-
erarquia de poder seja aceita livremente e que haja a possibilidade de ções manifestas" do esporte (suprir a necessidade de exercício físico,
mobilidade para todos, pelo menos em tese. O esporte torna-se, assim, servir à aprendizagem de qualidades morais, ajudar na exaltação do
a projeção imaginária da "democracia burguesa formal", assentada na machismo e do nacionalismo). Outros enfatizam as "funções laten-
desigualdade e na hierarquização sociais, na possibilidade de promo- tes" (como compensar o estresse do trabalho, canalizar certas ener-
ção e no mérito individual como definido r do estatuto social. A lingua- gias agressivas, veicular uma mensagem ou propaganda, entre outras).
gem do esportista que triunfa é a do self-made man (cap. 3, p. 124). Há ainda aqueles que exaltam a função agonística do esporte, que dis-
Em suma, a introjeção da lógica capitalista e de seu corresponden- ciplina e satisfaz um dos instintos mais profundos do ser humano, o
te ideológico - a idéia burguesa de democracia - como princípios instinto combativo, que está relacionado à luta pela sobrevivência e
estruturantes do sistema esportivo confere um caráter contraditório ao impulso sexual. Embora não se oponha diretamente a essas abor-
entre a finalidade do sistema e o seu modo de funcionamento. A fina- dagens, a análise de Brohm procura examinar de que forma o esporte
lidade do esporte é a superação dos recordes, a materialização do ideal é funcional à reprodução do sistema social: "as funções do esporte lhe
positivista de progresso contínuo, o qual está sintetizado no lema que são ditadas objetivamente pelo lugar da instituição esportiva no edi-
embala os campeões: citius, altius, fortius ("mais rápido, mais alto, mais fício social como totalidade orgânica" (cap. 5, p. 152).
forte"). Ao mesmo tempo, é idealmente concebido como uma institui- A observação inicial que ele faz, nesse aspecto, é que o esporte não
ção de preparação do indivíduo para o exercício da cidadania. Mas, con- tem hoje as mesmas funções que tinha em seu nascimento. As funções
traditoriamente, os clubes esportivos carregam a marca de serem do esporte são múltiplas, contraditórias, complexas e evolutivas. Para
segregacionistas, seletivos e elitistas. O rendimento opera como meca- estudá-Ias, Brohm propõe que tais funções sejam classificadas de acordo
nismo de hierarquização, que se sobrepõe à divisão entre amadores e com as relações sociais em foco - econômicas, sociopolíticas e psicosso-
profissionais, reforçando uma escala de valores derivada do nível de ex- ciais -, acrescentando ainda uma atenção especial às funções mitológicas
celência dos competidores. E, embora a ideologia olímpica pregue a do esporte na cultura de massa (próxima seção). Como veremos, todas
igualdade e a fraternidade, assim como a autonomia, não são esses prin- ssas dimensões da análise concorrem para fundamentar a crítica do
cípios que predominam. Para Brohm, a participação (ou representação) autor ao papel ideológico do esporte moderno. Vejamos então como ele
de diferentes raças, etnias e nações não tem sido democrática nos [o- l rgumenta, passo a passo, começando pela dimensão econômica.

II
46 ESPORTE BROHM E A ORGANIZAÇÃO CAPITALISTA DO ESPORTE 47

Conforme foi dito, o esporte moderno nasce com o desenvolvi- ço se determina numa "bolsa de valores esportivos" (cap. 5, p. 181).
mento do capitalismo industrial, sendo imediatamente cercado pelo O esporte profissional tornou-se um cartel, um complexo monopo-
mercantilismo e pela busca de lucro (venda do espetáculo e apos- lista integrado aos monopólios capitalistas (em especial nos EUA). Mes-
tas). A comercialização capitalista do espetáculo esportivo compro- mo o esporte amador também já havia sido infectado pelos grupos
va que o objetivo do esporte de competição é o lucro, porque os comerciais. Constituiu-se uma grande indústria capitalista do espe-
organizadores e promotores se interessam pela rentabilidade econô- táculo esportivo de massa: o caráter massivo do esporte converteu-o
mica. Para Brohm, portanto, à medida que a circulação e a valoriza- em pólo atrativo para a publicidade; e a televisão tornou-se respon-
ção das mercadorias penetraram o âmbito do sistema esportivo, sável por ampliar o mercado esportivo em escala mundial. Dessa for-
inserindo-o nas malhas do sistema capitalista, o esporte convertem- ma, o esporte foi integrado no circuito de acumulação de capital.
se num "simples anexo funcional" desse sistema (cap. 5, p. 153). As- Em segundo lugar, temos a dimensão sociopolítica. A "politiza-
sim, à medida que as práticas esportivas se estruturam enquanto ção" do esporte é um fenômeno bastante conhecido, embora a ideo-
instituição integrada, o esporte moderno passa a obedecer a todas logia esportiva oficial afirme que o movimento olímpico é politica-
as leis que regem o sistema capitalista (acumulação, concentração, mente neutro. Entre as funções políticas destaca-se o papel diplomá-
circulação de capitais). tico do esporte, que se transformou no portador da ideologia da
No entendimento do autor, uma entidade esportiva é como uma coexistência pacífica entre superpotências, além de cumprir a tarefa
entidade comercial: deve obedecer às regras do comércio e da concor- de marcar a presença de uma nação no cenário internacional. Mas o
rência - o que, sabemos, implica perseguir resultados e adotar uma mais importante é que, nos momentos em que o prestígio internacio-
estratégia permanente de auto-superação, sob pena de perder a dis- nal é posto em jogo, o nacionalismo exacerba-se. Desse modo, ao sa-
puta. A busca de "competitividade" da empresa esportiva é, so bretu- tisfazer ou estimular o orgulho chauvinista, o esporte ajuda a criar
do, a busca de competitividade num mercado. É no mercado que se uma identidade nacional, porque o esporte está cheio de símbolos
estabelece uma hierarquia entre os competidores, a qual está associa- com os quais a coletividade se identifica (bandeiras, escudos, hinos,
da ao potencial de faturamento e à taxa de rentabilidade de cada heróis), funcionando como uma espécie de "espelho" para as massas
empresa. E a analogia completa-se com a produção dos "rendimen- ou como "emblema da sociedade" (cap. 6, pp. 197-199). Essa identi-
tos', porque a rentabilidade de uma empresa esportiva depende de um dade nacional aproxima as classes sociais, oprimidos e opressores, e
conjunto bastante objetivo de requisitos (cap. 5, pp. 167-168): exis- desempenha um papel importante como fator de coesão nacional.
tência de aparato material (capital fixo); possibilidade de aquisição de Brohm também destaca o "papel positivista" do esporte institu-
força de trabalho (capital humano); e capacidade de gerar valor (pro- cionalizado, que se baseia na adesão à ordem estabelecida e na legiti-
duzir mercadorias a serem consumidas). mação da estrutura de poder. O esporte-espetáculo, perfeitamente
A primeira função social do esporte, em suma, diz respeito às suas encenado nos estádios, oferece um modelo notável por meio do qual
aplicações econômicas. Para Brohm, o mercado esportivo não é dife- o sistema social se acha em condições de resolver suas terríveis con-
rente, nos seus fundamentos, de outros mercados. O esportista troca tradições de maneira organizada e eficaz - é o que ele chama de "o
sua força de trabalho por uma renda (salário, prêmios etc.), cujo pre- mito tecnocrático", que está baseado no critério do rendimento men-
48 ESPORTE BROHM E A ORGANIZAÇÃO CAPITALISTA DO ESPORTE 49

surável (cap. 6, p. 202). Em complemento, vale mencionar, essa fun- líbrio nervoso dos trabalhadores, como uma atividade compensató-
ção de coesão social exercida pelo esporte manifesta-se também no ria perante o trabalho industrial, que aprisiona a energia muscular
interior das empresas, ao dissimular os antagonismos e aumentar a agressiva. Porém, para Brohm, mais importante é entender o motivo
produtividade do trabalho. "O sonho [da classe] patronal é, eviden- de o esporte atuar como "válvula de segurança", ou melhor, como
temente, uma classe trabalhadora esportista, leal,fair play, que aceite "maquinaria de sublimação da agressividade" (cap. 7, p. 261). Citan-
as regras do jogo da exploração consentida pelo contrato de traba- do Freud, argumenta que o problema de como lidar com a violência
lho" (cap. 6, p. 225). impulsiva, física, é a grande questão da sociedade que descansa na su-
Portanto, o esporte colabora para a estabilização do sistema so- blimação dos impulsos. E isso interessa na medida em que, como ou-
cial, conduzindo a uma adesão popular à hegemonia da classe domi- tros estudiosos do tema já haviam dito, entre as características ineren-
nante e a uma despolitização das massas. O esporte torna-se, então, tes ao esporte estão não só a existência de regras para a disputa e sua
uma espécie de modelo de comportamento político. Mas o mais gra- qualidade catártica, mas também a "violência ritual" (cap. 7, p. 262),
ve, na visão crítica do autor, é que a instituição esportiva cria, com a uma violência codificada que não se efetiva. Dessa forma, o esporte é
ajuda dos meios de comunicação de massa, "um universo imbecil de percebido como uma disputa pacífica que suplanta a violência guer-
fatos esportivos distintos", um universo do inútil, da sátira, desvian- reira ao permitir descarregar a agressividade humana de maneira
do as massas dos "verdadeiros problemas". Ela opera como "ópio do controlada. A prioridade de Brohm, então, é entender melhor como
povo", como evasão das dificuldades cotidianas (cap. 6, p. 213). essa ação pacificadora ocorre no plano coletivo, em particular nos
Em terceiro lugar, temos a função psicossocial do esporte. Ao exa- grandes eventos esportivos, e como afeta a vida social.
minar a funcionalidade atribuída ao esporte no sistema capitalista Numa perspectiva freudiana, o espetáculo esportivo permite que
I (na sociedade urbano-industrial), Brohm confere grande importân- as paixões e os instintos inibidos se liberem sem perigo nem remor-
cia à função psicológica de canalização da energia social das massas, so. É uma espécie de terapêutica social ancorada na identificação dos
I de catarse e transmutação da energia psíquica agressiva. O espetácu- espectadores com os atletas e com o drama por eles representado. A
lo esportivo, visto por essa ótica, opera como uma "fábrica de senti- simbiose entre o público e os atletas estabelece uma comunhão de
mentos massivos", que permite a produção e a descarga de emoções sentimentos, uma "reciprocidade afetiva". A catarse coletiva produzi-
pela massa (cap. 7, p. 254). Em outras palavras, o esporte é um meio da permite aos indivíduos, movidos pela nostalgia da comunhão per-
institucionalizado e lícito que permite às massas descarregar seu ex- dida de uma vida comunitária, submergirem num "sentimento oceâ-
cesso de energia, esvaziar seu ressentimento, suas frustrações e suas nico"; ao mesmo tempo, aquele estado de ebulição efetiva supre a ne-
decepções. É a instituição moderna típica do desencadeamento rela- cessidade de experimentar emoções fortes e elementares, que como-
tivamente controlado dos afetos e das emoções das massas, funcio- vem a massa (cap. 7, pp. 257-258).
nando como um "grande catalisador coletivo de sentimentos" (cap. Não obstante, o outro lado da moeda i~pede que essa função
7, p. 256). libertária prevaleça na interpretação de Brohm. Os indivíduos, depri-
Outra perspectiva, adotada por muitos autores, é aquela que en- midos pelo trabalho industrial, têm de achar uma atividade que equi-
tende o esporte como meio de preservar a integridade física e o equi- libre suas vidas, um antídoto. Contudo, como o esporte retoma os
50 ESPORTE BROHM E A ORGANIZAÇÃO CAPITALISTA DO ESPORTE 51

princípios da produção capitalista, não é capaz de propiciar realmente Em primeiro lugar, o campeão é a referência absoluta, o cume da
essa compensação (OU cura). Ao contrário, o espetáculo esportivo pirâmide, o modelo a seguir, a vanguarda, a "pedra angular do siste-
induz a "regressão emocional da massa de espectadores" (bloqueio ma esportivo" (cap. 8, p. 283). O campeão é portador de uma efici-
afetivo indistinto e uniformização de sentimentos) e produz uma "re- ncia técnica que propicia o máximo rendimento. Ele é "o modelo de
gressão intelectual" (cretinização, superstição, falta de crítica). Além lima máquina industrial de produzir resultados", a encarnação do
disso, induz ou representa uma intensa sessão de "mimetismo social", progresso tecnológico na motricidade corporal (cap. 8, p. 287). Em
na medida em que os gestos dos esportistas são copiados, imitados e gundo lugar, o campeão é a mercadoria que assegura a promoção
assimilados (cap. 7, pp. 265-266). 10 espetáculo esportivo. Por isso, o sistema esportivo precisa produ-
zír novos campeões continuamente, consagrando-os nos meios de
municação de massa e, assim, assegurando seu valor social. Em ter-
A MITOLOGIA ESPORTIVA NOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO iro lugar, o campeão é o veículo da integração nacional, o media-
DE MASSA 10r entre as massas e o Estado, o porta-voz do prestígio do país no
nário internacional. "O amor libidinal pelos campeões - ele diz _
Brohm também procura explicar por que o esporte está profun- transferido ao Estado, do qual são representantes titulados" (cap. 8,
damente arraigado na cultura popular, sendo vivido como uma cul- I p. 289). Em quarto lugar, o campeão é um modelo de comporta-
tura cotidiana. Nesse ponto, a sua explanação dirige-se para os arqué- n ento. Ele é valorizado e se torna popular porque suas proezas são
tipos arcaicos que as práticas esportivas evocam, fazendo aflorar ele- autênticas e porque consegue ascender na hierarquia social. Em meio
mentos represados no inconsciente coletivo. Para ele, "o esporte é, I uma "crise de identificação social", os jovens em geral renegam a
I!II fundamentalmente, uma arqueologia de mitos': um conjunto de re- imagem do pai e se identificam com os astros do esporte, represen-
presentações coletivas, profanas, no qual o atleta encarna um ideal luntes da "ideologia do self-made man" (cap. 8, pp. 289-290). O cam-
I mítico (cap. 7, p. 229). p ão é um modelo de superação, um exemplo de que o esforço pes-
Em outras palavras, "o universo esportivo está povoado mitolo- al e o sofrimento podem ser recompensados. É "a personificação
gicamente de heróis" (cap. 8, p. 282). São os "super-homens moder- d sucesso" (cap. 8, p. 294).
nos", atletas capazes de ações heróicas - como lesse Owens, que der- O problema é que essa identificação com o ídolo não implica
rotou os nazistas na Olimpíada de 1936, ou Marc Spitz, que obteve lima liberação e sim "uma subordinação do indivíduo a uma
sete medalhas de ouro na natação nos Jogos Olímpicos de 1972. O cul- I ipologia conformista manipulada pelos meios de comunicação de
1
to a esses heróis e semideuses foi amplamente estimulado pelos meios massa" (cap. 8, p. 298). O público esportivo vive por delegação ou-
de comunicação (em especial pela imprensa esportiva, que tratou sem-
trn existência durante um lapso de tempo, podendo ser gratifica-
pre de endeusar os atletas excepcionais), e hoje se tornou o cerne de
I do por "satisfações libidinais mediante a identificação narcisista
uma indústria cultural. Cabe, então, entender os papéis que os gran-
I orn os campeões" (cap. 8, p. 295). Mas o indivíduo fica submeti-
des personagens e ídolos do esporte representam no enredo da soci- dI a uma uniformização social e perde de vista sua própria indi-
II
, I edade moderna. V lualidade.
52 ESPORTE
BROHM E A ORGANIZAÇÃO CAPITALISTA DO ESPORTE 53

Fica mais fácil, agora, entender por que o esporte se converteu, no adas em imagens de eficiência, rendimento e produtividade. Além
século XX, na "nova religião das multidões industriais" e por que os disso, deve-se mencionar que o esporte inculca na consciência social
Jogos Olímpicos se tornaram "a grande festa religiosa dos tempos mo- outros símbolos condizentes com a mitologia típica da sociedade in-
dernos", conforme profetizara Pierre de Coubertin (cap. 7, pp. 251- dustrial:
252). Aliás, para Brohm, o esporte suplanta todas as religiões - graças
à mídia - porque se dirige a todos os homens, sem distinção. O ceri- a) o signo da produção ininterrupta do novo;
monial esportivo, com seus símbolos e ritos, com suas raízes militares b) o mito da auto-superação e do esforço recompensado;
e autoritárias, encarrega-se de transmitir a ideologia esportiva, diri- c) e a obsessão pelas evidências imediatas, passíveis de serem nar-
gindo-se a todos em geral e a ninguém em particular, assinalando uma radas e transmitidas.
comunicação unidimensional e uma "unanimidade massiva" (cap. 7,
p.246).
Neste sentido, por causa de sua natureza espetacular, o esporte
converteu-se em instrumento e método de comunicação, contribuin- o ESPORTE COMO APARELHO IDEOLÓGICO DO ESTADO
do para formar uma opinião pública mundial. mediante a universali-
zação do espetáculo. Por isso, o espetáculo esportivo deve ser visto, No último capítulo de Sociología política del deporte, Brohm con-
antes de tudo, como um acontecimento que impregna todas as esfe- clui seu estudo com a crítica mais substancial que, no seu entendimen-
ras dos mass media. Ele é o equivalente moderno das grandes repre- to, deve-se fazer ao esporte moderno: a sua utilização ideológica pelo
sentações populares da Antiguidade, e torna-se o tema central dos Estado, voltada para a manutenção da ordem estabelecída". Seguindo
meios de comunicação de massa. Para o autor, as sociedades indus- as indicações de Gramsci, o autor qualifica a instituição esportiva
triais modernas necessitam do espetáculo esportivo como elemento como um "aparato privado de hegemonia civil", que impõe os hábi-
regulador da imagem que fazem de si próprias. O esporte é "o narci- tos e valores do grupo social no poder para a sociedade como um todo.
sismo massivo de uma sociedade industrial avançada" (cap. 7, p. 245). O Estado é definido como a "pedra angular de todas as instituições" _
E o caráter massivo do espetáculo esportivo provém de sua eminente entendendo o Estado não só como o sistema governamental, mas tam-
II capacidade de transfigurar simbolicamente os dramas esportivos e os bém envolvendo os aparelhos e as atividades de "hegemonia política
acontecimentos sociais e históricos, permitindo oferecer "um sistema e cultural das classes dominantes" (Conclusão, pp. 302-303). É por isso
I de referência simbólica" para todas as possíveis identificações. que o Estado é capaz de englobar as instituições privadas e as colocar
Em suma, no marco das relações sociais capitalistas do mundo a serviço da reprodução do sistema social.
contemporâneo, as relações simbólicas servem para reproduzir e Outra referência teórica importante, nesse ponto culminante da
1I interiorizar as relações de produção, por meio de "sistemas de equi- análise,' é o pensamento de Althusser sobre os aparelhos ideológicos.
valência inconscientes" (cap. 7, p. 269). Significa dizer que o simbo- Para comprovar que o esporte é uma ideologia a serviço do sistema,
lismo esportivo ajuda a outorgar um "estatuto social imaginário" às
relações sociais capitalistas, na medida em que tais relações são base-
3 Brohm já havia explorado esse ponto em obra anterior, Corps et politique, de 1975.

1,1
BROHM E A ORGANIZAÇÃO CAPITALISTA DO ESPORTE 55
54 ESPORTE

competição, que é "o alfa e o ômega de toda sociedade capitalista", pois


o autor procura demonstrar que a instituição esportiva cumpre as
todas as atividades humanas nesse tipo de sociedade são de natureza
seguintes funções:
competitiva. A ideologia esportiva é o reflexo simbólico do princípio
a) dissimular e encobrir as relações de produção, gerando uma estruturante da sociedade burguesa, uma apologia da concorrência e
falsa consciência das relações sociais; da livre iniciativa. "O esporte é, por suposto, a exacerbação da ideo-
b) justificar e fazer uma apologia da situação social existente; logia da competição" (Conclusão, pp. 318-319).
c) ajudar a manter a ordem, por meio de um conjunto coerente Ao mesmo tempo, o esporte moderno é também a crença no pro-
de J;epresentações, valores e crenças, atuando no plano imagi- gresso contínuo e na superação incessante dos limites humanos. Mas,
por ter sido contaminado pelas teses evolucionistas, acaba sendo um
nário;
d) potencializar as forças produtivas e a reprodução do sistema terreno fecundo para idéias "neodarwinianas". O problema é que a
glorificação mítica do super-homem biológico e da força viril da ju-
de produção;
e) e estruturar e alimentar a visão de mundo cotidiano das massas. ventude, a idéia da seleção física "natural" e a atmosfera mística de
reverência ao sacrifício são todos elementos da ideologia fascista. E,
Em adição, o esporte não só cumpre todas essas funções ideoló- como Brohm havia indicado anteriormente, as cerimônias esportivas
gicas como também fornece um modelo de comportamento social, têm sido associadas a manifestações de massa totalitárias, por causa
ordena uma série de representações sobre o corpo e estabelece parâ- das "raizes militaristas e autoritárias do esporte" (cap. 7, p. 232).
metros para o rendimento físico. Portanto, é possível dizer que a ideo- Nas sociedades em que as manifestações políticas estão proibidas,
logia esportiva é "uma capa superestrutural importante do modo de as manifestações esportivas tornam-se mais importantes, constituem
produção capitalista monopolista de Estado" (Conclusão, p. 310). uma válvula de segurança, socialmente controlada, para a ebulição
Não obstante, Brohm considera que o esporte tem ficado isento social. E o autor acrescenta que, em razão das desordens criadas no
das críticas da esquerda oficial às instituições que sustentam o siste- âmbito das competições esportivas e da necessidade de contenção das
ma capitalista. Há uma "cegueira ideológica", que impede de ver o explosões emocionais, torna-se necessária a intervenção da polícia nos
caráter conservador e mistificado r do esporte, e dissimula a percep- eventos esportivos de massa. Isso legitima o discurso ideológico que
ção de que a ideologia esportiva é a negação da realidade da luta de coloca o Estado como guardião da moralidade, assegurando o mono-
classes, a qual transforma em luta de átomos individuais. "Assim, os pólio da violência legal nas mãos do Estado.
conflitos de classe convertem-se em conflitos individuais ou intra- Por fim, é preciso enfatizar que a crítica do autor ao uso ideológico
individuais, os antagonismos sociais e políticos convertem-se em con- do esporte não se restringe às sociedades burguesas democráticas
flitos psicológicos" (Conclusão, p. 317). ou aos governos fascistas. Para Brohm, o "esporte socialista" é es-
Entender o esporte como aparelho ideológico requer, então, des- tritamente idêntico ao "esporte capitalista" - as sociedades socia-
velar a natureza das relações sociais imbricadas nas práticas esporti- listas concretas (as existentes nos anos de 1970) também são com-
vas e a matriz das representações e do discurso sobre tais práticas. Para petitivas e voltadas ao rendimento, também têm um Estado burocrático
ele, o sistema esportivo está estruturado com base na ideologia da que usa o esporte ideologicamente. É evidente que ele está pensan-

j
c-·~~~---------------------------------

56 ESPORTE BROHM E A ORGANIZAÇÃO CAPITALISTA DO ESPORTE 57

do, aqui, na polarização que se expressava nos Jogos Olímpicos entre Contudo, a força do modelo é também a causa de suas insuficiên-
dois blocos de países, liderados por EUA e URSS, competindo pela cias. Quando tentamos aplicar aquelas categorias de análise no estu-
hegemonia no campo esportivo mundial. Cabe ressaltar, porém, que do do esporte contemporâneo, notamos um certo distanciamento
o argumento usado para sustentar essa equivalência é muito entre o modelo geral, de um lado, e a riqueza e complexidade do
questionável: "As sociedades chamadas 'socialistas' são sociedades mundo esportivo, de outro. Em outras palavras, é duvidoso que o sig-
capitalistas de Estado totalitárias" (Introdução, p. 14), nas quais a nificado do esporte na cultura chinesa, japonesa ou iraniana seja o
superestrutura política é basicamente a mesma, segundo a sua avaliação. mesmo que na cultura britânica, australiana ou argentina. E, em
E, embora aquela polarização tenha sido deixada para trás nos anos contrapartida, quando olhamos para o desenvolvimento do esporte
de 1990, atualmente ainda há países socialistas bastante avançados no Brasil, embora as categorias de análise propostas pelo autor pos-
em termos esportivos (Cuba e China) e onde os princípios do ren- sam contribuir para sistematizar o exame de algumas características
dimento corporal e do recorde são bastante arraigados, mas sem que estruturais, as perguntas e hipóteses correspondentes ao modelo em
isso signifique a predominância da ideologia burguesa ou de uma foco não são capazes de oferecer um quadro teórico satisfatório para
superestrutura política semelhante à dos países onde está em vigência estudar a trajetória de muitas das modalidades esportivas praticadas
a democracia liberal. no país. É o caso do futebol (esporte trazido da Europa) e da capoei-
ra (arte marcial nativa que foi esportivizada), cujos estudos mais res-
peitados têm adotado enfoques de cunho mais historiográfico e têm
LIMITAÇÕES E CONTRIBUIÇÕES DO MODELO DE BROHM apontado para interpretações divergentes daquelas sugeridas pelo
modelo aqui apresentado. Sem dúvida, o modelo de Brohm é insufi-
Ao longo do capítulo, apresentamos o modelo analítico de ciente para entendermos o lugar dessas modalidades esportivas na
Brohm e mostramos as várias facetas de sua abordagem. Esperamos sociedade e na cultura brasileiras, inclusive porque condiciona (e li-
ter deixado claro que se trata de uma interpretação extremamente mita) a pesquisa histórica e unidireciona a análise para uma determi-
instigante e muito bem construída. De fato, o autor foi capaz de di- nada problemática.
alogar com os principais críticos do esporte da época, discutindo Certamente, o próprio Brohm reconhece que seu modelo de uma
temas de conteúdo ideológico com base em uma análise científica. "sociologia política do esporte" não seria o mais adequado para uma
Além disso, o seu modelo demonstra grande coerência interna, o que pesquisa de caráter histórico. E que o seu propósito é, antes,
assegura uma argumentação sólida, dando respaldo à maioria de suas explicitar a lógica de funcionamento do sistema esportivo, as funções
conclusões. E não é demais repetir que a sua sociologia política pre- que a instituição esportiva cumpre na reprodução da ordem social e
tende ser válida para o conjunto representativo do que há de mais p lítica, assim como a reciprocidade entre a ideologia esportiva e os
avançado em termos de competição esportiva, tornando-se uma ver- valores éticos e morais do capitalismo. Trata-se, na verdade, de um
dadeira teoria geral do esporte, ou melhor, um quadro explicativo f rço para refletir sobre as questões que ele considera fundamen-
válido para o estudo do esporte em qualquer tipo de formação so- 1.1i ao examinar o esporte na sociedade em que vivemos. De qual-
cial urbano-industrial. 1'1 'r modo, acreditamos que os resultados de tal reflexão precisam

Ili
58 ESPORTE BROHM E A ORGANIZAÇ (J ',\1'11 AI.I!-1TA DO ESPORTE 59

se apoiar não só em evidências do presente, mas também em uma No que se refere ao futebol brasileiro, a questão mais debatida nos
razoável investigação do processo histórico que culmina nos fenô- dias atuais diz respeito à adoção de uma mentalidade empresarial na
menos culturais e nas questões contemporâneas que se pretende in- gestão dos clubes e das federações. Aqui, o enfoque de Brohm parece bas-
vestigar. tante fértil, à primeira vista, porque enfatiza a organização capitalista do
Também não podemos esquecer de que a maneira como uma pro- esporte e suas implicações ideológicas. A mercantilização dos símbolos
blemática é delimitada pode excluir do campo de análise elementos esportivos, a comercialização do espetáculo, a negociação do "passe" dos
muito significativos. O modelo de Brohm encontra dificuldades para atletas profissionais, a modernização induzida pelo Estado, tudo isso
examinar práticas esportivas que não se baseiam nos mesmos princí- pode ser analisado com base em ótica proposta pelo autor. Contudo, esse
pios e não seguem necessariamente o mesmo tipo de organização por processo de transição para o futebol-empresa não é linear, desencadeia
ele destacado. É o caso, por exemplo, de práticas esportivas de lazer uma série de reações e oposições, que em última instância refletem não
que enfatizam a relação com o meio ambiente ou que contestam o só a heterogeneidade do mundo futebolístico, mas principalmente as
estilo de vida imperante, como o surfe e o skate. Ou das artes marciais redes de interdependência que mantêm atados elementos do velho e do
orientais, como o judô, que, mesmo esportivizadas, procuram con- novo, da tradição e da modernidade. Neste sentido, a abordagem de
servar a filosofia e os rituais tradicionais que lhes conferem uma iden- Brohm pode ser bastante útil para pesquisas que se dediquem a estudar
tidade singular. Obviamente, existem surfistas e "skatistas" profissio- o futebol brasileiro na era da globalização e do clube-empresa, mas não
nais, o judô transformou-se em modalidade olímpica, mas isso não como um modelo de análise rígido, e sim como a fala de um interlocutor
implica que o conjunto das práticas esportivas relacionadas a essas três que instiga o pesquisador a examinar questões relevantes e complexas.
modalidades esteja subordinado a um quadrá único de referência, Em síntese, as contribuições do modelo referem-se mais às ques-
como sugere a leitura de Brohm. tões colocadas do que à aplicação do modelo em si. Como vimos,
Tomemos o exemplo da capoeira no Brasil. Muitos adeptos não Brohm teve o mérito de direcionar sua abordagem para uma proble-
admitem a hipótese de que a capoeira tenha sido convertida em "es- mática que continua a desafiar os estudiosos do esporte. Como en-
porte", ao passo que outros defendem a passagem para uma forma tender a crescente influência da lógica capitalista na estruturação do
mais moderna de organização - se não como uma tendência «natu- mundo esportivo contemporâneo? Quais as conseqüências desse pro-
ral", pelo menos como uma escolha «estratégica" diante da necessida- cesso? Quais as possibilidades de alterar esse quadro? São, sem dúvi-
de de difundir a prática e de ampliar mercados. Existe, portanto, uma da, perguntas feitas por um pensador preocupado com os rumos do
contradição, uma tensão interna entre os valores e princípios estru- esporte. E que espera ver se desenharem políticas públicas na área es-
turantes do que chamamos de "capoeira". De fato, essa contradição se portiva condizentes com outro conjunto de valores e com o propósi-
explicita quando a trama observada escapa ao modelo aqui exposto.
to explícito de compensar ou corrigir as distorções do sistema.
O problema surge se - ainda que Brohm reconheça a heterogeneida- Chegamos, assim, à pedra angular do pensamento do autor. Para
de do mundo esportivo - a aplicação do modelo exigir que sejam se-
Brohm, o esporte educa o homem a controlar suas reações instinti-
lecionados previamente os. elementos que melhor se ajustam ao teor
vas de luta e, ao mesmo tempo, oferece um meio lícito de compara-
da análise.
ção e avaliação narcisista de si mesmo. É um universo cheio de mitos,

J
60 ESPORTE BROHM E A ORGANIZAÇÃO CAPITALISTA DO ESPORTE 61

uma atividade que dinamiza a psique humana e, por isso, um elemento I I f~1 , I I. (1972). Leistungssport: ideologie oder mythos? Stu tgart, Verlag
·ohlh,mmer.
fundamental na cultura moderna. Mas as implicações da convergên-
cia entre os princípios que norteiam esse esporte moderno e os valo- I V I "I'I\AUS ,c. (1975).Antropologia estrutural. Trad. de Chaim S. Katz e Eginardo
I 1't'N. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro.
res que fundamentam a sociedade capitalista - particularmente a ideo-
, 11 ,I . (1980). O capital (crítica da economia política). 5. ed. Trad. de Reginaldo
logia burguesa - provocaram contradições de variadas ordens. Por IIlIOl1a. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.
exemplo, por meio do esporte, a idéia positivista de progresso huma- 1"" III'H, B. (1969). Sport und arbeit. Frankfurt, Suhrkamp.
no corporificou-se na educação física, reforçando a idéia de movimen- 'lfj~jr\I, I. (1970). Fussballsport ais ideologie. Frankfurt, Euro parsch e
tos mecanizados, compensatórios, que visam a ajustar o indivíduo a V 1'1 ,~sanstalt.
um modo de vida que aprisiona e limita a expressão corporal. Não sur- 11111, M. (J 992). Metodologia das ciências sociais. Trad .. de Augustin Wernet.
preende, portanto, que a crítica de Brohm ao esporte típico da socie- (: unpinas, UNICAMPjSão Paulo, Cortez.
dade contemporânea, baseado na maximização do rendimento e na
glorificação dos campeões, dirija-se contra a organização capitalista
das competições e a mentalidade produtivista e racionalizante que
domina inclusive a prática esportiva escolar. A utopia do autor, em
oposição a esse quadro desfigurado, é criar uma educação física inte-
gral, mais humana, menos robotizada, que possa contribuir para uma
profunda mudança social.

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3
I lT MANN E O TIPO IDEAL DO
ESPORTE MODERNO

Luiz Alberto Pilatti

I to, como o título sugere, dentro da perspectiva dos ti-


ti· i de Max Weber, pretendemos ponderar sobre o con-
1'11
II I h "I I rte moderno". Para tal ponderação utilizaremos o mo-
I I' 1"1 II I ) 1 10 sociólogo Allen Guttmann em From ritual to record,
ti 11110 d as áreas da sociologia e da história do esporte, uma re-
li' IlIln tória '.
"111 I o, ntes de tudo, esclarecer o que é o tipo ideal, aqui en-
I .1'1 "11 uma construção racional do pensamento, uma COllS-

II III '111 m sua forma pura, não existe na realidade concreta. A


I I ,.I ( II J' ta é uma realidade permeada de irracionalidades.

I 10 I 'li In blbltografícas dos artigos apresentados em conceituados periódicos como


'" '" ~1'1I/llo/lrnal e Sport History Review.
64 ESPORTE GUTIMANN E O TIPO IDEAL DO ESPORTE MODERNO 65

Vejamos como Maurício Tragtenberg (1997, pp. 8-9) explica esse permitirá transcender uma discussão mecânica do modelo que exa-
conceito: minaremos. Privilegiaremos, para tal intento, o capítulo Il da obra
citada (From ritual to record).
o tipo ideal, segundo Weber, expõe como se desenvolveria uma INesse capítulo, valendo-se de um vasto conjunto de exemplos,
forma particular de ação social se o fizesse racionalmente em direção a Guttmann procura compreender o fenômeno do esporte moderno,
um fim e se fosse orientada de forma a atingir um e somente um fim. observando-o num contexto em que ele não está inserido. O contex-
Assim, O tipo ideal não descreveria um curso concreto de ação, mas um to utilizado para essa compreensão foi o dos esportes primitivos, dos
desenvolvimento normativamente ideal, isto é, um curso de ação "ob- esportes antigos (gregos e romanos) e dos esportes medievais.
jetivamente possível". O tipo ideal é um conceito vazio de conteúdo O espreitar desses contextos distintos e o modelo teórico empre-
real: ele depura as propriedades dos fenômenos reais desencarnando- gado possibilitaram ao autor divisar algumas características que so-
os pela análise, para depois reconstruí-Ias. Quando se trata de tipos mente os esportes modernos apresentam: secularismo, igualdade, es-
complexos (formados por várias propriedades), essa reconstrução as- pecialização, racionalização, burocratização, quantificação e recordes
sume a forma de síntese, que não recupera os fenômenos em sua real (GUTTMANN, 1978, pp. 15-16).
concreção, mas que os idealiza em uma articulação significativa de abs- O argumento inicial utilizado por Guttmann, ao minudenciar
trações. Desse modo, se constitui uma "pauta de contrastação", que per- sobre a primeira característica distintiva do esporte moderno, a
mite situar os fenômenos reais em sua relatividade. Por conseguinte, ° secularidade, é o de que culturas primitivas raramente tinham uma
tipo ideal não constitui nem uma hipótese nem uma proposição e, as- palavra para definir o esporte em nosso senso.
sim, não pode ser falso nem verdadeiro, mas válido ou não-válido, de Essa asserção é avigorada nos escritos de autores como o antro-
acordo com sua utilidade para a compreensão significativa dos aconte- pólogo Stwart Culin e o historiador Carl Diem. A posição assumida
cimentos estudados pelo investigador. No que se refere à aplicação do por esses autores é a de que, originalmente, todos os jogos tiveram ca-
tipo ideal no tratamento da realidade, ~la se dá de dois modos. O pri- ráter de cultismo e foram jogados de forma cerimonial.
meiro é um processo de contrastação conceitual que permite simples- /' Partindo dessa consideração, Guttmann questiona se os espor-
mente apreender os fatos segundo sua maior ou menor aproximação tes, entre os povos primitivos, eram invariavelmente parte de um
ao tipo ideal. O segundo consiste na formulação de hipóteses culto religioso ou se faziam parte de um setor independente, em
explicativas. que eles eram parte de uma forma de vida secular (idem, p. 18). A
questão colocada supõe que os povos primitivos tinham uma vida
Os escritos de Guttmann estão, portanto, fielmente orientados secular.
pelas premissas teóricas de Max Weber. De fato, o arcabouço utiliza- O autor argumenta que, ao definir o esporte como uma competi-
do por Guttmann para desenvolver sua análise inspira-se largamente ção física sem fins utilitários - ao contrário da posição assumida por
em A ética protestante e o espírito do capitalismo. Diem, na qual os jogos e as competições tinham simplesmente um
Feitos esses esclarecimentos iniciais, cabe-nos agora avançar na ex- caráter religioso natural e um fim utilitário -, cria-se a idéia de que
plicação que tal modelo teórico aduz para os esportes. Esse avanço os povos primitivos não tiveram esportes.
66 ESPORTE GUTIMANN E O TIPO IDEAL DO ESPORTE MODERNO 67

Para Guttmann, essa é uma idéia infundada. Entende o autor que piO, tica foi situada pela Igreja católica, principalmente, na esfera do
não se pode ampliar tanto o termo religião a ponto de se colocar todo J r fano. O período é uma página em branco na história universal dos
o comportamento humano dentro da esfera do sagrado. A verdade sp rtes.
importante assinalada por Diern, argumenta Guttmann, é que mes- Hoje, entende Guttmann, o esporte é um fenômeno secular. A li-
mo o esporte sendo o oposto de exercício físico, ele pode ser encon- ao entreo secular e o sagrado foi quebrada; entre o real e o trans-
trado preliminarmente na vida primitiva dos adultos associado com nd ntal também. O tempo do esporte não é mais um tempo ritual.
alguma forma de significação religiosa. A segunda característica dos esportes modernos, apontada por
Outro equívoco existente é a tendência de se considerar os esportes uttrnann, é a igualdade de oportunidades de participação. Para o
J

gregos como antecessores dos esportes modernos. Para Guttmann, a tut r, os esportes atuais assumem as igualdades.
conformação desses esportes está muito mais próxima das atividades Tal condição não era encontrada nos povos primitivos, por exem-
dos povos primitivos que das Olimpíadas da era moderna. Nos jogos II . O caráter das práticas desses povos era mais religioso que qual-
gregos, o caráter religioso nunca ficou em dúvida. Apesar desse caráter, )Il r outra coisa. As equipes que se colocavam em contenda eram
já era possível localizar entre os gregos a emergência do esporte como 111 ntadas pelos "deuses".
um fenômeno secular, que gradualmente vai se tornando ordinário . A primeira manifestação efetiva de igualdade pode ser localizada
. No entanto, apesar de toda uma estrutura física e ritual envolvendo 11( esportes praticados pelos gregos. Os gregos, em suas práticas, atri-
o esporte na Grécia, foi a sociedade romana que continuou e acentuou huíam os mesmos direitos a todos os participantes. Homens e meni-
a secularidade dos esportes. Os romanos não tinham nem competi- II( , eram separados pela maturidade sexual. Havia oficiais e uma certa
ções, nem festivais tributados para os "deuses", eles se exercitavam para ondição igual de participação.
manter a forma física e para participar de seus eventos. Com isso não s romanos, por sua vez, mesmo aceitando tal igualdade, não a
se quer dizer, em absoluto, que esses eventos eram completamente ol cavam em prática no seu evento maior, as lutas de gladiadores nos
despojados de um caráter ritual. I' s. Existiam, nesses locais, lutas entre homens e animais, homens
Os esportes gregos eram considerados efeminados pelos romanos. « !TI armas diferentes, anões e mulheres, entre outras formas, para

Para os romanos, esportes eram brigas, corridas de bigas e coisas do div rtimento do público.
gênero, os quais tinham um tom bestial. Em seu caráter secular, os Na atualidade, o esporte tem uma noção de igualdade muito su-
esportes romanos estão mais próximos do esporte de nossos dias. Os l' rior à proporcionada pelos gregos. Essa igualdade é conformada, em
eventos romanos, marcados pelo ideário clássico do pão e circo, tam- f\r inde parte, pelas regras e pelas transformações sofridas por elas no
bém guardam semelhança com a idéia do espetáculo, que é uma idéia 11 rso da história.
nuclear na sociedade de nossos dias'. As regras foram por muito tempo uma espécie de aparato legal que,
Posteriormente, mais precisamente entre os séculos XVII e XIX, o ul forma do amadorismo, possibilitava a manutenção do privilégio da
esporte passou a ser visto com suspeição por lideranças religiosas. Sua II tica dos esportes pela nobreza e, posteriormente, pela burguesia'.

