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AVALIAÇÃO DA QUALIDADE AMBIENTAL EM ESPAÇOS EDUCACIONAIS DIRETRIZES DE CONFORTO PARA EDIFICAÇÕES View project
All content following this page was uploaded by Patrícia Helena Turola Takamatsu on 02 April 2022.
Introdução
A realidade urbana de inserção em uma “selva amazônica” da cidade de Macapá, localizada na região
Norte do País, cria, a princípio, uma expectativa de vínculos ambientalmente harmônicos e
culturalmente ricos de relações socioambientais. Tal expectativa urbana confronta a consternação
diante dos dramas contemporâneos de políticas de preservação ambiental dos crescentes
desmatamentos da floresta amazônica (PINTO, 2014).
O famigerado contexto amazônico encontra ponto de apoio em Becker (2013) de uma “urbe
amazonida”, com a percepção de que durante a vidrada do século XX houve a constatação reforçada
da existência de diferenciação espacial da Amazônia e de questionamentos intrínsecos. Apurou-se que
os processos de urbanização dos núcleos urbanos iniciais lançados não promoveram o
desenvolvimento esperado até hoje. Considerando-se este ápice da constatação de uma realidade
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urbana amazônica específica, é necessário lançar luz aos fatores históricos que emolduraram a
regência diferenciada de tais espaços.
Os núcleos urbanos foram fundamentais para a ocupação do território amazônico, muito embora não
tenham promovido o desejado incremento das relações regionais, nacionais ou transnacionais. Tal
diferenciação não caracterizou, entretanto, uma segregação ao restante do País, mas criou o contexto
atual de cidades médias de uma hinterlândia (OLIVEIRA e TRINDADE, 2019). Como alerta Brenner
(2016, p. 7), o fenômeno da urbanização vem sendo visto como de conhecimento “naturalista, a-
histórico e empirista” e desconsidera que um mundo majoritariamente urbano não é uma realidade
evidente.
Conforme mostra a Figura 1, sobre uma vista aérea, em uma mesoescala, da cidade de Macapá, há um
margeamento das áreas habitadas à conformação das áreas verdes naturais, regida pelas águas e pelos
contornos de massas de arborização.
A afinidade com as águas na Amazônia é tal que a apreensão natural e empírica torna-se um fato
simbólico (TOCANTINS, 2000; COSTA, 2007) e é transportada, por diversas vezes, para campos idílicos,
em que a percepção dessas relações, por mais simbióticas que pareçam à vida humana, dá o tom da
falta de conexão do meio natural com a realidade urbana. Retornando à reflexão de Brenner (2016, p.
8), manifesta-se a assincronia entre o meio urbano e o meio natural, seja rural, de espaços não urbanos
adjacentes ou do entorno não urbano.
Figura 1: Vistas aéreas de Macapá – contrastes de urbanização versus paisagem natural. Fonte: Acervo dos autores, 2018.
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A urbanização das cidades é balizada pelos processos de segregação socioespaciais, visíveis para o caso
de Macapá através de uma aparente dicotomia entre as “áreas de terra firme”, em apropriação e
expansão conceitual de referência à geomorfologia dos ecossistemas anteriores de ocupação das
florestas de terra firme (AB’SABER, 2002), e as áreas de terras úmidas, por exemplo, as alagáveis,
localmente chamadas “ressacas”, que abrigam a habitação popular informal.
As ressacas ganham status do objeto urbano, de limitação espacial, a partir de sua caracterização como
regiões geomorfológicas de áreas de várzea, constituindo “as áreas úmidas, identificadas como
campos herbáceos periodicamente inundáveis, que funcionam como bacias de acumulação e
drenagem das águas das chuvas” (PEREIRA et al., 2015). A relação mais próxima com o meio natural
coloca em conflito o desejo de vínculo com a natureza perdida.
A fundação dos núcleos urbanos iniciais amazônicos sofreu forte influência inicial do período em que
vigorou o projeto colonizador português, realizado com base no urbanismo pombalino. Com
características próprias atreladas à forma barroca, é dela que se originou o traçado de malha ortogonal
e regular (Figura 2) que se observa em Macapá. Diferentemente de outras cidades do Brasil, o traçado
em questão faz parte de um segundo momento da colonização portuguesa, posterior em largos
séculos ao descobrimento do Brasil, em que se alterou a lógica constante de conformação de um
espírito de proteção para promover a manutenção da posse das terras, e assim se transmutar em um
projeto de ocupação (ARAÚJO, 1998; CARVALHO, 1998).
