Você está na página 1de 274

Colecqào Currículo, Políticas e Práticas

I 'I
ducação
Poder
Michael W. Apple
Michael W. Apple é "John Bascom Professor" de Currículo e Instrução e de Estudos e Política
Educativa na Universidade de Wisconsin em Madison.
Educação
e Poder -
?lichael W. Apple
4&mju, Q-?,42
eu -Ií

c-s\-mc
7
8
4

0 PORTO EDITORR
Título Educação e Poder
Autor Michael W. Apple
Tradutor João Menelau Paraskeva
Editora Porto Editoia

Titulo da ediçáo original: E d u c a t i o n and P o w e r


E d i ç á o original: ISBN 0-41 5-91310-1
O 1995 by R o u t l e d g e
"Portuquese langiiage edition pubhshed by arrangement with Routledge, Inc."
29 West 35 Street
N e w York. NY 10001

0 P O R T O EDITORA. L ~ A -
. 2001
Rua d a Restauraçao. 3 6 5
4099-023 PORTO - PORTUGAL

Reservados todos os direitos.


Esta publicaçao iiao pode ser reproduzida nem transmitida, no todo o u e m parte. por qualquer
processo electrónico, mecânico, fotocopia. gravaçáo o u outros, s e m previa autorização
escrita da Editora /

NOVI2001 ISBN 972-0-34806-2


g PORTO EDITORR. LDn. , ,
AdmlEscritiArm. Rua da Restauração, 365 - 4099-023 PORTO 8 226088300 Fax 226088301
Livrarias Rua da Fabrica, 90 - 4050-246 PORTO 8 22 200 76 69
Pr. de D. Filipa de Lencastre. 42 - 4050-259 PORTO 8 22200 7681
e na internet em: www.webboom.pt
D I S T R I B U I D O R E S

ZONA CENTRO LIVRARIA ARNADO, LDA.


EscritiArm Rua de Manuel Madeira. 20 (a Pedruhal-3020303 COIMBRA 8 239497090 Fax 239497091
Livraria Rua de João Machado, 9 - 11 3000-226 COIMBRA 8 239833528
ZONA SUL EMPRESA LITERARIA FLUMINENSE, LDA.
EscrtlArni Av. Alniirante Gago Coutinho, 59 - A - 1700 027 LISBOA 8 21 8430900 Fax 21 8430901
Ltvrar!a Av. Almirante Gago Coutinho. 59 - D - 1700-027 LISBOA 8 21 W 0 9 0 0

Execuçao gráfica de: BLOCO GRÁFICO, LDA. - R da Restauraçáo, 387 - 4050506 PORTO - PORTUGAL
.....
Prefacio a ediçao de 1995 ..........................................................................
. .-.
Prefácio a ediçao .......................................................................................
Agradecimentos ...............................................................................................
1 Reprodução, constestação e currículo ................................................
A sombra da crise ................................................................................................
Crítica educacional ..............................................................................................
A circulação do conhecimento técnico-administrativo ..............................
2 Conhecimento técnico, desajustamento e o Estado
A mercantilizaçáo da cultura ......................................................................
3 O outro lado do currículo oculto
A cultura como experiência vivida - I .....................................................

4 Resistência e contradições na classe, cultura e Estado


A cultura como experiência vivida - I1 ...................................................
Introdução ............................................................................................................
Reprodução e reforma ........................................................................................
I Conclusões ............................................................................................................

5 A forma curricular e a lógica do controlo técnico


O regresso da mercantilização ...................................................................

6 Trabalho educativo e político


Será possível o êxito? .....................................................................................
Bibliografia ........................................................................................................
Todas as pessoas olharam pasmadas para a directora de departa-
mento. Estavam estupefactas. Rapidamente o ambiente na sala tradu-
ziu uma mistura caótica de sons, fúria e descrédito. Não era a primeira
vez que ela nos informava sobre as "directrizes emanadas superior-
mente". Cenas semelhantes haviam já acontecido no passado. Além do
mais, isto era apenas a remoção de mais uma pedra. No entanto, para
cada u m dos presentes naquela sala era claro que, a partir daquele
momento, e apesar das nossas lutas para proteger a educação de ser
totalmente integrada no projecto de racionalização e competitividade
económica da direita, estávamos a perder terreno.
Foi muito difícil impor ordem naquela reunião. Contudo, lenta-
mente, conseguimos controlar as nossas emoções o tempo suficiente
para ouvir o que o Departamento de Educação do Estado e a Legisla-
tura haviam determinado como sendo o melhor para todos os alunos
do estado de Wisconsin - desde o pré-escolar a Universidade. A partir
do próximo ano lectivo, todos os alunos que pretendessem ser professo-
res deveriam tirar u m curso de Educação para o Emprego, em essên-
cia, u m curso apoiado nos "benefrciosde u m sistema de livre mercado".
Paralelamente, todos os curricula escolares dos ensinos básico e secun-
dário - a partir dos cinco anos - deveriam integrar igualmente u m pro-
grama coerente de educação para o emprego. Além do mais, não pode-
mos começar tão cedo, não é verdade? A educação fornece apenas
?apita1 humano", não é verdade? 1C

Começo com esta história porque em meu entender é preferível a7


O,
maior parte das vezes partirmos do nosso íntimo, isto é, partir das nos-
sas próprias experiências como professores e alunos nesta época de
conservadorismo. Entendi ainda iniciar o livro deste modo uma vez que,
os termos do debate e as condições sociais e económicas existentes têm
sido claramente orientados numa direcção conservadora', embora a
actual administração democrática e m Washington possa tentar
I
' Apple. Michael (1993).OfficialKnowledge: Democrafic Educafion in a Conservafive Age. New York: Routledge.
tmboru de u m modo frágil e ineficaz) impor-se em alguns dos exces-
sas da ugenda social da direita. Não deveríamos ser românticos sobre o
que irá acontecer nas nossas escolas e universidades, especialmente
tendo em conta a crise fiscal do Estado e a aceitação da maior parte
dos aspectos sociais e económicos que constituem a agenda conserva-
dora nos dois maiores partidos políticos. A história, descrita anterior-
mente, funciona como uma metáfora para aquilo que se está passar na
maior parte do espectro educacional.
Contextualizemos estas questões com as amplas transformações
levadas a cabo pela aliança conservadora na sociedade, em geral, e na
educação, em particular.
r O conservadorismo, como o próprio nome sugere, anuncia uma
interpretação única da sua agenda. Conserva. Com certeza que há
outras interpretações possíveis. Podemos afirmar, de algum modo mais
incipiente, que o conservadorismo acredita que nada deve ser realizado
: pela primeira vez2. No entanto, e perante a situação actual, isto e a
muitos níveis enganador. Com a direita em ascensão em muitos países,
testemunhamos u m projecto muito mais activista. Actualmente, as
políticas conservadoras são mais políticas de alteração - nem sempre,
mas claramente a ideia 'hão faças nada pela primeira vez" não explica
totalmente o que se passa na educação ou noutra área qualquer'
De facto, o conservadorismo assume significados diferentes, em tem-
pos e espaços diferentes. Umas vezes, envolve acções defensivas; outras,
implica a tomada de iniciativa contra o status quo4. Hoje em dia teste-
munhamos ambas.
Por esta razão, é importante estabelecer o amplo contexto em que
operam as actuais políticas educativas. Tal como analisei de u m
modo mais detalhado e m Official Knowledge e em Cultural Politics
and Education', houve uma ruptura no acordo social-democrata que
orientou grande parte da política educativa depois da Segunda
Guerra Mundial.

Honderich. Ted (1990) Consewantism Boulder Westwew. p 1


' W . p 4
' W . p 15
' Apple. Michael (1993) Official knowledge Democratic Education rn a ConservativeAge New York Routledge. Michael
W Apple (1996) Cultural Pobtrcs and Education New York Teachers College Press
Prefácio a edição de 1995 -
Grupos poderosos no seio do governo, da economia e dos movimentos
sociais "populistas autoritários" foram capazes de redefinir - frequen-
temente de formas retrógradas - os termos do debate em educação,
segurança social e outras áreas do bem comum. A educação já não era
vista como parte integrante de u m aliança social que congregava mui-
tos professores, grupos minoritarios, activistas da comunidade, legisla-
dores progressistas, entidades governamentais e outros que actuavam
conjuntamente no sentido de propor [limitadas] políticas sociais demo-
cráticas para as escolas (por exemplo, expansão das oportunidades
educativas, tentativa de igualar os resultados, desenvolvimento de pro-
gramas especiais em educação multicultural e bilíngue, etc.). Formou-
-se uma nova aliança com u m poder cada vez maior nas políticas
sociais e educativas. Esfe bloco de poder combina negócios com ã\
nova direita. com intelectuais neoconseruadores e com uma facção 1
particular da nova classe média orientada para a gestão. Os seus inte-
resses são cada vez menores em relação as oportunidades das mulhe-
res, pessoas de cor ou trabalho. Obviamente que estes grupos não se
excluem mutuamente. Pelo contrário, procuram providenciar as con-
dições educativas tidas como necessárias, quer para o aumento da
nossa competitividade internacional, lucro e disciplina, quer para nos
fazer regressar a u m passado "ideal" e romantizado da casa, família e
escola.
Essencialmente, a nova aliança a fauor da restauração conservadora
integrou a educação numa rede de compromissos ideológicos muito
mais amplos. Esfe grupo de objectivos na educação são os mesmos que
serviram de orientação aos objectivos da segurança social e económica.
Incluem a expansão da dita ficção eloquente, do "livre mercado" - a
redução drástica da responsabilidade do governo quanto as necessida-
des sociais, o reforço de estruturas de mobilidade profundamente com-
petitivas, a redução das expectativas das pessoas em relação a segu-
rança económica e a popularização daquilo que é explicitamente uma
forma de pensamento darwinista, como sugere explicitamente a
recente popularidade do livro de H e m t e i n e Murray The Bell C u r ~ e . ~

Apple Michael(1993) Off~cia/knowledge Democratic Education m a Conservative Age New York Routledge
Herrnstein, Richard e Murray, Charles (1994) The Bell Curve New York Free Press O financiamento desta obra efectuado
por fundações de direita necessita de muito maior atenção Foram disponibilizados consideraveis recursos financeiros para a
oublicidade da obra e para que o autor (Herrnstein 16 faleceu) pudesse difundi-la viajando pelo pais aparecendo nas
cadeias de rddio televisáo e imprensa escrita
A direita política nos Estados Unidos da América do Norte tem tido
enorme sucesso na mobilização de apoios contra o sistema educativo e
seus empregados, exportando frequentemente a crise da economia para
as escolas. Assim, uma das suas grandes conquistas tem sido desviar as
culpas - do desemprego e subemprego, da perda de competitividade
económica, da suposta ruptura dos valores e padrões "tradicionais" na
escola, na família e nos locais de trabalho assalariado e não assala-
riado - dos efeitos das políticas económicas, culturais e sociais dos gru-
pos dominantes para a escola e outras agências públicas. O '>público" é
agora o cenfro de todos os males; o "privado"é o cenfro de tudo aquilo
que é bom.8 1

Infelizmente, os elementos significativos desta reestruturação rara-


mente constam na discussão das agendas das comunidades críticas e
"progressistas" no seio da própria educação, especialmente entre
alguns (nem todos) daqueles que se viraram para o pós-modernismo e
pós-estruturalismo de um modo acrítico. Esta viragem torna importan-
tes a maior parte dos argumentos de educação e poder acerca do con-
texto social e político da educação.
O que poderei dizer neste novo prefácio é ainda uma hipótese, mas
responde a algumas das minhas intuições que o que está em questão
não é propriamente a significativa fúria e tormenta relacionada com as
políticas de uma forma de análise textual sobre outra, ou mesmo se
deveríamos ou não ver o mundo como um "texto" - construído discur-
sivamente.
"Nós"podemos estar a perder alguns dos argumentos mais importan-
tes gerados pela tradição crítica, quer no campo da educação, quer
noutras áreas.
Espero que o que acabei de dizer anteriormente não soe como se se
tratasse de u m desreconstruído stalinoid (tanto mais que passei muito
tempo da minha vida a escrever e a falar sobre as tendências redutoras
no seio das tradições marxistas). Simplesmente quero que nos relem-
bremos da imperiosa necessidade de compreensão - não essencialista -
das relações (admitidas como muito complexas) entre a educação e
algumas das relações de poder que urge considerar e que, no entanto,
I
parecem estar u m tanto ou quanto esquecidas.

Este assunto 6 discutido com muito mais detalhe em Apple, Michael (1996). Cultural Politics and Education. New York:
Teachers College Press I
Prefacio a edição de 1995 s

i O crescimento das múltiplas posições associadas ao pós-modernismo


, e pós-estruturalismo é poderoso e importante. É indicador da transfor-
mação do nosso discurso e das nossas compreensões sobre a relação
entre cultura e poder. A rejeição da cómoda ilusão de que pode (e deve)
haver uma grande narrativa sob a qual todas as relações de dominação
devem ser subassumidas; a focalização no "micronível"como parte do
político; o relevo das totais complexidades do nexo poder-conheci-
mento; a extensão das nossas preocupações políticas para além da
"santíssima trindade" de classe, género e raça; a ideia de um sujeito
descentrado onde a identidade é simultaneamente móvel e o local de
lutas políticas; a focalização na política e práticas de consumo e não
apenas de produção - tudo isto tem sido importante, muito embora,
para dizer o quanto baste, extremamente problemático.
Todavia, com o crescimento da literatura pós-moderna e pós-estrutu-
ral na educação crítica e estudos culturais tendemos a afastar-nos com
alguma celeridade das tradições que continuam a encher-se de vitali-
dade e que fornecem contributos pertinentes a natureza do currículo e
da pedagogia que dominam as escolas a todos os níveis. Assim, por
exemplo, o simples facto de que a classe social não consegue explicar
tudo pode ser utilizado para negar o seu poder. Isto é um erro crasso.
Claro que a classe é uma construção analítica, bem como uma série de
relações que existem fora das nossas mentes. Deste modo, o que enten-
demos por classe e o modo como é mobilizada como categoria necessi-
tam de ser continuamente desconstruídas e repensadas. Assim, devemos
ser extremamente cuidadosos sobre quando e como a utilizamos, reco-
nhecer devidamente as múltiplas formas em que as pessoas se formam.
Todavia, e mesmo perante isto, será errado assumir que isso signifigue
que a classe se dissipou devido ao facto de muitas pessoas nüo se identi-
ficarem ou não actuarem de acordo com teorias que relacionam, diga-
mos, identidade e ideologia com a posição de classe de cada um."
Tal como referi anteriormente, estou perfeitamente consciente do
facto de existirem múltiplas relações de poder e não apenas a "antís-
sima trindade" formada pela raça, classe e género. Reconheci também
a pertinência dos conflitos, não apenas entre estas relações, mas tam-

'Vrde Clarke John (1991) New T,mes, Old Enemres London Harper Collins and Steven Best and Douglas Kellner
(1991) Postrnoderntheory London MacMillan
'%ronowitz Stanley (1 992) The Poht~csof ldentiry New York Routledge

11
bém no seu próprio seio. Em outros livros abordo estas questões de u m
modo consideravelmente mais pormenorizado. Educação e Poder tende
a colocar maior ênfase na complicada dinâmica de classe. Muito
embora não esteja totalmente de acordo com Philip Wexler, que afirma
que nas escolas e na sociedade em geral a diferença de classe é o código
supremo de organização da vida social," encontro-me profundamente
preocupado pelo facto de as questões de classe se encontrarem margi-
nalizadas do trabalho crítico na educação. Levou muito tempo para
que questões relacionadas com classe e economia política se impuses-
sem no foro da nossa compreensão sobre as políticas e práticas educa-
tivas que seria uma circunstância trágica se as mesmas fossem agora
marginalizadas, ainda por cima numa altura em que urge uma com-
preensão integral destas dinâmicas. A ofensiva económica e ideológica
neoliberal que se espalha por todo o mundo demonstra o quão impor-
tante é termos em consideração estas dinâmicas.
O mesmo se deve afimar sobre a economia. O capitalismo pode
encontrar-se em transformação, mas continua a existir como uma
força massiva estruturante. Muitas pessoas podem não pensar e actuar
de acordo com teorias essencialmente classistas, contudo, tal não signi-
fica que as divisões de raça, sexo e classe sobre o trabalho assalariado e
não assalariado tenham desaparecido; nem tão-pouco significa que
relações de produção (quer económicas quer culturais, uma vez que o
modo como as pensamos pode ser diferente) possam ser ignoradas se
nos debruçarmos em relação a elas de modos não essen~ialistas.'~
Tenho vindo a afirmar tudo isto porque há perigos reais nos estudos
educa tivos críticos. Enquanto assistimos a uma grande e necessária
vitalidade ao "nível" da teoria, uma considerável parte da investigação
crítica tem sido frequentemente passageira. Desloca-se rapidamente de
teoria em teoria assumindo, aparente e habitualmente, que quanto
mais difícil se toma compreender algo, ou quanto mais se apoiar sobre
a teoria cultural europeia (preferencialmente a francesa), melhor será.
A rapidez deste movimento e a sua apropriação parcial por uma frac-
ção móbil e em ascensão da nova classe média no seio da academia -
tão predisposta a mobilizar os seus recursos culturais no interior do

" Wexler. Philip (1992) Becorn/ng Sornebody New York Falmer Press. p 8
" Paraurna discussao mais aprofundada sobre estas questões. wde Apple. Michael (1996) Cultural Pobtics and Educa-
m n New York Teachers College Press
7
Prefacio a edição de 1995

status hierárquico da universidade, que perdeu fudo excepto a relação


. retórica com as lutas contra a dominação e subordinação das universi-

',
I dades, escolas e outros locais - têm como um dos seus efeitos a nega-
1 ção das conquistas conseguidas noutras tradições ou o recomeço des-
sas conquistas numa nova linguagem. Ou pode, na verdade, retroceder,
como numa reapropriação, digamos, de Foucault, em apenas outro (de
1I algum modo mais elegante) teórico do controlo social que e um con-
ceito a-histórico e descredibilizado que nega o poder dos movimentos

'4 sociais e agentes históricos." Infelizmente, na corrida ao pós-moder-


nismo e pós-estruturalismo, muitos de nós esquecemo-nos como são
extremamente importantes as dinâmicas estruturais em que participa-
mos. No decorrer do processo um desapego cínico pode ter substituído
a nossa capacidade de nos revoltarmos.
Pretendo sublinhar novamente que partes significativas daquilo que
por vezes e designado por abordagens "pós"são pertinentes e merecem
uma atenção cuidada, particularmente as que se debruçam sobre as
políticas de identidade, nas múltiplas relações contraditórias de poder,
I nas análises não redutoras e no local como espaço importante de luta.
Estas posições não só me ensinaram como continuam ainda a ensinar-
-me bastante.14Todavia, algumas destas posições, tal como têm vindo a
1 ser introduzidas na educação, fazem-me simplesmente pasmar face ò
sua arrogância estilistica, ao estereótipo que efectuam de outras abor-
dagens, a sua certeza concomitante de que têm "a" solução, as suas
propostas cínicas divorciadas de qualquer acção por parte das escolas,
a sua aparente problematização de que qualquer focalização séria na
economia é de certo modo redutora, as suas confusões conceptuais e
finalmente a sua tendência retórica que quando descodificada revela
questões, certa forma do domínio do senso comum que os educadores
reflexivos já sabiam e realizam há anos. Pretendo antecipar-me e
acrescentar que fudo isto que tenho vindo a referir e valido apenas
para uma parte das abordagens pós-modernas; no entanto, fudo isto
dá-me razões para preo~upação.'~

l3 Wde Zipin Lew (1 995) Emphasizing 'Dixourse' and Bracketing 'Foundations' The Ouesnon of Agencyin CriticalTheories
and School Research unpiibished paper, Department of Educational Policy Studies, University of Wisconsin Madison
' V i d e Apple Michael (1996) Cultural Pohtics and Education New York Teachers College Press
Wde Apple Michael (1994) Cultural Capital and Official Knowledge In Carey Nelson and Michael Berube (eds ), Higher
Educanon Under Fire New York Routledge pp 91 97 Digo abordagens porque 6 muito facil estereotipar as teorias
p6s-modernas e pos-estruturais E infeliz faze-10. uma vez que as diferenças politicas. por exemplo. entre as varias ten-
dências associadas a cada um são frequentemente substanciais

13

A
Desta forma, existe uma linha muito ténue entre as transformações
políticas e conceptuais necessárias e as tendências. Infelizmente, a
última aparece por vezes como uma apropriação relativamente acrítica
do pós-modernismo por parte de alguns teóricos da educação. Por
exemplo, existem certamente planos (demasiados) para transformar as
escolas em forças de mercado, para diversificar tipos de escolas e facili-
tar aos "consumidores" uma maior escolha. Alguns podem argumentar
que isto é o "equivalente educacional do... emergir da especialização
flexível em detrimento da velha linha de montagem de produção mun-
dial massiva conduzida pelos imperativos da diferenciação de consumo
em vez da produção massi~a".'~ Certamente que isto envolve em si uma
perspectiva pós-modema.
Ainda, tal como muitas das novas reformas que têm vindo a ser pro-
postas, nesses planos existe menos "pós-modernismo" do que é óbvio.
Muitas delas têm uma imagem "muito requintada". Como salientam
Whitty, Edwards e Gewirtz, são habitualmente orientadas por "uma
acentuada crença na racionalidade técnica como plataforma para a
resolução dos problemas sociais, económicos e educativos". A especiali-
zação é tão poderosa, ou provavelmente mais poderosa, como qualquer
preocupação com a diversidade." Em vez de uma exposição da "hetero-
geneidade, pluralismo e do local"- embora estas questões possam ser as
formas teóricas através das quais algumas destas reformas se encon-
tram envolvidas - podemos eventualmente vir a assistir a uma revivifi-
cação de hierarquias mais tradicionais de classe e género e especial-
mente de raça. Um compromisso inquestionável com a noção de que
"nós" nos encontramos actualmente completamente envolvidos num
mundo pós-modemo pode facilitur a visão de transformações superfi-
ciais (algumas delas encontram-se, sem dúvida, a suceder), embora
possa dificultar também o reconhecimento de que tais transformações
se podem constituir em novas formas de reorganizar e reproduzir velhas
hierarquias.'" facto de o pós-modemismo, como teoria e como con-
junto de experiências, poder não ser aplicado a esmagadora maioria da
população mundial deve também fazer-nos reflectir u m pouco mais .I9

Ib

lg

14
Whitty. Geoff; Edwards. Tony; Gewirtz, Sharon (1994). Specialfzationand Choice in Urban Education. New York: Rou-
tledge, pp. 168-169.
" lbid., pp. 173-174.
"Ibid., pp 180-181
Vide discussão crucial sobre esta questão em Said, Edward (1993). Culture and Imperialism. New York. Vintage.

I
Prefacio à edição de 1995

Educação e Poder baseia-se em grande parte numa crítica (e autocrí-


- fica) estrutural a compreensão da educação. Embora não seja econo-

1 micamente redutor, implica que reconheçamos que vivemos debaixo de


relações capitalistas. Milton Friedman e todo o vasto espectro de priva-
tizadores com influência nos media e nos corredores do poder - salas
de reuniões da direcção, fundações e o nosso governo, a quase todos os

I
níveis - despendem quantidades consideráveis de tempo na manuten-
ção destas relações. Se eles podem falar sobre elas por que razão nós
não podemos? Estas relações não determinam tudo. Elas são constituí-
das e reconstituídas a margem das relações de raça, classe e género, no
entanto, parece u m tanto ou quanto estranho ignorá-las. Existe uma
enorme diferença entre levar a sério as lógicas e as dinâmicas econó-
micas e do Estado e reduzir tudo a uma ténue reflexão sobre elas.
Tal como refiro em Cultural Politics and Education, estou profunda-
mente consciente de que existem muitos perigos numa abordagem
estrutural deste género, independentemente do grau de flexibilidade
que se consiga estabelecer. Como parte das suas tentativas históricas
para a criação de uma "enorme narrativa", tem uma teoria que tudo
explica baseada numa causa unitária. Pode também esquecer que não
existem apenas relações de poder múltiplas e contraditórias, tanto ao
nível "macro" como ao nível "micro" e m quase todas as situações,
como também se esquece que o investigador ou a investigadora parti-
cipa nessas mesmas relações.20Finalmente, as abordagens estruturais
podem negligenciar as formas a partir das quais os nossos discursos
são construídos, e elas próprios ajudam-nos a construir as nossas
acções e, inclusive, as próprias relações de poder que estão a ser inves-
tigadas. Estas questões devem ser encaradas seriamente. As críticas
pós-estruturais e pós-modernas das análises estruturais da educação
têm sido frutíferas neste pormenor, especialmente as que provêm das
várias comunidades feministas e pós-c01oniai.s.~' Todavia, deve ser
salientado que algumas destas críticas criaram caricaturas ampla-
mente inadequadas das tradições neomarxistas.

" Vide: Lesley. Roman; Apple. Michael (1990). "1s Naturalism a Move Away from Positivism?".In Elliot Eisner and Allan
Peskin (eds.), Quahtative Enquiry in Education. New York: Teachers' College Press, pp. 38-73; e Andrew Gitlin (ed )
(1994). Power and M t h o d . New York: Routledge.
" McCarthy, Cameron; Chrichlow, Warren (eds.) (1993) Race, Identity, and Representation in Education. New York:
Routledge
Embora a "viragem linguística': tal como tem sido denominada em
Sociologia, Educação e Estudos Culturais, tenha sido profundamente
produtiva, é importante não esquecer que o mundo dentro e fora da
educação não é apenas u m texto. Existem realidades poderosas, reali-
dades essas cujo poder se baseia frequentemente em relações estrutu-
rais que não são apenas construções sociais criadas pelos significados
transmitidos por u m obserttador. Parece-me que parte da nossa tarefa é
evitar perdermos a perspectiva destas realidades profundas na econo-
mia e no Estado (e, tal como terão oportunidade de verificar mais
adiante neste livro, nas práticas culturais) e, ao mesmo tempo, reco-
nhecermos os perigos de análises redutoras e essencialistas.
O meu objectivo não é negar a existência de muitos elementos da
')os-modernidade", nem tão-pouco negar a perspicácia da teoria pós-
-moderna. Pelo contrário, é precisamente para evitar o exagero, evitar
a substituição de uma grande narratiua por outra. (Uma grande narra-
tiva baseada na classe nunca existiu nos Estados Unidos da América,
uma vez que classe, Estado e economia política só muito recentemente
surgiram no saber educativo crítico e muito raramente tem sido uista
nas formas encontradas na Europa, onde foram desenvolvidas a maior
parte das críticas pós-modernas e pós-estruturais destas ferramentas
explanatórias. Será útil recordar que as histórias intelectuais e políti-
cas dos Estados Unidos da América eram muito diferentes daquelas
que eram punidas por alguns críticos pós-modernos.) As análises redu-
toras tornam-se fáceis e não há nenhuma garantia de que as posições
pós-modernas, tal como têm vindo a ser utilizadas por alguns na
educação, não são mais imunes a este perigo do que qualquer outra
posição.
Para tornar esta questão mais polémica, e tal como Green e Whitty,
poderíamos dizer que u m dos grandes problemas sobre o qual a análise
crítica da educação se deveria debruçar não é apenas "a significação e
as suas [supostas] fundamentações não existentes, tal como, pelo con-
trário, pretenderiam os pós-estruturalistas, mas a acção e suas conse-
quências, particularmente a estruturação de oportunidades de actua-
çüo, incluindo significar e construir significados, como acção.22

=úreen. Tony: Whitiy. Geoff (1994). "The Legacy of the New Sociology of Education'. ARigo n a publicado apresen-
iado na Amercan Educational Research Associaton. New Orleans, April 4, p. 21
Prefácio a edicão de 1995 "

Neste pormenor estou de acordo com as intuições subjacentes a afir-


mação de Green e Whitty de que 'hs condições estruturais não podem
ser pensadas apenas de modo 'linear e simples: antes devem ser pensa-
das com 'profundidade' de modo a serem 'postas em acção', e o nosso
pensamento jamais será adequado a tarefa em causa'tZ3Esta é uma
das razões que me levaram a escrever Educação e Poder - pensar "com
profundidade" sobre as complicadas condições estruturais e culturais
que envolvem as escolas, descobrindo as fraquezas destas condições e,
desta forma, encontrar espaços para a acção crífica.
Em parte, o que me leva a fazer isto é uma questão autobiográfica,
uma vez que nenhum autor é imune a sua própria história e contex-
tualização social. Como alguém que cresceu num meio familiar de
uma classe trabalhadora numa cidade extremamente pobre, foi u m
activista na luta pelos direitos humanos, frequentou a escola nocturna
para ser professor em escolas do centro da cidade e, for fim, tomou-se
presidente de u m sindicato de professores, tenho u m determinado tipo
de revolta dentro de mim. Fico revoltado quando vejo deteriorarem-se,
ano após ano (mês, semana, dia, minuto?), as condições de tantas pes-
soas identificáveis nesta sociedade. Fico revoltado quando vou as esco-
las e vejo os meus amigos a darem aulas em "halls" de entrada, em
quartos de arrumos, e, inclusive, em casas de banho. Que género de
sociedade pode fazer isto as suas crianças? E fico também furioso
quando grupos poderosos culpabilizam totalmente as escolas, educado-
res e activistas da comunidade que tanto se esforçam ou, como acon-
tece actualmente, a herança genética dos pais e das crianças2*- ou
seja, todos menos eles próprios - pelos resultados desastrosos das suas
políticas mal delineadas e ambiciosas.
Todavia, as pessoas normais não são "esmagadas". São actores, indi-
vidual e colectivamente, histórica e correntemente. Isto é parte da
mensagem que se encontra subjacente ao que tenho para dizer neste
livro. A nossa própria língua e perspectivas podem levar-nos a ignorar
estas questões, especialmente a linguagem da eficiência, as análises
custo-benefício, e o capital humano a direita e a linguagem que con-
cebe as pessoas como marionetas de forças estruturais ou como sendo

l3Ibid. p. 26
" Herrnstein and Murray. The Bell Curve
completamente formadas a partir dos "discursos" e, uma vez que não
têm qualquer tipo de agência própria, no seio de comunidades acadé-
micas mais "progressistas''.
De certo, é a linguagem anterior - a da burocracia, da colonização de
todas as nossas vidas pelas metáforas dos mercados, lucro, veredicto
dos contabilistas, etc. - a que mais amplamente circula. Conduz ao que
pode ser denominado como perda da memória, uma assunção de que
abordagens deste género foram e são instrumentalidades técnicas neu-
tras que, se entregues a si próprias, resolverão, e m última análise,
todos os nossos problemas nas escolas e na sociedade em geral (em ter-
I
mos de grupos dominantes, claro).
Tomemos como exemplo o fascínio actual com os sistemas de gestão
e redução de custos de forma a tomar-nos "mais eficientes e produti-
vos". Estas técnicas não são neutras. A eficiência, gestão burocrática,
modelos económicos aplicados a tudo - tudo isto são constructos éti-
cos. Adoptá-los envolve escolhas morais e políticas. A sua instituciona-
lização necessita de ser compreendida como uma instância de relações
culturais de poder. "Onde a origem dos acordos sociais em escolhas
I
IIi
políticas, culturais e morais desapareceu ou tende a aparecer como
uma questão técnica neutra, ... somos confrontados com uma situação
de hegemonia cultural e p~lítica."'~
Para estas formas de compreensão e organização se tomarem domi-
nantes, os que detêm o poder necessitaram de se empenhar num traba-
lho duro (e é e tem de ser trabalho duro, como este livro o demonstra)
de eliminação e marginalização de qualquer alternativa séria." É exac-
tamente isto que está a acontecer actualmente e é uma das razões que

I
me levam a desvendar as origens e o actual funcionamento das formas
predominantes de realizar a educação.
Bruce Curtis recorda-nos que:
"Nenhuma burocracia pode funcionar a não ser que aqueles que se lhe
encontram sujeitos adoptem atitudes, hábitos, crenças e orientações
específicas; atitudes em relação a autoridade, hábitos de pontualidade,
regularidade e consistência, crenças sobre a natureza abstracta e a legi- b
timidade de autoridade e de especialidade: orientações quanto a regras

25 Curt~s,Bruce (1992). True Governrnent by Choice Men?. Toronto: University of Toronto Press, p. 175
'' Ibid.
Prefácio a edição de 1995 '

e procedimentos. Estas atitudes, hábitos, crenças e orientações não


- emergem de uma necessidade técnica; são o produto de conflitos com-
''
plexos e prolongados."
I
Estas considerações são centrais aos argumentos encontrados em
Educação e Poder. A obra foca um determinado número de realidades
que simultaneamentegeram e são geradas por estes conflitos.
Assim, as relações de domínio e as lutas necessárias contra essas
relações não são abstracções teóricas, algures numa esfera irreal desli-
gada da vida do dia-a-dia. Pelo contrário, baseiam-se e constroem-se a
partir de uma abrangente cadeia de relações e práticas culturais e
sociais do dia-a-dia.'* O domínio depende tanto da liderança como da
legitimação. Não é simplesmente uma imposição, e este facto e uma
parte crucial da minha análise aqui. Segundo as palavras de Curtis, o
domínio repousa também parcialmente num "elemento de obrigação
moral entre líderes e liderados, através do qual ambos interiorizam e
compreendem as relações de domínio ". Tal obrigação "não implica
uma simples aceitação mas, pelo contrário, oferece um conjunto de
justificações para relações políticas e define os limites de domínio legí-
timo". Por esta razão, e para que uma liderança política, económica e
cultural tenha sucesso, os que representam os grupos mais poderosos
da sociedade devem envolver-se num "trabalho intelectual" sério. Um
trabalho intelectual do genero implica a tentativa quer do relaciona-
mento de compreensões dominantes de uma determinada leitura da
história, quer da orientação de um "futuro melhor", caso o caminho
seguido a partir desta compreensão seja ad~ptado.'~
A título de exemplo, observemos os poderosos movimentos de hoje
relacionados com a "reforma"educativa, tais como os testes nacionais
e a mercantilização. As formas de compreensão subjacentes a estas
tentativas baseiam-se no discurso económico, como sendo a forma pri-
mária (única?) de agir no mundo. O caminho para um futuro melhor,
segundo nos é constantemente afirmado, implica a realização de cone-
xões mais restritas entre todas as nossas instituições sociais e culturais
e uma economia em crise, de forma a que "nos"tomemos mais compe-
titivos a nível nacional e internacional. Uma união contraditória e
parodoxal de políticas como as que existem na educação para o
emprego (com as quais iniciei este prefácio), controlo rígido sobre o
conhecimento oficial ou legítimo, e a "escolha" é tudo o que precisa-
mos para "avançar rumo ao século XXI". Todavia, quem é este "nós"
que será auxiliado por esta união de políticas neoliberais e neoconserva-
doras? Esta é das questões mais importantes u fazer, pois, como o
demonstro noutro local, tais políticas são largamente destrutivas,
tanto a nível nacional como a nível infemacional. Contudo, a ideia de
alterar o nosso senso comum para que a liberdade se equipare ao mer-
cado, para que o fracasso seja somente o resultado de erros individuais
e para que a democracia garanta pura e simplesmente ao indivíduo a
escolha entre produtos de consumo, tem tido bastante sucesso.30
Tudo isto ocorre claramente no seio de u m contexto económico. Con-
tudo, ao afirmar isto, quero ser cauteloso para não exagerar. De modo
algum, as condições causadas por este contexto são lineares ou unidi-
mensionais, uma questão que sublinho ao longo deste livro. Mas, igno-
rar este contexto como u m conjunto poderoso de forças que movem as
sociedades em determinadas direcções é viver num mundo divorciado
da realidade.
De acordo com as palavras do ex-primeiro-ministro britânico John
Major, vivemos numa sociedade que espera que "condenemos u m
pouco mais e que compreendamos u m pouco menos".31 Soltar o "livre
mercado" parece ser a solução. Se os pobres continuam pobres depois
de a sociedade ter sido radicalmente transformada em tomo "do pri-
vado", então, acreditamos que os pobres se tomaram pobres a maneira
antiga, isto é, porque o merecem. Caso não se tratasse de u m conjunto
de políticas deveras desastrosas, estas afirmações seriam hilariantes.
Ao abordar a extensão dos princípios do mercado na educação,
Stephen Ball salienta:
"O mercado oferece uma resposta poderosa a todo um conjunto de pro-
blemas técnicos, ideológicos e de gestão. Aparentemente confere poder
a todos os pais, embora sistematicamente favoreça uns em detrimento
de outros, reproduzindo efectivamente as linhas clássicas da divisão

Apple. Michael, Cultural Politics and Education.