2 Sobre a sociedade do espetáculo, ver Guy Debord (1997). I}orouma visão mais detalhada da questão, ver Luiz Alberto Pilatti (1999).
68 ESPORTE GUTIMANN E O TIPO IDEAL DO ESPORTE MODERNO 69

A noção de regras amadoras deriva de noções medievais, tendo em nidade de lutar pelo título mundial dos pesos pesados. Outro exem-
seu interior um vagaroso caminho trilhado na direção da igualdade plo clássico utilizado foi o da Olimpíada de Berlim, em 19365•
de oportunidades. Nesse curso, essa noção representou inclusive um A outra forma de segregação - e, diga-se de passagem, a mais
instrumento de luta de classes. duradoura de todas elas - foi a segregação da mulher no esporte.
No entanto, alguns aspectos sobre as regras não foram perfeita- Para o autor, apenas depois da metade do século XX é que a idéia de
mente compreendidos por Guttmann. Um dos aspectos que foi ne- competições para as mulheres começou a ser aceita. O aparato legal
gligenciado foram as transformações ocorridas com as regras na di- para essa prática é posterior; em muitos locais, foi criado na década
reção da civilidade. As regras esportivas acompanharam o processo de 1970.
de civilidade da humanidade. Os escritos de Norbert Elias são bastante Vários exemplos dessa segregação são facilmente encontrados no
profícuos para descortinar essa face do esporte. O exemplo clássico urso da história. Podemos citar, por exemplo, a recusa do Barão de
desse processo é a caça à raposa'. oubertin em permitir a participação das mulheres nos Jogos Olím-
Outro aspecto não compreendido na interpretação formula- picos, a qual acabou acontecendo apenas em 1912, e no atletismo em
da é que as regras deixaram de ser um facilitador das igualdades. 1928. Podemos acrescentar aos exemplos anotados por Guttmann
Se' objetivo tornou-se outro. No presente, mais que nunca, as utros mais recentes. A WNBA, a versão feminina da liga profissional
regras passaram a ser transformadas para uma adequação das I basquete americano, foi criada apenas no final da década de 1990,
práticas à indústria do entretenimento. O vôlei, o futsal, enfim, num país onde todos jogam basquete. Esse exemplo é um indício
as modalidades esportivas não mudam mais as regras para pro- hnstante forte de que essa segregação ainda está presente no esporte,
porcionar isonomia ou civilidade. Elas mudam para adequação linda que de forma mais sutil.
midiática. Na atualidade, o esporte, ao mesmo tempo em que apresenta a
Antes de avançarmos nas discussões, devemos pontuar a impor- lualdade, ou tenta apresentar, evidencia-se pela diferença das perfor-
tância das regras do modelo analítico que estamos porfiando. Em ttuinces existentes ou, dito de outra forma, pela diferença apresentada
outras características do esporte moderno, como a racionalização ea 1\ tre as pessoas comuns e os atletas profissionais. Essa diferença em
própria burocratização, a questão das regras é retomada e colocada I 1111 o algum foi tão grande.
em evidência.
No entendimento de Guttmann, duas outras manifestações sig-
"lll11 1931, o COI selecionou Berlim como cidade-sede das Olimpíadas de 1936. Quando Adolf
nificativas tiveram de ser superadas, de forma análoga, para que essa l lltlcr assumiu o controle do governo alemão no início de 1933, muitos acharam que o Führer
característica do esporte moderno, a igualdade, se efetivasse. r cusaria a ter qualquer relação com as Olimpíadas. Afinal, a juventude Nazista havia cha-
11I11 10 os jogos de competições entre 'não-arianos inferiores'. Hitler decidiu, entretanto, fazer
Uma dessas características foi a segregação racial. Para explicitar ti IS Jimpíadas de Berlim um meio de propaganda. Os nazistas instalaram circuitos fechados
essa segregação, Guttmann utiliza, entre um amplo rol de exemplos, o I TV para o público e criaram uma rede de rádio para 41 países, além de um serviço de
I lI)) lin com o único objetivo de transportar documentários. O plano de Hitler foi bern-suce-
do boxe. Nessa modalidade, apenas em 1908, um negro teve oportu- ti do, principalmente depois de a Alemanha deixar os demais países muito para trás na conta-
111 de medalhas. Mas seus discursos racistas sobre a supremacia ariana foram abafados por
111111111 ta negro que se tornou estrela desses jogos: o norte-americano jesse Owens." PUBLlFOLHA,
4 Cf. Norbert Elias, "Un ensayo sobre el deporte y Ia violencia", na obra Elias & Dunning (1994). rill/" iflcial das Olimpíadas, São Paulo, 1996,pp. 31-32.
70 ESPORTE GUTTMANN E O TIPO IDEAL DO ESPORTE MODERNO 71

Ao mencionar a terceira característica dos esportes modernos, a ou seja, apresentam uma relação lógica entre os meios e os fins. As
especialização, Guttmann reporta-se ao século XV. Nesse tempo, os mudanças ocorridas nas regras são adequações a essa racionalidade.
gregos foram os primeiros a adequar as aptidões às suas práticas es- Inúmeros são os exemplos utilizados para consolidar tal argu-
portivas. Essa característica, diferentemente dos esportes pré-rnoder- mentação. Em contraste, são apresentados os eventos de cultuação
nos, era notória também nos esportes romanos. do povo maia, orientados por regras de cunho divino, de um lado, e
Os jogos medievais caracterizavam-se pela não seleção de habili- o basquete, esporte inventado racionalmente e dotado de regras gra-
dades e por regras indefinidas e/ou pouco claras. Essas posições fo- dativamente mais complexas e universais, de outro lado. Outro exem-
ram fortificadas nos escritos de Eric Dunning. Para Guttmann (1978, plo apresentado, a caça, exemplifica todo um processo de racionali-
pp. 38), três características principais podem ser denotadas nos "jo- zação ocorrido internamente. Inicialmente, detentora de um cará-
gos populares" medievais e pré-modernos: ter utilitário e desigual, a caça foi racionalizada transformando-se
numa modalidade esportiva moderna, o tiro ao alvo (GUTTMANN,
Estes jogos eram relativamente semelhantes em três aspectos: (1) 1978, pp. 40-44).
elementos do que depois se tornaram jogos altamente especializados Distinta forma de racionalidade, também presente nos esportes,
como rúgbi, futebol, hóquei, boxe, luta livre e pólo eram contidos fre- é perceptível nas ciências ligadas à performance humana. Os gregos,
qüentemente em um único jogo; (2) havia pequena divisão de trabalho diferentemente de muitos povos que acreditavam que as performances
entre os jogadores; e (3) nenhuma tentativa foi feita para esboçar uma atléticas eram fruto dos deuses, foram os primeiros a racionalizar as
distinção forte e rápida entre jogar e assistir. bases ao que hoje denominamos de treinamento esportivo. Atualmen-
, te, estudos altamente sofisticados é que fornecem a direção dos espor-
O esporte moderno é exatamente o oposto. Entre suas caracterís- e s. . _I' I' '. 9 .
ticas estão a especialização de funções e a divisão do trabalho. Em , Dlre~ao essa que, como sugere Guttmann, há muito rompeu os
paralelo, a organização dos eventos também se modernizou, transfor- liames "do esporte com a ética e com o humano. A performance espe-
mando as competições esportivas em megaespetáculos. Essas trans- t ular tornou-se uma espécie de fim único. Para o autor, "é altamente
formações, impostas pela especialização, geraram o profissionalismo, h p~ovável que a tendência crescente para racionalização será suspensa
ou seja, transformaram o tempo de trabalho do atleta em um tempo I los protestos de homens e mulheres que apreciavam o dia em que
de especialização. IS j gos esportivos eram passatempos" (idem, p. 44).
Outra característica localizada por Guttmann nos esportes moder- Todas as transformações ocorridas advêm da emergência de um
I nos é a racionalização. Para o autor, regras sempre existiram, mesmo iparato burocrático, Tal aparato é, para Guttmann, outra caracterís-
entre os povos primitivos. O que mudou foi a natureza dessas regras. I n distintiva dos esportes modernos. Efetivamente, é a instituição
11 As regras deixaram de ser "instruções divinas" para se tornarem um 11111' rática que passou a administrar o desenvolvimento dos espor-
artefato cultural. 11» nferindo-Ihes um sentido moderno, e, na época presente, pas-
j Os eventos esportivos da atualidade, orientados por essa natureza 111 transformar esses esportes em produto adequado à mídia. O
metamorfoseada, são racionalizados conforme a essência de Max Weber, 1111,' le do esporte é seu.
72 ESPORTE GUTTMANN E O TIPO lDEAL DO ESPORTE MODERNO 73

Entende o autor que a distinção desenvolvida por Weber entre li I 1I I P rtes modernos. Mesmo existindo nos esportes anteriores
hierarquia primitiva dos povos antigos e a burocracia moderna, pa LI 1111111 le II I ncia à comparação, efetivamente a busca de recordes nun-
tada em 'regras funcionais, é bastante adequad. para a comprecn llu.
são do processo de institucionalização da bu ocracia esportiva I dllll ann conclui o raciocínio desenvolvido no capítulo indican-
(GUTTMANN, 1978, p. 45). II 1/ Il l( das as características apresentadas são inter-relacionadas.
Mesmo sendo possível localizar aspectos buro áticos nas práti /," 111 11' u menos óbvio.
cas de diferentes períodos, em tempo algum organiz ção semelhante I 111 , ncia, as posições até aqui compendiadas retratam o capí-
pode ser encontrada. A primeira modalidade esporti a a construi r () 111 I 110 10 m discussão. Uma tabela elaborada por Guttmann (1978,
mencionado aparato burocrático, numa concepção oderna, foi () I) "t tiza de forma didática o apresentado:
críquete. Essa organização ocorreu no ano de 1787 e t ve como 10 "I
a Inglaterra. Na atualidade, o âmbito dessas instituições é internacio
Características dos esportes em diferentes épocas

Ir
nal e sua esfera de poder, em muitos casos, tornou-se imensurávcl.
,I,

I
ESPORTES ESPORTES ESPORTES
Guttmann menciona como exemplos a FIFA e o COI. PRIMITTVOS GREGOS
ESPORTES ESPORTES
ROMANOS MEDIEVAIS MODERNOS

A configuração do processo pode ser percebida, entre outras l


111IIIAIIIIMIlE Sim e Não Sim e Não Sim e Não Sim e Não Sim
I
racterísticas, na universalização das regras, na elaboração de estra t • - A
gias de desenvolvimento mundial implantadas pelas organizaçõ 'S
I""MIIA/III Não Sim e Não Sim e Não Não Sim I
gestoras, no controle de recordes, na produção de espetáculos, tudo I 11'1 1M I/M;AO Não Sim
*
Sim Não Sim
t
dentro
Muito
de uma visão administrativa
provavelmente
zação, ou não, de uma modalidade
estão associadas às duas últimas
racionalmente
é esse o fator preponderante
esportiva.
características
moderna.
na moderni
A essa característi
do esporte moderno
li
111""

I
, IIINAI,I~AÇÃO

/lAI'IA

MIII'II.M;AO
Não

Não

Não
Sim

Sim e Não

Não
Sim

Sim

Sim e Não
Não

Não

Não
Sim

Sim

Sim
,I
indicadas
recordes.
por Guttmann:

No resgate histórico
a exigência de quantificação

feito, o autor sugere que a quantificação


e a busca de

do,
"~I IIIOIII! Não

-- Não Não
.)~
Não
" . ~
Sim

esportes pode ser simbolizada pela invenção do cronômetro, ocorri '1/111 P rcebe é que, para analisar o esporte, o autor construiu seu
da em 1730. Dentro dos esportes, a quantificação tornou-se um modo 1 I" 11111 'I. Indo como filtro os "tipos ideais" propostos por Weber. A
II1 "
de vida, uma característica e uma necessidade. Toda performance atl I I I I' scentou a categoria da busca de recordes. Trata-se de uma
tica tornou-se mensurável. Essa "necessidade" vem da própria soei' 111 I 111111/1111 inte aceita nos círculos acadêmicos internacionais, apesar
da de, a qual, mais que nunca, distingue-se pela emergência 111 I 111/ 1111111 s mais ou menos evidentes e outros nem tanto",
quantificação
.....- .
A busca de recordes, por sua vez, é a única característica, entre todo 10,1"1111 1I,I Dunning, durante a palestra "Nobert Elias's contribution to the sociology of
I "" 11 11 rlr n Prom ritual to record, apontou algumas omissões existentes na obra. Para
o elenco de características levantadas, que se encontra presente sorncn .1 11111111 ,li Hp rte hoje é um grande ritual, o maior ritual de secularização existente. Neste
\

74 ESPORTE GUTIMANN E O TIPO IDEAL DO ESPORTE MODERNO 75

Um desses limites é a inadequação do modelo ao esporte-espetá- I )1 • ixistem distintos graus de incorporação da "modernidade" ao
culo. Outro limite é a inadequação do modelo às diferentes manifes- 1111 V I o das práticas esportivas; ou se os esportes modernos são exclu-
tações do esporte, as quais, de uma forma geral, pouco se amoldam 1111 'ul aqueles que visam ao alto rendimento.
às categorias propostas.
O economista Marcelo Weishaupt Proni, ao discutir o referido 1'. tlilll ainda, à fala de Proni, acrescentar algumas observações
texto, argumenta em direção semelhante e aponta outras limitações. I 111 ti , naquilo que ficou perdido nos escritos de Guttmann: 1) a
O autor desenvolve o seguinte raciocínio (PRONI,1998, pp. 26-27): Itll 1 1 ração do Jair play, que não pode ser compreendido no
mar da igualdade; 2) na Inglaterra, o temperamento pre-
Nota-se que uma das características mais marcantes das socieda- 111 111111 determina a "moldagern do caráter" e, ao mesmo tempo,
des modernas - o elevado grau de mercantilização das relações sociais - 111 I Iltllll nente forte na configuração do esporte moderno; e 3) o
não tem um lugar de destaque nesse modelo analítico. A justificativa de I 111.11 ri OZ07.

Guttmann é que a comercialização dos espetáculos esportivos e a pro- I 111111 11 é um fator limitador, na análise proposta por Guttmann,
fissionalização dos atletas seriam fenômenos específicos do esporte em " 11 I dual proporcionado pelo modelo. A dicotomia presente-
países de economia capitalista, não se verificando em nações socialis- 1111 I' ira cada característica apresentou uma variação com as ca-
tas. Como ele pretendia elaborar uma interpretação do esporte moder- I II I i I -padrão, que são as características do esporte moderno.
no que apreendesse as características básicas essencialmente invariantes 11111,1 ti s características dos esportes em épocas anteriores (espor-
- ou seja, que pudessem ser encontradas em maior ou menor grau em 11 " 111 d mos) não estavam totalmente ausentes nem totalmen-
qualquer sociedade do século XX, independentemente do tipo de regi- 111 S.
me político ou desenvolvimento econômico -, a mercantilização não o encontrada pelo autor, diante de tal dificuldade, foi a
poderia ser incluída entre as categorias centrais que conformam o seu ambigüidade do modelo de análise baseado na polari-
modelo. [...) II 111' inte-ausente. No entanto, sabemos que algumas das ca-
O modelo de Guttmann preocupa-se em caracterizar os esportes I II I I 18 apresentadas possuíam configurações que são simples-
de alto rendimento, não se aplicando adequadamente aos esportes pra- , 11 /11' ntes e isso não foi levado em consideração. Em verda-
ticados atualmente em escolas, universidades, clubes associativos, etc. 1111111 11 ilidade concreta apresenta atributos concretos e não-va-
Nesse sentido, não fica claro se as formas ditas "modernas" da prática tegorias não-redutíveis em um esquema classificatório
esportiva (caracterizadas por aqueles sete atributos enumerados) esta-
riam convivendo com formas "pretéritas" (nas quais não há necessida- s gerais, esses são os traços mais evidentes e os limites da
de de burocracia, produção de estatísticas ou preocupação com recor- I Guttmann, uma das mais importantes interpretações
11111 ~ moderno.

prisma, entende Dunning, o trabalho de Guttmann escamoteia elementos interpretativos que


vão "do ritual esportivo ao esporte ritualizado" Cf. Coletânea do Simpósio Internacional: "Pro-
I ~I (l Invés da satisfação imediata, optam por postergar essa emoção. A obra de
cesso Civilizador: Cultura, Esporte e Lazer - Norbert Elias 100 Anos': UNICAMP - Faculdade de
Wlllfr (1988) retrata essa característica peculiar do povo inglês.
Educação Física, Campinas, 1997.
76 ESPORTE

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dernos? São Paulo, Martins Fontes. / -------_.
. ._----

N aatualidade, o esporte tem sido considerado uma das manife:j-


tações culturais que, marcadamente, mais têm apresentado evo-
luções e transformações, sejam elas de ordem técnica ou referentes à
forma de exposição e absorção pela sociedade EréSta cÕÍÍsideração \
emerge o enten o o esporte como um fenômeno social em
processo de constituição, ou seja, as práticas esportivas refletem, na
análise de seu contexto histórico, continuidades e rupturas que carac-
terizam a expansão de suas fronteiras e o afirmam como objeto de
estudo passível de interpretações à luz de diferentes teorias e propos-
t~~__
m~.!o~ógicas.
Ass~s~;CIõ;iíÍlciamos este texto com a intenção de apresentá-
10, caricaturalmente, como um "exercício" ou uma "tarefa intelectual"
ante as várias possibilidades de compreensão das composições analí-
78 ESPORTE BOURDJEU E A TEORIA DO CAMPO ESPORTIVO 79

ticas esportivas. O "exercício" remonta o objetivo de recuperar a his- Ill)l res". Entretanto, alguns avanços são notados ao acompanhar-
tória de determinada modalidade esportiva com base no conheci- mo o processo de constituição de novas frentes de trabalho, tendo
mento de uma proposta teórica. Especificamente, pesquisamos al- \I odalidade como tema ou objeto principal. Contudo, de uma for-
guns dados e momentos históricos do voleibol, associando-os ao um geral, esta representação acadêmica ainda é limitada. Diante
modelo de análise sociológica de Pierre Bourdieu. Nesta empreitada, I stas constatações e da apropriação do voleibol para confecção
o norte foi a interpretação das relações objetivas que são estabeleci- I ste texto, declaramos a intenção de colaborar com o processo de
das na historiografia do voleibol, analisando as posições relativas e 11 pliação do leque de produção na modalidade e redimensionar a
as manifestações do potencial de poder constituintes na configura- [ualidade analítica de seus estudos.
ção escolhida. Além da representatividade no contexto esportivo nacional e do
A priori, o leitor mais cuidadoso e cônscio de que opções não lirnítrofe aprofundamento das publicações referentes à análise do
ocorrem aleatoriamente pode estar perguntando: Por que a modali- v leibol, soma-se outro dado que deve ser destacado na confirmação
dade eleita foi o voleibol? Por que a abordagem teórica recaiu sobre o l escolha por esse esporte. O mesmo não poderia deixar de ser cita-
instrumental conceitual do sociólogo francês Pierre Bourdieu? to, tendo em vista o nível de significação. Para esta opção, também
---'- - -
.::» Começamos respondendo à primeira 'indagação. As manifesta- r i considerado o envolvimento existente entre prática e autor. Foram
ções esportivas do século passado apresentaram contínuos proces- 16 anos enquanto atleta "profissional" e uma carreira acadêmica que
sos de transição e evolução, porém, para a realidade brasileira, o ntrelaça a função docente e a elaboração de uma tese de doutorado
futebol e o voleibol foram os esportes que, inexoravelmente, deli- I ndo o voleibol como objeto central de estudo.
nearam aspectos mais evidentes e profícuos na perspectiva do estu- Diante destas considerações, acreditamos que a primeira inquie-
do analítico de transformações,
dalidades coletivas detentoras
-
nal es ortivat. Do ponto de ~a
-- além de firmarem-se
da hegemonia
enquanto
na preferência
acadêmiCO, õ"esporte bretão tem
mo-
nacio-
-------
tação fica respondida. Passamos para a segunda: Por que Bourdieu?
Falar do reconhecimento internacional da obra bourdiana no
meio acadêmico ou sobre a qualidade da sua produção poderia soar
sido alvo constante de antropólogos, sociólogos, historiadores, es- orno um discurso redundante e plenamente dispensável para aqueles
critores, cineastas, fisiologistas e jornalistas em todo o território na- que minimamente têm contato com as ciências sociais. Neste senti-
cional, sendo que suas respectivas contribuições caracterizam um do, o conjunto de considerações e aceitações garantem a Bourdieu,
substancial arcabouço para o estudo mais detido e refinado da mo- notoriedade na discussão e aplicabilidade de seus conceitos nos es-
dalidade. No caso do voleibol, as produções são insípidas, relatando
invariavelmente preocupações com performances técnicas, metodo-
2 Como comprovação desta constatação, uma breve visita aos arquivos universitários e acervos
logias de aprendizagem dos fundamentos, estruturas táticas primá- bibliográficos nacionais, nas seções referentes ao quadro de monografias de especialização, dis-
rias e análises biomecânicas ou fisiológicas de determinados gestos sertações de mestrado e teses de doutorado que tratam das modalidades em questão, pode, de
maneira contundente, corroborar a argumentação. A revisão da produção literária, jornalística
e cinematográfica confirma o exposto. Também o levantamento de pesquisas científicas apre-
sentadas em anais e coletâneas de congressos nacionais e internacionais respalda este pressu-
Pesquisa realizada pela agência McCann-Erickson, publicada no artigo "Esporte é a alma do posto. Em especial, vale conferir as Coletâneas do Encontro de História do Esporte, Lazer e
negócio" da revista Placar, São Paulo, n. 795, pp. 42-47, 16 ago. 1985. Educação Física e os Anais do Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte.
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tudos de diversas frentes de conhecimento da sociedade - assim já o I ode se considerada provocadora para os estudiosos do esporte e
fez com a literatura, a alta costura, o jornalismo, a psicologia, a tele- turnb ~ para os seus praticantes. Bourdieu afirma que
visão e o esporte, por exemplo. Por conta dessa inserção em diferen- r----__----
tes manifestações socioculturais, da sua preocupação com a expan- de um lado existem pessoas que conhecem muito bem o esporte na
são intelectual crítica e da coerência conceitual com que elabora suas forma prática, mas que não sabem falar dele, e, de outro, pessoas que
argüições a respeito de cada tema pesquisado, Bourdieu é conside- conhecem muito mal o esporte na prática e que poderiam falar dele,
rado um dos maiores sociólogos vivos da atualidade. Não obstante ~as não se dignam a fazê-lo, ou o fazem a torto e a di .eito [BOURDlEU,

a dimensão deste cenário, convidamos o leitor a refletir sobre algu- 1990, p. 207]. _ '-----.:;s, r
mas idéias do conceituado comentado r da obra de Pierre Bourdieu,
que assiduamente remete à comunidade científica obras cunhadas D·ran t e d est a a fiirmaçao,- ~d mcomo
uma -
a questao rsn
101 -eva-n-. . Se as
pela matriz teórica bourdiana. Estamos falando do professor Afrâ- essoas que conhecem o esporte não estão aptas para discuti-lo, e se, hi-
nio Catani. poteticamente, os dotados dessa aptidão não o fazem ou fazem com
atani (2001) destaca que a aceitação, ou melhor, a definição por pouca rigorosidade, quem realmente será o interlocutor desta manifes-
uma determinada vertente teórica é consubstanciada de forma tação cultural e fenômeno univer te reconhecido como esporte?
gradativa, como que por uma espécie de encantamento e identifica- Levando em conta um passado-presente esportivo e a incursão no
ção. Inicialmente, afirma que o primeiro sinal é postado quando da universo acadêmico, sentimos que o desafio estava lançado. Provavel-
memorização de uma frase do autor a ser eleito. A esta, constantes mente, tal desafio ou provocação rendeu um leitor a mais na apropria-
recuperações contornam o desenho de uma ferramenta que viabiliza, ção dos conceitos bourdianos. Dessa forma, e considerando a citada
~.1u.ç.ão de.questões.cotidianas remetidas ao universo acadêmico! relevância da obra de Bourdieu, optamos pelo estudo do modelo de
.. -:-:- .- - - J
O passo segumte seria uma resposta a ansia por novas frases, na pers- análise sociológica dos campos para entender as relações existentes no
pectiva de investidas mais elaboradas diante das indagações formu- processo de constituição de um determinado espaço esportivo
ladas. Nessas alturas, o aprofundamento em um livro torna-se con- permeado pela história do voleibol. Talvez, estes passos permitam
dição irremediável. A continuidade desse percurso determina uma sanar a dúvida anterior.
simbiose entre leitor e autor, a qual inevitavelmente concretizará a Caminhando um pouco mais com Catani, recuperamos observa-
identificação e aceitação de uma proposta teórica que levará o estu- ções diante das dificuldades apresentadas no percurso de aproxima-
dioso a preservar o seu "fôlego intelectual" para a incorporação da ção e entendimento dos escritos bourdianos. Para o comentador, a
obra completa do autor escolhido. Este seria o terceiro momento desse leitura de Bourdieu é uma tarefa que demanda um elevado nível de
processo descrito por Catani. dedicação e concentração, isso por conta da rigorosidade conceitual
Considerando este "namoro" teórico, convém explicitar que esta- empreendida pelo autor na elaboração da sua obra. Este perfil torna
mos na fase caracterizada pela identificação e leitura de algumas das a produção de Bourdieu extremamente árida para leitores menos avi-
obras de Pierre Bourdieu. A aproximação aos seus escritos ocorreu, sados. Neste sentido a tentativa de averiguar e absorver os conceitos
concretamente, por conta de uma citação que, em primeira instância, de Bourdieu, com a devida profundidade, causa ininterruptos naufrá-
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DOCAMPO
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___
'- -- J'j L~~
gios, os quais remetem o leitor a duas situações básicas. A primeira -dd~d e etêrmma as questoes,
so luçao - as quais. este autor não se propôs a
delas refere-se à postura criadora de uma resistência à leitura, a qual resolver. ~ta esteira de raciocínio, é importante conhecer criteriosa-
invariavelmente distancia o leitor da obra. Esta não é a vertente mais mente e destacar que o mode~ Pierre Bo~rdieu foi ;htboraêl:o com
indicada no caso. A outra remete e convida o leitor a um processo de a ob ~yã:oâe lâeÕtific;~s mecanismos sociais que determinam-e
enfrentamento, pelo qual a produção do conhecimento e o desenvol- pr S'ü~vem "leis de reprodução social". Prospectivamente, após essa '
vimento intelectual tomam formas' mais consistentes e maduras. identificação, o autor determina, como função primordial do sociólo-
Indubitavelmente, os naufrágios devem ser entendidos como dificul- go, o evidenciar ou o revelar daquilo que chamou de "fundamentos de '
dades que naturalmente são postas nesse processo, não obstante, con- dominação oculta". Dito de outra forma, Bourdieu está centrado no efe- )
firmada uma posição de superação desses naufrágios, estes possíveis tivo questionamento da reprodução - e de suas leis - que se efetiva no / /
momentos de dúvidas e incertezas se consolidam futuramente de for- seio das re5ões estrutura!J.1e.s..déLS.Q..~~nta desta i~ão:
ma positiva no decurso da atitude de progressividade intelectual. o autor estuda a constituição dela mesma, os mecanismos que perpe-
O historiador Ademir Gebara" relata que a utilização de diversos tuam essas formas de reprodução das desigualdades sociais e pretende
"' ~modelos de interpretação do esporte enquanto fenômeno em constru- torná-Ios inteligíveis, transparentes, de fácil assimilação e compreen-
ção tem dado indicativos na circunscrição universitária de que a sociolo-
gia figuracional de Norbert Elias e o estudo dos campos de Pierre
Bourdieu são, em número substancial, referências e responsáveis pelo
r
são por todas as pessoas que estão inseridas nesta configuração.
Para Bourdieu, a sociologia é entendida como a "ciência do po-
,der, das lutas pelo poder", ou ainda, pressupõe uma prática que pi~
avanço que temos observado nas produções acerca da temática nos últi- tenda "tornar visível o invisível, produzir um efeito de desencantamen-
mos anos. Porém ressalta que leituras precipitadas, descuidadas e equi- to, destruir a ilusão de transparência do mundo social, desenvolver a
vocadas estão sendo realizadas, deixando de lado a observância da 'imaginação sociológica'" (SILVA,
1996, pp. 233-234).\Assim sendo, tor- /
necessidade de rigor, disciplina e profundidade na inserção destas com- nar as regras que compõem estas relações explícitas aos olhos dos mais!
plexidades teóricas. Outrossim, é percebido nas ciências sociais um pro- simples contendores é um dos principais pilares de seus estudos, corno /'

cesso de reconsideração de antigas refutações tecidas à produção ~e explic.ª,JJ3.9.Jl~U, 1983, p. 7): __ ________;~
(
bourdiana.
Entendemos que os principais motivos que levam a estas formas ~\ A sociologiadifere d~~~-ciên~m po~t~ \
distorcidas de interpretação dos conceitos de Bourdieu são as posturas ~-se que ela seja acessível,o que não se exige à física ou mesmo à \
de resistência erguidas diante das densas leituras e a falta de discerni- I semiologia ou à filosofia.Deplorar a obscuridade talvez seja também \
mento sobre os objetivos traçados pelo autor ao desenvolver a sua teo- I uma forma de testemunhar que se gostaria de compreender, ou ter cer-
ria, por conseguinte a errônea tentativa de utilização do modelo na t~zade compreender,coisasque se percebe que merecem ser compreen- J
didas, Em todo caso,não há, sem dúvida alguma, um domínio onde o
3 Palestra proferida pelo professor Ademir Gebara em mesa redonda sobre Esporte, História e "poder dos experts" e o monopólio da competência seja mais perigoso /
Cultura no I Congresso Científico Latino-americano FIEP- UNIMEP: o fenômeno esportivo no e mais intolerável. E a sociologia não valeria nem uma hora de esforço /
início de um novo milênio. Piracicaba, Faculdade de Educação Física da Universidade Metodista
de Piracicaba, junho/2000. se fosse um saber de especialistareservado aos especialistas. ~
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No "exercício" proposto entre a teoria dos campos de Bourdieu e De posse destas considerações, renovamos o convite ao leitor para
a história do voleibol, estamos levando em consideração os objetivos acompanhar, a seguir, os possíveis naufrágios que proporcionaram
básicos que estruturaram a lógica de pensamento no modelo. Com esta condição de enfrentamento nas questões suscitadas pelas inter-
Catani, entendemos que, para superar as barreiras instauradas que faces da história do voleibol e do modelo de análise sociológica de
distanciam o discurso científico e os potenciais consumidores dessas Pierre Bourdieu.
informações, temos que romper com algumas características, que a
princípio potencializam a atitude de resistência à leitura ante a emi-
nência de um possível naufrágio teórico. Para Bourdieu, a referência ÀPROFUNDANJJO NOS CONCEITOS E NO MODELO
deste argumento é construída com base na lentidão e complexidade ANALÍTICO/'
de elaboração do conhecimento científico, o qual requer um capital
r- Lourd· . , . -
cultural específico; na impessoalidade abstrata que compõe a infor- leu Inscreve seus ressuPQstm teoncos em um modelo de
mação; e, principalmente, na distância impetrada entre as convicções álise.que-eevcl e agentes sociais, estruturas e disposições num cons-
primárias do leitor e as proposições teóricas do autor (BOURDIEU,
1983, tante processo de interação. Identificando os conceitos básicos da
p. 8). Dado o rompimento com estas características, consolida-se uma abordagem, detectamos que categorias interpretativas da realidade
posição que passa pelo compromisso de resgatar a capacidade e a desenvolvidas em outras áreas do conhecimento são cabíveis no âm-
autonomia no campo intelectual, possibilitando, em consonância, o bito de análise das questões que permeiam as discussões do esporte. I

engajamento crítico dos agentes sociais em seus respectivos espaços Não obstante esta consideração, ficam reconhecidas as tradicionais
de intervenção. possibilidades de construção ou delimitação de fronteiras, isso com
Portanto, como afirma Catani, temos que entender Bourdieu en- o entendimento prévio de que estas se constituem pela autonornização
quanto autor criador de pensamento original, e, além disso, fazer dele dos campos de conhecimento. A princípio, a relação entre o modelo
uma "leitura de leitor" que pretende apropriar-se deste referencial de bourdiano e uma modalidade esportiva poderia parecer um tanto
análise, ou seja, pensar a partir do modus operandi do autor. Neste deslocada, porém a discussão sobre o esporte tem encampado u
sentido, a contribuição de Bourdieu pode ser realçada na perspectiva conhecimento muIti e interdisciplinar, que no limite amplia o univers
de análise das condições produtoras de esquemas dominantes nos de entendimento acerca da sua composição.
diversos campos estudados em sua obra. Pelos seus próprios pressu- Quando tra a s-w-m-OOI-l.Ceitos
e.modele ,aãverte Bôurdieu,
postos, tais esquemas geradores ou estruturas têm a capacidade de é preciso levá-Ios a sério, apreendê-Ios, controlá-Ios e, sobretudo, utilizá-
manifestarem-se de forma estruturada e estruturante num mesmo los de modo que se evite o equívoco de torná-Ios fossilizados ou
campo de ação e, relativamente, num mesmo espaço temporal. Tra- fetichizados. Para o autor, "um bom conceito destrói muitos falsos pro-
tando de composição conceitual, é necessário visualizarmos que são b.t.~e faz surgir muitosoutros, mais reais" (BOURDIEU~
1983, p. 95).
as disposições de pensar e ver o mundo social- representadas nas es- No arcabouço teórico de Bourdieu encontramos, consistentemen-
truturas e no seu poder simbólico - as principais responsáveis pela te definidas, formulações epistemológicas orientadoras do processo
arquitetura dos conceitos em Bourdieu. de problematização que repousa essencialmente na mediação entre o
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agente social e a sociedade, incluindo neste contexto as questões so- r objetivismo e subjetivismo. A primeira "constrói as relações objetivas
bre o campo esportivo. Na apropriação do seu pensamento teórido, que estruturam as práticas in~.Lduais", e a-segu-nda "parte da expe-
( identi~i~amos três aspect~s centrais q~e ~e~ão aqui t~atados. S~o e es: riência rimeira do indivídu ' (ORTIZ,1994, p. 8). De um lado trata-
. a explicitação do conhecimento praxlOlog1co, a noçao de habitu e o se dos fatos sociais como "coisas", desconsiderando as atribuições de
: conhecimento do campo.~ . serem objetos de conhecimento ou desconhecimento na existência
L--rrêstãCãfficrs-a-wnfefência realizada na Universidade de San Diego social. Em contrapartida, reduz-se o mundo social às representações
em março de 1986, na qual ele pincela uma caracterização para os seus que os agentes sociais elaboram, produzindo assim o que o autor cha-
trabalhos (BOURDIEU, 1990, pp. 149-168). Tecendo um comentário irô- ma de account af the accounts ("explicação das explicações"). Estas
nico sobre a tendência de os intelectuais criarem rótulos para o con- perspectivas, invariavelmente, são postas de forma que se destaquem
junto de idéias de seus pares, Bourdieu retrata que, se tivesse que lhe as oposições, ou seja, no objetivismo o conhecimento científico só é
aplicar um desses rótulos, ele mesmo falaria de um "construtivismo obtido ante uma ruptura com as representações primeiras - "pré-no-
estruturalista" ou de um "estruturalismo construtivista", tendo como ções" para Durkheim e "ideologias" para Marx - que caminham para
fundamento para a palavra "estruturalismo", o sentido a ela atribuí- causas inconscientes. Para o subjetivismo, a cientificidade apresenta
do pela tradição saussureana e lévi-straussiana (idem, 1990, p. 149). uma contínua afirmação ou aceitação no conhecimento e derivações
Pelas prerrogativas estruturalistas, o autor identifica no mundo do senso comum. Bourdieu intencionou construir seu modelo supe-
social- e não apenas nos sistemas simbólicos (mitos, linguagem etc.) - rando a leitura dessas aparentes insomparibilidâdes eiiffe'ãs'perspec-
a existência de estruturas objetivas autônomas das vontades e da cons- tivas ~bjetivi:tas e subje-ti~istasyComo. resolução da polêmica, ~mer-
ciência dos agentes sociais. Essas estruturas têm a capacidade de ori- /nas refle)(oe-s-~~te-tr6conheClmento que pretende articular )
entar ou coagir as representações e as práticas de seus agentes. Tam- dialeticamente objetivi mc.e.subjetivismo, ator e estrutura social, o
bém é ressaltado, na observância das estruturas sociais, o que Bourdieu _qual é chamado d~ológi~o.
chama particularmente de campos e grupos sociais'. No entendimento
~ ~~-~~---------
de construtivismo é destacada a operância de uma gênese social dos Embora com o risco de parecer muito obscuro, poderia resumir
esquemas de percepção, pensamento e ação, que são considerados em uma frase toda a análise que estou propondo hoje: de um lado, as
como elementos constitutivos do conceito de habitus. estruturas objetivas que o sociólogo constrói no momento objetivista,
./ --Abordand~ problemática-es-tT-tItn1ã1ls1 a em termos gerais, descartando as representações subjetivistas dos agentes, são o funda-
( :-..Bourdieu afirma que, para alguns intelectuais, a antropologia, a his- mento das representações subjetivas e constituem as coações estrutu-
tória e a sociologia oscilam entre dois pólos ou métodos epistemoló- rais que pesam nas interações: mas, de outro lado, essas representações
gicos aparentemente incompatíveis, ou melhor, entre duas perspecti- também devem ser retidas, sobretudo se quisermos explicar as lutas
vas aparentemente inconciliáveis e antagônicas reconhecidas como cotidianas, individuais ou coletivas, que visam transformar ou conser-
var essas estruturas. Isso significa que os dois momentos, o objetivista e
4 Sobre o tratamento dado ao conceito marxista de classes sociais, Bourdieu aborda-o de manei- o subjetivista, estão numa relação dialética e que, por exemplo, mesmo
ra critica procurando explicitar que a noção de grupos sociais e espaço social é mais apropria-
/<1 da para o estudo das relações existentes no interior da sociedade, Cf. Bourdieu, 1990, p, 156,
se o momento subjetivista parece muito próximo quando o tomamos
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88 ESPORTE BOURDIEU
E A TEORIADO CAMPOESPORTIVO 89

isoladamente nas análises interacionistas ou etnometodológicas, ele está de posições exteriores umas às outras, definidas umas em relação às
separado do momento objetivista por uma diferença radical: os pontos outras, não só pela proximidade, pela vizinhança ou pela distância,
de vista são apreendidos enquanto tal e relacionados a posições dos mas também pela posição relativa" (BOURDlEU, 1990, p. 152). Decorre
respectivos agentes na estrutura [BOURDlEU,1990, p. 152]. desta leitura o papel das pesquisas na história social e na sociologia,
-" - ----- -- - -- "".-------- ou seja, efetivar a análise das posições relativas e das relações objeti-
!\"' r: ~onta do conhecimento praxiológ.ico, a açã~ social n~o é.~ai·s vas neste contexto. Não obstante, é importante destacar que no uni-
l considerada como mera execução, mas SIm um nucleo de significa verso social se estabelecem relações simbólicas de manutenção e de I
ção do mundo. A sociedade não se sustenta enquanto totalidade, s reconhecimento das distâncias sociais, as quais são determinadas por r ~,-IJ~I
na intersubjetividade originária da ação do sujeito. Uma interpr ta- aquilo que Bourdieu chama de concorr~ncia pel~ ap.ropriaç.ão de bensrl-1~
r ~J'
~)A 1

ção imediatista de tais referenciais poderia conduzir ao equívo o de :~r:~~s do acúmulo das formas ~apltal econ~o, SOCIal ou eul-\) v~
\\ imaginar-se Bourdieu enquanto um teórico fundamentado no
ceitos weberianos, quando, na verdade, a vertente - mesm Da forma de pen~amento relacional, .direcionamos o foco te~ I
\ subliminarmente - aproxima-se mais dos constructos marxist para a noção de habitus, na qual Bourdieu se deteve com profundi- A\
\\~- dade em várias passagens de sua obra. Numa delas, o autor descreve ~iji_
Muito embora sua abordagem se aproxime, algumas vezes, da so- que habitus pode ser considerado "um sistema de disposições adqui-
ciologia dos atores de Weber ou das teorias sociológicas mais recentes ridas pela aprendizagem implícita ou explícita que funciona como um
como o interacionismo simbólico, delas se diferencia na medida em sistema de esquemas geradores, é gerador de estratégias que podem
que, ao reintroduzir o agente social negligenciado pelo objetivismo, não ser objetivamente afins aos interesses objetivos de seus autores sem
reproduz simplesmente os argumentos desenvolvidos pela escola feno- t ido expressamente co . idas ra este fim" ( OURDIEU, 83,
menológica, mas vai além deles, no sentido de sua superação [ORTIZ, J • 94). Ele evoca, em conferência realizada na lversidade de Gene-
1994, pp. 12-13]. bra em dezembro de 1978, a longa tradição da noção através da
iscolãstica na tradução de Aristóteles; em Durkheim, na L'evolution ;1
Neste processo de superação da oposição estabelecida entre as re- pedagogique en France; e em Mauss, no estudo das técnicas sobre o
presentações subjetivas e as estruturas objetivas, Bourdieu alerta so- rpo (idem, 1983, pp. 10 ::-t1)'5 .
bre a importância de rompimento com o modo de pensamento O autor revela que o uso desta antiga palavra permite a apro-
substancialista, o qual conduz ao não-reconhecimento de nenhuma imação ao que conhecemos por hábito, porém diferenciando-o e
outra forma de realidade além daquelas que são oferecidas através da 11m. ponto considerado essencial. Habitus é algo adquirido e "enca -
intuição dos indivíduos ou grupos no cotidiano. O avanço proposto nado" no corp~orma durável e com o contorno d~-
na abordagem estruturalista consiste em aplicar ao mundo social um Jl \nnane~odemos incluir no conceito a visão histórica, ou me-
modo de pensamento relacional que identifica o real e as suas relações. 111 , huiiitus estaria ligado à história individual, considerando que
A realidade social de que fala Bourdieu é tida como "um conjunto de I1 noção pressupõe uma propriedade, um capital adquirido. Em
relações invisíveis, aquelas mesmas relações que constituem um espaço untrapartida, hábito é tido como um sentido repetitivo, mecâni-
90 ESPORTE

/
~\- BOURDIEU E A TEORIA DO CAMPO ESPORTIVO 91

co, aui ~o e meramente reprodutivo. Para Bourdieu (llJlll, 1111 t( de habitus, a concepção de modus operandi, ou seja, uma dis-

l
P:--Z.;:~ti~~S é um conceito que incorpora um enorme pot '111 ,I( stável para atuar numa dada direção - considerada, em decor-
aI gerador, é produzido pela história e, relativamente, apresentu cI I til 1 ia naturalidade existente entre sujeito e objeto, a se.un
mensões do sistema de esquemas geradores de práticas e de pcrcop 11111 n. O ou natureza do homemjO passo seguinte àincorporação do
ção das práticas: )-------- . ------- 1111i it foi sua reinterpretaçãrno interior do embate objetivisrno-
11111 ílvismo, no-qualnavi us, sendo produto das relações sociais, in-
111 I 11111 processo de conformação e orientação da ação, tendendo a

j [...] o habitus é um produto dos condicionamentos


duzir a lógica objetiva dos condicionamentos
uma transformação; é uma espécie de máquina transformadora
que tende a repro-
mas introduzindo neles
qu t
I

uulnrrne
I' \I rn r a reprodução

'"1'1 ( i-se em um
aparece em
dessas relações que o constroem.
ORTIZ, 1994, p. 15), conceitualmente,
Para Bourdieu
o habitus I

I
~ faz com que nós "reproduzamos" as condições sociais de nossa própria
"""-Iy produção, mas de uma maneira relativamente imprevisível, de uma t
maneira tal que não se pode passar simplesmente e mecanicamente do I "I sistema de disposições duráveis, estruturas estrutura das predispostas
conhecimento das condições de produção ao conhecimento dos pro- I luncionarem como estruturas estruturantes, isto é, como princípio
dutos. '1" ra e estrutura as práticas e as representações que podem ser obje-
tlvnmcnte "regulamentadas" e "reguladas" sem que por isso sejam o
Levando-se em consideração o surgimento de determinadas 011 1'10 luto de obediência de regras, objetivamente adaptadas a um fim,
imprevistas situações e a necessidade de respectivas adaptaçõ S, CI 1111 que se tenha necessidade da projeção consciente deste fim ou do
habitus pode passar por processos de ajustamento que lhe confer 'ltI .lumtnio das operações para atingi-lo, mas sendo, ao mesmo tempo,
transformações duráveis dentro de certos limites. di
Entre as razões 11" tivamente orquestradas sem serem o produto da ação organizadora
correntes deste mecanismo está o fato de o habitus definir a per 'P di 111'\1 maestro. -----------------------------------------
ção da situação que o determina. Em outras palavras, a "situação" I

sob certos aspectos, a condição que viabiliza a efetivação do haoitu (I itabitus apresenta-se como social e individual, não obstante ele

mediante sua capacidade assimiladora. O conceito pode então ser 'li 111110 e reporta Un;t sistema de classificação. No sentido que classi-
tendido como uma "estrutura estruturada predisposta a funci 1111 I I H'S ão ~videnciadas pelas posições sociais, e que a estrutura ob-
como u~utu-r-a-e·S·tl"u-tt1Ta-nt ". - I Ii ti distribuição dos bens materiais e simbólicos na sociedade
BôiÍrdieu estabelece a teoria dos campos considerando o ator o 111 ( fundada em parâmetros de desigualdade, toda classificação,

tial em função das relações objetivas que regem a estruturação da o IIIC'1l10 gerador ou atribuição social tende a reproduzir relações ta-
iedade, ou seja, uma relação dialética entre situação e habitus. 1\ I ti II por um processo de desequilíbrio e dominação social.

situação particular do ator social se encontra objetivamente estruturu 1'111 ndidos esses pilares do modelo de análise, batizado por Bourdieu
da e sua adequação ao habitus permite considerar tanto as necessidu (ruturalista, podemos passar à explicitação do conceito de campo.
~-ffies-qUãffft)(lobjeLivid-aàe-da..sociedad . Com a construç 11 I!I sição a um grupo de filólogos e historiadores da literatura na École
da teoria dos campos, Bourdieu introduz a dimensão escolásti a 111 ,",,,fl' upérieure de France, em novembro de 1976, Bourdieu abordou
" • .':ri.., ~ .J
.J, 'I
92 ESPORTE BOURDIEU
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DOCAMPO
ESPORTIVO93 I

o conceito de campo como "espaçosestruturados de posições (ou de pos- riores, orienta as estratégias ulteriores. Esta estrutura, que está na ori-
tos) cujas propriedades dependem das posições nesses espaços, podendo gem das estratégias destinadas a transformá-Ia, também está sempre
ser analisadas independentemente das características de seus ocupantes em jogo: as lutas cujo espaço é o campo têm por objeto o monopólio da
(em parte determinadas por elas)"(BOURDIEU, 1983, p. 89). Ou ainda, no violência legítima (autoridade específica)que é característica do cam-
espaço em que ocorre a interposição social, no qual as posições dos agen- po considerado, isto é, em definitivo,a conservação ou a subversão da
tes são a priori fixadas, "o campo sedefine como o loeus onde se trava uma ístrutura da distribuição do capital específico.(Falar em capital especí-
luta concorrencial entre os atores em torno de interesses específicos que ~co é dizer que o capital vale em relação a um certo campo, portanto
caracterizam a área em questão" (ORTIZ,1994, p. 19). Para Bourdieu o dentro dos limites desse campo, e que ele só é convertível em outra
campo não é resultado das ações individuais. Nele é permitido estudar as espécie de capital sob certas condições)[BouRDlEU,1983, p. 90].
relações existentes em um loeus determinado e as estratégias dos agentes
\ ~-'-'\ -o
~ - - - .- .-
que compõem o esquema de transformação ou conservação da socieda- Um campo é identificado na constituição e na definição dos seus
de. "O campo particulariza-se, pois, como um espaço onde se manifes- objetos de disputa e de interesses específicos. Mesmo havendo a pers-
tam relações de poder, o que implicaafirmar que ele se estrutura a partir pectiva da universalização de funcionamento dos campos, estes são
da distribuição desigual de um quantum social que determina a posição irredutíveis às peculiaridades de outros campos, e também impercep-
que um agente especifico ocupa em seu seio" (ORTIZ,1994, p. 21). tíveis aos olhos das pessoas que não foram formadas no interior des-
Na constituição do conceito surgem leis gerais, dentre as quais se se determinado campo. Para garantir o funcionamento de um cam-
destaca que campos distintos possuem normas de funcionamento po é necessário que existam, além dos objetos de interesse e de dispu-
invariantes, o que torna possível a utilização do aprendizado de um ta, pessoas dotadas de habitus que identifiquem e legitimem as leis
estudo de determinado campo na interrogação e interpretação de imane.ntes deste "jogo" de relações.
outros. Neste processo, propriedades específicas de um campo parti- Outra lei geral ou propriedade dos campos - porém menos visí-
cular são descobertas podendo fazer avançar o conhecimento dos vel- detecta que todas as pessoas envolvidas num campo têm em co-
mecanismos de funcionamento universais dos campos, mesmo com mum um certo número de interesses fundamentais, decorrendo uma
pertinência secundária em determinados momentos e circunstâncias. cumplicidade subjacente aos antagonismos existentes no interior
Dentro da particularidade de cada campo há formas de disputas, lu- deste. Nesta perspectiva, os pressupostos constitutivos dos campos são
tas e competições, sendo que vislumbramos em cada uma delas a es- aceitos (conscientemente ou não), dado o fato de o agente social es-
pecificidade das relações entre o"novo" - que tenta garantir o direito tar inserido ou inserindo-se no "jogo". Os participantes das disputas
de participação - e o dominante - que defende o monopólio objeti- garantem a reprodução do "jogo" e contribuem para a produção de
vando excluir a concorrência. , valor no que está sendo disputado. Considera-se no estudo dessa

A "tmtu" do "mpo é ~,:ao da relação de força ent" o,


gentes ou as instituições engajadasna luta ou, se preferirmos, da dis-
\
propriedade a existência da relação entre habitus e campo, que é orien-
tada objetivamente em relação aos fins.
Outro ponto que chama a atenção é a proclamada conivência na
t ibuição do capital específicoque,acumulado no curso das lutas ante- \ truturação do campo social entre ortodoxos e heterodoxos. Atra-
94 ESPORTE BOURDIEU
EATEOR1A
DOCAMPO
ESPORT1VO95

r , I,;