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Figura 2: Ilustração da aplicação de Figura-Fundo na área central de Macapá, em que se destacou apenas a malha ortogonal
perpendicular aos eixos Norte-Sul/ Leste-Oeste. Fonte: Elaborado pelos autores, com base em dados do levantamento
planialtimétrico de Macapá (2015) e levantamento do Exército (2016)
Figura 3: Recortes de imagem áreas de Macapá: a) sobreposição das plantas originais b) recorte analítico da malha c)
relação do recorte analítico no contexto da área urbanizada atual. Fonte: Elaborado pelos autores, 2018.
Uma nova revisitação dos conceitos de Becker (2013) sobre a Amazônia revela que natureza e cidade
permanecem como entidades apartadas. A relação hoje de conservação e desenvolvimento foi se
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firmando antagonicamente, até o ponto em que, aparentemente, o espaço do campo, ou rural, que
no caso da Amazônia é o espaço da floresta e das águas, passou a não ser entendido como pertencente
ao âmbito da urbanização.
Tais situações-problema incluem a malha urbana, expostas aqui no contexto amazônico, e objetivam,
portanto, entender o tecido urbano e elevar suas características para além das dicotomias apontadas.
Busca-se, assim, entender a malha incluída nos diversos momentos de apropriação do espaço e na
conformação de diferentes vínculos com o substrato natural amazônico.
Constituem objetivos específicos: apontar as diferenças entre malha urbana e substrato natural;
identificar os diferentes agentes promotores do processo de urbanização, as suas motivações e
procedimentos; e reconhecer esses substratos enquanto realidade física complexa, a partir da
apreensão de sítio no contexto amazônico.
Deparamo-nos aqui com alguns questionamentos comuns epistemológicos do que seria a cidade e o
que seria a sua malha. A abrangência conceitual do urbano é ampla e ubíqua o suficiente para
transplantar campos interdisciplinares. Não é diferente em relação à aplicação dos termos e conceitos
como tecido urbano, traçado urbano, malha urbana e malha ortogonal que não são estritamente
fechados em si.
A primeira noção apresentada do termo tecido é usual a uma relação metafórica à cidade como um
corpo humano. Tem origem no latim texere, significando “aquilo que é confeccionado com fios e
organizado”. Aproxima-se de termos como teia, textura e tessitura. Vincula-se ao cotidiano da vida, e
organiza-se em conjuntos de células e veias. O termo também é corrente nos estudos da morfologia
urbana, advêm de “morphe” (morfo, igual a “forma”, e logos igual a “estudo”).
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De acordo com Del Rio (1990, p. 27) é por meio do “tecido urbano (…) [que a] lógica conformadora e
estruturas básicas ainda são distinguíveis”. O termo foi adotado a partir do fim dos anos sessenta,
visando abandonar os preceitos do Movimento Moderno, quando planejadores passaram a buscar nas
ciências sociais novos instrumentos para intervir. Para o autor, o termo passa a ser utilizado para
denotar as guias da urbanização que avançam sobre espaços formais e informais, refletindo
transformações urbanas como resultados físicos espaciais de apropriação, pela população, dos
elementos urbanos e arquitetônicos.
Del Rio (1990) aborda ainda a importância do desenho urbano e a dificuldade de seu campo conceitual,
contribuindo para a sistematização de diversas metodologias como, análise visual, percepção
ambiental, estudos comportamentais e interpretações morfológicas. Tais leituras são contemporâneas
e usuais para uma leitura sistemática do passado. Outra autora nacional relevante é Kohlsdorf (1996),
que dá destaque ainda maior à necessidade de apreender as formas da cidade, com base nas
dimensões topoceptivas, e de buscar desconstruir a dicotomia forma versus função do espaço.