'' Ball. Stephen J. (1994) Education Policy: A Criticaland PosPstruauralApproach Philadelphia: Open University Press. p. 13.
Prefácio a e d i ~ ã ode 1995

social e técnica do trabalho. Desempenha o seu papel na reformulação


da cidadania, a medida que o meio de consumo se generaliza.. . E serve
para generalizar a forma de mercadoria, um alicerce básico na constru-
ção da cultura e subjectividade ~apitalista.""~

No processo de mercantilização, revivifica-se a compreensão da


sociedade como um colectivo de posses individuais, sendo marginali-
zado qualquer sentido de bem comum. A nossa concepção de democra-
cia foi alterada de tal forma que a democracia jamais será vista como
um conceito político, mas sim como um conceito económico. A demo-
cracia reduz-se ao estímulo das condições de "escolha livre do consu-
midor" num mercado posto em liberdade.33O mundo torna-se num
vasto supermercado. A metáfora do mercado tem um sentido inverso,
uma vez que no mundo real do supermercado algumas pessoas têm
posses para irem ao supermercado comprar aquilo que pretendem
enquanto muitas, muitas outras pessoas permanecem fora do super-
mercado a olhar para as vitrinas e consumindo apenas com os olhos. A
medida que nos encaminhamos para uma economia bipolarizada, em
que cada vez mais se acentua o fosso entre ricos e pobres e em que as
paupérrimas condições nas cidades e zonas rurais deveriam ser motivo
de vergonha nacionaP4,assistimos a reinstalação da crença assente na
posse individual - o "consumidor" - como sendo a solução. O bem
comum de algum modo resolverá o problema.
Perante este quadro, deverá ser claro que em relação a estas questões
existe um projecto tanto cultural como económico. Um dos objectivos
da coligação de direita é separar a identidade nacional da origem e
etnicidade, dividir a história das políticas, e libertar a consciência
social da experiência social. Utilizando a linguagem do pluralismo e
invocando o leque integral das "escolhas do consumidor" num mer-
cado, na verdade, tem paradoxalmente como objectivo aquilo que
poderemos denominar por "despluralização': uma vez que articula
uma determinada visão de uma sociedade de consumidores sem clas-
ses, homogénea numa cultura comum e tran~cendente.~~

I
Ib~d..p. 1 O
33 Vide Apple, Michael. Officlal Knowledge, especialmente o capitulo 2.
"Analiso o quadro cruel dos benefícios diferenciadores da nossa economia em Apple. Michael. Cultural Politics and
Educat~on.capitulo 4
Ball. Education Reforrn, pp 6-7.
Esta última parte relacionada com o projecto cultural da direita é
importante. Não pretendo sublinhar a economia a custa das dinâmi-
cas e processos culturais e políticos, especialmente na discussão sobre
educação - u m campo que se encontra profundamente implicado nas
relações políticas e culturais de poder. De facto, Educação e Poder foi
escrito expressamente e m parte para contrariar as tendências econó-
micas e redutoras no seio de determinadas análises críticas sobre edu-
cação. Numa altura em que as relações capitalistas parecem tomar-se
cada vez mais poderosas, é fácil ser redutor. Deste modo, é cada vez
mais importante recordar que não podemos tentar atrofiar tudo numa
mera reflexão das relações económicas por razões conceptuais e poli-
ticas.
A educação possui na verdade u m grau significativo de "autonomia
relativa". Um dos perigos com que nos deparamos tem sido a tendência
de ignorar o espaço de manobra que a educação tem "no seio das com-
plexas formas institucionais do Estado, [economia] e cultura".36Isto é
particularmente verdadeiro para as teorias profundamente estruturais
que ignoram o papel do local, o contingente e as propensões indivi-
duais no respeitante ao que a escola faz.
A influência de tais circunstâncias contingentes podem ser verifica-
das, por exemplo, no tipo de pessoas que tendem a ser recrutadas na
administração escolar quando a centralização e burocratização emer-
giram inicialmente como projecto no século passado. Deixem-me dar
como exemplo a vida de u m antigo administrador escolar que se
encontrava profundamente envolvido na racionalização da educação,
colocando-a 'kob controlo".
Alguns dos que se encontravam profundamente comprometidos com
a "melhoria" das escolas através do recurso a u m rigoroso controlo de
prestação de contas (nas palavras de Foucault, o Estado como u m
todo) eram capazes de empregar o mesmo critério de eficiência, inclu-
sive, nas suas próprias vidas.
Dexter D'Euerado, u m apologista da autoridade centralizadora esco-
lar no Canadá, nomeado Inspector de Educação para a Região de Niá-
gara, em 1846, era u m verdadeiro modelo de eficiência. Sempre que se
sentava para comer uma refeição "colocava o seu relógio diante de si

'"reen and Whitty. Legacy of the New Sociology of Education, p 22

22
Prefácio à edição de 1995 &

para que pudesse controlar o tempo despendido a mastigar cada gar-


4
fada de comida".37(Se isto aumentava ou não o seu prazer culinário
não se sabe!)
Na verdade, Dexter D'Everado comia as suas refeições numa época
muito específica dentro e num contexto económico particular. No
entanto, a sua necessidade de aplicar as normas de eficiência inclusive
aos elementos mais mundanos do seu dia-a-dia - para não falar das
escolas - não pode ser completamente compreendida (se é que tal é
possível) reduzindo totalmente Dexter D'Everado a uma imagem refle-
xiva das realidades estruturais do seu contexto.
Há aqui uma tensão - se me permitem o uso de algumas expressões
da teoria social que estão fora de moda - entre estrutura e agência.
Relaciona-se com a necessidade de tentar compreender quer o contexto
social mais abrangente quer o contingente e as circunstâncias locais
do dia-a-dia dentro e fora das escolas. Neste livro tento estabelecer este
equilíbrio. Tal como tantos escritores, torno-me cada vez melhor ao
( fazê-lo ao longo dos anos; mas a tensão - e a minha intenção em lidar
com ela - encontra-se muito bem visível neste volume.
Educação e Poder faz parte de uma série de livros escritos pela
seguinte ordem: Ideology and Curriculum, Education and Power, Tea-
chers and Texts, Official Knowledge e Cultural Politics and Education?
Constroem-se uns nos outros. Contudo, cada u m tem a sua própria
existência como uma declaração do género de análises que entendo ser
I
crucial para a compreensão dos limites e das possibilidades de uma
educação crítica num mundo desigual.
Educação e Poder representa u m corte com as abordagens profunda-
mente estruturais para a compreensão do papel social e cultural da
escolaridade na sociedade. Desafia a imagem da escola como espelho
passivo, que se limita a reflectir as necessidades supostamente homo-
géneas dos grupos dominantes, fornecendo simultaneamente um qua-
dro honesto e nada romântico do poder de tais grupos. Também refuta
veementemente a visão das pessoas como marionetas cujas cordas são
puxadas fora do seu controlo possuindo sobre elas uma compreensão
muito pálida. O meu conceito operatório que atravessa todo o livro é a

" Curtis. True Government by Choice Men. p. 3.

I 38Apple, Michael (1979). Ideology and Curriculum. (2nd. ed. in 1990). New York. Routledge; Educat~onand Power
(1985 - Ark edition). Boston: Routledge. te ache^ and Texts (1988). New York Routledge; Offic~alKnowledge (1993).
New York: Routledge; e CulturalPolrtics and Education (1996) New York: Teachers College Press.
palavra-chave - contradição. As coisas são simultaneamente 3im" e
"não". De u m modo geral, esta foi uma das tematicas orientadoras de
todo o meu trabalho subsequente. Com efeito, a compreensão daquilo
1
com que me digladio em Educação e Poder coloca as obras seguintes
num contexto que faz com que as justificações das suas fundamenta-
ções individuais se tomem ainda mais claras.
Podem encontrar alguns paralelismos intrigantes entre aquilo que
argumento neste livro e as ênfases pós-modemas e pós-estruturais dos
discursos indicadores do nexo poder-conhecimento. Tais paralelismos
não devem constituir surpresa, uma vez que u m dos maiores elementos

I
da minha abordagem assenta na circulação e efeitos de uma determi-
nada forma de conhecimento e de discurso - aquilo que denomino por
conhecimento técnicoladministrativo. Isto é apenas u m exemplo atra-
vés do qual se intersectam a minha abordagem neogramsciana e algu-
mas teorias pós-estruturais. Assim, tal como mencionei anteriormente,
embora tenha um misto de preocupações e respeito em relação a muitos
atributos de algumas teorias pós-estruturais, penso que a minha análise
neste livro permite uma investigação mais situada de muitas das raízes
e efeitos deste discurso mantendo-o no seu contexto estrutural.

1
Outros paralelismos podem ser também óbvios. A minha focalização
quer no contexto técnico-administrativo quer no Estado numa época de
crise ilustra uma semelhança importante com o trabalho de Habermas,
tanto nas relações entre comunicação e poder como na legitimação da
crise do Estado. Além do mais, os leitores envolvidos com os estudos cul-
turais reconhecerão como grande parte da analise efectuada nesta obre se
relaciona também com essa área. Finalmente, os leitores familiarizados
com a história do trabalho e com a história do profissionalismo encontra-
rão correlações entre a minha análise de ensino como u m processo de
trabalho complexo e a questão que se relaciona com o que se esta a pas-
sar com o trabalho assalariado e com o profissionalismo, em geral.
Claramente, deu-se uma viragem no ensino passando-se do que Roger
Dale denominou por "autonomia 1icenciada"para uma "autonomia regu-
lada':39Na anterior conferiam-se credenciais as pessoas, gozando estas de
uma determinada liberdade face ao controlo burocrático ou do Estado.
I
I

Na última, o controlo e a interuenção estão presentes e tomam-se visíveis ,

39 Dale, Roger (!989). The State and Education Policy. Phiiadelphta- Open University Press

24
I
I
Prefacio a edição de 1995

ao longo da vida quotidiana e práticas individuais mesmo que possuam


credenciais apropriadas. A anterior baseia-se na confiança e na auto-
-regulação; a última apoio-se na desconfirmça e no discurso de monitori-
zação e orientação. Poderia ter abordado esta questão em termos foucaul-
tianos (embora quando este livro foi escrito Foulcault fosse pouco visível);
contudo, reflectindomais sobre esta questão, a.9ora perderia muito do que
é importante acerca de como os professores trabalham.
Qualquer autor ou autora coloca u m ponto final na última frase do
livro que acabou de escrever não apenas com alívio mas tremendo.
Todos os livros são - ou deveriam ser - rotulados com a seguinte frase
"te uma próxima ocasião ou "temporariamente"com letras garrafais
"

nas capas. Há sempre mais para ser dito. Há sempre silêncios que só se
tomam visíveis mais tarde ou são empurrados para notas de rodape.
De u m maneira geral, os livros escrevem os autores tal como os auto-
res escrevem os livros. É, certamente, o caso deste livro. É necessário
dizer muito mais acerca de tantos tópicos - acerca do facto de o Estado
se rever no genero, raça e classe, acerca das dinâmicas do poder que
envolvem a sexualidade e "capacidade': acerca das lutas dentro e fora
da cultura popular, acerca das realidades complicadas que envolvem a
vida dos professores e alunos, e muito mais. Formei-me e reformei-me
no processo de escrita deste livro, e formei-me e reformei-me com os
comentários críticos e de apoio que continua a gerar.
Como afirmo numa entrevista publicada em anexo no livro Official
Knowledge, escrever Educação e Poder foi u m acto político que exigiu
que me envolvesse ainda mais nas lutas políticas e educativas que se
iam clarificando a medida que escrevia o livro. Devo confessar que des-
, confio dos escritores no campo dos estudos críticos cuja maior acção
política é colocarem a caneta no papel ou o dedo no teclado. As pala-
vras são clarificadas por actos. Participar numa vasta gama de activi-
dades políticas nas escolas e na sociedade, em geral (onde a escrita é
apenas uma), é um forma maravilhosa de clarificar a mente de cada
um, mantendo-se honesto em relação ao trabalho.
Reconhecer a qualidade "temporária" do nosso trabalho e saber que
poderá não ser possível ter certezas acerca das políticas correctas não
deve (nem pode) afastar-nos de actividades deste género. O cinismo

i
pós-modemo em nosso redor é mais do que suficiente e, ao mesmo
tempo, o triunfalismo conservador suja o campo com a consequência
trágica das suas tendências arrogantes.
25

--
Decidi manter o texto da edição de 1985, com o seu prefácio original,
- não propriamente por ser perfeito (certamente não é), ou porque as

condições então descritas permanecem estáticas (certamente que não).


Pelo contrário, as questões básicas da análise parecem-me poderosas.
De facto, dadas as condições degradantes em que vivem (a palavra exis-
tir é aqui melhor aplicada) tantas pessoas por esse mundo fora, dado
u m poder cada vez maior a ênfase nas ~oluções"orientadas pelo mer-
cado e modelos industriais, não só na educação, como também em
todas as instituições da sociedade e, ainda, dadas as propostas radicais
de uma reestruturação educacional e social provenientes da direita, a
análise aqui apresentada continua a providenciar contributos impor-
tantes nas dinâmicas sociais do trabalho, seus perigos e sobre aquilo
que poderá ser feito acerca destas questões.
Na verdade, determinadas tendências pioraram. O controlo da con-
duta dos professores na sala de aulas atingiu tais extremos que em
alguns estados [dos Estados Unidos da América] modelos específicos de
instrução - por exemplo, a abordagem racionalista de Madeline Hunter
- tomaram-se compulsivos. Ao mesmo tempo, a influência do capital e

a sua lógica transformadora de conforto atingiram, de u m modo ainda


mais agressivo, a sala de aulas. O Canal I, u m canal de produção e
difusão de notícias que inclui dois minutos de anúncios, é actualmente
visto por cerca de 40% de todos os alunos das escolas preparatórias e
secundárias nos Estados Unidos da América do Norte. Assim, os distri-
tos escolares que se encontram debaixo de uma grande pressão fazem
uma espécie de "pacto com o diabo". Como compensação pelo equipa-
mento de vídeo que de outro modo apenas com muitas dificuldades
teriam acesso, vendem os alunos as estações de televisão como sendo
uma audiência fiel.$'
De modo semelhante, a ênfase neoliberal e m fazer do mundo u m
vasto supermercado para que tudo - mesmo os nossos estudantes -
possa ser comprado e vendido com fins lucrativos gerou u m movi-
mento crescente pelos planos "voucher" e "choice". Embora critique
este movimento e m Educação e Poder, tomou-se cada vez mais claro,
durante os últimos 10 anos, que o efeito final de reformas educacionais

" Vide esta discussão em Apple, Michael. Off~cralKnowledge. capítulo 5


26
Prefácio a edição de 1995 '

deste género consistirá na criação de uma espécie de "apartheid " edu-


cativo, desastroso para os filhos dos pobres e desfavore~idos.~'
Além do
mais, a pressão para estabelecer um controlo ainda mais centralizado
sobre os fins e meios da educação através de u m currículo e testes
nacionais - sob o pretexto da eficiência e da prestação de contas - irá
de cerfa forma enfraquecer as conquistas de mulheres, indivíduos de
cor e tantos outros que construíram os seus currículos e escolas mais
adequados com as suas culturas, hisfórias e dia-a-dia." ''O conheci-
mento oficial" recuará a medida que a restauração conservadora
aumenta a sua velocidade.
Finalmenfe Educação e Poder presta atenção especial ao modo como
o conhecimento nos nossos dias é utilizado como mercadoria por parte
da nossa economia. É cada vez mais óbvia a integração da vida univer-
sitária no projecto industrial, com tudo u m conjunto de efeifosprofun-
dos. O que conta como conhecimento importante é cada vez mais defi-
nido como apenas o conhecimento que é técnica e economicamente
'~rodutivo".Tudo o resfo constituirá um bom trabalho se o conseguires
atingir, mas "não é relevanfe". Todas estas questões precisam de ser
colocadas num contexto político e ideológico emergente das conquistas
/ da direita e da direita radical a muitos níveis do governo dos Estados
Unidos da América e de outros países.
Não digo tudo isfo com qualquer tipo de alegria. Muito embora alguns
aufores tenham algum prazer (talvez perverso) quando determinados
, acontecimentos que haviam previsto se concretizam de um modo tão ou
quase catastrófico como perspectiuaram, o facto de tais acontecimentos
terem realmente acontecido deve alertar-nos para a imporfância das
relações complexas entre educação, cultura, economia e Estado.
No enfanto, e não obstante todas estas questões, é ainda claro que
mesmo nestas condições administradores e professores progressistas,
activistas da comunidade e outros têm sido capazes de construir
importantes coligações para desafiar as políticas e práticas educafivas
dominantes. Tal como James Beane e eu mesmo demonstrámos no
livro Democratic Schools~,não só existe um grande número de indiuí-

4' Vide: Apple. Michael. Cultural blitics and Education. capltulo 2 .


Para um exemplo desta pedagogia nde: Ladson-Billings, Gloria (1994) The Drearnkeepers. San Francisco: Jossey-Bass.
43 Apple. Michael; Beane. James (eds.) (1995). Dernocratic Schools. Washington Association for Supewision and Curricu-
lum Development.
duos comprometidos que não se encontram "esmagados" com o que se
está a passar, como ainda rededicam - e com muito sucesso - as suas
vidas a construção e defesa de uma educação digna do nome, social-
mente justa e providente. As suas hisfórias transcritas no livro Demo-
cratic Schools revelam-se como testemunhos eloquentes de que não só
existe espaço para u m trabalho crítico e criativo, como também tal fra-
balho pode ser imediatamente iniciado e expandido em escolas e comu-
nidades verdadeiras.44
I
O que é espantoso acerca das histórias reveladas em Democratic
Schools é a coragem inabitual que tais educadores demonstram no seu
dia-a-dia. Da mesma forma que são retratadas professoras acfivistas na
obra I Answer With My Lifed5de Kathleen Case.y, professores, adminis-
tradores, alunos e membros da comunidade dessas escolas recusam-se
a permitir que as difíceis restrições financeiras, a natureza burocrática,
frequentemente inflexível, de muitos sistemas educativos, as inúmeras
pressões e exigências sociais sejam instituídas nas escolas ou os inten-
sos ataques ideológicos provenientes da aliança conservadora se intro-
metam no caminho para a construção de uma educação apoiada numa
ética de assistência, de comunidade, de justiça social e de alfabetização
crítica.
Muito embora não devamos ser românticos sobre estas possibilida-
des, elas mantêm-se todavia como poderosos mecanismos para nos
chamar a atenção sobre aquilo que pode ser conseguido mesmo
durante um período de crise.
É aqui que se inicia Educação e Poder. Na crise.

MichaeI W. Apple

Mde também Smith. Gregory (ed.) (1994). Public Schools that Work. New York Routledge
Casey, Kathleen (1993) IAnswer Wfth My Lffe New York Routledge
Tendo em vista o enorme destaque dado ao sistema educativo por
parte dos "media", das comissões nacionais, na política e no nosso
dia-a-dia, seria mesmo uma pena se nos deixássemos envolver de tal
maneira na corrida desenfreada pela "excelência" (um slogan com
múltiplos significados e afiliações ideológicas) que negligenciássemos a
necessidade de continuar a formular questões cruciais sobre o que
fezem as escolas. Qual é a relação entre a educação e a sociedade mais
riasta? Quem mais beneficia em última instância das formas através
das quais as escolas e as práticas curriculares e de ensino no seu seio se
encontram organizadas? Estas questões são fáceis de formular, con-
tudo, dificeis de responder. Educação e Poder e mais u m passo no meu
próprio objectivo de considerar o mais seriamente possível quer as ques-
tões quer as respostas.
Educação e Poder e uma continuação autoconsciente da obra Ideolo-
gia e Currículo1. Inicia-se no ponto em que esta última termina, procu-
rando explorar as estruturas e as relações na educação, na economia,
na política e na cultura que não só controlam como também permitem
o desenvolvimento de uma actividade mais frutífera e mais democrá-
tica. Sob vários aspectos, Educação e Poder e u m livro mais optimista
que Ideologia e Currículo. Não é que não pense que as condições não
sejam mas em muitas escolas, nos postos de trabalho remunerados e
não remunerados de tantos homens e mulheres, etc. Tal como o
demonstra o capítulo 1, subjacente aos dados estatísticos optimistas
provenientes de Washington, há, na realidade, uma outra realidade
caracterizada por uma desigualdade crescente, por níveis assustadores
de pobreza e por uma crise emergente.
Convem recordar, por exemplo, que mais do que u m em cada sete
norte-americanos vivem na pobreza, bem como uma em cada cinco
crianças. Estes números não têm diminuído: têm aumentado inexoravel-
mente dadas as políticas no plano económico, social, militar, da saúde,
- -

I Apple, Michael W. (1979). Ideology and Curriculum. New York: Routledge & Kegan Paul.
da educação conduzidas pelo Governo actual. Com efeito, dirigimo-nos
para aquilo que se denomina por "picoduplo" da economia a medida que
os números nos extremos vão aumentando2. Isto é comprovado através
da suposta "recuperafão" económica actual. Marginalizou milhões de
pessoas. Implicou que muitos daqueles que encontraram emprego, e à
medida que se reduzia a taxa de desemprego para "níveis mais aceitá-
veis" (aceitáveis para quem? Naturalmente que são inadmissíveis para
milhões de desempregados e subempregados) fossem obrigados a aceitar
salários e condições de trabalho significativamente menos seguros que
os anteriores. De igual modo se constatou uma tentativa continuada de
desmantelar programas vitais para as áreas da educação, da saúde e
bem-estar social de muitos cidadãos norte-americanos.
No entanto, e mesmo perante estas condifões, é claro que existem mui-
tas maneiras através das quais se pode actuar de uma forma progressista
e muitos locais onde tais actividades têm sérias hipóteses de sucesso. A
tensão que existe entre optimismo e pessimismo orienta este livro.
António Gramsci tinha uma maneira de colocar directamente esta
questão as pessoas (porventura, tal como muitos de vós que terão opor-
tunidade de ler este livro) que, tendo analisado detalhadamente as
estruturas de dominação na sociedade, com muita frequência se deses-
peravam perante a possibilidade de u m verdadeiro progresso em ordem
a uma sociedade mais humana e mais justa. Grarnsci colocava a ques-
tão desta forma: "pessimismo do intelecto, optimismo da vontade". l?
uma frase bem conseguida. Todavia, pretendo aprofundá-Ia mais. Uma
investigação sobre as forfas estruturais e as experiências vividas das
pessoas nesta sociedade não revela uma vitória monolítica das ideolo-
gias dos que detêm mais poder. (Por agora podemos denominá-las por
capital, patriarcado e racismo). Uma análise mais cuidada revela algo
mais ténue, mais contraditório, mais permeável a ser transformado
num momento positivo em educafão, no trabalho, no "estado" e ainda
nas relações de género, classe e rafa. Tal como afirmarei mais adiante,
não devemos ser ingenuamente românticos relativamente a esta ques-
tão; contudo, não existem apenas aspectos retrógrados a acontecerem.
Assim, o primeiro passo a ser dado é descobrir, na verdade, o que é que
acontece nos momentos positivos e negativos.
--

'Para uma abordagem mais detalhada sobre estas tendências econornicas. wde Cohen, loshua. and Rogers. Joel (1983).
On Democracy New York Penguin Books, e Carnoy, Martin, Shearer. Drek. and Rumberger. Russell (1983). A New
Social Confracf New York Harper & Row
Prefacio a 1 " ediçio a

Em muitos aspectos, o problema da análise que percorre este livro


depende de uma atitude de "reposicionamento". Propõe uma maneira
diferente de "ler" a vida social e as instituições da que é sugerida pelos
grupos dominantes na sociedade7. O leitor, e m vez de interpretar a
sociedade como relativamente pluralista, agindo contudo pelo bem
comum, questiona as instituições culturais, económicas e políticas
como corporizando relações de domínio e subordinação. Estas relações
existem inseridas nas esferas da classe, raça e género. No entanto, não
são predeterminadas. O domínio tem que ser construído de forma que
as desigualdades chocantes que vão sendo erguidas e reerguidas pare-
çam, de algum modo, legítimas.
Este acto de ler a formação social de uma forma diferente é criativo.
Requer que, de uma forma consciente, contextualizemos aquilo que
entendemos ser u m dado adquirido acerca do modo como operam as
instituições escolares, dos "media", governamentais e económicas.
Paralelamente, implica que reconheçamos como e de que formas se
manifestam as próprias formas desiguais de poder. Quem beneficia das
actualmente existentes nessas instituições e entre elas? De que forma?
Para compreendermos esta questão, temos de nos colocar na posição
daqueles que se encontram cultural, política ou economicamente des-
favorecidos ou oprimidos, ou que durante o período de restauração
conservadora vão perdendo aquilo que lhes levou tantos anos a tentar
ganhar. Mulheres, pessoas de cor, trabalhadores (estes grupos não são,
naturalmente, mutuamente exclusivos) são as perspectivas que utiliza-
mos para nos reposicionarmos de forma a vermos como funciona, na
verdade, a sociedade.
Elizabeth Ellsworth resume parte deste argumento na sua análise
sobre estratégias de leitura feministas. Muito embora se refira especifi-
camente as leituras feministas das legendas dos filmes, os pontos que
apresenta revelam-se também preponderantes para outras áreas. Tal
como adianta, tal estratégia oferece as "leitoras os instrumentos atra-
vés dos quais podem activa e vigorosamente reposicionar-se e m relação
ao texto, recusarem o ponto de vista [dos grupos dominantes]... e ler o
texto de uma outra perspectiva, a partir da posição política dos oprimi-
dos...". No entanto, dado existir sempre uma uma pessoa que faz uma

Ellsworth, Elizabeth (1984) "lncorporation of Ferninist Meanings in Media Texts" in Hurnan~besand5oc;ety. p. 69


'Ibid., p. 67
determinada leitura de u m texto ou de u m conjunto de estruturas
sociais, optei por construir u m texto pessoal, sobretudo no capítulo 1,
para que o leitor deste "texto" possa ver mais claramente como e por
que razão faço a leitura que aqui se apresenta.
Este acto de leitura pode ser criativo, todavia uma coisa ele não é:
não é fácil. O modo como se constroem e contestam as relações de
classe, género e raça nem sempre é facilmente visível, em parte porque
muitos aspectos das instituições dominantes não possuem apenas um
efeito singular. Podem, pelo contrário, ser fundamentalmente contradi-
tórias. Esta questão é crucial ao longo de todo o livro, uma vez que
devemos ser sensíveis ao modo como as escolas e outras instituições
são influenciadas por uma variedade de forças e necessidades conflituo-
sas. O mesmo deve e deverá ser afirmado sobre os professores e alunos
que se encontram nas salas de aula daquelas escolas. Por este motivo,
a minha própria leitura de como funciona a educação não se limitará a
tentar reposicionar-nos com o intuito de clarificar as relações que as
escolas mantêm com uma formação social mais ampla. Realçarei tam-
bém que aquilo que registamos não é apenas uma imposição dos gru-
pos dominantes de classe, raça e género, mas o resultado contraditório
de verdadeiros conflitos culturais, políticos e económicos no interior e
no exterior do sistema educativo.
Uma das vantagens das edições posteriores de u m determinado livro
é a de permitirem repensar, ampliar e mesmo realçar determinados
argumentos. Destacarei algumas questões que podem necessitar de
uma ou outra abordagem.
Mesmo a curto prazo, desde que este livro foi publicado, foram-se
desenvolvendo determinadas tendências. De entre as preponderantes para
a abordagem que pretendo efectuar ao longo deste trabalho encontra-se a
influência crescente das grandes empresas (e militares)junto das escolas,
a todos os níveis. Assistimos a uma notável investida empresarial, na qual
o sistema educativo paulatinamente se vai desviando para a órbita ideoló-
gica empresarial e respectivas necessidades. "O que é bom para a empresa
é bom para o país e para as pessoas", podendo mesmo não ser uma
política educativa muito boa, tem-se tomado, no entanto, num retrato
muito bem conseguido daquilo que realmente se está a passar. É u m
quadro cada vez mais preciso não só da escolarização em geral, como
também do currículo e investigação em muitas universidades, e m
particular. Confère mais substância a denuncia que faço de que uma das
1 Prefacio a 1 "dição '

I
funções do sistema educativo é a produção de conhecimento témico-
-administrativo que, em última analise, é acumulado por grupos domi-
nantes e utilizado no controlo económico, político e cultural. Existem
profundas cli~iagensneste processo e em muitas escolas e universida-
des, no entanto, julgo que nüo podemos perceber, por completo, a edu-
cação, o apoio a determinados tipos de alunos e o favorecimento de for-
mas específicas de conhecimento sem uma analise profunda do papel
do sistema educativo, tanto na produção de tal conhecimento, como
nas relações emergentes que estabelece com os interesses empresariais.
Por exemplo, e nesta conformidade, seria interessante examinar a
informatizaçãode muitos aspectos da educação5.
Com a reeleição de Reagan e com a direita provavelmente mais vigo-
rosa, outros argumentos adquirem ênfase na obra Educação e Poder.
A título de exemplo, no capítulo 4, analiso as propostas de planos de
subsídios educativos e benefícios fiscais, questionando por que razão
süo propostos numa época de crise ideológica e quais serão, em última
instância, os seus efeitos.A agenda social da direita tem como uma das
suas plataformas a privatização do maior número possí~ielde institui-
ções públicas, crendo que a "mão invisível" (na verdade, fictícia) do
mercado regulara todas as necessidades e providenciará o bem comum.
Isto não só é conceptual e politicamente ingénuoh, como também é
uma ética social perigosa. Substitui o bem público (encoberto na retó-
rica da "democracia" e da "escolha pessoal'? pelo ganho privado.
Necessitamos de ser muito prudentes para não sermos levados por esta
ladainha. A democracia significa muito mais do que uma escolha rela-
tiva de praticas de consumo. Reduzi-la a sua essência económica, como
algo totalmente determinado pela escolha de produtos, é como que
divorcia-la do seu papel nos debates públicos sobre a ordem social,
actualmente mais necessários do que nunca.
Os perigos da privatização existem e podem eventualmente complicar-se
ainda mais caso prossigam tais planos de mercantilização da educação.
Grande parte do destaque deste livro recai sobre o processo de trabalho,
tanto nas fábricas, armazéns e escritórios, por um lado, como nas esco-
las, por outro. Em particular, as últimas partes deste livro despendem um
---
' Vde. por exemplo, Noble. Douglas (1384). 'The Underside of Computer Literacy in Rarltan. 4. pp 37-64
' Levine Andrew (1984) Argu~ngfor Sooal~smBoston Routledge & Kegan Paul

CCPP-EP-03 33

d
espaço significativosobre a forma como o ensino tem vindo a ser trans-
formado como processo de trabalho. Esta questão é uma das que gosta-
ria agora de aprofundar na minha abordagem.
Para mim, é cada vez mais claro que a discussão sobre o processo de
trabalho do ensino necessita de ser desenvolvida de acordo com uma
variedade de aspectos. É um facto que o trabalho docente tem sofrido
mudanças substanciais. Tem-se verificado um processo complexo de
desqualificaçãoe requalificação,em que a maior parte dos professores
têm vindo a perder o controlo de partes significativas do currículo e da
pedagogia, a medida que as ideologias e práticas empresariais pene-
tram no núcleo da maior parte das salas de aula. No entanto, muito
embora os professores, na sua generalidade, enfrentem aquilo que
denominarei neste livro por procedimentos de "controlo técnico", nem
todos os professores enfrentam tais pressões de forma idêntica.
Sobretudo ao nível da escola básica, os professores encontram-se
mais expostos aquilo que os sociólogos críticos rotularam de degrada-
ção do trabalho. Não julgo que possamos compreender completamente
a razão pela qual os professores da escola básica se encontram sujeitos
a um maior controlo e a uma maior intervenção por parte do Estado
no currículo, a não ser que formulemos a seguinte questão. Quem está
a ensinar? Na sua vasta maioria, o ensino ao nível do ensino básico
tem sido historicamente construído como "trabalhofeminino".
Numa investigação iniciada onde termina Educação e Poder dedico
especial atenção a relação entre o ensino e o trabalho feminino7. É crí-
tico, julgo eu, que se reconheça que a educação está construída com
base não apenas nas dinâmicas de classe, como também nas dinâmicas
de género e de raça8.E quando se fa!a do ensino em particular, na ver-
dade é muito difícil ignorar que são as mulheres que se encontram na
maioria das salas de aula do ensino básico, na maior parte dos países.
Historicamente, o trabalho remunerado das mulheres tem sido sujeito
a enormes pressões para um controlo externo.
Na verdade, gostaria de salientar que muitas das actuais tentativas
levadas a cabo pelos legisladores do Estado, departamentos da educação

' Apple, Michael W (1983) "Work, Gender and Teaching" in Teachers College Record, 84. pp 61 1-628; e Apple
Michael (1985) Teaching and Wornens Work: A Comparative Historical and Ideological Analysis Teachers Coilege
Record, 86.
Esta questáo 6 analisada de uma forma mais detalhada, sobretudo no primeiro capítulo. em Apple, Michael W., and
Weis, Lois (eds), Ideology and Pract~cein Schooling Philadelphia Ternple University Press.
Prefácio a l "ddição '

do Estado e "gestores educativos" para racionalizar e estandardizar o


processo e o produto de ensino, para prescrever objectivos e conteúdos
curriculares muito específicos, para definir todo o ensino como uma
colecção mensurável de "compet&cias, etc., encontram-se relacionadas
com uma longa história de tentativas de controlo das professoras, em
particular, e das trabalhadoras, em geral. Esta questão é realmente com-
plicada e eu limito-me apenas a fazer uma pequena alusão dado que a
retomarei mais detalhadamente no meu livro Teachers and Textsg.
Parte da tarefa que m e propus cumprir em Educação e Poder não
consistia apenas em reposicionarmo-nos de forma a podermos conse-
guir uma melhor compreensão sobre os papéis contraditórios da edu-
cação, muito embora esta compreensão crítica seja muito importante
nos dias de hoje. Consistia também em detectar a existência ou não de
oportunidades, numa variedade de campos, para uma efectiva acção
educativa e, especialmente, colectiva. Dada a localização estrutural das
escolas, o tipo de conhecimento que parecem descobrir como o mais
legítimo, a cultura vivida dos estudantes, de homens e mulheres no seu
trabalho remunerado ou não remunerado e dadas as condições em que
o professores cada vez mais se vêem obrigados a trabalhar, as estraté-
gias para a implementação com êxito de políticas mais democráticas
nas escolas e em outras instituições serão uma utopia? Muitas pessoas,
inclusivamente muitas pessoas de esquerda, ignorando a importância
da educação como condição prévia para qualquer actividade política,
têm ignorado também o muito que as lutas pelo conteúdo, forma e
objectivos educativos fizeram e podem, na verdade, vir a fazer". Para
eles, as escolas são simplesmente mecanismos de dominação. Não
devemos aceitar esta posição. Apontei uma série de áreas onde se pode
desenvolver uma actividade progressista.
Naturalmente, muito mais se poderia ter desenvolvido sobre a acção
política, económica e cultural e sobre o que acontece nas escolas. Toda-
uia, existem alguns riscos em fazê-lo, dado que os objectivos e as estra-
tégias nas escolas e em outros locais devem ser construídos a partir das
bases. Assim, muito embora as minhas respostas ao longo deste livro
possam ser parciais, pretendem não só remeter para áreas que se

'Apple, Michael W (no prelo). Teachers and Texts. Boston: Routledge & Kegan Paul.
'O Vide Hogan, David (1982). "Education and Class Forrnation" in Michael W. Apple (ed ). Cultural and Econornic Repro-
duction in Education. Bonston: Rouledge & Kegan Paul, pp. 32-78.
afiguram mais importantes, como também integrar-se num diálogo
crítico contínuo entre nós, relacionado com os significados e os fins das
instituições sociais e culturais e ainda sobre como podem tais institui-
ções ser reconstruídas de forma mais democrática. Se o livro Educação
e Poder conseguir desempenhar u m pequeno papel nesse diálogo
crítico abrangente, ultrapassará os seus propósitos.