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vés dela, instala-se um processo de consenso proveniente do "de: 11111\III política, tem seu próprio tempo, suas próprias leis de evolu-
conhecimento" de que o mundo social é um espaço de conflito' di' I1I \I S próprias crises,em suma, sua cronologia específica.
concorrência entre grupos com interesses distintos ou, COlHO
referencia o sociólogo Renato Ortiz (1994, p. 27), "a história do cam 1\ • t ria das práticas esportivas só pode ser uma história estru-
po é a história que se faz através da luta entre os concorrentes n iu ti, 111.i I rando todas as transformações sistemáticas provenien-
terior do campo". Partindo deste ponto, surge uma crítica ao COII (" IIlfrimento de um novo esporte ou da difusão de um já exis-
ceito de habitus, na medida em que ele reflete uma tendência à I'l' II I v ti meia o autor que o espaço dos esportes não é um universo
produção social, que no limite inviabilizaria um movimento d(' I1I I, 1 11 i mesmo, mas sim inserido em um sistema de práticas e
transformação. Porém, decorre dessa crítica o conceito de autono I 111111I onstituídos por eles próprios (BOURD1EU,1990, p. 207-
mia, que implica a existência de relativa independência dos campo II 1I I argumentação, temos que um programa de práticas es-
em relação às transformações político-econômicas que ocorrem nu I1 II 11 é o mesmo no decorrer de diferentes décadas, ou seja,
sociedade. Em consonância, levanta-se o indício metodológico cio 1111\'\ íl 1 , na sua objetividade e nas suas representações, pelas \
reconhecimento da história dos campos e das disposições que cara' 1'1 .11, 'S de que foi objeto e pelas especificidades impostas nas dis::._ _
terizam os agentes sociais, como uma vinculação que permite o los agentes sociais nele inserido.
dom~l1io da tradução das especificidades existentes neste espaço
so\:ia1. . ef ito de apropriação social faz com que, a todo momento,
t\,9>/Tr-ansp~ conceitos bourdianos para o fenômeno espor I. 1\11\'13 "realidades" oferecidassob o nome de esporte seja mar-
~~/tivo, temos que, na compreensão e no entendimento das relações s t. I'" ohj tividade, por um conjunto de propriedades que não estão
truturadas na história de uma modalidade esportiva, é necessário I' '. II 1I 1 I1 definição puramente técnica, que podem até ser oficial-
conhecer qual é a posição ocupada por essa modalidade no determ i I lu/das dela, e que orientam as práticas e as escolhas... [idem,
nado campo. Também é importante relacionar esse espaço esportivo I I
com o espaço social das suas representações, tendo a dimensão de qu '
é dessa relação que se definem as propriedades pertinentes deIcada cs 1.111
----
I ilrnente,
----
o diferencial no processo de ãpropriação das
porte. Nesse contexto, devemos estar conscientes dos cüidadcs a se- , I purtivas é o estabelecimento de relações entre o espaço d:J
rem tomados no intuito de evi~ar a tendência de ~e~uzir t~d,a ~xp(~. I. I mirado para as práticas possíveis - e o da rocura - es- .
cação da relação campo e habitus, de forma mecaruca e direta, a 01'1 I 1101 I J às disposições para as práticas Em outras palavras,
\ gem social balizada nos discursos genealógicos e nas rotinaslde pes- I', 11\ nutra-se um espaço para os programas esportivos, no
\ quis~. 103). ~, I1 I1II rizam as propriedades intrínsecas e técnicas do esporte.
ara Bourdieu (1983, p. 137), II1 li dt'st' ca-se o espaço das disposições esportivas - enten-
IIIII//II/J/lus que estão marcados pelas respectivas posições so-
Ahistória do esporte é uma história relativamente autônoma que, mes- '1itl 111I terminada instância são d~i~§"P1:1a particula-
mo sendo articulada com os grandes acontecimentos da história eco- II I 111l tual d . ferta. - esta perspectiva, é possível adrni-
~
96 ESPORTE ,,~ ..., )/
\ BOURDIEU
EATEORIA
DOCAMPO
ESPORTIVO97

tir que os limites dos usos sociais de um determinado esporte, mes- sistemáticas ocorridas desde o surgimento de determinada prática até
I
mo respeitando suas propriedades intrínsecas, .ppdeJJLser extrapo- o seu estado atual. Assim sendo, podemos continuar.
lados na sua objetividade iniciar«U~ prática esportiva~,sua O voleibol teve origem nos Estados Unidos da América em 1895,
definição téênica, (intr~câ:sempre apresenta uma grande ela~- na cidade de Holyoke, em Massachusetts, com o nome de minonettei.
cidade, logo, 'Oferece uma grande disponibilidade para usos totalmenL Seu idealizado r foi o diretor de educação física da Associação Cristã
te diferentes, até opostos, também pode mudar de sentido (BOURDlE, de Moços (ACM) local, professor William George Morgan". O bas-
~o, p. 215)". - - _ quetebol tinha sido instituído havia poucos anos - dezembro de
} ~fJeacorQo com este pressuposto, o esporte, segundo Bourdi u, 1891 por Iames Naismith, ex-professor de Morgan - e difundira-se
~ode declarar duas distintas formas de leitura. Uma tida corne rapidamente dado sua prática ser realizada em ginásios cobertos e
Jincrônica, na qual uma modalidade está ligada diretamente às diS-\ fechados. Erao esporte dominante da época, porém considerado
bosições evidenciadas nos agentes de uma determinada posição so- cansativo e de enérgicos contatos para homens de idade avançada.
cial. Outra, de forma diacrônica, pela qual o esporte oferecido pode \ Diante disso, e da sugestão do pastor Lawrence Rinder, Morgan pre-
, ser apropriado por agentes de disposições variadas, ou seja, os pro- coniza um jogo de menor valência física para os associados mais an-
I gramas esportivos têm a possibilidade de atender os mais diferentes tigos da ACM:
1 grupos sociais, assim como uma determinada disposição pode apro-
pr'ar-se âequalquer-pr-á-tic . o Voleibol veio preencher uma lacuna em matéria de jogos. Trata-
Após essa inserção nos conceitos e no modelo bourdiano, prosse- se de um jogo de recinto fechado, para os que desejam uma modalida-
guimos com o «exercício", resgatando alguns dados sobre a história do de esportiva menos rude que o bola-ao-cesto, mas que ainda requer
voleibol que permitirão analisar o campo esportivo através do pen- certo grau de atividade. É um jogo adequado a ginásios ou pátios de
samento relacional suscitado por Bourdieu. exercícios, mas que também pode ser jogado em campo aberto. Pode
jogá-lo qualquer número de jogadores, O jogo consiste em manter uma
bola em movimento sobre uma rede alta, participando, assim, do cará-
A CONSTRUÇÃO DE UM CAMPO ESPORTIVO ter de dois outros jogos: tênis e handbol. O Vôlei obriga à prática cons-
tante de sentimentos superiores sob a pena, de quem não o fizer, de ser
Como relatado anteriormente, os estudos atuais sobre os espor-
tes apresentam várias frentes de análise, diferentes metodologias e
5 O jornalista Sílvio Lancellotti defende que a origem do voleibol foi na Alemanha no final do
diferenciados referenciais teóricos. Contudo, revela-se uma carência século XIX, O jogo era denominado [austbail. pois [aust em alemão significa punho, Seu artigo
de abordagens que favoreçam a interpretação das possíveis relações e relata que o jogo se transformaria em modalidade competitiva nos Estados Unidos através da
"criação" de Morgan, a qual ficou conhecida com a finalidade de "promover os fracos e oprimi-
interdependências dos objetos de estudo diante da realidade social em dos", Cf. Lancellotti, 1994, pp, 16-17,
que se encontram. No sentido de superação deste quadro, adentramos G Nascido em 1870 na cidade de Lockport, Nova Iorque, William George Morgan formou-se
professor de educação física no curso regular da Young Men Christian Association em Holyoke,
o campo esportivo do voleibol considerando a história das práticas
Massachusetts. O idealizado r do voleibol faleceu aos 72 anos de idade, em 27 de dezembro de
esportivas como uma história estrutural que revela as transformações 1942, na sua cidade natal.

j
I I 98 ESPORTE BOURDIEU
EATEORIA
DOCAMPO
ESPORTIVO99

excluído como elemento desnecessário e mesmo prejudicial; natural- mento do jogo ficou restrito às contribuições e à dedicação do Dr.
mente repelido pelos demais companheiros, interessados no sucesso Frank Wood e do professor Iohn Linck.
do quadro. Sob o ponto devista social é uma recreação agradável e um Nesse primeiro levantamento sobre a criação do voleibol, pode-
processo poderoso de aproximação e de estímulo, incentivando em to- mos destacar algumas peculiaridades diferenciais, comparando-o com
dos, como esporte coletivo que é, o espírito de corporação imprescin- o surgimento de outras modalidades esportivas. Assim como o bas-
dível à consistência de toda a organização social. Agrada, diverte e be- quetebol, o voleibol não foi uma prática que com o passar do tempo
neficia o indivíduo e a coletividade", assumiu um processo de desportivização, em outras palavras, a mo-
dalidade foi inventada como um jogo portador de um conjunto de re-
I Em sua estrutura original o jogo era disputado em nove pontos e gras e características que o insere no universo dos esportes. E mais, o
uma quadra era dividida poruma rede semelhante à do tênis com uma voleibol é um esporte inventado no Estados Unidos, distante e dife-
altura aproximada de 1,98 fi, sobre a qual se rebatia uma câmara de rentemente do perfil e das expectativas das práticas desportivizadas
I

bola de basquetebol. A primeira bola de basquetebol utilizada era européias, como o futebol na Inglaterra. Nessa linha de raciocínio, de-
considerada muito pesada, e somente a câmara com o tempo tornou- tectamos a possibilidade da existência de uma nova via de dissemi-
se muito leve. Morgan solicita, então, à firma A. G. Spalding & Brothers nação esportiva que não exclusivamente a eurocêntrica, dito de ou-
a produção de uma bola específica para o esporte emergente, a qual tra forma, é aceitável a hipótese de que a constituição dos campos
só foi aprovada após várias experiências em busca de um equipamento esportivos, especificamente nos países da América Latina", tenha res-
satisfatório (DAIUTO,1963,p. 6). peitado não só, mas também, modelos distintos daqueles vindos dos
Inicialmente a prática do minonette ficou limitada à cidade de esportes "batizados" em países como a Inglaterra, a França, a Itália e
Holyoke e aos associados da ACM. Contudo, após uma conferência a Alemanha.
de Morgan na Escola dos Operários Cristãos (atual Universidade de Ainda a respeito da origem do voleibol. Ao ler as palavras de
Springfield), para os diretores de educação física dos Estados Unidos, Morgan referentes aos objetivos e ao público a ser atingido pela mo-
e demonstração do jogo por duas equipes de Holyoke, o minonette dalidade, percebe-se fundamentalmente que o esporte nasceu respei-
difundiria-se nas demais cidades de Massachusetts e Nova Inglater- I ndo as necessidades de uma elite, qual seja, uma elite clubística cristã.
ra. Também foi observada a instalação de quadras nas praias, estações 11m momento algum encontramos nos escritos de Morgan alguma
de veraneio e playgrounds. Este fato aumentou significativamente o menção à popularização do esporte ou que o voleibol fosse uma prá-
número de praticantes e sua popularidade. Foi em Springfield, após I a desenvolvida além dos clubes. Esse processo ocorreria posterior-

as constantes análises sobre as formas e o objetivo do jogo, que o Dr. IIIC nte, não sabendo se em concordância com os preceitos iniciais de
A. T. Halstead sugeriu a mudança do nome minonette para volleyball.
Com a transferência de Morgan para sua cidade natal, o desenvolvi- HSIudos recentes sobre a influência européia e norte-americana na emergência e difusão dos
J1 rres modernos nos países da América Latina podem ser encontrados nos Anais do VII
.nngresso Brasileiro de História da Educação Física, Esporte, Lazer e Dança, Porto Alegre,
I/PIIGS, 2000, mais especificamente nos artigos dos professores J. A. Mangan da Universidade
7 WilIiam George Morgan, em "Quase 100 anos de disputas - História". Caderno Especial do 11 .lro1hclyde, Reino Unido; Ioseph L. Arbena da Clemson Universidade, E.U.A.; e Lamartine
Estado de S. Pau/o, 28 out. 1984, p. 8. I' 1111Costa da Universidade Gama Filho, Brasil.
100 ESPORTE BOURDIEU E A TEORIA DO CAMPO ESPORTIVO 101

seu criador. O que vale registrar é que a burguesia emergente ameri- de habitus. De início a modalidade apresenta-se como uma estrutura
cana necessitava de uma atividade que poupasse os "homens de ne- estruturada respeitadora de normas constitucionais, porém, com sua
gócios'" dos contatos mais ríspidos e das oscilações climáticas do in- aceitação e propagação de um status social específico, ela alinha-se
verno americano. Nesse ponto, a contribuição de Bourdieu pode ser como uma estrutura que passa a ser estruturante dos comportamen-
levantada ao analisar que, na determinação do campo esportivo, um tos e da ação social de seus componentes.
conjunto de disposições era exigido pela estrutura que se formava para Como Bourdieu afirma, a constituição de um habitus social deman-
a modalidade, ou seja, para estar inserido nesse campo, das pessoas da uma distinção de classes, assim sendo, podemos ler na origem do
envolvidas eram cobradas determinadas representações sociais. Era voleibol uma via para a efetivação desta premissa sociológica. Vejamos
uma modalidade para os sócios da Associação Cristã de Moços, pre- nas palavras de Morgan. Ele aponta para o voleibol como um "proces-
ferencialmente profissionais liberais. Nos termos bourdianos, os pri- so poderoso de aproximação" que, primando pelas características dos
meiros traços para a constituição de um habitus esportivo social esportes coletivos, incentiva "o espírito de corpo ração imprescindível
manifestavam-se com esta caracterização. à consistência de toda a organização social". No início deste texto, tive-
A essas características formativas do habitus, podemos associar ou- mos o cuidado e a insistência de deixar bem explícitos e claros os obje-
tras linhas delimitadoras. Da citação anterior percebe-se que, para ser tivos do modelo bourdiano, dentre os quais proclamar de forma aces-
um participante deste universo esportivo, o jogador tinha que apre- sível os mecanismos que repercutem a reprodução social e as princi-
sentar um capital social e cultural específico balizado pela "prática pais formas de dominação oculta. Aproximando tais objetivos e as pa-
constante de sentimentos superiores», pois se assim não o fizer, fatal- lavras supracitadas de Morgan, podemos discutir a respeito do viés
mente será considerado como "um elemento desnecessário e mesmo ideológico que o voleibol assumiu nas palavras de seu idealizador. Qual
prejudicial" para o bom andamento da modalidade. Assim como nós, a preocupação básica ao se criar uma modalidade esportiva que possui
I, o amigo leitor deve estar perguntando que tipo de "sentimento supe- como característica a aproximação de seus componentes com o intui-
,I
rior" seria este exigido por Morgan? Melhor seria se ele pudesse res- to de garantir a corpo ração e a consistência organizacional de uma
ponder, entretanto, pelo modelo de análise de Bourdieu, ousamos res- sociedade capitalista em ascensão? Aqui se depara com um foco de
II ponder inferindo que tais sentimentos nada mais são que determina- análise que permite ao estudioso da teoria dos campos de Bourdieu
ções e especificidades sociais para composição e delimitação de um lcançar um dos objetivos traçados inicialmente, ou seja, transparecer
grupo social que possui, no bojo da sociedade americana, o poder rn uma modalidade esportiva as leis estruturais que delimitam um
II econômico e, portanto, decisório nos rumos de seus agentes sociais. arnpo, além de reproduzir a dominação social através do perfil exigi-
Dessa forma, o campo esportivo do voleibol passa a exigir um perfil, I de seus praticantes. Muito provavelmente, a preocupação com as
II ou melhor, um capital cultural, social e econômico específico que iracterísticas exigidas para o desenvolvimento da nova modalidade
reflete uma disposição inicialmente estável, a qual Bourdieu chamou stava direcionada para a consolidação de um grupo dominante, repre-
II -ntado na prática e na estruturação do voleibol.
eguindo com um pouco mais de história da modalidade. No ano
I 9 Essa perspectiva de abordagem para a história do voleibol foi muito bem trabalhada no artigo
IIt 1915, autoridades educacionais americanas - reconhecendo o va-
da professora Sara Quenzer Matthiesen (1994).
102 ESPORTE BOURDIEU E A TEORIA DO CAMPO ESPORTIVO 103

lor do voleibol como esporte coletivo - recomendam sua inclusão nos var a prática em outras instâncias públicas - manifesta-se a introdução
programas de educação física escolar ao lado do basquetebol e do do esporte no uso do tempo livre. Esse poder simbólico do voleibol na
beisebol. Ainda nessa data, sob a direção do professor George J. Fisher, escolarização americana difere, por exemplo, da representação do fute-
integrantes da ACM introduziram o voleibol nas forças armadas bol com origem nos colleges para as elites estudantis inglesas. Grosseira-
americanas durante a Primeira Guerra Mundial. A novidade foi bem mente, pode-se inferir que o voleibol nasceu respeitando os anseios de
recebida entre os soldados, considerando que a prática foi adotada uma burguesia capitalista emergente, ao passo que o futebol foi balizado
regularmente entre estes após o final da guerra (DAIUTO, 1963). no refinamento de uma prática desportivizada escolar para os filhos da
Muitos desconsideram este acontecimento para a história do volei- aristocracia inglesa!'.
bol e associam o seu desenvolvimento, exclusivamente, à extensa atuação Sobre o processo de expansão do voleibol do clube para as escolas
das ACMs internacionais. Mas o fato é que não podemos ignorar a im- e demais praças esportivas, o que chama atenção é a sua inserção nas
portância histórica da aceitação do jogo dentro das milícias, que alia- forças armadas americanas. Como dito anteriormente, esta instituição
das à ACM se tornaram sustentáculo para a difusão do voleibol. representou uma das principais responsáveis pela disseminação da
Também foi de extrema relevância para o esporte quando a juven- modalidade em termos internacionais. Reportando-se a Bourdieu,
tude americana passou a vê-lo como uma prática passível de ser realiza- podemos interpretar estes dados na perspectiva de que uma nação sim-
da ao ar livre e que, não necessariamente, o jogo deveria manter carac- bolicamente vitoriosa tem a capacidade, a intenção ou a autoridade de
terísticas de movimentos lentos e suaves. O grau de dificuldade na exe- reproduzir seu potencial de poder através das inúmeras manifestações
cução dos movimentos poderia ser compatível com o nível de habilida- (educacionais, esportivas, literárias, cinematográficas etc.) emergidas
des motoras de seus participantes, originando assim possibilidades de no seio de sua sociedade, servindo de modelo ou estereótipo para outros
ações mais velozes e mais vigorosas ao esporte, formas estas que acele- países. Por conta desse raciocínio, temos que o exército e a escola são
raram a divulgação do voleibol pelo mundo". vias respeitáveis se pensarmos no processo de divulgação e perpetua-
Após a consolidação do campo esportivo do voleibol na sociedade ção de determinado modelo de sociedade e das disposições de seus
americana, leia-se clubes, a preocupação passou a ser com a ampliação e agentes.
a incorporação de outras instituições. Para Bourdieu, este fenômeno ocor-
re por conta da extinção ou do encampamento de novas fronteiras. Ao Durante os anos 30, os desportos recreativos progrediram muito;
notarem que a modalidade representava determinado perfil formativo so- através da Administração Progressivados Trabalhos, cerca de 500 mi-
cial, as autoridades educacionais americanas não tardaram em incluir o lhões de dólares foram gastos em 3.700 edifícios recreativos, 888 par-
voleibol nos programas de educação física nas escolas, além de incenti- ques, 1.500 campos de atletismo e muitos outros melhoramentos. As
escolas aprenderam o valor da recreação; em pouco tempo, a maioria
das escolase diretores de recreação concordaram que o volibol era um
10 ° voleibol como esporte de competição começa a adquirir este status a partir da década de
1930 nos países da Europa e Ásia, locais onde ocorreu o aperfeiçoamento das regras, assim
como o registro de um maior número de participantes. Cf. "Quase 100 anos de disputas -
História". Caderno Especial do Estado de S. Paulo, p. 9, 28 out, 1984, e Horst Baacke. Coaches 11 Indicações sobre as questões pertinentes à origem do futebol e dos esportes modernos podem
manual}: development and status of volleyball. F1VB, capo 2, sld, pp. 37-38. ser encontradas em Hobsbawm (1988); Hobsbawm e Ranger (1984); Elias e Dunning (1992).
104 ESPORTE EA TEORIADO CAMPOESPORTIVO105
BOURDIEU

dos mais populares esportes. [...] Durante os anos 40, aumentou mais o temos a incluir que, de acordo com a especificidade de cada região,
interesse pelo volibol. No ano de seu cinquentenário, 1945, foram pu- procurou-se trabalhar capacidades e habilidades técnicas-táticas ante
blicados mais artigos sobre o volibol do que em qualquer outro ano de a constatação das particularidades culturais e características físicas de
toda sua história. [...]. Também em 1946, num estudo do ano recreati- suas respectivas populações. Este processo veio, posteriormente, clas-
vo, informou-se que o volibo1 se colocara em quinto lugar entre os sificar as "escolas" de voleibol.
desportes de equipe mais fomentados. [...] Em 1955, deu-se à USVBA No Brasil há indícios de que a modalidade foi praticada pela pri-
(Associação de Volibol dos Estados Unidos) jurisdição oficial sobre a meira vez no ano de 1915 no Colégio Marista de Pernambuco, mas
prática do jogo nos Estados Unidos para os Jogos Pari-Americanos e, fontes oficiais indicam que o voleibol foi introduzido no Brasil em tor-
em 1958, para os Jogos Olímpicos [ODENEAL
et al., 1975, pp. 12-13]. no de 1916-1917 pela Associação Cristã de Moços de São Paulo
(DAIUTO, 1963). Chegando ao território nacional após mais de 20 anos
Os primeiros países a receberem o voleibol com a expansão das da sua criação, o voleibol não foi de imediato um esporte que teve
fronteiras americanas para o esporte foram o Canadá em 1900, Cuba grande difusão. Registros evidenciam o Fluminense F. C. como uma
em 1905, Filipinas e Japão em 1908, Porto Rico em 1909, Uruguai em das poucas instituições esportivas que buscaram ofertar aos associados
1912, Brasil e México em 1916-1917. Para os países europeus, o es- oportunidades de vivenciarem a modalidade. No Rio de Janeiro, em
porte foi levado pelas tropas norte-americanas por ocasião da Primei- 1924, ocorreram os primeiros torneios oficiais de voleibol, por inicia-
ra Guerra Mundial. A modalidade foi introduzida oficiosamente na tiva do Departamento de voleibol da Associação Metropolitana de Es-
América do Sul no ano de 1910, tendo como porta de entrada o Peru. portes Atléticos.
Após a constatação de que os programas nacionais de educação física Aos Estados Unidos - após ser responsabilizado pela passagem do
da época careciam de jogos, e com base no objetivo de reestruturar e esporte recreacional para o esporte competitivo e pela divulgação in-
organizar a instrução primária naquele país, o governo peruano con- ternacional do voleibol- foram concedidas legitimidade e jurisdição
tratou uma "missão" composta pelos professores Ioseph B. Lochey e no campo esportivo, reforçando sua disposição enquanto exemplo
José A. Macknight para atender as suas necessidades. Apenas em 1912 para outros países. Neste sentido, o americano assumiu o papel de
na cidade de Montevidéu, com a apresentação do voleibol pelos mem- "doutrinador esportivo", comprovadamente se relembrarmos as mis-
bros da ACM, é que o jogo obteve reconhecimento oficial na América ões das ACMs que percorreram as "colônias" difundindo novos pro-
do Sul (DAIUTO, 1963). ramas de educação física e novos conteúdos esportivos.
A modalidade desenvolveu-se dentro dos critérios de assimilação Das pioneiras frentes da modalidade, através de estruturas estrutu-
de sua prática por povos de várias regiões continentais", Não obstante, radas nos modelos sociais americanos, perpetuava-se um esporte com ca-
racterísticas de estrutura estruturante nas diversas nações que o acolhiam.
Assim, assistimos a um exemplo de manifestação do processo de domi-
12 À guisade exemplo,o voleibolocupaum lugarde extremaimportâncianos programasde
educaçãofísicada ex-URSS.Háum programaindependenteparaestudantesa partir dosoito I1 ção oculta, o qual Bourdieu relatou em sua obra. É verdade que em
anose doensinosecundário.Nosdepartamentosesportivosescolares,maisde 70.000 pessoas nlguns países foram respeitadas as disposições locais, embora em outros
praticama educaçãofísicae 12.850.000 jovensdesportistas aperfeiçoamseusconhecimentos
emcentrosnacionaisdeesportes.Cf.Suvorove Grishin, 1998, v. I, Introdução. o modelo representativo americano imperou durante certo tempo.
106 ESPORTE BOURDIEU E A TEORIA DO CAMPO ESPORTIVO 107

No caso brasileiro, independentemente do local preciso de sua pri- de lutas, concorrência e busca de poder. A estas características soma-se a
meira incursão, pode-se incluir o voleibol enquanto modelo reprodutor construção de um habitus que se encarrega de delimitar as fronteiras desse
americano, considerando que as elites carioca, do fluminense, e paulista, determinado campo e selecionar a introdução de novos agentes sociais.
daACM, representavam a pura manifestação seletiva social clubística, na Transferindo estes conceitos para o caso da criação da FIVB, de ime-
qual foi assumido esse habitus esportivo fazendo respeitar as necessida- diato salta aos olhos um mandato institucional internacional esportivo
des e características sociais para a devida incursão neste seleto campo. de 37 anos. A manutenção de um dirigente durante um período tão ex-
Em termos de organização mundial, no ano de 1934 ocorreu a pri- tenso, seguindo o raciocínio bourdiano, permite inferir que as estruturas
meira tentativa de criar-se uma entidade internacional para o voleibol, autônomas desenvolvidas nesta entidade foram fruto dos esquemas de
com a instalação de uma comissão especial no Congresso Técnico da percepção da realidade do voleibol mundial, associados às disposições de
Federação Internacional de Handebol em Estocolmo. Muitas atividades agentes que compuseram e legitimaram o crescimento deste campo. So-
foram desenvolvidas em torno do estabelecimento da Federação de vo- mente dessa forma é possível aceitar-se a permanência de uma única pes-
leibol durante os Jogos Olímpicos de 1936, porém as iniciativas foram soa, sem oposição, à frente da Federação Internacional de Voleibol, ou seja,
interrompidas por conta da Segunda Guerra Mundial. Em 1946, repre- reconhecida a expansão e as possibilidades de penetração social da mo-
sentantes da Tchecoslováquia, Polônia e França reuniram-se em Praga e dalidade, estruturou-se o campo esportivo de forma que seus componentes
acordaram organizar um congresso em Paris no dia 20 de abril de 1947. pudessem manter o domínio sobre as deliberações oficiais do esporte.
Nessa data foi fundada a Federação Internacional de voleibol (FIVB) com Entretanto, o nível das relações que se estabelece enquanto distribui-
a filiação das seguintes federações: Bélgica, Brasil, Tchecoslováquia, Egi- ção de poder internacional não é tão simples assim. Novamente Bourdieu.
to, França, Holanda, Hungria, Itália, Polônia, Portugal, Romênia, Uruguai, Existem interesses, disputas e valor ação. No campo, ficam estabelecidas
Estados Unidos da América e Iugoslávia. A FIVB iniciou suas funções re- condutas e vias de interdependências - algo parecido com o sistema
presentando 14 federações nacionais, sendo que após o Congresso Téc- oligárquico em diferentes níveis de Norbert Elias". Essa teia ou rede de
nico de 1968, no México, registrava-se o número de 103 países associa- relações é refletida no número de federações nacionais que buscam asso-
dos. O francês Paul Libaud foi o primeiro presidente da FIVB e perma- ciar-se à FIVB - 89 novas filiações -, garantindo sobremaneira a legiti-
neceu à sua frente durante 37 anos". midade e representatividade da instituição no campo esportivo.
Analisando as posições relativas no interior desse campo esportivo e
interpretando as relações objetivas que compõem tal espaço social estru-
turado, percebem-se alguns indicativos que vão além da representativi- BOLA ESTÁ EM JOGO ...
dade administrativa. Recuperando a argumentação teórica de Bourdieu,
temos que para a constituição de um campo é necessária a existência e a Um saque, no voleibol, coloca a bola em jogo. E realmente é esta a
definição de objetos de interesse, os quais, dotados de valores, tornam-se idéia que deve ficar, ou seja: foi lançada neste texto a possibilidade de lei-
objetos de disputa, que por sua vez definem o campo como um espaço
I~ Este é um dos tópicos elencados por Elias, resultante da anáÍise das relações sociais e da distri-
buição do potencial de poder a partir do jogo com regras e competições. Para mais detalhes
13 Dados obtidos no Coaches manual 1: deve/opment and status of volleyball, FIVB capo 2, p. 38. deste estudo e desta classificação, consultar Elias (1980). .
108 ESPORTE BOURDIEU E A TEORIA DO CAMPO ESPORTIVO 109

tura dos esportes modernos com um olhar teórico que possibilite o reve- raciocínio, destacamos a necessidade de aprofundamento na pesqui-
lar das relações e o entendimento dos mecanismos que constroem as es- sa empírica do voleibol e na interpretação do seu estado atual, preo-
truturas dos campos sociais. Minimamente, tem-se a sugestão de ques- cupação esta que está constituindo-se enquanto objeto de pesquisa em
tionamentos mais criteriosos sobre as modalidades esportivas acerca de várias áreas do conhecimento'6.
sua origem, seu desenvolvimento e composição atual na sociedade. Ob- Diante do conjunto de nossas pretensões, figura a necessidade do
viamente, a intenção não é solucionar aqui todas as possíveis questões envolvimento com questões que observem o desenvolvimento da
delineadas ao abarcarmos a história de um esporte, mesmo que seja com modalidade e as condições histórico-sociais em que são construídas
alguns poucos fatos sobre o seu surgirnento, como aqui fizemos. Boa parte a oferta e a demanda dos agentes sociais, a lógica existente no proces-
desta tarefa, porém, foi enfrentada em nossa tese de doutoramento so emergente de mercantilização e espetacularização do voleibol e a
(MARCHI JR., 2001), que procurou consolidar o reconhecimento da histó-
consolidação progressiva de profissionais na produção dos espetácu-
ria e a análise das relações que se estabelecem no processo de desenvolvi- los esportivos. Este último ponto tem estruturado um considerável
mento do voleibol nacional". distanciamento entre profissionais e amadores do esporte, caracteri-
II
Deste nosso "exercício", utilizando o modelo estruturalista de zando, entre outros, o aspecto limitado de compreensão destinado ao
I análise e o pensamento relacional de Bourdieu, podemos sucintamen- público espectador e a evolução da prática do esporte pelos profissio-
te considerar que o voleibol é um esporte inventado, diferentemente nais.
dos moldes, anseios e locais europeus, a partir dos interesses de uma Estes seriam alguns tópicos que devem ser estudados mais adian-
elite cristã americana - representação de uma classe burguesa emer- te, para podermos almejar argumentações conclusivas de grande qui-
gente -, sendo que esta forjou agentes de divulgação nas mais diver- late ante a eminência de questionamentos emergentes da nova leitu-
sas formas de intervenção (clubes, escolas, guerras) com a perspecti- ra teórica sobre o esporte moderno. Contudo, a bola continua em jogo,
va de que as estruturas, eventualmente estabelecidas no interior do , este, como dito inicialmente, foi apenas um convite para o primeiro
campo esportivo, fossem capazes de compor e perpetuar uma repre- II xercício intelectual".
sentação social.
Da ordem pretérita do voleibol associada a um modelo de análi-
se, reconhecemos que os naufrágios, como sugeria o professor Catani,
não foram poucos. Entretanto, não menos desafiadores e convidati-
vos a uma maior inserção teórica. Em suma, a condição de enfrenta-
mento e encantamento fica estabelecida. A "sensação conclusiva" é de
estarmos lançando uma proposta de estudos e iniciando uma análise 111 I stacamos o estudo em conjunto da Fundação Getúlio Vargas e a Confederação Brasileira de
Voleibol, que buscou, através de comprovações e demonstrações quantitativas, ressaltar a rele-
que pode ser ampliada e, fundamentalmente, refinada. Nesta linha de vn ncia e o possível retorno com a existência de políticas de apoio ao voleibol- e ao esporte de
urna maneira geral -, revendo e analisando os aspectos históricos, econômicos, fiscais e gerado-
rr de renda e empregos da modalidade: O esporte como indústria: solução para criação de rique-
15 Existem outras teses que seguiram uma linha de análise semelhante e possibilitam um apro
/I r emprego. Também pode ser incluída nesta perspectiva a pesquisa sobre a mercantilização e
fundamento nas questões que envolvem o futebol e o atletismo. São os trabalhos de Marcelo
1\ SI ctacularização das práticas esportivas no Brasil, de autoria de Giovanni, Gebara e Proni
Weishaupt Proni (1998) e de LuizAlberto Pilatti (2000), respectivamente. ( 11)1)5).

I
1
I /I) II.HPOll'I'1l BOURDIEU E A TEORIA DO CAMPO ESPORTIVO 111
------------------------------------------------

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5
E LIAS
INDIVIDUALIZAÇÃO
E MIMESIS NO ESPORTE

Ricardo Lucena

A civilização não é "razoável" nem "racional';


como também não é irracional. É posta em
movimento cegamente e mantida em
movimento pela dinâmica autônoma de uma
rede de relacionamentos, por mudanças
específicas na maneira como as pessoas se vêem
obrigadas a conviver.
(EUAS, 1994, p. 195)

J á há algum tempo, a teoria dos processos civilizadores elaborada


por Elias vem me chamando atenção na busca de entender como e
quanto a prática do esporte se apresenta como uma questão relevan-
c para o entendimento das relações sociais de hoje no mundo e, em
I articular, no Brasil. Este texto surge como mais uma tentativa de fazer
, l4 ESPORTE EUAS: INDlVIDUAUZAÇÃO E MIMESIS NO ESPORTE 115

emergir aspectos da teoria que nos permitam lançar novos feixes de soais, no sentido de que toda criança as atravessa ao crescer" (EUAS,
luz sobre o esporte como prática introduzida no contexto de um país 1994, pp. 99-100).
colonizado, onde os "arrancos" de civilização compõem um espaço "Assim é que a sociogênese corresponde ao desenvolvimento das
relacional muitas vezes pouco considerado. -e-s'truturas sociais em longo prazo. É o processo de formação e conso-
Ne~se propósito, certamente, estou ciente de que não esgotarei o lidação do estado moderno que está em foco, como fruto de uma mo-
que há ainda para ser vasculhado sobre o esporte como lazer ou es- nopolização tributária e do uso da violência, o que implica um cres-
petáculo com base nos estudos de Elias e, principalmente, no que diz I cente grau de interdependência, diversificação de funções e regulações
respeito à tentativa de nossas elites em copiar e difundir práticas as- de ações: Cria-se, assim, com esse entendimento, uma relação mútua
sociadasa um estilo "civilizado" da vida européia, na virada do sécu- de dependência entre a psicogênese e a sociogênese como aspectos de
lo XIX para o século XX, e que, de certa forma consideradas as mu- uma mesma ordem em movimento.
danças ocorridas nesse período de tempo que separa a introdução dos Mas interessa-me aqui discutir, com base no conceito de indivi-
esportes e os dias atuais, no seu aspecto relacional, traz ainda um grande dualização e mimesis, a emergência e difusão, no Brasil, de práticas es-
trunfo como explicação de elementos da vida moderna. Mas preten- portivas que, como fruto de um esforço inicial de uma classe, esten-
do mesmo é mostrar que, para além das caixinhas onde estamos acos- dem-se na formação de condutas e apontam no sentido de um pro-
tumados a encarcerar nossos "objetos" - e o esporte é um deles -, é cesso que perdura até nossos dias. Tendo início num segmento mais
possível pensar os problemas, a nós mesmos, e as relações que daí sur- restrito é, aos poucos, expandido para outros segmentos de forma
gem como entidades em mutação e evolução. involuntária e não planejada. Por isso é que, a meu ver, para apreen-
O que, a meu ver, num contexto mais amplo, há de relevante nos dermos esse processo, temos que nos dar conta desse ritmo que é mais
estudos de Elias e que me chama a atenção é a busca da compreensão lento em uma classe - pode ser mais rápido em outra - e da propor-
de um sentido no processo civilizador que podemos perceber com ção entre eles. No contexto brasileiro, no qual emergiram e se expan-
base em investigações que ele mesmo denominou de "psicogenéticas" diram as ações esportivas, faz-se necessário perceber, conforme escla-
e "sociogenéticas" e de seu material de análise. As investigações de rece o autor (EUAS,1992, p. 252, grifos meus):
Elias estão sempre voltadas para a longa duração e, no que diz res-
peito à psicogênese, pensada com base na estrutura da personalidade Em todas as ondas de expansão que ocorreram quando um modo
humana e nas mudanças do comportamento como produto de uma de conduta de um pequeno grupo se expandiu para classesmais nume-
regulamentação e um controle dos afetos e impulsos que são cada vez rosas em ascensão,duas fasespodiam ser claramente distinguidas: uma
mais internalizados, no sentido de uma disciplinarização do próprio fase de colonização,ou assimilação, na qual a classemais baixa e nume-
indivíduo. Porém, ainda acrescenta Elias, essas mudanças não ocor- rosa era ainda claramente inferior e estava pautada pelo exemplo do
rem apenas no íntimo de cada pessoa; elas estão ligadas também ao grupo superior tradicional que, intencionalmente ou não, saturou-a
desenvolvimento das estruturas sociais. Por isso, "as transformações com seu próprio padrão de conduta, e uma segunda fase de repulsão,
da consciência tanto são históricas, no sentido de que sociedades in- diferenciação ou emancipação, na qual os grupos em ascensão aumen-
teiras passaram ou ainda passam por elas atualmente, quanto pes- tam perceptivelmente seu poder social e autoconfiança, enquanto o
116 ESPORTE ELlAS: INDIVIDUALlZAÇÃO E MIMESIS NO ESPORTE 117

grupo superior é forçado a uma maior moderação e isolamento e tor- cratização funcional (entendida como uma pressão estrutural cada vez
nam-se maiores os contrastes e tensões na sociedade. maior vinda de baixo), um autocontrole crescente e a difusão cada vez
maior de práticas diferenciadoras como os esportes ungidos por uma
Não é à toa que, se olharmos os jornais do início do século XX ou rede de tensões crescente, que poderemos considerar esse processo de
do final do século XIX, veremos que as ações esportivas como o foot- diferenciação e interdependência por que passa a sociedade brasilei-
ball, por exemplo, eram ainda muito Íntimas de um pequeno segmen- ra na entrada do século XX e que, numa observação mais atenta, nos
to, apesar da rápida expansão com que se processavam. Vale a pena possibilitará explicar comportamentos e formas de relacionamentos
reproduzir aqui a escalação do time do Paysandu C. c., para o primeiro que hoje vivemos j A medida que formos capazes de enxergar a impor-
jogo da "Liga Metropolitana de Foot-ball,'; publicado no jornal Ga- tância das atividades de lazer no contexto das sociedades altamente
zeta de Notícias em 3 de maio de 1906: reguladas de hoje e onde, crescentemente, nos inserimos, veremos com
mais nitidez o que significou e o que ainda significam as ações no
Goal-Keepet: J. Preeland. esporte. O esporte hoje, muito provavelmente, ocupa o lugar e desem-
Pall-backs: J. Robson e Murray. penha funções que, em sociedades pretéritas, outras formas de lazer
Half-backs: E. Pullen, Wood e H. Freeland. ocupavam. Não será possível pensar assim com relação ao teatro e à
Porwards: L. Robson, Alargreaves, Cruiskshank, Hampshire e G. comédia para os gregos na antiguidade clássica?
Pullen. O esporte, da forma como temos tentado abordar, emerge como
configuração que vem responder ao novo patamar de relações sociais
Note-se que, pelos nomes não se tratava, certamente, dos nossos e vai se internalizando com a expressão de um autocontrole que, cada
"Ioãos', que mais tarde viriam povoar e ressignificar o futebol entre nós. vez mais, representa uma resposta não planejada e em vários níveis,
Esse espaço ainda era daqueles que "tinham educação" para tanto, pois na sociedade de hoje, a um novo equilíbrio entre prazer e restrição e,
"o verdadeiro sportman deve primar pela lhaneza, pela cortesia, pela talvez, uma forma de poder desfrutar de emoções, de um prazer pes-
lealdade e pela educação"). Esse primeiro grupo, conscientemente ou soal, coerentemente com a expectativa das sociedades hodiernas e o
não, difundia suas condutas de lazer e, como não vivia isolado, com isso alto grau de regulamentação imposto.
abria as portas para um processo de "assimilação" e uma conseqüente Portanto, vamos tratar da individualização como um processo que
"emancipação" que os grupos em ascensão começavam a desencadear. desencadeia auto controles individuais autônomos, construí dos com base
Não é à toa que pululam clubes de remo e futebol por muitos e dife- na vida social e que permitem aos indivíduos viverem mais por si. Va-
rentes lugares da cidade do Rio de Janeiro no limiar do século XX2• mos tratar também das ações miméticas como necessidades de socieda-
É a partir de aspectos inter-relacionados, como a formação dos des altamente regulamentadas como a nossa, caracterizando-se como um
Estados modernos (fruto de uma monopolização crescente), a demo- reduto social em que o indivíduo, seja como jogador, seja como espec-
tador, pode transpor o muro das emoções na busca da excitação nas ati-
1 Gazeta de Noticias, 19 maio 1906. vidades de lazer, mesmo que, podemos afirmar, de uma forma social-
2 Nesse aspecto, é interessante ver as teses de Leonardo Pereira (1998) e Victor Melo (1999). mente limitada e controlada. Elegi os conceitos de individualização e
l 118 ESPORTE ELIAS: INDIVIDUALIZAÇÃO E MIMESIS NO ESPORTE 119

mimesis no contexto da obra de Elias apenas para situar o leitor na pers- místicos do progresso, então senhores de muitas responsabilidades de
pectiva de duas trilhas que o autor aponta como profícuas quando de direção em nosso País, de se avantajarem aos povos progressistas por
um outro olhar sobre o tema: a individualização, como um dado mais eles imitados, em aperfeiçoamento e em arrojo.
/1
geral, leva-nos a pensar as relações sociais que são inauguradas na com-
plexidade das sociedades em processo de diferenciação crescente; a Ora, para nós, isso marca o início da assimilação de um estilo de vida
/
mimesis, como um tópico antes de tudo centrado no lazer e no lazer es- que requer uma postura centrada na direção de um comportamento
portivo em especial. Por ele podemos pensar o esporte não só como rriais uniforme e mais comedido. Sentido de uma individualização carac-
prática especializada mas como comportamento e participação. terística das mudanças que eram gestadas no contexto da sociedade bra-
/
É por esses pontos que vamos dar os passos seguintes. sileira e que se mostravam tanto no tipo de vestimenta masculino como
no feminino - usava-se muito o veludo e tons cinza e preto - no estilo
literário e na prática de passatempos esportivizados. Mas importa-nos
A INDIVIDUALIZAÇÃO COMO PROCESSO apontar o caminho dessa individualização e, para tanto, utilizaremos
pontos sugeridos por Norbert Elias em alguns de seus textos.
A partir de meados do século XIX, a população brasileira, princi- Ao longo do volume I de O processo civilizado r, Elias vai traçar um
palmente aquela que vive nos centros urbanos, convive com instantes diagnóstico de como a busca do "comportamento uniforme" torna-se
de certa diversidade e transformações de alguns hábitos, pelo confron- cada vez mais presente na sociedade ocidental. A preocupação com os
to com culturas diferentes, pelo incremento da imigração e pelo fim do costumes à mesa, em reuniões, com as relações entre pais e filhos etc.
trabalho escravo, o qual deslocou um bom contingente de negros da passa a ser vista como um modo que, primeiramente numa classe, e,

zona rural para os centros urbanos. Toda essa mudança favoreceu a posteriormente, no indivíduo como unidade, passa a se distinguir de
ampliação de ações no sentido de um redirecionamento ao estilo eu- outros segmentos e de outras pessoas. O uso do garfo, a partir do século

ropeu de vida, tendo como centro não mais Portugal, mas a Inglaterra ('XVII, neste sentido, apresenta a emergência de uma parede invisível de

e a França. Quanto a isso, Gilberto Freyre (1974, p. LXI) anotou que, controle de emoções que parece, ainda hoje, erguer-se entre um ser hu-

dos brasileiros dos últimos anos do Império e, principalmente, mano e outro. Ou seja, o que esteve em contato com outra pessoa (nas
mãos ou na boca, por exemplo) merece mais cuidado, maior observação.

[...] dos primeiros decênios do período republicano, alguns não se con- A análise de Elias passa pelos cuidados apontados nos documen-

tentam em parecer menos com os pais do tempo do Império do que com tos selecionados, os quais se deve ter, a partir de então, com atos tidos

os contemporâneos dos grandes países industriais: pretendem parecer- por banais, como escarrar, assoar-se, a relação com o sexo oposto e a

se mais com os vindouros do que com os simples contemporâneos. As manifestação de agressividade. O que Elias (1992, p. 135) vai demons-

modas européias e anglo-americanas de trajo e de esporte, as inovações trar nesse processo é que:

pedagógicas, as novidades de técnica administrativa e de estilo literário


são adotadas às vezes com exageros grotescos, no Brasil dos fins do sécu- o padrão social a que o indivíduo fora inicialmente obrigado a se con-

lo XIX e nos princípios do século XX, num como desejo que tivessem os formar por restrição externa é finalmente reproduzido, mais severa-
L20 ESPORTE ELlAS: INDIVlDUALlZAÇAO E MIMESJS NO ESPORTE 121

mente
/
ou menos, no seu íntimo através de um autocontrole que opera o que aqui nos chama a atenção primeiro é a relação íntima que
mesmo contra seus desejos conscientes. o autor estabelece entre o processo civilizador individual e o proces-
Dessa forma o processo sócio-histórico de séculos, no curso do 4ual o so çivilizador social. Ora, essa relação, que é uma relação não-causal,
padrão do que é julgado vergonhoso e ofensivo é lentamente elevado, só pode ser compreendida com uma teoria que trabalhe indistinta-
I
reencena-se em forma abreviada na vida do ser humano ind&jdual. mente a idéia de indivíduo e sociedade, que pense essas estruturas (psi-
cológicas, individuais e sociais) como fruto de um processo não pla-
Assim é que, ao falarmos em processo de civilização, estamos tratan- nejado, mas passível de investigação apenas como entidades mutáveis
do de uma tendência de tornar cada vez mais íntimas, particulares e não- e, talvez por isso mesmo, resultado de uma ação "operante durante
públicas formas d0mpulsos controladores que caçlay,el mais freqüente- muitos séculos", como fruto de uma investigação que, conforme já
mente passam a ser mal percebidas pela consciência. Vale salientar, por- disse, é "psicogenética" e ('sociogenétic ". Processo esse que não é li-
tanto, que as mudanças nas estruturas de personalidade proporcionadas near nem mecânico, pois, como não é composição da "natureza" hu-
pela "assimilação" dos costumes são, em certo sentido, um dado específi- mana e sim das transformações sociais e psíquicas do mesmo tipo
co do desenvolvimento das estruturas sociais. Isso porque a relação entre .bio lógico denominado Hemo sapiens, esse processo pode também
indivíduo e sociedade só pode ser esclarecida se investigarmos ambos como retroceder. I
entidades em mutação e evolução, ou seja, como componentes de um pro- Sendo assim, a individualização não é um estado, mas uma rela-
cesso', Mas, para seguir adiante, vamos nos aproximar mais do conceito -ção construída a partir de uma ..crescente interaçãoje.dependência -
de processo de individualização apontado por Elias, como parte relevante uma configuração" - ou seja, estabelecem-se inter-relações que per-
da análise do processo civilizador em ocorrência na sociedade ocidental. mitem às relações humanas serem balizadas no processo civilizador,
Ainda na Introdução ao volume 1 de O processo civilizado r, Elias não como campo de liberdade ou de pura dominação, mas como um
(1992, p. 15) afirma que elemento de libertação. Isso porque o processo se manifesta por pos-
sibilidades de encontrar formas de expressões aceitáveis, com base em
o processo específico de crescimento psicológico nas sociedades oci- um crescente controle social e no autocontrole individual.
dentais, que com muita freqüência ocupa à mente de psicólogos e pe- O segundo ponto que merece ser ressaltado aqui é a idéia de que
dagogos modernos, nada mais é do que o processo ci~ilizador indivi- todo indivíduo nasce num grupo que lhe é anterior e que, de certa
dual a que todos os jovens, como resultado de um processo civilizado r forma, vai dar-lhe margem a um grande leque de individualidades
social operante durante muitos séculos, são automaticamente subme- possíveis. Neste sentido, a criança é a possibilidade do adulto e a his-
tidos desde a mais tenra infância, em maior ou menor grau e com maior tória da sociedade está baseada nessa relação, ou seja, na história do
ou menor sucesso.
J'

4 O êonceito de configuração ou figuração é central para o pensamento de N. Elias, que busca,


por meio dele, diluir o constrangimento de se pensar em indivíduo e sociedade como se fossem
Elias chama a atenção para a ten:dência na sociologia de reduzir processos a estados, mesmo duas entidades antagônicas e diferentes. O leitor pode ter maior contato com o tema se consul-
quando se trata do problema da mudança social. Daí sua crítica ao "tipo ideal" de MaxWeber e tar o livro Introdução à sociologia p 980), em especial as páginas 140 a 145 e, para uma análise
a T. Parsons. A esse respeito vale a pena buscar a obra Introdução à sociologia e, em especial, o mais próxima da questão do esporte, a Introdução de A busca da excitação (1992), escrito em
item: "As características universais da sociedade humana", pp. 113-145. parceria com Eric Dunning. ,./ r
122 ESPORTE ELlAS: INDIVIDUALlZAÇÃO E MIMESIS NO ESPORTE ]23

ser humano individual e no fenômeno de crescimento até a idade passa a ditar as normas de conduta. Nesse caso, também as ações nos
adulta, que se expande e diferencia cada vez mais. Contudo, da análi- esportes são adotadas como modo perceptível da boa educação e do
se resulta um componente que não é simples evolucionismo, mas que controle de atitudes. Vide aí as inúmeras notas em jornais das primei-
considera as inter-relações e a diversidade de funções como instru- ras décadas do século XX classificarem os comportamentos e as ações
mento de novas configurações. Como é um processo que não depen- esperados do sportman, ou daqueles que se aproximam desses passa-
de de uma pessoa individualmente, nem de grupos de pessoas toma- tempos diferenciados'.
dos isoladamente, o seu caminho só pode ser percebido na longa du- Como já frisamos, pensar a individualização como processo é
ração, que permite as transformações e mantém perceptíveis as carac- pensá-Ia como algo móvel, mutável e diferenciado r. Diferentemente
terísticas estruturais. de "individualidade", que é um conceito mais ideológico, já que surge
É sempre bom aqui reforçar que, na nossa sociedade, as metas e com a burguesia e se traduz por um modo de ser característico, indi-
os planos de indivíduos tomados isoladamente invariavelmente se en- vidualização é uma questão de relação e, portanto, um modo de ser
trelaçam com metas, planos e ações de outros indivíduos e que, des- construído a partir da crescente inter-relação e de uma mútua depen-
se entrelaçamento que nenhum deles planejou antecipadamente, dência. Individualidade é o "dever-ser" que denota um comportamen-
surge uma crescente divisão - fruto da convergência e colisão dos to previsto; já a individualização é o "sendo". Na história da humani-
planos -, a qual marca e condiciona a vida comunal de todos aque- dade, é possível notar-se que, quanto mais o homem era regido pelas
les nascidos numa dada época e sociedade. Por isso, Elias (1994, forças da natureza, menos diferenciadas eram suas atitudes e seus
p. 228) explica: comportamentos para com os demais. O grupo era o princípio eo
limite. Porém Elias (1994, p. 117) observa que
Só a conscientização da autonomia relativa dos planos e ações indivi-
duais que se entrelaçam, da maneira como o indivíduo é ligado pela Quanto mais variada e diferenciadamente essas forças instintivas são
vida social a outros, permite uma compreensão mais profunda do pró- contidas, desviadas e transformadas - primeiro pelo amor e medo dos
prio fato da individualidade. A coexistência de pessoas, o emaranha- outros, depois também pelo auto controle -, mais numerosas e pronun-
mento de suas intenções e planos, os laços com que se prendem mutua- ciadas se tornam as diferenças e seu comportamento, seus sentimentos,
mente, tudo isso, muito longe de destruir a individualidade, proporcio- seus pensamentos, suas metas e, inclusive, suas fisionomias maleáveis:
na um meio no qual ela pode desenvolver-se. mais "individualizados" tornam-se os indivíduos.