Abre-se uma série de posicionamentos a respeito das relações da forma urbana, orientados para
esclarecer a composição de suas estruturas, como no caso da malha urbana. Há, anteriormente aos
autores nacionais, abrangente panorama internacional, cabendo citar referências como Alexander et
al. (1977), Rowe et al. (1984) e Norberg-Schulz (1980).
Habraken (2000, p. 6, tradução nossa) avança na discussão sobre a estrutura do ambiente construído
enquanto formas ordinárias, que remetem diretamente ao controle sobre o espaço. As mutações da
forma no espaço são constantemente reinventadas, na medida em que, “ao crescer e mudar através
do tempo, o ambiente construído se assemelha mais a um organismo do que a um artefato”.1
Entretanto, rejeita veementemente um positivismo que possa explicar as formas e transformações
formais como inevitáveis ou obras do acaso.
O autor defende que é por intermédio dos agentes que se tem as conformações. Portanto, as
estruturas mais simples se dão como fenômenos orgânicos simbióticos e não há nenhuma distinção
absoluta entre quem cria e quem usa o espaço. Assim, “as pessoas impregnam a vida e o espírito do
1 “In growing and changing thought time, the built environment resembles an organism more than an artifact”
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lugar, desde que estejam ativamente envolvidas e encontrem um determinado ambiente construído
que valha a pena renovar, alterar e expandir” (HABRAKEN, 2000, p. 7, tradução nossa).2
Retomando o marco da criação das cidades ocidentais, tem-se que as formas são, logicamente,
impregnadas pelas referências da antiguidade grega e romana, sendo esta última conformadora de
um modelo que mais se difundiu mundialmente, devido ao caráter conquistador do Império que
formou. É a partir do iluminismo, como afirma Bignotto (2003), citado por Brandão (2008, p. 57), que
“surgem então as imagens arquetípicas colocadas numa Antiguidade mítica ou nas leis da natureza
que a cidade deveria exibir para nelas educar os homens e conformar sua organização social”.
Lamas (2010) reforça a maneira como as antigas cidades romanas provinham da disposição de dois
traçados ortogonais (cardus e deumanus). Citando Aldo Rossi, destaca que “o gesto do traçado —
quase fenômeno cósmico enraizado na humanidade — é encontrado também nos assentamentos
coloniais, nas cidades militares e, de um modo geral, em todas as cidades” (LAMAS, 2010, p.100).
A origem de fundação da malha obtém com o traçado xadrez seu papel de controle instrumental,
regulando a organização social, de ampliação de tomada de territórios, seguindo as regras
aperfeiçoadas tecnicamente por meio da agrimensura e, posteriormente, aprimoradas pelo próprio
engajamento militar (RYKWERT, 2006).
O domínio da malha sobre o substrato natural e suas características geomorfológicas ficam implícitas
ao controle exercido sobre o tecido urbano. Ela é apenas como um de seus elementos. A sua forma,
2
“People imbue it with life and spirit of place, as long as they are actively involved and find a given built environment
worth renewing, altering, and expanding”
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subsequente, um reticulado uniforme, de quadras em sequência e niveladas pelas ruas, assume a
plena abstração geométrica. Segundo Rykwert (2006), ainda hoje a formação dos traçados das cidades
é considerada como um fenômeno natural, regido por forças de mercado, obedecendo apenas a
impulsos interiores.
Figura 4: Ilustração do trabalho de um agrimensor romano organizando a terra, conforme demarcações ortogonais Fonte:
RYKWERT, 2006, p. 42.
Para Aureli (2011), o descolamento da malha do entendimento do tecido urbano, abre-se como
conflito entre seus aspetos formais e políticos, nasce também da maneira como as cidades passaram
a ser entendidas, mediante a utilização do termo urbanização, cunhado por Idelfonso Cerdá. Destaca
que o entendimento de grelha do planejador de Barcelona (Figura 5) foi concebido como
potencialmente infinito e destinava-se a ocupar o vazio entre a cidade velha e os povoados
circunvizinhos.