Michael W. Apple
University of Wisconsin, Madison 1984
Agradecimentos
Independentemente da sua "originalidade", todos os livros são um
acto colectivo. Certamente que também isto se aplica a Educação e
Poder, todavia, de dois modos distintos. O primeiro, habitualmente. nào
é mencionado no espaço destinado aos agradecimentos. No entanto,
neste caso concreto, julgo ser necessário dizê-lo. Este livro não poderia
ter sido escrito sem as lutas diárias de trabalhadores e trabalhadoras de
esquerda, que têm procurado construir e manter um movimento que é
emancipatório e democrático tanto nas intenções como nas práticas.
Nem tão-pouco poderia ter sido escrito sem os esforços criativos de
todos os autores que participaram e teorizaram sobre o referido movi-
mento nas últimas décadas. Aqueles que procuram reestabelecer e man-
ter uma tradição crítica não redutora e não mecanicista de estudos de
esquerda tiveram em mim uma enorme influência. Apesar de a sua
influência se ter registado através de um debate interno entre o que
escreviam e as minhas próprias reacções, admirações, acordos e desa-
cordos, e mesmo que não consigam compreender o significado actual
das suas ideias, agradeço-lhes. Encontramo-nos todos em débito para
com eles.
Naturalmente, nem sempre os débitos são anónimos. Tenho a felici-
dade de ter amigos e colegas em Wisconsin e por esse mundo fora que
não deixam que a amizade interfira com a crítica, semnre indispensável.
Um determinado número destas pessoas merecem ser conhecidas: Ron
Aminzade, Jean Anyon, Madeleine Arnot, Stanley Aronowitz, Ann Bec-
ker, Basil Bernstein, Jean Brenkman, John Brenkman, Roger Dale,
Henry Giroux, Andrew Gitlin, Herbert Kliebard, Henry Levin, Alan
Lockwood, Vandra Masemann, Linda McNeil, Fred Newmann, Gary
Price, Fran Schrag, Richard Smith, Joel Taxel, Andrew Urevbu, Gary
Wehlage, Lois Weis, Paul Willis, Erik Olin Wright e Michael F. D. Young.
Outros quatro necessitam de uma menção especial pela sua contribui-
ção contínua ao meu pensar e repensar: Michael Olneck, Steven Selden,
Philip Wexler e Geoff Whitty.
Nos livros anteriores atribuo uma importância especial aos alunos de
pós-graduação que trabalham comigo e que se reúnem no agora famoso
(ou não) seminário de sexta-feira. Esta questão é ainda mais verdadeira
para o caso deste livro. Os capítulos deste livro são o resultado de dis-
cussões e intensos debates que mantive com os meus alunos. Também
eles me ensinaram muitas coisas, bem como os professores dos ensinos
básico e secundário com quem tenho interagido ao longo da última
década e ainda os trabalhadores e trabalhadoras com quem tenho traba-
lhado na criação de materiais de educação política nas fábricas e nos
escritórios.
David Goldwin, da Routledge & Kegan Paul, continua a comprovar
como excelência e apoio editoriais podem ser combinados. Bonnie
Garski e Barbara Seffrood são muito mais que secretárias e dactilógra-
fas, muito embora muito boas nisso. Os comentários e sugestões que
fizeram foram sempre pertinentes. Agradeço-lhes a amizade, competên-
cia e compreensão.
A incontornável habilidade de Rima Apple em ajudar-me a clarificar
aquilo que pretendo efectuar, as suas sugestões cruciais e editoriais, o
seu apoio constante, para não mencionar o quanto continua a ensinar-
I
-me no que respeita as histórias da mulher, ciência e medicina, tudo isto
aumenta a dívida de gratidão que nenhum marido pode integralmente
retribuir.
Finalmente, quero dedicar este livro a Mimi Russak Apple que, apesar
de não ter vivido para o ver concluído, teria compreendido a ênfase
colocada nas lutas contra a exploração. Foi com base na forma que tanto
ela como meu pai, Harry Apple. viveram as suas vidas que eu, pela pri-
meira vez, aprendi a importância dessa luta.

Partes deste livro são abordadas de uma forma diferente em Curricu-


lum Inquiry; Interchange; The Journal of Education; "The Journal of
Economic and Industrial Democracy; e Roberty Everhart (ed.), The
Public School Monopoly.

i
Reprodução, contestação e currículo

A sombra da crise
A medida que escrevo vêm-me à cabeça as palavras do conhecido soció-
logo Manuel Castells: "A sombra da crise estende-se pelo mundo."
.As imagens que traz a mente constituem algumas das linhas condutoras
subjacentes a este livro, dado que, subjacente aos altos e baixos do "ciclo
económico", e subjacente aos problemas na educação, questões estas que
tantas vezes ouvimos propaladas pela imprensa, o nosso dia-a-dia e as
vidas de milhões de pessoas espalhadas por todo o mundo encontram-se
implicados numa crise económica que provavelmente terá efeitos cultu-
rais, políticos e económicos duradouros.
Afecta as nossas ideias sobre a escola, trabalho e lazer, papéis sexuais,
repressão "legítima", participação e direitos políticos, etc. Coloca em
causa as próprias fundamentações económicas e culturais do dia-a-dia
de cada um de nós. A este respeito, é digna de registo a visão de Castells:
"Fábricas encerradas, escritórios vazios, milhões de desempregados,
dias de fome, cidades em declínio, hospitais sobrelotados, administrações
fragilizadas, explosões de violência, ideologias de austeridade, discursos
fátuos, revoltas populares, novas estratégias políticas, esperanças,
receios, promessas, ameaças, manipulação, mobilização, repressão, bol-
sas de valores receosas, militância sindical, computadores perturbados,
polícia nervosa, economistas espantados, políticos hábeis, povo sofredor
- tantas imagens que nos tinham dito terem desaparecido para sempre,
levadas pelo vento do capitalismo pós-industrial. E agora encontram-se
novamente de regresso, trazidas pelo vento da crise capitalista."'
Os media não permitem que escapemos a estas imagens. Quanto mais I
não seja, a sua repetição e o facto de não podermos deixar de observá-las
e experimentá-las testemunham a sua realidade. A crise não é ficção.
Pode ser vista diariamente no local de trabalho, nas escolas, nas famí-
lias, governo, instituições de segurança social, enfim, em tudo aquilo
que nos rodeia.
i
Nesta conformidade, as instituições políticas e educativas têm vindo a
perder grande parte da sua legitimidade à medida que o aparelho do
Estado se vai vendo incapaz de responder, adequadamente, ao actual
quadro económico e ideológico. Aquilo que se tem denominado por
crise fiscal do Estado tem emergido à medida que o Estado se vê impos-
sibilitado em manter os postos de trabalho, os programas e os serviços
conquistados pelas pessoas, após anos de luta. Simultaneamente, os
recursos culturais da sociedade tornam-se, cada vez mais, comercializa-
dos, à medida que a cultura popular é invadida pelo processo de mer-
cantilização. Deste modo, são processados, comprados e vendidos.
Transformaram-se também em mais um aspecto da acumulação.
Embora vincadamente relacionada com os processos de acumulação
de capital, a crise não é somente económica. Também é política, cultu-
ral e ideológica. Na verdade, é na intersecção destas três esferas da vida
social, no modo como interactuam, no modo como cada uma apoia e
contradiz as outras que podemos ver a crise na sua forma completa. A
crise estrutural que testemunhamos actualmente - ou melhor, vivemos n
- não pode na verdade ser "explicada" apenas por razões económicas

(seria uma análise demasiado mecanicista), mas sim por um todo social,
por cada uma das esferas referidas.
Tal como sugere Castells:
"a economia não é um 'mecanismo:mas sim um processo social con-
tinuamente modelado e remodelado pelas relações em permanente
mudança da espécie humana com as forças produtivas e pelos confli-
tos de classe que definem a espécie humana de uma forma concreta -
historicamente.'Q

' Castells. Manuel (1980) The Econornfc Crisfs and Arnerican Society Princeton Princeton University Press, p 3
i Ibid. p 12 Dentro desta problematica estabeleça tambem uma comparaçao com os argumentos de Althusser acerca da
relativa autonomia das esferas cultural. politica e economica Althusser. Louis (1971) Lenrn and Philosophy and Other
Essays London New Left Books

40
Reprodução, contestasáo e curriculo d

te Daqui inferirmos de que não é apenas através de uma determinada


abstracção como a economia que podemos encontrar a génese dos tem-
us pos difíceis que vivemos. Pelo contrário, as palavras-chave são luta e
as modelação, que nos remetem para questões estruturais. Os nossos pro-
0. blemas são sistémicos, construindo-se uns nos outros. Cada aspecto do
ií- processo social no estado e na política, na vida cultural, nos modos de
I0 produzir, distribuir e consumir serve para afectar as relações com (e
entre) os outros.
1a A medida que um modo de produção tenta reproduzir as condições da
do sua própria existência, cria antagonismos e contradições junto de outras
Ia1 esferas. A medida que grupos de pessoas lutam por questões relaciona-
Or das com o género, a raça e a classe, em cada uma destas esferas, o pro-
M- cesso social global, incluindo a "economia", também é afectado. As lutas
ps e o terreno onde se precipitam são remodelados.
os Deste modo, as imagens das lutas que Castells traz à colação não são
ra- estáticas, na medida em que são vividas por pessoas como nós, no nosso
tr- dia-a-dia (talvez, usualmente, "de uma forma inconsciente"). E, cons-
bs. tantemente, grupos de pessoas como estas modelam e são remodelados
por estes processos, à medida que os conflitos eclodem.
$0 Embora a crise descrita por Castells não seja totalmente económica, a
tu- profundidade com que é sentida no plano económico deve ser enfati-
ida zada, quanto mais não seja para salientar a sua amplitude.
B e Na verdade, alguns indicadores são chocantes. Embora as taxas ofi-
.A ciais de desemprego, que rondam os 7%-8%, sejam já suficientemente
10s más, a taxa real de desemprego nos Estados Unidos pode rondar os 14%.
cas Embora os números só agora se encontrem disponíveis, a taxa de
ial, desemprego urbano entre jovens negros e hispânicos atingia, em 1975',
os 60%-70%. Dada a deterioração da economia norte-americana (e das
que se encontram fortemente relacionadas com ela), temos poucas
razões para acreditar que os dados tenham sofrido uma melhoria signi-
ficativa.
Outras questões relacionadas com a raça e o sexo revelam uma outra)
face da questão. Muito embora as mulheres tenham lutado, ao longo dos
anos, para atingirem uma posição social mais equitativa, dados recentes \
mostram que tal desiderato continua a ser difícil. A título de exemplo, e
tal como demonstraram Featherman e Hauser, "embora os resultados
ra da
Wer
Castells, Manuel (1 980). Th'e Econornic Crisis and Arnerican Society, pp. 179-181
,
ocupacionais e educativos das mulheres se tenham equiparado aos dos
homens ..., a taxa salarial das mulheres em relação à dos homens dimi-
nuiu de 0,39 para 0,38, para maridos e mulheres". Com efeito, tem--se
verificado uma pequena mudança na percentagem desta diferença sala-
rial, mudança essa justificada pela pura e simples antiga discriminação
sexual. A discriminação que explicava 85% da diferença, em 1962, e
1
i
84%, em 1973, não registava uma mudança muito significativa no seu
cômputo geral4. Embora dados recentes indiquem que tal diferença
possa estar gradualmente a alterar-se no sector profissional5 - o que é,
certamente, uma mudança positiva - o facto é que apenas uma percen-
tagem relativamente pequena de mulheres se encontra, na verdade,
empregada nesse sector.
E o que é que se passa com outros grupos? As populações negras e his-
pânicas dos Estados Unidos registam taxas muito mais altas de subem-
prego e desemprego que as outras, taxas essas que aumentarão significa-
tivamente n u m futuro próximo. Uma grande percentagem destes
trabalhadores estão empregados naquilo que se poderia denominar por
"economia irregular", na qual o seu trabalho (e salário) é frequente-
mente sazonal, sujeito a constantes demissões, salários e benefícios bai-
xos e pouca autonomia. A semelhança das mulheres, sofrem uma dupla
opressão. Aliada a uma formação social desigual em relação a classe -
desigualdade caracterizada, por exemplo, pelas diferenças significativas
de classe nos retornos salariais, dado o nível educacional - , há a acres-
centar ainda as poderosas forças de reprodução de raça e de género. Cada
uma destas forças afecta-se mutuamente6.
Certamente, vectores específicos destes grupos conseguiram determi-
nados ganhos. Todavia, a estatística pura destes ganhos encobre algo
extremamente importante. A própria economia tem registado alterações
muito menos acentuadas, quer em termos de benefícios, quer em ter-
mos de poder apoiados na composição de raça, sexo ou classe, do que
realmente poderíamos imaginar. A maior parte do avanço tem-se verifi-
cado pelo emprego no Estado.

'Featherrnan. D.;Hauser, R. (1976) "Sexual inequalities and socio-econornic achievernent in the U.S. 1962-1973". Arne-
rican Socologicai Review XLI. June, 462 Vide tarnbern Wright, Eric (1979). Ciass Structure and Incorne Deterrnination
New York: Acadernic Press.
Olneck, Michael. comunicaqáo pessoal. Vide, tarnbern, Castells, Manuel (1980). The Econornic Crisis and American
Society. Princeton: Princeton University Press, p. 192.
Castells, Manuel (1980).The Econornic Crls~s,',
and Arnerican Society Princeton Princeton University Press. p. 187. E Wright,
Eric (1 979) Class Structure and Incorne Determination New York: Acadernic Press, especialmente os capitulas 6-9.
Reprodução, contestaçáo e curriculo

i Um facto exemplifica esta questão de uma forma muito clara. O


I- governo - aos níveis local, estadual e nacional - emprega mais de 50%
.e de todos os negros e mulheres nos Estados Unidos7. Foi apenas através
L- de protestos e lutas no seio do próprio Estado que tal foi conseguidos.
D Tais empregos não foram "dados". Surgem como resultado de pressões
e levadas a cabo, ano após ano, por grupos de pessoas. Sem o emprego
:u estatal, os ganhos desses grupos teriam sido drasticamente inferiores.
;a Na verdade, como veremos adiante, o papel que o Estado exerce na eco-
e, nomia e na cultura exige uma cuidada atenção, caso pretendamos com-
7- preender quer o modo como uma sociedade iníqua se reproduz a si
e, mesma quer como são geridas as crises. Esta questão revelar-se-á de
especial importância nas minhas discussões em torno do papel contradi-
B- tório que as escolas representam nessa reprodução.
n- As condições parecem deteriorar-se devido ao que se tem designado
a- por dinâmica de desenvolvimento desigual. Dito de outro modo, regista-
es -se uma dicotomia, cada vez maior, entre os que tem e os que não têm.
or Um testemunho parcial desta questão pode ser constatado no decrés-
E- cimo registado, nos últimos vinte anos, nos salários dos trabalhadores
U- das indústrias de baixa remuneração e de 75% do salário das indústrias
da de alta remuneração para 60%. Criou-se uma economia dual, com um
I - hiato ainda mais acentuado e que, de acordo com um vasto conjunto de
BS economistas políticos, será quase impossível de reverterg.
5- Mas quais são as condições do trabalho em si? Mencionarei apenas
da alguns dados estatísticos pertinentes, embora muitos mais pudessem
preencher as páginas de muitos livros. Em matérias como a saúde e a
N- segurança, os Estados Unidos ficam muito aquém de outras nações
go industrializadas, com muitas ocupações a registarem uma taxa de mor-
ies talidade e de invalidez três a quatro vezes superior as verificadas na
er- Inglaterra e na Europa''. Parece que o lucro é mais importante que as
ue pessoas. No entanto, muitas pessoas nem sequer se apercebem disso. Os
ifi - trabalhos fabril e de escritório são profundamente maçudos e
sujeitos a rotina. Os trabalhadores têm pouco controlo formal sobre o
trabalho que efectuam e a centralização do controlo está a aumentar
hl€-
Bm
' Carnoy, Mariin; Shearer. Derek (1980). EconornicDemocracy. White Plains. New York: M.E. Sharpe.
ran Piven. Francis Fox; Cloward. Richard (1 977). Poor People's Movernents New York: Vintage.
' Castells. Manuel (1980) The Economic Crisis and Arnerican Society. Princeton: Princeton University Press, pp 178-185.
rJh. Vide, tarnbern, O'Connor, Jarnes (1973). The Fiscal Crisisof the State. New York: St. Martin's Press
'' Carnoy, Mariin, Shearer. Derek (1980). Econornic Dernocracy, p. 51
nos escritórios, nas lojas, nas universidades e nas escolas, nas fábricas e
noutros locais". Perdem-se pensões, e benefícios outrora conquistados
com muita dificuldade estão a ser reduzidos. Embora o emprego no
sector da prestação de serviços registe um determinado crescimento
(mal remunerados e ocupados, em geral, por mulheres), outros desapa-
recem à medida que certas empresas se retiram transferindo as fábricas
para áreas com uma força de trabalho menos organizada, mais barata e
mais submissa. Mesmo os postos de trabalho adicionais no domínio da
prestação de serviços registam, cada vez mais, períodos de trabalho mais
longos, falta de responsabilidade na organização dos trabalhos, aumento
de insegurança e ainda carência de serviços sociais que efectivamente os
apoiem. Além do mais, prevê-se uma degradação nas condições de tra-
balho, dado que actualmente a economia produz apenas cerca da
metade do total dos novos postos de trabalho necessários para o
futuro1'.
Para muitas mulheres a situação é frequentemente pior. Uma vez que
muitas delas se encontram empregadas no sector da prestação de servi-
ços e no competitivo sector dos salários baixos (nomeadamente, lojas,
restaurantes, pequenos escritórios e indústrias de trabalho intensivo,
como as de confecção e fabrico de acessórios), encontram-se, habitual-
mente, sujeitas a uma relativa pobreza materialI3. O mesmo se aplica
em relação aos trabalhadores das minorias sociais, na sua maior parte
afecta ao sector competitivo. Neste caso concreto, as condições de traba-
lho são bem piores, repetindo-se, no entanto, a regra: desemprego e
subemprego, regalias de saúde e de reforma desajustadas e sindicatos
fragilizados ou até inexistentes14.
Ao anexarmos a estas questões a deterioração do poder de aquisição
registada no salário da maioria dos trabalhadores, a diferenciação de
classe e de sexo que se encontra implicada nesses mesmos salários,
a perda do controlo no trabalho, o declínio das cidades, dos apoios

" Tem-se verfcado uma tendência contrdria, conferindo-se ao trabalhador uma determtnada aparència de controlo dos
processos de producão, conseguindo-se, por um lado, u m aumento na produçao e, por outro. uma diminuicão da
resistência por parte dos trabalhadores. A titulo de exemplo, vide: Edwards, Richard (1979) Contested Terrain. New
York: Basic Books.
" Castels, Manuel (1980) Jhe Ronomic Crisis and American Society. pp. 161-185
" O'Connor, James (1973) The Fiscal Crisis o f the State. New York: St Martin's Press. pp. 12-15. Na verdade, têm-se
registado algumas tentativas para se organizarem as mulheres trabalhadoras. tentativas que ainda hoje se vertficam
Vide. Fedberg, Roslyin (1980). "Union Fever: Organizing Among Clerical Workers, 1900-1930" Radical America XIV
(May-June), 53-67. E Tepperman, 1. (1976). "Organizing Office Workers". Radical America X (January-February), 3-20.
'"ubn, Lillian (1976). Worids o f Pain. New York Basic Books.
Reprodu$ão, contestação e curriculo "

e culturais e dos laços humanos, e ainda os astronómicos custos que


S esta problemática social despoleta na saúde física e mental, encontra-
D mos mais motivos para parar e reflectir. Com efeito, os exemplos facul-
D tados por Castells descrevem as condições que um determinado seg-
I- mento populacional, cada vez maior, vai enfrentar, dentro e fora dos
ti Estados Unidos. O significado dessas condições e as razões estruturais
e subjacentes não se revelam evidentes, devido ao controlo hegemónico
la dos media e das indústrias de i n f o r m a ç ã ~ ' Acusamos
~. alguns indus-
is triais e empresas, um pequeno número de membros do governo, uma
:3 abstracção vaga chamada tecnologia, em vez de prestarmos atenção à
I6 inter-relação existente no aparelho produtivo e político da sociedade.
1- No entanto, de algum modo, não nos podemos culpar por não nos ter-
Ia mos apercebido da situação. O aparelho cultural e formas dominantes
o dão-nos uma versão fragmentada. É necessária uma atenção perma-
nente com as questões mais minuciosas, inclusive por parte dos
R homens e das mulheres trabalhadores, politicamente mais sensíveis,
ti - da sociedade para começar a agrupar todas as imagens e vê-las como
6, realidades impulsionadas pelas contradiçóes e pressões emergentes da
O, própria formação social e consequentes modos de produção. Atravessa-
LI- mos uma crise de legitimação e de acumulação - em que os aparelhos
ca produtivo e reprodutivo da sociedade (incluindo as escolas) se encon-
te tram cristalizados por tensões e em que a própria essência da reprodu-
0- ção contínua das condições necessárias para a manutenção do controlo
e hegemónico está ameaçada - no entanto, é difícil verificar o impacto
OS relaciona1 que toda esta problemática tem no nosso dia-a-dia. Isto é
particularmente difícil na educação, uma vez que a ideologia refor-
ão mista e os inúmeros problemas que os educadores já enfrentam não
de deixam de facto muito tempo para se poder pensar seriamente sobre
)S, as relações entre o discurso e práticas educacionais e a reprodução da
OS desigualdade.
Entretanto, como teremos oportunidade de verificar, os homens e as
dos mulheres que trabalham nos escritórios, lojas, fábricas e escolas não
Ida
lew têm ficado completamente passivos perante estas questões, facto este
que, aliás, se tornará muito mais explícito nas minhas posteriores dis-
n-se cussões em torno das formas culturais de resistência. Todavia, importa
am.
XN
O. l5 Gitlin. Todd (1982). "Hegernony in Transition: Television's Screens". In M. Apple (ed.), Cultural and Econorn~cRepro-
duction in Education. London Routledge & Kegan Paul
reconhecer desde já que as condições objectivas que enfrentam não são
muito poderosas.
Isto dá-nos a visão do lado em que se encontram muitos dos trabalha-
dores e empregados. Mas o que se passa no outro lado, o lado que tem
muito mais controlo sobre a cultura, a política e a economia? Aqui, o
quadro traduz uma centralização e concentração, cada vez maior, dos
recursos e poder económicos e culturais. Alguns exemplos são suficien-
tes para comprovar, digamos, a amplitude do controlo capitalista. As
cem maiores empresas aumentaram o controlo sobre os capitais indus-
triais de 40%, em 1950, para quase 50%) em 1969, valor que actual-
mente é ainda mais elevado. Hoje em dia, de entre os mais de dois
milhões de negócios nos Estados Unidos, as duzentas maiores empresas
usurpam mais de 213 do lucro global no país inteiro. Em 1970, depois
de deduzidos os impostos, os lucros das empresas eram três vezes supe-
riores aos registados dez anos antes. Na área das seguradoras, as dez
maiores empresas controlam mais de 60% de todos os bens. Tal fenó-
meno verifica-se também no sector bancário e nas indústrias de comu-
nicação, assim como também no crescente poder nacional e internacio-
nal concentrado nos grandes conglomerados financeiros e industriais.
Os padrões de investimento de tais interesses industriais e financeiros
são previsíveis, ou seja, a maximização da acumulação de capital e do
lucro - em que o bem-estar humano, os objectivos públicos, o emprego
seguro, etc., são relegados para um plano secundário, isto quando
efectivamente são considerados. Perante tudo isto, deveria ser suficien-
temente claro que o controlo que os interesses do capital exercem
sobre a nossa vida económica e o nosso bem-estar pessoal não é de todo
diminuto16.
Estes dados reflectem um quadro muito pouco atractivo sobre as con-
dições estruturais em que muitos cidadãos se encontram e do poder
desigual que existe na sociedade. No entanto, estas questões podem ser
refutadas, afirmando-se que não passam de aberrações. No cômputo glo-
bal, tornamo-nos numa sociedade cada vez mais igual; basta olhar a
nossa volta. Infelizmente, isso pode expressar mais um desejo do que
um facto. Tal como salientam os autores de Economic Democracy:

l6 Castells, Manuel (1980). The Economic Crisis and American Society. Princeton. Princeton University Press, pp. 144-145
E Useem. Michael (1980) "Corporationsand Corporate Elite" Annual Renew of Soc~ologyVI, pp. 41-77.

46 -
-
I
Reprodução, contestaçáo e curriculo

"De acordo com inúmeros estudos ucudémicos e governamentais, a


distribuição de riqueza e de rendimento nos Estados Unidos tem regis-
tado uma mudança pouco significativa no sentido de uma maior
igualdade social desde o virar do século e praticamente nula desde a
Segunda Guerra M~ndial.'"~

Mesmo perante a má distribuição e a cada vez mais acentuada concen-


tração e centralização, sabemos que a estagnação e a inflação circundam
a economia. A acumulação de capital e a legitimação encontram-se
ameaçadas. O nível da dívida dessas empresas tem registado um aumento
significativo, originado em parte pela necessidade de financiamento das
inovações tecnológicas motivadas pela crescente competição internacio-
na1I8. Há "necessidade" de se desenvolverem novos mercados; há necessi-
dade de controlar e disciplinar mais os trabalhadores; há necessidade de
aumentar a produtividade; há necessidade de se desenvolverem novas
tecnologias a um ritmo ainda mais rápido; há necessidade de se gerarem
técnicas e conhecimento especializado para empreender tudo isto.
Nesta conformidade, o papel do trabalhador é crucial, dado que se
comprovou que a taxa de exploração dos trabalhadores é um indicador
fabuloso dos níveis de lucro de uma determinada empresalg. Dito de
i outro modo, u m dos meios mais importantes através dos quais as
1 empresas podem lidar com os "problemas" económicos com que se
debatem é virarem-se para a sua própria força de trabalho, aumentando
1 os índices de exploração.
O Estado e a escola não estão imunes a estas pressões. É "necessário"
i reconquistar a austeridade social. As políticas governamentais devem
) corresponder aos requisitos do capital. As práticas educativas devem ser
enquadradas no trabalho e quer os custos da investigação, quer os pré-
- requisitos de desenvolvimento das indústrias devem ser socializados,
r sendo assumidos pelo Estado e pelas universidades. Contudo, estas con-
r dições no local de trabalho e na esfera política geram também os seus
c próprios problemas. A competição intensa implica a substituição de
à tecnologias muito antes ainda de estas serem pagas pelos lucros. Os tra-
e balhadores reagem contra grande parte desta questão. Os grupos

" Carnoy. Martin; Shearer. Derek (1980). Economic Democracy New York: M. E. Sharpe, p. 17.
' Castells, Manuel (1980). The Econornic Gisis and Amencan Society. Princeton: Princeton University Press, p. 66.
''Useern. Michael (1 980). "Corporationsand Corporate Elite".Annual Revieew of Sociology VI. p. 53.

47
progressistas, os educadores e os pais podem desafiar as conivências
próximas que se registam entre o Estado, as fábricas e as escolas. Os
negros, os hispânicos e muitos outros trabalhadores rejeitam o facto de
terem de pagar pelas contradições económicas que minam a sociedade.
E, novamente, emergem a inflação e a tensão social. Com efeito, e
perante isto, germinam as sementes dos conflitos e crises constantes.
Isto dá-nos uma imagem muito pálida das verdadeiras condições em
que muitos cidadãos vivem. Se Castells e muitos outros estão certos nas
suas análises, não podemos esperar melhorias a curto prazo em qualquer
aspecto relevante. Todavia, o que podemos fazer é enfrentar, honesta- 1
mente, a crise estrutural e observar como se desenvolve na escola, uma 1
das principais instituições de reprodução. Devemos fazê-lo, mesmo que
tal implique criticar algumas das formas básicas através das quais as ins-
tituições educativas operam actualmente. Deste modo, urge compreen-
der de uma forma muito mais ampla a relação que se estabelece entre a
educação e as esferas ideológica, política e económica da sociedade e qual
o papel que a escola desempenha em cada uma delas.
Simultaneamente, devemos considerar as críticas relacionadas com as
escolas e as sugestões de reforma, contextualizando-as na crise das três
esferas referidas. Contudo, não nos devemos preocupar apenas com tais
relações e críticas. Necessitamos de estar conscientes das possibilidades
de acção. Dado que esta crise gera contradições e tensões que emergem
em todos os quadrantes da formação social, então tal questão surgirá
também nas escolas. Descobri-las será sem dúvida difícil, mas igual-
mente importante. Pode dar-se o caso de tais contradições e tensões
propiciarem, efectivamente, as possibilidades para a nossa intervenção
no campo educativo, do mesmo modo que, por exemplo, a crise ao nível
dos escritórios e das fábricas tem originado pressões para um maior
controlo e autonomia do trabalhador2'.
As questões anteriormente referidas são os princípios orientadores
deste livro. De que formas complexas e contraditórias se encontram as
escolas relacionadas com as restantes instituições? Que respostas

" Edwards. Richard (1979) Contested Terra~nNew York: Basic Books. Isto náo significa que todas as estrategias relacio-
nadas com um maior envolvimento do trabalhador seiam , oroaressistas Para uma interessante discussao alicercada na
, d

ideia de que a maioria das estrategias actuais para o enriquecimento do trabalho e o aumento da participaçáo do tra-
balhador na verdade aumentam a eficiencia da produçáo capitalista e reproduzem a capacidade administrativa de
dominar o processo laboral. vide Rinehart, James (1978) "Job Enrichment and the Labor Process " Artigo apresentado
numa conferencia sobre as novas direcçòes no processo laboral. financiada pelo Department of Sociology, State University
of New York at Binghamton Binghamton. New York (May). 5-7.
I Reprodugão, contestação e currículo G

1
P encontram as pessoas, dentro e fora da escola, para tais contradições e
tensões? Será que as análises mais recentes sobre as relações e as res-
postas - incluindo alguma investigação marxista mais pertinente -
esclarecem suficientemente esta questão? Como é que os processos de
2 reprodução cultural e económica e de contestação se encontram rela-
cionados com a escola? As reformas propostas actualmente revelam-se
I adequadas para lidar com tal complexidade? O que podem fazer os edu-
L cadores progressistas e outras pessoas perante esta situação? Provavel- '
r mente, a melhor forma de começar a responder a estas questões con-
siste em descrever, neste capítulo, os avanços que se têm registado, em
a termos de complexidade, em torno das preocupações relacionadas com
e as escolas e com a reprodução económica e cultural. Mais adiante deli-
C- nearei, não só a minha própria compreensão gradual, mas também a de
I- outros autores sobre a reacção das escolas e de que modo respondem
a quer às contradições estruturais quer às crises reprodutivas. Ao fazê-lo,
iI estarei também a desenhar o esboço e a facultar o quadro de uma série
de argumentos que surgirão nos capítulos seguintes.
bs
ts Crítica educacional
is
eS
No ponto anterior deste capítulo, descrevi alguns dos elementos da
rn crise estrutural que começamos a observar. Destaquei o facto de esta
rá questão ter repercussões no processo de trabalho, em determinados vec-
d- tores da cultura e na legitimidade das instituições. As escolas, enquanto
es instituições culturais e económicas, "reflectirão" tais mudanças no pro-
i0
cesso de trabalho, na cultura e na legitimidade. Em parte devido a isto,
el as escolas têm estado e continuarão a estar expostas ao mesmo género
Dr
de críticas que se têm vindo a verificar, actualmente, em relação a
outras instituições situadas nas esferas política, cultural e económica.
es Não é em vão que o foco crucial da crítica radical em relação às insti- 1
as tuições, nesta última década, se tenha centrado na escola. Ainda a o '
as longo desse mesmo período, tem-se tornado cada vez mais evidente que
as instituições educativas não são os mecanismos de democracia e d e ,I
igualdade que muitos de nós gostaríamos que fossem. Em muitos aspec- \
cio
I M tos esta posição crítica tem sido salutar, dado que tem instigado a nossa '
ma-
l &
sensibilidade para o papel importante que as escolas - e o conhecimento I
ado explícito e oculto nelas inserido - exercem na reprodução de uma
iuh,
ordem social estratificada que persiste acentuadamente desigual no que
i
respeita à classe, ao género e à raça. Tal como pessoas distintas - Bour-
dieu, Althusser e Baudelot e Establet na França, Bernstein, Young,
Whitty e Willis na Inglaterra, Kallos e Lundgren na Suécia, Gramsci
na Itália e Bowles e Gintis, eu próprio e outros, nos Estados Unidos
- têm insistentemente denunciado, o sistema cultural e educacional é
um elemento excepcionalmente importante na manutenção das rela-
ções existentes de dominação e de exploração nas sociedades.
Embora possam existir discordâncias profundas entre estas pessoas
sobre a forma como se movem as dinâmicas anteriormente referidas,
nenhuma delas negaria a importância de se examinar a relação que se;
estabelece entre a escolarização e a manutenção dessas relações desi-
guais. E apesar de podermos discordar de determinados aspectos das
análises efectuadas por cada um, não podemos no entanto interpretar as
escolas e o conhecimento por elas veiculado simplesmente do mesmo
modo como fazíamos antes do surgimento das análises encetadas por
estes autores.
Muito embora a crítica tenha sido salutar, provavelmente terá despo-
letado dois efeitos colaterais, paradoxalmente opostos. Um primeiro
efeito permitiu-nos conferir uma enorme importância à escola. Pode-
mos ver a escola como o problema em questão e não propriamente
como inserida num quadro mais abrangente de relações sociais que
estruturalmente são de exploração. A prova de que esta problemática é
muito mais vasta do que aquilo que se imagina é demonstrada num
estudo recente levado a cabo por Jencks e t al., intitulado Who Gets
Ahead? Este trabalho, não só comprova que os retornos económicos
provocados pelo nível educacional são duas vezes superiores para os
indivíduos que já se encontram num situação económica favorecida,
como também demonstra que para os estudantes negros a situação se
deteriora, mesmo tendo estes concluído o ensino secundário, dado que
provavelmente não atingirão qualquer vantagem relevante. Assim,
mesmo que eventualmente pudéssemos alterar a escola de forma a igua-
lar o nível de rendimento académico, os factos demonstram que tal
transformação provavelmente não provocaria uma diferença significa-
tiva no quadro mais global em que as escolas se inserem2'.

" Jencks, Christopher, et a1 (1979). Who Gets Ahead?. New York: Basic Books. Vide tambem Wright, Eric (1979). Clas
Structure and Incorne Deterrnmation New York. Academic Press
Reproduçáo, contestação e currículo A

O segundo efeito colateral é quase o espelho da eventual ênfase exces-


siva colocada no poder da escola. De certa forma, é uma posição
mista apoiada na ideia de que as escolas podem ser ignoradas,
que se encontram profundamente integradas num quadro social mais
abrangente, parecendo traduzir essencialmente, e sobretudo numa
época de crise, aquilo que a "sociedade necessita". Não se consegue atin-
gir nada de significativo actuando nelas porque são, fundamentalmente,
instituições determinadas. Acredito que quer um quer outro dos efeitos
colaterais podem ter consequências negativas. A medida que vou apre-
sentando os meus argumentos, importa termos alguma prudência rela-
tivamente a esses efeitos. Subjacente à minha própria compreensão
desta questão, encontram-se duas cautelas: por um lado, a assunção de
que a compreensão das instituições educativas e a actuação nas escolas
não é suficiente; por outro lado, ter esta percepção e ignorá-la é sim-
plesmente errado. É o resultado de uma análise incorrecta e mal inter-
pretada politicamente. Na verdade, e tal como tentarei demonstrar, o
sistema educativo, devido à localização específica no seio de uma rede
mais ampla de relações sociais, pode assumir-se como um terreno privi-
legiado em que se podem desenvolver acções importantes.
Nesta secção do capítulo introdutório serei forçado, numa ou noutra
situação, a abordar determinadas temáticas de uma forma genérica, tra-
tando sumariamente as questões e as controvérsias relacionadas com os
estudos de orientação cultural e económica sobre as escolas. Como
resumir o trabalho desenvolvido ao longo de mais de uma década, bem
como os esforços despendidos por outras pessoas quando sabemos que
tal trabalho tem evoluído consideravelmente ao longo destes anos?
Como apreender o célere desenvolvimento de ideias críticas sobre o
desempenho das escolas, sem demonstrar, simultaneamente, que essas
ideias relacionadas com o que acontece nas escolas têm sido, ao mesmo
tempo, influenciadas, fundamentalmente, pela própria prática política
de cada um e pelo intenso debate que se verifica no seio da esquerda, a
respeito da relação entre a cultura e o modo de produção? É impossível
fazer tudo isto obviamente. Neste contexto, decidi abordar esta proble-
mática de três formas.
Em primeiro lugar, tentarei descrever o que é um trabalho de investiga-
ção de orientação marxista, salientando algumas considerações gerais
sobre como deve ser interpretada a reprodução enquanto questão central.
Em seguida, pretendo descrever o desenvolvimento do meu próprio
pensamento relativamente a estas questões, socorrendo-me para tal das
minhas preocupações durante os anos em que escrevi Ideologia e Currí-
culo. Pretendo com isto salientar como a minha análise tem evoluído nos
últimos trabalhos que tenho realizado, evolução que, repito, está forte-
mente influenciada, não só pelo trabalho excepcional desenvolvido actual-
mente pela literatura marxista, como também pelo meu próprio envolvi-
mento na actividade política. O terceiro aspecto, o da acção possível, é
igualmente crucial e será desenvolvido ao longo dos próximos capítulos.
Dada a impossibilidade de fornecer uma ideia completa de todos os
debates que continuam a determinar o trabalho de pessoas como eu,
destacarei nas notas finais algumas das controvérsias que permanecem
em aberto. Assim, muita coisa ficará por dizer, uma vez que para mos-
trar, por exemplo, como o meu próprio trabalho político - com grupos
pobres de indivíduos negros, brancos e hispânicos, e a sua luta para
assegurar os direitos económicos e culturais e os dos seus filhos, com
trabalhadores politicamente progressistas para desenvolver materiais de
educação política e sobre justiça económica, etc. - tem sido tão impor-
tante nas minhas últimas análises, teria que transformar este livro
numa autobiografia. Para já, devo deixar para outros esse género literá-
rio. No entanto, quero salientar que nada do que aqui está escrito será
completamente compreendido sem uma alusão a prática concreta dos
homens e das mulheres com quem trabalho.