Assim é que, como a criança, a sociedade, à medida que "cresce", Aqui fica claro que o deslocamento do eixo da luta homem x na-
individualiza-se e estabelece relações mais complexas. É essa indivi- tureza para a questão do indivíduo x sociedade, em que a busca da
dualização, pautada num autocontrole específico que, a nosso ver, vai diferenciação individual logrou ganhar mais espaço, como um pro-
permitir o aparecimento de práticas como a do esporte nas socieda-
des cada vez mais diferenciadas. E, no caso do Brasil, um estilo de vida
Vide notas publicadas em O Sport, 10 dez. 1887; A Semana, 10 out. 1885; O Paiz, 15 ago. 1904;
em que a preocupação com um certo comportamento "civilizado"
01 ago. 1910; e Gazeta de Notícias, 19 maio 1906; 3 maio 1906.
124 ESPORTE ELIAS:
INDlVIDUALIZAÇÃO
E MIMESIS NOESPORTE125

cesso historicamente construído, não é uma escolha do indivíduo, mas dividualização. No Estado moderno, por exemplo, quanto maior a
um comportamento socialmente exigido e aceito na maioria das so- margem de decisão do indivíduo, maior o controle recíproco entre do-
ciedades com um nível elevado de diferenciação de funções. Assim é minantes e dominados e maior ainda a possibilidade de individuali-
que o controle maior sobre as forças naturais vem nos libertando das zação pessoal. Isso significa que um pressuposto da individualização
rígidas antíteses que freqüentemente dão origem a uma abordagem é uma larga abertura do poder de decisão e liberdade de escolha ofe-
míope dos problemas humanos. É por eles que nos libertamos para recida pelo Estado a seus membros.
muitas outras tarefas, que não a de lutar constantemente pela sobre- Mas é necessário deixar claro que o conceito de processo de indi-
vivência. Podemos, para além da satisfação das necessidades mais vidualização não é excludente. Ele, associado ao conceito de compo-
urgentes, elaborar e reelaborar ações com base ~m comportamentos sição, ou ao que Elias vai chamar de' habitus social, permite que se
diferenciados e com sentidos variados. supere a dicotomia tão recorrente quando da relação indivíduo e so-
Mas vale a pena ainda atentar para um outro fator quando fala- ciedade. Portanto, por mais diferenciada que seja uma pessoa das
mos dessa individualização e que, a nosso ver, funciona como a rede demais, há uma composição social que ela compartilha com os ou-
maleável na qual se move e se estrutura o processo civilizador. Fala- tros. É esse habitus que "constitui o solo de onde brotam as caracte-
mos aqui da interdependência humana. A individualização não é só um rísticas pessoais, mediante as quais um indivíduo difere dos outros
processo contínuo, interminável. Ela é definida justamente pela rela- membros de sua sociedade" (ELIAs,1994, p. 150). É a ele que nos re-
ção com as questões da interdependência. Só pela idéia de interdepen- portaremos a seguir.
dência humana podemos superar a dicotomia liberdade/determinis-
mo, dado que ela é fruto da observação de que cada indivíduo é tri-
butário, desde a infância, de uma multidão de indivíduos inter-rela- INDIVIDUALlZAÇÃO E HABITUS SOCIAL
I I
cionado s, unidos pela dependência criada na diversificação, como
componente de um processo civilizado r constante e não planejado. Será possível pensar o habitus social como uma linguagem comum
Passível, portanto, de recuos e de retrocessos. que o indivíduo reparte com os outros? Se assim for, os conceitos de
No capítulo III de A sociedade dos indivíduos, Elias vai, entre ou- habitus e individualização permitirão aqui abordar relações que, em
tros aspectos, tentar demonstrar que, no longo percurso da história última instância, surgem do problema da dicotomia indivíduo/socie-
humana, o mundo, a sociedade e a linguagem são processos sem co- ade, tidos como duas instâncias distintas e por vezes contraditórias.
meço e, nesse percurso, há uma tendência ao desligamento das pes- Uma dessas relações que emerge com maior definição é o que Elias
soas dos grupos tradicionais. A tribo, a família ou até o Estado quan- vai chamar de "caráter nacional", e é característica dos membros de
to mais interagem com outros grupos, mais se diferenciam, pela afir- H tados modernos, nos quais as diferenças regionais estão se dissipan-
mação de suas características básicas, e mais se assemelham, pela aqui- ti , comparadas com as diferenças nacionais. Esse "caráter nacional",
sição de costumes do grupo com o qual passam a interagir. Assim, mais q~l parece ser uma noção estanque, pode, com base na idéia de
diferenciadas são as experiências gravadas na memória dos indivíduos lutbitus, ser superado, já que é concebido como movimento e está, em
no curso do desenvolvimento social e maior é a probabilidade de in- IIi t ima instância, intimamente vinculado ao processo particular de
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Ij~----------------------------------~-----------
126 ESPORTE ELIAS:INDlVIDUALIZAÇÃO
E MIMESIS NOESPORTE127

formação do Estado nacional", Em nosso entender, este aspecto co- Se pensarmos nas diversas práticas sociais, os esportes, por exem-
mum de cada pessoa na vida social, ou por outra, "essa composição plo, que, a partir de um determinado nível de interação, passaram a
social que traz as características comuns dos indivíduos, e que cons- ocorrer nas cidades brasileiras no início do século XX, vemos que os
titui a base da qual emergem as características pessoais" (SOUZA, 1997) conceitos dei..individualização e habitus podem nos dar várias pistas
é que nos permite entender o surgimento, a disseminação e a aceita- para delimitar um norte no entendimento do significado individual
ção de práticas como a do esporte, por exemplo. E mais, o de diferen- e social do implante e do desenvolvimento da prática de esportes numa
tes esportes para diferentes grupos sociais. população urbana crescente e cada vez mais diferenciada. Isso porque
Portanto, se o habitus é uma construção social nas sociedades di- "a avançada diferenciação social, caminhando pari passu com uma
ferenciadas da atualidade, quando são intensas as inter-relações, ele diferenciação igualmente avançada entre as pessoas, ou individuali-
tende a ser multifacetado, conforme esclarece Malerba (1996, p. 79): zação, traz consigo uma grande diversidade e variabilidade das rela-
ções pessoais" (ELlAS, 1994, p. 167). ~á, portanto, uma forte conexão
[...] uma pessoa pode, além de um membro de uma família, ser um c;;;.re as alterações na estrutura social e as mudanças nas emoções e
aluno em uma escola, associado a um clube ou entidade filantrópica- no cor::portamen~~ dos indivíduos.
ou a uma associação criminosa clandestina - ao mesmo tempo em que Crescendo as relações pessoais, desenvolvia-se um processo de
pertence a este ou aquele país[ ...] - e cada um desses traços incidirá interdependência de grupos maiores de pessoas que em seus conta-
sobre seu habitus social. tos estabelecem um mecanismo social no qual "as limitações entre
elas são transformadas duradouramente em a~tolimitações". Talvez
o habitus é também atitude e modo de expressar-se. É, portanto, i por isso é que, para/Elias, "é sempre a extensão das interdependên-
revelador da constituição da estrutura de personalidade social.\Estru- cias, o nível da divisão de funções e a estrutura interna das próprias
tura essa que não se pode separar quando do estudo de sociedades funções" que determinam a natureza e o grau dos surtos civilizado-
humanas, já que "as modificações da estrutura de personalidade, bem res. Será que não podemos também pensar que, no Brasil do início
como as mudanças que ocorrem na posição do indivíduo em sua so- do século XX, estava-se vivendo um crescente grau de impulso civi-
ciedade, criam problemas que figuram entre os mais graves obstácu- lizador pela maior interdependência entre as classes sociais - repa-
los para entendermos as transformações por que passam" (EUAS, 1994, re que o trabalho assalariado ganhava espaço -, uma maior divisão
p. 147). Se esse habitus pode ser visto comobalizador das ações dos de funções - o crescente número de jornais e serviços são um exem-
indivíduos em uma situação social concreta pode, portanto, ser con- plo do surgimento de novas funções - e a criação de instituições
siderado produto da história que relaciona práticas individuais e co- mais sólidas?

letivas. Entre nós, essa "aproximação" que as cidades passavam a propor-


, I

cionar desencadeou, daí por diante, tipos de relações que exigiam


condutas diferentes e expectativas distintas. Era um outro modo de
6 Para urna melhor interação com o que vimos dizendo, vale a pena conferir o livro Os alemães, ser que se anunciava, um gosto de mostrar-se e de ver-se, distinguir-
no qual, no capítulo II ("Uma digressão sobre o nacionalismo"), Elias dá-nos urna ampla visão
do conceito de habitus para o entendimento da formação do Estado alemão. se e comportar-se, pois também era novo o fato de os foot-ballers se-
128 ESPORTE
ELIAS: INDIVIDUALIZAÇÃO E MIMESIS NO ESPORTE 129

rem recebidos no campo "sob estrondosa salva de palmas" e ver que - Olha a chuva!
"dentre a assistência notava-se a palidez dos apaixonados, que, na - Cala a boca, burro!
incerteza da vitória de seu team, se emocionavam até a loucura", con- - Diz isso cantando ...
forme dizia uma nota de O Paiz de 10 de agosto de 1910. Essa emo- Sinal.
ção, esse desejo de se mostrar têm esses espaços de lazer como um novo Bate-bola.
componente de convívio. A nosso ver, essas ações que permitem vi- Os vinte e dois se alinham.
ver diferentemente a sensação de medo, ódio ou alegria, esse caráter Primeiro half-time.
mimético desse tipo de atividade, novo no contexto brasileiro do iní- Russinho dá o pontapé que põe tudo em movimento.
cio do século XX - e ainda presente onde quer que se pratique uma Fortes pula em cima da bola.
partida de futebol ou basquete, ou a elas se assista -, é um dado que Começa a disparada. Começa a torcida.
merece ser considerado. E a ele vou me reportar para aproximar mais - Eh ... eh ... eh ... eh ...
o esporte do contexto relacional que venho tentando montar. Arremessos, recuos, esbarrões.
- Fundo!
Brilhante chuta alto, Santana recolhe, Fortes se atira.
o CARÁTER MIMÉTICO DAS AÇÕES NO ESPORTE - Jaguaré! Jaguaré! Iaguarél
Iaguaré salta e abraça.
... 1930. - Aí, batuta!
Campeonato Carioca. - Vasco! Vasco! Vasco!
O jogo do Fluminense com o Vasco. Albino serve Ari, Ari procura a área.
O estádio está cheio, cheio, cheio. - Desiste!
Não sei se é em São [anuário ou é nas Laranjeiras: tem tanta gente -Sopa!
que eu nem posso ver.
Molla atrapalha, Russinho raspa, Pascoal sapeca para o céu, segue,
Os segundos já acabaram. manda rasteiro contra Veloso.
É agora! -Meu Deus!
Lá vem Veloso, Davi, Fortes, Albino, Fernando, Ivan, Ripper, Meireles, - Agora é que vai ser engraçado!
Preguinho, De Mori. Veloso não engole.
- Fluminense! Fluminense! A bola volta para o meio do campo.
Lá vem Iaguaré, Brilhante, Itália, Tinoco, Fausto, Molla, Pascoal, Paes, - Uh ... uh ... uh ... uh ... uh ...
Russinho, Matos, Santana. - Fluminense! Fluminense!
- Vasco! Vasco! Vasco!
O barulho é tão grande que ninguém escuta o barulho.
O sol tapa os ouvidos por causa da gritaria.
O jogo continua, cada vez mais aceso cada vez mais quente.
I1 Uma nuvem apaga o campo, de repente. - Foul!
1

t~ I1
130 ESPORTE ELIAS: INDIVIDUALIZAÇÃO E MIMESIS NO ESPORTE 131

- Apita, ladrão! principalmente, a vontade de se fazer presente. E é para discutirmos


Preguinho toma conta da bola, voa numa investida doida. um pouco melhor esse conteúdo mimético do lazer esportivo que va-
-Cuidado! mos avançar neste texto. Antes, porém, é preciso anotar que muitos
- Preguinho! Preguinho! dos atores do espetáculo já carregam aqueles nomes que nos parecem
- Rapazes! mais familiares. Já não se trata mais de um]. Preeland ou um Murray,
Popte! mas agora é um ]aguaré, um Preguinho ou um Russinho que estão em
E [aguaré, de cabeça, defende estrondosamente. campo, que são repetidos de boca em boca e que animam um público
Palmas com as mãos e com os pés,brados, guinchos, assobios, delírio. nunca imaginado pelos primeiros futebolistas.
-Oh ... Eh... Uh... Reparemos que o ritmo é vibrante, os diálogos são extremamen-
- Este [aguaré é mesmo um gajo muito inteligente! te sintéticos e o clima que passa é o de uma completa tensão que atin-
Os corações estão todos off-side. ge todos os presentes, os que estão em campo e também os que estão
-Comer! na platéia. Por isso, "os corações estão todos off-side", diz o cronista
-Não! Não! tentando apreender a tensão característica daquela emoção do com-
Mas o tempo terminou. bate, da disputa, do medo, da alegria ... do delírio. Assim é que as ações
Vasco:O como o esporte, com seu caráter mimético aqui enfatizado, não que-
Fluminense: O. rem dizer que se trata apenas de representação de fatos da vida real,
Intervalo. mas, como ressalta Elias, que "as emoções - os sentimentos desenca-
Depois, o segundo half-time repete o mesmo resultado: O a O. deados por elas - estão relacionadas com as que se experimentam em
Pronto. situações da vida real transpostos apenas e combinados com uma
- Vasco!Jaguaré!Veloso!Fortes!Russinho! Fluminense! espécie de prazer" (Euxs & DUNNING, 1992, p. 125).
Os nomes dos clubes e dos jogadores esparramaram-se no ar como Essa idéia de mimesis, não como simples imitação, é resgatada por
confetes sincronizados. Elias dos escritos de Aristóteles e já, então, era referida pelo grande filóso-
Os onze de cá e os onze de lá saem arfando, capengando, suando, fo grego a toda espécie de formas artísticas na sua relação com a realida-
sorrindo. de. Por isso, não quer dizer que se trate aqui de uma simples imitação da
Um apanha a bola esquecida no chão, leva-a debaixo do braço. vida real,já que desperta emoções de um tipo específico, qualitativamen-
Ninguém se importa com a bola. te diferentes daquelas experimentadas na vida rotineira de não-lazer.
Entretanto, se não fosse a bola, não haveria futebol ... [MORElRA, 1965, Mas o que me interessa abordar aqui, na verdade, é: Por que e como
pp.211-213]. práticas com características miméticas, como o esporte, vieram a se de-
senvolver no Ocidente e ocupar cada vez mais espaço como prática tam-
Em 1936, Álvaro Moreira escrevia "Emoções de campeonato" e ini- bém no Brasil (a partir de um grupo de fatores, como a urbanização e a
ciamos essa parte com ela justamente para destacar essa "emoção" que mudança no mundo do trabalho, por exemplo)? Como elas foram ou são
o texto tenta reproduzir com o delírio, a gritaria, o xingamento e, percebidas no nosso contexto social? Por que o esporte assume, cada vez
132 ESPORTE EUAS:INDIVIDUAUZAÇAo
E MIMESIS NOESPORTE133

mais, um aspecto peculiar nas nossas práticas sociais, desde o início do mesmo assim, esse fato nos deixa ver os pontos de tensão entre o con-
século XX, ou até antes, e como esse processo se desencadeia? Questão trole das emoções socialmente induzidas e as emoções interiorizadas
como estas tentei abordar na minha tese de doutorado sobre o esporte que necessitam de renovação nas atividades de lazer.
na cidade e o esforço de civilização no Brasil (LUCENA,
2001); e penso que Não é à toa que, numa crônica denominada "Fôlego de classe",
vale a pena traçar aqui ainda alguns comentários. José Lins do Rego (1981, pp. 233-235) reportava-se da seguinte ma-
Um primeiro aspecto diz mesmo respeito ao que já tratamos an- neira a sua postura num jogo de futebol: "Muita gente me pergun-
teriormente sobre o viver as emoções de forma peculiar. Numa socie- ta: mas o que você vai fazer no futebol? Divertir-me, digo a uns. Viver,
dade que começava a viver com as mudanças no modo de ser daquele digo a outros. E sofrer, diriam os meus correligionários flamengos.
"homem cordial", por aparecerem indivíduos com comportamentos Na verdade uma partida de futebol é mais alguma coisa que um bater
diferenciados, individualizados, no sentido de viver mais por si, a de bola, que uma disputa de pontapés". Esse "mais alguma coisa" é
manifestação de emoções em público, de uma excitação controlada, de suma importância aqui, pois, "sob a forma de fatos de lazer, em
sem grandes exageros, surge como algo que chama a atenção. Por isso particular os da classe mimética, a nossa sociedade satisfaz a neces-
algumas notas de jornais do Rio de Janeiro, na virada para o século XX, sidade de experimentar em público a explosão de fortes emoções"
primam por enfatizar a postura e o comportamento, a "lhaneza", não (ELlAS& DUNNING,1992, p. 112). É um elemento que transpõe o uni-
só dos atletas mas também do público assistente. Por isso, não é verso da simples ação motora e que também vai além da idéia co-
incomum ler-se que "o verdadeiro sportman", como aquele, deve pri- mum de uma banal descarga de tensão como característica do lazer.
mar pelos mais finos modos de conduta como a cortesia, a lealdade, a É importante anotar, ainda, que o lazer mimético cria tensão e,
lhaneza e, sobretudo, pela educação. portanto, sua procura não se justifica e não se explica conveniente-
Um outro aspecto relevante na linha que aqui vimos sugerindo é que mente, como uma forma de descarregar as tensões do trabalho. Elias
os esportes se diferenciam das outras situações de lazer pelo papel de aponta-nos que uma observação mais acurada nos mostrará que
lutas, como assinala Elias, in totem entre seres humanos. Essa caracterís- procuramos por essa forma de lazer também para criar tensão, mas,
tica singulariza os esportes nas sociedades hodiernas. Assim é que "mes- justamente, essa tensão diferenciada que singulariza as práticas es-
mo o público tem um campo de possibilidades maior para transmitir os portivas. A platéia é parte desse "jogo" e dele componente indispen-
seus sentimentos entre si e os jogadores, por intermédio de movimen- sável. J. Hillman, em seu livro Cidade e alma, já aponta que aquele
tos, incluindo os da língua, dos lábios e das cordas vocais" (EUAS & cidadão que se encontra no décimo andar de um edifício, assistin-
DUNN!NG,1992, P 83). Diferentemente de outras formas de lazer, como do ao seu esporte preferido, é mais participante da vida da cidade
o cinema e o teatro, no espaço de um jogo de futebol, por exemplo, a que aquele que finge ignorar a existência de práticas desportivas",
manifestação motora e as ações corporais são socialmente muito mais
II aceitas. Ou seja, faz parte do espetáculo a participação da platéia nos
Assim, o esporte não é um espetáculo "à parte", mas parte de todo
um jogo de interdependência que exige do indivíduo procedimen-
I momentos de maior tensão. Contudo, é nessa área que as fronteiras dos
controles sociais e individuais podem ser rompidas transpondo, de fato, 7 [ames Hillman, Cidade e alma. Ver especialmente o capítulo "Cidade, esporte e violência", pp.
os limites impostos pelo controle externo e pelo autocontrole. Mas, 65-80. Para ele, "a divisão entre jogadores e torcedores é psicologicamente falsa [... ] A pessoa
ativa é também a pessoa que assiste; a pessoa inativa não joga nem assiste"
134 ESPORTE ELIAS:
INDIVIDUALIZAÇÃO
E MIMESIS NOESPORTE135

tos e formas de participação pautadas num código de condutas es- de uma luta que não exige, mas pode envolver,força e técnica corpo-
pecífico. ral pode, indevidamente, arriscar-se a entorpecer a vida dos seus mem-
Entender esse "jogo" entre essas ações de lazer e o controle so- bros; pode não proporcionar corretivos complementares suficientes
cial e individual crescente, nas sociedades mais diferenciadas para as tensões não excitantes produzidas pelas rotinas regulares da
como a nossa, é crucial para ver que a busca dessa excitação, essa vida social.
tensão é, em certo sentido, complementar em relação ao controle
e restrição "da emotividade manifesta na nossa vida ordinária" É essencial reiterar, com base nessa afirmativa,que a tensão não
(ELlAS& DUNNING,1992, p. 105). Mas o próprio Elias chama-nos a se cria na diferenciação entre lazer e trabalho, como ainda hoje pare-
atenção quanto a essas ações no nosso contexto, pois que elas pró- ce pautar-se o debate no contexto da educação física e de outras dis-
prias são também altamente regulamentadas. São crivadas por ciplinas, já que, como já se esforçou por demonstrar Elias': buscamos
normas que as tornam cercadas pela tensão que mantém toda ma- o lazer para ter tensão e emoção, esse aspecto não pode ser visto ape-
nifestação humana dentro de determinados níveis de ações tolerá- nas como compensatório. Lazer e trabalho não são extremos contra-
veis. Assim, Elias aponta ainda (idem, pp. 171-172) par a a neces- ditórios, são, sim, componentes distintos, mas complementares de um
sidade de ver que processo de ações humanas que vivem cada vez mais de uma crescen-
te dependência mútua, e a individualização faz que busquem formas
[...] a diminuição dos controles nas sociedades humanas de todos os relacionais mais diferenciadas.
gêneros, senão em especialnas sociedades tão bem ordenadas e com- Na verdade, o que é preciso reforçar aqui como uma breve con-
plexas como as nossas, compreende sempre riscos; a função das ativi- clusão é que, ao fazer emergir o aspecto mimético das práticas espor-
dades de lazer destruidoras do controle, que abre o caminho para a tivas e apontar vínculos com a estrutura das sociedades de hoje, Elias
renovação das emoções, é, por seu lado demasiado limitada por regras mostra-nos um aspecto singular do esporte e trilha um caminho de
de prevenção para que possa ser assim socialmente tolerável. investigação ainda pouco explorado. Na verdade, não se trata apenas
de se manter ou não na velha discussão de que o esporte aliena ou é
Portanto, essa tensão é componente fundante para entender- saudável, mas de tentar entender e explicar por que e como essa prá-
mos a relação de atividades como o esporte, já que não se explica tica, que surge como um passatempo característico de uma classe e se
apenas, como frisamos anteriormente, como uma válvula de esca- expande para outros segmentos mundo afora, casa com a necessida-
pe do mundo real, mas coloca-se, conforme a teoria dos processos de de os indivíduos vencerem - pela tensão que cria e emoção que de-
sistematizada por Elias (idem, p. 95), como um componente capaz sencadeia - as amarras de uma vida pautada por regras de conduta
de mostrar os limites das formações sociais que hoje construímos, bastante rígidas.
já que
I 8 Para Elias, essa diferenciação não ajuda a explicar o que representam as ações de lazer na nossa
sociedade. Para tanto, ele nega a análise com base nessa dicotomia e propõe uma investigação que
I [...] a sociedade que não oferece aos seus membros, e, em especial, se desdobra da relação tempo livre e lazer e na construção do que ele chamou de "espectro do tempo
aos mais jovens, oportunidades suficientes para a excitação agradável livre". Para um maior aprofundamento, vale a pena ver o capítulo II de A busca da excitação.
136 ESPORTE ELIAS: INDIVIDUALIZAÇAO E MIME515 NO ESPORTE 137

MELo, V. (1999). A cidade esportiva, Tese (Doutorado em Educação Física) -


Assim, hoje, vendo o esporte com base nesses pressupostos, tal-
Universidade Gama Filho, Rio de Janeiro.
vez possamos explicar um pouco mais e melhor o mundo que nos
MOREIRA,Á. (1965). "Emoções de campeonato". In: BANDEIRA,M. & ANDRADE,
cerca e a nós mesmos, na procura de, quem sabe, sentir também o que
C.D. Rio de Janeiro em prosa e verso. Rio de Janeiro, Livraria José Olímpio.
José Lins do Rego (1981, p. 233) já buscava expressar quando, ao re-
PEREIRA,L. (1998). Foot-ball mania. Tese (Doutorado em História) - Instituto
ferir-se ao futebol, dizia: de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Cam-
pinas.

Não é ele [o futebol] só o espetáculo que nos absorve, que nos embria- REGO,J. L. do. (1981). Dias idos e vividos: antologia. Rio de Janeiro, Nova Frontei-
ra.
ga, que nos arrasa, muitas vezes, os nervos. Há na batalha de vinte e
dois homens em campo uma verdadeira exibição da diversidade da na- SOUZA, E. (1997). A sociedade dos indivíduos e o habitus elisiano. Campinas,
UNICAMP(mimeo.).
tureza humana submetida a um comando, ao desejo da vitória. Os que
WAIZBORT,L. (org.) (1999). Dossiê Norbert Elias. São Paulo, EDUSP.
estão de fora gritando, vociferando, uivando de ódio e de alegria, não
percebem que os heróis estão dando mais alguma coisa que pontapés,
cargas de corpos; estão usando a cabeça, o cérebro, a inteligência. Para
que eles vençam se faz preciso um domínio completo de todos os im-
pulsos, que o homem que é lobo seja menos lobo, que os instintos
devoradores se mantenham em mordaça ...

I REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
II

EUAs, N. (1980). Introdução à sociologia. Lisboa, Edições 70.


I
____ . (1992). O processo civilizador. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2 v.
____ . (1994). A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.

I
____ . (1997). Os alemães. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.
EUAs, N. & DUNNING,E. (1992). A busca da excitação. Lisboa, Difel.
FREYRE,G. (1974). Ordem e progresso. Rio de Janeiro, José Olympio.
HILLMAN,J. (1993). Cidade e alma. São Paulo, Studio Nobel.
LUCENA,R. (2001). O esporte na cidade. Campinas, Autores Associados.
MALERBA,J. (1996). "Sobre Norbert Elias". In: MALERBA,J. (org.) A velha história.
Campinas, Papirus.
6
DAMATTA
o FUTEBOL COMO DRAMA
E MITOLOGIA

Alexandre Fernandez Vaz

Tal como ocorre com um jogo do selecionado


brasileiro [que nos permite sentir nossa
continuidade enquanto grupo], onde vemos,
sentimos, gritamos e falamos como Brasil no
imenso ardil reificador que é o jogo de futebol.

ROBERTO DAMATTA, Carnavais,


malandros e heróis

S e no Brasil uma parte do campo da educação física se dedicou


nas décadas de 1980 e 1990 a elaborar discursos críticos sobre o es-
I orte, no registro das ciências sociais foi possível observar, no mesmo
p ríodo, uma surpreendente elaboração teórica que trafegou em sen-
(ido contrário. Desde o final dos anos de 1970 o antropólogo Roberto
140 ESPORTE DAMATTA: O FUTEBOL COMO DRAMA E MITOLOGIA 141

DaMatta desenvolveu um corpo teórico que procura entender o dile-


democrático em sua realização. DaMatta argumenta no sentido de ser o
ma brasileiro, ou, em outras palavras, o que faz do Brasil, Brasil. Nesta
futebol uma das poucas estruturas sociais no Brasil - contrariamente à
perspectiva, encontra um lugar privilegiado o papel desempenhado pelo
política e à economia, esferas altamente volúveis, e das quais pouco se
esporte, especificamente o futebol. Ao contrário do que diziam e ainda
conhece das regras de funcionamento; campos destinados aos "expertos".
dizem os críticos do esporte-espetáculo, DaMatta atribui ao futebol um
O futebol, diz DaMatta, constitui uma experiência na qual não
alto grau de positividade, vinculado ao seu caráter de experiência de-
contam os graus de parentesco ou amizade, mas a qualidade técnica;
mocrática e de produtor de unidade e identidade nacionais, algo que, se-
onde não há favorecimento individual pela condição financeira, mas
gundo diz, pouco se pode observar em outras esferas da vida nacional.
chances para todos mostrarem suas habilidades. O futebol seria uma
Essa tentativa de refletir sobre o Brasil com ba~ em instrumen-
experiência na qual, quando as regras são quebradas, facilmente se
tos conceituais próprios e originalmente brasileiros, insere-se em uma
percebe, em que é possível interferir de forma direta, como é o caso
moderna tradição intelectual, da qual fazem parte alguns clássicos de
da ação dos torcedores em uma partida"
nosso pensamento, como Sérgio Buarque de Hollanda, Gilberto
Interessa-me neste texto discutir essa possibilidade de entender o
Freyre, Caio Prado, Celso Furtado e Florestan Fernandes, além de uma
Brasil, com especial atenção no futebol, tentando encontrar uma pos-
: geração mais jovem, que conta, entre outros, com Darcy Ribeiro,
sívellocalização das reflexões de DaMatta. Elas contrastam tremenda-
Marilena Chauí e Roberto Schwarz. Há em todos, guardadas as dife-
mente com as análises críticas do esporte desenvolvidas pela new left
renças e a amplitude dos respectivos projetos intelectuais, a preocu-
européia dos anos de 1960 e 1970, largamente difundidas no Brasil, so-
pação em desenvolver uma teoria de Brasil que dialogue com os gran-
bretudo em versões vulgares e pouco rigorosas do ponto de vista teóri-
des clássicos do pensamento ocidental, mas que o faça, clara e cons-
c03• Por outro lado, caminham no sentido de se aproximar de alguns
cientemente, desde o ponto de vista da periferia. Considera-se assim,
dos pressupostos da sociologia figuracional de Norbert Elias, especial-
portanto, que continua viva a distinção geopolítica entre centro e
mente em suas análises e comentários a respeito do futebol.
periferia, apesar, ou justamente por causa, do constante e contínuo
Dito de outra forma, é sobre o futebol e sua posição na sociedade
processo de globalização do capital.
brasileira, tendo em vista esse contraste provocado por uma teoria
DaMatta propõe uma sociologia que quer entender a sociedade bra-
construída do ponto de vista da periferia, que passo a tratar nas pró-
sileira "pelo avesso", quer dizer, através de temas que, pelo menos até
ximas páginas.
o final dos anos de 1970, haviam sido desprezados pela sociologia "ofi-
cial". Dessa forma, o carnaval, o futebol, o jogo do bicho e as festas
populares e paradas militares (!) expõem uma forma de ser do Brasil. 2 Observe-se que as torcidas organizadas têm hoje uma forma de atuação que vai para além do
Para DaMatta o futebol no Brasil, em vez de ser o "ópio do povo", é momento de jogo propriamente dito, exercendo enorme pressão sobre dirigentes, jogadores e
comissão técnica.
um drama de justiça social', um fenômeno progressista e modernizador, 3 De uma forma geral foram os trabalhos de Bracht (1992) e de Cavalcanti (1984) que divulga-
ram as críticas da nova esquerda no Brasil. Com elas, procuraram também analisar e interpre-
tar fenômenos relativos ao esporte e à educação física no Brasil. Não considero suas críticas
o título de um de seus principais trabalhos sobre o tema é justamente este: Futebol: ópio do vulgares ou pouco rigorosas. Ao contrário, suas ponderações são, de forma geral, muito bem
povo ou drama de justiça social? (DAMATTA, 1986,pp. 101-120) elaboradas, sobretudo no caso de Bracht. Não se pode dizer o mesmo de vários de seus
divulgadores.
142 ESPORTE DAMATIA: O FUTEBOL COMO DRAMA E MITOLOGIA 143

DRAMA SOCIAL vida pública (na rua), mas que são contraditórias com o âmbito
privado (a casa). Neste sentido, DaMatta (1986, p. 103) escreve que
Para estudar o dilema brasileiro DaMatta ocupa-se, como foi dito,
de elementos que já foram pouco comuns no estudo das ciências so- o fato, porém, é que a sociedade brasileira é pródiga em apresentar
ciais. Ao invés de dedicar-se às estruturas políticas e econômicas em combinações e ligações que, à primeira vista, são inteiramente
seus contextos socioistóricos, à forma como se organizam os parti- deslocadas ou até mesmo impossíveis. Assim, é mais fácil ser católi-
dos e as relações de poder no mundo oficial, o poderio militar ou as co e umbandista, milionário e socialista, aristocrata e populista, ao
ciências, DaMatta privilegia eventos e acontecimentos que em prin- mesmo tempo, do que ser cada uma dessas coisas num dado momen-
cípio são considerados "pouco sérios", "descartáveis" ou "secundários" to da existência. Tal como ocorre no plano da sociedade, onde com-
pelas elites brasileiras, inclusive as intelectuais e/ou de tradição pro- binamos, de forma teoricamente complexa, autoritarismo estatal, pa-
gressista. tronagem familística e um capitalismo moderno que opera eficien-
DaMatta interessa-se pelo carnaval, pelas festas religiosas, pelas pa- temente em muitas áreas. Geralmente somos ideológicos e impesso-
radas militares, pelo jogo do bicho e pelo futebol, por meio dos quais ais na rua e adotamos senso comum tradicionalista em casa, quando
desenvolve categorias de análise não só para entender esses eventos funcionamos governados por uma ética de relações pessoais e da fa-
com forte radicação popular no Brasil, mas também para desenvol- mília.
ver uma teoria da sociedade brasileira como um todo. É através de
temáticas marginais - com exceção de arte, especificamente a litera- Se, para o crítico Roberto Schwarz (1977), as idéias-chave do li-
tura, cuja importância para ele é fora de dúvidas - que lhe foi possí- beralismo europeu incorporam-se no contexto escravocrata do Bra-
vel fazer uma original antropologia da sociedade brasileira. Com- sil do final do século XIX, constituindo um caso paradigmático de
preender o Brasil "pelo avesso" não significa, no entanto, ignorar as idéias fora do lugar, para DaMatta (1986, pp. 103-104) o problema não
relações dos universos da política e da economia, da arte e da univer- é de termos capitalismo em excesso, mas de não o termos suficiente-
sidade, mas de entendê-Ias, no paradoxo e na negatividade, por meio mente, já que
dessas outras manifestações, que parecem, à primeira vista, ser-Ihes a
antítese. [...] vivemos numa sociedade onde há sistematicamente um relaci-
A modernidade brasileira seria então uma combinação sui onamento intenso e funcional entre um sistema de mercado
generis de paradoxos que escapariam a um modelo de coerência que acoplado a um aparato legal fundado em leis universais e no indi-
faça optar por certas características sociais em detrimento de outras. víduo como sujeito; e redes imperativas de relações pessoais que
Não se trata de privilegiar uma dimensão, desprezando algumas funcionam hierarquicamente, mantendo os velhos privilégios
outras, mas de incorporá-Ias em um mesmo nexo, mesmo reconhe- elitistas. [...] um sistema onde o mercado e as leis universais so-
cendo-lhes a especificidade. Ocorre, para DaMatta (1979; 1997), que mente operam para baixo, no sentido dos que não têm uma
a sociedade brasileira combina aspectos absolutamente modernos representatividade pelo nome, relações ou bens de família. A raiz
com outros de tradição colonial, características que valem para a do nosso autoritarismo, deste modo, estaria nesta simultaneidade
144 ESPORTE DAMATTA: O FUTEBOL COMO DRAMA E MITOLOGIA 145

ou nesta capacidade de relacionar laços de família, amizade e não foi somente bom para matar, mas também para divertir, deco-
com padrio (com suas éticas de patronagens e considerações) e um rar e pensar:".
sistema de leis universais constantemente colocado em xeque pela Discorda, portanto, do vínculo necessário entre estas duas esfe-
lógica dos laços pessoais. ras da vida social- esporte e trabalho -, idéia importante para a new
left européia, tornada famosa pelo conhecido livro de Bero Rigauer
Para entender estas contradições que compõem a especificidade (1969), mas cuja importância já fora apontada, entre outros, por
brasileira, e que se manifestam também no futebol, DaMatta emprega, Theodor W. Adorno e Iürgen Habermas.
apoiado na tradição estruturalista - representada, nesse caso, por Max O futebol não seria, portanto, um espaço de utilitarismo político.
Gluckman, Victor Turner, Clifford Geertz e Claude Lévi-Strauss -, a Para ele, em última análise, trata-se de uma esfera que, se não está
categoria de drama social. alheia, mantém-se de alguma forma independente das relações polí-
Associado aos conceitos de mito e rito de passagem - e evidente- ticas mais imediatas, ao configurar-se espaço de identidade e unifi-
mente à idéia de que a estrutura permanece - o drama permite, se- cação nacional, levantando a auto-estima, configurada em boas lem-
gundo DaMatta, articular as observações do dia-a-dia com os valo- branças, de indivíduos e grupos.
res sociais presentes na sociedade, também porque sintetiza e colo- A esse respeito, tendo em vista a Copa do Mundo de 1998 na Fran-
ca em suspenso, problematiza as normas, relações e instituições. Ele ça, e as eleições que se avizinhavam - sobretudo as presidenciais que
é uma expressão da sociedade, que, para o bom estruturalismo, opunham principalmente um candidato de esquerda a outro liberal,
recoloca-se em cada um das esferas que institui (DAMATTA,1986, que disputava a reeleição -, DaMatta é perguntado se o desempenho
pp. 104-105). O drama, como se verá no caso específico da análise na Copa poderia beneficiar candidaturas, e quais seriam elas, levan-
do futebol, é uma estrutura que simultaneamente revela e esconde do-se em conta um possível sucesso da seleção de futebol. Na direção
(DAMATTA,1982, p. 29). contrária ao utilitarismo, responde DaMatta (1998b):
A análise empreendida por ele investe contra o "utilitarismo" dos
fenômenos sociais, em particular o futebol. Não se trata simples- Só um mago poderia dizer isso. Eu presumo que sim. Que há uma
mente de verificar a qual projeto social ou político o futebol está ligação entre vencer a Copa e ter orgulho do Brasil. O que faz com que'
servindo, mas verificar-lhe a especificidade como manifestação as administrações eficientes possam tirar vantagem. Mas devo lembrar
social (DAMATTA,1982; 1986). Ele não concorda que o esporte deva que também as oposições podem se beneficiar com a vitória, chaman-
necessariamente ser uma decorrência prática de outras atividades do a atenção para os pontos que não foram vistos ou coisas que não
labor ais e utilitárias, mas uma atividade cuja expressão estética deva
ser considerada em primeiro plano. Em DaMatta (1982, p. 24) lê- 4 DaMatta aproxima-se aqui de outro autor de origem latina, Ortega y Gasset, para o qual a
atividade criadora não se relaciona ao trabalho e aos desafios de preservação da vida, mas sim
se: "O mundo não começou com os homens buscando comida e re- à espontaneidade, a "intenção supérflua": "Así podemos distribuir los fenómenos orgánicos -
alizando guerras. O impulso primordial, se é que se pode realmente animales y humanos - en dos grandes formas de actividad: un actividad originaria, creadora,
vital por excelencia - que es espontanea y desinteresada -; otra actividad en que se aprovecha y
falar nisso, foi dado tanto pelo corpo quanto pelo espírito. Se me mecaniza aquélla y que es de carácter utilitário. La utilidade no crea, no inventa, simplemente
for permitido parafrasear Lévi-Strauss, diria que o primeiro dado aprovecha y estabiliza 10 que sin ella fue creado" (ORTEGAy GASSET,1998, p. 231),
1
146 ESPORTE DAMATIA: o FUTEBOL COMO DRAMA E MITOLOGIA 147

foram realizadas. E que essavitória daria coragem para mudar. Na der- mente chamada de futebol-arte. Não se trata, então, de discutir se essa
rota, que é um desastre geral,todo mundo sai chamuscado. caracterização, que assume formas de mitologia sobre o Brasil em
várias partes do mundo, está ou não correta. Mais importante é de-
Para logo depois afirmar, talvez de forma exagerada, que lhe cha- bater, internamente aos marcos propostos por DaMatta, a força des-
ma a atenção a ausência de vínculo entre futebol e política no Brasil, sa imagem positiva sobre o modo de ser brasileiro.
presente em outros países como Argentina, Rússia e Alemanha. Para DaMatta ( 1998b) considera fundamental o percurso de um espor-
DaMatta (1998b), os políticos sabem que o futebol é assunto sério te que "veio de fora", do "estrangeiro" onde tudo é "chique", e desen-
demais no Brasil, para que se arrisquem utilizando-o como vetar de volve entre os brasileiros uma série de novos significados, num pro-
promoção: cesso que ele chama de aculturação positiva. Seus trabalhos compar-
tilham do imaginário do futebol-arte, ao tomá-Io como ferramenta
Talvezporque sejam brasileiros [os políticos] e respeitem o povo para uma peculiar reflexão sobre a identidade do brasileiro em rela-
em suas paixões e nas suas tradições, eles sabem que muita carona no ção ao futebol jogado no Brasil.
futebol provoca uma reação negativa;pois o povo conhece quem ama o O futebol seria no Brasil antes de tudo umjogo, ou ainda um espor-
futebol e quem não tem nenhum interessepelo esporte e jamais pisou te vivido como jogo, porque relacionado fortemente a outras esferas que
num estádio. não apenas àquelas que se realizam no campo. Primeiro porque a pala-
vra jogo, em língua portuguesa, relaciona-se fortemente, ao contrário
Apesar disso, DaMatta (1996, pp. 173 e 200) não foi capaz de re- de play na língua inglesa, com sorte e azar, e não por acaso o futebol
sistir à tentação de colocar em um mesmo esquema a conquista da está associado a um jogo de apostas popular, que é a loteria esportiva.
Copa de 1994 pela seleção de futebol, com a vitória de Fernando Além disso, há no futebol, como de resto em toda a sociedade brasilei-
Henrique Cardoso, e a implantação do plano econômico que ra, uma marcante presença de elemen tos religiosos e de superstição, na
I II alavancara sua candidatura, fatos que demarcariam, segundo diz, um qual a idéia de destino tem um importante papel (DAMATTA,1982,
"novo tempo" para o país. Tentação ante a qual, aliás, não resistiu, por pp. 25-27). Veja-se a seguinte passagem (DAMATTA,1986, p. 107):
exemplo, o alemão Thomas Fatheuer (1995, pp. 30 e ss.).
Há um jogo que se passa no campo, jogado pelos jogadores como
atividade profissional e esportiva. Há um outro jogo que se passa na
FUTEBOL, IDENTIDADE, DESTINO vida real, jogado pela população brasileira, na sua constante busca de
mudança para seu destino. E um terceiro jogo jogado no "outro mun-
o primeiro ponto a tratar, neste tópico, é a especificidade do fu- do",onde entidades são chamadas para influenciar no evento e, assim
tebol brasileiro e a identidade nacional. fazendo, promover transformações nas diferentes posições sociais en-
Interessa nesta reflexão a caracterização do futebol como elemento volvidasno evento esportivo. Tudo issorevelacomo uma dada institui-
cultural genuinamente brasileiro, capaz de gerar uma identidade na- ção, no caso o Football Association, inventado pelos ingleses, pode ser
cional muito vinculada à forma como é praticado no Brasil, cornu- diferencialmente apropriada.
148 ESPORTE DAMAITA: O FUTEBOL COMO DRAMA E MITOLOGIA 149