Sobre a cidade, Aureli (2011) defende que o plano de Cerdá para Barcelona confronta os princípios de
Haussmann, de distinta visão da reformulação de cidades modernas sobre cidades velhas. Para Cerdá,
haveria o compromisso de distribuir serviços, com base em uma reforma estratégica, para melhorar
as condições de vida da classe operária por meio do controle social. Entendia que as novas maneiras
de habitar não poderiam estar nos centros com seus monumentos compostos por ruas e edifícios
privados, mas sim nos subúrbios, que trariam melhores condições de vida para os moradores,
considerando a oferta de infraestrutura de qualidade. O processo de urbanização tratar-se-ia de
“ruralizar a cidade e urbanizar o campo”, sendo, assim, uma dupla agenda.
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Figura 5: Mapa de Barcelona. Fonte: AURELI, 2011
Dentro da grelha, qualquer distinção entre espaço público e espaço privado, espaço político
e espaço econômico colapsa em favor de uma visão totalizante e orgânica de cidade,
desprovida de limite, em que a urbanidade toda é concebida como um espaço doméstico.
Os métodos de governança da economia transcendem os limites entre espaço público e
espaço privado, instituindo o método despótico de administração da casa – como o
principal modelo de governança para toda a urbanidade. (AURELI, 2011, p.16, tradução
nossa). 3
Levy (1999) aborda a constituição do termo urban form (forma urbana) como análogo, na língua
inglesa, a “urban fabric”. Reforça a dificuldade de seu campo conceitual, contribuindo para a
sistematização de diversas metodologias. O autor destaca como a forma urbana passa a ser associada,
de modo intrínseco, ao planejamento e a suas formas de ocupar os espaços.
A maneira como essas novas características urbanas se relacionam, como podemos ver,
também é diferente. Geralmente, é o resultado de projetos de zoneamento adjacentes
criados um por um, cada um com um plano diferente, amarrado ao longo das rotas de
3Tradução de: Within this frame, any distinction between public space and private space, between political space and economic
space, collapses in favor of a totalizing, organic vision of the city as devoid of any frame or limit, in which the entirety of urbanity is
conceived as one domestic space. The governance methods of economy transcend the boundaries between public and private space,
instituting the latter - the despotic administration of the house - as the principal mode of governance for the whole of urbanity. The
essence of urbanization is therefore the destruction of any limit, boundary, or form that is not the infinite, compulsive repetition of
its own reproduction, and the consequent totalizing mechanism of control that guarantees this process of infinity.
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transporte, criando um tecido que é aberto, fragmentado, heterogêneo e interrompido.
Este modo de produção tem sido referido como “periferia” ou “periurbanização”. Pouco
entendido, ele ainda precisa ser submetido a análises formais.” (LEVY, 1999, p. 82, tradução
nossa).4.
Conforme Rykwert (2006, p. XLI), “as cidades são erguidas gradativamente por seus habitantes, ou
numa escala maior, por obra dos especuladores ou das autoridades”. Atualmente, porém, as novas
cidades se tornaram apenas “um modelo que envolveria outros significados, distintos dos tópicos
atuais de zoneamento (indústria, habitação, lazer etc.) ou de circulação”. Rykwert convoca as cidades
pós-modernas e suas formas a ressignificarem as construções sociais, e não mais modelos e formas
abstratas.
Apenas a partir do descobrimento do ouro e do período do apogeu de sua exploração, entre 1730 a
1750, de uma ocupação quase que espontânea das Minas Gerais, é que se conforma, para Portugal, o
ressurgimento de um maior interesse colonizador que garantiria não só a posse das terras, como
também o controle da monopólio das riquezas encontradas (CARVALHO, 1998).
4Tradução de: “The way in which these new urban features relate to each other, as we can see, is also different. It is often the result
of adjacent zoning projects having been created one by one, each with a different plan, strung along the transportation routes,
creating a fabric that is open, fragmented, heterogeneous and disrupted. This mode of production has been referred to as
peripherization or peri-urbanization. Little understood, it has yet to be subjected to formal analysis”.
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Inicialmente denominadas “Terras do Cabo Norte”, as regiões do Amapá foram, até 1713, alvo de
disputa internacional entre portugueses, ingleses, holandeses e franceses. A questão foi parcialmente
pacificada pelo Tratado de Utrecht, tornando-se, assim, apta a ser ocupada, em um contexto de
proteção militar. Portanto, foi apenas a partir do século XVIII, com o apaziguamento do conflito
externo, que se conciliou o momento propício para a primazia sobre a descoberta das riquezas que
poderiam existir nas terras amazônicas (ARAÚJO; CARVALHO, 1998).