Currículo e reprodução
Durante a maior parte do século XX, a educação, em geral, e o campo
curricular, em particular, dedicaram grande parte da sua energia procu-
rando um dado específico. No fundo, procuram exaustivamente há
muito um conjunto geral de princípios que orientem a planificação e a
avaliação educacionais. Na sua generalidade, esta atitude tem-se redu-
zido a tentativas para a criação do método mais eficiente para a constru-
ção curricular. Basta-nos uma análise da história interna das tradições
predominantes no campo - desde Thorndike, Bobbitt e Charters, nos
princípios do século, até Tyler, passando inclusive pelos mais vulgares
behavioristas e actuais gestores de sistemas - para nos apercebermos
como a ênfase colocada na procura de um método eficiente de constru-
ção curricular se tem tornado realmente poderosa".

" Kliebard, Herbert (1971)


'Bureaucracy and Curriculum Theory" In Vernon Haubrich (ed ). Freedom, Bureaucracy and
Schoobng Washington Associatton for Supervision and Curriculum Development, pp 74-93
I Reprodução, contestação e curriculo +

A ênfase colocada n o método tem tido as suas consequências.


A medida que aumentava a racionalidade processo/produto, diluía-se a
importância da educação, numa primeira e última instância, como um
empreendimento político. As questões que formulávamos tendiam a
divorciar-nos do modo como funcionava o aparelho económico e cultural
da sociedade. Um método "neutro" significava, ou parecia significar, a
nossa própria neutralidade. O facto de os métodos que utilizávamos pos-
suírem as suas raízes nas tentativas fomentadas pela indústria para con-
trolar os trabalhadores e aumentar a produtividade, nos movimentos de
eugenia popular e noutros grupos com interesses particulares de classe e
estatuto social, era obscurecido dada a carência extraordinária de uma
visão histórica do campo'". Ao mesmo tempo, parecíamos assumir que o
desenvolvimento deste método supostamente neutro evitar-nos-ia a
necessidade de lidar com a problemática de saber a quem pertence o
conhecimento que deve ser ou está a ser preservado e transmitido nas
escolas. Embora u m determinado número de tradições alternativas
tenha continuado a tentar manter vivo este género de questão política,
de um modo geral a fé na inerente neutralidade das instituições, no
conhecimento ensinado e nos métodos e acções era idealmente adequada
para ajudar a legitimar as bases estruturais de desigualdade social.
A chave desta última frase radica no conceito de legitimação. (Tal
como Wittgenstein, defendo que o significado da linguagem e das práti-
cas está no uso.) E, neste caso, o uso tem sido duplo. Como tentei
demonstrar em Ideologia e Currículo, as tradições que dominam o
campo ajudam à reprodução da desigualdade, servindo, ao mesmo
tempo, para legitimar, não só as instituições que a promovem, como
também as nossas próprias acções no seu meio. Isto não significa que as
crianças, individualmente, não estão a ser ajudadas frequentemente pelas
nossas práticas e discurso; nem tão-pouco significa que todas as nossas
acções do quotidiano são mal interpretadas. Significa sim que macroeco-
nomicamente o trabalho que desenvolvemos pode servir determinadas
funções que pouco ou nada têm a ver com as nossas melhores intenções.
Como perceber isto? Um dos problemas fundamentais com que nos
deparamos é a forma como os sistemas de dominação e de exploração

1 Apple, Michael (1979). Ideology and Curr~rulum.London: Routledge & Kegan Paul. Vide também Selden. Steve (1977).
"Conservative Ideologies and Curriculurn" Educational Thmry XXVII (Surnmer), pp. 205-222; Braverrnan. Harry (1974).
Labor and Monopoly Capital. New York Monthly Review Press; E Collins. Randall (1979). The Credential Society New
York: Academic Press.
persistem e se reproduzem sem serem conscientemente reconhecidos
pelas pessoasz4.Esta questão assume uma importância muito concreta
na educação, em que as nossas práticas comummente aceites procuram
muito claramente ajudar os estudantes a encontrar respostas para mui-
tos dos "problemas sociais e educativos" com que se debatem. Perante
isto, a tónica colocada nestes '(problemas" parece ser útil. No entanto,
ignora algo que é bem claro na actual literatura sociológica.
Os aspectos essenciais desta literatura são descritos de uma forma
muito explícita por DiMaggio, ao salientar que a classificação, apoiada no
senso comum, de indivíduos, grupos sociais ou "problemas sociais"
tende para a confirmação e reforço das relações de dominação geradas
estruturalmente. Com efeito, com alguma frequência, os "actores bem
intencionados, racionais e conscientes" contribuem, por perseguirem
simplesmente os seus próprios fins subjectivos, para a manutenção de
tais relações estruturaisz5.Assim, tais actores, bem intencionados, racio-
nais e conscientes, podem estar, de uma forma explícita, a servir deter-
minadas funções ideológicas no preciso momento em que procuram
diluir alguns problemas que os estudantes ou outras pessoas, individual-
mente, enfrentam. Isto prende-se profundamente com as relações entre
as instituições económicas e culturais - aquilo que muitos marxistas
denominam (numa noção que não deixa de ser problemática) por relação
entre base e superstruturaZ6- relativamente as características individuais
das pessoas. Deste modo, podemos analisar as escolas e a nossa interven-
ção nelas de duas perspectivas: uma primeira, como uma forma de
melhoria e de resolução de problemas através dos quais ajudamos cada
estudante a progredir; e uma segunda, numa escala muito mais vasta, na
qual se observam os padrões que se formam em relação ao tipo de pes-
soas que conseguem progredir e os resultados latentes da instituição.
Tais padrões e resultados sociais mais abrangentes podem dar-nos mais
informação em relação ao modo como funciona a escola no processo de
reprodução, uma função que pode tender a permanecer oculta, caso não
coloquemos a tónica nos nossos actos individuais de apoio.

l4 DiMaggio. Paul (1979). "Review Essay: on Pierre Bourdieu". American loumal o f 5ociology. LXXXIV (May). p. 1461
Ibid , pp 1461-1462.
26 Actualmente. o debate em torno da relação entre base e superstrutura 6 excepcionalmente intenso Vide. por exemplo.
Williams, Raymond (1977) Marxism and Literature New York. Oxford University Press. Barrett. Michele. et ai (eds)
(1979). Ideology and Cultural Reproduction. New York: St. Martin's Press; Hirst. Paul (1979). On Law and Ideology
London- MacMillan. Sumner. Colin (1979). Readmg Meologres New York: Academic Press, e Clarke. John. Critcher.
Chas. and Johnson. Richard (eds.) (1979). Working Clau Culture London. Hutchinson.
Reprodução, contestação e currículo '

Até agora, tenho utilizado termos como função e reprodução. Estes


conceitos destacam o papel das instituições educativas na preservação
do que existe. Todavia, e sem pretendermos ser muito mecanicistas, são
conceitos que implicam uma atenção mais cuidada da nossa parte.
O que é que pretendemos dizer quando olhamos para o modo como as
escolas "funcionam" para reproduzir uma sociedade desigual? Contra-
riamente ao funcionalismo sociológico, em que a ordem é suposta e o
desvio em relação a dita ordem é tido como problemático, as análises
marxistas e neomarxistas evidenciam (ou, pelo menos, deveriam eviden-
ciar) uma outra posição em relação a esta matéria. Ao invés de uma coe-
rência funcional onde todas as coisas se inter-relacionam de uma forma
relativamente suave, de modo a manter uma ordem social basicamente
inalterada, as análises marxista e neomarxista apontam para a "reprodu-
ção contestada das relações fundamentais da sociedade, que lhe permite
reproduzir-se a si própria novamente, mas apenas na forma de uma
ordem social dominante e subordinada (ou seja, antagónica, não fun-
ci~nal)"~~.
Na verdade, as escolas não são "meramente" instituições de reprodu-
ção, onde todo o conhecimento ministrado, explícito e oculto, trans-
forma inexoravelmente os estudantes em seres passivos, aptos e ansio-
sos para se inserirem num sociedade desigual. Esta perspectiva erra em
duas questões cruciais. Em primeiro lugar, porque vê os estudantes
como interiorizadores passivos de mensagens sociais pré-concebidas.
Seja qual for o conteúdo veiculado pela instituição, quer ao nível do
currículo formal, quer ao nível do currículo oculto, este é assimilado
sendo insensível às modificações efectuadas pelas culturas de classe e à
rejeição das mensagens sociais dominantes por parte da classe (raça ou
género). Quem quer que tenha ensinado em escolas da classe trabalha-
dora, em escolas situadas nos guetos da periferia das cidades, e em
'
outros locais, sabe que não é isto que efectivamente acontece. O mais
comum é um processo de reinterpretação por parte do estudante, na 1
melhor das hipóteses, somente uma aceitação parcial do que é veiculado j

I
e, frequentemente, uma rejeição, pura e simples, dos significados plani-
ficados e não planificados das escolas. A verdade é que as escolas neces-
sitam de ser vistas de um modo muito mais complexo do que apenas
através da simples reprodução.

" Hall. StuaR, "The Schooling-Society Relationship: Parallels. Fits. Correspondences, Hornologies". (Policopiado), p 6.
De acordo com outra perspectiva, a análise da reprodução é demasiado
simplista. Subteoriza e, deste modo, negligencia o facto de as relações
sociais capitalistas, em determinadas formas muito importantes, serem
intrinsecamente contraditórias. Dito de outra forma, e tal como afirmei
anteriormente, do mesmo modo que na arena económica, onde o pro-
cesso de acumulação de capital e a "necessidade" de expansão dos merca-
dos e dos lucros geram contradições na sociedade (na qual, por exemplo,
o aumento da inflação e dos lucros cria uma crise de legitimidade, tanto
no Estado como na ec~nomia)'~, também noutras instituições dominan-
tes surgirão contradições idênticas. A escola não fica imune a tudo isto.
A título de exemplo, as escolas, como aparelhos de Estado, desempe-
nham papéis importantes, apoiando a criação de condições necessárias,
não só na acumulação de capital (ordenam, seleccionam e certificam
um corpo de alunos hierarquicamente organizado), como na legitima-
ção (mantêm uma ideologia meritocrática imprecisa, legitimando assim
formas ideológicas necessárias para a recriação da desigualdade)'! Toda-
via, estas duas "funções" das escolas encontram-se frequentemente em
conflito entre si. As necessidades de acumulação de capital podem con-
trariar as necessidades de legitimação, uma situação, aliás, bem evi-
dente actualmente. Isto é notório na escola, com uma relativa sobrepro-
dução de indivíduos credenciados, numa época em que a economia não
mais "exige" tantas pessoas com salários elevados. Tal sobreprodução
coloca em causa a legitimidade sobre os modos como as escolas funcio-
nam"". A um nível mais concreto, podemos observar as contradições da
instituição, uma vez que a escola tem obrigações ideológicas distintas
que podem criar tensões. Para manter a sociedade dinâmica é necessá-
rio capacidade crítica; daí que as escolas devam ensinar os estudantes a
assumirem uma posição crítica. No entanto, a capacidade crítica pode
também servir para desafiar o capital3'. Isto não é uma ideia abstracta.

O'Connor. James (1973). The Fiscal Crisis o f the State.


Tenho argumentado que o Estado tem três funçóes - legitimaçáo. acumulação e reprodução Vide. Apple. Michael.
and Taxel, Joel (1981). "ldeology and Curriculum". In Anthony Hartnett (ed ), Educational Studres and Social Science
London Heinemann
a Vide Bourdieu, Pierre, and Passeron, Jean-Claude (1979). The Inherrtors Chicago University of Chicago Press, p 81.
Collins, Randall (1979). The CredentralSociety New York Academic Press
" Aminzade, Ron, comunicacão pessoal A literatura que analisa o papel da escola enquanto aparelho ideológico tem
aumentado muito Todavia, tende a resvalar para um funcionalismo que pode muito bem não fazer justica ds contradi-
coes e aos conflituosos interesses de classe. quer no seio do Estado, quer entre o Estado e as esferas económicas e cul-
turais da sociedade V~de Dale, Roger, "Educations and the capitalist state contributions and contradictions" In
Michael Apple (ed ). Cultural and Econornrc Reprw'uction rn Education
Reprodução, contestação e currículo "

o Estes conflitos ideológicos permeiam as instituições educativas e desen-


S volvem-se nelas diariamente.
n A ênfase no desenvolvimento de contradições focada nestes últimos
?I parágrafos é importante, não só para reflectirmos no modo como as esco-
)- las se podem envolver em conflitos de acumulação e legitimação,
1- podendo não ser directamente responsáveis. Mas também porque tal
3,
ênfase disponibiliza também um princípio fundamental para analisarmos
b como funciona a própria ideologia, aspecto que tem sido uma parte
I- importante da minha própria investigação e de outros sobre a reprodução.
Assim como a escola se encontra envolvida em contradições que
e- podem ser difíceis para ela resolver, também as ideologias estão repletas
S.
de contradições. Não são conjuntos coerentes de crenças. Provavel-
m mente, é errado pensá-las como sendo apenas crenças. Pelo contrário,
a- são conjuntos de significados vividos, práticas e relações sociais, fre-
m quentemente inconsistentes internamente. No seu interior, possuem
componentes que atingem a verdadeira essência dos benefícios desi-
a-
guais da sociedade e no preciso momento tendem a reproduzir as rela-
m
ções ideológicas e os significados que mantêm a hegemonia das classes
n-
dominantes". Por este motivo, as ideologias são contestadas; são conti-
ri-
nuamente motivo de lutas. Uma vez que as ideologias contêm, simulta-
0-
neamente, no seu seio, elementos de "bom e mau senso", as pessoas, se
i0
nos é permitida a expressão, precisam de ser conquistadas por um lado
ão
ou por outro. Determinadas instituições transformam-se em locais
0-
desta contenda e onde se produzem as ideologias dominantes. A escola é
da um destes importantes locais.
as Neste caso, não é somente a instituição que é importante. Os actores
;á-
(as pessoas) devem elaborar ideologias dominantes. Tal como Gramsci -
i a uma das figuras mais destacadas na análise da relação que se estabelece
de entre a cultura e a economia - salienta, esta tem sido uma das tarefas
ta. preponderantes dos "intelectuais", difundindo e tornando legítimos
quer os significados quer as práticas ideológicas dominantes, tentando,
desta forma, conquistar o consentimento das pessoas e criar uma deter-
mel,
nce minada unidade no conflituoso terreno da ideologia". Os educadores,
81;
aceitemos ou não, encontram-se na posição estrutural de serem esses

iem
3' Johnson. Richard (1979) "Histories of Culturellheories of Ideology Notes on an Impasse". h Michele Barrett et a/.
adi-
cul- (eds ). Ideology and Cultural Reproduction, p. 72
' In 33 Mouffe. Chantal (1979). "Hegemony and Ideology in Gramsci". In C. Maouffe (ed.), Gramsci and Marxist Theory.
London: Routledge & Kegan Paul. p. 187.

--
mesmos "intelectuais", e, desta forma, não estão isolados das tarefas
ideológicas (embora, muitos deles possam, naturalmente, opor-se).
Assim, os contributos de Gramsci são pertinentes. O controlo do apare-
lho cultural da sociedade, quer das instituições que produzem e preser-
vam o conhecimento, quer dos actores que nelas trabalham, é essencial
na luta pela hegemonia ideológica.
Obviamente, todos os comentários gerais relacionados com o modo
como os estudos recentes têm abordado a ideologia e a reprodução levan-
tam algumas questões excepcionalmente complexas. Reprodução, Estado,
legitimação, acumulação, contradição, hegemonia ideológica,
base/superstrutura, tudo isto são conceitos estranhos para uma área com-
prometida na elaboração de métodos neutros e eficientes. Todavia, são
conceitos essenciais caso pretendamos assumir, com seriedade, não só a
natureza política da educação e do currículo, mas também as vantagens e
os resultados desiguais provocados pela escolarização". Desta forma, na
generalidade, se reflectirmos em torno das características internas das
escolas e do conhecimento em si contido como algo profundamente
implicado nas relações de dominação, que reflexo produz o uso de tais
conceitos na análise das escolas e do currículo?
Stuart Hall, na discussão sobre as várias formas como os marxistas
têm interpretado a educação (e não são todas homogéneas; diferem radi-
~ a l m e n t e )capta
~ ~ , a essência parcial da abordagem adoptada por aqueles
que entre nós foram influenciados por tais estudos e, em particular. pela
obra original de Gramsci. Uma citação recolhida de um dos seus escri-
tos resume, de forma bastante explícita, alguns dos fundamentos desta
posição:
"(Esta posição] atribui as relações da estrutura económica a determi-
nação fundamental de assegurar a tomplexa unidade' da sociedade,
no entanto entende as denominadas 'superstruturas' como tendo um
'trabalho' vital e crucial na sustentação, aos níveis social, cultural,
político e ideológico, das condições que permitam a continuação da
produção capitalista. Para além disso, entende a superstrutura como
tendo, acima de tudo, a responsabilidade de situar a sociedade em

Vide Karabel. Jerome, and Halsey. A. H. (1977) (eds.). "Power and Ideology in Education" New York: Oxford University
Press. Persell. Caroline Hodges (1977). Education and Inequahty New York Free Press.
Sobre o debate provocado por tais diferenças vide, por exemplo, Apple, Michael (1979). Idmlogy and Cumculurn
London Routledge & Kegan Paul; Apple. Michael (ed.) (1982). Cultural and Econornic Reproduct~onin Education.
London- Kegan &Paul
is (conformidade' com as exigências e as condições de longo prazo 7'1
impostas pelo sistema económico capitalista (por exemplo, no fraba-
1. lho de Gramsci). Embora as supersfruturas sejam mais determinadas
e-
que deferminantes, esta questão salienta que a topografia baselsu-
r- perstruturas não é tüo importante como o 'trabalho' relativamente
al autónomo que as superstrufuras produzem face à estrutura econó-
mica. Tal 'trabalho' é visto como difícil e contesfado, u m trabalho que
do se gera através de mecanismos de oposiçüo e de antagonismo - em
n- suma, por intermédio da luta de classes presente nos diferentes níveis
10, da sociedade - onde as correspondências lineares não acontecem com
:a, frequência. Tal abordagem, longe de imaginar uma simples recapifu-
n- lação entre as varias estruturas da sociedade, entende o 'trabalho' que
ão as superstruturas (como as escolas] executam como necessário preci-
samente porque, por si só, o sistema económico não pode assegurar
la
todas as condições necessárias para a sua própria ampla reprodução.
se O sistema económico (por si só] não pode assegurar que a sociedade
na se eleve a u m determinado nível geral de civilização e de cultura que o
das seu sistema avançado de produção precisa. A criação de uma ordem
nte social em tomo das relações económicas fundamentais é füo impor-
ais tante como a própria produção; as relações de produção, por si só, não
podem 'produzir' uma determinada ordem social. Deste modo, e neste
;tas contexto, a relação não é de correspondência mas de acoplamento -
idi- o acoplamento de duas esferas distintas, contudo, inter-relacionadas
!les e interdependentes. Gramsci é u m dos teóricos mais notáveis desta
perspectiva. A natureta do 'acoplamento' pretendido surge descrita
,ela
na frase de Gramsci, 'o complexo estrutura-superstrutura'. De novo,
cri- e simplificando, podemos denominá-lo por paradigma da hege-
!sta monia. 'I3"

Muito embora alguns destes aspectos devam e estão a ser actualmente


muito debatidos, salientamos o argumento aqui em destaque: institui-
ções "superstruturais" como as escolas têm um grau relativo de autono-
mia. A estrutura económica não pode assegurar qualquer correspon-
dência linear entre ela própria e tais instituições. Todavia, essas
instituições, nas quais se inclui a escola, exercem funções cruciais na
recriação das condições necessárias para a manutenção da ideologia
hegemónica. No entanto, essas condições não são impostas. São e
versity
necessitam de ser continuamente reconstruídas no campo de institui-
rulurn
:ation.
% Hall. Stuart, The Schooling-SocfetyRelationship. p. 7
ções como a escola. As condições de existência de uma determinada for-
mação social particular são reconstruídas através de relações antagóni-
cas (e, por vezes mesmo, através de formas de oposição, tal como tere-
mos oportunidade de observar mais adiante, à medida que vou
discutindo, neste capítulo, a minha própria evolução em relação a estes
conceitos e posições). Acima de tudo, a hegemonia não surge do nada;
deve ser elaborada para locais muito específicos como a família, o local
de trabalho, a esfera política e a escola'". E a minha preocupação princi-
pal tem sido, precisamente, o processo de compreensão sobre como
surge a hegemonia, como é parcialmente produzida, através das interac-
ções pedagógicas, curriculares e avaliativas que ocorrem diariamente
nas escolas.

Ideologia e currículo como uma primeira aproximação


O que é que emerge desta discussão geral sobre o modo de interpretar
as escolas? Nenhum modelo linear, unidireccional, isento de conflitos,
do tipo "base/superstruturan conseguirá analisar a escola. A contestação
é central face à reprodução. Conceitos como o de reprodução podem ser
inadequados. Para mim, é mais fácil afirmar isto agora e começar a per-
ceber plenamente a importância das implicações da perspectiva veicu-
lada por Hall do que o era há três anos a esta parte, quando estava a
concluir o livro Ideologia e Currículo".
Para ser sincero, todas estas questões em torno da reprodução, contra-
dição e contestação não me ocorreram simultânea e subitamente; nem
táo-pouco fui capaz de avaliar imediatamente como poderiam ser utiliza-
das ou mesmo o que poderiam significar. Dado o meu interesse e o de
outros como Bowles e Gintis, Bourdieu, Bernstein, etc., na problemática
da reprodução - um interesse que, julgo eu, naquele momento histórico
específico era profundamente importante, mas que, no início, tendia a
excluir outros aspectos que poderiam estar a suceder nas escolas - tais
questões tiveram que ser debatidas, trabalhadas e, finalmente, foram,
gradualmente, incorporadas. Em algumas situações implicou (e implica

3'Aqui o argumento é idêntico ao de Finn. Grant e Johnson quando afirmam que a análise deve "abarcar as relações
entre as escolas e outros espaços de relações sociais no seio de uma formaçáo social especifica" Finn. Dan. Grant.
Neil. and Johnson. Richard and the CCCS Education Group (1978) Social Democracy. Education and the Crisõ Bir-
mingham Ilniverslty of Birmingham Centre for Contemporary Cultural Studies, policopiado. p 4
'Saliente-se que a primeira edição da obra Idmlogia e Currlculo data de 1979 e que a primeira edição da obra Educaçáo
e Poder data de 1985 (NT)
Reprodução, contestaçáo e curriculo

ainda) uma autocrítica séria ao meu próprio trabalho anterior, e ao de


outras pessoas, trabalhando e corrigindo os erros e reelaborando aquilo
que nos parece agora demasiado simples e mecanicista.
Considerando este esforço para tentar fugir de uma abordagem sim-
plista da reprodução, efectuado por parte de um determinado número
de pessoas como eu, gostaria seguidamente de utilizar o trabalho que ,
tenho desenvolvido como um caso paradigmático, quer para a com-
preensão da influência que o excepcional crescimento da literatura rela-
cionada com os processos de reprodução, contradição e contestação tem
tido nos estudos que procuram situar a escola numa rede mais abran-
gente de relações sociais, quer para desenvolver a lógica dos argumen-
tos que apresentarei nos capítulos seguintes.
No meu trabalho anterior, realcei o papel dos currículos na criação e
recriação da hegemonia ideológica das classes e segmentos de classe
dominantes da sociedade. Em essência, a questão fundamental que con-
duzia o meu trabalho era a relação entre poder e cultura. Muito embora
não tenha sido totalmente claro a respeito desta matéria, apreendi,
intuitivamente, que a cultura tinha uma forma dual. A cultura é a expe-
riência vivida, desenvolvida a partir das interacções e vidas quotidianas
de grupos específicos e corporificada nessas mesmas práticas diárias.
Contudo, tem também uma outra característica. Estou-me a referir,
neste caso, a capacidade que determinados grupos na sociedade têm
para transformar a cultura numa mercadoria, acumulando-a, tornando-
-a no que Bourdieu denominou por "capital cultural". Parecia-me, sob
muitos aspectos, que o capital cultural e o capital económico poderiam
ser pensados de uma forma idêntica3q. Contudo, ambos os significados
de cultura - mercantilizada e vivida - estavam parcialmente desenvolvi-
dos nos meus primeiros trabalhos, talvez devido aos debates e as ques-
tões em que pretendia participar.
Grande parte da minha análise da escola no livro Ideologia e Currículo
concentra-se em dois aspectos: (1)um debate entre as teorias liberais do
currículo e da educação em geral, tentando revelar o que é realmente
ensinado nas escolas e quais os seus possíveis efeitos ideológicos; e (2)
um debate dentro da comunidade intelectual de esquerda relacionado
com aquilo que as escolas fazem.

" E muito importante que nào nos esqueçamos que o capital ndoe uma coisa, mas um conjunto de relações
O primeiro destes aspectos partia da minha concordância básica com
pessoas como Bowles e Gintis, Althusser e outros, para quem as escolas
eram entendidas como importantes instituições de reprodução social.
Os esforços empreendidos para reformar tais instituições tendiam a ser
equivocados, muito porque deixávamos de reconhecer o funcionamento
socioeconómico da instituição. Tal como essas pessoas, procurei descre-
ver como se processava, na verdade, tal funcionamento.
Os tipos de perguntas que elaborava eram distintos dos que tendem
em dominar o campo pensado em termos de eficiência. Em vez de per-
- guntar como poderíamos fazer para que u m aluno adquirisse mais
conhecimento curricular, elaborava um conjunto de perguntas mais
político. "Por que razão e de que modo é que os aspectos específicos de
uma cultura colectiva se encontram representados nas escolas como
conhecimento factual objectivo? Como é que o conhecimento oficial
pode, concretamente, representar as configurações ideológicas dos inte-
resses dominantes na sociedade? Como é que as escolas legitimam tais
padrões limitados e parciais de conhecimento como verdades inquestio-
ná~eis?~'
Estas questões forneceram um conjunto fundamental de interesses
que conduziram o meu trabalho. Tal como frisei anteriormente, encon-
trava-me preocupado pelo facto de ao longo da nossa longa história cur-
ricular, desde Bobbitt e Thorndike até Tyler e, digamos, Popham e
Mager, se ter tentado transformar o currículo numa mera preocupação
com métodos eficientes, o que nos levou quase a despolitizar totalmente
a educação.
A procura por uma metodologia neutra e a contínua transformação do
campo numa "instrumentalização neutra" ao serviço de interesses
estruturalmente não neutros levou-nos a ocultar o contexto político e
económico do trabalho que realizávamos. O tipo de análise económico-
-política em que me encontrava envolvido era bem semelhante, em
muitos aspectos, a análise que vinha a ser feita por Katz, Karier e Fein-
berg na história e na filosofia da educação, por Bowles e Gintis e por
Carnoy e Levin na economia da educação e ainda por Young, Bernstein
e Bourdieu na sociologia da educação. Muito embora houvesse muitas
semelhanças, existiam e existem, no entanto, discordâncias profundas

Apple. Michael(1979). Ideology and Curriculum. London: Routledge & Kegan Paul.
I

entre muitos de nós na esquerda que analisamos e actuamos [nlas insti-


tuições educativas. Tais discordâncias providenciaram o contexto para a
segunda questão que anteriormente referi.
Grande parte deste género de análise neomarxista tratava a escola
como uma espécie de caixa-negra e isto provocava-me tanta insatisfação
como a análise conduzida pela tradição dominante na educação. Tal
como esta, aquela não entrava na escola para tentar descobrir como se
efectuava a reprodução. Estranhamente, e sob muitos aspectos, era o
equivalente a Tyler Rationale no campo do currículo, dado que a ênfase
tendia a ser cientificista e a colocar a sua tónica no input e no output,
no consenso e na produção eficiente. As interpretações sobre a escola
eram acentuadamente distintas das que eram propostas por Tyler e
pelos "peritos" em questões curriculares, orientados pelos padrões da
eficiência, todavia, as escolas eram entendidas como recebendo um
input (os alunos) processando-o de um modo eficiente (através de um
currículo oculto) e transformando-o em agentes de uma força de traba-
lho profundamente desigual e estratificada (output). Deste modo, o
papel vital da escola repousava no ensino de uma consciência ideológica
que permitia a reprodução da divisão do trabalho na sociedade. Até
certo ponto, esta interpretação seria correcta, contudo, não respondia a
duas questões. Como é que isso era atingido? As escolas só faziam isso?
Uma parte bastante significativa do livro Ideologia e Currículo tenta
responder a estas questões. Questionei a escolarização socorrendo-me
de uma variedade de técnicas - históricas, económicas, culturais e etno-
gráficas. No decorrer do processo, ficou claro que deviam ser analisados,
pelo menos, três elementos básicos inerentes à escolarização. Estes ele-
mentos incluíam: as interacções diárias e as regularidades do currículo
oculto que tacitamente ensinavam normas e valores importantes; o
corpo formal do conhecimento escolar - ou seja, o próprio currículo
oculto - planificado e fundamentado nos vários materiais e textos esco-
lares e filtrado através dos professores; e, finalmente, as perspectivas
fundamentais que os educadores (entendamos aqui as questões levanta-
das por Gramsci relacionadas com o papel dos intelectuais) utilizam
para planificar, organizar e avaliar o que acontece nas escolas4'. Tais ele-
mentos foram examinados com o intuito de revelar como os significa-
dos e as práticas quotidianas tão estandardizados nas salas de aula -
embora ali inseridos apenas com o objectivo de ajudar crianças indivi-
dualmente - tendiam a funcionar menos como mecanismos de apoio
aos alunos e mais como parte de um complexo processo de reprodução
cultural e económica das relações de classe da nossa sociedade.
Uma palavra nesta última frase realça a questão "As escolas só fazem
isso?" - a palavra "cultural". Tal como Bernstein, Bourdieu e sobretudo
Gramsci, também eu entendia com clareza que as escolas eram institui-
ções não só culturais, como também económicas, e que a análise da
reprodução da divisão social do trabalho não explicaria por completo o
modo como as escolas contribuem para a criação de uma determinada
hegemonia ideológica. Assim, e caso pretendamos observar como se
opera a dominação cultural e como "foi criada a unidade", tanto a
forma, como o conteúdo do currículo assumem, novamente, uma
enorme preponderância. Aquilo que os estudiosos que lidam quase
exclusivamente com o problema da reprodução económica estavam a
relegar para u m plano secundário era a cultura preservada, transmitida
e rejeitada no seio da própria instituição. A forma perante a qual o cur-
rículo se organizava, os princípios através dos quais se elaborava e se
avaliava e, finalmente, o conhecimento em si, tudo isto se tornava pro-
fundamente importante se pretendêssemos perceber como se reprodu-
zia o poder. Refiro-me nesta circunstância, não só ao poder económico,
mas também ao poder cultural, embora ambos apresentem uma relação
muito próxima entre si".
No entanto, a ênfase que incidia no currículo e na cultura marginali-
zava ainda um aspecto importante das escolas, e é neste domínio que
também tentei ir mais além do raciocínio proposto pelos teóricos da
reprodução económica, tais como Bowles e Gintis. Tais teóricos tendiam
a olhar a escola como u m local onde se transmitiam normas, disposi-
ções e valores de fundamentação económica, facto este a que também já
me havia reportado tanto na etnografia do que é ensinado nos jardins-
-de-infância, como na análise efectuada e m Ideologia e Currículo,
aos currículos de estudos sociais e de ciências. Esta perspectiva incli-
nava-se para uma visão das escolas e respectivos currículos explícito e
oculto como constituindo, apenas, componentes de um determinado

" Collins. Randall (1979) The Credent~alSociety New York Academic Press

64 .
Reprodução, contestaGão e currículo.

mecanismo de "distribuição". Esta análise até estava correcta e era boa


1 abordagem. Todavia, negligenciava um factor essencial daquilo que o
b aparelho educativo também faz. Pretendo mostrar como o sistema edu-
cativo engloba um conjunto de instituições igualmente preponderantes
I para a "produção" do conhecimento. Esta problemática era e é o ele-
1 mento-chave na abordagem que proponho em relação ao modo como
devemos interpretar a educação, abordagem esta que o leitor terá opor-
a tunidade de constatar, no próximo capítulo.
3 As escolas não se encontram organizadas para ensinar unicamente o
a "conhecimento relacionado a quê, como e para quê", exigido pela socie-
e dade, mas organizam-se também de tal forma que, em última instância,
a apoiam a produção do conhecimento técnico/administrativo necessário
h para, por exemplo, expandir mercados, controlar a produção, o trabalho
e e as pessoas, envolver-se na produção de investigação básica e aplicada
a exigida pela indústria e ainda criar necessidades "artificiais" abrangen-
Ia tes no seio da população43. O conhecimento técnico/administrativo é
r- possível de ser acumulado. Funciona como uma forma de capital cultu-
I€! ral que, tal como o capital económico, tende a ser controlado e a servir
)- os interesses das classes com mais poder na sociedade44.Os capitais cul-
1- tural e económico encontram-se profundamente relacionados. Os tipos
D. de conhecimento considerados como mais legítimos na escola actuam
b como um complexo filtro para estratificar grupos de alunos, de acordo
com as necessidades específicas do tipo de formação social. As escolas
i- produzem um conhecimento muito específico e, desta forma, recriam,
ie simultaneamente, categorias de desvio que estratificam os alunos.
la .A criação de desvios e a produção de capital cultural estão intimamente
m implicadas.
á- Deste modo, comecei a perceber a necessidade de interpretar a escola-
is rização como um sistema quer de reprodução quer de produção. A aná-
6- lise em torno daquilo que atinge as escolas e respectivas justificações,
o, daquilo que conta como conhecimento e valores legítimos, estaria
li- incompleta se não tivéssemos em atenta consideração os papéis comple-
e xos e contraditórios que as escolas exercem. Tal como salientam alguns
do dos "novos" sociólogos da educação, as escolas processam não só pessoas,
-

" Noble, David (1977).America by Design. New York: Alfred A. Knopf. E Castells, Manuel (1980). The Economic Crisis
and Amencan Soc~ety.Princeton: Princeton Universlty Press.
-Neste caso especifico. discordo de Bourdieu dado que não aprofunda o modo como o capital cultural é produzido.

CCPP-EP-05 65
mento abrange mais que a sua distribuição diferenciada entre diferentes
.
tipos de pessoas, incluindo também a sua produção e, em última instân-
cia, a sua acumulação por parte dos que se encontram no poder.
Muito embora tudo isto pareça profundamente abstracto, as suas raí-
zes encontravam-se e encontram-se em algo muito mais concreto.
Como alguém que não só tinha ensinado durante muitos anos, quer no
ensino básico, quer no ensino secundário, como também tinha traba-
lhado continuamente como professor na formação de professores e de
I
gestores, procurava mecanismos para entender tanto a minha como as
suas formas de acção. A título de exemplo, os professores culpavam-se
como indivíduos, ou aos seus alunos, pelos fracassos dos alunos, tal e
qual como eu o fazia. Contudo, cada vez mais me parecia que o pro-
blema não era uma questão de quantidade de trabalho despendido pelos
professores e por outras pessoas envolvidas no currículo. Na verdade,
poucos grupos de pessoas trabalham tão duramente e em circunstâncias
tão incertas, difíceis e complexas como professores e gestores. Pelo con-
trário, era cada vez mais evidente que a própria instituição e as relações b
que estabelecia com as outras agências sociais poderosas provocavam as
práticas e as regras dominantes que determinavam as vidas dos educa-
dores. Colocar a culpa nos professores e incriminar os indivíduos não
conduzia a nada. Parecia ser eticamente mais correcto descobrir sobre-
tudo o motivo que levava a instituição a actuar de um modo específico
ultrapassando as acções individuais, implicando-as ideológica e mate-
rialmente. Assim, poderíamos tomar decisões muito mais relacionadas
com as acções curriculares e pedagógicas. Embora a compreensão em
torno da questão do controlo constituísse apenas um pequeno passo
para desafiar esse mesmo controlo, era um passo que sentia ser essen-
cial, caso pretendêssemos observar objectivamente tal controlo come-
çando por compreender os diferentes benefícios - tanto económicos
como culturais - daí resultantes.
Ao mesmo tempo, a minha própria prática modificava-se politica- b
mente, a medida que tomava consciência de tais vantagens diferencia-
das e das estruturas em que a educação se encontrava envolvida. A aná-
lise, embora ainda deficiente em determinados aspectos, que eu ia
apreendendo revelava-se estimulante noutros aspectos. Exigia u m
envolvimento ainda mais profundo na acção e na política socialistas aos
mais variados níveis, retroagindo, desta forma, sobre a minha análise
I Reproduçao,contestação e curriculo

inicial. O meu trabalho inicial parecia não "teorizar" adequadamente os


77

s tipos de coisas que eu ou os grupos de trabalhadores, os pais e os profes-


-
sores progressistas com quem trabalhava fazíamos. Isto tornou-se num
objectivo cada vez mais premente.