Haveria, portanto, uma configuração única, com valores e normas provisar e sair com elegância de situações em princípio adversas, ge-
específicos, determinados pela forma como um elemento cultural ralmente movendo o corpo e criando um jogo esteticamente valori-
importante, moderno e universal é singularmente apropriado. zado. Como metáfora da vida cotidiana, o futebol expressaria, então,
II
I
No futebol, segundo DaMatta (1979, pp. 151 e ss.), o indivíduo uma forma de ser brasileira, uma vez que é preciso muita malandra-
pode tornar-se pessoa, uma vez que é no time que pode mostrar sua gem para poder lidar com uma sociedade altamente modernizada de
singularidade, expressar-se individualmente. DaMatta opõe-se forte- um lado, mas que convive, de outro, com características patriarcais e
mente, portanto, à tese da fungibilidade no esporte, segundo a qual relações clientelistas.
cada atleta pode ser por outro substituído, uma vez que sua atuação A malandragem, segundo ensina DaMatta, pode ser uma caracte-
carece de singularidade. Os atletas seriam fungíveis porque estaria de- rística altamente positiva e necessária, que exprime nossa subjetivi-
sempenhando funções técnicas, e estas ocupariam o lugar central da dade para lidar com a objetividade sociaF. Tanto o jogador de fute-
cena esportiva. Em outras palavras, vale a ação mas não o ator, por- bol quanto o político precisam ter malandragem e "jogo de cintura",
que interessam os meios, tornados fins'. precisam saber "movimentar o corpo na direção certa, provocando
DaMatta (1982; 1986) só pode andar na contramão da tese da confusão e fascínio nos seus adversários, criando harmonias insuspei-
fungibilidade porque para ele o futebol brasileiro se diferencia forte- tadas" (DAMATTA,1982, p. 28).
mente do europeu, caracterizando-se por controle de bola, improvi- De fato a versão jogada com os pés do futebol (soccer) prevaleceu
sação e individualidade". tremendamente em relação àquelas jogadas com as mãos, típicas dos
Esse estilo próprio de jogar futebol, no qual são reconhecidos os ambientes anglo-saxões, como o rugby. Curiosa é, no entanto, a in-
modos de ser brasileiro, caracterizar-se-ia pela ambigüidade do ma- terpretação de DaMatta. Segundo ele (1996, pp. 42-44), o esporte pra-
landro, figura simbólica em nosso imaginário social, que circula en- ticado com os pés supõe uma maior dose de imponderabilidade, se
tre as portas da "legalidade e da ilegalidade; a do claro e a do oculto; comparado àqueles jogados com as mãos, nos quais as exigências de
a do implícito e a do explícito", e cuja força estaria relacionada tam- controle, precisão e principalmente previsão são muito maiores,
bém ao fato de que no Brasil se joga a versão soccer do futebol. como é o caso dos Estados Unidos da América, e não apenas no es-
Segundo DaMatta (1982, pp. 28-29; 1994, p. 16), o futebol brasi- porte, mas também do tipo de democracia representativa parlamen-
leiro - em comparação, novamente, com o europeu - caracteriza-se tar que lá se exerce. Em outro texto (DAMATTA,1994, p. 16), ele argu-
por ter "jogo de cintura", por "dobrar sem quebrar", dissimular, im- menta o seguinte:

5 Com diferentes graus e especificidades, Vinnai (1970) e Vaz (1999) defendem essa categoria
Jogado com os pés, o futebol fica menos previsível, o que faz com
como importante para a análise e compreensão do esporte. que nele se insinuem as idéias de sorte, destino, predestinação e vitó-
6 Rocha (1996), aluno e seguidor das teses de DaMatta sobre o futebol, contrapõe-se à idéia de
improvisação vinculada ao futebol e aos brasileiros. Segundo ele seria impossível a realização,
por exemplo, do Carnaval, se não houvesse uma grande preocupação com a organização. O 7 Soares (1994) realizou um belo estudo sobre a malandragem no futebol, com destaque para os
argumento de Rocha, a meu ver, não pode.ser tomado ao pé da letra, também porque suas depoimentos de jogadores e ex-jogadores brasileiros de futebol, nos quais aparecem os mean-
interpretações, em conexão com as de DaMatta, balizam-se pela idéia de multivocalidade, ou dros e as dificuldades em conceituar a necessária malandragem do jogo e a desaprovável ma.
seja, a partir de diferentes e eventualmente contraditórios vetores, landragem no cotidiano.
150 ESPORTE DAMATTA: O FUTEBOL COMO DRAMA E MITOLOGIA 151

ria. Com isso pode-se imediatamente ligar futebol com religião e desmedido (DAMATTA,1996, pp. 143-144) e que evidentemente não
transcendência no caso brasileiro, algo muito mais raro de ocorrer seja possível estar todo o tempo em perfeita consciência de tudo. Ao
quando se trata de modalidades esportivas como o voleibol,a natação contrário, "[ ... ] consciência é foco [e] o futebol desfocaliza algumas
e o atletismo. [...) Além disso,o uso do pé, diferentemente do uso das coisas [... ] e focaliza outras, geralmente o seu justo oposto" (DAMATTA,
mãos, obriga a inclusão de todo o corpo, salientando sobretudo as per- 1998b). O futebol seria um espaço de reconhecimento de nossas vir-
nas, os quadris e a cintura, essas partes da anatomia humana que, no tudes (mas também de nossos fracassos, diria Nelson Rodrigues) e
caso da sociedade brasileira, são alvo de um elaborado simbolismo. uma expressão que, como foi dito, não só faz esquecer, mas subverte
a ordem, resiste aos desmandos vinculados ao patriarcalismo, ao
compadrio e à amizade.
O esporte moderno e, especificamente, o futebol subvertem, segun-
FUTEBOL-ARTE E MODERNIZAÇÃO: CONTRA A IDÉIA DO do ele, uma lógica que pode ser condensada numa frase lapidar, ainda
"ÓPIO DO POVO" presente no cotidiano dos brasileiros. Trata-se de uma pergunta, na qual
um dos interlocutores procura intimidar o outro, geralmente localiza-
Durante muito tempo as elites brasileiras, também de esquerda, do mais abaixo na forte hierarquia social brasileira: "Você sabe com
entenderam o futebol como o "ópio do povo", expressão tomada como quem está falando?" (DAMATTA,1990, pp. 146 e ss.; 1996, pp. 25-26).
conceito fundamental por Ianet Lever (1969) no final dos anos de O futebol seria uma das raras oportunidades para sociedade bra-
1960. Para DaMatta, ao contrário, trata-se de um drama de justiça sileira organizar-se coletivamente em torno de um objetivo comum,
social. atuando de modo coordenado, em contraste com as representações
Dizer de forma simples que o futebol é o ópio do povo não é mais, políticas e econômicas tradicionais. DaMatta (1982, p. 29) reconhe-
diz DaMatta (1982, p. 22; 1986, p. 90), que corroborar as desigualda- ce, no entanto, que isso pode significar não só a suspensão, mas tam-
des de classe e o preconceito que diz que as massas sempre são igno- bém o ocultamento dos conflitos de classe. Afinal, a Igreja, o Estado,
rantes, que é preciso que as elites digam o que é certo ou errado, sem a literatura, as ciências sociais, a universidade, o sistema financeiro,
lhes reconhecer vez e voz. Afinal, as Forças Armadas, a burguesia, nada disso conseguiu promover a ne-
cessária confiança para uma construção positiva da identidade nacio-
[...) se continuamos a insistir que o futebol é um instrumento de misti- nal (DAMATTA,1986, p. 91). Por outro lado, o futebol ainda seria um
ficação das massas ignaras que deveriam estar indo ao teatro, lendo campo de vivências de sucesso, de vitória e de êxito, e como tal teria
romances ou discutindo política,estaremos apenas repetindo uma fór- uma inegável força integrativa. Sobretudo os marginalizados teriam
mula elitista e deixando de lado a possibilidade de estudar as implica- a oportunidade de vencer com os seus times.
ções do futebol na sociedade brasileira [DAMATTA, 1986,p. 90).
Sentem, então, que o seu desempenho no estádio como torcida -
Neste sentido, o futebol não seria um fenômeno de alienação, ain- como platéia sofredora que se dá sem reservas ao seu clube e heróis -
da que se possa reconhecer a existência de um interesse muitas vezes produz resultados palpáveis e vitórias completas. Essa vitória que a
152 ESPORTE DAMATTA: O FUTEBOL COMO DRAMA E MITOLOGIA 153

massa, perpetuamente iludida por governantes desonestos, efetiva- nários do treinador e de sacerdotes tribais, já que o primeiro (assim
mente desconhece no campo da educação, da saúde e, acima de tudo, como os segundos) pode ter glória e poder, mas ser morto no momen-
da política [DAMATTA, 1994, p. 17J8. to seguinte, caindo em desgraça depois de uma insuportável derrota.

Junto com seu caráter de força integradora, o futebol seria, como já Pois ele [o técnico J não é apenas o sujeito racionalmente responsá-
foi dito, uma excelente representação da democracia, exemplo de even- vel pelo time. Ele é, sobretudo, o cara que tem a tremenda responsabi-
to cultural em que as regras são universais e do conhecimento de todos. lidade de fazer com que tudo dê certo, articulando, como um pai-de-
Nele as regras não podem ser alteradas, por quem está vencendo ou per- santo, técnica com boa fortuna, preparo físico e intuição, inferioridade
dendo, não havendo lugar para golpes, mas para a "[ ... ] alternância en- com superioridade. No nosso futebol não basta somente um timaço,
tre vitoriosos e perdedores que, projetada na vida social, é a base da mais pois é preciso sorte e raça para vencer. "Raça" a que nós, brasileiros,
autêntica experiência democrática" (DAMATTA,1994, p. 17). damos um sinal positivo, pois, neste contexto, fazemos com que sinali-
Essa experiência deveria ser expandida para outras esferas da vida ze amor, orgulho, vontade de vencer e, acima de tudo, competência e
social, nas quais o peso popular muitas vezes não se faz sentir com o desempenho, esses elementos básicos que até hoje não são critérios para
necessário vigor. Afinal, o jogo político [DAMATTA, 1996, p. 44J.

Como seria bom que o povo fizesse com os governantes o que ele faz Para DaMatta, fundamental é o papel extremamente moderniza-
com os técnicos da seleção. Não seria maravilhoso ver aquele governa- dor que exerce a competição com igualdade de chances", elemento
dor levar um safanão cívico de um indignado popular? Aposto que, se fundado no mérito, essencial ao esporte, que se contrapõe às relações
isso acontecesse aos políticos, eles iam realmente virar administradores que pressupõem e apóiam o favorecimento pessoal. Nas suas palavras
da coisa pública. E o Brasil ia voltar a vencer no futebol [DAMATTA, 1996, (DAMATTA, 1994, p. 17):
p.23J.
Finalmente, o futebol proporciona à sociedade brasileira a expe-
Não é inusitada a comparação entre o treinador do selecionado eo riência da igualdade e da justiça social. Pois, produzindo um espetácu-
presidente da República, uma vez que ambas são figuras com enorme lo complexo, mas governado por regras que todos conhecem, o futebol
força simbólica no Brasil, para os quais o imaginário nacional destina reafirma simbolicamente que o melhor, o mais capaz e o que tem mais
forças incomensuráveis, sem limites. Nesse contexto DaMatta (1986, mérito pode vencer. Que a aliança entre talento e desempenho pode
pp. 99-100) estabelece uma interessante relação entre os papéis imagi- conduzir à vitória inconteste. [... J Assim, se o cotidiano nos apresenta
poderosos e impotentes que jamais trocam de lugar, o futebol nos apre-
Há um peso relevante na palavra "torcida" ou "torcedor': em língua portuguesa, diferente do
que se encontra, por exemplo, em alemão ou inglês (fan) ou mesmo no idioma espanhol falado
senta um espetáculo no qual vencedores e perdedores se alternam siste-
na Espanha (afici6n e aficionado). Semelhante ao que acontece no castelhano (idioma espanhol
falado na Argentina, por exemplo), hinchada e hincha denotam, como "torcida" e "torcedor",
uma capacidade de interferir no curso do jogo. Sobre o tema, ver trabalhos do próprio DaMatta
Com DaMatta concordam, mutatis mutandis, outros antropólogos que se dedicaram a estudar
(1994) e de Fatheuer (1995).
o esporte e o futebol, como Alba Zaluar (1991; 1994) e Hugo Lovisolo (1995).
154 ESPORTE DAMATTA: O FUTEBOL COMO DRAMA E MITOLOGIA 155

maticamente. Aprende-se, pois, que a alternância na glória é a glória na . De qualquer forma, também para DaMatta o esporte, e especifi-
alternância - base da igualdade e da justiça modernas. camente o futebol, exerce um papel preponderante, poderíamos di-
zer, no processo de civilização da sociedade brasileira. De fato, o fute-
Coloca-se aqui novamente a idéia de que não é problemático que bol, diz ele, ensina que há regras a serem cumpridas, que é possível
tenhamos capitalismo, mas que ele seja "pela metade", misturado com perder sem desonra, disciplinando para uma ordem complexa, dife-
valores atrasados e coloniais. Curioso, novamente, é que DaMatta rente das sociedades antigas, nas quais a desigualdade não só é per-
considere, paradoxalmente, que o que temos de melhor é justamente, manente, mas desejável. O esporte dramatiza os conflitos que não mais
em oposição à sociedade norte-americana, nossos valores tradicionais. precisam ser vingados com sangue e morte, mas resolvidos de forma
É neste mosaico, no qual prevalecem fontes talvez muito livremente apaziguada. "Tais dissensões são agora não somente institucionaliza-
eleitas, que DaMatta constrói, correndo todos os riscos, sua interpre- das, mas programadas, planejadas e transformadas num espetáculo
tação do Brasil. bom para pensar e dramatizar, conforme diriam Claude Lévi-Strauss
e Nelson Rodrigues" (DAMATTA, 1994, p. 14).
Diferentemente de Elias, no entanto, DaMatta quase que equipa-
DRAMA E CONFIGURAÇÃO ra modernidade a capitalismo, o que o obriga a admitir que a idéia de
que há igualdade de chances faz parte do jogo da construção do ima-
ginário ideológico, e que, portanto, por mais que evite dizer, há ideo-
Curiosamente, há um paraleIismo entre minhas idéias e as de logia e, dessa forma, alienação.
Norbert Elias a respeito da relação entre esporte e sociedade. Mas Elias, Com algum cuidado, talvez se possa dizer que o drama, como es-
afinal, é alemão, e eu sou brasileiro, então sempre falam do Elias. Se trutura permanente e que se renova, é uma forma de compreender,
tiver que citar alguém, cite Elias [DAMATTA,
1998a, p. 205]. de tematizar complexas configurações sociais.
DaMatta e Elias aproximam-se no que se refere ao peso que ambos
Norbert Elias mostrou como o esporte corresponde e é parte im- atribuem à estrutura. Para DaMatta (1990, pp. 199-200) interessa aquilo
portante do processo civilizado r, ao apaziguar emoções e internalizar que permanece, as semelhanças entre os fenômenos sociais, o que o au-
marcas disciplinares. Desdobrando seu argumento central, verificou, toriza, por exemplo, a falar do carnaval como uma festa única, ainda
com Eric Dunning e outros, como o futebol e outros esportes foram que com diferenças significativas em suas manifestações regionais.
gerados na estrutura social e política inglesas (ELlAS& DUNNING, 1986). Em Elias também a estrutura é fundamental, mas em sentido algo
É possível reconhecer um esforço teórico por parte de DaMatta, diferente do que para DaMatta, para o qual o drama social representa
que o levou a resultados semelhantes, ainda que sem a mesma preten- um momento, uma síntese da vida cotidiana, problematizando-a,
são de universalidade, o qual é parte fundamental da teoria de Elias apresentando novos caminhos, revelando e escondendo. Elias (1988;
sobre o processo civilizado r. A DaMatta, como já foi dito, interessa a
1991) empreende sua metodologia de análise a partir das configura-
especificidade do Brasil, os dilemas e paradoxos que constituem nos-
ções, estruturas ou padrões mais ou menos estáveis, formados por
sa identidade. cadeias de interdependências cada vez mais complexas, que se refe-
156 ESPORTE DAMATTA: o FUTEBOL COMO DRAMA E MITOLOGIA 157

rem a entrelaçamentos racionais, porém imprevisíveis, envolvendo a bina técnica e tática com malandragem, a competitividade e o respei-
dinâmica social e a modelação do aparato psicológico. Lembre-se, to às regras, tudo como expressão simbólica que integra nossa iden-
novamente, de que essas mudanças envolvidas na interdependência tidade e coesão. É preciso estar atento, portanto, ao papel decisivo
dos indivíduos (ou pessoas, diria DaMatta) obedecem a uma dinâmica desempenhado pelo futebol em nosso modelo de modernização, que,
não planejada, mas que tem direção observável, segundo Elias, desde como já se viu, relaciona-se, sobretudo, com uma metáfora positiva,
os tempos mais remotos da civilização. um drama que sintetiza desejos de uma sociedade mais justa e har-
Talvez a diferença fundamental seja a de que os tipos de civiliza- mônica, que deve dispensar a desigualdade e estabelecer seus valores
ção e modernidade predicados por DaMatta tenham um componen- com base em méritos e competências.
te diferente, pensado desde a especificidade brasileira. É um compo- Neste sentido é que, enquanto na Inglaterra há uma correspon-
nente lúdico, de jogo, que se assemelha, mas não se iguala, à noção dência entre o regime parlamentar e a instituição do esporte, ambos
de balanço defendida por Norbert Elias. Para Elias o esporte ajuda a com efeito pacificador (EUAS& DUNNING,1986), no Brasil essa cone-
manter um equilíbrio entre as tensões - geralmente proibidas no xão se mostra disjunta, como destaca DaMatta, já que o futebol é jus-
dia-a-dia, pela crescente internalização de regras e pressões exter- tamente o contraponto da organização política.
nas - e a proteção ordenada contra a violência corporal. Em outras
palavras, uma combinação entre emoções e sua regulamentação.
Fundamental é a simulação/dramatização do embate, com as corres- o FUTEBOL E SEUS MILAGRES, COMO AQUILO QUE
pondentes tensões sob controle, para que então possa haver catarse QUEREMOS QUE ELE SEJA
(EUAS& DUNNING,1986).
Em DaMatta o esporte também aparece como vetor desse equilí-
brio, no qual a força civilizadora das regras exerce um papel funda- Leio a classificação para a Copa como um presságio de que o Brasil
mental. Diferentemente de Elias, no entanto, não se trata apenas de vai dar certo. Certo ao nosso modo, pela elaboração por dentro daquilo
manter os aspectos de gratificação pulsional imediata, mediados pe- que somos e não pela aceitação burra e colonial do que vem de fora
las regras e estruturas do esporte. Trata-se de verificar, nas formas em [DAMATTA,
1996,p. 42}.
que se interpreta e se organiza o esporte, e especificamente o futebol
no Brasil, os espaços de afirmação de identidade e coesão social, que, Parece haver um certo romantismo, e até mesmo certo exagero nas
de resto, não correspondem - mas poderiam/ deveriam corresponder - assertivas de DaMatta a respeito da relação entre identidade nacional
à organização social como um todo. e futebol. Soa exagerado, por exemplo, dizer que o futebol é um ba-
Se podemos sumarizar o que foi dito, o futebol é um esporte rômetro para a sociedade brasileira, que quando o futebol vai mal
universalizado, mas que também constitui um universo próprio no alguma coisa está errada (DAMATTA, 1996,p. 22). Ora, ele afirma, como
Brasil. Sua moldura é oferecida, por características que encontram sua se viu acima, que o futebol contradiz, resiste à lógica social demarcada
especial afirmação entre nós, como as maneiras de se praticar esse pela política, pela economia, enfim, pelo mundo "sério". Mais lógico,
esporte. Trata-se de uma forma peculiar de modernização, que com- dentro dos marcos que lhe são próprios, seria dizer que, se o futebol
DAMATTA: O FUTEBOL COMO DRAMA E MITOLOGIA 159
158 ESPORTE

vai mal, alguma coisa, no próprio futebol, é que não vai bem. Ou, por positiva e otimista do Brasil, que não deixa de ser quase sempre
outra, seria o caso de dizer que a política e a economia pouco impor- muito crítica, sobretudo com suas elites. Melhor ser um país que se
tam, idéia que DaMatta, evidentemente, não defende. caracteriza pelo futebol e pelo carnaval que pelas revoluções e pe-
Há mesmo a impressão de que DaMatta incorpora e reforça, ao ana- las guerras, que ceifam vidas e disseminam violência, diz DaMatta
lisar o mito e o drama do futebol, elementos mitológicos em sua própria (1996, p. 144; 1982, p. 22). Mutatis mutandis, melhor que se prati-
análise, reforçados em muitos casos pelo tom quase sempre polêmico do que esporte, dramatizando os conflitos nos quais se pode perder com
ensaísta, e pelo caráter eventualmente circunstancial- mas, paradoxal- honra e voltar a vencer, algo que também pode ser lido, sem dificul-
mente, coerente - de suas crônicas. De certa forma isso é reconhecido dades, em Elias.
por ele mesmo, ao dizer que tem péssimas relações com "essa porcaria No país onde a democracia foi sempre um mal-entendido, como
chamada 'realidade»' (DAMATTA, 1998a). Ou então, ao criticar o deslum- já afirmara Sérgio Buarque de Hollanda, a idéia parece ser a de bus-
bramento com o pós-modernismo, com o que ele traria de novo: car um equilíbrio, um balanço que se configure em uma moderni-
dade própria, encontrando também novas faces no futebol. Dessa
Mas, no seu cerne, o que há de bom no pós-modernismo não é forma, DaMatta reconhece as novas formas de se jogar futebol no
novo. Eu sempre soube que a Antropologia não é ciência.Sevê o que se Brasil, que eventualmente colocam em xeque a idéia (ou ideologia?)
procura, se acha o que se quer. Outro aspecto que os pós-modernos do futebol-arte. Se o futebol vai deixando de ser "[ ... ] malandro e
destacam é o texto;ora, escreverbem sempre foifundamental [DAMATTA, alegre, para tornar-se Caxias e seríssimo" (DAMATTA,1996, p. 149),
1998a, p. 199].
é porque se transforma junto com a sociedade, modernizada, nas
estruturas e nos estilos. A expressão disso é, segundo DaMatta (1996,
DaMatta parece incorporar, ao lado da arguta observação do coti- pp .. 170, 173 e 178), o estilo de governar de Fernando Henrique Car-
diano, elementos alegóricos, que ajudam a compor uma espécie de esfe- doso ".
ra dos desejos e das emoções sobre o Brasil. Uma elaboração sem dúvi- Não vou entrar no mérito da justeza ou não desta assertiva de
da positiva e cheia de esperança, quase religiosa, que se expressa em fra- I aMatta, que, em sua forma, coincide até certo ponto com o aparato
ses como "E quando se lê da vitória do Brasil, não se trata de notícia, mas metodológico de Elias. Importante aqui é a idéia de que não só o fu-
de um presságio" (DAMATTA, 1996, p. 37). Não por acaso, DaMatta cos- I bol deve modificar a sociedade, servindo-lhe de exemplo de mo der-

tuma também falar em "milagres" no futebol, o primeiro deles" [...] é ser 11 idade e democracia, mas de que também ele, formando uma confi-

o que queremos que ele seja" (DAMATTA,


1986, p. 90; 1996, p. 156). guração não planejada (!), modifica-se no curso de outros processos
I nterdependentes.

EM FAVOR DO BRASIL E DE SUA MODERNIDADE I() Rocha (1996) e Fatheuer (1995), ambos apoiados em DaMatta, desenvolvem esse argumento, o
qual de maneira geral diz que o futebol-arte não desaparece, mas cede lugar a novas formas de
jogo, que correspondem, de certa maneira, ao momento sociopolítico vivido (Fatheuer), e a
Contrastando com visões pessimistas da sociedade brasileira e lima ampliação no repertório de jogo e conseqüentemente da identidade nacional (Rocha).
Em ambos aparece como paradigmática a figura do brasileiro tricampeão de Fórmula IAyrton
sua formação histórica, DaMatta tem, indiscutivelmente, uma visão Scnna. Minhas ponderações na segunda seção deste capítulo valem para a posição de Fatheuer.
160 ESPORTE
DAMATTA: O FUTEBOL COMO DRAMA E MITOLOGIA 161

Ainda no que toca mais restritamente à relação entre a política tra- o fato, porém, é que o velho esporte bretão entrava em conflito
dicional e futebol, não deixa de soar estranho em DaMatta a afirma- como os valores tradicionais. Habituada a jogar e não a competir, a so-
ção da falta de vínculo entre futebol e política no Brasil. Com tantos ciedade brasileira, construída de favores, hierarquias, clientes, e ainda
políticos profissionais vinculados ao mundo do futebol, e mesmo ta.n- repleta de ranço escravocrata, reagia ambiguamente ao futebol. Esse es-
to esforço parlamentar para o debate (ou para o não-debate) a respeito tranho jogo que, dando ênfase ao desempenho, democraticamente pro-
dele, parece ser equívoco não considerar essa relação. duzia ganhadores e perdedores sem subtrair de nenhum disputante o
Gostaria ainda de retomar um ponto, citado na introdução deste nome, a honra ou a vergonha. Foi preciso que essa sociedade vincada
texto. Uma das críticas mais ferozes feitas pela nova esquerda ao es- por valores tradicionais aprendesse a separar as regras dos homens e da
porte refere-se ao fato de ele estar fortemente vinculado ao princípio própria partida para que o futebol pudesse ser abertamente apreciado
de rendimento (leistungsprinzip), no qual a competição, evidentemen- entre nós. Desse modo, foi certamente essa humilde atividade, esse jogo
te, desempenha um decisivo papel. A crítica ao esporte desenvolvida inventado para divertir e disciplinar que, no Brasil, transformou-se no
principalmente na Europa ocidental entendia que o esporte reprodu- primeiro defensor de democracia e de igualdade [DAMATIA,1994,p. 12J.
zia e reforçava as relações capitalistas, instrumentalizando corpos e
alienando consciências. Talvez falte nas considerações de DaMatta sobre o futebol estabe-
Contra esta tese se coloca, como se pode perceber, Roberto lecer mais solidamente as bases para uma sociologia comparada que
DaMatta. Para ele não apenas a tese da alienação via esporte deve ser, tome em conta o futebol e outros esportes, para além dos Estados Uni-
ainda que de todo não desconsiderada (DAMATTA,1998a, p. 205), com dos da América. Fica a curiosidade em saber até que ponto se coloca a
certeza criticada como uma idéia elitista, plena de preconceitos con- singularidade brasileira, sobretudo na importância que se dá à incer-
tra as práticas populares. Para além disso, segundo se lê em seus tra- teza do jogo, às "influências sobrenaturais", à sorte e ao azar. Note-se
balhos (DAMATTA,1982, p. 27), o esporte não despersonaliza, fazen- que também em outros países se atribuem resultados à influência de
do o indivíduo perder-se numa fungibilidade universal, mas, ao con- divindades, ou ao caráter "divino" dos jogadores". Além disso, a exis-
trário, faculta-lhe a possibilidade de tornar-se pessoa. É difícil, no en- t ncia de uma loteria esportiva não é exclusividade brasileira.
tanto, falar contra a despersonalização, mas não criticar, e até mesmo Uma outra questão importante é a designação do futebol como
defender, a presença no imaginário brasileiro das idéias de destino, ou modelo de participação coesa e organizada. Não se pode desconside-
de um "jogo jogado no outro mundo". rar que essa organização resulta muitas vezes em violência organiza-
No sentido do tornar-se pessoa é que DaMatta defende a competi- da, na relação irracional e não mediada de várias torcidas. Também
ção como uma prática democrática, na direção contrária às hierar- '1 sse contexto, o esporte-espetáculo é sobrevalorizado. Parece ser
quias calcadas no parentesco, no compadrio e na patronagem. A com- " gerada a minimização de seu caráter de elemento da indústria
petição seria, portanto, um vetor modernizador em uma sociedade . nltural, assim como não é sequer mencionado o preço pago pelos
onde os valores da vida colonial, de fragilizada esfera pública, ainda
são fortemente determinantes. II ]1 empIo marcante é o caso de Diego Maradona e da mitologia que se criou na Argentina ao seu
r dor. Sobre isso vale a pena ler a autobiografia de Maradona (2000) e os trabalhos de Eduardo
Archetti (1998; 2001) sobre o futebol argentino.
DAMATTA: O FUTEBOL COMO DRAMA E MITOLOGIA 163
162 ESPORTE

____ . (1984). Esporte para todos: um discurso ideológico. Rio de Janeiro,


atletas para chegar à alta performance. Os resultados esportivos de
lbrasa.
expressão são alcançados, geralmente, à custa de muita organização e
trabalho, como destacaria DaMatta, mas também por meio de muita DAMATTA,
R. (1982). "Esporte na sociedade: um ensaio sobre o futebol brasilei-
ro". ln: DAMATTA,
R. Universo do futebol. Rio de Janeiro, Pinakotek.
violência contra o corpo.
Por fim, é preciso destacar que os trabalhos de DaMatta são uma ____ . (1986). Explorações: ensaios de sociologia interpretativa. Rio de Ja-
interessante fonte para entender nossa dinâmica social. Eles não são neiro, Rocco.
somente instigantes interpretações, mas também material de pesqui- ____ .(1990). Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dile-
sa, nas quais podem ser lidos os significados que atribuímos ao país, ma brasileiro. 5. ed. Rio de Janeiro, Guanabara.
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UNICAMP. O tema do futebol como meio de construção da identidade
cional e campo de invenção de tradições é amplamente
na-
conhe-
cido para a história e as ciências sociais. O conceito de invenção de
tradições para as ciências sociais pode até certo ponto ser encarado
transparente e óbvio na medida em que toda a cultura é construída.
Em co ntrapartida, o conceito torna-se eficaz quando as tradições
mantidas ou construídas, a partir do Estado moderno, tendem a ser
Iratadas como a "essência" do povo, da cultura e da nacionalidade. A
11 ssencialização" da cultura está tão presente nas elaborações jorna-
llsticas, populares e, às vezes, no seio das ciências sociais. Nesse con-
I -xto, há um exemplo que pode ser citado como emblemático: a Copa
du Mundo de Futebol disputada no Brasil em 1950 em que a repre-
vntação local perdeu de forma inesperada para a equipe do Uruguai.
166 ESPORTE IDENTIDADE NACIONAL E RACISMO NO FUTEBOL BRASILEIRO 167

o resultado foi uma frustração coletiva com repercussões no imagi- sido realizada em território nacional, foi sentida como desgraça e in-
nário popular, nos jornais e nos livros escritos sobre o evento presen- fortúnio.
tes até os dias de hoje'. Em termos mais precisos, pode-se dizer que As imagens de "morte da coletividade" na Copa de 1950 tornam-
na memória dos brasileiros esse evento se tornou uma narrativa se mais significativas na medida em que elas se tornam imanentes nas
mítica', O artigo pretende demonstrar como foi construída essa der- narrativas de vitórias do futebol brasileiro. Observe-se que Vogel fez
rota no meio da imprensa e da literatura e como as reflexões sociais essa constatação quando buscava analisar as representações sociais
apresentam certa continuidade com as narrativas que tornaram a sobre a Copa do Mundo de 1970 e seus entrevistados, ao falarem da
Copa de 1950 um marco para pensar discutir o futebol nacional. vitória, todavia faziam alusão à derrota de 1950, embora passados 20
As pessoas que vivenciaram o clima dessa Copa do Mundo e aque- anos. Esses informantes, independente de na época terem idade ou não
las que apenas ouviram falar ou leram sobre a chamada "fatídica der- para participar dos eventos de 1950, descreveram suas lembranças com
rota de 50" descrevem imagens e sentimentos com pouca variação. Os pouca variação de detalhes. Esse dado indicou que não se poderia
atores falam de comoção nacional, de desgraça, de lágrimas nos olhos, analisar pelo viés antropológico a Copa de 1970 sem considerar as
de tristeza geral, de multidão em silêncio e de outras imagens e sen- representações sociais sobre a de 1950. Em síntese, no âmbito do dis-
timentos que representam a "morte da coletividade", como analisou curso dos atores sociais, a derrota de 1950 aparece em oposição es-
Vogel (1982). De fato, a Copa de 1950 foi, pelos depoimentos de pes- trutural à vitória de 1970.
soas comuns e pela imprensa especializada, um momento em que o Assim, Vogel demonstrou como esses eventos podem espelhar o
sentimento coletivo de morte foi gerado, apesar da conquista do vice- comportamento ritual numa sociedade urbana e como categorias
campeonato mundial, quando todos esperavam o título de campeão sociais de morte e vida, honra e vergonha, communitas e hierarquia,
do mundo. É significativo lembrar que a conquista do vice-campeo- associadas ao futebol, podem dramatizar o ethos de um povo. As ca-
nato em 1950 teria sido o melhor resultado do futebol brasileiro, uma tegorias sociais de honra e vergonha aparecem integradas ao proces-
vez que o Brasil havia, na Copa de 1938, obtido a 3a colocação e os so de afirmação de identidade individual ou coletiva. Se, por um lado,
jogadores representantes dessa seleção foram recepcionados como a memória de "morte coletiva" apresenta certa continuidade entre as
heróis nacionais (NEGREIROS, 1998). Além do mais, a seleção brasilei- narrativas populares, jornalísticas e acadêmicas sobre essa Copa de
ra de 1950 perdeu o jogo final para a seleção do Uruguai, vencedora 1950 - guardadas as diferenças de graus de profundidade e de rigor
da 1a Copa do Mundo e campeã olímpica. Uma análise racional da das elaborações -, por outro lado, há descontinuidades ou diferenças
trajetória do futebol brasileiro na Copa de 1950 deveria causar orgu- entre as narrativas quando a idéia de racismo é agregada à de "morte
lho, contudo, diante do contexto dos acontecimentos e por esta ter coletiva" no discurso jornalístico e acadêmico.
De fato, o racismo é aqui compreendido no espaço social do fute-
bol como um valor sublimado que denuncia as relações raciais no
Observe-se que alguns livros foram escritos sobre o assunto, por exemplo: Anatomia de uma
derrota ... Brasil e, ao mesmo tempo, coloca a etnia afro-brasileira num patamar
2 Parto da definição de mito utilizada por Watt (1997): "Uma história tradicional largamente uperior como construtora do estilo brasileiro de jogar futebol. Este
conhecida no âmbito da cultura, que é creditada como uma crença histórica ou quase histórica,
e que encarna ou simboliza alguns valores básicos de uma sociedade" (p. 16 ).
ripa de discurso social se tornou uma tradição inventada e sua e1abo-
IDENTIDADE
NACIONAL
ERACISMO
NOFUTEBOL
BRASILEIRO
169
168 ESPORTE

ração em narrativa foi produzida por Mário Filho, jornalista de re- construído como herói e possuidor de qualidades físicas inigualáveis
nome no Brasil, intelectual e ativista do desenvolvimento do futebol (SOARES,1999).
e do esporte em geral. E o veículo principal para tal construção foi o Então, no Brasil, o dito de que "somos os melhores do mundo"
livro O negro no futebol brasileiro (NFB), publicado pela primeira vez oscilou para o de que "somos os piores do mundo". Deve-se dizer que
em 1947. Em 1950, diante do impacto da derrota, o racismo cultiva- a oscilação do comportamento de onipotência para o de impotência
do e denunciado por este livro clássico sobre o futebol foi reforçado não define nenhuma singularidade. Esse tipo de pêndulo sentimen-
tendo em vista que emergiram na imprensa como culpados do fracasso tal parece universal nos sentimentos comunitários. Sacher e Palomino
os jogadores Barbosa, Bigode e Iuvenal, todos afro-brasileiros. Mário (1988) dizem que a palavra "crise", no contexto do futebol da Argen-
Filho na oportunidade denunciou a escolha dos três negros para "bo- tina, está presente desde o seu início e esta se tornou um eixo central
des expiatórios" como prova de preconceito racial no futebol e adje- na história do esporte daquele país. Tanto num país como no outro,
tivou esse processo de "recrudescimento do racismo", isto é, como um o futebol também faz gerar o sentimento de serem os melhores e os
racismo mais intenso, mais forte que o tradicional amplamente reco- piores do mundo. Se o Brasil viveu o desastre do Maracanã em 1950,
nhecido no Brasil. Em outras palavras, o intelectual e jornalista Má- a Argentina viveu el desastre de Suecia em 1958, fazendo fenecer o mito
rio Filho contrapôs-se ao racismo mais genérico que rejeitava a raça de Ias mejores del mundo, quando perderam por 6 a 1 para a
afro-brasileira enaltecendo as superqualidades do mesmo grupo ét- Tchecoslováquia. De fato, os dados introduzidos sobre a Argentina
nico no espaço social do futebol, acabando por gerar, sem ter cons- tornam-se importantes para que se possa relativizar a idéia da singu-
ciência, um outro tipo de racismo. Os positivistas brasileiros afirma- laridade e superioridade brasileira no futebol. O caso brasileiro da
vam que os afro-brasileiros teriam dons para as artes; isto não deixa Copa de 1950, por sua vez, pode contribuir para a compreensão da
de ser um tipo de racismo. dinâmica social e antropológica que envolve os mitos do futebol
Como já demonstrei algures, o "recrudescimento do racismo" tipificados no continente sul-americano. No encaminhamento desta
descrito por Mário Filho foi uma estratégia de continuação e ampli- abordagem reside o propósito do presente ensaio.
ação do seu livro em 1947, na nova versão de 1964. Ou seja: o livro
desdobrou-se em várias edições acompanhando derrotas e vitórias
da representação nacional brasileira de futebol. Quanto à derrota de MITO E REALIDADE
1950, este autor de grande influência na opinião pública propôs que
o sentimento nacional de inferioridade racial- por ele identificado A partir da interpretação de racismo positivo versus racismo negati-
pela forte presença africana na constituição da "raça brasileira" - te- V) das postulações contraditórias de Mário Filho, os meios de comuni-
ria vindo à tona diante do drama do fracasso. A culpa da derrota lU ão de massa passaram a reproduzir naturalmente a versão politicamen-
teria, enfim, recaído sobre os afro-brasileiros da equipe brasileira. 1\' orreta. E com maior significado, a sublimação racial do atleta afro-
Entretanto, lembremos de que, para realizar o acréscimo dos dois lu I ileiro foi compartilhada por sociólogos, antropólogos e historiado-
novos capítulos, na reedição de seu livro, foram suprimidas partes II'N que têm assumido a derrota de 1950 também como uma narrativa
do texto original (1" edição), em que o jogador negro de futebol era "di i a que aparece dissimulada em trabalhos acadêmicos (SOARES,
1999).
IDENTIDADE
NACIONAL
ERACISMO
NOFUTEBOL
BRASILEIRO
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170 ESPORTE

Em retrospecto, Guedes (1977) tratou o tema da Copa de 1950 uti- cias da raça brasileira" que reacendeu com a derrota na Copa de 1950.
lizando as categorias de "drama", de communitas e de "morte social", Observe-se que a base da interpretação do racismo em 1950 só encon-
as mesmas utilizadas posteriormente por Vogel (1982) no estudo tra um pilar, isto é, a ambígua interpretação de Mário Filho ou a re-
supracitado. Guedes demonstra, com base nos jornais editados duran- petição acrítica dos autores que se fundamentaram nesta mesma fonte.
te a competição, como o espírito de unidade, de coesão social, de igual- A perspectiva de associação entre "morte coletiva e racismo" não
dade e de communitas aflorava nos textos durante as vitórias, e como é destacada pelo artigo "Cicatrizes do futebol" (RIGO & SILVA,1998).
os sentimentos de fragmentação, de divisão e de "morte social" vie- Estes autores descrevem os dramas e as racionalizações de pessoas que
ram à tona na derrota no jogo final de 16 de julho. As imagens de estiveram presentes na "fatídica derrota". Os depoimentos apresentam
"morte", de fragmentação, de divisões internas e de culpa associaram- também imagens de "morte coletiva" após a derrota para o Uruguai,
se, segundo a autora, à de hierarquia racial (GUEDES,1977, pp. 59-60). mas não apresentam imagens de racismo. Barbosa aparece como cul-
Nesta direção, ela vai afirmar que a "ideologia evolucionista, fácil re- pado por ter cometido um erro imperdoável de posicionamento para
curso de hierarquia e discriminação racial, cumpre o seu papel um goleiro (idem, p. 135). O técnico da equipe brasileira, Flávio Cos-
explicador na derrota de 1950" (idem, p. 60). Assim, Guedes acaba por ta, aparece como outro culpado: primeiro, por ter orientado jogado-
associar a idéia de "morte" à de racismo. Observe-se que, analisando res "valentes e viris", como Bigode, a não revidarem qualquer tipo de
o material jornalístico citado pela autora, em momento algum se agressão (idem, p. 132); segundo, por não ter sido estratégico no sen-
acham "marcas discursivas", explícitas ou implícitas, que possamos tido de montar um esquema tático que se valesse da vantagem do em-
classificar como racismo ou como afirmação de inferioridade da etnia pate que tinha o Brasil naquela final (idem, pp. 132-134). Os depoi-
afro-brasileira. Para afirmar os sentimentos racistas ou a idéia de in- mentos apresentados por Rigo e Silva não apresentam marcas que po-
ferioridade racial, Guedes também recorre à interpretação de Mário deríamos classificar como racistas. Vale destacar que os autores tive-
Filho, já que não encontra nos jornais da época o material empírico ram a disciplina de concentrarem-se nos depoimentos dos entrevis-
necessário para consubstanciar sua afirmação. Observemos que tados, sem se renderem à interpretação dominante construída com
Guedes afirma que a simbolização de morte sempre traz consigo cul- base em Mário Filho.
pados, criminosos e seus respectivos "enterros simbólicos"; porém, diz Em resumo, a narrativa acadêmica sobre a Copa de 1950 repro-
que "não foi possível verificar esse aspecto em 50, mas ele aparece cla- duz a idéia de "recrudescimento do racismo" construída por Mário
ramente mais tarde" (idem, pp. 61-62). Portanto, há um racismo re- Filho. E assim, acaba por reforçar a mitologia em torno dos eventos
forçado por Guedes com base na interpretação construída por Mário da Copa de 1950 quando confunde história social com história das
Filho 17 anos depois do evento. mentalidades. Neste particular, há que se enfatizar as estratégias sutis
Em 1982, Roberto DaMatta não se furtou de comentar os senti- u envergonhadas de segregação e sentimentos racistas que permeiam
mentos racistas aflorados pela derrota em 1950. Apoiado em Guedes, historicamente a sociedade brasileira. Contudo, a militância anti-ra-
diz que este estudo revela que vários jornalistas associaram a força do .ista dos intelectuais no âmbito do futebol; ou sua complacência,
destino na derrota aos fatores raciais (DAMATTA,1982, p. 32). Vogel permite levantar a hipótese de que o futebol é uma tradição popular
(1982) também cita Guedes para afirmar o problema das "deficiên- 110 Brasil que se situa além da capacidade crítica dos meios acadêrni-
172 ESPORTE IDENTIDADE
NACIONAL
E RACISMO
NO FUTEBOL
BRASILEIRO173

cos do país. Dentro desta perspectiva analítica, passemos à análise do lho e em outros periódicos durante a Copa. Mas a sorte não esteve do
contexto e da trama dos eventos de 1950. nosso lado naquele fatídico 16 de julho de 1950 ou simplesmente a equi-
pe uruguaia esteve melhor naquele jogo. A seleção nacional perdeu por 2
a 1. A comoção foi geral, segundo narraram os jornais da época e os ato-
o JOGO DA IDENTIDADE NA COPA res sociais que viveram aquele clima nos dias de hoje.