Segundo Silva (2010, p.223), foi somente no século XVIII que “investimentos sistemáticos no
povoamento, na colonização e na urbanização da região passaram a ser operacionalizados pelo Estado
português”. O interesse pelas terras amazônicas e suas riquezas estavam relevantemente
correlacionados com a crise do modelo inicial de colonização portuguesa, colocado em xeque em razão
das significativas perdas das principais possessões ultramarinas na Ásia. Assim, a partir de uma mera
ocupação territorial, surge um urbanismo característico pombalino como oposição a estilo que as
missões jesuítas eram realizadas.
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Mergulhão (2018, p. 68-69) argumenta, no que tange à implantação da cidade no sítio, que o plano se
colocou em um recuo do rio Amazonas, sobre a parte elevada, que possibilitasse, “em contiguidade, a
conciliação da cidade com os elementos físicos da paisagem”. Ocupando as áreas de terra firme,
respeitavam-se os elementos hídricos do sítio, para evitar a coexistência com as áreas alagadas (Figura
6). Pode-se destacar a presença marcante em dimensão do lago, próximo ao povoado fundado, em
Araújo (1998), identificado como “Lagoa Seca”, cuja representatividade marca também a sazonalidade
comum das alterações de elevação com a variação do nível do mar que o Rio Amazonas está sujeito.
Figura 6: Macapá no período pombalino (1761). Fonte: Goulart Reis (2001) citado por Mergulhão (2018)
A urbanização de Macapá insere-se em uma conformação territorial de traçado rígido e abstrato inicial.
O posicionamento de ocupação das terras trouxe com ela o instrumento da malha, que se sobrepõe
ao tecido urbano, mas que, como levantado, não diretamente confrontou o meio natural.
Segundo Tostes e Weiser (2018), a cidade de Macapá, desde sua fundação, em 1758, até a criação do
Território Federal do Amapá, viveu um apagão demográfico e urbanístico. Apenas a partir de 1943 é
que seria transformada num polo de atração imigratório local e regional. O fluxo migratório ocorreu
concomitante com a relevância que o Território do Amapá passou a ter com a exploração do minério
de Manganês, por meio da empresa ICOMI, que vigorou de 1943 a 2000 (DRUMMOND et al., 2007).
Enquanto se colocou o foco no desenvolvimento no município de Serra do Navio — AP, Macapá foi
destinada a ser o centro político do território, já que Serra seria cedida a um consórcio particular.
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Em 1944, Macapá passou a ter status de município. Segundo Bastos (1947), citado por Lobato (2013),
a cidade ainda era uma vila de algumas centenas de habitantes, abalada pela crise da borracha
amazônica do início do século XX. Foi por meio da ação do governo territorial que se buscou remover
os sinais de decadência da cidade, no âmbito de uma ideia de uma “Macapá Moderna”.
Ainda segundo Lobato (2013), a modernização foi feita de maneira draconiana, com novos padrões de
gestão do espaço, do tempo e das relações sociais, em geral, fomentada pelos agentes do Estado.
Macapá, então, sofreu um boom demográfico, passando de quase 2 mil habitantes em 1940 a quase
40 mil em 1964. Recebeu fluxos migratórios de trabalho, promovendo a atração dos moradores das
ilhas paraenses vizinhas e de nordestinos.
A construção desta “Macapá Moderna” era apresentada como símbolo máximo da vitória
do homem sobre a natureza aparentemente indomável. Segundo as prédicas do governo
territorial, a ordem humana teria sobrepujado a natural e o homem, até então submisso
aos humores da floresta, teria finalmente imposto a sua marca nestas paragens (LOBATO,
2013, p. 13).
Para Tostes e Weiser (2018), foi no período territorial (1943 – 1955), marcado como a “gestão
janarista”, que se a gênese da evolução urbana da cidade de Macapá, responsável pela formação dos
espaços públicos na área central da cidade.