Conflito e contradição no trabalho e na cultura


Após a leitura da secção anterior deste capítulo, relacionada com sim-
ples teorias de reprodução e respectivos problemas, tornou-se provavel-
mente claro para o leitor que parte da questão se encontrava no facto de
que a metáfora dominante na maioria das análises elaboradas em Ideo-
logia e Currículo era a da ideia de reprodução. Ampliei-a com o intuito
de incluir considerações tanto culturais como económicas, defendendo
a escola como um aparelho produtivo e reprodutivo. Todavia, nesta fase,
a orientação mantinha-se ainda a um nível muito funcional. Interpre-
tava as escolas, e especialmente o currículo oculto, como possuindo
uma correspondência bem conseguida com as necessidades ideológicas
do capital: precisávamos de constatar como é que isso efectivamente se
realizava. A lacuna mais óbvia das minhas concepções na altura era a de
I
uma análise que se debruçasse não só sobre as contradições, os confli-
tos, as mediações e sobretudo as resistências, como também sobre a
1 reprodução. Isto porque, muito embora me tivesse oposto aos modelos
do tipo base/superstrutura, onde a forma económica determina total-
mente o conteúdo e a forma culturais e embora pretendesse também
comprovar que a esfera cultural revelava um determinado grau de auto-
nomia relativa, eu possuía uma noção de determinação teoricamente
pouco desenvolvida. Esta noção conduzia-me a uma lógica de corres-
pondência entre o que as escolas ensinavam e as "necessidades" de uma
sociedade desigual e que podia não explicar na íntegra outras questões
que poderiam estar a suceder.
Ao debater-me com esta questão, o trabalho do meu colega Erik Olin
Wright sobre a natureza das determinações revelou-se muito útil.
Wright identificou uma série de modos básicos de determinação, alguns
deles indicando uma determinada situação em que uma instituição ou
uma prática específica simplesmente reproduzia uma dada ordem social
ou ideologia. Contudo, revelou também que algo mais podia estar a
acontecer. Poderiam existir significados e práticas que contradiziam
os interesses explícitos e implícitos da classe dominante. Havia
"instituições" importantes - como por exemplo o Estado - que media-
vam os interesses do capital. E, mais importante ainda, poderiam existir
lutas e acções específicas, embora, por vezes, de uma forma não cons-
ciente, por parte de grupos e actores humanos que podiam mediar e
transformar os significados e as estruturas existentes de forma muito
significati~a~~.
Comecei a compreender que as explicações funcionalistas do currí-
culo oculto - que procuravam demonstrar não só que os estudantes e os
trabalhadores estavam eficazmente socializadosl como também que o
poder das formas técnico-administrativas usadas pelo capital não era
desafiado - eram parte integrante desse mesmo processo de reprodução
ideológica contra o qual eu me opunha. Isto implicava que eu tinha que
examinar duas áreas: as resistências tanto ao nível da escola como ao
nível do local de trabalho. Se Wright (tal como a minha própria expe-
riência pessoal) estivesse correcto, então eu deveria conseguir encontrar
processos contraditórios no funcionamento de tais instituições e não
apenas uma correspondência entre os desejos formulados pelo capital e
aquilo que acontece. E tais processos contraditórios deveriam exacer-
bar-se a medida que a crise estrutural se agudizava.
Esta consciência crescente sobre a forma como a contestação e as
resistências funcionam e ainda o meu trabalho político com as pessoas
nas fábricas, nas escolas e nos escritórios encaminhou-me para a análise
em torno da investigação sobre o controlo diário do trabalho, investiga-
ção esta que tem revelado um rápido crescimento. Algo tornou-se ime-
diatamente evidente. Quando se examina o processo de trabalho, a vida
real dos homens e das mulheres nos escritórios e nas fábricas, torna-se
evidente que aquilo que encontramos é um quadro muito mais com-
plexo do que aquele que nos induz a literatura sobre o currículo oculto,
onde correspondências simplistas entre a escola e a economia surgem
de uma determinada forma linear e directa.
Esta complexidade é muito importante dado que a veracidade das teo-
rias de correspondência se encontra dependente da exactidão da sua
visão sobre o processo de trabalho. Todavia, o verdadeiro controlo e a
organização do processo de trabalho, mais do que encontrarem traba-
lhadores constantemente dirigidos pelo vínculo salarial, pela autori-
dade, pela planificação dos especialistas e pelas normas de pontualidade

Wright, Eric Olin (1978) Class, Cris~sand the State. London: New Left Books
Reprodução, contestação e curriculo ?

e produtividade, demonstram o quanto os trabalhadores em todos os


níveis, frequentemente, resistem e se envolvem em acções que são pro-
fundamente contraditórias. Uma citação do terceiro capítulo permitir-
-nos-á dar uma ideia do meu último argumento:
' E m vez do processo de trabalho ser controlado completamente pela
gestão, em vez de estruturas inflexíveis e herméticas de autoridade, de
normas de pontualidade e de obediência, o que se vê é uma complexa
cultura do trabalho. Esta mesma cultura do trabalho providencia ele-
mentos pertinentes para a resistência do trabalhador, para a acção
colectiva, para o controlo informal do ritmo e do padrão e para a rea-
firmação de sua própria humanidade... Os homens e as mulheres tra-
balhadores parecem engajados em actividades explícitas e informais
que se perdem quando falamos apenas em termos reprodutivos. "

Assim, claramente, os trabalhadores resistem de formas subtis e


importantes. Frequentemente contradizem e, de alguma forma, conver-
tem os modos de controlo em oportunidades de resistência, mantendo
as suas próprias normas informais que orientam o processo de trabalho.
Qualquer que seja a reprodução, ela é atingida não apenas através da
anuência as ideologias hegemónicas, como também através de oposição
e resistências. No entanto, convém aqui lembrar que tais resistências
ocorrem no terreno estabelecido pelo capital e não necessariamente
pelas pessoas que trabalham nos escritórios, lojas e indústrias.
É preciso também não esquecer um aspecto a que me referi anterior-
mente e que abordarei com maior profundidade no terceiro e quarto
capítulos. Estas resistências culturais informais, este processo de con-
testação, podem actuar de forma contraditória, tendendo inclusiva-
mente a ser reprodutivas. Os trabalhadores, ao resistirem e ao esta-
belecerem uma cultura de trabalho informal, que tanto recria um
determinado tipo de controlo do trabalhador sobre o processo de traba-
lho como rejeita grande parte das normas em que supostamente se
socializam, podem também estar a reforçar, de forma latente, as rela-
ções sociais de produção capitalista. De facto, podem controlar parcial-
mente o nível de destreza e o ritmo de seu trabalho, mas, na verdade,
não modificam as exigências mínimas da produção, nem tão-pouco
desafiam os "direitos1' do capital. As resistências a um determinado
nível podem, de certo modo, reproduzir a falta de controlo num outro
nível.
O conjunto das análises do mundo do trabalho foram muito impor-
tantes para mim. O meu trabalho sobre o "outro lado do currículo
1 oculto", sobre como é efectivamente o processo de trabalho, forneceu-
-me uma perspicácia considerável para a compreensão do modo de
desenvolvimento das formas culturais de oposição no quotidiano. O
interesse que tinha na ideologia e na autonomia relativa da cultura per-
maneceu forte, uma vez que, se efectivamente se registavam actos de
resistência e de contestação, então tais actos podiam ser utilizados tam-
bém para encetar mudanças estruturais importantes. Se a expressão nos
é permitida, esses actos poderiam ser utilizados para "conquistar" pes-
soas para o outro lado. Os modelos do tipo "base/superstrutura" eram,
neste caso, claramente muito redutores, quer teórica, quer politica-
mente, pelo que eu tentava agora aprofundar em determinados aspectos
significativos. No entanto, as tentativas que realizei - para lidar com a
cultura e com a economia de uma forma mais séria, para articular os
princípios de produção do conhecimento, assim como os da reprodução
- foram também estimuladas por algo mais. Um avanço significativo em
relação à questão da reprodução e produção cultural estava a ser efec-
tuado, sobretudo, por parte de etnógrafos marxistas.
As recentes investigações etnográficas, particularmente as conduzidas
por pessoas como Paul Willis no Centre for Contemporary Cultural Stu-
dies da Universidade de Birmingham, providenciaram-me elementos
cruciais que permitiram aplicar à escola algo do que aprendera sobre o
processo de trabalho. Willis e outros demonstraram que as escolas, ao
invés de serem locais onde a cultura e as ideologias são impostas aos
estudantes, são locais onde essas coisas se produzem. E, tal como nos
locais de trabalho, produzem-se formas que estão repletas de contradi-
ções e através de um processo que, em si, se baseia na contestação e na
Novamente se destacavam a resistência e a importância da cul-
tura vivida. As ideias gerais que esboçara na análise anterior sobre a
reprodução não eram de todo meras abstracções. O legado das perspec-
tivas mecanicistas era agora colocado num plano mais lateral.
As pesquisas etnográficas ajudaram-me a clarificar que não havia
nenhum processo mecanicista em que as pressões externas por parte
da economia ou do Estado moldavam inexoravelmente as escolas e os

WiIIis. Paul (1977) Learning to Labour Westrnead Saxon House, e Everhari. Roberi (1979) The In-Between Years Stu-
dent Life in alunior High School California Graduate School of California University of California
I
Reprodução, contesta@o e nnr*iibS
1
I
seus estudantes, de acordo com os processos envolvidos ria legitimação
I e na acumulação do capital económico e cultural. Os próprios estudan-
tes possuem um poder - baseado nas suas próprias formas culturais.
e Actuam de formas contraditórias, que tanto sustentam esse mesmo pro-
1 cesso reprodutivo como o "penetram" p a r ~ i a l m e n t eTal
~ ~ .como a minha
discussão em torno de determinada literatura de referência sobre as
e resistências culturais e de classe revelará, no capítulo 4, os grupos de
I- estudantes da classe trabalhadora rejeitam categoricamente, e com
u muita frequência, o mundo da escola. Esta resistência encontrar-se-á
5- repleta de contradições e provocará tentativas de intervenção por parte
n, do Estado, em épocas de intensa agitação social e ideológica.
1- Para além do trabalho de Willis, outros estudos, nos Estados Unidos,
M evidenciavam aspectos semelhantes. A título de exemplo, a etnografia
a I que Robert Everhart realizou sobre os estudantes que se encontravam no
os final do primeiro ciclo revela como tais jovens, predominantemente da
ão classe trabalhadora, despendiam grande parte do seu tempo "matando-o"
im e recriando formas culturais que Ihes conferissem algum poder no
ec- ambiente da escola". Muito embora os referidos estudantes não rejeitas-
I sem totalmente o currículo formal, dedicavam-lhe apenas o mínimo do
jas que Ihes era exigido, tentando inclusive minimizar essas obrigações. Tal
tu- como os "rapazes" do trabalho de Willis, estes estudantes resistiam.
tos Entregavam somente o mínimo necessário para não colocar em perigo a
eo hipotética mobilidade que alguns deles poderiam ter. No entanto,
ao "sabiam" antecipadamente que era apenas uma possibilidade que não
30s estava de todo garantida. Na realidade, a maioria manter-se-ia no mesmo
10s percurso económico dos seus pais. Os elementos de auto-selecção e das
idi- formas culturais de resistência, que tanto reproduzem como contradi-
na zem as "necessidades" do aparelho económico, revelam a autonomia
:ul- relativa da cultura. Fornecem ainda um dado importante para qualquer
ea análise séria relacionada com o que fazem as escolas.
lec- Com efeito, sem entrar nas escolas, sem observarmos como e "por-
que" 6 que os estudantes rejeitam os currículos explícito e oculto e,
ivia ainda, sem relacionar estas questões com concepções não mecanicistas
irte
: os "Na verdade. corre-se um risco na utilização de conceitos como o de "penetra~ao",sobretudo dada a forma como as
paldvras e as imagens eróticas dominam o nosso uso linquístico. Vide. Bisseret, Noelle (1979). Education, Class
Languageand Idwlogy. London Routledge & Kegan Paul.
i Stu- " Everhart, Robert (1979). The In-8etween Yean Student Life ;n a lunior tifgh School Californa- Graduate School of
California, University of California.
de reprodução e de contradição, não conseguiremos compreender a
complexidade do trabalho que as escolas desempenham como espaços
de produção ideológica4'.
Neste contexto, a noção de uma etnografia especificamente marxista é
muito importante. Na verdade, contrariamente às representações tri-
viais que procuram um cunho da ideologia económica em tudo, uma
abordagem mais sofisticada procura analisar a ideologia numa perspec-
tiva distinta. Não é uma forma de falsa consciência "imposta" pela eco-
nomia. Pelo contrário, é parte de uma cultura vivida que é o resultado
das condições materiais das práticas quotidianas. É um conjunto de sig-
nificados e de práticas que, efectivamente, contêm, no seu seio, tanto
elementos de bom senso como elementos reprodutivos. E uma vez que
possui elementos de bom senso, tal como no caso dos trabalhadores que
anteriormente analisei, torna-se, deste modo, objectivamente plausível
envolver-se numa actividade centrada numa educação política que con-
teste os fundamentos ideológicos das relações de patriarcado, de domi-
nação e de exploração na sociedade em geral. A possibilidade objectiva
da educação política é algo a que devo regressar nos capítulos seguintes.
A medida que tudo isto ocorria e a medida que começava a ter uma
ideia mais precisa de um quadro teórico mais minucioso que me pode-
ria ajudar a compreender as práticas políticas e culturais que observava
(e nas quais me estava a envolver), comecei a constatar que agora pode-
ria inclusivamente tentar responder, de uma forma mais coerente, a
algumas das questões mais tradicionais que minavam a educação. Se
pretendia perceber por que razão as tentativas de reforma frequente-
mente fracassavam, por que motivo aqueles currículos que eram elabo-
rados de uma forma mais criativa se revelavam incapazes de chegar aos
muitos dos estudantes mais "desprivilegiados", os instrumentos de pes-
quisa e os quadros conceituais facultados pelas etnografias de orienta-
ção marxista forneciam importantes indicações.
Estávamos muito mais próximos de entender isto plenamente,
devido a esses mesmos estudos sobre resistência, contestação e cultura
vivida.

49Apple. Michael (1980). "Analyzing Determinations: Understanding and Evaluating the Production of Social Outcomes in
Schools". Curriculum Inquiry X. pp. 55-76. Existem outras formas importantes de conceber a produçáo cultural como
um processo de produ~áo.de per se. Por exemplo, vide os ensaios de Barrett ef a1 (eds.), Ideology and Cultural
Production, Rosalind Coward and John Ellis (1977). Language and Materialism London Routledge & Kegan Paul
e Wexler, Philip. "Structure, Text and Subject A Critical Sociology of School Knowledge". in Apple. Michael (ed.), Cul-
tural and Econornic Re~roductbnin Educafion.
Reprodução, contestação e currículo -

A educação e o Estado
O estímulo inicial que havia recebido de Wright, relacionado com os
processos contraditórios e com as instituições que mediavam as pres-
sões económicas, que apresentavam as suas próprias necessidades, indi-
cou-me uma área que fornecia a contrapartida ideal para colocar a
I
ênfase na criação da hegemonia ideológica e na autonomia relativa da
cultura. Isto abarcava a esfera política, o Estado e as suas próprias inte-
racções com a ideologia e a economia. O Estado tornou-se num ingre-
b
diente essencial da minha análise a medida que fui percebendo que o
D
poder, a quantidade e o espectro da regulação e da intervenção do
C
Estado na economia e no processo social, em geral, tendem a crescer,
e em parte, em função do "desenvolvimento gradual do processo de acu-
!I mulação de capital", da necessidade de um determinado consenso e de
I- apoio popular face a tal processo e da correspondente e continuada "des-
I- classificação" das pessoas, através da reorganização do discurso político
O e legal, reelaborado agora, entre outros aspectos, em torno dos indiví-
L. duos enquanto agentes económicos5". Deste modo, havia uma conexão
La directa entre as esferas política e económica, que se verificava também
C- na educação. Muito embora a primeira não se pudesse reduzir à
R segunda - e, tal como a cultura, tivesse um significativo grau de auto-
C- nomia - o papel que a escola desempenha como "aparelho de Estado"
a encontra-se profundamente relacionado com os problemas fulcrais de
ie acumulação e de legitimação enfrentados pelo Estado e pelo modo de
e- produção em geral5'.
* Parecia estranho que tivéssemos ignorado totalmente o Estado na
. .

W
educação, exceptuando algumas investigações de tendência liberal sobre
5-
"políticas educativas"". Ao fim e ao cabo, o mero reconhecimento de
a-
que cerca de 116 da força de trabalho nos Estados Unidos se encontra
:e. -
--A

kssop, Bob (1 977). "Recent Theories of the Capitalist State" Carnbridge Journal of Eronornics. 1, pp. 353-373; e Gin-
ira i

1 tis, Herbert (1980). "Communication and Politics: Marxisrn and the Problem of Liberal Democracy" Socialist Review X,
pp. 189-232.
Dale, Roger (1982) "Education and the Capitalist State- Contributions and Contradictions", in Apple. Michael (ed.).
Cultural and Econornic Reproduction.
sm Não pretendo denegrir por completo este género de trabalho. Parte dele é muito útil e interessante. Vide. por exemplo.
m Kirst, Michael e Walker (19711, "An Analysis of Curriculum Policy-Making". Review o f Edurationai Research XLI.
---+ pp. 479-509, Boyd. William Lowe (1978). " l h e Changing Politia of Curriculum Policy-Making for American Schools",
Review o f E d u c a t ~ o n a Research
l XLVIII. p p 577-592; e sobretudo Wise, A r t h u r E . (1979). Legisiated
.- Learning: the Bureaucratization o f the Arnerican Clasroom. Berkeley: University of California Press. Para criticas sobre
as teorias liberais do Estado, vide Miliband. ~ a l (1977).
~ h Marxhrn and hlitics New York: Oxford University Press
empregada pelo Estado53e de que o próprio ensino é uma forma de tra-
balho que responderá às mudanças nas condições globais da intervenção
do Estado no processo de trabalho não só deveria fazer-nos reflectir
como sublinhar a sua importância nos debates sobre a educação. Mais
importante ainda se estivermos interessados, tal como eu estava, na ela-
boração e reelaboração de ideologias hegemónicas através de aparelhos
do Estado, como é o caso da escola.
Para mim, tornava-se muito mais claro que a noção de hegemonia não
é algo que flutua livremente. Na realidade, e antes de mais, encontra-se
associada ao Estado. Isto é, a hegemonia não é um facto social já con-
cluído, mas sim um processo em que os grupos e as classes dominantes
"conseguem conquistar o consenso activo perante os que exercem o seu
domínio"54.Assim, a educação, deve ser percebida como parte do Estado,
como um elemento importante na tentativa de criar um consenso activo.
As ligações com as minhas preocupações iniciais tornavam-se imediata-
mente explícitas. Em primeiro lugar, a literatura relacionada com o
Estado permitiu-me aprofundar os meus argumentos contra as teorias
dominantes na educação, que actuavam como se a educação fosse um
empreendimento essencialmente neutro.
Entretanto, e igualmente importante, os estudos sobre o Estado per-
mitiram-me aprofundar as minhas convicções contra algumas das figu-
ras da esquerda que pareciam permanecer ainda relativamente econo-
micistas. Contrariamente à sua posição, acreditava que pelo simples
facto de a educação ser um vértice do Estado e um agente activo no pro-
cesso de controlo hegemónico, tal não nos deveria levar a pensar que

i3Castells, Manuel (1980). The Economic Crisis and American SockTy, p. 125. O autor destaca que se tivermos em consi-
deração a quantidade de emprego que depende da produção de bens e seiviços militares, descobririamos que cerca de
113 da força de trabalho depende na sua maioria da actividade económica do Estado. Vide pp. 125-130.
5%ouffe (ed.). Gramsci and Marxist Theory, p. 10 Vide, também. a proposta de Gitlin: para este autor hd. naturalmente,
um sério risco - que deveríamos descomplexadamente reconhecer - em abusar-se de conceitos como o de hegemonia
para explicar a reprodução cultural e económica. Gitlin expressa esta preocupação de uma forma muito clara quando
afirma:
"[Precisamosl de colocar a discussào sobre a hegemonia cultural num plano mais real Na verdade, grande parte da dis-
cussão tem-se mantido abstracta, quase como se a hegemonia cultural fosse uma substância com vida própria, uma
espéoe de nevoeiro imutável estabelecido sobre toda a vida pública das sociedades capitalistaspara abafar a verdade
do telos proletário Assim, perante as perguntas "Por que razào as ideias radicais sáo suprimidas das escolas?" "Porque
é que os trabalhadores se opõem ao socialismo?", etc, surge uma simples resposta délfica- hegemonia A "hegemonia"
tornou-se na explica(âo mãgica para a acçao. Se a "hegemonia" explica tudo na esfera da cultura, significa que náo
explica nada. "
Na verdade, a sua pr6pria análise apoia-se profundamente no conceito, documentando o poder combinado da sua uti-
lização. Vide Gitlin. Todd (1979). "Prime Time Ideology: The Hegemonic Process via Television Entertainment", Social
Problems XXVI, p. 252.
Reprodyão, contestação e currículo "

I-
todos os aspectos do currículo e do ensino se pudessem cingir aos inte-
D
resses da classe dominante55.Tal como a maioria dos aspectos das teo-
Ir
rias liberais, tal pressuposto revelava-se também simplesmente incor-
recto. O próprio Estado é também um local de conflito entre classes e
is
segmentos de classes, entre grupos raciais e de género. Uma vez que "é"
i-
o espaço de tal conflito, deve, por u m lado, levar todos a pensarem de
)S
forma idêntica (tarefa, aliás, muito difícil que ultrapassa o seu próprio
poder e que destruiria a sua legitimidade) e, por outro, gerar consenso
io entre a maioria dos grupos que se encontram em contenda. Desta
)e
forma, para manter a sua própria legitimidade, o Estado necessita de
n- integrar, gradual e continuamente, muitos dos interesses dos grupos
es aliados e inclusive dos grupos que se lhe opõem56.
W
Isto envolve um processo contínuo de compromissos, conflitos e de
10.
luta activa para a manutenção da hegemonia. Assim, os resultados, por-
'O. tanto, não são um simples reflexo dos interesses da economia ou das
d-
classes dominantes. Mesmo reformas propostas para alterar a forma
o como as escolas se encontram organizadas e controladas, assim como o
ias
que é realmente ensinado fazem parte deste processo. São também
un parte integrante de u m discurso ideológico que expressa os conflitos no
interior do Estado e as tentativas por parte do aparelho do Estado na
èr- manutenção da sua própria legitimidade e no envolvente processo de
[U- acumulação.
10- Isto acarretava implicações importantes para a análise que efectuava
les sobre as escolas e sobre as suas actividades pedagógicas e curriculares
ro- quotidianas. Significava que possuía uma maneira mais adequada para
ue poder entender a razão pela qual tais práticas curriculares e pedagógicas
não traduziam nunca o resultado de uma "mera" imposição, nem eram
Em- geradas a partir de uma teoria da conspiração para, digamos, reproduzir
a de
as condições de desigualdade na sociedade. Na realidade, podemos
me. observar que acontece precisamente o contrário - ou seja, elas são
mia
d o orientadas por uma necessidade imperiosa de ajudar e de tornar as coi-
I dis-
sas melhores -, se percebermos que apenas desta forma os vários inte-
uma
d3de
resses sociais podem "ser" integrados no seio do Estado. Ao integrar
ip>e os vários elementos ideológicos provenientes dos diferentes grupos -
mia
,não

j5 Mouffe (ed.). Grarnsci and Manist Theory. p 10. Vide, tambem. Dale. Education and The Capitalist State; e Carnoy.
l ai-
Martin, "Education. Econorny and the State". in Apple, Michael (ed.), Culruraland Econornic Reproduction in Education.
iDaal
Mouffe (ed.). Grarnsc! and Manist Theory. p. 182. /
frequentemente em competição entre si - em torno dos seus próprios
princípios unificadores, o consenso pode ser atingido57, podendo man-
ter-se a ideia de que tais práticas, baseadas nesses princípios hegemóni-
cos, ajudam, efectivamente, esses grupos competidores.
Como é que o Estado consegue aparecer como um conjunto de insti-
tuições "neutras", actuando em prol do interesse A estratégia
hegemónica mais eficaz parece ser a de "integrar as exigências demo-
cráticas populares e as económicas num programa que favoreça a
intervenção do Estado no interesse da a c u m ~ l a ç ã o "Esta
~ ~ é exacta-
mente a estratégia que está a ser utilizada actualmente e que será ainda
mais esclarecida no segundo, quarto e quinto capítulos, nas análises
que realizarei sobre o papel contraditório do Estado na acumulação e
manutenção das relações sociais hegemónicas. Teremos então oportu-
nidade de observar como a escola é um espaço onde Estado, economia
e cultura se encontram inter-relacionados e como muitas das reformas
e inovações curriculares agora propostas "traduzem" essas mesmas
inter-relações.

Ideologia e forma curricular


Até agora tenho vindo a abordar questões em torno do Estado, do pro-
cesso de trabalho e dos currículos explícito e oculto. Descrevi a minha
própria compreensão sobre como as ideologias operam de forma contra-
ditória tanto no local de trabalho como na escola. Ao mesmo tempo, fri-
sei que as formas habituais através das quais a esquerda tem examinado
esses espaços tendem a ser de certo modo redutoras. Considerando
inclusivamente a evolução do meu próprio pensamento ao longo dos
últimos anos, não devemos contudo exagerar nas análises que fazemos
contra a metáfora da reprodução. Na verdade, não pretendo dar a enten-
der que a lógica e a ideologia do capital não se introduzem nas escolas e
no seu currículo através de formas bastante poderosas. Com efeito, e tal

'' Ibid, p. 193; e Donald. James (1979). "Green Paper: Noise of a Crisis" Screen EducationXXX
58 Holloway, John; Picciot~o,Sol (1978) "lntroduction: Towards a Materialist Theory of the State". in lohn Holloway e Sol
Picciotto (eds.),State and Capital. London: Edward Arnold, p. 24 A problemática em torno de o Estddo poder ou náo
ser concebido como uin conjunto de instituições tem suscitado uma grande controvbrsia Vide. por exemplo.
Jessop, "Recent Theories of the Capitalist State", os artigos inseridos nos volumes acima inencionados, editados por
Holloway e Picciotto. Mouffe e Apple; e Wolfe. Alan (1974). "New Directions in the Marxist Theory of Politics", Politics
and Society IV. pp. 131-159.
Jessop, Bob (1978). "Capitalism and Democracy"; Gary Littlejohn et al. (eds.). Power and the State. New York:
St Martin's Press, p. 45.
Reproduçáo, contestacão e currículo 9

como teremos ocasião de verificar melhor no quinto capítulo, tal lógica


provoca um impacto profundo nas práticas escolares quotidianas. De
forma a compreendermos esta questão, temos que regressar a ideia de
cultura, não como uma experiência vivida, mas sim como uma forma
mercantilizada. Esta perspectiva faculta-nos uma outra visão quanto a
compreensão sobre o modo como as escolas funcionam enquanto espa-
ços de reprodução e produção ideológicas.
Ao longo de todas as minhas análises, durante a última década, tenho
defendido que a compreensão plena de como as ideologias operam nas
escolas carece de um olhar atento sobre o concreto da vida escolar quo-
tidiana. Neste contexto, adquire hoje em dia capital importância a forma
como a lógica e os modos de controlo do capital estão a penetrar na
escola através da "forma" currículo expresso e não apenas através do seu
conteúdo. Essa relação que se estabelece entre a forma e o conteúdo
será fundamental na minha análise sobre reprodução e contradição.
Caso pretendamos compreender a razão pela qual algumas destas coi-
sas notáveis acontecem quer nas escolas quer nas nossas vidas, fora e
dentro delas, precisamos de compreender a progressão histórica da
nossa formação social. Sem sermos redutores, precisamos realmente de
compreender por um lado as mudanças e as crises que atravessam quer
a economia quer o conteúdo e a forma ideológicas que, de certo modo,
são gerados por essa realidade e por outro actuar sobre essa mesma rea- ,
lidade. Mais uma vez, neste contexto, o conhecimento curricular tor- 1
nava-se muito importante para mim.
É fundamental questionar dois aspectos do currículo. O primeiro rela-
ciona-se com o conteúdo em si. Que conteúdo é esse? Igualmente
importante: o que é que "falta" nesse conteúdo? Deste modo, e de
1 acordo com as palavras de Macherey, questionamos os silêncios eviden-
ciados num texto para descobrir quais os interesses ideológicos que se
encontram em actividade6'. Apoiando-me em Raymond Williams, deno-
minei a análise sobre a verdadeira essência do currículo por "tradição ,
selectivan6'.
O segundo aspecto a ser examinado é a forma. De que forma é cons-
II
truído o conteúdo, a cultura formal? O que é que se está a passar ao
nível da própria organização do conhecimento? Deixem-me, neste caso
I

I " Macherey. Pierre (1 978). A Theoryof LiteraryProduction London. Routledge & Kegan Paul.
*' Vide Williams. Marxirm and Literature, e Apple, Ideology and Curriculum.
. específico, dar um exemplo que será tratado com mais pormenor mais
adiante. Face a um conjunto de razões económicas, políticas e ideológi-
cas, grande parte dos currículos nos Estados Unidos encontram-se orga-
nizados em torno da individualização. Dito de outro modo e indepen-
dentemente dos conteúdos específicos da Matemática, Estudos Sociais,
Ciências, Literatura, etc., tais conteúdos são estruturados de tal maneira
que os alunos trabalham, habitualmente, de acordo com as capacidades
individuais de cada um, em "folhas de trabalho" individualizadas e pré-
-especificadas e em tarefas individuais. A título de exemplo, tomemos em
consideração o pacote de leitura SRA, um dos conjuntos mais utilizados
de leitura, elaborado pela Science Research Associates (uma subsidiária
da IBM). Aqui os alunos fazem testes para analisar os níveis de conheci-
mento; são colocados individualmente num nível específico codificado
de acordo com uma determinada cor; e progridem mediante uma
sequência, padrão de material, trabalhando em histórias individuais e
em "exercícios de destreza".
Reparem na forma em si. Grande parte das actividades pedagógicas,
) curriculares e avaliativas mais importantes são planificadas de tal forma
que os alunos apenas interagem individualmente com o professor e não
uns com os outros (exceptuando durante os "intervalos"). O professor
"gere" o sistema. Isto aumenta a eficiência e facilita a disciplina. Poder-
-se-ia perguntar se haveria algo de errado nisso. Se estamos interessa-
dos na questão da reprodução ideológica e ainda em analisar como é
que a escola reage à crise, essa pergunta não está correcta. Uma per-
gunta mais adequada seria: Qual é o código ideológico presente no
material curricular? Como é que o material curricular estrutura as nos-
sas experiências de forma semelhante ao processo de consumo indivi-
dual e passivo de bens e serviços previamente especificados, e que foram
submetidos à lógica da mercantilização, tão necessária para a acumula-
ção contínua de capital?
Provavelmente um exemplo extraído de um outro elemento do apa-
relho cultural da sociedade, que contribuiu profundamente para a
minha própria compreensão inicial destas questões, possa aqui vir a
ser útil. Ele é extraído da análise provocante realizada por Todd Gitlin
sobre o modo como o dispositivo formal dos programas de televisão do
horário nobre encoraja os telespectadores a verem-se a si próprios
como indivíduos apolíticos e acumuladores privados. Gitlin aponta as
seguintes características como sendo responsáveis pela reafirmação da
78
Reprodução, contestação e currículo -

hegemonia. A "curva-padrão da acção narrativa", em que personagens-


-tipo lidam com uma nova versão de uma situação-padrão; a agudiza-
ção da intriga, na qual "personagens básicas" exibem um conteúdo
estandardizado; a resolução da intriga em 22 ou 50 minutos; todas
estas regularidades de uma fórmula repetida são "performances que
simulam a inflexibilidade social". "Expressam e sedimentam a rigidez
de um mundo social impermeável à mudança s u b s t a n ~ i a l " ~ ~ .
Todavia, tais fórmulas não são isoladas. Devem ser interpretadas em
relação à comercialização e às estruturas temporais. Na verdade, ao
organizar o "tempo livre" dos indivíduos em unidades fechadas e trans-
feríveis, a televisão "amplia (e associa-se com) a industrialização do
tempo. O tempo dos media e o tempo da escola, com as suas unidades
idênticas e as suas curvas de acção, reflectem o tempo do trabalho con-
trolado pelo relógio...". Deste modo, o tempo livre é industrializado, a
duração é homogeneizada e, de acordo com a fórmula utilizada, até
mesmo o prazer pessoal se transforma numa rotina pela estrutura da
intriga-padrão. Neste contexto, a forma deste aspecto do aparelho cultu-
ral é que é a componente i m p ~ r t a n t e ~ ~ .
Até mesmo a forma da experiência social do processo de ver televisão
contribui para a recriação da experiência ideológica. Sentamo-nos iso-
lados como espectadores e, frequentemente, só nos envolvemos em
interacção social durante os anúncios publicitários6*. Os anúncios
determinam o momento em que as coisas acontecem na intriga. A
prova de que os anúncios exercem um domínio poderoso é dada pelos
efeitos que estes provocam na consciência de cada um. Desempenham
um papel preponderante na estratégia de nos "habituarem a pensar e a
actuar como um 'mercado' e não como um 'público', como consumido-
res e não como cidadãoP5. Reparem que este exemplo do efeito ideoló-
gico de um elemento do aparelho cultural mais abrangente, a televisão,
não analisou o conteúdo - o que aconteceu, que perspectivas se encon-
travam apresentadas e qual o papel ideológico da tradição selectiva a
operar nesta situação. Muito embora tais questões sejam extremamente
importantes, deixamos de observar algo igualmente importante caso

" Gitlin, "Prime Time Ideology", p. 254.


" Ib~d.,255.

Vide, por exemplo, Williams. Raymond (1974). Television: Technology and Cultural Form. New York: Schocken Books.
" Gitlin. "Prime Time Ideology", p 255.

79
descuremos a análise da forma que o conteúdo assume - de que forma
organiza os nossos significados e acções, as suas sequências temporais
e implicações interpessoais, a sua integração com os processos de acu-
mulação de capital e com a legitimação de ideologias. Precisamente,
estas mesmas questões necessitam de ser também levantadas em rela-
ção à forma do currículo e à interacção social nas escolas. Com efeito, é
com base nas formas curriculares dominantes que se desenvolvem o
controlo, a resistência e o conflito. E é exactamente neste mesmo
campo que a crise estrutural se torna evidente e as questões relaciona-
das com o currículo oculto, com a intervenção do Estado e ainda com o
controlo do processo de trabalho são integradas ao nível das práticas
escolares.
1 Para uma compreensão global das implicações reveladas nestes argu-
mentos, convém relembrar um ponto que se encontrava implícito na
minha breve discussão sobre o Estado. As escolas são os locais de "traba-
lho" dos professores. Isto é algo que com frequência tendemos a esque-
cer. No entanto as alterações na forma curricular, como as que temos
vindo a abordar, têm também um profundo impacto sobre esse trabalho.
Elas transportam uma relação fundamentalmente transformada entre o
trabalho, as destrezas, a consciência e os produtos de uma pessoa e os
de outras pessoas. Simultaneamente, ao salientar tais alterações, tal
como farei no quinto capítulo - e revelar-se-ão tão contraditórias como
as mudanças a que assistimos actualmente em qualquer aspecto do pro-
cesso de trabalho, em geral -, conseguiremos uma chave através da qual
explanaremos as acções possíveis que os grupos progressistas podem
promover no seio das escolas e entre os professores. Essa dupla assun-
ção - de que as novas formas curriculares engendram tanto novos
modos de controlo como possibilidades para acção política - abre uma
porta para a compreensão do que acontece nas escolas e providencia-
nos um elemento-chave para a nossa abordagem. Como? Determinados
princípios baseados, na sua maioria, no conhecimento técnico-adminis-
trativo produzido inicialmente pelo aparelho educativo têm conduzido a
organização e o controlo dos postos de trabalho nas economias capita-
listas. Estes princípios têm atingido não só os locais de trabalho das
fábricas, como também determinam cada vez mais todos os aspectos do
aparelho produtivo da sociedade. O trabalho fabril e o de escritório, o
trabalho intelectual e o manual, o trabalho no ramo do comércio e nas
linhas de montagem e inclusive o trabalho no ensino têm sido, lenta,
Reprodução. contestação e currículo *

mas seguramente, incorporados na lógica de tais formas de organização


e de controlo. Sob determinados aspectos importantes, o ensino é um
processo de trabalho que garantidamente tem as suas características
muito específicas, que não podem ser reduzidas às do trabalho numa
fábrica, no escritório de uma companhia de seguros ou as de um vende-
dor, mas que, no entanto, não deixa de ser um processo de trabalho. E é
no terreno da escola tido como local de trabalho que o conhecimento
técnico-administrativo, produzido por si em determinada altura, é rein-
troduzido com o objectivo de controlar e de racionalizar o trabalho dos
professores e dos alunos.
Com efeito, tal como argumentarei mais adiante, dada a crise actual
nas esferas económica, política e cultural, os elementos básicos utiliza-
dos na organização e controlo do processo de trabalho na sociedade -
entre eles, a separação entre o trabalho mental e o manual, o divórcio
entre a concepção e a execução, a lógica da desqualificação e do con-
trolo da força de trabalho - estão actualmente a ser todos reconstituídos
nas escolas pelas formas mais complexas e paradoxais. E tal como nou-
tros locais de trabalho e noutros contextos culturais, tais elementos
expõem-se, simultaneamente, a aceitação e rejeição. No quinto capítulo,
ao regressar à vida quotidiana das escolas para examinar esta questão,
poderemos completar o círculo da nossa abordagem percebendo como
as escolas tanto reproduzem como contradizem as "necessidades" da
nossa sociedade desigual.