A realização desse evento na época carreava uma série de significa- As NARRATIVAS NO JOGO "RACIAL"
dos internos e externos para o Brasil. Era a primeira Copa a ser realizada
depois de terminada a Segunda Grande Guerra - a última havia sido rea- Como já proposto, o "recrudescimento do racismo na Copa de 1950':
lizada na França em 1938 - e, portanto, as relações internacionais ainda denunciado por Mário Filho na segunda edição do NFB, funcionou como
estavam em processo de reconstrução. Para o Brasil, sediar um evento uma estratégia de continuação e ampliação da narrativa mítica. O NFB
desta natureza significava mostrar ao mundo civilizado sua capacidade apresenta uma estrutura descritiva semelhante à do conto maravilhoso,
de organização e suas possibilidades de desenvolvimento. Neste sentido, no sentido de Vladmir Propp (1984). Assim, para acrescentar dois novos
a construção do Estádio Municipal, o Maracanã, deu-se num tempo re- capítulos à segunda edição, Mário Filho colocou o herói negro em nova
corde demonstrando a "capacidade do brasileiro': como foi destacado situação de dano ou perda seguindo a mesma estrutura da edição anteri-
por Mário Filho, inúmeras vezes, em seus artigos. or (SOARES,2000). Entretanto, lembremos de que para realizar o acrésci-
O maior estádio do mundo estava pronto e o Brasil, durante os me- mo foram suprimidas partes do texto original, no qual o herói afro-bra-
ses de junho e julho de 1950, viveu ligado aos movimentos que envolvi- sileiro, em 1947, já teria vencido todas as barreiras raciais e sociais no fu-
am a Copa de 1950. A seleção nacional, durante a competição, vinha re- tebol e a miscigenação era a marca da vitória da conciliação racial no fu-
alizando sua melhor participação em eventos internacionais. Passou, a tebol (SOARES,2000). A estrutura do conto nos novos capítulos é a seguinte:
partir das consecutivas vitórias, a ser apontada como uma das favoritas à herói afro-brasileiro sofre o dano; passa por desafios e provações; su-
conquista da Copa. As previsões não estavam totalmente erradas. O Bra- pera as provações, com o recebimento do objeto mágico; afirma-se e re-
sil chega ao jogo final depois de ter vencido a Espanha - também apon- integra-se à comunidade. A estrutura narrativa toma os afro-brasileiros
tada como uma das favoritas ao título - com grande facilidade. A seleção icusados em 1950 (Barbosa, Bigode e Juvenal) até chegar à consagração
nacional assim teria como adversário na grande final a seleção uruguaia. dos jogadores Pelé e Garrincha, ambos representantes da etnia afro-bra-
O Brasil tinha a vantagem do empate para sagrar-se campeão; o Uruguai ileira e vitoriosos nas Copas de 1958 e 1962. O estilo mágico e alegre do
havia empatado com a Espanha. Assim as apostas e esperanças dos bra- futebol brasileiro teria varrido as barreiras raciais e sociais com essas vi-
sileiros estavam calcadas no amplo favoritismo do Brasil diante do Uru- tórias, e Pelé seria o principal ícone da afirmação do Brasil e da miscige-
III guai. Com isso não só estaríamos demonstrando apenas a capacidade de unção, segundo Mário Filho. Pelé e Garrincha completam a saga dos he-
organização e de realização do brasileiro ao mundo, mas também o me- I()is de barba e cabelo carapinhos, ao estilo de Gilberto Freyre, que na pri-
lhor futebol; esse era o tom das matérias editadas no jornal de Mário Fi- III 'ira edição havia se iniciado com Friedenreich (filho de alemão com
174 ESPORTE IDENTIDADE
NACIONAL
E RACISMO
NO FUTEBOL
BRASILEIRO175

uma black woman) na década de 1920, passando por Domingos da Guia Em outros artigos demonstrei que as provas de racismo não se sus-
e Leônidas da Silva, ambos também representantes da etnia afro-brasi- tentam em termos de história social pela narrativa do NFB nem pelas
leira, na década de 1940. narrativas de seus reprodutores. Por exemplo, demonstrei em outros
A utilização do NFB como um "arquivo do futebol" tem levado os eventos descritos na obra que a tensão e as contradições entre amado ris-
estudiosos desse esporte a "mitologizar" esta obra e seu autor. Obser- mo e popularização do futebol eram analisadas por Mário Filho e seus
ve como José Sérgio Leite Lopes, antropólogo brasileiro renomado na reprodutores como motivadas pelo racismo da sociedade brasileira (So-
atualidade, utilizando o núcleo narrativo da Copa de 1950 descrito no ARES,1999). Afirmei que os sentimentos racistas, caso estivessem presen-
NFB, produz equivocadas interpretações so bre a 1a edição do livro por tes, seriam secundários e não o motor ou força determinante da(s)
ter apenas consultado a 2a: trama(s) em questão (SOARES,1999; 2000). A narrativa do NFB e de seus
reprodutores explicaria todo movimento da "história do futebol brasi-
Na primeira edição de O Negro no Futebol Brasileiro, se seu quarto leiro" como um processo de resistência e luta do afro-brasileiro no espa-
capítulo "Ascensão Social do Negro" dá a impressão de um final feliz a ço do futebol (Cf. MURAD,1994; GORDONIr., 1996). A narrativa soa como
leitores apressados, ele já anuncia ali a possível persistência do racismo mítica ou contrafática na medida em que se poderia questionar por que
e da auto desvalorização de um povo em sua maioria mestiço e negro. o movimento afro-brasilero no Brasil sofreu ao longo de nossa história
Há uma antecipação do que ficará mais claro em seguida: o drama da tantas dificuldades de agregação de forças e teria escolhido o espaço do
Copa do Mundo de 1950, a renovação das tendências racistas no fute- futebol como o local de resistência "corporal e silenciosa".
bol brasileiro durante os anos 50. Na segunda edição do livro, em 1964, A figura do "recrudescimento do racismo" construída por Mário Fi-
ele pode assinalar a confirmação histórica de suas teses de inversão de lho não é encontrada nos jornais de 1950 nem nos seus próprios artigos
1958 (Copa do Mundo ganha na Suécia por um time que derruba os jornalísticos escritos na época do evento. Mário Filho produziu um épi-
estereótipos racistas anteriores) e a persistência e a consagração dos co sobre a etnia afro-brasileira no futebol brasileiro, afinado com o espí-
grandes jogadores negros estilistas como Didi, Pelé, Garrincha e mui- rito do sentimento nacional dos anos de 1940, quando o racismo era o
tos outros ... [LEITE LOPES, 1994, p. 79]. inimigo interno a ser derrotado para que a nação se afirmasse. A misci-
genação transformara-se em motivo de orgulho, já que antes era motivo
Ora, torna-se evidente que Leite Lopes, por não ter consultado a de vergonha e explicação para o atraso do país (SKIDMORE,1994). Os
Ia edição, trata o épico do afro-brasileiro construído por Mário Filho reprodutores de Mário Filho, quando enfatizam e reiteram os casos
como antecipação histórica. A confirmação das chamadas "teses de anedóticos supostamente racistas ou racialistas, pinçados da obra em
inversão", por Leite Lopes, apenas atesta a presença da estrutura do questão, acabam formulando uma pedagogia anti-racista. Nesse caso, as
conto na narrativa do NFB. A inversão do quadro de dano, ou "racis- ciências sociais passam a servir apenas como argumento de autoridade
mo", deve ser vista como uma etapa a ser vencida pelo herói afro-bra- ou de legitimação dessa pedagogia. Este ponto parece ser crucial, talvez
sileiro na estrutura narrativa de Mário Filho. De fato, este é um dos devêssemos pensar que a reiteração obsessiva das quase-histórias de ra-
exemplos das confusões, dos erros e da falta de sutileza analítica no cismo no futebol brasileiro funcione mais como pedagogia do que como
uso da referida fonte. denúncia do racismo. Em outros termos, poderíamos pensar que as qua-
176 ESPORTE IDENTIDADE
NACIONAL
E RACISMO
NO FUTEBOL
BRASILEIRO177

se-histórias de racismo apenas reforçam o ideal da miscigenação que e Bigode, acusava-se a si mesmo (RODRIGUESFILHO, 1964). O povo te-
devemos pensar ser o Brasil. O inimigo deve estar sempre presente para ria chamado a si próprio e aos jogadores, principalmente os afro-bra-
não afetarmos a unidade e a positividade da miscigenação (HOBSBAWM, sileiros, de sub-raça. O racismo em Mário Filho teria, assim, assumi-
1990). Em suma, o futebol tem sido instrumentalizado por intelectuais do um tom quase psicológico de "consciência infeliz" ao estilo hege-
no Brasil no sentido da construção da identidade nacional. liano. Para complicar ainda mais o "recrudescimento do racismo", o
Se recorrermos à própria narrativa do NFB, veremos que a idéia do povo teria, segundo Mário Filho, selecionado como herói da Copa de
"recrudescimento do racismo" perde a força ou se secundariza no es- 1950 o mulato (colored) Obdúlio Varela, capitão da equipe uruguaia.
copo da obra. Mário Filho, depois de afirmar que três afro-brasileiros Naquele mulato o povo teria identificado o que faltou ao brasileiro
foram escolhidos para bodes expiatórios, diz que a equipe tinha mem- para tornar-se campeão do mundo, isto é, raça.
bros do mesmo grupo étnico que não foram acusados pela derrota. Mário Filho acabou por construir um "Obdúlio Varela" (um mu-
Quando encontramos a reprodução desse núcleo narrativo, ao estilo do lato uruguaio) como mais um dos "santos de barba e cabelo carapi-
politicamente correto, não se encontra a simples questão de por que a nhos" para dar continuidade à narrativa (SOARES,2000). Se o mulato
culpa cair apenas sobre Barbosa, Bigode e Iuvenal, e serem isentados uruguaio foi elevado à condição de herói pelo próprio povo brasilei-
Bauer, Jair da Rosa Pinto e Zizinho, todos representantes da mesma ro, como entender a acusação a Barbosa, Bigode e Juvenal como pro-
etnia. A explicação mais simples é a de que os "bodes expiatórios" eram va da volta do racismo? Observe-se que não se está questionando a
todos jogadores da defesa brasileira, e participaram direta ou indireta- existência de racismo no Brasil e no imaginário brasileiro, o que está
mente dos lances dos gols uruguaios. Esta observação está presente em em foco é que a história social da Copa de 1950 não se sustenta, em
segundo plano no NFB. É do cotidiano do futebol imputar a culpa da termos de historiografia, quando construída exclusivamente com base
derrota aos defensores e aos goleiros. Da mesma forma que um empate em Mário Filho. Este intelectual, de fato, instrumentalizou a Copa de
pode transformar o goleiro em herói, a derrota pode transforrná-Io em 1950 de modo a descrever uma nova queda (dano ou perseguição) do
vilão. No futebol, o mercado de jogadores indica que os valores se dife- afro-br asileiro, para que depois este fosse reafirmado como herói nas
renciam de acordo com a especialidade ou posição na equipe, sendo vitórias das Copas de 1958 e 1962.
possível observar que em média os atacantes são mais valorizados e cir- Passemos à análise das matérias e dos artigos do Jornal dos Sports -
culam mais no mercado que os defensores; também são, na maioria das jornal de propriedade da família de Mário Filho, sediado no Rio de
vezes, candidatos naturais a ocuparem a posição de ídolos das torcidas. Janeiro - no sentido de apresentar evidências da fragilidade da inter-
Na história do futebol os goleadores são mais lembrados que os defen- pretação da mídia sobre a derrota de 1950.
sores, salvem-se raras exceções. A própria narrativa épica do NFB sele-
ciona seus heróis com base no critério da raça, porém quase todos fo-
ram atacantes: Friedenreich, Leônidas, Pelé e Garrincha, com exceção A IMPRENSA NA COPA
de Domingos da Guia.
O "recrudescimento do racismo" também perde força quando Má- Realizei um levantamento das crônicas jornalísticas nos dias que
rio Filho retrocede afirmando que o povo, ao acusar Barbosa, Iuvenal untecederam e nos quatro anos que seguiram a derrota naquele 16 de
178 ESPORTE IDENTIDADE NACIONAL E RACISMO NO FUTEBOL BRASILEIRO 179

julho. Observei atentamente as crônicas de Mário Filho e de outros tagonistas do ufanismo que se construiu nesse cenário. O clima de
cronistas no sentido de verificar: se expressões racistas ou denúncia auto-afirmação nacional aumentava à medida que a seleção brasilei-
de sentimentos racistas estavam presentes nas crônicas que se suce- ra fazia sucesso na competição. Os brasileiros foram à loucura quan-
deram à derrota. do venceram a Espanha por goleada, o famoso jogo das "Touradas de
Eventos esportivos desta natureza são momentos competitivos que Madri". A manchete do jornal de Mário Filho era a seguinte: "Maior
se transformam em espaço de auto-afirmação nacional. A Copa de vitória do scratch brasileiro no maior espetáculo do football mundial"
1950 tinha, dessa forma, um caráter todo especial para o brasileiro e (Jornal dos Sports, 14 jul. 1950, p. 1). Mário Filho escreve uma página
para a imprensa e o rádio da época. A seleção brasileira desde a Copa inteira sobre os detalhes da vitória. No sábado que antecedeu a gran-
da França, em 1938, já dava sinais da potência de seu futebol. Os bra- de final da Copa, a manchete dizia: "Tudo preparado para a vitória"
sileiros avaliaram o desempenho da equipe nacional na França como (Jornal dos Sports, 15 jul. 1950, p. 1). As vitórias inquestionáveis, prin-
excelente e só não teriam logrado vitória por problemas de arbitra- cipalmente contra os países europeus, talvez transferissem para o bra-
gem. Entretanto, Gilberto Freyre, sociólogo seminal da identidade sileiro a seguinte representação: "Se podemos ser bons no esporte,
cultural brasileira, escreveu um artigo jornalístico intitulado "Football poderemos ser em outros setores". O contexto favorecia que o brasi-
mulato" (1938), em que apesar dos problemas da arbitragem enfati- leiro sentisse orgulho de si mesmo. A seleção dava provas de ser a fran-
zava o sucesso da representação brasileira pela forte presença dos jo- ca favorita à conquista do título e o Maracanã era a marca da capaci-
gadores afro-brasileiros. dade nacional.
A construção do Estádio do Maracanã, no Rio de Janeiro, foi o gran- A legitimidade do futebol brasileiro, nos dias que antecederam a fi-
de símbolo da época. O maior estádio de futebol do mundo foi erguido nal da Copa, para ser total necessitava do aval estrangeiro. Mário Filho
num tempo recorde, e aí estava demonstrada a capacidade técnica e apresentava no Jornal dos Sports a opinião dos especialistas estrangeiros,
empresarial do país. Mário Filho empenhou-se de corpo e alma nas ta- por exemplo "Como a crônica italiana vê as vitórias brasileiras" (idem,
refas relacionadas a essa construção. Colocou sua máquina jornalística p. 3). A mimesis da guerra, ou melhor, a busca da afirmação do Brasil
a serviço da formação de uma opinião favorável à realização da obra; diante dos países europeus estava estampada no Jornal dos Sports. Uma
buscou alianças entre políticos adversários em nome da grandiosidade matéria dizia, ufanisticamente, que a vitória brasileira "foi o maior gol-
da obra; acompanhou a construção do estádio como se fosse "dono" ou pe no prestígio do football espanhol". Todo o clima auxiliava a formar o
"engenheiro-chefe"; levantou recursos, vendendo pessoalmente cadei- entimento de communitas, de unidade nacional. A Rádio Continental,
ras cativas no estádio. O empenho de Mário Filho na realização da Copa do Rio de Janeiro, convocava a população pelo jornal (Jornal dos Sports,
do Mundo no Brasil, como proprietário de um jornal esportivo, pode- 16jul.1950,p.2):
ria ser pensado apenas como interesse financeiro e comercial, mas sua
dedicação ao evento e a construção do Maracanã parecem indicar que Hoje - última etapa contra o Uruguai - Ordem do dia:
seu empenho ia além dos interesses comerciais. 1 Cantar o hino nacional ao hastear a bandeira.
O argumento que estou destacando é que a Copa de 1950 foi um 2 Aplaudir-torcer-incentivar nossa seleção em todas as jogadas
cenário para a auto-afirmação nacional e Mário Filho foi um dos pro- durante todo o tempo.
IDENTIDADE NACIONAL E RACISMO NO FUTEBOL BRASILEIRO 181
180 ESPORTE

Viva o Brasil campeão do mundo! seja, não pode destruir o football brasileiro. Não somos desfibrados (o
Ouça os comandos da Continental. que é que há?).
Tivemos um Fried, um Fausto, um Domingos. Temos em Minas um
Mas, como já relatamos, o improvável aconteceu: o Brasil perdeu celeiro de cracks. Temos no Rio Grande do Sul [...] Pernambuco fará
para o Uruguai. Só a vitória poderia corresponder à expectativa cria- surgir outros, como Ademir.
da. Segundo Guedes (1977, p. 57), a derrota do Brasil trouxe o senti- Do Brasil todo surgirão cracks que serão dignos daqueles que nos de-
mento de "morte social", e voltou-se imediatamente ao cotidiano - por ram, na raça e nafibra, a vitória de 1919.Apertemos num abraço amigo
exemplo, em O Globo, "na primeira página [... ], apenas um editorial e fraterno os nossos cracks. Agora, mais do que nunca, devemos estar
e um cabeçalho, sem texto nem fotos, em letras médias, no alto da pá- unidos em torno deles. Eles precisam de teu apoio, da tua coragem, da
gina, não perfazendo 10% da área disponível" - e a unidade foi que- tua fibra. Para que o football brasileiro, portador de tantas glórias, não
brada, fazendo surgir hierarquias, divisões internas e buscando-se os decaia. Para não pararmos. Para darmos mais um passo - um passo
culpados. Como a morte do futebol brasileiro não poderia ser aceita, além da vice-liderança. Para a liderança, afinal. E o football brasileiro
pois isso equivaleria à "morte social" do grupo, as racionalizações da dará esse passo se contar contigo, torcedor! E pode contar, não pode?
derrota espalharam-se por inúmeros artigos e reportagens. Mário Fi- [Jornal dos Sports, 18 jul. 1950, p. 7, grifos meus].
lho viveu emocionalmente aquele evento e após a derrota colocou-se
a serviço de racionalizar a frustração. A idéia de que "não somos desfibrados" pode ser lida como afir-
O Jornal dos Sports, em sua primeira publicação após a derrota, mação de que a derrota não significou falta de coragem, de amor pela
em manchete dizia: "Assim é o esporte - declara Flávio: não há nenhu- causa ou de disposição para a luta. É importante ressaltar que Mário
ma desculpa a formular, os uruguaios jogaram bem e mereceram a Filho, imediatamente após a Copa de 1950, não qualificou como ra-
vitória" (Jornal dos Sports, 18 jul. 1950, p. 1). Apesar da declaração de cismo a suposta acusação ou sentimento que reinava no ar de "falta
bom senso do técnico da equipe brasileira, buscava-se alguma expli- de fibra" ou de "raça". A palavra "raça" no contexto corresponde à idéia
cação ou consolo para a frustração. Buscando apoio para a desgraça, de "fibra", de coragem, de disposição e de amor para a luta, tal como
o jornal de Mário Filho dá destaque para Willy Weisl, descrito como pensava Maquiavel sobre os exércitos patrióticos.
uma reconhecida autoridade européia da crônica esportiva, que teria
dito o seguinte: "Uruguai, campeão mundial, de fato; mas o Brasil, me-
lhor team do mundo" (idem, ibidem). No mesmo dia, outra matéria o IMAGINÁRIO DA DERROTA E ... DA IDENTIDADE
dizia que a crônica italiana considerou a seleção brasileira a mais bri- NACIONAL
lhante do campeonato, e ainda apreciava a conduta esportiva dos bra-
sileiros. A coluna de Mário Filho nessa edição poderia ser considera- o "recrudescimento do racismo", como já argumentei, foi a estraté-
da a síntese de uma reação, do renascimento diante da "morte": gia de Mário Filho para a continuação do livro clássico de sua autoria.
Entretanto, é produtivo que se retome o argumento de que os esportes,
A sorte do nosso football está agora em tuas mãos! em determinadas competições internacionais, transformam ritualistica-
Não, brasileiro! Não nos entreguemos. Vem um golpe, o mais duro que
182 ESPORTE IDENTIDADE NACIONAL E RACISMO NO FUTEBOL BRASILEIRO 183

mente o país numa comunidade imaginada. O conceito de nação traz, porção de vezes e a cada vez mais friamente. A memória guardou os
entre outras características, a representação da etnia e da raça. O que lances. Faço-os desfilar quase em câmara lenta para melhor compreendê-
estava em jogo naquela final, além de futebol, era a afirmação da nacio- los [... ].
nalidade e, conseqüentemente, as imaginadas etnias, raças ou comuni- Só quando domino o match, quer dizer, quando julgo dominá-Ia,
dades. compreendo inteiramente, é que sento a escrever. Sempre procuro afas-
Se as vitórias trouxeram a unidade, o sentimento de superiorida- tar-me de influência. Quem assiste a um match não pode fugir a certas
I
de, de realização da nação, a derrota veio como "morte social" e trou- influências. Por mais que se isole nunca se está só.
xe o sentimento de inferioridade, de frustração, de decepção ou o de [... ] Culpava Bigode, culpava Barbosa, culpava o scratch que não ven-
"falta de fibra" daquele time que representava o povo. As generaliza- cera o match que não podia perder. E o que mais me revoltava era o fato
ções sobre as diferentes nacionalidades indicam a socialização ou o de ter o scratch brasileiro perdido para um adversário que normalmen-
resíduo do conceito de caráter nacional ainda presente em nosso co- te tinha de ser batido.
tidiano. O povo é pensado como um indivíduo, com personalidade Diante da indiscutível superioridade do scratch brasileiro o torcedor
própria ou com um caráter que se sintetiza na imagem da raça ou da não encontrava outra explicação a não ser a falta de fibra. O torcedor
cultura. A raça assim assume uma polissemia e uma polifonia nas nar- brasileiro não podia acusar os jogadores do scratch brasileiro de
rativas indicando várias coisas, além do frouxo e caro conceito de raça desinteresse.
no sentido biológico. Contudo, no campo das narrativas sobre o fu- Eu também participei dessa opinião quando enfrentei a derrota. Foi
tebol, esse conceito, ainda presente no cotidiano, é traduzido como preciso que deixasse passar horas, revendo o match, e o match todo come-
falta de disposição e de amor na luta pela vitória da "comunidade çou na manhã seguinte à grande vitória contra a Espanha [... ].
imaginada"; tal comunidade pode ser um clube esportivo ou o pró- Para vencer o Uruguai, foi isto que o match da decisão mostrou,
prio país. Nas crônicas que se seguiram ao 16 de julho de 1950 (ines- bastaria que Bigode não falhasse duas vezes. Bastaria, inclusive, que Bi-
quecível dia da derrota no Brasil), as idéias de raça e de fibra apare- gode só falhasse num dos goals ou que Barbosa, mesmo Bigode falhan-
cem associadas à de "morte social" da comunidade. do, não falhasse num dos goals.
Mário Filho escreve em sua coluna: "A lição da derrota no melhor Bigode e Barbosa não falharam por falta de fibra. Falharam porque
II momento do football brasileiro", analisando os motivos de elegerem sentiram demasiadamente a carga da responsabilidade de dar ao Brasil o
os culpados: título de campeão do mundo [Jornal dos Sports, 22 jul. 1950, p. 5, grifos
meus].
Eu também senti a derrota como torcedor. Fui, durante os noventa
minutos de jogo, um torcedor. Igual a cada um dos duzentos mil que Observe que a humildade e a prepotência são imagens presentes
encheram o Estádio. Quando jogam dois clubes, quaisquer que sejam, nas narrativas no campo dos esportes e que são apresentadas como
vejo o match friamente! Como um estranho! causadoras dos sucessos ou dos insucessos. Carecemos, contudo, de
Não entro na partida, não participo dela. Apesar disso só gosto de estudos que analisem essas narrativas nos esportes como uma dimen-
escrever passadas vinte e quatro horas. Depois de rever o match uma são da religiosidade que circula nesse campo. Mas, do ponto de vista
184 ESPORTE lDENTlDADE
NACIONAL
ERACISMO BRASll.lllRtJ 85
NOFUTEBOL

da mitologia esportiva - principalmente aquela relacionada ao herói Em outras crônicas, Mário insiste que o Brasil teria apenas per-
esportivo -, abundam as constatações. Esse é o caso do jogador uru- dido uma partida, mas não o conceito. "O Brasil ganhou mais do que
guaio Obdúlio Varela, aqui antes cogitado. Uma das narrativas da Copa perdeu com a derrota"; mostrou ao mundo que somos um país es-
de 1950 refere-se a uma bofetada que Obdúlio teria dado no jogador portivamente adulto como "uma Inglaterra" (Jornal dos Sports, 20
brasileiro Bigode para intimidá-lo. Guedes afirma que essa história se jul. 1950, p. 5). Noutro trecho dessa mesma crônica diz que o fute-
tornou um mito, pois nada se acha nos jornais da época sobre o fato bol brasileiro se consagrou definitivamente e que se tornou interna-
(GUEDES,1977, p. 64). Essa seria mais uma dimensão das quase-histó- cionalmente respeitado. Outra crônica tinha como título: "Vamos de-
rias que se construíram em torno da Copa de 1950. Os jogadores par- fender o melhor football do mundo que é nosso" (Jornal dos Sports,
ticipantes da seleção de 1950 também afirmam em seus relatos- 27 jul. 1950, p. 5). Observe-se a necessidade constante de buscar re-
memória que a bofetada faz parte das invenções criadas em torno do ferência nos países desenvolvidos para afirmar a nacionalidade.
jogo final da Copa (MORAESNETO,2000). Mário Filho continuou durante algum tempo militando para ex-
Mário Filho racionalizou também a comparação internacional em plicar a fatídica derrota e em defesa do Maracanã. Em 1951, escreveu
prol de seu país. Na crônica chamada "O segredo da vitória dos uru- artigos que se referiam à fatídica derrota: "O adeus do football brasi-
guaios", diz: "Os brasileiros foram traídos pelo coração. Os uruguai- leiro ao 16 de julho" (Jornal dos Sports, 24 jul. 1951, p. 5); "Uma nova
os foram salvos pelo coração" (Jornal dos Sports, 19 jul. 1950, p. 8). O visão da grande derrota" (Jornal dos Sports, 29 abro 1951, p. 5); "Fato in-
excesso de confiança traiu o coração brasileiro, mas isso não signifi- discutível: a superioridade do football brasileiro" (Jornal dos Sports, 25
cava que o brasileiro fosse "menos que o uruguaio". "Isso porque o que abr. 1951, pp. 5 e 8); "Vamos esquecer o dia 8 de abril para lembrar ape-
os uruguaios fizeram aqui os brasileiros fizeram em Montevidéu, refe- nas aquele 16 de julho" (Jornal dos Sports, 15 abr. 1951, pp. 5 e 8); "A
rindo-se à vitória brasileira na Copa Roca de 1932" (idem, ibidem, vitória que o Vasco precisava e o Brasil também" - o artigo referia-se à
grifos meus). O Brasil também teria vencido o Uruguai, quando este vitória do Vasco sobre o Nacional do Uruguai, em Montevidéu, quase
estava em pleno apogeu para a vitória olímpica. Mário consola a si e um ano depois (Jornal dos Sports, 10 abro 1951, pp. 5 e 8). Em 1954, foi
aos seus leitores concluindo a crônica: possível encontrar artigos sobre a mesma temática: "A culpa da vitó-
ria" - referindo-se à influência da vitória sobre a Espanha na final con-
Embora perdêssemos o campeonato do mundo ganhamos o Está- tra o Uruguai (Jornal dos Sports, 11 maio 1951, p. 5); "Antes e depois de
dio que é uma prova da capacidade de realização do brasileiro, ganhamos 16 de Julho" (Jornal dos Spotts, 25 maio 1954, p. 5); "A justiça que se
a admiração do mundo por termos realizado o mais brilhante campeo- deve fazer aos brasileiros" (Jornal dos Sports, 29 jun. 1954, p. 6). Além
nato do mundo de todos realizados,por termos oferecidoaosdisputantes desses artigos, outros foram publicados sempre resgatando a auto-es-
do campeonato do mundo um ambiente de segurançaainda não ofere- tima do futebol brasileiro e também expressando o sentimento de la-
cido em nenhum outro campeonato do mundo e por termos exibido o mento ou "morte coletiva", mas em nenhum consultado (até 1954) achei
melhor football do mundo. Temos também muitos motivos de orgu- a denúncia de "recrudescimento do racismo".
lho. Orgulhemo-nos do que orgulharia a qualquer povo do mundo Como já comentado, o que se encontra nos jornais consultados é
[idem, ibidem, grifos meus]. que ao brasileiro faltou raça, faltou fibra em 1950. No futebol brasi-
186 ESPORTE IDENTIDADE NACIONAL E RACISMO NO FUTEBOL BRASILEIRO 187

leiro e sul-americano a palavra "raça" é corrente com o significado de A MODO DE CONCLUSÃO


fibra. Se se perde o jogo, a unidade é quebrada, buscam-se os culpa-
dos e as justificativas: faltou fibra, raça, coração, sorte ou empenho. As duas questões socioculturais que escolhemos para examinar-
Isso sugere que as categorias "raça" e "fibra" no futebol ainda deman- a reelaboração do racismo e a construção da identidade nacional no
dem mais estudos empíricos para que afinemos o conceito em termos universo futebolístico - mostram como o estudo do esporte precisa
históricos e sociológicos e para que não incorramos em generaliza- se fundamentar, cada vez mais, nos grandes intérpretes ou expoentes
ções espúrias", das ciências sociais e, também, em pesquisas historiográficas bem con-
A ambivalência da expressão "raça" no Brasil confirma-se nas re- duzidas. Indicamos, ainda, a necessidade de investigações que desmis-
lações sociais. Por exemplo, aqueles identificados como negros (digo tifiquem o modo como opera a invenção de tradições esportivas no
identificados porque a identificação racial em nosso país é proble- país.
mática, como demonstram os censos demográficos), quando bem- O futebol foi enfocado, aqui, como meio de construção da identi-
sucedidos, apesar de todo handicap negativo que a estrutura social dade nacional numa sociedade marcada pelo passado escravocrata e
lhes impõe, são admirados e "embranquecidos", isto é, a "raça" (vis- que, em meados do século XX, procurava valorizar as qualidades her-
ta negativamente) pode ser esquecida em função das qualidades. As dadas de etnias afro-brasileiras. Mostramos também como o sentimento
narrativas sobre os bem-sucedidos talvez digam: "este resistiu à se- de comunidade esportiva se transforma, no plano do discurso, numa
leção social apesar de sua origem étnica". Entretanto, quando "mal- idealização do jogador, do torcedor e do próprio povo brasileiro. E
sucedidos", a raça pode ser utilizada como critério de explicação ou sugerimos que a ambigüidade do termo "raça", no futebol, reflete uma
desqualificação. No Brasil, os afro-brasileiros são ao mesmo tempo antinomia entre um complexo de inferioridade e um complexo de su-
admirados por sua condição étnica e rejeitados pelo mesmo crité- perioridade. A título de corolário, propomos que o livro de Mário Fi-
rio. É bom que isso se relativize no sentido de dizer que todas as nar- lho e outros discursos intelectuais sobre o racismo deveriam ser anali-
rativas sobre o tema são construí das em contextos particulares e po- sados como parte do imaginário dos mediadores culturais que atuaram
dem variar de acordo com a natureza pública ou privada de onde são naquele Brasil que pretendia afirmar-se como uma nação civilizada.
emitidas. Se existiram injúrias racistas apenas contra Barbosa e Bi- É oportuno esclarecer um ponto: não se está dizendo em momento
gode, ocorreram a partir dessa perspectiva. Porque falharam no jogo, algum que deixou de existir racismo no Brasil. É evidente que o ra-
a raça pode ter se tornado um desqualificativo; se tivessem ganhado, cismo ou o preconceito racial não desaparecem num país que até o
a raça seria também enaltecida. O racismo brasileiro deve ser estu- final do século XIX era escravocrata. A questão do racismo deve ser
dado com mais fineza analítica do que se tem feito em nome do encarada com mais sutileza analítica, como fez Gilberto Freyre no li-
politicamente correto. vro Ordem e progresso (1959) ao apresentar uma série de depoimen-
tos que revelam uma espécie de vergonha e ambivalência em relação
ao racismo em nossa sociedade.
Por fim, resta salientar que essa postura crítica e ao mesmo tem-
3 Um exemplo desse tipo de generalizações espúrias pode ser visto no artigo de Carlos Alberto
Figueiredo da Silva (1998) "A linguagem racista no futebol brasileiro". po construtiva indica um caminho metodológico para melhor pen-
188 ESPORTE IDENTIDADENACIONALE RACISMONO FUTEBOLBRASILEIR 189

sarmos a singularidade do racismo brasileiro, do futebol e do esporte MURAD,M. (1994). "Corpo, magia e alienação - o negro no futebol brasileiro:
em geral. Essa nova perspectiva é recomendada, mutatis mutandis, por uma interpretação sociológica do corpo como representação social' .
Pesquisa de Campo, Uexr/Departamento Cultural! SR-3, pp. 71-78.
para o restante dos países sul-americanos, nos quais o futebol tam-
NEGREIROS,P. L. C. (1998). "Construindo a nação: futebol nos anos trinta e qua-
bém aparece como um dos elementos-chave para se observar a con- renta". Motus Corporis, vol. 5, pp. 76-107.
formação das identidades nacionais (e os mediadores culturais pa-
PROPP,V. L (1984). Morfologia do conto maravilhoso. Rio de Janeiro, Forense
recem se comportar de modo similar). Caso isso não ocorra, os ci- Universitária.
entistas sociais deste continente continuarão operando com uma pe- RIGO, L. C. & SILVA,R. S. (1998). "Cicatrizes do futebol", Rio de Janeiro, Motus
II dagogia social não legitimada diante dos fenômenos esportivos po- Corporis, vol, 5, n. 2, pp. 128-140, novo
pulares. RODRIGUESFILHO,Mário. (1947). O negro no foot-ball brasileiro (Prefácio de Gil-
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8
ESPORTE, HISTÓRIA E CULTURA

Valter Bracht

A título de introdução, para uma problematização


jo fazer breves comentários sobre a gênese/história do esporte'.
do tema, dese-

Já em outra ocasião (BRACHT, 1997) me referi à possibilidade de iden-


tificar duas grandes vertentes na história social do esporte quando está
em questão a gênese deste fenômeno. Refiro-me às teses que chamei
de continuidade e descontinuidade, que por sua vez estão ligadas a
duas visões do caráter do esporte: a) como natureza essencial, ou b)
como natureza histórico-social, respectivamente. Numa visão o espor-
te, na sua essência, já sempre existiu, em todas as culturas, ele apenas
se atualiza em diferentes contextos e momentos históricos, e em ou-
tra, o esporte é um fenômeno datado.

Este texto serviu de base para palestra proferida no I Congresso Científico Latino-Americano
da FIEP/UNIMEP, Piracicaba (SP), em junho de 2000.
192 ESPORTE ESPORTE, HISTÓRIA E CULTURA 193

Essas teses levam a - e são fruto de - visões distintas das determi- desenvolvimento do esporte, e como esse esporte absorve e
nações das manifestações culturais. São, de um lado, as visões que repete os valores, os princípios estruturantes da sociedade
conferem um alto grau de autonomia a essas manifestações, vinculan- moderna (capitalista e socialista), e por outro, contrapondo-
do-as a características especificamente humanas e aistóricas, e, por se a essas análises, estudos mostrando ritmos culturais pró-
outro, as visões que condicionam a cultura em maior ou menor grau prios, significações, ressignificações divergentes presentes no
(existem diferenças que fazem a diferença) às formas como o homem fenômeno esportivo. Às tentativas de homogeneização do con-
produz e reproduz a vida, especialmente como este vem organizan- ceito de esporte, contrapõem-se os exemplos da sua diversida-
do-se para produzir e distribuir bens (numa linguagem mais ortodo- de e polissemia.
xa: condicionada pelo modo de produção e seus desenvolvimentos).
Embora não vá fazer aqui uma discussão teórica que fundamente Inclino-me a ver essas análises mais como complementares que
minha opção", acho que todos que conhecem meus escritos têm clara como antagônicas'. Parece-me problemática a tendência de absoluti-
minha maior aproximação com a posição da descontinuidade. zar uma das análises ou, então, permanecer na perspectiva da natu-
Não posso me furtar, no entanto, a fazer alguns comentários gerais. ralização do esporte (o que tem um significado ideológico devasta-
É possível identificar na história e na sociologia do esporte duas dor). Esta última é, aliás, uma estratégia muito a gosto dos ideólogos
posturas antagônicas: do esporte, dos intelectuais do sistema esportivo que tendem a apre-
sentá-lo como elemento universal. Como lembra Barthes: "Quando
a) a perspectiva de que o esporte moderno é um mero reflexo das o mito fala sobre um objeto, despoja-o de toda a História" (1987,
estruturas mais amplas que caracterizam a sociedade moder- p. 171). Assim, o mito esportivo, construído pelos ideólogos do espor-
na, ou, no viés marxista, como reflexo da sociedade industrial te, retira dele sua marca histórica, o que permite legitimá-Ia mais fa-
capitalista; cilmente e camuflar seu caráter eurocêntrico, com todas as conseqü-
b) como mundo próprio, como que transcendendo todas as for- ências socioeconômicas e políticas inerentes a esta visão.
mas de organização social, como constante antropológica. Es- Portanto, entendo que, embora se deva estar atento para as pecu-
tas duas perspectivas também são perpassadas por uma discus- liaridades deste fenômeno, é forçoso reconhecer que é necessário
são teórica que diz respeito à relação entre o particular e o ge- identificar no processo de constituição e mudança da sociedade mo-
ral, diz respeito à autonomia de fenômenos sociais particula- derna (industrial capitalista, depois socialista, agora pós-industrial
res ante o poder determinante das estruturas sociais mais am- capitalista e... quem sabe o que mais?) um elemento fortemente de-
plas. Tende-se a oscilar entre as visões simplistas do reflexo e
da autonomia absoluta. É uma disputa sem fim. Por um lado
as análises estruturais identificando características comuns no 3 Na verdade as teorias sociológicas sempre buscaram equacionar a relação entre sociedade e
indivíduo, entre estrutura e ação, particular e geral. Vivemos hoje, de certa forma, uma
revalorização do particular, do cotidiano, do descontínuo, do não-determinado no âmbito das
2 Ver a respeito os trabalhos de Proni (2000) e Pilatti (2000), que discutem, trabalhando com ciências sociais, talvez até em função da propalada crise dos paradigmas. Observo, então, que
teóricos que abordam o esporte, a questão da relação deste fenômeno com o seu entorno na a não-polarização não significa escolher o cômodo caminho do meio, muito ao contrário
significa enfrentar as dificuldades relacionadas com a não-polarização da monocausalidade.
perspectiva da sua relativa autonomia.
194 ESPORTE ESPORTE, HISTÓRIA E CULTURA 195

terminante e/ou condicionante da gênese e do des~nvolvimento do O importante aqui, de qualquer forma, é que parte da legitimida-
esporte. Entre estes elementos estruturais, destacamos a forma de or- de social do esporte se deve ao fato de ele atualizar valores/normas de
ganização do trabalho, da produção e suas conseqüências no plano comportamento e princípios importantes para a nova ordem social.
da cultura. Lembre-se de que toda instituição social precisa, para perdurar no
Posto isso, gostaria de destacar algumas características que o fe- tempo, convencer "a sociedade" da importância da sua função. Para
nômeno esportivo vai assumir enquanto fenômeno típico da mo der- isso o esporte fez seu o discurso médico e pedagógico (pedagógico
nidade e como essas características se alteram em conformidade com também num sentido moralista). A atenção (legitimada) do Estado
os desenvolvimentos ou movimentos societários mais amplos. foi obtida, num primeiro momento, através desse discurso.
O es60;te, como ele é "destilado" das práticas corporais da aristo- A ética esportiva, até bem pouco tempo, envolvia valores relati-
cracia/burguesia inglesa e das classes populares, é prototípico da mo- vos ay trabalho: submissão às regras, auto disciplina, autoconfiança,
q,€rn~dade. Uma comparação de performances físicas e/ou atléticas que b~sca do rendimento, espírito de competição ete. Dizia-se: o esporte
se dá sob os códigos de regras fixas e válidas igualmente para os com- desenvolve o gosto pela luta, o sentido do esforço, a solidariedade, a
petidores. Não vou discutir aqui aquelas características comuns à so- abnegação, a coragem, a lealdade, a suplantação de si próprio, carac-
ciedade moderna e ao esporte moderno, e sim apenas relembrá-Ias: terísticas (valores) que auxiliaram na sua legitimação social. Mas, se
secularização, igualdade de oportunidades (meritocracia), especialização o esporte afirmava, no plano da prática cultural, valores burgueses, e,
de papéis, organização burocrática, quantificação (e busca do recorde). com isso, a forma de organização social sob a hegemonia da burgue-
Talvez o trabalho dos historiadores possa esclarecer melhor se, ou sia, deveríamos perguntar se houve algum tipo de resistência cultural
em que casos, o esporte antecipa princípios/valores como, por exem- e/ou política ao seu desenvolvimento ou à sua afirmação como for-
plo, o rendimento, ou se o absorve e o elege como central a partir da ma legítima da prática corporal. O antagonismo de classe não se ex-
influência deste princípio que se afirma com a idéia da meritrocracia pressou no plano cultural, especificamente, do esporte? Sim, num
burguesa. Às vezes, o esporte parece antecipar alguns elementos (prin- movimento cultural da classe trabalhadora do início do século, que
cípios/normas de conduta/valores) que só posteriormente se afirmam no caso específico da cultura corporal criou e desenvolveu uma or-
na sua plenitude no conjunto das práticas sociais. Como mostrou ganização para a prática e o desenvolvimento da ginástica e do esporte
Eichberg (1979), no caso do princípio do rendimento o esporte pare- próprios da classe trabalhadora",
ceu antecipar-se à própria centralidade desse princípio na sociedade Uma questão que mereceria ser mais bem investigada é por que
burguesa emergente. Gebara (2000, p. 122), mais recentemente, levan- esse movimento, que teve seu auge nas três primeiras décadas do sé-
ta a possibilidade de o esporte estar antecipando, enquanto compo- culo XX, tanto no sentido mais geral da cultura quanto no sentido
nentes do sistema produtivo moderno, processos de disciplina, eficiên-
cia e controle de produtividade.
4
Fato é que esta prática corporal (a esportiva) está fortemente Apresento este movimento de forma mais detalhada em Bracht (1997, pp. 17-23). Citei aqui
este exemplo de ordem mais geral e de grande magnitude envolvendo vários países. Mas exis-
orientada pelos princípios do rendimento e da competição, assim tem registros de movimentos de resistência específicos - ver a respeito Gruneau (I 983) e
como estes são elementos importantes da ordem social capitalista. Donnely (1983).
196 ESPORTE ESPORTE, I-IIST6RIA B CULTURA 197

mais específico da cultura corporal, não foi retomado após a Segun- Antes, porém, gostaria de levantar aqui a (hipó )tese de que o pro-
da Guerra Mundial? cesso de mercadorização das práticas corporais, especialmente no caso
Destaque-se ainda que o esporte europeu se espalhou pelo mun- do esporte, foi "retardado", ou houve uma espécie de descompasso
do, subordinando as práticas corporais presentes em outras culturas entre as possibilidades colocadas pelas novas tecnologias de comuni-
(globalização); esportivizou-se a cultura corporal- folclorizou-se a cação e o potencial de mercado e o aprofundamento da mercadoriza-
cultura corporal não-européia. ção (produção de mercadorias com base em seu valor de troca, regu-
lada pelas leis de mercado com produtor e consumidor definidos).
, .
, Apesar da tese do "descompasso" é preciso reconhecer que mudanças
A MERCADORIZAÇÃO DO ESPORTE culturais foram precondição para essa mercadorização, entre elas a
/ mudança da visão de corpo, que caminha da repressão à exaltação, e
P1'ra prosseguir na busca da compreensão da trajetória histórico- a criação do valor da esportividade, com sua exaltação do corpo jo-
social
/
do esporte, gostaria de dar destaque a uma das marcas mais vem, saudável e, principalmente, produtivo.
importantes do esporte moderno, qual seja a sua mercadorização. Voltando à (hipó)tese do "descornpasso" no aprofundamento da
Parece relevante perguntar em que medida ele, enquanto elemento da mercadorização do esporte, levanto como possibilidade de explicação
cultura, vai assumir o caráter de mercadoria e assim ter a sua história os seguintes fatores:
determinada por esse processo?
- A mercadorização' do esporte significa a extensão da lógica da mer- a) O movimento olímpico agiu como elemento frenador na me-
cadoria para o âmbito das práticas corporais (de lazer), tanto no sentido dida em que estava aferrado a um conceito de amador que lhe
o consumo de prestação de serviços (serviços e equipamentos) quanto fornecia suporte ideológico e legitimidade social, além do dis-
na produção e no consumo do espetáculo esportivo e de seus subprodu- curso da educação e da saúde. Isso, numa fase "pós-moralista"
tos. Normalmente se discute ou se entende que a mercadorização do es- (LIPOVETSKY, 1994), vai ser substituído pela importância econô-
porte acontece apenas no plano do esporte-espetáculo, como aprofun- mica, que lhe vai fornecer a nova legitimidade social. O movi-
damento do esporte profissional com o seu acoplamento ao sistema dos mento olímpico foi o principal responsável pela aderência da
meios de comunicação de massa. É claro que esse esporte é hoje um,seg- categoria da nação ao esporte, o que permitiu, com sua vincu-
. mento, dos mais significativos, da economia mundial (as cifras que o lação com a Guerra Fria, que o amadorismo tivesse uma
negócio do esporte movimenta são realmente significativas). Mas esse é sobrevida no esporte de alto rendimento ou espetáculo.
apenas o lado mais evidente do processo; gostaria de chamar a atenção b) A prática do associacionismo foi outro elemento cultural de re-
para a mercadorização no âmbito da prática do esporte enquanto ativi- sistência à mercadorização. O esporte como assunto privado,
dade de lazer, tomado este termo aqui no seu sentido sociológico. mas de associações civis livres, sem fins lucrativos, baseadas no
trabalho voluntário, que supriam interesses específicos (espor-
tivos) de grupos, que cultivavam valores como o arnador ismo,
5 Na teoria social de orientação marxista sempre se prognosticou a extensão da lógica da merca-
doria para todos os espaços e as relações sociais. o Jair piar e também permitiam a atualização e a prática de va-
198 ESPORTE ESPORTE, HISTÓRIA E CULTURA 199

lores masculinos ou o exercício simbólico da virilidade, colo- educação física enquanto matéria curricular e, portanto, como direi-
cava essa atividade como algo do plano do trabalho voluntá- to do cidadão (nas escolas públicas), mas como atividade, como ser-
rio, sem fins lucrativos, próximos da filantropia. viço que o consumidor pode acessar, tornando-se aí virulenta a ques-
tão da inclusão/exclusão do mercado. Uma vez completada a transi-
A superação destes dois obstáculos,que não eram impeditivos,mas ção do esporte-cidadão para o esporte-consumidor, está legitimada
dificultadores, vai se dar com a superação da própria Guerra Fria e também a venda de serviços esportivos na escola (como direito ao
com a crise do welfare state e a conseqüente onda neoliberal que per- consumo). Em casos extremos vemos (a exemplo do que começa a
mite e fomenta um aprofundamento da mercadorização (privatiza- ocorrer na universidade brasileira) a escolinha sustentando a escola.
ção ) dos espaços tradicionalmente públicos. Esse processo vai redun- Se, como vimos, algumas das características do esporte lhe são
dar na passagem de um modelo, de uma visão do esporte, que havia fornecidas pelo seu caráter de mercadoria e pelas características que
se instalado sob os auspícios do welfare state (entendido mais como estruturam a sociedade moderna ou a sociedade industrial, é preciso
programa de saúde), que é o esporte como direito do cidadão, para a analisar como as mudanças recentes na forma de organização da pro-
idéia do esporte como direito do consumidor", dução e comercialização de bens e serviços estão influenciando o es-
Esse processo vai se dar a partir de um aprofundamento do cará- porte na chamada sociedade pós-industrial, pós-fordista, pós-moder-
ter de mercadoria da prática esportiva (no duplo sentido menciona- na, pós-tudo ... mas ainda e mais do que nunca ... capitalista.
do), coincidindo com a crise do welfare state (que como sabemos tem Muitas mudanças que ocorrem no mundo do trabalho têm con-
suas repercussões nos países periféricos) e a solução neoliberal, com seqüências mediatas e imediatas no esporte. De cunho mais geral
sua tese do Estado mínimo. podemos citar, com o recrudescimento do já citado welfare state, com
Oferecer equipamentos, programas de esporte deixa de ser tarefa o desemprego crônico e com a passagem do esporte-cidadão para o
do Estado para ser oportunidade de negócios para a iniciativa priva- esporte-consumidor, o agravamento da sociedade dual: num lado os
da. É claro que esse processo não é linear, muito menos homogêneo. incluídos e no outro os excluídos, estes últimos relegados a uma massa
Existem exceções, resistências localizadas etc. Estou me referindo, de consumidores do espetáculo esportivo.
obviamente, à tendência mais geral. Neste quadro em que há uma pulverização da classe trabalhadora
As escolinhas de esportes (privadas, na escola e fora da escola), e de suas organizações, em que a construção da identidade de classe é
podem ser tomadas como paradigmáticas da passagem do princípio cada vez mais difícil', em que medida é possível pensar numa resis-
de direito do cidadão (e dever do Estado) para o direito do consumi- tência cultural, a partir da idéia de uma cultura da classe trabalhado-
dor, seguindo a lógica da introdução de elementos de mercado no
sistema educacional. A escola não oferece a iniciação esportiva como 7 "Outras formas de socialização alternativas àquela criada pelo trabalho, como o engajamento
associativo, as solidariedades familiares, religiosas e de vizinhança e, principalmente, os gru-
pos de interesse, as 'tribos urbanas'vêm sendo encontradas. Na verdade, a solidariedade social
6 Esse processo foi catalisado pelo boom das práticas corporais a partir da década de 1960, o em condições difusas, descentradas e sem unidade termina por se constituir numa ampla nova
qual, para ser entendido, precisa ser relacionado com as mudanças socioculturais que promo- pro blemática, pois foram quebrados os laços sociais antes assegurados pelo status ocupacional
vem uma nova visão do corpo, passando-se paulatinamente de sua repressão para sua exaltação. sem que algo claro e definido tenha sido colocado em seu lugar" (CASEY apud POTENGY et a1.,
Ver a respeito: Le Breton (1995) e Sant'Anna (1995). 1999, p. 74).
200 ESPORTE ESPORTE, HISTÓRIA E CULTURA 201

ra, de uma contracultura? Em que medida seria possível, não retomar mar posição a respeito neste momento. Dessa maneira, o que segu tem
o movimento cultural da classe trabalhadora do início do século, mas mais o objetivo de configurar um quadro, buscando, embora nos pos-
pensar, em novas bases, para esta nova realidade um movimento de samos, vez ou outra, trair, mais do que julgar os desenvolvimentos re-
resistência cultural? Mas seria isso desejável ou necessário, em tem- centes do esporte, num primeiro momento descrevê-Ios.
pos que valorizam o pluralismo que rejeita as tentativas de constru- Um autor que sevale da idéia de pós-modernidade e que é inte-
I ção de hegemonia porque baseada em uma pretensão universal, em ressante para pensarmos o esporte nesse contexto é Giles Lipovetsky
tempos em que a diferença (organizada pelo mercado?) é que conta? (1989; 1994). É fundamentalmente dele (sem concordar plenamente
I ~
com ele) que extraí algumas características da cultura na sociedade
pós para discutir o esporte.
o ESPORTE NA SOCIEDADE PÓS ... Se tomarmos a diferenciação do projeto da modernidade esboçada
(DO PÓS-DEVER, SEGUNDO LIPOVETSKY) ~ por Rouanet (1987) com base em Max Weber, entre modernidade
cultural (racionalização das visões de mundo e especialmente da re-
Como dissemos anteriormente, as mudanças ou transformações ligião) e social (economia e política), entendemos que Lipovetsky se
que estão em curso estão sendo teorizadas e, para tanto, conceitos como concentra fundamentalmente no plano da (pós)modernidade cultu-
os de sociedade pós-industrial e condição pós-moderna têm sido de- ral. Como observa Rouanet, é característica das formulações pós-
senvolvidos, sem falar no próprio termo "globalização" Existe um de- modernas uma certa omissão em relação ao tema do Estado.
bate também em torno da propriedade de se interpretar essas mudan- Mas, para uma caracterização da sociedade pós-moderna, dare-
ças como uma ruptura com o projeto da modernidade. Alguns auto- mos a voz ao próprio Lipovetsky (I989, pp. 10-11):
res, entre eles o próprio Habermas, mas também Giddens e Rouanet,
o processo de personalização emergiu no interior do universo dis-
entendem essas mudanças como ainda desdobramentos da moderni-
ciplinar, de modo que o fim da época moderna se caracterizou pelo
dade. Importa ainda ressaltar que existem, por um lado, avaliações/in-
casamento de duas lógicas antinómicas. Foi a anexação cada vez mais
terpretações dessas mudanças, identificando nelas possibilidades de li-
patente das esferas da vida social pelo processo de personalização e o
bertação dos princípios totalitários que estruturaram a modernidade,
recuo concomitante do processo disciplinar que nos levou a falar da
e, por outro, interpretações que vêem como perigosa esta negação dos
sociedade pós-moderna, ou seja,de urna sociedade que generalizaurna
princípios da modernidade colocando em seu lugar um pluralismo
das tendências, inicialmente minoritária, da modernidade. Sociedade
radical, ou seja, a negação de toda e qualquer referência universal, por-
pós-moderna, maneira de dizer a inflexãohistórica dos objetivose mo-
que abre as portas para os irracionalismos", Não é nossa pretensão fir-
dalidades da socialização,colocados hoje sob a égide de dispositivos
abertos e plurais; maneira de dizer que o individualismo hedonista e
8 Como observa Rouanet (1987, p. 234), uma das características comuns de todas as descrições personalizado se tornou legítimo e já não depara com oposição; ma-
da sociedade pós-moderna é a do "social como um fervilhar incontrolável de multiplicidades
e particularismos, pouco importando se alguns vêem nisso um fenômeno negativo, produto neira de dizer que a era da revolução,do escândalo, da esperança futu-
de uma tecnociência que programa os homens para serem átomos, ou outros um fenômeno rista, inseparável do modernismo, terminou.
positivo, sintoma de uma sociedade rebelde a todas as totalizações - ou o terrorismo do con-
ceito, ou o da política".
l'
202 ESPORTE ESPORTE, HISTÓRIA E CULTURA 203