Segundo Amaral (2010), como se observa na Figura 7, a partir de 1964 é que se iniciou um novo
momento de crescimento da cidade. Ocorreu o estabelecimento do regime autoritário, e a ocupação
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das terras da Amazônia se tornou meta prioritária para a ditadura militar. A malha passou a ser gerida
novamente em um contexto geopolítico de estruturas de entrelaçamento regional, passando a ser
entendida como a rede técnica territorial.
Figura 7: Sobreposição de imagens áreas de Macapá 1964 e 2008 apontando a ínfima dimensão proporcional da imagem
área de 1964. Fonte: Erinaldo (2008). Citado por Amaral (2010),
Macapá passou, então, até aproximadamente 1964, por dois momentos históricos: o lançamento
inicial da malha, no âmbito do projeto pombalino, em que se têm a extensão e a distensão da malha,
com base no projeto de ocupação territorial. A malha urbana assume a condição de instrumento de
ação dos agentes de poder político; e, em um primeiro momento, a colocação do substrato natural a
segundo plano, passando a se tornar um sério obstáculo ao desenvolvimento “modernista” da cidade,
no segundo momento.
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Os agentes sociais da população foram, nos dois momentos, convidados a participar dos projetos e
seguiram a ocupar a estrutura lançada. Ocorreram no segundo momento, ao contrário do que se pode
inicialmente imaginar, um forte fluxo migratório, o senso de organização pragmática de se estabelecer
sobre as bases já assentadas desde o século XVII e a apreensão negativa quanto ao meio natural como
empecilho ao desenvolvimento. A malha urbana, como elemento estruturador, passou a dotar bases
para que a evolução urbana, sobre o tecido, pudesse vigorar.
Busca-se aqui retomar o conceito de substrato natural e, para isso, retoma-se a matriz geomorfológica,
como elemento de composição típica, de forma e estrutura. Considerando a ressaca como conceito
derivado de limites, com base nas suas relações geomorfológicas, entende-se que tal visão deve ser
ampliada, visando também rever está dicotomia. Aqui, pretendeu-se visualizar o meio através do
relevo completo.
A partir de dados iniciais fornecidos pelo Exército (2016), foi possível construir a análise de dimensão
cartográfica, espacial e planialtimétrica, aplicando sensoriamento remoto para representação
tridimensional da cidade de Macapá. Foi elaborado, no ArcGis 10.4®, uma base em MDT (Modelo
Digital de Terreno), por meio da interpolação de curvas de nível, e criado um TIN (triangulated irregular
network), classificado conforme escala de 1 em 1 m. (Figura 8)
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Figura 8: Mapeamentos de referência de composição de camadas do tecido urbano de Macapá a) apenas a malha urbana
ortogonal b) MDT que representa a superfície topográfica do terreno natural c) Limite histórico da área de desenvolvimento
urbano até 1964 sobre o MDT. Fonte: Elaborado pela autora, 2019.
Considerando, ainda, a Figura 8, colocando lado a lado o produto social da manipulação do tecido
urbano (a malha urbana) e sua matriz natural, observa-se não um soterramento do meio natural, mas
uma suplantação. O instrumento da malha cumpriu seu papel de se adequar radicalmente e
prodigamente à base natural em que se assentou.
A aparente topografia plana que a cidade apresenta tem uma variação de cota altimétrica de 19
metros, relativamente baixa pela extensão territorial. A variação é significativa quando se percorre os
locais de alagamento e depressão, da conformação das terras áreas firmes e úmidas.
A execução moderna da malha urbana também marcou no tecido urbano o papel de expandir o
instrumento até seus limites conformadores topográficos. Observando atentamente o limite da
ocupação até 1964, tem-se a dimensão modernista apropriada da malha como instrumento através da
canalização da Lagoa Seca (Canal da Rua Mendonça Furtado). Neste momento se reafirma a intenção
inicial de não distinguir as áreas úmidas das áreas de terra firme.
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Considerações Finais
A malha em negação canalizou os córregos e renegou qualquer relação com as águas, inclusive ao
lateral e imponente rio Amazonas. O planejamento, após um grande período de esquecimento, passou
a se integrar aos interesses nacionais, mas agora purga um olhar mais externo e mais central ao Brasil
do que o fazia Mendonça Furtado, que parecia entender mais as características de uma região
Amazônica do que aqueles que o seguiram.
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