A circulação do conhecimento técnico-administrativo


Provavelmente, este capítulo apenas fez um intróito às questões com-
plexas relacionadas com o Estado, a classe, a cultura, a reprodução, a
resistência, a contradição, o conhecimento e a escolarização. Todavia, os
meus argumentos anteriores relativos à forma curricular e à sua relação
com o processo de trabalho no ensino reencaminham-nos para a ques-
tão conceptual com a qual iniciei a segunda parte deste capítulo, isto é,
a escola como aparelho produtivo e reprodutivo.
Uma perspectiva preponderante atravessa estes argumentos - a
importância do conhecimento técnico-administrativo e da ideologia que
o acompanha. A escola ajuda a produzi-lo como uma forma de "capital";
é encontrado e contestado no local de trabalho como uma forma
de controlo; introduz-se no Estado e na escola. Cada um destes locais
transforma-o até ser reintroduzido na escola, onde se reproduz e produz
novamente. Deste modo, podemos constatar que estamos na presença
de um processo contínuo, apesar de contraditório.
Pretendo clarificar melhor esta questão, dado que ela pode funcionar
como uma espécie de sumário dos muitos assuntos que tenho vindo a
abordar e que tenciono continuar a abordar ao longo deste livro. O
conhecimento técnico-administrativo pode ser percebido como pos-
suindo uma determinada circulação, uma vez que se encontra presente
na economia, no Estado e na escola.
Sob muitos aspectos, isto pode ser entendido como algo parecido com
um processo circular. O conhecimento técnico-administrativo é produ-
zido na e pela educação. Como teremos oportunidade de verificar no
segundo capítulo, a sua acumulação para ser utilizado pelos que estão
no poder (mediante legislação de patentes, prática de recrutamento,
processos de créditos educativos, etc.) é uma forte tendência na nossa
formação social. Tais formas de conhecimento ou de "capital cultural1'-
e a respectiva ideologia de racionalização que não só as fundamenta
como é, de certa forma, delineada por elas - são utilizadas na economia
e, "de forma cada vez mais acentuada no Estado", a medida que o pró-
prio Estado é apanhado no enredo da crise mais ampla de acumulação
de capital e de legitimação. No entanto, quer no local de trabalho, quer
na escola, trabalhadores e estudantes medeiam, transformam e inclu-
sive rejeitam parte desse conhecimento. No decorrer deste processo,
sofre alguma alteração, contudo, a sua circulação prossegue a medida
que a crise avança. Assim, através de um conjunto complexo de inter-
-relações, a lógica do capital, enxertada no conhecimento técnico-admi-
nistrativo, regressa a sua fonte - o aparelho educativo - como uma
forma de controlo.
Isto é complicado, mas também o são as ligações que referi entre as
três esferas. Se fosse simples, as condições económicas que descrevi
anteriormente, enfrentadas actualmente por tantos indivíduos, pode-
riam ser simplesmente resolvidas. Naturalmente, não são questões sim-
ples. Com efeito, os nossos problemas devem-se, não só à falta de com-
preensão das relações que se estabelecem entre a economia, a cultura e
a política, mas também à ausência de decisão e as condições objectivas
que tornam muito difícil a construção e manutenção de u m movimento
alargado de massas envolvendo homens e mulheres trabalhadores para
poder resolver tais questões.
Reprodução, contestação e currículo ih

Após a descrição do desenvolvimento do referencial conceptual e polí-


tico e depois de ter perspectivado de uma maneira geral as minhas aná-
lises básicas, deixem-me ser um pouco mais específico sobre o conteúdo
de cada um dos próximos capítulos.
O segundo capítulo inicia-se com uma abordagem da cultura como
mercadoria, indicando uma série de limitações patenteadas pelas teorias
economicistas correntes relacionadas com o que fazem as escolas,
incluindo algumas das abordagens marxistas mais respeitadas. Neste
capítulo discutirei a inter-relação dialéctica entre a escola como um
aparelho produtivo e como um aparelho reprodutivo. Ao colocar a
tónica na cultura enquanto mercadoria, interpretarei, por um lado, as
relações estabelecidas entre a função da escola no apoio ao processo de
produção do conhecimento técnico-administrativo, necessário, tanto
para a acumulação de capital, como para o controlo do trabalhador, e,
por outro lado, o papel da escola na estratificação da população estudan-
til e na "criação" de desequilíbrios.
O terceiro e quarto capítulos abordam a cultura como experiência
vivida e o papel contraditório que a cultura vivida desempenha. Neste
caso, observá-la-emos como base fundamental para um desenvolvi-
mento hipotético de resistências e alternativas as práticas ideológicas do
capital e do Estado, reproduzindo paralelamente, e de certa forma, as
condições de existência dessas mesmas práticas ideológicas.
Mais concretamente, o terceiro capítulo desafia novamente as teorias
economicistas predominantes sobre a reprodução, sobretudo as que se
relacionam com o currículo oculto. Neste capítulo examinaremos o pro-
cesso de trabalho no próprio local de trabalho, acompanhando as orien-
tações de Erik Olin Wright sobre a possibilidade de se poderem registar
em locais específicos actividades não reprodutivas. A tónica incidirá no
dia-a-dia dos "trabalhadores" nas lojas, nas fábricas, nos escritórios e
noutros locais. Os temas orientadores serão a rejeição e a contradição,
assim como a reprodução.
O quarto capítulo aprofunda ainda mais a análise sobre os processos
de rejeição, mediação e transformação. Nesse capítulo, analisarei de
que modo as formas culturais relacionadas com o género e a classe são
vividas por muitos "estudantes" nos seus padrões de interacção diária.
Continuarei a interpretação da necessidade de se aprofundarem teorias
simplistas do tipo "base/superstrutura", revelando a autonomia relativa
da cultura. As relações e contradições entre o plano económico e o cul-
tural/ideológico serão aparentes. Simultaneamente, associarei tais rela-
ções e contradições com a crise que provocam no Estado, ao examinar
as reformas que têm vindo a ser propostas actualmente no sentido de
responder de uma forma mais adequada à crise estrutural - tais como
os benefícios fiscais e os benefícios educativos. Finalmente, e à seme-
lhança do que sucede nos capítulos anteriores, adianto sugestões para
acção.
O quinto capítulo leva-nos de volta ao processo de mercantilização
através do qual o conhecimento técnico e administrativo é reintrodu-
zido na escola. Aqui, a forma e o conteúdo culturais surgem na sua exis-
tência rarefeita, na tentativa do capital e do Estado para controlar quer
o conteúdo daquilo que é efectivamente ensinado e a respectiva forma
de transmissão quer o processo de trabalho do ensino. Este capítulo
analisará a forma curricular frequentemente encontrada, hoje em dia,
nas escolas e relacioná-la-á com as ideias anteriormente apresentadas e
debatidas sobre o processo de trabalho. No fundo, o quinto capítulo per-
mitir-nos-á observar uma das principais formas através das quais o
Estado pode integrar as exigências democráticas populares com as do
capital, de forma que tanto a legitimação como a acumulação saiam
reforçadas.
O sexto capítulo resumirá os assuntos expostos e examinará ainda as
probabilidades de sucesso da acção progressista na escola e nas institui-
ções à sua volta. Uma vez que a sombra da crise continua actualmente a
estender-se, estas acções progressistas são cada vez mais necessárias.
Conhecimento técnico,
desajustamento e o Estado
A mercantilização da cultura

Num pequeno livro de histórias para crianças que aprendiam a ler,


há um diálogo mais ou menos neste termos. O urso Boris e o alce
Morris encontram-se na floresta. Boris, obviamente o mais esperto e
com alguns conhecimentos, questiona o seu amigo se gosta de adivi-
nhas. Morris fica perplexo. Reflecte sobre a questão que lhe foi colo-
cada pelo amigo. Subitamente, num rasgo de inteligência, responde
qualquer coisa como: "Bem, não sei. Sabem a quê?" Boris, exasperado
e com u m olhar de desprezo, grita para o companheiro: "Presta
atenção, uma adivinha não é algo que se coma!". Claro que Morris
finalmente compreende. E responde: "Claro. Eu sei. É algo para
beber."
Neste momento, encontro-me numa posição de certa forma parecida
com a de Morris. Muitos Boris não param de me dizer a única maneira
de interpretar um determinado fenómeno, muito embora neste caso
concreto o facto se relacione com a escola e não com uma adivinha.
A maior parte desses Boris, muitos deles responsáveis por reformas
curriculares e investigadores educativos, dizem-me que as escolas são
motores para uma democracia m d o c r á t i c a . Uma percentagem mais
reduzida, com a qual, devo admitir, sinto, por vezes, bastante proximi-
- mais .Ie-
dade, analisa as escolas sob uma perspectiva Dizem-me
que as escolas são simplesmente mecanismos para a reprodução&c
divisão do trabalho. Todavia, sei que o primeiro grupo de Boris se
encontra totalmente errado' e que, infelizmente, o segundo grupo
parece estar profundamente encantado com a visão da escolarização
como uma espécie de "caixa-negra". Com efeito, a minha experiência no
interior da caixa-negra e a investigação que fiz em torno da função ideo-
lógica e económica das actividades pedagógicas e curriculares no seio
dessa caixa permitiram-me imaginar, tal como Morris fez, se era tudo
isso o que pode fazer e ser uma adivinha. Será que é possível entender-
mos o que são e o que fazem as escolas sem reduzi-las, tal como na adi-
vinha anteriormente citada, a uma única função e sem que, simultanea-
mente, rejeitemos a análise dos interesses estruturais que conduzem os
teóricos da reprodução? Será possível construirmos uma teoria
"externa" mais precisa sobre as escolas - que seja um pouco mais com-
plexa que a que se encontra na teoria unidimensional da recriação de
uma força de trabalho hierárquica e que embora nos ajude a explicar,
não só algumas das características internas que sabemos existirem nas
escolas, mas também as relações entre tais características e uma econo-
mia desigual?
Claro está que nos encontramos a meio caminho desse desiderato. Em
parte, isto deve-se ao impressionante desenvolvimento dos estudos
etnográficos e etnometodológicos que têm provocado um consequente
aumento na compreensão das formas intrínsecas (e suas limitações)
através das quais professores e alunos "negociam" as respectivas realida-
des nas salas de aula'' Tal desenvolvimento tem permitido ainda descri-
ções mais esclarecidas sobre as formas como os professores estigmati-
zam determinados alunos como tendo comportamentos desajustados na
escola". Contudo, embora este género de investigações nos ajudem a
compreender determinados significados que os educadores e as crianças
impõem e ainda as reacções que interferem no seu dia-a-dia, em alguns
casos não são tão adequadas como esperaríamos que fossem, para facul-
tar "razões" possíveis relacionadas com o evoluir de tipos específicos de
significados e com a predominância de concepções concretas de com-
portamentos desajustados. A descrição de um determinado fenómeno X,
seja ele qual for, não é, necessariamente, o mesmo que explicar por que
razão tal fenómeno X existe.
- --.-..... ..-._ ..., ..._
' l4de a recensão de investigaçáo entre a escolarização e a desigualdade em Caroline H Persell (1977).Education and
Inequality New York' Free Press.
Vide. por exemplo, Woods, Peter. e Hammersly. Marfin (eds.) (I977).School Experience. New York: Si. Manin's Press.
A titulo de exemplo. Hargreaves, David. et a/. (1975).Deviance In Classrooms. London Routledge & Kegan Paul; e Sharp.
Rachel, & Green. Anthony (1975).Education andSocial Control london: Routledge & Kegan Paul.
Conhecimento técnico, desajustamento e o Estado

Tal processo de explicação pode ser atingido de duas formas. Por u m


lado, podem-se explicar as condições de existência de X dentro de uma
dada instituição, centrando "a nível interno os dados" que mantêm ou
contradizem a acção no ambiente em que X se encontra. Ou, tal como
pretendo fazer neste capítulo, podemos centrar-nos na relação entre
este X e os modos de produção e as forças ideológicas e económicas
"externas", nas quais X se encontra inserido. Deste modo, a minha
preocupação "será" de cariz estrutural. Procurará, por exemplo,
demonstrar as relações entre a criação e a atribuição de determinados
tipos de comportamento desajustado verificados nas escolas e ainda as
desiguais condições culturais e económicas que podem oferecer u m
significativo número de justificações para a existência de tais condi-
ções nas referidas instituições. Esta questão "não" significa negar a
importância das abordagens centradas nas dinâmicas internas ao nível
da escola; nem sequer significa imaginar que a análise estruturalista
do dia-a-dia na escola, tal como a noção de adivinha veiculada por
Boris, consegue explicar tudo4. Na verdade, e quanto mais não seja
para nos fazer lembrar de algumas das ideias expressas, tanto nos tra-
balhos de Gramsci, como nos de Williarns, as descrições microssociais
das práticas relacionadas com o senso comum são preponderantes
para todos os que tencionam optar por uma abordagem macroeconó-
mica. Tal como um e outro nos relembram incessantemente, a hege-
monia ideológica, parte integrante do verdadeiro mecanismo de con-
trolo, não é algo que se regista apenas ao nível do comportamento
macrossocial e das relações económicas; nem é algo que reside apenas
nas mentes de cada um de nós. Pelo contrário, a hegemonia é consti-
tuída nas e pelas próprias práticas do dia-a-dia. Representa o conjunto
de acções e significados do senso comum que moldam o mundo social
como o conhecemos5, no qual se inserem as características curricula-
res, pedagógicas e avaliativas internas, que estruturam as instituições
educacionais.
Todavia, mesmo tomando todas estas questões em consideração,
quero realmente reiterar que se não conseguirmos compreender as rela-
iões que se estabelecem entre as práticas pedagógicas e curriculares

' Tal como argumentei noutro local. a distinção que realizãrnos entre explicações rnacro e micro não nos ajuda nada. Wde
4pple. Michael (1978). "The new sociology of education. analysing cultural and economic reproduction", in Haward
fducat~onalReview XLVIII, pp. 495-503.
Williarns, Rayrnond (1977). Marxlsm and Literature. New York: Oxford University Press.
internas das escolas e as estruturas "externas" de dominação da socie-
dade, não teremos, necessariamente, uma explicação completa de X.
Assim, muito embora começemos a ter descrições bastante completas
sobre o funcionamento interno das escolas e da atribuição de caracterís-
ticas sobre os comportamentos relacionados com o desajustamento, o
facto é que tais descrições devem ser complementadas por uma deter-
minada teoria estrutural da escola e do papel do desajustamento que se
verifica no seu seio. Tal teoria teria que interligar os tipos de conheci-
mento tidos como importantes nas escolas (conhecimento de estatuto
elevado ou legítimo), os tipos de alunos rotulados como desajustados, as
"necessidades" ideológicas, políticas e económicas da sociedade na qual
as escolas se encontram inseridas e, finalmente, o papel do Estado em
toda esta teia complexa, respondendo muito mais adequadamente a esta
complexidade do que conseguem fazer as teorias simplistas de reprodu-
ção económica agora existentes.

O que fazem e o que não fazem as escolas


A partida, deve ficar esclarecido que se corre um risco na utilização de
um conceito como o de desajustamento. O uso tradicional deste con-
ceito tende a avivar a existência de concepções de pessoas diferentes e
inferiores. De acordo com esta perspectiva, as escolas são basicamente

I instituições meritocráticas. Permitem uma ampla mobilidade entre gru-


pos e indivíduos da população. Qualquer falha em termos de mobili-
dade, qualquer insucesso em termos de resultados pretendidos, é defi-
nida como uma insuficiência do indivíduo ou do grupo que fracassou.
Neste contexto, pode afirmar-se que o desajustamento é "merecido" pelo
próprio desajustado, dado que os currículos explícito e oculto, as rela-
ções sociais ao nível da sala de aulas e ainda as categorias através das
quais os educadores organizam, avaliam e conferem significado às acti-
vidades encontradas na escola são interpretadas como sendo basica-
mente neutras. Com certeza, esta pretensão de neutralidade tem menos
fundamento do que os seus propósitos nos levam a crer. Tal como tive
oportunidade de salientar no primeiro capítulo, o corpo formal de
conhecimento escolar e o currículo oculto contêm, frequentemente,
compromissos ideológicos6. As categorias que os educadores utilizam

Apple. M. (1979). Idmlogy and Curriculum London: Routledge & Kegan Paul.
Conhecimento técnico, desajustamento e o Estado w

para pensar sobre determinadas questões, planificar e avaliar a vida


escolar, são consistentemente vilipendiadas em prol das regularidades
de desigualdade social existentes7.
E, finalmente, as escolas não são tão meritocráticas como muitos
investigadores na área da educação gostariam que pensássemos. Muito 1
embora muitos ainda aceitem a noção de que a escolarização serve para
maximizar a possibilidade de mobilidade pessoal, conduzindo de uma '
forma directa à possibilidade de uma melhor vida no futuro, o facto é)
que análises mais recentes indicam o contrário. Com efeito, se vivêsse-
mos na realidade numa estrutura meritocrática, "esperaríamos que a
relação entre os resultados dos testes escolares e o êxito na vida adulta
aumentasse com o tempo, e que a relação entre a origem familiar e o
êxito na vida adulta decrescessen8.Não é isto que se verifica. Pelo con-
trário, dados recentes confirmam que não se tem registado uma aproxi-
mação entre a origem social e o sucesso educativog.
Em vez de analisar as características internas e externas das escolas
partindo desse prisma, que parece um equívoco tanto empírico como
ideológico, gostaria de sublinhar que um dos papéis sociais latentes da
escola é a "amplificação do desajustamento". Ou seja, a escola "gera,
naturalmente", determinados tipos de desajustamento. Tal processo
es--n profundamente associado ao lugar complexo que as
escolas ocupam <a reprodução económica e cultural das relações de
classe- por um lado, à função da escola como um aparelho ideológico
d Ó ~ s t a d o e,
l ~através desta função, na produção de agentes (com as dis-
posições e valores "apropriados") indo ao encontro das necessidades da
divisão social do trabalho na sociedade e, por outro lado, ao papel das
instituições educativas na produção de tipos determinados de formas de
conhecimento requeridos por uma sociedade desigual. É na interacção
(frequentemente encoberta nas teorias da caixa-negra) entre estes dois

I b i d . Vide, também. Bernstein. 8. (1977). Class, Code5 and Control. Volume 3. Towards a Theoryof Educational Trans-
missions. London: Routledge & Kegan Paul.
' Olneck. M , Crouse. 1. (1978) Myths o f the Merotocracy: Cogn~tiveSkill and Adult Sucess in the Un~tedStates.
Madison, Wisconsin: University of Wisconsin Institute for Research on Poverty. d~scussionpaper. pp 485-478. pp. 13-14,
I b d , p. 15. Vide, também, Carnoy, Martin, & Shearer. Derek (1980). EconomIc Democracy New York: M E Sharpe.
Na verdade, não estou aqui de modo algum a subscrever o raciocínio formulado por Althusser. Posições críticas ao
raciocínio formulado por Althusser podem ser encontradas em. Erben, Michael. e Gleesen. Denis (1977). "Educat~on
as Reproduction", in Michael Young e Geoff Whitty (eds.). Society, State and SchoolIng Guildford. Falmer Press,
pp. 73-92; Willis, Paul (1977). Learnmg to Labour Lexington: D. C Heath; e Connell, R. W. (1979). "A Critique of the
Althusserian Approach to Class", TheoryandSociefy VIII, pp 303-345.
aspectos, sobretudo com o último, que se manterá a minha preocupação
central neste capítulo. No fundo, pretendo esclarecer os laços que unem
os papéis económicos e culturais da escola.
Como é que poderemos abordar esta questão? Em primeiro lugar, exa-
minemos algumas das proposições gerais, que parecem ter alguma fun-
damentação empírica, relacionadas com o que as escolas parecem fazer
enquanto instituições inseridas na sociedade. As escolas parecem fazer
uma série de coisas. São órgãos reprodutivos uma vez que ajudam,
"efectivamente", a seleccionar e a certificar a força de trabalho. Neste
Icaso concreto, os teóricos da reprodução não estão errados. Todavia, as
'escolas fazem muito mais do que isto. Ajudam à manutenção do privilé-
pio nos meios culturais, assimilando a forma e o conteúdo da cultura e
(do conhecimento dos grupos poderosos e definindo-os como conheci-
'mento legítimo a ser preservado e transmitido. Assim, actuam como
agentes daquilo que Raymond Williams denominou por "tradição selec-
tiva". Desta forma, as escolas são bambém agentes no processo de cria-
ção e recriação de uma cultura predominante eficaz. Ensinam normas,
valores, ensinamentos e uma determinada cultura, que contribuem para
a hegemonia ideológica dos grupos dominantes1'.
No entanto, isto não é tudo, já que as escolas ajudam a legitimar o
conhecimento novo, as novas classes e os novos estratos sociais; e é,
habitualmente, na disputa por um lugar no currículo escolar, estabele-
cida entre as culturas mais antigas e os novos grupos e classes emergen-
tes, que podemos observar os conflitos de classe e de género e as contra-
dições económicas actuando integradas na rotina diária da vida das
pessoas12.
Saliente-se que esta lista das funções sociais principais das institui-
ções educacionais inclui necessariamente questões culturais e económi-
cas. As escolas distribuem pessoas e legitimam conhecimento. Legiti-
mam pessoas e distribuem conhecimento. Podemos falar sobre esta
relação (que "não" expressa funções distintas, mas que se interpene-
tram) de uma forma positiva ou negativa. Basicamente é boa, má ou
contraditória. Contudo, se quisermos entender o que as escolas fazem,

" Williams, Marxism and Literature.


'I Meyer, John (1977) "The Effects of Education as an Institution". American Journal o f Sociology LXXIII. Vide. também,
Collins. Randall (1977), "Some Comparative Principies of Educational Stratification", Harvard EducationalReview XLVII.
pp. 601-602
Conhecimento técnico, desajustamento e o Estado

devemos debruçar-nos sobre o controlo da "cultura" e da "economia".


Assim, como teremos ocasião de observar, os controlos do conheci-
mento e do poder económico encontram-se relacionados, mas não atra-
vés das formas que estávamos habituados a pensar. i

Conhecimento escolar: distribuição ou produção?


Naturalmente, não é novidade a existência de uma relação entre o
conhecimento e a economia. Frequentemente tal relação é reconhecida
quer pelos marxistas quer pelos não marxistas. Por exemplo, de entre as
respostas a tal relação, e que têm dominado o nosso raciocínio sobre
aquilo que as escolas fazem, encontram-se duas abordagens recentes -
uma supostamente neutra, a outra situada no campo da esquerda. Basi-
camente, embora não sejam mais do que tipos ideais que encobrem
diferenças concretas no seu seio, podem denominar-se por teoria do
capital humano e teoria da distribuição. A teoria do capital humano, em
geral, interpreta as escolas como importantes agentes de crescimento
industrial e de mobilidade. As escolas maximizarão a distribuição do
conhecimento técnico e administrativo entre a população. A medida que
os estudantes apreendem este tipo de conhecimento, podem posterior-
mente "investir" as destrezas e capacidades adquiridas com o intuito de
atingirem melhores ocupações. Isso providenciará índices mais elevados
de mobilidade individual e garantirá por outro lado a disponibilidade de
indivíduos bem qualificados, condições requeridas por uma economia
em expansão. A formação técnica generalizada, por um lado, e a mobili-
dade e o crescimento económico, por outro, são factores que estão inti-
mamente relacionados. Assim, neste contexto, a planificação cuidada da
"força de trabalho" e a estimulação de currículos escolares técnicos e
científicos, direccionados para um determinado percurso profissional,
tornam-se factores preponderantes13.
Quase como uma resposta directa as posições mantidas por muitos
dos membros da escola da teoria do capital humano, os teóricos da dis-
tribuição afirmam o contrário. As escolas não existem para estimular
uma ampla mobilidade social. Pelo contrário, funcionam basicamente
como dispositivos de classificação. As escolas distribuem os indivíduos
pelos seus "lugares apropriados" no seio da própria divisão hierárquica

' .' Karabel. Jerome; Hasley. A


H. (1977) "Educational Research: A Review and Interpretation", in Jerome Karabel and A. H.
Halsey (eds.),Powerand Idmlogy in Education New York: Oxford University Press. pp 12-16.
do trabalho e distribuem ensinamentos, normas e valores (através do
currículo oculto) exigidos pelos trabalhadores para a participação eficaz
no respectivo espaço que mantêm na escala ocupacional. O ensino de
mensagens ocultas diferenciadas (de acordo com a posição de classe), a
importância relativamente pequena da competência técnica e a ausência
de mobilidade social são factores que se encontram aqui relacionados14.
Para os teóricos do capital humano, a "posse" de um determinado
conhecimento viabiliza um poder pessoal acrescido no campo econó-
mico. Para os teóricos da distribuição, a interiorização do currículo
oculto - os seus ensinamentos, normas e valores - permite que o poder
permaneça nas mãos de outros.
Com toda a certeza, as teorias de distribuição dos economistas políti-
cos da educação ensinaram-nos muitas coisas. Muito embora tenham
atenuado sistematicamente o papel preponderante desempenhado pela
estrutura formal de conhecimento no processo de reprodução que pre-
tendem justificar1', o facto é que nos facultaram uma base política
importante a partir da qual podemos interpretar as mensagens ocultas
que as escolas parecem difundir de forma tão poderosa.
A título de exemplo, num outro local mencionei algumas das investi-
gações etnográficas que demonstram a forma como o currículo oculto
das escolas ensina, efectivamente, normas e distinções ideológicas
"essenciais" aos alunos, "exigidas" pelo mercado de trabalho16. A referida
investigação tende a confirmar alguns dos argumentos defendidos pelos
economistas políticos da educação, para quem um dos papéis principais
da escola reside concretamente na transmissão desse currículo oculto.
Deste modo, para Bowles e Gintis este ensino oculto que se encontra
inserido nas relações sociais da sala de aula surge distribuído diferencia-
damente. No fundo, no capitalismo avançado, em vez de um sistema
público de ensino único, existem dois. Cada um deles ensina normas
diferentes, valores e ensinamentos, dependendo da classe social e da tra-
jectória económica de cada pessoal7. Neste caso, a escola funciona como
um filtro entre a família e o mercado de trabalho. Define o indivíduo

'' Vide, por exemplo. Bowles. Samuel, e Gintis. Herbert (1976). Schooling in CapitalistAmerica. New York Basic Books.
" Apple, Michael (1979). "The Politics of School Knowledge", Reviewof Education V
l6 Apple, Michael. Nancy, King (1977). "What do Schoos teach?". Curriculum Inquiry, VI (4).
" Bowles. Samuel. e Gintis, Herbert. Schooling in Capitalist America, vide. também, Baudelot, Christian, e Establet.
Robert (1975). La Bcuela Caprtalista Cidade do Mexico: Siglo XXI Editores. e Anyon, Jean (1980), "Social Class and the
Hidden Curriculum of Work", Journal o f Education CLXII, pp. 67-92.
Conhecimento técnico, desajustamento e o Estado *

como normal ou desajustado, definição essa que corresponde de uma


maneira geral as necessidades da economia, situada no plano externo da
escola. Esta explicação, embora algo mecanicista, é muito perspicaz.
De facto, e como destaquei anteriormente, muito embora a minha
inclinação política penda para as preocupações estruturais criadas pelas
posições defendidas pelos teóricos da distribuição e não para as posições
reiteradas pelos teóricos do capital humano, o facto é que ambos igno-
ram, e portanto negligenciam o importante papel conferido a escola. Pelo
menos em termos de conhecimento encontrado no seio da instituição,
ambos os grupos partem do princípio de que as escolas são instituições
de "distribuição". A primeira supõe que uma das funções mais impor-
tantes do aparelho educativo reside na maximização da distribuição de
conhecimento técnico, de modo que os indivíduos possam também
maximizar as suas hipóteses de êxito num mercado competitivo. As fra-
gilidades desta posição (a noção de um mercado competitivo e aberto,
etc.) são claras1'. A segunda é certamente uma posição estrutural,
embora também suponha que a única forma séria de interpretar a
escola seja como um mecanismo que distribui normas e ensinamentos
que reforçam e reproduzem economicamente determinadas posições de
classe. Isto está correcto sob muitos aspectos e permite, certamente,
denunciar grande parte das crenças na meritocracia, ainda bastante
, enraizadas, que aceitam como "facto" que a distribuição desse conheci-
mento técnico garante a mobilidade, numa sociedade que é, em essên-
cia, desigual. Todavia, ambas as posições, e sobretudo qualquer posição
que queira compreender aprofundadamente o lugar da escola na repro-
dução da desigualdade, devem ser complementadas concomitantemente
por uma análise da escola como uma instituição produtiva e não apenas
distributiva.
Muito embora isto certamente não esgote tudo o que o sistema educa-
tivo faz, a interpretação das escolas, enquanto componentes do aparelho
produtivo da sociedade, deve ser efectuada de duas formas: em primeiro
I lugar, como instituições que ajudam a produzir agentes para posições
sxternas a escola, no sector económico da sociedade; e, em segundo
/ lugar, como instituições que produzem as formas culturais directa e

i Karabel e Halsey. "Educational Research: A Review and Interpretation" O'Connor. James (1973). The Fiscal Criris of the
State. New York. St. Martin's Press. e Castells. Manuel (1980). The Economic Crisis and American Sociey Princeton:
Princeton University Press.
-
indirectamente requeridas por esse mesmo sector económico. Argu-
mentarei então a existência de uma interacção, profundamente com-
plexa, entre o papel da escola na produção de agentes para a divisão
social do trabalho (um papel que os economistas políticos da educação
reconhecem) e o lugar da escola como forma de produção de capital
cultural. Em essência, reiterarei que a compreensão de tal interacção
passa por começarmos por "decifrar a lógica" do processo de acumula-
ção capitalista, uma vez que a produção, acumulação e controlo de tipos
específicos de conhecimento é um aspecto integral neste proces~o'~.
Tal como defende Erik Olin Wright, a acumulação de capital encontra-
-se no núcleo da reprodução das sociedades capitalistas2'. Falando meta-
foricamente, embora a escola não seja a central geradora da economia,
faz parte do mesmo corpo, contribuindo assim para o processo de acu-
mulação tal como existe actualmente. Examinemos então esse corpo
mais minuciosamente.

Conhecimento escolar e acumulação de capital


Gostria que pensássemos no conhecimento como uma forma de capi-
./tal. Tal como as instituições económicas se encontram organizadas de
i
1 forma que determinadas classes sociais aumentem a sua percentagem
; de capital económico, também as instituições culturais, como é o caso
da escola, parecem fazer o mesmo. As escolas exercem um papel crucial,
contribuindo para a acumulação de capital cultural.
Neste caso concreto, utilizo a ideia de capital cultural num sentido
particular e diferente daquele que é veiculado por Bourdieu e outros.
Para Bourdieu, por exemplo, o estilo, a linguagem, os ensinamentos
culturais, etc., dos grupos dominantes - ou seja, o seu capital cultural -
podem ser apropriados nas escolas de forma que a sua manutenção seja
preservada". Deste modo, progridem devido a "posse" desse mesmo
capital cultural. Há alguma consistência numa concepção de capital cul-
tural deste género. Todavia, a tal concepção escapa-lhe a análise sobre o
papel que a escola desempenha na "produção" de um determinado tipo

l9 theState London New Left Books, p 111


Wright. Erik Olin (1978) Class, Cr~s~sand
O' Ibid, p 112 Todavia. Wright salienta que a necessidade de um processo em constante crescimento de acumulação de
capital nem sempre e funcional para a reprodução Na verdade. pode despoletar crises estruturais a nível interno. Vlde
pp 111-180
" Bourdieu, Pierre. Passeron, Jean-Claude (1977) Reproduction i n Education, Society and Culture. London: Sage
Publications
Conhecimento técnico, desajustamento e o Estado s

de capital. O trabalho de Bourdieu é ainda, de certo modo, uma teoria


da distribuição. Para ele, o capital cultural é utilizado como um meca-
nismo para distribuir os estudantes, de acordo com a classe, na sua
posição "adequada" na sociedade. Os estudantes destituídos desse capital
são, por definição, desajustados. O que esta abordagem não consegue
captar é que as escolas funcionam também como um dos modos princi-
pais de produção de mercadorias culturais exigidas pela sociedade capi-
talista. Esta questão requer uma melhor explicação.
Numa investigação recente, relacionada com o papel ideológico do
conhecimento escolar, que se encontra no livro Ideologia e Currículo,
defendia o seguinte:
"O nosso tipo de sistema económico encontra-se organizado de tal
maneira que pode apenas provocar uma determinada quantidade de
empregos e mesmo assim manter altos níveis de estágio "mais efi-
ciente" quando se verifica uma taxa (mensurável)de desemprego de
aproximadamente 3% ou 4-6% (embora saibamos que isto e uma
medida visivelmente imprecisa, a qual se devem acrescentar as ques-
tões relacionadas com as taxas muito mais elevadas para os negros [e
outros grupos], tmas altas de subemprego [e o trabalho mal remune-
, rado ou não remunerado das mulheres]). Providenciar trabalho útil
para estas pessoas implicaria grandes cortes no reembolso de impos-
tos e, provavelmente, exigiria,pelo menos, uma reorganização parcial
dos ditos 'mecanismos de mercado' responsáveis pela distribuiçüo de
empregos e recursos. Por essa razão não e, de forma alguma, uma
; metáfora inadequada descrever o sistema económico como algo que
'gera naturalmente' determinados níveis específicos de subemprego e
desemprego. Podemos pensar este modelo como estando essencial-
mente preocupado com a maximização da produção do lucro e apenas
secundariamente com a distribuiçüo de recursos e de empregos.
Assim, quando pensamos no conhecimento e na relação que estabe-
lece com tal economia, parece ser válido um modelo idêntico. Uma
economia capitalista avançada requer a produção de níveis elevados
de conhecimento técnico, como garantia de manutenção e funciona-
mento eficaz do aparelho económico tomando-se mais sofisticado na
maximização de oportunidades para a expansão económica. Dentro
de determinados limites, o que e efectivamenteerigido 'não' é a distri-
buição abrangente desse mesmo conhecimento de estatuto elevado
a população em geral. O que é necessário é maximizar a sua
produçüo. Enquanto o conhecimento for contínua e eficientemente
produzido, a própria escola, pelo menos nesse aspecto principal da sua s
funçúo, é eficiente. Desfa forma, determinado nível baixo de rendi- d
mento escolar obfido pelos estudantes de grupos 'minoritários: por C
crianças de famílias pobres, etc., pode ser tolerado. Esta questúo acar- I(
reta consequCncias menos graves para a economia do que a própria
geração do conhecimento. Novamente, a produção de uma 'mercado-
li
ria' específica (neste caso concreto, o conhecimento de estatuto ele-
vado) é mais importante que a disfribuição dessa mercadoria especí- n
fica. Desde que não interfiram com a produçúo de conhecimento a
técnico, podem também ser toleradas preocupações com a sua distri- a
buiçúo mais igualitária. ti
Nesta conformidade, tal como no "mercado económico'; em que é
mais eficiente possuir um nível relativamente constante de desem-
prego [ou um controlo do Estado ou do capital na variação do seu
I e
I
nível], do que na realidade criá-lo de uma forma controlada, também O
as instituições culturais 'naturalmente'geram o desajustamento e os ri
baixos níveis de rendimento escolar. A distribuiçúo ou a escassez de
4
determinadas formas de capital cultural é menos importante para o

'
cálculo de valores (gerados por esta formação social] do que a maxi-
1
mizaçúo da produçúo do conhecimento particular em si".'" "

.l
T
I
Assim, as escolas não actuam "meramente" como mecanismos de dis-

I
C
tribuição de um determindo currículo oculto e de pessoas por lugares
"adequados" na sociedade. São elementos importantes no modo de pro-
dução de mercadorias da sociedade.
O que é que poderia estar errado nesta análise? Obviamente, as escolas
produzem conhecimento. Mas tal não parece ser do senso comum? Na
verdade, é através do que parece ser senso comum que podemos começar
a desvendar algumas das ligações entre o conhecimento escolar, a repro-
dução da divisão do trabalho e o processo de acumulação. Para tal, preci-
samos de entender como é, realmente, utilizado o conhecimento téc-
nico/administrativo. Precisamos de o recontextuar no espaço das Ii:

C
relações estruturais que auxiliaram a sua produção, uma vez que
o conhecimento técnico "não" é necessariamente uma mercadoria .
neutra inserida numa economia capitalista. Esta questão é importante,

" Apple.
Michael, Ideology and Curriculum, pp. 36-37. Agradeço a Walter Feinberg a ideia de que as escolas servem para
maximizar a produção de conhecimento tecnico. Vide Feinberg, Walter ( 1 977). A Critical Analysis of the Social and Eco-
nomic Limits t o the Humanizing of Education. i n Richard Weller (ed.), Humanistic Education Berkeley
McCutchan, pp. 249-269.