A sociedade pós-moderna é a sociedade em que reina a indiferença de conquista da subjetividade do corpo através de todas as técnicas con-
de massa, em que domina o sentimento de saciedade e estagnação, em temporâneas de expressão, concentração e relaxação [idem, p. 59).
que a autonomia privada é óbvia, em que o novo é acolhido do mesmo
modo que o antigo, em que a inovação se banalizou, em que o futuro Nesse contexto, um dos aspectos mais interessantes ressaltados
deixou de ser assimilado a um progresso inelutável [...). A sociedade por Lipovetsky é aquele que denomina crepúsculo do dever. Segun-
pós-moderna já não possui qualquer imagem gloriosa de si própria ou do o autor, estamos nos despedindo da sociedade que idealizou, um
projeto histórico mobilizador; doravante é o vazio que nos governa, pouco por toda parte, "a obrigação moral, que celebra com excep-
um vazio sem trágico nem apocalipse. cional gravidade os deveres do homem e do cidadão, e que impõe
normas austeras, repressivas, disciplinares, no que toca à vida pri-
Mas Lipovetsky não entende que nos encontremos numa época em vada" (1994, p. 16). Estamos entrando na sociedade do pós-dever.
que estejamos entregues à falta de sentidos. Segundo ele, perdura um
valor principal, intangível: o indivíduo e seu direito cada vez mais É nisto que reside a excepcional novidade da nossa cultura ética: pela
proclamado de se realizar à parte, de ser livre. primeira vez, eis uma sociedade que, longe de exaltar os mandamentos
Sendo o individualismo o valor central, dele derivam (e o com- superiores, os eufemiza e os desacredita, desvaloriza o ideal da abnega-
plementam) o presentismo, o psicologismo ou a cultura psy e o neo- ção estimulando sistematicamente os desejos imediatos, a paixão do ego,
narcisismo, a flexibilização dos vínculos, a cultura do efêmero,o au- a felicidade intimista e materialista [...). Deixamos de reconhecer a obri-
mento da velocidade, o crepúsculo do dever (Lipovetsky), a incerte- gação de nos ligarmos a qualquer coisa para além de nós próprios.
za ou o risco (U. Beck), o consumo como formador de identidade,
rivalizando com a profissão ou o trabalho. Cada um destes aspectos Como isso se reflete no esporte? Para o autor, até meados do sé-
pode ser percebido no esporte e nas práticas corporais em geral. culo a referência às virtudes será central nas representações do des-
Para Lipovetsky (1989, p. 53), "o adestramento social já não se porto; se deve ser louvado e encorajado é porque desenvolve as mais
efetua através da coerção disciplinar nem mesmo da sublimação; elevadas qualidades morais. O próprio espetáculo esportivo está ligado
efetua-se por meio da auto-sedução". Para o autor, a representação ao princípio moral, deve sugerir uma dimensão ideal, não deve redu-
social do corpo sofreu uma alteração que levou o corpo a perder seu zir-se ao mero divertimento, deve servir para a "musculação moral do
estatuto de alteridade, de "res extensa", de materialidade muda, em Homem", segundo a eloqüente fórmula de Coubertin. Na era moder-
proveito da sua identificação como o ser-sujeito, com a pessoa. na heróica, o desporto apresenta-se como uma pedagogia moral, uma
prendizagem das virtudes. Em apenas algumas décadas, este univer-
Se o corpo e a consciência se trocam um pelo outro, se o corpo, na idealista se desmoronou. O desporto libertou-se do lirismo das
esteira do inconsciente, fala, é preciso amá-Io e escutá-Io, é preciso que virtudes, acertou o passo com a lógica pós-moralista, narcísica e es-
ele se expresse, que comunique, e daí emana a vontade de redescobrir o p tacular. Não é a virtude que legitima, mas sim a emoção corporal,
corpo de dentro, a busca forçada da idiossincrasia, ou seja, o próprio () prazer, a forma física e psicológica, o desporto tornou-se um dos
narcisismo, esse agente de psicologização do corpo, esse instrumento '111 blemas mais significativos da cultura individualista narcísica cen-
204 ESPORTE ESPORTE, HISTÓRIA E CULTURA 205

trada no êxtase do corpo (LIPOVETSKY, 1994). Para a sua legitimação tura na condição pós-moderna (Lipovetsky) ou da alta modernidade
social, o esporte não apela mais para categorias como saúde e educa- (Giddens) ou neomodernidade (Rouanet).
ção, a não ser em casos extremos.
No esforço esportivo, o indivíduo se autoconstrói "à Ia carte", sem
outro fim senão ser "mais" ele próprio e valorizar o seu corpo: o REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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sempre novas e diferentes formas de práticas esportivas, como os cha- CONGRESSOBRASILEIRODEHrSTORIADAEDUCAÇÃOFISICA,ESPORTE,LAZEREDAN-
mados esportes radicais. Embora concordemos com esta leitura ÇA, 7. Anais ... Gramado (RS),pp. 119-126.
diagnóstica, parece-nos importante destacar, como foi nossa preten- GRUNEAU, R. (1983). Class, sports and social development. The University of
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produção e do consumo do esporte, aspecto específico do fenômeno
Lrrovsrsrv, G. (1989). A era do vazio: ensaio sobre o individualismo contemporâ-
mais amplo do envolvimento da produção e do consumo da cultura neo. Lisboa, Antropos.
pela lógica do mercado. ____ . (1994). O crepúsculo do dever: a ética indolor dos novos tempos de-
Entendemos que, para a avaliação destes processos em andamen- mocráticos. Lisboa, Dom Quixote.
to, permanece como pano de fundo, dividindo as posições, a tensão PILATTI,L. A. (2000). "História e esporte moderno: possibilidades metodológicas
entre a homogeneização dos comportamentos e heteronomia versus contidas nos escritos de Pierre Bourdieu" In: CONGRESSOBRASILEIRODE HIS-
TORIADAEDUCAÇÃOFíSICA,ESPORTE,LAZERE DANÇA,7. Anais ... Gramado (RS),
a: diferença e autonomia dos sujeitos no âmbito do esporte e da cul-
pp.229-235.
POTENGY,G. et al. (1999). "Produzindo novas identidades: fragmentação do tra-
balho e do consumo e novos estilos de vida na sociedade contemporânea".
9 Interessante nesse contexto é a questão do higienismo: "É preciso ter memória desta página
Contemporaneidade e Educação, ano IV, n. 6, pp. 73-98.
secular da moral intransigente para avaliar as inflexões em curso. O discurso higienista é, de
fato e mais do que nunca, actual, mas está simultaneamente afastado da ode aos deveres indi- PRONI, M. W. (2000). "A contribuição de Richard Holt para a história do espor-
viduais. No essencial, a relação dos indivíduos com o corpo deixou de ser pensada em termos te". CONGRESSOBRASILEIRODE HrSTORIADAEDUCAÇÃOFISICA,ESPORTE,LAZER E
de obrigação incondicional, são os referenciais do bem-estar e do desejo que se tornaram
DANÇA, 7. Anais ... Gramado (RS), pp. 331-336.
dominantes, em particular quanto a tudo o que se relaciona com a questão do limpo e do sujo.
[...] A solicitação publicitária têm uma maior eficácia correctora do que os mandamentos ROUANET,S. P. (1987). As razões do iluminismo. São Paulo, Companhia das Letras.
severos da moral individual" (LIPOVETSKY, 1994, pp. 117-118). SANT'ANNA,D. B. de (org.) (l995).Políticasdo corpo. São Paulo, Estação Liberdade.
9
POLÍTICAS DE ESPORTE
UMA METODOLOGIA DE ESTUDO

Mara Cristan

ste texto procura enfatizar o modo como as construções teóricas


E de Alberto Guerreiro Ramos podem ser empregadas na pesquisa
e análise de políticas estatais de esporte e lazer'. Por mais simples que
tal tarefa possa parecer, inquietei-me diante dela. Um primeiro pro-
blema diz respeito ao fato de que a administração, tanto quanto a edu-
cação física, não é área de conhecimento na qual se registrem recor-
tes epistemológicos plenos de consenso. Ao contrário, tanto quanto a
educação física, o campo de conhecimentos circunscritos à pesquisa
em administração também se constitui em área de intervenção, de
acumulação de saberes, mas a orientação teórica provém de co ntri-

A análise aqui apresentada foi originalmente desenvolvida na minha tese de doutorado (CRISTAN,
2000), que foi orientada pelo professor doutor José Antônio Gomes de Pinho.
208 ESPORTE POLÍTICAS DE ESPORTE 209

buições advindas da sociologia, da história, da economia, da matemá- Para tal, em primeiro lugar retomei, sob a forma de notas, os ca-
tica, enfim, de áreas participantes da construção de um corpo de co- minhos indicados para que pudesse responder a uma série de ques-
nhecimentos aplicado aos temas próprios das organizações. Daí a tões suscitadas pela própria investigação; em segundo lugar, procurei
grande complicação em procurar o método aplicado por este ou aquele demonstrar de que modo o conjunto de pressupostos teóricos utili-
autor em administração. zados se tornou um instrumental valioso tanto na condução da pes-
Mais certo - parece-me - seria apostar em caminhos menos orto- quisa propriamente dita como na leitura que obtive acerca dos dados
doxos. Isto é, ao contrário de procurar em dado autor o método que resgatados no estudo de caso. É com a intenção de desenvolver tal
guia a perspectiva, é preciso buscar a riqueza que o olhar pode insti- raciocínio que apresento o texto a seguir.
gar. Daí, talvez, o encorajamento por buscar em Alberto Guerreiro
I
Ramos pistas para precisar um ponto de vista pragmático em relação
à execução da pesquisa de campo, auxiliando na fixação e delimita- NOTAS METODOLÓGICAS: CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
II
ção do objeto dentro da área de conhecimento em que estão circuns-
critas as pesquisas em administração. A conduta da ciência normal colocada como parâmetro para exer-
Isto é, ainda que altamente complexos e sujeitos a várias interpre- cício de reflexão - em ciências sociais - busca a adequação entre a(s)
,I tações, todos os fenômenos sob os quais nos postamos - e neles in- teoria(s) e certa prática social. O diálogo aberto entre a teoria e a prá-
clusos os objetos que tradicionalmente vêm sendo encampados pela tica - que a ratifica ou refuta - tem no tratamento que damos à his-
educação física, como lazer e esportes - terão indubitavelmente um tória e suas descontinuidades uma distinção que fundamenta manei-
ângulo de observação privilegiado, composto com base na interiori- ras de conceber o papel da primeira e da segunda. Dos pressupostos
zação de que qualquer um de nós se torna capacitado a partir da apro- possíveis deste relacionamento, a validação de conjuntos articulados
priação dos signos, símbolos e posições que ocupamos nos diversos de conceitos pode ganhar destaque como corolário necessário ao exer-
campos de ação social. cício da ciência normal, assim como também pode tornar-se a situa-
Portanto, igualadas as áreas de administração e educação física em ção concretamente determinada o motus perpetuum que estipula QS

termos de status epistemológico, entendi que não havia sentido apre- limites prováveis do alcance da(s) teoria(s) em uso e, conseqüente-
sentar um autor como expoente do pensamento em administração e mente, a descoberta de que alguns modelos foram superados.
capaz de propor uma teoria acabada que se dispusesse à análise de No caso estudado - as políticas de esportes/lazer praticadas pela Se-
objetos dos quais também partilha a educação física. Dito desse modo, cretaria Municipal de Esportes, Lazer e Recreação (SEME)do município
embora não se trate de um resgate das contribuiçõesque a tese possa de São Paulo durante o governo de Luiza Erundina (1989-1992) - o
trazer em termos da apresentação dos fatos esclarecidos por meio da dimensionamento entre teoria e prática tornou-se importante na medi-
reconstituição do caso estudado, percorri duas trilhas consideradas da em que, através da análise de situações concretas, pôde-se detectar se
importantes para elaboração da tese e que devem dar uma dimensão houveram ou não mudanças ante a concepção de democracia debatida
do entrosamento entre os dados objetivados e a interpretação teórica por um partido inicialmente caracterizado como de origem externa ao
por mim adotada. parlamento e enraizado nas massas, e sua atuação quando ascendeu ao
210 ESPORTE
POLÍTICAS DE ESPORTE 211

status de governo. Isto é, em que medida as modificações decorrentes naram às estratégias que visavam a uma democratização através, pura e
desse processo resultaram em mudanças de orientação do governo, mas, simplesmente, da abertura ilimitada ao mercado (academias, clubes etc.),
mais especificamente, que modificações repercutiram na implantação de além do tradicional subsídio a uma demanda clientelista: atletas, clubes
uma política de esportes/lazer para o município? federações e algumas comunidades de bairro, principalmente no atendi-
Com tantas urgências no atendimento a demandas mais premen- mento a pedidos por troféus, bolas e uniformes.
tes - como saúde, habitação, alimentação -, no plano das estruturas Seguindo os propósitos desta abordagem, forçosamente foi pre-
governamentais, as políticas de esportes eram tratadas pela Secreta- ciso adotar alguns procedimentos de pesquisa que delimitassem o
ria Municipal de Planejamento (SEMPLA) da capital de forma equipa- objeto, o grupo a ser pesquisado, o material que deveria ser conside-
rada a outras políticas estatais, como educação, saúde, cultura e abas- rado pertinente ao estudo, enfim, era preciso recorrer a alguns meios
tecimento (SINGER,1996, p. 115). Porém, desde que Erundina tomou que viabilizassem a realização do estudo e que, de algum modo, con-
posse, seu secretariado já estava informado de que a tônica da admi- trolassem os passos dados na realização das tarefas.
nistração sugeria a desconcentração hierárquica e espacial de poder, Partindo destas premissas, esta seção está dividida nos seguintes tó-
contando para isso com a aprovação na Câmara Municipal de um an- picos: no primeiro tratarei de delimitar o objeto da pesquisa, explicando
teprojeto capaz de pôr em prática uma nova estrutura organizacional a estrutura organizacional mais geral da Prefeitura de São Paulo durante
para o município, com implantação e fortalecimento das subprefei- a gestão Erundina, iniciando a busca pelos sujeitos que compuseram as
turas, fusão de secretarias e reestruturação do gabinete da prefeita. Se redes sociais ligadas às funções atinentes à projeção e implantação de
isso realmente se tivesse concretizado, a SEMEteria sido transformada políticas para o setor de esportes/lazer na SEME;no tópico posterior, divi-
em diretoria e passaria a compor, juntamente com as secretarias de didoem subseções, procurei definir os conceitos de rede e conjuntos de
Educação e de Cultura, uma só pasta. ação, de modo que concatenasse e justificasse a opção pelas-técnicas da
Portanto, quando o governo petista se iniciou na cidade de São história oral que definiram: amostragem, procedimentos de entrevista e
Paulo havia clareza de que as equipes de trabalho deveriam empenhar- tratamento dos documentos. Após o quê, nesta seqüência, rascunhei uma
se em descentralizar as estruturas de poder e diluir a prestação dos ser- conexão entre a delimitação do objeto, a opção pelas técnicas e os objeti-
viços em diferentes níveis geográficos da cidade, procurando priorizar vos do trabalho, sublinhando perguntas a que o estudo procurou respon-
a ampliação de acesso dos serviços estatais ao público em geral, mas der. Por último, apresento algumas conclusões do trabalho.
principalmente à população das periferias que vinham sendo
longamente alijadas dos benefícios de uma política estatal redistribu-
tiva em seu favor.
A ESTRUTURA ORGANIZACIONAL DA PREFEITURA E A(S)
Se, de fato, o governo de Luiza Erundina tivesse conseguido levar a REDE(S) NA(S) POLÍTICA(S) DE ESPORTES
cabo esta diretriz, sua gestão implantaria alternativas que diferenciariam
a administração da política setorial de esportes/lazer de sua gestão das Dentro de um esquema geral da burocracia - entendido como um
propostas que vinham sendo orientadas pelo governo federal e de suas sistema social administrativo que segue critérios de racionalidade
antecessoras em nível local, cujas posturas mais conservadoras se coadu- técnica e de hierarquia (PRESTES
MOTTA& PEREIRA,
1984) -, toda estru-
212 ESPORTE POLÍTICAS DE ESPORTE 213

tura organizacional deveria ser estimada tanto em termos das relações ção; embora haja remanejamento entre eles, nenhuma alta autorida-
de interdependência dentro dela quanto em sua relação com os efei- de prescinde deles no seu conjunto, pelo risco de tomar decisões de-
tos do ambiente social circundante, segundo a interpretação do so- sastradas dado o desconhecimento da máquina. Esses funcionários
ciólogo AlbertoGuerreiro Ramos (1983). Tomando este pressuposto, têm papel importante durante os períodos de transição política, to-
o autor divide a burocracia pública nos seguintes estratos: a) buro- davia sua conduta pende para o imobilismo porque costumam ser
cracia eleita e/ ou propriamente política, b) burocracia diretorial ou conservadores quanto à inserção de métodos mais modernos de ad-
quase política, c) burocracia técnica e profissional e, por último, d) ministração.
uma burocracia proletária ou, como ele denomina, burocracia de O terceiro estrato da burocracia pública caracterizado por Guer-
macacão azul. reiro Ramos é o que ele chama de burocracia técnica e profissional,
A burocracia eleita tem como característica sua transitoriedade, por se constituir num segmento integrado por profissionais técnicos
dado que não existem critérios precisos de eficiência nem estatuto funcionalmente necessários ao desempenho da máquina pública.
estrito que regule detalhadamente as funções que seus ocupantes Contudo, freqüentemente assumem posições corporativas em defesa
podem exercer. Por isso, o estilo administrativo dos atores alocados de seus interesses e, ancorados em seus saberes, tendem a procurar
nesse estrato da burocracia é marcado pelas realizações que tal estilo preservar suas posições e seus privilégios ao máximo. Na estrutura
leva a termo. Para citar um exemplo, no caso do município estudado, organizacional estudada este seria um papel ocupado, por exemplo,
os secretários de Governo ocupam posição de~tacada dentro desse seg- pelos professores de educação física que trabalhavam nos Centros
mento, mas outros cargos preenchidos por nomeação - os assessores Esportivos Educacionais e em outras unidades da SEME.
especiais, por exemplo - também estão situados nesse nível. Insere-se nesse segmento um subescalão formado por técnicos
Na burocracia diretorial o status de seus titulares pode ser defi- auxiliares, ocupados em protocolizar, registrar, arquivar, administrar
nido pela ligação com o chefe do Executivo, mas esta não é a única serviços simples, como os de limpeza, controle de equipamentos etc.
via de acesso a esse estrato, pois os critérios dependem mais da situ- Em geral são servidores que não detêm nenhum poder maior de de-
ação conjuntural de caso a caso que de regras rigidamente estabele- cisão e que tendem a transformarem-se em agentes passivos durante
cidas a priori. Esse estrato é integrado por funcionários de diferen- os processos de transição e modernização do aparelho. O ritualismo,
o conservadorismo e a incapacidade treinada marcam intensamente
tes profissões e competências, que se mantêm pela escassez de deten-
a burocracia auxiliar, ocupando no contexto geral uma massa
tores de suas especialidades na máquina administrativa, ou por meio
inorgânica sem grande capacidade para formular projetos de médio
de alianças informais que os mantêm em altos postos de comando
ou longo prazo.
de poder burocrático. A rede que os sustenta inteirados nos negóci-
Por fim, existe um estrato conhecido como burocracia proletária,
os da administração não tem propriamente uma conotação político-
que poderia ser identificada como a burocracia de macacão, porque os
partidária, embota seja praticada uma política, por assim dizer, de ca-
trabalhos que realiza são quase sempre manuais. Esse é também o
valheiros/damas. Nessa condição se constituem em funcionários que,
estrato mais passivo diante dos processos de gestão e no qual, nas ad-
independentemente dos que venham a ocupar o Executivo, continu-
ministrações atrasadas, costuma-se praticar o maior grau de cliente-
am nos escalões superiores, porque detêm os segredos da administra-
214 ESPORTE POLÍTICAS DE ESPOkTll 2/5

lismo empreguista, dado que as funções nele desempenhadas exigem formas precedentes. No entanto, seus defensores mais árduos freqüen-
pouca qualificação. temente se esquecem dos males e das disfunções dos quais a burocra-
Avaliando o peso que cada um desses estratos da burocracia pos- cia padece: como a cristalização de papéis em seu interior, a gestação
sui em relação aos processos decisórios instaurados - segundo a óti- de um espírito corporativo de seus funcionários, a metamorfose de
ca de Guerreiro Ramos -, entendi que me deveria fixar, basicamente, meios em fins da organização e o excessivo rigor e a submissão às re-
nos dois primeiros escalões, já que a eles estão confiadas a formatação gras.
das estratégias administrativas empregadas em favor das mudanças Avançando um pouco mais, Guerreiro Ramos chamou a atenção
sociais ou da conservação das estruturas presentes. Com isso, o autor para os paradoxos que as organizações burocráticas comportam. Isto
quer dizer que a burocracia pode ser um agente ativador das mudan- é, a burocracia pode ser um canal de mobilidade social para os indi-
ças sociais e que ela não é boa nem má em si, mas mantém interde- víduos e grupos que acessam os serviços de educação e informação
pendência direta com o contexto social circundante, a estrutura for- tornando-se mais aptos à competição no mercado de trabalho; o seu
mal e os vínculos criados a partir dos relacionamentos entre seus in- corpo de funcionários pode constituir-se em base de apoio aos go-
tegrantes. vernos, no interesse de manutenção das estruturas sociais vigentes; a
De fato, Guerreiro Ramos alerta para o problema da fixação ana- burocracia pode privilegiar o acesso, a alguns grupos de interesse, aos
lítica em um só ponto de estruturação da burocracia, entendendo que principais nós do poder decisório; ela pode representar uma incapa-
uma visão mais integrada permite uma utilização melhor do concei- cidade treinada; ou ainda manter um nível precário de prestação de
to. A vantagem do olhar crítico por ele adotado é a de aceitar pontos serviços. Contudo, todas essas funções que a burocracia assume são
de vista não necessariamente presos a urna ótica exclusivamente ne- essencialmente políticas e, como tal, mantêm vínculos estreitos ante
gativa da burocracia - associando a imagem de papelada, filas, demora, os compromissos aceitos por cada governo em particular.
conservação de status quo, emperramento dos processos de mudança Focalizando a dinâmica entre estrutura formal e contexto social,
social etc. - ou à idéia unicamente positiva da burocracia, tendendo Guerreiro Ramos entendia que os dois primeiros escalões da buro-
para uma tipificação ingênua da atividade burocrática e da racionali- cracia - o estrato eleito e o diretorial -e lideravam a implementação
dade técnica idealizada. de mudanças, pois têm maior acesso ao processo decisório instalado
)É acertado dizer que a racionalidade técnica é uma característica na burocracia. Assim, as organizações burocráticas não são estáticas,
central da definição de organização modelada com base em critérios mas acham-se permeadas por uma luta incessante entre dirigentes e
de dominação legal e em que, sob este aspecto, representa uma evo- subordinados, estando os primeiros em certa vantagem quanto ao
lução diante de outras formas de organização social baseadas na do- poder de condução das decisões administrativo-políticas porque con-
minação carismática ou tradicional patrimonialista.,5ob um ângulo trolam mais de perto posições de poder na estrutura formal sem, con-
positivo de observação, os atributos da organização burocrática - nor- tudo, invalidar o poder de barganha dos funcionários situados nos
matização, rotinização, meritocracia, prevalência de hierarquia fun- escalões inferiores ..
cional, especialização profissional- são incomensuravelmente mais Portanto, seguindo as orientações deste autor e para fins de deli-
adaptados à cultura das sociedades industriais de massa que outras mitação de nosso objeto, quando me referi à estrutura organizacional
216 ESPORTE POLÍTICAS DE ESPOkTG 2J 7

da Prefeitura Municipal de São Paulo e à posição relativa das políti- Outro dado que não pode ser ignorado é o de que, quando fala-
cas em esportes/lazer adota das, estive centrando atenção exatamente mos da cidade de São Paulo, estamos falando de um universo à parte
sobre dois estratos interligados da burocracia da SEME:o diretorial e em termos dos modelos urbanos mundiais. A complexa rede de rela-
o técnico. Esta escolha foi tomada considerando que, embora tenha ções tecidas na cidade já é, em si, um desafio para quem se põe a
acessado entrevistas apenas com os representantes do estrato diretorial pesquisar temas da sociologia naquela urbe. As inumeráveis media-
diante da ativação de alternativas para as políticas estatais setoriais na ções que uma rede abriga - se tivesse optado por uma amostra mais
área em apreço, o corpo de técnicos/professores era freqüentemente ampla - gerariam uma armadilha da qual dificilmente conseguiria me
associado às ações relatadas porque o corpo técnico se colocava como libertar.
o estrato que viabilizava a concretização das atividades-fim da admi- Portanto, quando procurei delimitar os sujeitos que foram entre-
nistração. vistados, o fiz tomando uma postura firmada sob entrevistas explo-
Igualmente, entendi que a escolha do estrato diretorial era um ratórias e um estudo piloto, através do que constituí os primeiros
critério importante e pressuposto da factibilidade do trabalho de pes- andaimes do edifício. O retorno incessante ao campo de pesquisa, os
quisa empírica com os sujeitos alocados nessa posição. Ou seja, para contatos telefônicos, as indicações, a localização dos sujeitos, enfim,
uma tese de doutorado, a restrição do número de sujeitos entrevista- todo o trabalho de operacionalização da pesquisa empírica foi reali-
dos oferecia garantias de que o trabalho pudesse ser realizado em tem- zado tentando promover, o quanto possível, aprofundamento da pes-
po hábil, de modo que, ao entrevistar os secretários que passaram pela quisa documental, confrontação de depoimentos e checagem de in-
pasta e sua assessoria, representava a possibilidade tanto de trabalhar formações.
com um cronograma viável quanto de poder obter informações acer-
ca da visão de política implementada - ou desejada - para a área-tema.
No caso, a escolha e tipificação dos secretários e assessores que se UM PERFIL POLÍTICO E ORGANIZACIONAL DA PREFEITURA
alternaram na pasta como estrato diretorial da burocracia, constituin- MUNICIPAL DE SÃO PAULO: UMA CIDADE QUE ASSUSTA
do o grupo de entrevistados da pesquisa de campo, deveu-se a algu-
mas características encontradas na atividade que exerceram dentro da O cenário dessa metrópole é, no mínimo, assustador para quem dela
estrutura organizacional da secretaria: mantinham alianças informais quase tudo desconhecia. Ou seja, ao elevado contingente populacio-
ou elos diretos com a chefe do Executivo/burocracia eleita; em rela- nal da capital paulista - aproximadamente 12 milhões de habitantes
ção ao cargo que ocupavam, seu status profissional era transitório; o no início da década de 1990 (SEMPLA,1996) - alia-se à alta densidade
estilo administrativo que assumiam era marcado, entre outros aspec- demo gráfica em áreas sujeitas a verticalização das construções (bair-
tos, pelas realizações que levavam a termo; como quase-grupo insta- ros de classe média e cortiços no centro velho) e a periferização das
lado na burocracia, lutavam pela hegemonização de algumas postu- regiões situadas nas zonas sul e leste da capital, principalmente. Se nas
ras; e, por último, embora não fossem necessariamente participantes primeiras a alta concentração populacional exige ampliação de equi-
da poli ica partidária, detinham conhecimentos relativamente escas- pamentos coletivos e maior disponibilização de atendimento à popu-
sos ac rca da máquina administrativa. lação, nas segundas concentram-se todos os aspectos críticos que ca-
218 ESPORTE POLÍTICAS DE ESP RTLl 21 C

racterizam a problemática urbana e ambiental de uma metrópole: áreas também estava em planejamento a redução numérica destas e sua
sujeitas a inundações, terrenos em processo de erosão, pobreza, carência reordenação sob o formato de subprefeituras.
de equipamentos e infr a-estrutura urbana (asfalto, hospitais, telefones Porém, só vontade de mudar não era suficiente para desemperrar
públicos, áreas de lazer, escolas etc.)'. Além dessas áreas, sobram as mais a máquina. No plano da organização das estruturas burocráticas do
valorizadas, restritas às atividades de prestação de serviços e à locali- município, Erundina herdou as administrações regionais loteadas em
zação de bairros residenciais de classe média e alta. diversos grupamentos com interesses políticos diversos. No quadro
Com toda esta diversidade e tendo que responder a necessidades mais geral das ARs, estas se encontravam ocupadas pelos critérios da
diferentes para que a tônica do governo não destoasse do lema ado- relação clientelista que Tânia Quadros estabeleceu com a população.
tado durante a campanha de Luiza Erundina: São Paulo para todos, a Ou seja, quando certos agrupamentos requeriam alguma autonomia
prefeitura deveria ampliar seu leque de ofertas e solucionar proble- ou havia necessidade de trocar favores com personalidades do universo
mas com uma criatividade extrema. Diante dos compromissos assu- da política e das relações econômicas, Iânio constituía novas regiões
midos em palanque, ficava evidente que políticas setoriais deveriam administrativas e determinava nomeação a um de seus apadrinhados.
adotar prioridades, mas - dentro dos severos limites orçamentários - No entanto, mesmo que das 33 ARs apenas 20 delas existissem efe-
procurar absorver demandas de todos os segmentos da sociedade. Para tivamente, em curto prazo este panorama não poderia ser modifica-
que isso se tornasse realidade, a organização burocrática deveria so- do a contento. Foi então que a SAR (Secretaria das Administrações
frer mudanças, pois a descentralização administrativa dependia de Regionais! Aldaíza Spozzati) passou a administrar os conflitos entre
uma nova rearticulação da máquina estatal. os secretários, que mantinham status hierárquico superior ao dos
De fato, a própria estrutura geral da máquina da prefeitura era administradores regionais. De maneira que, sendo os administrado-
formada por duas subestruturas pouco articuladas: uma setorial, for- res representantes do Poder Público em suas ARs e coletores de deman-
mada pelos secretários das diversas pastas, organizadas segundo os das locais, estes passaram a pressionar o secretariado no sentido de
critérios da divisão de trabalho internas a cada uma das secretarias; que atendessem suas demandas, gerando certa tensão entre as admi-
e outra espacial, constituída pelas administrações regionais em que nistrações regionais, as secretarias-fim (Educação, Transporte, Habi-
se divide a cidade, dada sua dimensão e heterogeneidade (SINGER, tação, Cultura, Abastecimento, Desenvolvimento Urbano, Esporte
1996). ete.) e, no topo desta cadeia, as secretarias-meio (Governo, Negócios
A organização burocrática das Administrações Regionais (ARs) Jurídicos, Finanças, Planejamento, Administração e Negócios Extra-
deveria corresponder às tarefas por elas executadas (limpeza pública, ordinários) e a prefeita, enquanto chefe do Executivo.
manutenção de infra-estrutura ete.) e, embora estivesse dentro das Às pressões internas à máquina administrativa, somaram-se as do
intenções da prefeita descentralizar a administração e fortalecer as ARs, Conselho Político alojado dentro da estrutura do Diretório Municipal
do PT e a óbvia oposição instalada na Câmara Municipal. Diante de tais
2 o documento anteriormente citado estimava que 34,76% da população do município de São dificuldades, havia a disputa pelos minguadosrecursos orçamentários
Paulo estava concentrada em cinco regiões administrativas: Santo Amara, Campo Limpo, São entre administradores das ARs e secretários de diferentes pastas; as dí-
Miguel/Ermelino Matarazzo, ltaquera/Guaianazes e Freguesia do Ó, correspondendo esta área
a cerca de 62% do espaço urbano da capital. . vidas assumidas pelo governo anterior e com as quais a prefeitura ti-
220 ESPORTE POLlT! AS J)ll lo3SI'\..)I"I'11

nha que arcar; a proibição de contrair empréstimos com as agências in- res, como secretário da pasta, dando mostras da eminência das d is-
ternacionais decretada pelo Governo Collor; a guerra com o Iraque que putas políticas e das tentativas da prefeita em acomodar situações no
elevou o preço do petróleo e dos transportes; a ocorrência de eleições momento da nomeação de sua equipe direta de trabalho. Trocando
em níveis superiores de poder; o elevado gasto com a folha do funcio- em miúdos, o nome de Iuarez Soares, além de permitir uma aproxi-
nalismo e a postura peculiar que o governo petista assumiu em cam- mação com jornalistas ligados ao movimento sindical, confirmava
panha diante de greves. Em contrapartida, havia promessas de campa- uma tendência em buscar apoio do jornalista e líder do partido, Rui
nha em atender demandas procedentes dos estratos mais baixos; a de- Falcão, importante figura da tendência de nome Articulação e que se
terminação da importância da democratização do processo decisório manteve afastado da campanha realizada por Luiza Erundina e seu
(inclusive com a sugestão da criação de conselhos populares); a propo- staff político.
sição de uma política de transporte urbano de duvidosas intenções (a Eleito deputado estadual, Rui Falcão, que já mantinha um relacio-
tarifa zero); a necessidade de tornar visíveis em curto prazo as mudan- namento tempestuoso com a prefeita, passou a compor a bancada
ças que uma prefeitura petista pudesse alcançar; todos estes aspectos petista cujo apoio das bases esteve expresso na votação que garantiu
somados deixavam pouco espaço de manobra para que os conflitos en- o cargo, tornando-o um adversário forte da prefeita e para quem des-
tre as instâncias de poder envolvidas fossem resolvidos sem que uma locou seus desafetos ante a postura meio populista com a qual Erundi-
das partes se desgastasse durante o processo de negociação. Enfim, to- na atraiu seu eleitorado, contribuindo para a consolidação de outra
dos esses conflitos ganharam cadeira cativa durante o período de ad- situação delicada: a formação de uma oposição dentro do partido que
ministração petista da capital do estado de São Paulo. acolheu Erundina (COUTO,1995, pp. 120-126).
Apesar de apresentar uma discussão não muito minuciosa da con- Apesar de todos estes problemas e das adversidades anteriormen-
juntura atravessada pela gestão Erundina, pareceu obrigatório delinear te levantadas, ainda é preciso sublinhar que a estrutura organizacio-
um contorno dos conflitos existentes, procurando situar o local ocu- nal da cidade de São Paulo não é apenas complexa do ponto de vista
pado pela rede sob a qual o estudo debruça mais atenções. De acordo organizacional, mas a malha de serviços administrada pelo municí-
com os pressupostos de uma análise de regressão, reconhecer os con- pio é imensa. É significativo lembrar que a cidade de São Paulo pos-
flitos tangenciais ao status visado pela burocracia diretorial tornou- sui o terceiro orçamento do país (KOVARICK
& SINGER,1996), maior do
se recurso à delimitação do objetivo de estudos: detectar o perfil de que muitas unidades da federação. Diante do caos urbano, a situação
inversão de prioridades na gestão das políticas estatais para esportes/ enfrentada por um governo que pretendeu levar adiante um novo
lazer, através de um diagnóstico da atuação da burocracia diretorial perfil gestionário, diferenciado de seus congêneres, fez emergir obs-
locada na SEME. táculos objetivos na tentativa de modificar as estruturas organizacio-
No entanto, os conflitos externos ao partido não configuraram nais da prefeitura e viabilizar uma política alternativa para a área de
todo quadro de conturbações no qual o secretariado de Erundina tra- esportes/lazer, na qual o PT ainda não tinha um acúmulo suficiente
balhou. Especialmente no que tangeu à SEME,os problemas internos de conhecimentos na época da administração Luiza Erundina.
à organização do partido também influíram para a indicação do po- Ainda sem apresentar os dados da pesquisa e numa comparação
pular locutor esportivo e vereador eleito pelo PT, Iuarez Moreira Soa- tosca - embora o discurso do PT em nível nacional mantivesse a mes-
222 ESPORTE POLíTICAS DE tlSP 1'1'11 22

ma tônica de participação popular e acesso às massas àqueles serviços INVESTIGANDO QUASE-GRUPOS EM REDES SOCWS
(SECRETARIA NACIONAL DE ASSUNTOS INSTITUCIONAIS, 1992,pp. 123-138)-,

podemos situar práticas políticas um pouco diferenciadas e condutoras Em sociedades complexas a tarefa de desvendar a constituição de
de concepções diferentes para o papel que a SEMEocuparia como pro- redes sociais não é empreitada para um único pesquisador, nem mes-
motora de uma política redistributiva, assimilada por dois quase-gru- mo para uma equipe maior, dado que as redes podem ser enfocadas
pos que se sucederam nessa secretaria. Portanto, nas sondagens iniciais através de diversos ângulos e os sujeitos que integram uma rede po-
ao tema escolhido, pude detectar a constituição de duas redes baseadas dem, concomitantemente, integrar novas redes em situações típicas.
em representantes de posturas nem sempre discordantes, mas marcadas Assim, o prefeito integra uma rede a partir de sua posição dentro do
por algumas diferenças ante uma mesma tarefa: administrar a estrutu- processo decisório nas instâncias públicas municipais, contudo
ra organizacional para esportes/lazer do município e acionar linhas de interage em outra posição quando os processos se desencadeiam em
política neste âmbito. sua vida pessoal, familiar, ou mesmo quando a imensa gama de rela-
Supondo que esta diferença tenha comprometido o significado do cionamentos possíveis é remetida à interpenetração de esferas supe-
acesso aos serviços/democracia social correlacionado(a) à participa- riores dentro da cadeia mais ampla de poder decisório. Em resumo, a
ção popular/democracia política nos conceitos operacionalizados por partir de um ego a rede ganha sentido e pode ser então limitada e
configurações sucessivas, creio que a reconstituição das conexões reconstituída.
desses quase-grupos com as redes que os estruturaram foi fundamen- Todavia, essa reconstituição pode ainda sofrer a influência subje-
tal para perceber qual a linha divisória entre grupos representando in- tiva do(s) pesquisador(es), tanto diante da postura ideológica assu-
teresses e visões diferentes e as conseqüências que os conjuntos de ação mida como ante as fontes que fazem falar em seu trabalho de recupe-
por eles instaurados tiveram acerca do projeto original da concepção ração documental. Por isso, alguns critérios foram adotados para que
petista de governar com ampliação da participação popular e da con- nem só a subjetividade desse norte ao trabalho de coleta e análise ao
solidação democrática. material de suporte. Em resumo, isso quer dizer que, na medida em
Destacando esta questão, parece haver adequação entre o proble- que foram reconhecidos os tipos de informação que deveria coletar,
ma colocado e o método de investigação da constituição de redes so- defrontei-me com dois problemas da pesquisa: o da amostragem eo
ciais proposto, ao mesmo tempo em que permitiu viabilidade à con- das técnicas e dos métodos da pesquisa de campo.
dução da pesquisa em acordo às categorias apresentadas por Alberto No primeiro caso, a definição da amostra ganhou procedimento
Guerreiro Ramos. Também como instrumento auxiliar à efetivação da intencional com a delimitação do objeto assegurada pela ternatização
pesquisa, foi utilizada a técnica de análise e produção de documentos das políticas estatais na área de esportes, em vez de centrar no estudo
através dos requisitos impostos pelo trabalho com história oral. As- das instituições que nem sempre estão presentes em todo contexto da
sim, passando às etapas seguintes, procuro demonstrar como levei administração. Ou seja, com a vantagem de tematizar as políticas, os
estas tarefas a cabo. atores principais desta rede se tornaram seus protagonistas, cuja lo-
calização foi facilitada pela posição que ocuparam dentro da estrutu-
ra organizacional do governo em questão. Daí a opção pela amostra
224 ESPORTE POL(TI'AR I I! I!~" I"I'I!
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intencional não estratificada Feldman-Bianco (1987, pp. 87-126), pois térios subjetivos de quem pesquisa. Poupando justificativos, II ti -( I
a montagem desta permitiu identificar atores estratégicos e tomar minação de que a rede e os quase-grupos se reúnem em torno I· uu:
como suporte documentos específicos das ações por eles desencadea- ego, ou mais apropriadamente de um estrato da burocracia - S iun
das, recuperando as relações sociais nas quais estes sujeitos estratégi- do o pensamento de Guerreiro Ramos (1983) -, pareceu cornpatível
cos se situaram e seus pontos de vista acerca dos contextos adjacentes à constituição do quadro de referência teórica a escolha intencional
(MITCHELL,1987). dos sujeitos da pesquisa visando a estabelecer conexões entre os es-
Mesmo assim, correu-se o risco de cair na armadilha da extensão tratos que a compunham, sem contudo ter de pesquisar todos eles.
ilimitada da rede e perder de vista o alvo do trabalho, diluindo-o na Portanto, à procura dos segmentos da estrutura burocrática que con-
incessante cadeia de relações sociais. Por isso, existiu a necessidade de centravam maior poder decisório, internamente à SEME,propus-me a
fixar atenção em um grupo de atores específicos ou, se é possível fa- entrevistar apenas os sujeitos que ocuparam posições estratégicas den-
lar, nos conjuntos constituídos por indivíduos agrupados em torno de tro da estrutura organizacional dessa secretaria.
interesses semelhantes que conjugam a rede (estrutura) como se fos- Como a estrutura organizacional da PMSP foi sendo reformada,
sem elementos da estrutura. Para explicar este ponto, Feldman-Bianco em particular essas transformações recaíram sobre a SEME.Embora
(1987) faz uma citação de Mayer (1987, pp. 133): essa mudança não encontrasse status institucional formal-legal, a cada
passo rumo à horizontalização da estrutura, as posições de concen-
[...] a noção de conjunto se baseia nas interações ao redor de um ego. tração de poder foram sendo igualmente modificadas, sobretudo
Esta última é formada por pessoasque mantêm contato em várias situ- quando se instalaram os sete pólos coordenadores das unidades ad-
ações e durante certo período de tempo. É, por assim dizer, a soma das ministradas pela SEME.Portanto, como essa mudança foi iniciada du-
pessoasenvolvidasem uma sériede conjuntos-de-ação intencionais em rante a gestão do primeiro secretário na pasta - Iuarez Soares -, op-
contextos específicos. tei por entrevistar o secretário e alguns de seus assessores de primei-
ro escalão e também profissionais da área de educação física, como
No sentido de que os conjuntos de ação eram derivados de criações os professores: João Paulo Subirá Medina, Lino Castellani Filho,
do ego visando a um objetivo, esse propósito conferia às conexões um Roberto Gnecco e Francisco Eduardo Caparroz. Dos quais declinou
traço comum que permitia a constituição de quase-grupos, dado que ato- do convite apenas o professor Medina.
res estratégicos, mesmo que participando de outras conexões sociais, Com a implantação dos sete pólos regionais, da reestruturação do
mantinham certa unidade diante das tarefas que lhes eram designadas. gabinete do secretário e com a impossibilidade de acesso a uma en-
Esta unidade, estimulada por laços de solidariedade mecânica, poderia trevista com a também secretária Marilena de Souza Chauí, segui ou tra
estar fundamentada em interesses privados, afinidade ideológica e/ou opção sem que o trabalho tenha sofrido grandes prejuízos. É claro que
senso de oportunidade, assim como suas conexões poderiam estar ba- teria 'sido preferível a entrevista da ex-secretária, porém esse depoi-
seadas na filiação a um grupo, tendência ou partido político. mento foi substituído por entrevistas com seus dois principais asses-
Mas o que de fato importa na condução metodológica da desco- sores: o de programação e o secretário-adjunto, professores Antônio
berta das redes e dos conjuntos de ação é dado pela limitação aos cri- Carlos Prado e Laurindo Leal Filho, posteriormente nomeado tam-
226 ESPORTE POLÍTICAS DE ESPORT15 227