96
I
?
Conhecimento técnico, desajustamento e o Estado

sobretudo hoje em dia, uma vez que é cada vez mais clara a existência
de uma monopolização quase total por parte das grandes empresas
capitalistas detentoras do conhecimento técnico e da inteligência tecno-
lógicaz3.
A posição defendida por Andre Gorz torna-se, neste contexto, particu-
larmente importante. Argumenta Gorz que "devemos recordar que os
meios de produção não abrangem apenas as fábricas e as máquinas";
abrangem também a tecnologia e a ciência incorporadas nas máquinas e
as instalações, que dominam os trabalhadores como "uma força produ-
tiva diferente do trabalho"'*.
De uma maneira geral, e sob vários aspectos, o conhecimento técnico é
essencial para qualquer economia industrial avançada. No entanto, é no
"modo" como é utilizado no nosso país que se encontra o factor crítico.
Dado o enorme crescimento verificado no volume de produção, tem-se
registado uma concomitante necessidade de um aumento rápido na
quantidade de informação técnica e administrativa. Esta questão rela-
ciona-se com o aumento progressivo das "procuras de mercado" e de
"relações humanas" exigidas pelas diferentes empresas, com o objectivo
de aumentar a taxa de acumulação e o controlo do local de trabalho.
Tudo isto implica a produção de informação por intermédio de máquinas
i e também a produção de máquinas mais eficientes). Tais produtos - a
mercadoria do conhecimento - podem não ser materiais na verdadeira
acepção da palavra, no entanto, não há dúvida de que são produtos eco-
nomicamente vitaisz5. Quando se adiciona a esta questão o importante
papel desempenhado pelas indústrias relacionadas com o aparelho de
defesa do país na acumulação capitalista - assunto para o qual tive opor-
tunidade de chamar a atenção nas notas inseridas no primeiro capítulo -
aumenta a preponderância desse tipo de capital cultural.
Embora não seja uma regra inflexível e tenha revelado oscilações em
diferentes períodos, historicamente, em economias como a nossa, o
5
conhecimento técnico tem sido produzido e organizado de forma a
e
beneficiar os interesses das empresas. Por exemplo, Stephen Marglin,
a
numa análise interessante embora por vezes problemática efectuada ao

Noble, David (1977). Arnerica by Design: Science, Technology and the Rise of Corporate Capitalisrn. New York: Alfred
a
A. Knopf, p. 26.
k
I ' Gorz, Andre (1976) (ed.). The Divisron o f Labour. New Jersey: Humanities Press, p. 9.
'I1 Manifesto. "Challenging the Role of Technical Experts". in Gorz (ed.), The Division o f Labour, p. 124.

3CPP-EP-07 97

A
papel das inovações técnicas no crescimento da economia capitalista,
salienta que a propensão da mudança tecnológica tem quase sempre
exibido uma determinada consistência com a organização e reorganiza-
ção industrial. Dito de outro modo, a eficiência técnica, atingida pela
acumulação "e pelo controlo" do conhecimento técnico/administrativo,
foi patrocinada e introduzida por gestores capitalistas, para que pudes-
sem aumentar a sua quota de lucro económico e não apenas devido
à eficiência da organização. Desta forma, a função social da divisão hie-
rárquica do trabalho baseada em critérios técnicos não visava apenas
a eficiência técnica, mas também a acumulação. Simultaneamente,
aumentou o poder dos órgãos de gestão do capital para controlarem e
supervisionarem os trabalhadores, pelo simples facto de que uma hierar-
quia de trabalho alicerçada na técnica destruiria as capacidades e destre-
zas em unidades mínimas, de tal forma que pudessem ser reorganizadas
E
na oficina fabril". Parte do desenvolvimento histórico deste processo
r
encontra-se extraordinariamente exemplificado na análise que Harry
\
Braverman realiza sobre a atomização progressiva e a perda de controlo
1
por parte de operários e empregados de escritórioz7.
A importância do uso, controlo e acumulação do capital cultural técnico
11
torna-se ainda mais clara se examinarmos a história das indústrias forte- F
mente assentes na técnica e na ciência. Por exemplo, nas indústrias extrac- a
tivas, do petróleo, do aço, da borracha, mas também, sobretudo, na indús- E
tria automobilística, a introdução sistemática da "ciência" como meio de n
produção pressupôs e, por sua vez, reforçou o monopólio industrial.
É neste contexto que Noble, numa análise recente à história da rela- t
ção entre a ciência, a tecnologia, as instituições educativas e a indústria,
salienta:
I
"Tal monopóíio significou o controlo não apenas dos mercados, do
equipamento e das infra-estruturas, mas também da própria ciência.
Inicialmente o monopólio da ciência assumiu a forma de controlo de
patente - isto é, o controlo exercido sobre os 'produtos' de tecnologia
científica. Tomou-se posteriormente no controlo do próprio 'processo'
de produção científica, através de uma investigação industrial organi-
zada e regulada. Finalmente, acabaria por incluir o controlo sobre
os pré-requisitos sociais deste processo: o desenvolvimento das insti-

l 6 Marglin. Stephen. "What do Bosses do?", in Gorz (ed.). The Division o f Labour, pp. 13-54
" Braverrnan (1974). Labour and Monopoly Capital. New York: Monthly Review Press.
Conhecimento técnico, desajustamento e o Estado L

, tuições necessárias para a produção do conhecimento científico, das


e pessoas detentoras do conhecimento especializado, e a integração de
tais instituições no seio do sistema capitalista da indústria baseada
a na ciência. 'A revolução técnico-científica: tal como Harry Braver-
man explicou, 'não pode ser entendida em termos de inovações espe-
4
cíficas...'. Pelo contrário, 'deve ser entendida na sua totalidade, como
r
um modo de produção no qual a ciência e a engenharia especíiicu
O
b-
foram integradas como fazendo parte do seu normal funcionamento.
A chave da inovação não deve ser encontrada na química, na electró-
is nica, ou na maquinaria automática... ou em qualquer dos produtos
e. destas ciências tecnológicas, mas sim na transformação da própria
e ciência em capital."28
r-
e-
Assim, à medida que a indústria se associava, cada vez mais, à divisão
lls
e ao controlo do trabalho e às inovações técnicas, para expandir os seus
50
mercados e o consumo necessitava de garantir uma acumulação relati-
ry
vamente constante de dois tipos de capital, o económico e o cultural.
40
Tais necessidades requeriam uma grande capacidade de influência nos
locais onde os agentes e o conhecimento eram produzidos - a escola e,
c0
particularmente, a universidade. Este processo de influência tem sido
te-
actualmente intensificado, frequentemente através da intervenção do
K-
Estado, intervenção sobre a qual me debruçarei pormenorizadamente
is-
muito em breve.
de
A citação anterior de Noble, relacionada com a importância do con-
trolo de patentes, esclarece um aspecto crucial, uma vez que é aqui que
la-
ia,
podemos observar uma área em que a acumulação de conhecimento
técnico desempenha um importante papel económico. O controlo da
produção do conhecimento técnico era importante para a produção sis-
temática de patentes e para a monopolização do mercado. Muito embora
o objectivo essencial da investigação industrial fosse encontrar soluções
técnicas para problemas imediatos de produção, a organização e o con-
trolo da produção de conhecimento eram pertinentes, caso se preten-
desse "antecipar tendências inventivas, conseguindo patentes e man-
tendo livre o caminho do progresso e da expansão dos negócio^"^? O
controlo dos aspectos mais significativos do conhecimento científico e

'' Noble. America by Design, p. 6.

-
técnico foi atingido através do monopólio das patentes e da organização
e reorganização da vida da universidade (sobretudo dos seus currículos).
Deste modo, e tal como Noble o demonstra novamente de uma forma
clara, a indústria e as ideologias que ela tem impulsionado desempenha-
ram e continuam a desempenhar u m papel excepcionalmente impor-
tante na determinação (melhor dito, no estabelecimento dos limites
estruturais) dos tipos de currículos e práticas pedagógicas tidos como
apropriados ou legítimos para uma parcela significativa da vida das uni-
versidades e dos institutos técnicos. Dada a crise económica com que
actualmente nos debatemos, devemos esperar uma influência ainda
mais acentuada dos interesses do capital num futuro próximo.
Numa determinada perspectiva, foi bastante eficaz o uso das universi-
dades com o intuito de gerar e preservar conhecimento técnico baseado
na investigação básica e aplicada. O custo e o risco, tanto da produção
de pessoal formado para trabalhar na indústria, como da produção da
investigação fundamental, da qual depende a maioria da investigação
industrial, incidem, em grande parte, sobre a população em geral3'. Em
parte, isto explica a razão pela qual o currículo explícito das escolas - o
conhecimento legítimo dentro da caixa-negra - parece estar organizado
tendo em vista a universidade. Ou seja, o facto de grande parte da esco-
larização se orientar para o ensino universitário e para os institutos téc-
nicos superiores (e, tal como descreve Karabel, a frequência com que
estas instituições se encontram habitualmente depende da trajectória de
cada um no seio da classe económica re~pectiva)~' fornece testemunhos
acrescidos sobre a interpenetração do duplo papel que a escola tem na
produção tanto de agentes como de mercadorias culturais.
Tenho vindo a salientar que precisamos de entender as escolas como
instituições, não só produtivas, mas também distributivas, para poder-
mos ter u m quadro mais completo do que elas parecem realizar. Ao
verificarmos as relações estabelecidas entre a produção cultural e a pro-
dução económica, conseguimos ao mesmo tempo completar u m pouco
mais o quadro referido. Pretendo aprofundar mais essas relações.
A ênfase colocada na produção de conhecimento técnico permite-nos
constatar como as escolas ajudam na manutenção de uma determinada
diferenciação que radica no centro da divisão social do trabalho - a

.
a l b ~ dpp 128. 147
" Karabel, Jerome (1972) "Community Colleges and Social Stratification". Harvard Educat~onalReview, XLI. pp 521-562
Conhecimento técnico, desajustamento e o Estado "

i diferença entre trabalho mental e trabalho manual3'. Os estudantes


L identificados como capazes de produzir - através do seu trabalho exce-
a dente posterior - importantes quantidades de conhecimento
técnico/administrativo vão sendo progressivamente "colocados" no lado
mental de tal dicotomia. Isto é feito a nível interno, através das opera-
s ções "naturais" do currículo e das actividades de orientação educativa da
D escola. Os que rejeitam ou são rejeitados por este cálculo específico de
i- valores são "colocados", novamente através dos currículos e da orienta-
Y ção educativa da escola, numa trajectória que permitirá posteriormente
Ia extrair-lhes o trabalho excedente sob a forma de serviço elou de trabalho
O facto de a cultura, a linguagem e os valores dos grupos
ii-
dominantes serem utilizados no ensino inicial em tais escolas leva a que
h as crianças pobres e das minorias étnicas sejam colocadas no lado manual
ão da dicotomia. Este processo, naturalmente, não é tão pacífico como
da parece. Os alunos não ficam necessariamente passivos face a estas condi-
ão ções, assunto que retomarei no quarto capítulo, na abordagem sobre as
:m características internas das escolas e da cultura vivida dos estudantes.
-o Saliente-se uma vez mais que tal processo parece funcionar em ambos
do os aspectos do papel produtivo das escolas, ao contribuir também para a
:o- produção de agentes que se enquadrem nas necessidades da divisão
K- social do trabalho. Por um lado, os indivíduos que não são '(vistos"
lu4 como contribuindo para a maximização da produção de conhecimento
dí técnico/administrativo são considerados como desajustados, podendo,
\O!
desta forma, ser devidamente distribuídos ao longo dos vários níveis,
ni
uma vez mais com normas e valores apropriadamente diferenciados.
Por outro lado, produzem-se "peritos" que preenchem uma função ideo-
rnc lógica importante. Nas palavras de Wright, diferentes tipos de "peritos",
ler
situados em todas as etapas do processo de produção, ajudam a legiti-
.A 1
mar a subordinação do trabalhador ao capital, deixando transparecer
ir0
naturalmente que os trabalhadores são incapazes de, por si próprios,
JC
organizarem a produção. Em essência, dada a divisão generalizada entre
o trabalho mental e o trabalho manual, os trabalhadores geralmente
nc acabam por ser privados do conhecimento necessário. tanto para com-
ad
- preender como para liderar os aspectos importantes do processo de
-
-

'Poulantzas, Niros (1975). Classes in Conternporary Capitalitrn. London: New Left Books, p. 238.
OPara uma consulta sobre o modo como tais programas internos funcionam. vide Rosenbaum. James (1976), Making
66. Inequaliry. New York: John Wiley.

1o1
produção34.A acumulação capitalista e o controlo do conhecimento téc-
nico encontram-se profundamente relacionados com esta dicotomia,
que, como tivemos oportunidade de observar, é vital também para a
acumulação e para o controlo do capital económico.
Digamos que esta relação entre a acumulação de capital económico e
cultural significa que "não" é essencial todos possuírem um conheci-
mento técnico apurado. Desde que o conheciemto se encontre disponí-
vel, a escola será relativamente eficaz na dimensão da sua função produ-
tiva. A medida que as condições de maximização da produção de
conhecimento técnico/administrativo vão sendo atingidas, e a medida
que os estudantes vão aceitando ou rejeitando muitas das mensagens da
vida escolar essencialmente pela sua classe social (raça e género), a
escola pode muito bem empregar tal conhecimento como um filtro
complexo com o objectivo de classificar os estudantes de acordo com o
lugar que ocuparão na estrutura hierárquica do mercado de trabalho.
O sucesso surge novamente associado a origem social (embora, outra
vez, não através de u m determinado processo mecânico, dado existir
também mobilidade "individual").
Tudo isto precisa de ser inserido continuamente no contexto do pro-
cesso de acumulação. Há que gerar reservas de capital tendo em vista
épocas de crise numa dada economia. Para se atingir este desiderato,
parece também serem necessários outros dois tipos de reservas: (1) a
dos trabalhadores, que possam ser colocados em determinadas posições
quando tais posições se tornarem disponíveis; e (2) a de capital cultural,
formas de conhecimento que possam ser utilizadas para criar novas téc-
nicas de produção, para o monopólio de patentes, para a estimulação de
necessidades e de mercados e ainda para a divisão e controlo do traba-
lho. Desta forma, poderíamos avançar com a hipótese de que o conheci-
mento técnico funciona através das escolas como uma força de reserva
de conhecimento, do mesmo modo que a economia necessita de uma
força de reserva de trabalhadores. Arnbas as reservas exercerão um papel
preponderante numa crise económica.
Admito que este quadro seja u m pouco complexo. Todavia, o elemento
básico da análise que aqui efectuo traduz-se num argumento estrutural.
Muito embora, e a julgar pela sua aparência, o conteúdo veiculado pelo

- - - -
Wright, Class, Crisis and the State. p 38.
Conhecimento técnico. desajustamento e o Estado -
conhecimento técnico não seja necessariamente ideológico, o facto é
1. que os usos a que se destina nas economias capitalistas e a forma como
0 funciona nas escolas e através destas são "determinados" pelos padrões
estruturais existentes. Dito de outro modo, a dominação capitalista do
e controlo, uso e acumulação final do conhecimento técnico estabelece os
i- limites das formas que ele corporizará nessa sociedade e também, em
í- última análise, dos tipos de conhecimento e de pessoas seleccionadas
1-
como legítimos no seio das escolas das sociedades capitalistas".
le No entanto, e tal como salientei nas análises iniciais, para entender-
b mos estas complexas relações não basta interpretarmos as ligações que
la se estabelecem entre o conhecimento, desajustamento e reprodução
económica e cultural. Devemos começar a analisar também o poder do
a
Estado. É no sentido dessa análise que a seguir me debruço.
r0
O
O papel do Estado
o.
ra Goran Therborn, num estudo comparativo sobre o poder do Estado e
tir dos aparelhos de Estado, defende que o aparelho de Estado, em termos
de funcionamento e de organização, pode, frequentemente, ser enten-
w dido na base de relações de dominação de classe". Esta questão não é
;ta
marginal para o argumento que pretendo esboçar, dado que o papel do
Estado (sendo a escola uma componente importante) se torna cada vez
to.
mais importante para a compreensão do desempenho das escoijis.
Ia
Uma vez que se tem tornado cada vez mais difícil para as empresas indi- -
ies
vidualmente garantirem um determinado fluxo de conhecimento técnico,
al.
de pessoal tecnicamente especializado e semiqualificado, o aparelho edu-
Cc-
cativo do Estado, por intermédio das políticas e prioridades curriculares,
de
avaliativas e financeiras, assume um papel imprescindível. Nos Estados
M-
Unidos, o Estado, que a partir de 1930 se orientava apenas por políticas de
ci- retenção, distribuindo alguns dos recursos produzidos pela economia,
va
vê-se agora, cada vez mais, envolvido nas políticas de produção. Isto é
na uma verdade inquestionável na economia, onde o Estado regula, controla,
pel subsidia interesses especiais, patrocina a investigação e fornece apoio

ito Erik Olin Wright delimita seis modelos de determinaçáo, incluindo a determinaçáo e selecçáo estrutural que aqui sugiro.
pai. Tais modelos incluem a limitacao estrutural, a s~lecção.a reproduçáo/não-reproduçao, os limites de compatibilidade
funcional, a transforma(ão e medição. Mde: Wright. C/as, Crisis and the State, pp. 15-23. Esta questão será por mim
elo retomada no próximo capítulo. Naturalmente existem outros interess~sde grupos de estatuto que aqui se nserem.
Para um interessante debate sobre esta questão. Vrde: Colliris. Randall (1979). The Credent~alSociety. New York:
Academic Press.
Therborn, Goran (1978). What Does the R u h g Class do When i t Rules?. London New Left Books. p. 11.
financeiro para a produção de bens "essenciais", habitualmente directa-
mente relacionados com a indústria do armamento. Actua a nível nacio-
nal e internacional como uma força para "garantir" recursos que contri-
buam para a produtividade da economia'".
Contrariamente a períodos anteriores, nomeadamente à Segunda
Guerra Mundial, em que o Estado intervinha na economia com base em
objectivos limitados, a intervenção do Estado tem aumentado tão rapi-
damente que se transformou numa componente imprescindível nos paí-
ses desenvolvidos. Embora em diferentes países varie a forma de inter-
venção - por exemplo, nacionalização de determinadas indústrias na
França e na Itália; gasto público maciço nos Estados Unidos -, não res-
tam dúvidas relacionadas com a amplitude dessa intervenção3'. Esta
intervenção normalmente consiste num determinado número de for-
mas principais. Em primeiro lugar, o Estado subsidia, não apenas direc-
tamente, o capital através de medidas fiscais, como, por exemplo,
empréstimos e benefícios fiscais, como também indirectamente, através
do fornecimento de energia, transporte, etc. Uma segunda forma, muito
importante para os argumentos que desenvolvo neste capítulo, prende-
se com o papel do Estado em assumir uma percentagem significativa
dos custos sociais do capital privado. Ou seja, socializa os custos de coi-
sas como a investigação científica, a educação e a formação da força de
trabalho. Assim, mesmo que tais gastos sejam fundamentais para, numa
primeira instância, poderem aumentar a rentabilidade e a produtividade
da indústria, o facto é que os custos são "divididos" por todos nós.
Assim, mesmo que os benefícios sejam desproporcionalmente acumula-
dos pelo capital, os custos são assimilados pela maioria da população
trabalhadora, através do Estado. A indústria pode aumentar a sua quota
de conhecimento técnico/administrativo sem que os capitalistas indivi-
dualmente tenham que aumentar os seus próprios gastos com a investi-
gação t e c n ~ l ó g i c a ~ ~ .

37 Wright, Class, Crisis and the State, p 162 Isto náo significa, necessariamente. que tanto o Estado como a industria
teráo sucesso na regulação dos vários aspectos da produçáo e da economia Tal como 16 destaquei. tambem se tem
tornado cada vez mais explícito que o Estado possui uma variedade de funcões a desempenhar. náo se limitando ape-
nas a um papel cada vez mais activo na estimulaçáo da acumulação. algumas das quais podem estar em contradição
entre SI. Para discussões interessantes em torno das diferentes funcões que o Estado desempenha, vide Offe, Claus. e
Ronge. Volker (1975). "Therer on the Theory of the State", New Gerrnan Critique VI. pp. 137-147. O'Connor. Jarnes
(1973). The Fiscal Crisa o f the State, New York: St Martin's Press; e Dale, Roger (1979). "The Politicization of School
Deviance", in Len Barton e Roland Meighan (eds.). Schools, Pupils and Deviance, Driffield. England Nafferton B O O ~ .
Castells. The Economic Crisis and Arnerican Society, p 69
" lbid . p 70.
Conhecimento tecnico, derajustamento e o Estado

A intervenção do Estado tem, obviamente, outras funções. A contri-


buição do Estado no processo de expansão de mercados, na comerciali-
zação de produtos, na manutenção de um imenso aparelho militar a
nível nacional e internacional e na sua absorção dos trabalhadores
"excedentes", por intermédio do aumento proporcional de funcionários
públicos assalariados, providencia serviços importantes para a
economia40.Finalmente, o Estado desempenha um papel cada vez mais
preponderante, naquilo que se tem denominado de "reprodução das
relações sociais" e na organização da divisão social do trabalho. Deste
modo, inúmeras leis e regulamentos nas áreas da educação, saúde,
comunicação social, família, relações de propriedade, etc., tendem a
reproduzir as formas das relações sociais e contratuais exigidas pelo
capita141,muito embora, naturalmente, possam também ser estimuladas
pelas necessidades específicas do próprio Estado.
Na maioria dos casos, cada uma destas formas de intervenção do
Estado tem sido provocada em função da crise contínua, cada vez mais
agravada, que se tem verificado no processo de acumulação. Para a
enfrentar, o Estado tem desenvolvido e continuará a desenvolver estra-
tégias na tentativa de superar a crise registada no "processo global de
produção, reprodução, circulação e regulação do capital, mercadorias,
recursos e trabalho"42.
Assim, e resumindo, constata-se que o Estado tem vindo a deslocar-se
para o centro da economia, assegurando o processo de acumulação de
capital, providenciando a prestação de serviços, criando novos mercados
t protegendo os antigos e ainda absorvendo grande parte da população
.'excedenteo que se encontra na função pública. Perante isto, verifica-se
uma tendência sistemática: a socialização dos custos e a privatimção
dos lucros". Como podemos observar, estamos perante um padrão clás-
sico. Grande parte dos investimentos efectuados no "capital humano" e
1 no desenvolvimento de recursos são absolutamente necessários para a
indústria, contudo, como tive oportunidade de afirmar anteriormente,
são muito dispendiosos. O Estado assume os pesados custos iniciais
de investigação básica e desenvolvimento. Deste modo, "transfere"

Ib~d.,
pp. 70-71
Ibid., p. 71
' Ibid.. p. 104.
I 1bid.p. 130
novamente os frutos desse investimento para o "sector privado", logo
que se torne l u ~ r a t i v o Neste
~ ~ . caso concreto, o papel do Estado no pro-
cesso de acumulação de capital é bastante evidente no apoio prestado à
produção de conhecimento técnico/administrativo.
A ênfase conferida a tal conhecimento tem implicações importantes
nas necessidades de legitimação do Estado e nas necessidades de acu-
mulação na esfera económica. Com o poder crescente da nova pequena
burguesia dentro do aparelho económico e cultural, a ênfase no conhe-
cimento técnico/administrativo permite à escola desempenhar dois
papéis. Aumenta a sua legitimidade perante este importante segmento
de classe e, igualmente importante também, permite que tal segmento
i de classe utilize o aparelho educatiuo para se reproduzir4'. Os gerentes
!de nível intermédio, os empregados semiautónomos, os técnicos, os
engenheiros, os contabilistas, os funcionários públicos, etc., podem, não
só ver a escola de forma positiva (que não deve ser minimizada sobre-
tudo numa época em que as nossas principais instituições vivem um
1
#

enorme descrédito), como também utilizá-la para a reprodução das suas


:credenciais, posições e privilégios empregues, em última instância, no
1
i Estado e na indú~tria*~.
I

Nesta conformidade, as necessidades específicas do aparelho de Estado


devem ser tomadas em consideração. A escola não responde apenas às
"necessidades do capital", mas também preserva a sua própria legitimi-
dade perante os seus restantes clientes. Neste caso concreto (embora
Ínão necessariamente nos restantes), verifica-se uma conjuntura especí-
' fica de interesses estabelecidos entre os requisitos impostos pela indús-
tria na produção de capital cultural e os interesses de grande parte da
nova pequena burguesia no que respeita à sua própria mobilidade. Por
conseguinte, tipos particulares de intervenção do Estado resultam, em
parte, da conjuntura em causa.
4
Os efeitos provocados tanto pelas necessidades de acumulação e de
legitimação como pelas ideologias estimuladas por tais necessidades

'"bid. p. 125. Por outro lado. podemos reconhecer a existência de um "socialismo de limáo". em que o Estado adquiri
indústrias em falência absorvendo os seus custos. O próprio facto de as industrias nacionalizadas se encontrarem quase
sempre em péssimo estado quando sáo adquiridas significa um índice elevado de fracasso e p6ssima qualidade de pres-
tação de serviços e de produtos. Isto 6 muito utilizado como argumento contra o socialismo em geral. Obviamente. e
um processo de raciocinio um tanto ou quanto circular
Vide Bernstein, Basil (1977). Class. CodesandControl, volume 3, London: Routledge & Kegan Paul.
46 Neste contexto. a discussáo de Randall Collins relacionada com o mercado de credenciais 6 adequada. Vide. Collins.
The Credential Society. Para uma abordagem sobre o posicionamento efectivo deste grupo dentro da estrutura de
classe. vide Walker. Pat (ed.) (1979). Between Laborand Capital, Boston: South End Press.
Conhecimento técnico, desajustamento e o Estado 3

podem ser constatados na educação em geral e no seu respectivo papel


"produtivo" específico. Tal como na economia, exemplos deste quadro
de intervenção tornam-se cada vez mais relevantes. Incluem a ênfase na
educação fundamentada na "competência", gestão de sistemas, educa-
ção profissionalizante, futurismo (normalmente, um eufemismo rela-
cionado com a planificação da "mão-de-obra"), financiamento contínuo
e amplo para o desenvolvimento de currículos na área da Matemática e
das Ciências (quando comparados com as áreas das Artes), programas
nacionais de avaliação, faculdades e institutos técnicos comunitários,
etc. Estas e outras questões denunciam o papel, ora encoberto, ora cla-
ramente explícito, da intervenção do Estado na escolarização tentando
maximizar a produção eficiente, quer dos agentes, quer do conheci-
mento pretendido por uma economia . .

Estas questões em torno da esfera económica e da educação tornam-


-se mais claras se analisarmos mais de perto a economia americana a
nível interno. Onde se registou um desequilíbrio na distribuição de
recursos gerados pelo funcionamento do "mercado", o Estado interveio
redistribuindo recursos mínimos aos que se encontravam numa situa-
ção profundamente desprivilegiada. Deste modo, quando se atingem
níveis elevados de desemprego "naturalmente" produzidos numa época
de crise, depressão e recessão, o Estado compensa aumentando os fun-
dos de desemprego. Quando a saúde sob a égide privada não consegue
dar resposta a uma grande quantidade de pobres e de desprivilegiados, o
Estado começa a envolver-se nesse domínio. Quando os fundos de pen-
sões entram em ruptura devido à inflação e à crise na economia, o
Estado intervém garantindo um determinado nível de apoio. Convém
verificar que todas estas acções, embora aparentemente benéficas, colo-
cam em destaque duas coisas. Em primeiro lugar, e de novo mais
importante, evidenciam o aumento do ritmo de intervenção do Estado.
Em segundo lugar, cada uma destas intervenções é planeada para "não"
colocar minimamente em perigo o funcionamento básico do aparelho
económico e para manter a legitimidade das instituições políticas, ante
o olhar da população. O simples facto de a s condições q u e
provocam a necessidade de intervenção do Estado serem "natural-
mente" geradas a partir do aparelho produtivo da sociedade é encoberto

L- Vide a interessante discussão sobre a educacao em Wise, Arthur E. (1979). Legislated Learning, Berkeley. University of
Cafifornia Press.

107
pela intervenção do Estado, aparentemente menos dispendiosa (se com-
parada com o valor económico da acumulação do capital e do próprio
compromisso do Estado).
É muito importante compreender que tal quadro de intervenção,
quando examinado mais detalhadamente, não traduz um processo neu-
tro em termos da distribuição de benefícios. Tal como salientou Vicente
Navarro na investigação sobre os efeitos da intervenção do Estado em
duas das áreas sociais anteriormente mencionadas - mais concreta-
mente, a da saúde e a da inflação -, o padrão de privilégios gerado por
tais programas tem beneficiado consistentemente os 20% mais favoreci-
dos da população, muitas vezes à custa dos 80% mais desfavore~idos~~.
Este mesmo padrão - o Estado intervém assegurando a produção, a
legitimação e a acumulação, atenuando ainda os efeitos mais nefastos
causados pela "má distribuição" -, em que os benefícios se dirigem
desproporcionalmente para aqueles que controlam a acumulação de
capital económico e cultural, verifica-se também no campo educativo.
O Estado actuará também paliando os resultados negativos criados,
quanto mais não seja para manter a pópria legitimidade. Ao definir
grandes grupos de crianças como desajustados (lentidão na aprendiza-
gem, problemas terapêuticos, problemas de disciplina, etc.) e ao con-
ceder fundos e apoio legislativo aos professores ligados ao ensino espe-
cial, para o "diagnóstico" e para o "tratamento", o Estado financia
grandes projectos terapêuticos. Muito embora os projectos referidos
possam parecer neutros, benéficos e orientados para o aumento da
mobilidade, na verdade ajudam a enfraquecer o debate sobre o papel
da escolarização na reprodução das pessoas e do conhecimento "exigi-
dos" pela sociedade. Em parte isto acontece porque se definem as cau-
sas últimas de tal desajustamento como estando inseridas na criança
ou na sua própria cultura e não, digamos, como sendo devidas à
pobreza, conflitos e disparidades sociais gerados pelas hierarquias
culturais, económicas, etc., desenvolvidas historicamente. Esta pers-
pectiva ser-nos-á ocultada pelo pressuposto de que as escolas são
fundamentalmente organizadas como agências de distribuição e não
como, pelo menos em parte, importantes agências do processo de
acumulação.

bs Navarro, Vicente (1976). Medicineunder Capitalism. New York. Neale Watson Academic Publications, p 91
Conhecimento técnico, desajustamento e o Estado 5

Assim, da mesma forma que na actual conjuntura económica, em que


um dos grandes resultados do trabalho de uma enorme percentagem da
força de trabalho é o aumento da acumulação e do controlo do capital
económico, por parte de um segmento relativamente pequeno da popu-
lação e, posteriormente, o melhoramento dos efeitos mais nefastos de
tal processo, através de programas sociais financiados pelo Estado, tam-
bém no sector cultural da sociedade sucede algo muito semelhante.
O aparelho cultural de uma determinada sociedade, especialmente a
escola, encontra-se organizado de tal maneira que colabora na produção
de uma mercadoria - através do trabalho excedente dos seus emprega-
dos - que é, afinal, controlada e acumulada por um pequeno grupo da
população. Os grupos de pessoas que não "podem" contribuir para a
maximização de sua produção são rotulados e estratificados. Tornam-se,
deste modo, em receptores de quantidades consideravelmente reduzidas
de dinheiros do Estado, com o objectivo de remediar alguns dos efeitos
mais severos de tal processo, supondo ser, apenas, um problema de dis-
tribuição distorcida. Por outras palavras, a escola encontra-se organi-
zada para "distribuir" esse conhecimento técnico. Todavia, uma análise
deste teor sobre o desempenho das escolas parece operar como uma dis-
torção ideológica. Na verdade, tenho mantido que tal como a economia
"não" se encontra organizada para a distribuição, mas sim para a acu-
mulação, assim também as escolas, de uma maneira geral, se encon-
tram organizadas, de uma forma complexa e, frequentemente, contradi-
tória, não para a distribuição generalizada de mercadorias culturais,l
mas para a produção e acumulação por parte da classe que detém CY
capital e da nova pequena burguesia.
A posição que aqui mantenho não deve levar a concluir que se trata
i
I'
tudo de uma conspiração consciente. Em primeiro lugar, a consciência
não é o mesmo que conspiração", mesmo quando é o resultado de polí-

'
I ticas educativas e curriculares conscientes. Em segundo lugar, é muito
difícil imaginar que pudesse ser de outra forma, face a conjuntura insti-
tucional em vigor. Tal processo traduz uma "justificação estruturalJ1e
não a planificação consciente e manipulada de uns quantos capitalistas.
Nem tão-pouco vou argumentar a favor de um determinismo tecno-
lógico, em que as forças do conhecimento técnico expulsam das nossas

" Nobie, Arnerica by Design, p. 25


vidas tudo o que é bom e verdadeiro. Pelo contrário, defendo que um
dos principais mecanismos através dos quais se reproduz uma determi-
nada ordem social injusta relaciona-se com a selecção, organização,
produção, acumulação e controlo de tipos específicos de capital cultu-
ral. Numa sociedade capitalista desenvolvida, um dos elementos signifi-
cativos abrange um tipo específico de mercadoria cultural, que é a do
conhecimento técnico/administrativo. Este conhecimento não actua
como algo imperativo, empurrando tudo o que se intromete no seu
percurso. Em vez disso, define simplesmente o que é possível e não o
que é necessário. Os imperativos não surgem determinados pelo que
pode ser feito, mas por decisões ideológicas e políticas relacionadas
com o que deve ser feito5'. Este "deve" só pode ser percebido se reinse-
rirmos as instituições, como é o caso da escola, que estão parcialmente
organizadas para produzir este tipo de mercadoria cultural no contexto
dos arranjos sociais que determinam a utilidade que será dada às mer-
cadorias.
Na verdade é um processo contraditório, em que a escola é, por vezes,
apanhada com pouca esperança de conseguir uma solução. Por um lado,
a escola deve contribuir para o processo de acumulação, produzindo
quer os agentes para um mercado de trabalho hierarquizado quer o
capital cultural do conhecimento técnico/administrativo. Por outro
lado, as instituições educativas devem legitimar as ideologias de igual-
dade e de mobilidade de classe, fazendo com que sejam entendidas
numa perspectiva positiva pelo maior número possível de classes e de
segmentos de classe. Numa época de crise fiscal, esta contradição estru-
tural é exacerbada. A necessidade de eficiência "económica", ideológica
e ainda de uma estabilidade na produção tende a estar em conflito com
as restantes necessidades "políticas". Assistimos a uma escola que tenta
resolver aquilo que eventualmente poderão ser papéis inerentemente
contraditórios.