bém secretário da SEMEdurante o último ano do Governo Luiza Erun- comparação - as entrevistas semi-estruturadas - seguiram as premis-
dina. sas do método necessário à consecução dos objetivos do trabalho.
Quero destacar que Marilena Chauí não participou da entrevista Ou diríamos, a grande pedra no caminho do pesquisador pareceu-
alegando falta de tempo e por considerar que não era uma especialis- nos ser a de concatenar o objeto à maneira mais apropriada de abordá-
ta em esportes/Iazer, Em contato telefônico, a ex-secretária de Cultu- 10. Neste sentido ganhou coerência o emprego das técnicas da histó-
ra informalmente adiantou que esteve à frente da SEMEsob circuns- ria oral e seu método de análise e crítica interna aos documentos -
tâncias especiais e que durante o período de sua passagem pela pasta tanto os oficiais como as falas transcritas que se transformaram em
manteve um secretário-adjunto, exatamente porque entendia como documentos vivos -, procurando remover a tal pedra do meio do ca-
significativa a articulação de um trabalho entre SEMEe SMC visando minho.
a concretizar a reforma administrativa que estava a caminho. Conquanto o método em história oral possa ser empregado so-
Além dos demais depoentes, também por sugestão dos membros bre temas contemporâneos, privilegiando a experiência de atores e
do grupo pesquisado, foi entrevistada a professora Maria Virgilina permitindo a transformação de seus relatos em documentos, encon-
Ramos, que ocupou diversas assessorias ao longo das gestões dos di- trei nele a opção mais acertada para levar adiante esta empreitada.
ferentes secretários. Essa indicação de depoimento foi importante Dentre as características que julguei positivas nesse método esteve a
porque, entre as pessoas que se pronunciaram, Maria Virgilina foi uma de recuperar aquilo que não é documentado por outras fontes, ou ga-
das poucas integrantes da equipe de governo que acompanhou toda nhando alternativas para a pesquisa de temas contemporâneos que
a gestão Erundina na SEME.Além dos depoimentos, o recurso à pes- não poderiam ser investigados somente através da documentação
quisa documental foi uma constante e, na medida do possível, forne- oficial, mesmo porque a produção acadêmica na área ainda é
ceu subsídios para análise e exploração dos temas presentes nas falas incipiente.
dos entrevistados. Não se trata de desprezar os documentos como material útil à
pesquisa; eles continuam reinando absolutos. Mas o problema da in-
suficiência de fontes documentais primárias e da complementação da
A HISTÓRIA ORAL COMO MÉTODO DE PESQUISA coleta do material de pesquisa através de entrevistas permitiu com-
DOCUMENTAL parações entre falas diferentes acerca de um mesmo tema, revelando
incompatibilidades de opiniões, assim como convergência de visões
Não houve intenção em precisar o que viesse a ser a história oral, entre membros de quase-grupos distintos. Todavia, o importante é
mesmo porque a confluência de disciplinas que ela exige ou a predis- reter que o método empregado em história oral permite encaixar fa-
posição que há em torná-Ia uma técnica de produção de documentos las dentro dos quebra-cabeças compostos por elas mesmas e pelos do-
evidenciam o quão complexa seria esta tarefa e, de certo modo, des- cumentos oficiais, tornando viável o uso da fundamentação conceitual
necessária aos propósitos visados neste estudo. Por enquanto, interessa construída ao longo de todo o estudo.
sublinhar que os procedimentos indicados para recuperação de expe- Embora o uso do método em história oral possa suscitar contro-
riências, relatos e seu processamento como documentos passíveis de vérsias, sobretudo se avaliarmos que o pesquisador quando conduz
228 ESPORTE POLÍTICAS DE ESPORTE 229

suas entrevistas tende a influenciar, abordando propositalmente de- o somatório desses procedimentos auxiliou não só para uma melhor
terminados acontecimentos relatados pelo entrevistado, sua escolha orientação do trabalho de realização das entrevistas, mas na obten-
ainda permaneceu vantajosa para o caso estudado, pois parecia ab- ção de um produto final que, pelas características comuns colocadas
surdo dizer que, se o documento extraído de uma entrevista é delibe- pelo roteiro geral, permitiu a recuperação de informações ordenadas
radamente produzido, não há como contestar que os documentos de maneira que pudessem ser comparadas (ALBERTI, 1989, pp. 11-52).
burocráticos estejam sujeitos à mesma intencionalidade (CAMARGO, Este procedimento denominado entrevista temática, no qual o su-
1981, pp. 19-24). Relembrando Le Goff (1990), os documentos escri- jeito é interpelado acerca de um período de sua vida, de uma função
tos são também instrumentos de poder, servindo a vários interesses, que exerceu ou da participação em certo episódio, tornou-se uma
assim como a fala também pode ser. técnica correspondente à seleção intencional dos entrevistados. A eta-
O que abrilhanta o método é a possibilidade de um afastamento pa que antecedeu a elaboração de uma lista prévia de futuros entre-
do pesquisador ante o pesquisado, através de informações extraídas vistados - que pode e deve ser alargada ou modificada - dependeu de
de documentos e utilizadas como contraprovas ou como checagem de uma pesquisa mais aprofundada sobre o tema e da realização de en-
fatos e proposições por meio da realização de novas entrevistas. No trevistas exploratórias com alguns atores-chave, que foram identifi-
caso, a entrevista é um dos recursos que compreende o método, mas cados primeiro pela leitura de documentos oficiais, depois eles pró-
ela sozinha não o esgota completamente. prios passaram a indicar possíveis entrevistas. Foram, portanto, os en-
Outra vantagem apontada é a de permitir não só a recuperação trevistados que geraram critérios de definição dos membros pertinen-
de informações inéditas, mas decorrer de uma postura ante as dife- tes à rede sobre a qual o estudo fixou sua percepção.
rentes configurações sociais que privilegia a recuperação do vivido O que se passou foi que os próprios participantes dos episódios
conforme concebido por quem o viveu. Para isso foi fundamental forneceram ou complementaram a lista de atores, diminuindo consi-
saber ouvir, mas também saber interferir e marcar pontualmente as- deravelmente o peso da escolha pessoal, imprimindo um caráter in-
suntos que mereciam mais esclarecimentos, que deveriam ser checa- terno à própria rede na seleção de atores. É, por assim dizer, como se
dos através de outras fontes, que deveriam ser contrapostos a outras fosse uma bola-de-neve, na qual a amostra foi iniciada por critérios
visões, enfim, o uso da entrevista em história oral viabilizou a com- de notoriedade dos atores mais acessíveis ao pesquisador e que efeti-
paração, elemento de grande valia para a confrontação de projeções vamente participaram do evento pesquisado, porém, daí por diante,
diferentes. a constituição da amostra estabeleceu-se através das inter-relações en-
Essa comparação, contudo, não aconteceu sem nenhuma forma de tre os membros de um quase-grupo.
controle. Ao contrário, a própria demarcação do tema, a seleção de Com a utilização desses procedimentos, tanto encontrei os meios
conjuntos de ação - base para formação de quase-grupos imbricados para formatar a amostra como se tornou possível estabelecer certo
em uma determinada rede de relações sociais -, a realização de um controle sobre a montagem intencional desta. Assim, podemos falar
roteiro composto por questões gerais, que originaram roteiros indi- que a pesquisa, sedenta por informações inéditas, efetivamente pas-
viduais e permitiram, após a recepção do relato e das impressões dos sou a acontecer exatamente durante o levantamento das entrevistas,
atores, abordagens diretas e elaboração de perguntas fechadas, enfim, após o que foi necessário processá-Ias de modo que se pudesse con-
230 ESPORTE POLÍTICAS DE J3SP PTll I1

frontar com outras informações, coligir e checar dados, comparar com SEMEdentro do Governo Luiza Erundina, parece importante desta ar
outras falas, enfim: recuperar os projetos através da óptica de quem que as disputas internas ao partido tiveram, diante da permanência
os vivenciou, de modo que se sublinhasse a conexão entre a ação pro- de disfunções da burocracia, um papel semelhante ao desempenhado
jetada e sua realização correspondente. pelas disputas travadas entre as facções e forças que compõem uma
No concernente ao tratamento adotado para a análise dos docu- aliança política num dado momento histórico, sem que isso aparen-
mentos (entrevistas e documentos produzidos pela burocracia, pelo temente apresentasse ligação com condutas mais próximas das teo-
partido etc.), utilizei os procedimentos para crítica interna dos docu- rias de direita ou de esquerda.
mentos baseados em: aprofundamento da pesquisa bibliográfica, Existe algo de salutar dentro da pluralidade de opiniões que pos-
quando necessário, aquisição de dados biográficos dos atores sempre sa prevalecer dentro de um ambiente organizacional, como os parti-
que possível- mesmo que não estivesse pesquisando a história de vida dos, por exemplo. À semelhança das lutas internas que ocorriam den-
deles em particular - e comparação entre informações geradas a par- tro do PT, que orientavam o partido no sentido de permitir interfe-
tir do roteiro geral de acordo com a técnica de leitura sugerida por rência direta das bases entre as instâncias parlamentares e colegiadas
Severino (1991). dentro da partido, a gestão Erundina foi inaugurada dentro do mes-
A consecução das fases da leitura visou a permitir o desmonte do mo espírito de ampliar as bases de participação popular, visando a ge-
significado aparente do documento, revisitando as versões e posições rar canais que auxiliassem a prefeitura em suas tentativas de aprovar,
assumidas por atores situados em diferentes posições, conjugados de no Legislativo, todo projeto que viesse beneficiar a massa de excluí-
maneira diversa em quase-grupos e estes na rede em geral. Porém a dos, dentro do que o PT, enquanto governo, propunha como seu pa-
palavra final foi minha. De volta às questões do recorte epistemoló- pel ante as políticas sociais: redistribuição de bens simbólicos e ma-
gico e da subjetividade, a postura crítica construída ante o material teriais.
coletado dependeu de sensibilidade e formação intelectuais, aspec- Para isso, a prefeita eleita tentava se valer da estratégia de anga-
tos não muito objetivos. De modo que, superadas estas etapas estive riar o auxílio dos próprios excluídos, que deveriam ter sua cidadania
em condições de construir o texto que apresentou os resultados do ativada à altura de apresentarem reivindicações autênticas ou no sen-
estudo, para o qual uma leitura dos dados foi efetivamente realizada tido de garantir-Ihes capacidade para adotarem projetos elaborados
com bases nas proposições firmadas dentro do quadro teórico arqui- em seu interesse. Mas, sobretudo, de tornar os recém-ingressos à cida-
tetado. dania uma força capaz de pressão sobre o Parlamento. Como esse pro-
jeto se mostrou de pronto frustrado, com manobras que fracassaram
e chegaram a enfurecer a bancada oposicionista, a prefeita e seu staff
CONCLUSÕES DO ESTUDO REALIZADO: DESAFIOS PARA foram progressivamente abandonando esse discurso, em favor de ten-
UMA GESTÃO DEMOCRÁTICA tativas menos radicais e mais afetas ao diálogo no nível parlamentar
(COUTO, 1996).
Dentro de uma avaliação geral, sem distinguir propriamente o que Mesmo assim, e embora delicada, a questão do que é melhor ou
foi realização das duas equipes que se sucederam durante a gestão da pior para a massa passava, dentro da discussão acerca da democracia
232 ESPORTE POLlTI
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'AH Illl 1I 1'1 I 1I

interna ao partido e por seus intelectuais orgânicos, ao largo de rup- ta de nossas análises, além da existência de focos de atrito verifi a I
turas maiores com os padrões já implantados, assimilando a tendên- entre o staff da secretaria e a máquina que deveria gerir, encontrava-
cia ao afastamento dos partidos de seus propósitos autênticos desde se um certo despreparo da equipe em lidar com a burocracia e com
sua fundação até o momento em que - quando conseguem - atingem os conflitos de classe representados pelos segmentos que ocuparam o
status de governo. O que, apesar de controverso, dentro da ordem governo, conflitos tidos como inerentes à própria estruturação das
estabelecida posta-se como legítimo, já que o poder municipal- den- instâncias de poder.
tro de toda estrutura de poder estatal- sofre limitações não só no Retomando Guerreiro Ramos (1983), quando a divisão de traba-
plano conjuntural como no plano institucional. De fato, sair da opo- lho se torna algo pertinente à estruturação da organização burocráti-
sição e garantir condições de governabilidade mínimas requer um ca, concornitantemente, padrões de conduta e de relacionamentos
grande amadurecimento. distintos estabelecem-se entre os estratos que compõem o aparelho,
Bem mais próximo do imaginário das reformas sociais que da complicando a análise tanto do ponto de vista de quem averigua os
revolução, como debateu Weffort (1985), foi pensado um eixo de con- processos decisórios em suas várias instâncias como da perspectiva dos
dução das políticas geridas no nível municipal de modo que se com- que avaliam a eficácia das políticas estatais ante as metas que um go-
prometesse a gestão petista como governo da cidade de São Paulo, mas verno assume.
não de grupos já infiltrados na máquina pública como outrora era Evitando os caminhos espinhosos e talvez infrutíferos que a ade-
feito. Ocorre, porém que, ante tantas transformações pelas q uais a so- são a tais abordagens poderia induzir, busquei uma saída alternativa,
ciedade passou no correr dos anos de 1980 e 1990, os paradigmas com procurando reconhecer como objetivo o estudo das trilhas seguidas
os quais a esquerda contava como certos foram se desmoronando. Por dentro dos canais administrativos para implementação de uma pro-
exemplo: como pensar a democracia e sua consolidação a partir de ins- posta política apresentada em campanha por Luiza Erundina e seu
tituições conservadoras? Como interagir com grupos e com a socie- staff enquanto linha orientadora das políticas estatais, no nível mu-
dade dos oprimidos - imaginada monolítica - no sentido de promo- nicipal, desenvolvidas na área de esportes e lazer - ou seja, a tão fala-
ver a consolidação de uma democracia que saísse do patamar da de- da inversão de prioridades, que incluía um estreitamento entre demo-
legação de responsabilidades e atingisse, embora de maneira cracia social e democracia política. Esta associação entre duas facetas
incipiente, alguns princípios de gestão participativa ou de co-gestão? complementares da democracia era tida como meio para que fosse
Ainda mais, de que modo ultrapassar os limites do clientelismo e das superada a fase de democracia delegativa e, daí então, atingissem-se
disfunções da burocracia, como a contra-informação, a divisão entre formas mais participativas de gestão, com a ativação da cidadania e o
estratos e a irrupção de conflitos que desafiam a abertura ou o fun- comprometimento do governo municipal em promover, via políticas
cionamento de diálogo como matrizes da democracia representativa estatais, uma redistribuição de recursos mais eqüitativa para o con-
direta? junto da população paulistana.
Bem, as questões levantadas não foram enfrentadas de modo tão De tal modo, quando tomamos como objeto o escalão diretivo da
simplificado dentro de todo processo de maturação pelo qual passou burocracia dentro da SEME,sabíamos que estaríamos lidando com for-
o PT quando se fez governo da cidade de São Paulo. Do ponto de vis- madores de opinião, capacitados dentro de visões particulares ao status
234 ESPORTE POLÍTICAS DE '31:lP 1",'11

de pertencimento de um grupo eda conjugação dos membros dentro Como se percebe, a interpretação da realidade política da cidad
de uma rede permeada, entre outras peculiaridades, pela formação de São Paulo e da inauguração de uma gestão alternativa para o mu-
profissional, identidade partidária, vivência dentro do aparelho bu- nicípio previa, com grande ênfase, a chamada inversão de priorida-
rocrático e seu conhecimento, afirmação de identidade através de vín- des. Que deveria ocorrer pontuando-se a importância da institucio-
culos corporativos e informais etc., portanto circunscritos a uma de- nalização de uma reforma administrativa, focada tanto na descentra-
terminada rede de relações sociais. Embora possa ser questionado o lização geopolítica da gestão (ancorada na garantia de que os recur-
foco do estudo, a escolha do escalão diretivo como objeto da pesqui- sos seriam redistribuídos via políticas municipais que primassem pela
sa - respeitando as limitações do trabalho solitário em que consiste a extensão de serviços às populações marginalizadas), quanto na pla-
elaboração de uma tese - permitiu uma visão acerca do modus nejada ativação das populações excluídas enquanto sujeitos políticos,
operandi com o qual se buscou concretizar as propostas políticas do gerando condições para que se fizessem suficientemente organizadas
governo petista na cidade de São Paulo, possibilitando a recomposi- para representarem seus interesses. Em síntese, o governo petista em
ção ao menos parcial do quadro administrativo montado com tal fi- São Paulo não propunha dissolução da ordem, mas a organização e
nalidade. institucionalização da representação dos interesses da massa excluí-
Assim, alertados acerca de possibilidades como estas, tratamos de da dos processos decisórios.
guiar a análise não para a percepção de assessores e secretários acerca Dentro de uma visão ingênua acerca das definições dos conflitos
das políticas que procuraram implementar, mas tomamos como ob- sociais (de gênero, étnicos, religiosos, econômicos, políticos ete. ) que
jeto de análise a consolidação do tipo de participação que quiseram se reproduzem dentro das diversas camadas sociais, aglutinado ao
ou puseram em prática - democracia social/política, direta ou dele- reconhecimento precário da identidade dos grupos de pertinência ao
gativa - e a interpretação e o domínio que manifestavam acerca de que se chamava romanticamente de comunidade, a plataforma da
categorias como burocracia. Elemento fundamental para quem lida candidata à prefeitura decolou dentro daqueles princípios: democra-
com administração pública e a percebe como o espírito da racionali- cia social- democracia política, como se este fosse um caminho li-
dade técnica que pode ser instrumentalizado dentro de diferentes pers- near e a aquisição do direito à participação no mercado estivesse
pectivas. mecanicamente associada à elevação da democracia política e irrupção
Sem que os quadros partidários incorporados pela administração da democracia representativa direta, ou melhor, semidireta.
municipal tivessem aprofundado um debate dentro de linhas menos Embora boa parcela da militância profissional não apoiasse a can-
depreciativas acerca das funções da burocracia, perpetuou-se entre didatura de Luiza Erundina e manifestasse sua discórdia ante o dis-
membros da equipe de governo um conceito negativo da organização curso acerca da implementação de uma democracia representativa
burocrática, com repercussões importantes no nível da implementa- direta, o fato é que o PT ganhou as eleições municipais do maior co-
ção da proposta programática que associava consolidação democrá- légio eleitoral do país - a cidade de São Paulo - dentro de um quadro
tica ao equacionamento em patamares razoáveis para o problema da político conturbado, apontando para o fortalecimento do partido com
redistribuição de recursos - tarefa das políticas estatais - e da ativa- vistas a uma provável vitória na primeira eleição direta à Presidência
ção da participação popular. da República em mais de 20 anos de história no Brasil.
236 ESPORTE POLÍTICAS DE ESPORTE 237

Passado o susto da vitória da chapa petista encabeçada por Luiza das nomeações e do loteamento de cargos entre os grupos com maior
Erundina, não havia uma equipe definida ou discussão previamente poder de barganha e pressão. Fato que não tornava a gestão Erundina
acumulada dentro do partido para o setor de esportes/lazer, nem inovadora diante de suas antecessoras de direita, acusadas de mante-
mesmo o debate na área havia atingido níveis mais avançados como rem como prática política a partilha dos despojos do poder.
os que se encontravam para as propostas de políticas em educação, Sem romper com este parâmetro de conduta política, o processo
saúde, cultura etc. Apesar do esforço individual de militantes e sim- de negociação de cargos entre forças e tendências diferentes, dentro
patizantes do PT, a quase ausência de uma melhor sistematização de da Frente Democrática que apoiou Erundina em sua campanha, es-
idéias e alternativas para a implementação de ações concatenadas na tendeu-se por toda a longa cadeia de nomeações aos demais cargos
área redundou em dificuldades para lidar com a dispendiosa máqui- em comissão e de livre provimento do secretariado, aumentando as
na pública herdada de outras administrações. disputas pelo espólio.
Os grupos que se formaram durante a campanha à sucessão mu- No caso específico da Secretaria Municipal de Esportes, Lazer e
nicipal não foram capazes de sedimentar uma proposta minimamente Recreação, a nomeação de diretores que não tinham preparação téc-
acertada em respeito ao que deveriam ser as principais diretrizes para nica específica para os cargos ligados à administração de Centros Edu-
uma política de esportes/lazer para o município de São Paulo, afina- cacionais Esportivos, mais o fato de que os critérios de seleção do pes-
da com os princípios de ativação da cidadania. Da ausência de um con- soal- nem sempre muito claros - deveriam respaldar-se no perfil de
senso mínimo e a necessidade de articular politicamente as várias ten- pertinência à classe trabalhadora metamorfoseada pela massa militan-
dências e os partidos que compuseram a Frente Democrática derivou te do partido, por sindicatos e movimentos sociais, gerou atritos in-
a montagem-relâmpago de uma primeira equipe colocada sob a res- ternos ao corpo de funcionários e motivou o aparecimento das pri-
ponsabilidade do jornalista Iuarez Moreira Soares, ligado ao nome de meiras diferenças dentro da administração da SEME.
Rui Falcão, presidente do Diretório Municipal de São Paulo e com Como alguns cargos de topo na hierarquia tinham como requisi-
quem a prefeita recém-eleita mantinha uma relação que inspirava to para preenchimento uma determinada permanência anterior do
cuidados. funcionário nos quadros da carreira de servidor municipal, ou impli-
O resultado dos atropelos advindos da necessidade de acomoda- cavam o porte de um certificado de conclusão de curso superior, o
ção política para composição do secretariado e da falta de amadure- critério estabelecido com base em fidelidade partidária não pôde ser
cimento de uma proposta para as políticas setoriais em esportes/lazer, aplicado para a seleção de todo o quadro de pessoal. Na impossibili-
que o governo petista deveria implantar redundaram em descompas- dade de demitir funcionários de carreira opositores ao primeiro se-
so entre o que pensava o secretário, o que pensavam seus assessores cretário, ou de nomear para determinados cargos comissionados,
mais próximos e o que pensava o partido. pessoas de sua confiança - resvalando, inclusive, em acusações de
Esta ausência de discussões prévias, de propostas mais maduras e nepotismo contra o secretário -, explodiram conflitos entre dois es-
os conflitos entre as tendências internas ao partido exigiram grande tratos diferentes: o do corpo de técnicos/professores de educação fí-
habilidade política da prefeita e de seus principais assessores na mon- sica e o dos diretores de unidades, os quais, embora considerados im-
tagem da equipe de trabalho, iniciando-se com a negociação acerca portantes militantes políticos, não atendiam a um determinado p r-
238 ESPORTE

fil técnico que os capacitasse para a gestão de equipamentos grandio- ção de calamidade pública, sem manutenção, segurança ou s rviços
sos, como os da cidade de São Paulo. que atraíssem o público para o qual deveriam voltar seus serviços,
Sem que uma posição precisa fosse trabalhada dentro dos parâ- além da desorganização dos quadros internos à SEME.
metros da educação política da assessoria da SEME, gerou-se um cli- Durante os primeiros 15 meses em que esteve à frente da SEME,o
ma de tensão entre a equipe de diretores e os técnicos de nível mé- jornalista e locutor esportivo Iuarez Soares, vamos dizer, não mediu
dio e superior, estrato da burocracia importante para a administra- as proporções que estes conflitos e a fragilidade na preparação dos
ção das unidades de prestação de serviços mais próximos da popu- quadros alcançaram. Constituindo-se as brigas internas à administra-
lação e, portanto, elo que deveria ser fortalecido para implementa- ção numa vidraça ambicionada pelos opositores ao Governo Erundi-
ção da política que o escalão diretorial tentava coordenar, sobretu- na, essa mesma vidraça serviu ainda aos protagonistas do próprio go-
do no sentido de inverter prioridades: aumentando o acesso aos ser- verno, que exercitaram sua própria mira diante dela.
viços oferecidos para a população, deslocando o tradicional perfil das Porém, mesmo ante todos os atropelos possíveis do início de uma
escolinhas de esportes encampadas pelos CEEs e CDMs para transfor- administração, o trabalho desenvolvido pela SEMEesteve desde então
ma-Ios em espaços públicos de lazer, enfim, em clubes populares nos voltado para a ampliação da capacidade de oferta de serviços em es-
quais experiências alternativas de gestão com as comunidades seriam portes e lazer pelo município, integrando a expansão desses serviços
testadas. a um trabalho direcionado para os segmentos sociais tradicionalmente
A falta de preparo dos quadros, aliada à confusão entre ação apro- não atendidos através da inserção de práticas situadas dentro da vi-
priada para o militante político e ação de governo, foi agravada quan- são de exercício físico e saúde, bem como da cobertura a algumas
do permaneceu intocado o problema da burocracia e seu funciona- demandas populares por lazer/esportes. Embora devo mencionar que
mento rotineiro como exigência de registros, processos e toda uma a total falta de recursos praticamente inviabilizou a gestão dos equi-
eficiência técnica da qual a institucionalização das reformas adminis- pamentos da SEME,mesmo para que ela mantivesse os precários ser-
trativas pretendidas não poderia prescindir. Sem conseguir organizar viços que já estavam consagrados dentro de práticas administrativas
uma visão consensual mínima de trabalho em equipe dentro das uni- an teriores.
dades da SEME,ou aliviar os confrontos entre diretores de unidades e O clímax da crise instaurada na secretaria deu-se pouco tempo
professores/técnicos, os conflitos internos tornaram-se explosivos, após a transferência do Grande Prêmio de Fórmula 1 do Brasil, do
diante do que duas posturas determinaram o perfil da política da SEME: autódromo de Jacarepaguá/Rio de Janeiro para Interlagos/São Paulo.
em parte o gabinete do secretário e de seus assessores metamorfoseou- Sem sombra de dúvidas, a vinda do GP Brasil para São Paulo poderia
se em corpo de bombeiros, cuja equipe procurava apagar incêndios, repercutir positivamente para a prefeita, uma vez que pairava o temor
apaziguando, dentro do possível, conflitos entre servidores e direto- dos grupos mais abastados da cidade de que a prefeitura petista - ao
res; em contrapartida, a falta de verbas levava as pessoas mais quali- voltar sua política para atendimento às demandas das periferias -
ficadas a terem que resolver às pressas problemas operacionais como privasse as áreas nobres dos benefícios advindos de uma política
compra de cloro para manutenção de piscinas, concerto de alambra- redistributiva que tradicionalmente vinha sendo feita para estas ca-
dos etc., permanecendo os equipamentos da SEMEem completa situa- madas sociais e seus espaços geopolíticos.
240 ESPORTE POLÍT! A 011 IlHl' 1''1'1 'li
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Apesar da grande oportunidade de virar a mesa e diminuir índi- dade à orientação das ações em favor de ampliação do acesso à p pll
ces de rejeição do governo petista entre os segmentos médios da po- lação aos equipamentos públicos, aprimorando diretrizes anteri t
pulação e de todos os ganhos que a prefeitura poderia obter com a mente seguidas neste sentido.
reforma do autódromo de Interlagos, a falta de transparência na con- De igual modo, na mesma trilha seguida durante a gestão de
dução das negociações com as empresas privadas que patrocinaram Iuarez, a discussão sobre a burocracia e seu funcionamento perma-
parte das obras e sobretudo a ausência de processo de licitação, que neceu como um tema incômodo. O conceito negativo da organização
permitiu à Empreiteira Vega-Sopave realizar tal obra, com a quebra burocrática foi mantido, embora alguns esforços de minimização dos
posterior da empresa atribuída ao não-pagamento das dívidas con- conflitos internos ao corpo de funcionários da SEMEforam tentados,
traídas pela prefeitura durante as reformas e o obscurantismo do con- sobretudo através da inclusão de uma política de recursos humanos
trato de concessão de terrenos estabelecido entre a prefeitura com a visando à qualificação de técnicos, ao mesmo tempo em que a estru-
Shell, garantiram à prefeita um saldo nada positivo: dois processos tura organizacional foi reacomodada e parte dos quadros provenien-
movidos contra ela por entidades civis na justiça, por malversação de tes de uma militância mais aguerrida foi afastada da administração
recursos públicos. da SEME.
Diante da tempestade que se formou, à prefeita só restou uma Esta reconfiguração do perfil de formação reforçava outra neces-
saída: a exoneração do secretário, que voltou para a Câmara Munici- sidade de abertura de espaços: a discussão sobre o papel da iniciativa
pal de São Paulo ocupando a vaga de vereador conquistada com a privada, a relação entre capital público e capital privado e os destinos
terceira votação mais expressiva dentro do PT. Com a saída de Iuarez que seriam dados a equipamentos vultosos e dirigidos à programa-
Soares da SEME e iniciado o período em que Marilena Chauí foi cha- ção de esportes de alta performance técnica. Estes temas polêmicos -
mada a acumular duas secretarias municipais - a de Cultura e a de capital privado e esporte de alto rendimento - foram motivo de con-
Esportes, Lazer e Recreação - procurou-se avançar no sentido de es- trovérsias dentro da administração da SEMEe, não raras vezes, tam-
II tabelecer uma melhor organização da burocracia, com aprimoramen- bém matéria de discussão e .disputa pela hegemonia de posições: uns
to na divisão de trabalho e uma programação que respondesse tanto contra a aproximação entre capital público e privado, outros nem
~
à necessidade de descentralizar a administração, como de melhor tanto.
coordenar os sete pólos regionais já estruturados durante os primei- Acumulando experiências durante os quatro anos em que a pre-
ros 15 meses de governo petista na cidade. feitura foi gerida por um governo mais à esquerda, a percepção de que
De fato, embora pelos documentos consultados e entrevistas rea- os esportes de elite também tinham lugar dentro de uma política es-
lizadas, a nova arquitetura que a SEMErecebeu entre o biênio 1991/ tatal foi revista. Sem manter a tônica no esporte de elite - vastamente
1992 permitiu a ampliação tanto do acesso a grupos diferenciados explorado pela mídia, pela indústria de espetáculo esportivo e por uma
(mulheres, idosos, crianças etc.), com oferta de novas modalidades, visão mais tradicional da política em esportes empregada dentro de
ampliação dos horários de atendimento dos equipamentos, apresen- um período histórico considerável-, a administração da SEME ama-
tação de novidades no sentido de tornar os espaços elementos de dureceu sua perspectiva, tomando como um direito do cidadão o
multiuso, construção de novos equipamentos etc., como dar continui- desenvolvimento de habilidades dentro do esporte de performance.
242 ESPORTE POLÍTICAS DE ESPORTE 243

A partir da idéia de criar uma fundação para gerir recursos pró- tremamente ingênua ou demagógica a idéia de incorporar e ativar a
prios ao esporte, procurava-se quebrar uma vértebra dentro das difi- participação cidadã sem que se cumprisse o requisito mais fundamen-
culdades impostas pela legislação quanto à captação de recursos pri- tal dessa adesão: o da democracia social.
vados, pois os fundos arrecadados deveriam ser repassados à Secreta- Diante das situações emergenciais que governos devem enfrentar,
ria de Finanças que os redistribuía posteriormente. No entanto, sem as promessas de campanha e o otimismo dos primeiros meses se des-
a institucionalização de uma reforma administrativa mais ampla, a fizeram quando o governo se defrontou com as demandas reais da
idéia da fundação não descolou do papel. Apesar disso, houve um sal- população, sobretudo das periferias. Tão preciosamente defendida
do positivo: finalmente as discussões sobre as relações entre erário como via de acesso à democracia política, a democracia social perma-
público e capital privado perderam a aura do tabu dentro da admi- neceu frágil no sentido de que, no geral, a população pudesse ver so-
nistração petista, garantindo um encaminhamento mais transparen- lucionados seus problemas mais prementes (habitação, emprego,
te acerca destas questões. transporte, alimentação, educação, saúde etc.). Diante das desigual-
Com o avanço da reforma organizacional informal, a nova arti- dades e da impossibilidade de um governo municipal promover, quase
culação que a estrutura organizacional recebeu - tendo o gabinete que ilhado, uma modificação substancial para parcela significativa
como um centro de coordenação dos trabalhos e os pólos e as unida- d ssa população, o sentido da participação política não saiu das ré-
des como executores de planejamentos de acordo com as diretrizes I as da concepção de democracia delegativa.
adotadas pela Assessoria de Programação - permitiu ampliar horizon- A impossibilidade de gerar em tão pouco tempo uma cultura
talmente a democracia porque a dinâmica de planejamento integra- p lítica diferente da cultura autoritária aceita no curso da história
va a participação dos diversos segmentos incorporados nos trabalhos I sileira por todas as camadas sociais, isto é, a de que a democracia
desenvolvidos pelas unidades da SEME- respeitadas algumas instân- rm direito a ser exercido ou compulsoriamente exercido apenas
cias e fóruns de participação -, mas no plano da participação política lurante os momentos de eleição; o caráter emocional de que se re-
da população os objetivos não chegaram a ser atingidos. vest m os processos eleitorais; o imediatismo e o paternalismo como
Um dos pontos controversos foi o da aplicação inicial de uma idéia I dutas esperadas tanto pelos que se colocam na posição de dorni-
pouco consolidada acerca da comunidade idílica: aquela que se mos- 1\ lei s, quanto na de dominantes; a fé depositada no candidato eleito
tra incapaz de desenvolver subjetividade e constituir conflitos, ou seja, 11 se este fosse um santo milagreiro etc., impediram que vingasse
durante longo tempo - apesar de as tendências partidárias e a educa- 1\ I1 ) de que as políticas estatais se colocam como intermediações
ção política admitirem o materialismo histórico dialético como fon- t 1111' d mandas e gru pos incrustados no Poder Público, ou de que elas
te de conhecimento - a idéia empregada pela administração dentro ( nstituern em canais legítimos de redistribuição de recursos sem
da SEMEacerca dos trabalhadores e da chamada comunidade estagnava '111 Is se torne uma ação complementar à benevolência de certos
I

num paternalismo, pelo qual não se conseguia visualizar o potencial f',IIV rnant 5 e favores à população.
de contradição das relações sociais dentro de um mesmo grupo ou di- .ontudo, mesmo diante destas contingências, a SEMEe a gestão
ante de grupos distintos. Parecia impossível reconhecer até que limi- I' 'I I' tinham que funcionar, ou pelo menos garantir padrões rníni-
te alianças eram sólidas ou efêmeras e, num dado sentido, pareceu ex- 11111 I 50 aos serviços públicos. Num segundo momento d
244 ESPORTE
POLÍTICAS DE ESPORTE 245

Governo Erundina - no caso da SEME,marcado pela entrada de entrecruzamentos pertinentes a uma rede, como contribuir para ge-
Marilena Chauí à frente da secretaria - percebeu-se que a democra- rar uma concepção mais participativa de administração?
cia representativa direta/semidireta provavelmente não seria implan- Dentro do plano de inversão de prioridades, enfatizando a demo-
tada, ou que qualquer ação desencadeada neste sentido atingiria efei- cratização dos serviços, a partir da entrada da segunda equipe pôde
to organizativo suficiente para que a população se tornasse sua pró- ser concretizada a noção de que o acesso ao público deveria reverter
pria porta-voz de interesses e de que era necessário que o PT enca- na reconstrução de elos sociais fundados fora do compromisso da
rasse o papel de governo como de um mediador, inclusive ressaltan- monocultura física, do exacerbação dos comportamentos competiti-
do a importância de ampliar bases parlamentares. Diante de tais mo- vos através da reafirmação dos valores do esporte de alto rendimento
dificações na mentalidade do grupo que apoiou Luiza Erundina até o técnico e da reocupação de espaços públicos dentro do espírito da res
final de sua gestão, a linha de condução das políticas de intervenção pública, o que, no todo, não diferia muito dos princípios discursados
municipal mudou, em parte, seu foco. Com esta idéia mais pela equipe antecessora.
I
amadurecida, o patamar de ação política seguiu uma diretriz diversa, A diferença é que, com a segunda equipe, modificou-se o perfil da
I
!
ou seja, foi praticamente abandonada a idéia de promover a demo- ação da secretaria, procurando tornar sua estrutura mais operacional
cracia representativa direta - como inicialmente se pensou - e pas- do ponto de vista das metas a serem atingidas. Se por um lado se ten-
sou-se a ações mais pragmáticas, voltadas para melhorar o acesso aos tou diminuir os conflitos políticos atendendo algumas demandas de
serviços. outros protagonistas dentro da SEME- o dos técnicos/professores,
Dentro da SEME,esta posição política foi traduzida reconhecen- principalmente - de outro lado buscou-se profissionalizar efetivamen-
do-se o papel negativo da monocultura do futebol e da falta de aten- te os quadros gestores das unidades administradas pela SEME,pondo-
dimento a grupos com demandas diferenciadas, como idosos, mulhe- se de lado problemas os quais a administração reconhecia incapaci-
res, crianças e indivíduos dotados de outros interesses de lazer que não dade para solucionar, sobretudo no que tangeu ao controle de uso e
os somente voltados para o futebol. Momento este marcado pelo for- mapeamento dos CDMs.
talecimento interno à SEMEda Assessoria de Programação, coordena- Dinamizou-se a administração de alguns equipamentos geridos
da pelo professor Antônio Carlos Prado que, embora não tivesse um pela SEME,mas o mesmo não se pode dizer das tentativas de inserir
nome com ressonância política dentro do PT de São Paulo, apresen- os princípios participativos de gestão - a democracia política enquan-
tava alta qualificação técnica para promoção de um programa que se to contraparte de democracia social-, como a criação de conselhos
enquadrasse dentro do perfil de ação descrito. com representação tripartite (representante de funcionários, usuá-
Mesmo assim, dentro das ações cotidianas da gestão da SEME,per- rios e administradores) ou o estabelecimento de fóruns mais amplos
manecia a pergunta: como democratizar o acesso e multiplicar as fai- voltados para experiências de autogestão ou co-gestão de equipamen-
xas de usuários para os equipamentos se a própria administração tos, os quais não se efetivaram como mecanismos gestores na práti-
mantinha obstruídos os canais de comunicação entre estratos diferen- ca, dado que havia reconhecimento da assessoria de que o tempo era
tes no interior da estrutura organizacional da secretaria? Se não ha- curto, os espaços de mobilidade política reduzidos e a possibilidad
viam órgãos colegiados capacitados para proceder aos diferentes de inverter o quadro da representação política - na câmara ou nos
246 ESPORTE POLÍTICAS DEi I3SPOR'I'll 247

ditas comunidades - dependia da estruturação de valores sociais ino- redundando na não-institucionalização das reformas administrativas
vadores. implementadas informalmente -, gravou-se a imagem de que o ama-
Sintetizando nossa avaliação, podemos dizer que a categoria da de- durecimento político é fundamental para que idéias tão esfuziantes
mocracia delegativa não foi suplantada durante a administração não desapareçam como o brilho fugaz das estrelas cadentes.
petista na SEME,porque tanto as expectativas em romper com o pas-
sado recente - da transição trançada pelas elites - não encontravam
parâmetros de superação histórica quanto o patamar de carências REFERÉNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
acumuladas era tamanho que os votos de protesto que garantiram
diferença a Erundina em seus últimos dias de campanha provinham ALBERTI,Verena (1989). História oral: a experiência do CPDOC. Rio de Janeiro,
Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil.
de uma camada social à qual faltavam tanto os direitos humanos de
CAMARGO,Aspásia (1981). "História oral: técnica e fon te histórica". In: CATÁLOGO
primeira geração (acesso a uma vida minimamente digna) quanto os
DEDEPOIMENTOS.Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, CPDOC.
direitos de cidadania de segunda e terceira gerações, nos quais se en-
COUTO,Cláudio Gonçalves (1995). O desafio de ser governo: o PT na Prefeitura de
quadram, além de outras demandas, esportes e lazer. São Paulo -1989-1992. Rio de Janeiro, Paz e Terra.
É importante sublinhar que a perspectiva assumida pela gestão CRISTAN,Mara L. (2000). Estrela cadente: a gestão da SEME (Secretaria Municipal
petista dentro da administração Luiza Erundina, num quadro mais de Esportes, Lazer e Recreação) durante o governo Luiza Erundina (1989-1992)
geral, mostrou-se de pronto ousada e talvez mesmo demagógica: o na cidade de São Paulo. Tese (Doutorado em Administração) - Escola de
Administração da Universidade Federal da Bahia, Salvador.
tempo era curto para reverter uma cultura política tão profundamente
FELDMAN-BIANCO, Bela (org.) (1987). A antropologia das sociedades contemporâ-
arraigada. Contudo, dentro de toda limitação sofrida pelo poder
neas. São Paulo, Global.
municipal ante outros âmbitos do poder do Estado no Brasil, soman-
GUERREIRORAMOS,Alberto (1983). Administração e contexto brasileiro. Rio de
do-se a isso o boicote que o governo do PT no município de São Pau- Janeiro, Fundação Getúlio Vargas.
lo sofreu da imprensa - durante a campanha à Presidência da Repú- KOVARICK,Lúcio & SINGER,André (1996). "A experiência do Partido dos Traba-
blica - e o tratamento que o governo federal dispensou à gestão do lhadores na prefeitura de São Paulo". In: KOVARICK,LÚCIO & SINGER,André.
município, reconhecemos como positiva a experiência que o partido As lutas sociais e a cidade - São Paulo: passado e presente. São Paulo, CEDEC!
Instituto de Investigaciones de Ias Naciones Unidas para el Desarrolo So-
acumulou na condição de governo da cidade. Especialmente enquanto cial.
governo que pôde colocar em prática uma visão distinta acerca da
LE GOFF, Iacques (1990). História e memória. Campinas, Ed. da UNICAMP.
política setorial em esportes/lazer daquela tão amplamente experi-
MAYER,Adrian C. (1987). "A importância dos quase-grupos no estudo das soci-
mentada praticamente desde que passou a existir alguma estrutura edades complexas". In: FELDMAN-BIANCO, Bela (org.). A antropologia das so-
organizacional para a área de esportes/lazer no Brasil e, em especial, ciedades contemporâneas. São Paulo, Global.
no município. MITCHELL,J. Clyde (1987). "A questão da quantificação na antropologia social".
Em que pesem todas as falhas em que o governo petista incorreu In: FELDMAN-BIANCO,Bela (org.). A antropologia das sociedades contemporâ-
neas. São Paulo, Global.
no trabalho desenvolvido pela SEME,em que pese a falta de experiên-
cia política e administrativa quanto às negociações parlamentares -
248 ESPORTE

PRESTESMOTIA, Fernando & PEREIRA,Luiz Carlos Bresser (1984). Introdução à


organização burocrática. São Paulo, Brasiliense. SOBRE OS AUTORES
SECRETARIA MUNICIPALDEPLANEJAMENTO (1996). Plano regional para regiões admi-
nistrativas do município de São Paulo. São Paulo, SEMPLA/Série Documentos.
SECRETARIA NACIONALDEASSUNTOSINSTITUCIONAIS (1992). "Esporte e lazer: direito
ao ócio". ln: O modo petista de governar. Caderno Especial de Teoria e Deba-
te. São Paulo, Diretório Municipal do Partido dos Trabalhadores. ÀDEMIR GEBARA é historiador, mestre em história pela USP e Ph.D. em
SEVERINO,Antônio Joaquim (1991). Metodologia do trabalho científico. São Pau- história econômica pela London School of Economics and
lo, Cortez. Political Science. Foi diretor da Faculdade de Educação Física da
SINGER,Paul (1996). Um governo de esquerda para todos. São Paulo, Brasiliense. UNICAMPe vice-presidente da International Council for Health,
WEFFORT,Francisco C. (1985). Por que democracia? São Paulo, Brasiliense. Physical Education, Recreation, Sport and Dance (ICHPER-_SD)
para a América Latina. Tem vários artigos publicados sobre o es-
porte e já orientou vários doutorados na área. Atualmente, é pro-
fessor titular da Faculdade de Educação da UNIMEP.
ALEXANDRE FERNANDEZ VAZ é mestre em educação pela Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC) e doutor em ciências huma-
nas pela Universidade de Hannover, Alemanha. Publicou vários
artigos, entre os quais "A filosofia da educação física: soltando as
amarras e a capacidade de ser negatividade", no livro As ciências
do esporte no Brasil (Ed. Autores Associados, 1995). É co-autor
de Kreativitãt und mithos im brasilianischen fussball (Ed.
Feldhaus, 2001). Atualmente, é professor da (UFSC), onde coor-
dena o Laboratório de Estudos Corpo, Educação e Sociedade.
ANTONIO JORGE SOARES é doutor em educação física pela Universi-
dade Gama Filho. É autor do livro Futebol, malandragem e iden-
tidade (Ed. UFEs-SPDC, 1994) e co-autor do livro A invenção do
país do futebol: mídia, raça e idolatria (Mauad, 2001). Atualmen-
te, é professor adjunto do CEFET-RJe professor do programa de
pós-graduação em educação física da UGF.
LUIZ ALBERTO PILATTI é licenciado em educação física, fez o mestra-
do em educação na UNIMEPe o doutorado em educação física
na UNICAMP.Atualmente, é professor da Universidade Estadual
de Ponta Grossa, onde coordena o curso de educação física e
leciona no mestrado de ciências sociais aplicadas.
MARA L. CRISTAN é formada em educação física, mestre em educação
física pela UNICAMPe doutora em administração pela Universi-
dade Federal da Bahia (UFBA). É autora do livro Esporte e so-
ciedade CEdo da UFES, 1996). Atualmente é professora do Cen-
tro de Educação Física e Desportos da Universidade Federal do
Espírito Santo.

MARCELO WEISHAUPT PRONI é economista e tem mestrado em ciên-


cias econômicas pela UNICAMP.Fez o doutorado em educação
física na UNICAMP.É autor do livro A metamorfose do futebol (lEI
UNICAMP,2000). Atualmente, é professor do Instituto de Eco-
nomia da UNICAMP.

RICARDO DE FIGUEIREDO LUCENA é formado em educação física, com


mestrado e doutorado em educação física pela UNICAMP.Autor
dos livros Quando a lei é a regra CEdoda UFES, 1996) e O esporte
na cidade CEdoAutores Associados, 2001). É membro do Colé-
gio Brasileiro de Ciências do Esporte (CBCE) e professor do
Centro de Educação Física e Desportos (CEFD) da Universidade
Federal do Espírito Santo.

VALTER BRACI-IT graduou-se em educação física na Universidade Fe-


deral do Paraná, onde fez também o curso de especialização em
treinamento desportivo. Obteve grau de mestre em educação
física pela Universidade Federal de Santa Maria e de doutor pela
Universidade de Oldenburg/Alemanha. Atualmente, é profes-
sor da Universidade Federal do Espírito Santo e membro do La-
boratório de Estudos em Educação Física CLEsEF).É autor do li-
vro Educação física e aprendizagem social (Magister, 1992) e co-
autor de Metodologia do ensino da educação física CCortez, 1992).
WANDERLEY MARcHI JÚNIOR é licenciado em educação física e técni-
co desportivo pela Unesr-Río Claro. Tem curso de especializa-
ção em educação física, mestrado em ciências do esporte e dou-
torado em educação física pela UNICAMP.Atualmente, é docen-
te da Universidade Federal do Paraná.
Marcelo Weishaupt Proni, Ricardo d
Figueiredo Lucena, Valter Bracht e Wand rley
Marchi Jr.
Pela discussão empreendida, pelos carn i-
nhos teórico-metodológicos que abre, pela
criação de novos objetos de pesquisa que
possibilita, Esporte: história e sociedade é re-
comendável a todos os interessados no es-
porte do ponto de vista das ciências huma-
nas, nos diversos níveis de ensino e pesquisa.

Amarílio Perreira Neto


Diretor científico do Colégio Brasileiro de
Ciências do Esporte (CB E)
Professor da Universidade Federa I elo
Espírito Santo (UFf,S)

OS ORGANIZADORES

MARCELO WEISHAUPT PRONI


É economista e mestre em ciências econô-
micas pela UNICAMP.Fez o doutorado em
educação física na mesma universidade.
Atualmente, é professor do Instituto de Eco-
nomia da UNICAMP.

RICARDO DE FIGUEIREDO LUCENA

É formado em educação física, com mestra-


do e doutorado em educação física p 10
UNICAMP.É membro do Colégio Bra il iro
de Ciências do Esporte (CBCE) e prof SS(lI"

do Centro de Educação Física e Desportos


(CEFD) da Universidade Federal do Esp ri
to Santo.

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