O que não explicam as teorias de correspondência


A discussão em torno de algumas das relações que associam as escolas
a tessitura social mais ampla tem sido muito limitada, sobretudo devido
ao facto de me ter cingido a articulação de algo parecido com as teorias
Conhecimento técnico, desajustamento e o Estado 21

de correspondência, relacionando alguns aspectos dos currículos escola-


res, do Estado e da forma económica. Todavia, na tentativa de não
actuarmos como Boris, e com o intuito de eliminar alguma da confusão
pantenteada por Morris, é preciso recordar que nenhuma explicação
relacionada com aquilo que as escolas fazem pode ser adequada se se
limitar às teorias da correspondência. Com efeito, e tal como terei opor-
tunidade de demonstrar neste capítulo e nos dois seguintes, os princí-
pios da correspondência que estabelecem uma relação "directa" entre a
actividade das escolas e as necessidades da economia capitalista não
podem descrever integralmente a natureza do espaço ocupado pela edu-
cação na esfera política, a sua autonomia relativa, a sua história intrín-
seca, ou até a diversidade da instituição; nem tão-pouco podem ajudar a
compreender completamente as práticas e os significados verdadeiros
dos professores, dos estudantes e dos trabalhadores veiculadas no quoti-
diano das salas de aula e do local de trabalho51. Devido à situação con-
traditória em que se encontram, as escolas podem "tentar" estratificar
1 os estudantes e utilizar categorias de desajustamento de forma que
estudantes diferentes acabem por conseguir formas diferenciadas de
ajuda. Assim, as instituições educativas podem, afinal, providenciar um
tratamento diferenciado aos estudantes, de acordo com a sua classe,
género e raça, contribuindo, desta forma, para reproduzir a divisão
social do trabalho, tal como defendem Bowles e Gintis. Contudo, não
estamos perante um processo mecanizado, no qual as "pressões exter-
nas" da economia ou do Estado moldam inflexivelmente as escolas e os
estudantes face aos processos envolvidos na acumulação de capital eco-
nómico e cultural.
Tal como podemos verificar mais adiante, regista-se um processo
tanto de selecção institucional como de auto-selecção. Uma oferta hie-
rarquizada de trabalhadores diferenciados é também gerada "natural-
mente" uma vez que alguns dos estudantes definem a "escola" como
sendo "desajustada", incapaz de corresponder às suas próprias necessi-
dades económicas e culturais. Assim, a escola encontra-se novamente
engajada, quer na produção de agentes, quer na maximização do
conhecimento técnico. Deste modo, tanto a criação de agentes, como a

' Apple, The New Sa;o/ogy o f Education Analyzing Culiural and Economic Reproduction; e Apple, Michael (1980).
"Analyzing Deterrninations: Understandingand Evaluating the Production of Social Outcomes in Schwls", in Curriculum
hquiiy X. pp. 55-76.
produção de mercadorias culturais podem ser obtidas no mesmo
momento histórico. Paralelamente a esta questão, a escola pode ainda
actuar como importante legitimadora da ordem social existente.
Com efeito, o quotidiano dentro da "caixa-negra" do sistema educativo
"assegura os valores meritocráticos que fundamentam a distribuição de
recompensas diferenciadas e ainda a separação entre i(sucedidos"e "fra-
cassados" providenciando lições constantes de desigualdade so~ial"~'.
Assim, as práticas pedagógicas e curriculares usadas para organizar o
dia-a-dia na maioria das escolas - o currículo diferenciado, as práticas
de grupo, o currículo oculto - assumem, efectivamente, uma grande
responsabilidade ao permitirem que os estudantes interiorizem o fra-
casso, entendendo o processo de classificação como uma problemática
"individual". ("A culpa é minha. Se eu me tivesse esforçado mais.)" Para
um grande número de estudantes, o rótulo de desajustados que Ihes é
afixado pela escola, por expressarem a sua própria cultura vivida, trans-
formá-los-á, efectivamente, em desajustados. Dito de outro modo, e de
acordo com as palavras de Goffman, o seu trajecto moral é tal que eles
viverão (n)o papel que Ihes confere o rótulo53.

Procurando espaços de actuação


Ao centrar as instituições educativas não apenas como parte inte-
grante de um sistema de distribuição, mas também como um sistema
específico de produção, tentei denunciar alguns dos mecanismos con-
cretos que actuam nas escolas, de modo que possamos também começar
a compreender com maior profundidade a inter-relação entre a reprodu-
ção cultural e económica da sociedade. Poder-se-ia afirmar que os tipos
de teorias que dominam o modo como compreendemos as análises da
escolarização - aquelas que colocam a sua ênfase na distribuição - têm
providenciado uma forma eficaz, embora súbtil, de controlo social54.
Elas organizam o raciocínio e a investigação sobre as escolas como
se estas fossem planificadas como mecanismos de distribuição. Sob
determinado aspecto são. Parecem "tentar" distribuir ou, pelo menos,

52 Karabel & Halsey. EducationalResearch: A Reviewandlnterpretation. p 25.


53 Goffman, Ervng (1961) Asylums. New York Doubleday. Vide, também, Rosenbaum, Making Inequaliíy.
Este argumento é idêntico ao esboçado por Whitty, para quem o foco na década de 70 sobre autonomia e profissiona-
lisrno do professor servia para atenuar qualquer possibilidade de conflito entre investiga(áo escolar e exigencias econ6-
micas e políticas que incidem sobre a escola. Vide Whitty. Geoff (1978). "School Examinations and the Politics of
School Knowledge". in Len Barton e Roland Meighan (eds.), Sociological Interpretations o f Schooling and Classrooms:
A Reappraisal. Driffield Nafferton Books, p. 131
Conhecimento técnico. desajustamento e o Estado

facultar as condições para a criação de u m currículo oculto normal-


mente diferenciado pela classe, raça e sexo, e que contribui para legiti-
mar os arranjos estruturais onde se inserem as escolas.
No entanto, por outro lado, no campo educativo, em geral, a ênfase
colocada na distribuição tem originado que grande parte da investigação
educativa se limite a analisar um espectro muito restrito de fenómenos.
Na verdade, os investigadores do currículo, em particular, e da educa-
ção, em geral, tendem a debruçar-se sobre as técnicas que os professores
utilizam para ensinar, na construção de melhores currículos, etc., par-
tindo do princípio que as mudanças nessas áreas tornarão as escolas
mais eficientes na distribuição da informação teoricamente neutra que
estas instituições devem ensinar. E se, todavia, não for apenas essa a
única função do aparelho educativo?
Ao argumentar tanto contra tais tradições de investigação e teorias
dominantes como em defesa de uma perspectiva que examine.as escolas
como parte integrante de uma conjuntura produtiva, salientei também
que o Estado vai assumir um papel cada vez mais preponderante, não
apenas na verdadeira organização da produção no plano económico,
mas também no desempenho desse mesmo papel no plano "cultural".
Intervirá activamente garantindo a produção de determinados tipos de
mercadorias culturais (neste caso, conhecimento técnico) patrocinando
sanções, programas, instituições e pessoas relacionadas com a maximi-
zação de tal processo de produção mercantil. Sugeri a hipótese de esta
questão poder estar relacionada com as mudanças e as crises registadas
nos processos de acumulação e legitimação no seio das economias capi-
talistas (e entre elas), assim como com a mudança na estrutura de
classe.
Todavia, abordar o conhecimento como uma forma de capital, a cul-
tura como uma mercadoria e contextualizar estas questões com a ques-
tão da acumulação, tudo isto precisa de ser interpretado como um con-
junto de metáforas. Como bem sabemos, as mercadorias envolvem
"conjuntos de relações" entre actores e classes concretas55. Tais metá-
foras podem supor tacitamente uma abordagem relativamente não con-
traditória da escolarização, conflito, classes e cultura. Desta forma, des-
crevi, obviamente, apenas um momento inserido num conjunto mais

i Ollman. Bertellí1971) "Alienation". New York: Cambridge University Press; e Wright, Erik Olin (1979) Class Structure
and Incorne Determination New York, Academic Press.
complexo de lutas e conjunturas contraditórias. É uma descrição que
deve ser complementada por análises historicamente orientadas
de mediação e contradição, nas palavras de Willis, de penetrações e de
limita~ões~~.
Assim, tal como me esforcei para o demonstrar, admito que o que aqui
apresentei foi apenas um esboço, inadequado sob vários aspectos.
As metáforas de que me socorri para tentar esclarecer as razões estrutu-
rais que justificam a existência de «X» (neste caso específico, como
tipos particulares de escolas e de desajustamento) podem encaminhar o
nosso raciocínio para prismas claramente deterministas. Podem, inclu-
sivamente, aproximar-nos muito das teorias da escolarização do tipo
"caixa-negra". No entanto, e muito embora tenha passado os últimos
anos a opor-me profundamente contra as abordagens economicamente
mecanicistas e de correspondência simplista que tentam explicar o que
as escolas fazem57,não significa que ignoremos as relações das escolas
com o meio económico de produção onde se inserem. Associar as práti-
cas pedagógicas, curriculares, de atribuição de rótulos e de orientação
educativa existentes nas escolas com os processos de acumulação e de
controlo do capital económico e cultural, embora necessariamente não
tão enraizada no dia-a-dia das escolas quanto alguns de nós gostaríamos
que estivesse (ou, na verdade, não tanto quanto me tenho habituado), é
pelo menos um passo inicial para uma análise mais generativa sobre o
papel das escolas na nossa ordem pouco ou nada meritocrática.
Finalmente, não devemos ficar pessimistas devido a estas análises.
Na verdade, "existem" contradições, que emergem directamente do pro-
cesso que acabei de descrever, que podem e necessitam de ser conve-
nientemente exploradas. Por exemplo, o crescente papel desempenhado
pelo Estado no processo de produção cultural e económica significa que
tais intervenções se colocam na esfera "política" e podem, potencial-
mente, transformar-se em conflitos políticos e não meramente técni-
cos5< Nesta conformidade, isto pode criar uma oportunidade para um
maior debate, uma maior acção colectiva, mais educação política, etc.
Esta questão, quando associada à tendência explícita orientada para o
que Wright denominou por "proletarização" dos trabalhadores do

" Willis, Paul (1977). Learning to Labour. Lexington. D. C. Heath


Vide, por exemplo. Apple, Ideology and Curriculum.
58 Wright. Clasx Cr~sisand the State, p. 237.
Conhecimento técnico, desajustamento e o Estado :

Estado, a qual analisarei mais pormenorizadamente no quinto capítulo,


torna as alianças políticas entre actores comprometidos estrutural-
mente bem mais viáveis. Castells, ao debater algumas das contradições
que actualmente são criadas na sociedade, demonstra, claramente, que
o crescimento rápido da intervenção do Estado pode criar condições
para o trabalho político, uma vez que deixa o próprio Estado aberto a
crítica. O referido processo é descrito por Castells da seguinte forma:
'H contradição de longo prazo proveniente da necessidade de o capital
desenvolver as forças produtivas é... Íùndamental. Relaciona-se com as
condições sociais para a investigação científica e inovação tecnoló-
gica. Uma e outra implicam enormes investimentos rentabilizados,
somente, a longo prazo. Exigem ainda uma grande autonomia no pro-
cesso de tomada de decisão face as exigências de determinadas unida-
des particulares de capital. Por outras palavras, o processo de inova-
ção tecnológica só consegue ser eficaz perante condições de produção
que escapam à lógica capitalista. Numa sociedade, só pode existir
uma contínua taxa elevada de inovação se a criutividade humana for
favorecida pelo tipo de organização social e caracteristicas do processo
de trabalho. Exige u m sistema educativo altamente desenvolvido e
não apenas orientado para a formação profissional e manipulação
ideológica. Requer u m crescente sector não capitalista de prestação de
serviços sociais capaz de fornecer informação necessária para os tra-
balhadores, melhorando a sua iniciativa. Implica, fundamentalmente,
a necessidade de existirem grandes probabilidades de iniciativa no
decorrer do processo de produção, o que, e m essência, contradiz o
modelo de autoridade existente na organização da empresa capita-
lista. Muitas dessas funções sociais são necessárias para o desenvolvi-
mento das forças produtivas, todavia são incompatíveis com a lógica
capitalista. Assim, são assumidas pelo Estado... '/nesta conformidadel,
de forma a expandir e a evitar as barreiras existentes no processo de
acumulação, o capital aumenta por intermédio da criação, proporcio-
nalmente crescente, de um ramo de actividade, regras e aparelhos que
negam a sua lógica intrínseca'. O capital procura a sua acumulação
aumentando a sua dependência com o E~tado."~"

Castells prossegue descrevendo a contradição entre a legitimação e a


acumulação, que corporiza algumas dificuldades:

1 -
:' Castells. The Econornic Crisi and Arnerican Society, p 57
"O capital deve desenvolver as forças produtivas para poder continuar
a sua acumulação. Contudo, as condições sociais hndamentais para o
desenvolvimento das forças produtivas são, cada vez mais, antagóni-
cas com as relações sociais capitalistas. Uma vez que o capital molda
a sociedade, o Estado é utilizado, cada vez mais, como u m mecanismo
básico para absorver, diluir e regular as contradições decorrentes do
processo de acumulação. Todavia, o Estado não é u m aparelho puro
de regulação capitalista. Expressa as contradições da sociedade e deve
também desempenhar funções que legitimem os interesses dominan-
tes, integrando as classes dominadas no sistema. A crescente interven-
ção do Estado no apoio a lógica capitalista em todas as dimensões da
vida social e económica 'fragiliza as bases da sua própria legitimidade'
como representante do interessegeral.'"'

É precisamente desta forma que a esfera política se torna num campo


de luta, que pode, em última análise, colocar em perigo a legitimidade
da própria esfera económica.
Todavia, que programas se deveriam encontrar a funcionar no seio do
Estado? Se o Estado se encontra numa posição fragilizada devido a tais
pressões contraditórias, que género de acção educativa específica poderá
ser realçada? Tal como salientam Carnoy e Shearer, deveria ser colocada
uma ênfase fundamental nas escolas de Engenharia, nas quais uma
grande parte do conhecimento técnico é, em essência, produzido. Seria
necessário estabelecer centros de "engenharia democrática". Isto podia
ser atingido mediante a criação de novas escolas ou através de um tra-
balho político nas instituições existentes que formam engenheiros para
a indústria. Poder-se-ia iniciar um debate político relacionado com os
fins e os meios de tais instituições. A ênfase colocada em cada uma des-
sas instituições deveria incidir nas atitudes e nos valores democráticos.
Simultaneamente, "as referidas escolas de engenharia democrática
poderiam também começar a desenvolver programas-piloto de educação
tecnológica direccionados para os trabalhadores para que, à medida que
se fossem estabelecendo empresas estruturadas mais democratica-
mente, os trabalhadores pudessem ser educados de acordo com as suas
responsabilidades mais dimensionadasn61.

Ibid., p. 58 Destaque meu. Neste caso. Castells 6 um pouco economicista. No entanto, os argumentos que expóe são
ainda assim persuasivos.
" Carnoy, Martin; Shearer. Dereck (1980). Econornic Dernocracy. New York: M. E. Sharpe. p. 232.
Conhecimento técnico. desajustamento e o Estado

São necessárias acções idênticas em relação à administração e à ges-


tão. Hoje em dia, existem institutos de administração democrática que
associam a necessidade de competência económica e técnica a valores e
planeamentos cooperativos e democráticos". A distribuição equitativa
destas destrezas técnicas e administrativas a homens e mulheres que
trabalham em escritórios, lojas e indústrias é uma tarefa muito impor-
tante. Aponta para a necessidade de desenvolvimento de modelos de
educação do trabalhador - através dos sindicatos existentes, grupos de
estudo, grupos feministas, do uso criativo dos "media"como a televisão
por cabo, da conjugação na rotação de tarefas, de competências de tra-
balhadores nas universidades elou em locais auto-organizados, etc. - de
torma a atenuar o poder ideológico do perito e iniciar a democratização
do conhecimento técnico/administrativo.
Este assunto tornar-se-á ainda mais pertinente à medida que as
tmpresas tentam evitar a crise de acumulação encerrando fábricas e/ou
deslocando-as para outros locais. Com o intuito de conservar os empre-
gos e garantir uma base económica para as comunidades, serviços
sociais e escolas, os trabalhadores e os empregados afectos a essas
indústrias necessitarão de elevados níveis de destrezas administrativas,
financeiras e técnicas para refinanciarem, reabrirem e administrarem,
tles póprios, tais empresas. O seu processo educativo deveria começar
agora, antes que a crise se agudize ainda mais. Isto criará muitas opor-
tunidades para estas pessoas demonstrando que "existem" alternativas
iuncionais aos modos de controlo capitalista em curso no local de traba-
lho e ainda que há uma possibilidade de desenvolvimento de práticas
educativas alternativas entre os trabalhadores, que rompam com as prá-
ticas autoritárias agora dominantes.
No seio da própria escola - nos níveis iniciais de ensino - é preciso
experimentar novos modelos de administração democrática. Uma vez
que as técnicas de administração utilizadas pelo Estado provêm, cada
;ez mais, da indústria, surgirão conflitos semelhantes, por um lado,
tntre a produção e a eficiência e, por outro, entre a flexibilidade e a ini-
ciativa. Esta questão pode permitir que grupos de professores, de pais e
de estudantes comecem a estabelecer formas de gestão menos burocrá-
ticas e autoritárias nas escolas, práticas estas que prefigurem alternati-
i.as democráticas que paulatinamente vão crescendo em muitos locais
de trabalho e que serão menos românticas e mais politicamente cons-
cientes que as que foram ensaiadas no campo educativo, no final da
década de 60 e início da de 70.
Finalmente, o facto de o próprio Estado poder perder parte da sua
legitimidade permite uma abordagem mais honesta das instituições
inseridas no Estado, como é o caso da escola. Os educadores politica-
mente conscientes, ao trabalharem intimamente com os pais e grupos
de homens e mulheres trabalhadores, em vez de atribuírem a culpa aos
professores pelo "fracasso" da educação, podem começar a demonstrar
algumas das relações estruturais existentes entre as formas através das
quais as escolas eventualmente agora operam e a reprodução da desi-
gualdade, contribuindo para a formação de compromissos entre profes-
sores progressistas e tais grupos. A possibilidade e a importância de tais
compromissos é algo que retomarei mais adiante.
Há muitos Morris para quem a adivinha relacionada com aquilo que as
escolas fazem precisa de ser decodificada. Muito embora, contrariamente
a Boris, possamos não ter ainda desenvolvido completamente a nossa
abordagem sobre aquilo que realmente significa a adivinha, algo parece
estar claro. O significado da adivinha não será decifrado conveniente-
mente a não ser que recontextualizemos as características internas da
instituição e as relações que estabelece com as instituições "externas",
no âmbito de uma análise mais complexa da ordem social. Uma análise
deste género pode não ser fácil, sobretudo porque, pelo menos nos Esta-
dos Unidos, temos que reensinar-nos a nós próprios sobre as tradições na
esquerda que, até há pouco tempo, se têm tornado profundamente atro-
fiadas e que agudizam tanto as contradições e as possibilidades como a
reprodução. No entanto, os sofrimentos mais "intelectuais" devem sem-
pre ser comparados com sofrimentos de um outro tipo. Precisamos ape-
nas de recordar os versos de John Masefield":
''Fazer com que todo o mundo se levante da cama,
Se lave, se vista, e se aqueça e se alimente,
Para trabalhar e regressar novamente a cama,
Acredita-me, Saul, custa mundos de dor"

Com efeito, é necessário um compromisso colectivo que ajude a


eliminar este género de sofrimento.

" Citado por Lillian Rubin (1976). Words o f Pain. New York. Basic Books. p 9

118
--,

O outro lado do currículo oculto


A cultura como experiência vivida - I

Introdução
No capítulo anterior, ao tratar a cultura como parte de um processo
amplo de mercantilização e acumulação, examinei não só as formas
através das quais o sistema educativo produz determinados tipos de ,
conhecimento que são acumulados e utilizados na esfera económica,
como também o modo como a sua função política, por vezes, comple-
menta e contradiz esta questão. Por outro lado, alertei para o facto de
não podermos assumir que existe necessariamente uma correspondên- 1
cia bem sucedida entre o que são as necessidades das empresas, em ter- 3

mos de capital cultural ou de normas e disposições - a ideologia - dos 1


trabalhadores e o que acontece nas escolas. Uma vez que os estudantes 1
se encontram estratificados com base nas categorias de desajustamento
geradas em parte pela função produtiva do sistema educativo, tal não
significa que concordemos que as "camadas inferiores" desses estudan-
tes tenham necessariamente um currículo oculto que apenas os prepara
para ocupar e aceitar o seu lugar nos degraus mais baixos da "escala
económica".
Com efeito, devemos ser muito prudentes em relação a estas questões
e não assumir que as ideologias e os processos que acompanham o cres-
cimento do conhecimento técnico/administrativo são sempre coroados
de êxito. Porque a cultura é também vivida, tentarei demonstrar ao
longo deste capítulo e do próximo que, dada a intersecção das esferas
económicas e culturais, tais ideologias e processos podem não conduzir
de uma forma directa a uma imposição de controlo, quer no local do
trabalho, quer na escola. Tal como o papel da escola, enquanto aparelho
produtivo e reprodutivo, deve ser lido como sendo gerado a partir de
pressões contraditórias que incidem sobre si, devemos também com-
preender que a utilização efectiva e os efeitos últimos do conhecimento
técnico/administrativo, no próprio local de trabalho, são também o
resultado de semelhantes contradições. Assim, devemos marginalizar a
ideia de que ocorre um simples processo de reprodução.

Para além da simples reprodução


As leis da física determinam a forma que qualquer objecto adquire
num espelho normal. A imagem reflectida pode estar distorcida por
imperfeições do vidro, mas de uma maneira geral o que se vê corres-
ponde à imagem projectada. A composição interna do espelho reproduz
o objecto externo diante de si. Este conjunto de leis pode ser ideal para
abordarmos a óptica, no entanto, é questionável se é adequado para
reflectirmos sobre a escola. Contudo, nós, sobretudo muitos dos que
nos posicionamos à esquerda do espectro político, tendemos a actuar
como se isto fosse uma abordagem adequada. Interpretamos as escolas
como um espelho da sociedade, sobretudo o currículo oculto veiculado
nas escolas. A sociedade necessita de trabalhadores dóceis; as escolas,
através das relações sociais e do currículo oculto, garantem, de certo
modo, a produção dessa condição dócil. Os trabalhadores obedientes no
mercado de trabalho são espelhos no "mercado de ideias" na escola. Na
verdade, tal como tentarei demonstrar neste capítulo, tais analogias,
baseadas na imagem do espelho, são muito simplistas, quer no que res-
peita à escola, quer no que se relaciona com o objecto externo teorica-
mente reflectido, o local de trabalho.
Os pressupostos subjacentes a maioria das análises recentes sobre o
currículo oculto podem agrupar-se em torno de uma teoria da corres-
pondência. De uma maneira geral, as teorias de correspondência
sugerem a existência de determinadas características, particularidades
de comportamento, destrezas e predisposições que a economia exige
aos trabalhadores. Tais necessidades económicas são tão poderosas
que "determinam" o que acontece noutros sectores da sociedade,
O outro lado do currículo oculto i

particularmente na escola. Assim, se observarmos as instituições educa-


tivas, constatarmos que as questões tácitas ensinadas aos estudantes
reflectem aproximadamente as predisposições e particularidades de per-
sonalidade que os estudantes "irão necessitar", posteriormente, quando
ingressarem no mercado de trabalho.
Um dos exemplos mais recentes deste género de análise surge, clara-
mente, na obra Schooling in Capitulisf America, da autoria de Bowles e
Gintis. Nesta obra, o currículo oculto é diferenciado pela classe econó-
mica e pela trajectória económica prevista. Os argumentos apresentados
por Bowles e Gintis levaram uma série de investigadores a arguir que tal
currículo oculto diferenciado pode ser constatado através do que se
ensina aos estudantes da classe trabalhadora, nomeadamente, pontuali-
dade, asseio, respeito pela autoridade e outros elementos relacionados
com a formação de hábitos. Aos alunos das classes mais altas ensina-se
uma mentalidade aberta, capacidade de resolução de problemas, flexibi-
lidade, etc., destrezas e predisposições que lhes permitirão funcionar
como gerentes e profissionais e não como trabalhadores não-qualifica-
dos ou semiqualificados. Apesar das causas socioeconómicas do currí-
culo oculto diferenciado serem vistas como sendo profundamente com-
plexas, o facto é que o papel fundamental da escola é visto como sendo o
da reprodução, de algum modo fiel, da divisão do trabalho. A escola é
uma instituição determinada.
Presentemente, fenomenólogos, filósofos da ciência, teóricos sociais
críticos e outros têm sustentado que a forma como actuamos no
mundo, seja ele educativo, político ou económico, é em parte determi-
nada pela forma como o apreendemos. Muito embora esta questão possa
ser tão abrangente quanto inconsequente, é importante que as relações
entre a apreensão e a acção não sejam ignoradas. Isto é extremamente
importante em qualquer análise séria sobre a escolarização, que pre-
tenda ir mais além das teorias de correspondência. Estas tendem a "con-
duzir-nos" a uma interpretação da escola, apenas, em termos reproduti-
vos. A lógica que lhe é subjacente observa a instituição como agindo,
somente, para reproduzir a ordem social. Quer a forma quer o conteúdo
do corpo formal de conhecimento escolar e ainda o currículo oculto
ajudam a criar as condições para a reprodução cultural e económica das
1 relações de classe na sociedade.
I
Existem com certeza evidências que fundamentam tal reivindicação;
algumas delas, inclusive, já tiveram o meu contributol. Todavia, ao enca-
rarmos a escola apenas numa perspectiva reprodutiva, no fundo, como
uma função passiva de uma ordem social externa desigual, torna-se difí-
cil provocar qualquer tipo de acção educativa. Com efeito, se as escolas
se encontram completamente determinadas e não podem fazer mais do
que espelhar meramente as relações económicas situadas em seu redor,
então não há nada a fazer no campo educativo. Claramente, esta perspec-
tiva é pessimista, um argumento que retomarei mais adiante. Ainda
assim, existe realmente algo de mais substancial para além desta pers-
pectiva pessimista e que deve ser evidenciado. Em determinados aspectos
importantes, esta perspectiva é também inadequada como teoria da rela-
ção existente, quer entre todas as instituições sociais, quer entre a escola
e as outras poderosas forças socioeconómicas. Na verdade, o conceito de
reprodução não esgota a rede de relações que associam instituições e
pessoas entre si. Pode ser um elemento importante; todavia, haverá
aspectos estruturantes do dia-a-dia que podem ser melhor descritos, não
propriamente como espelho fiel das exigências das forças económicas e
sociais mais amplas, mas como genuinamente contraditórias. Desta
forma, ao analisarmos as escolas, apenas, como instituições reprodutivas,
podemos não conseguir compreender a interacção das dinâmicas que se
estabelecem entre a educação e a economia, correndo ainda o risco de
reduzir a complexidade de tal relação a uma simples imitação burlesca
daquilo que efectivamente se passa na prática.
Para irmos mais além deste reducionismo, importa reflectir com
maior seriedade sobre as várias formas através das quais as instituições
e as pessoas podem ser "determinadas". Na realidade, que "modos de
determinação" vão além da "simples" reprodução? Embora possam ser,
de facto, dispositivos heurísticos que permitem observar o modo como
as instituições sociais se encontram dialecticamente inter-relacionadas,
podemos distinguir, pelo menos, seis modos de determinação que repre-
sentam as limitações e as contradições estruturais presentes numa
determinada sociedade:

' Vide Bernstein. Basil (1979). Class,


Codes and Control, volume 3, London: Routledge & Kegan Paul. Karabel. lerorne;
Halsey. A. H. (1977) (eds.). Power and Ideology. New York: Oxford University Press. Bourdieu, Pierre. Passeron.
Jean-Claude (1977). Reproduction in Education, Society and Culture. Beverly Hills, California: Sage. Tappere. Ted;
Salter. Brian (19781 Education and the Polrtical Order. New York: MacMillan; e Apple. Michael W. (1979). Ideology and
Curiculum. London- Routledge & Kegan Paul.
O outro lado do curriculo oculto

1. limitações estruturais;
2. selecção;
3. reprodução/não-reprodução;
4. limites de compatibilidade funcional;
5. transformação;
6. mediação.

Esta questão pode ser ainda mais detalhada: até que ponto qualquer
estrutura institucional como a escola ou o local de trabalho pode variar
(um exemplo de limitação estrutural); mecanismos como padrões de
financiamento, apoio económico e político, e intervenções estatais
excluem determinadas decisões possíveis (um exemplo de selecção);
quais são os aspectos funcionais de um conjunto de instituições ou rela-
ções para a recriação básica de, por exemplo, um modo de produção ou
de uma prática ideológica (um exemplo de reprodução/não-reprodução);
quais os aspectos das estruturas institucionais e das práticas culturais
que não são meramente reprodutivos mas genuinamente contraditórios
(um exemplo dos limites de compatibilidade funcional); quais são os
processos que se inserem e contribuem para a interacção e modelação
destes elementos, tais como a luta de classes (um exemplo de media-
ção); e, finalmente, que acções e lutas concretas têm vindo a alterar, em
aspectos muito importantes, tais instituições e processos (um exemplo
de transformação)? Neste capítulo, e perante este conjunto de relações
que nos permitem ir muito mais além das analogias permitidas pelos
espelhos anteriormente referidos, abordarei duas delas - mediação e
transformação - utilizando-as para começar por compreender algumas
das possíveis complexidades associadas com o currículo oculto e com a
cultura, enquanto experiência vivida, não mercantilizada.
Salientei, no primeiro capítulo, que a literatura tradicional relacio-
nada com o currículo oculto se tem orientado por uma visão claramente
redutora da socialização. As debilidades conceptuais da referida aborda-
gem (será que uma perspectiva unidireccional em torno da socialização
é uma metáfora adequada para esclarecer o que efectivamente sucede
nas escolas?) levam ao questionamento do seu predomínio. Ainda assim,
---
'Registo aqui o meu agradecimednto a Erik Olin Wright pelo debate das seis formas de determinaçáo que se encontram
no seu livro Ciass, Crisi5 a n d the State, London New Left Books (19781, pp 15-29 A analise efectuada por Wright e
mais complexa teoricamente, do que a aqui efectuo, sobretudo no que respeita ao tratamento dos paoeis que o Estado
e as crises ideologicas e econ6micas desempenham nos referidos processos de determinaçáo
tal como teremos oportunidade de verificar com maior detalhe no pró-
ximo capítulo, é igualmente importante a questão empírica. Será uma
descrição fiel da realidade? Será que os alunos interiorizam sempre,
inquestionavelmente, estas normas e princípios? Uma das formas de se
esclarecer esta problemática é realizar uma abordagem de trás para a
frente, começando pelos locais onde as pessoas trabalham.

O currículo oculto e as normas do local de trabalho


O estatuto das teorias do currículo oculto não depende apenas da pre-
cisão da sua descrição sobre o que, na realidade, ocorre nas salas de
aula. Há uma outra ligação que vincula as escolas às instituições exter-
nas. Neste caso, refiro-me ao próprio local de trabalho. Com efeito,
poder-se-ia descrever a realidade do que é ensinado aos estudantes com
uma clareza excepcional e mesmo assim estarmos errados no que diz
respeito aos verdadeiros efeitos do referido ensino, caso as normas e os
valores que organizam e orientam o dia-a-dia das vidas subjectivas dos
trabalhadores não fossem os mesmos em vigor nas escolas.
Por este motivo, pretendo, no que falta para terminar este capítulo, dar
atenção a uma parte do outro lado deste quadro. Pretendo sublinhar que
a literatura relacionada com o currículo oculto, devido ao seu modelo
explicitamente determinista de socialização e, ainda, ao facto de se cen-
trar de uma forma exclusiva na reprodução, excluindo outros aspectos
que podem eventualmente estar a ocorrer, tem tendência para retratar os
trabalhadores como se fossem seres autómatos completamente controla-
dos pelos modos de produção, procedimentos técnicos e administrativos e
formas ideológicas da sociedade. De uma forma mais teórica, os agentes
existem (como papéis sociais abstractos), mas não têm qualquer institui-
ção. Desta forma, de facto, existem estruturas mas não existem actores".
Quero também sublinhar outro aspecto. Pretendo defender que as
análises deterministas e economicistas em torno do currículo oculto
são, em si, elementos de uma reprodução arguta, ao nível ideológico,
das perspectivas exigidas para a legitimação da desigualdade. O que pre-
tendo dizer é simplesmente isto. As análises produzidas ultimamente,
por uma série de eruditos e educadores de esquerda, são elas próprias
reproduções da visão ideológica de dominação capitalista. Ao entender

Mde Poulantzas, Nicos (1975). Classes in Conternporary Capitabsm, London New Lefi Books, e Bridges. Arny B (1974).
"Nicos Poulantzas and the Marxist Theory of the State", Politio and Society IV. pp 161-190
O o u t r o l a d o d o currículo oculto -

as escolas como reflexos totais de um "mercado de trabalho" desigual,


em que os trabalhadores simplesmente fazem o que Ihes é dito para
fazer e aceitam passivamente as normas e as relações de autoridade no
local de trabalho, tais análises admitem a ideologia que fundamenta a
gestão como algo empiricamente fiel.
A fim de esclarecer tais questões, teremos que analisar o próprio pro-
cesso de trabalho. Uma boa percentagem dos escritos recentes sobre a
relação entre o currículo oculto e o processo de trabalho tem sido forte-
mente influenciada por trabalhos como o de Harry Braverman, uma
investigação histórica excepcionalmente importante em torno do cresci-
mento dos procedimentos capitalistas para assegurar o controlo do pro-
cesso de produção4.
Braverman justifica, de uma forma convincente, a inexorável penetra-
ção da lógica capitalista na organização e controlo do dia-a-dia no local
de trabalho. Nesta descrição, os trabalhadores são sistematicamente
desqualificados (e, evidentemente, alguns são "requalificados"). As des-
trezas que tinham - de planificação, de compreensão e actuação em
toda a fase da produção - são-lhes, em última análise, confiscadas pela
administração e deslocadas para outro espaço num departamento de
planificação controlado pelo capital" Para que a acumulação capitalista
prossiga, a planificação deve ser separada da execução, o trabalho men-
tal separado do trabalho manual, separação esta que precisa de ser insti-
tucionalizada de uma forma sistemática e formal. O arquétipo desta
questão é evidentemente o do taylorismo e as suas muitas variantes.
Dito de outro modo, a administração planifica e os trabalhadores sim-
plesmente executam. Desta forma, um dos grandes princípios organiza-
dores no local de trabalho é o de "retirar o cérebro da administração que
se encontra debaixo do boné do trabalhadorn6.

Braverman, Harry (1974). Labor a n d Monopoly Capital New York: Monthly Review Press.
Montgomery, David (1976) "Workers control of machine production in the nineteenth century" Labor History XVII,
pp. 485-509
' Burawoy, Michael (1979). "Toward a Marxist Theory of the Labor Process. Braverman and Beyond", Politics andSoc~etyVIII
(3.4). p 5, cópia policopiada. Os elementos básicos da administração científica eram realmente muito simples, podendo ser
tratados de acordo com quatro principias básicos (1) Deveria existir uma planificação e um mapa centralizados correspon-
dentes a cada uma das sucessivas fases de produção (2) Cada operação distinta deveria ser sistematicamente analisada e
decomposta em elementos ou tarefas mais simples. (3) No desempenho das suas tarefas. cada trabalhador(a) deveria ser
submetido(a) a uma instrução e supervisão detalhada. (4) Os pagamentos de salários deveriam ser planificados prudente-
mente, de forma a influenciar os trabalhadores a fazerem aquilo que a planificação e supervisão centralizadas Ihes ensina a
fazer Vide Montgomery. David (1979). Worken Contml in Arner~ca,New York, Cambridge University Press, p 114 Para
uma abordagem mais detalhada sobre a relação pessoal de Taylor com a administração científica. wde Nelson. Daniel
(1980). Freaerick W TaylorandSc~entificManagement, Madison University of Wisconsin Press
Este tipo de análise é u m importante contributo essencialmente
devido a "desmistificação" realizada por uma série de pressupostos
defendidos por muitos educadores, analistas políticos, etc. Particular-
mente, serve para levantar importantes questões relacionadas com a
assunção de que existe uma ampla tendência histórica em ordem a ele-
vação do nível de destrezas nas ocupações industriais da economia.
Defende Braverman que é igualmente correcto verificar o oposto desta
questão. Podemos observar a expropriação capitalista da destreza e do
conhecimento, a racionalização do local de trabalho e a centralização
crescente do controlo do trabalho, de forma que todas as decisões
importantes sejam tomadas longe do local de produçãoi.
No entanto, Braverman vê também algo mais, que ajuda a completar a
história. A medida que o processo de desqualificação - ou o que pode ser
denominado por degradação do trabalho - prossegue, os trabalhadores
vão perdendo continuamente poder. Muito embora este aspecto nem
sempre seja coroado de êxito, a medida que a lógica e o poder capitalis-
tas penetram, cada vez mais, em determinados aspectos das suas vidas e
instituições, os trabalhadores tornam-se meros apêndices do processo
de produção. Em última análise, confrontam os frutos do conhecimento
originalmente gerado em parte pelo aparelho educativo e pelo uso do
taylorismo e da gestão científica, pelas técnicas de relações humanas ou,
finalmente, pela ameaça da autoridade. Perante tudo isto, pouco podem
fazer os trabalhadores. Os trabalhadores, surpreendidos pelas teias do
capital, são relativamente passivos, obedientes e trabalham duramente.
A lógica salarial substitui a capacidade e o controlo até então exercidos
pelo trabalhador.
Muito embora Braverman não se refira explicitamente a isto, o currí-
culo oculto diferenciado da escola tem servido para preparar convenien-
temente os trabalhadores, dado ser essa a lógica incontornável do con-
trolo capitalista, devemos contar com o facto de os trabalhadores
necessitarem de normas e princípios específicos para operarem adequa-
damente na hierarquia do mercado de trabalho. Necessitarão de hábitos
que contribuam para o fluxo sereno e racional da produção. Terão de
obedecer a autoridade do "perito". Não necessitarão de ter qualquer tipo
de compromisso colectivo, nem a menor espécie de concepção sobre
determinada profissão, criatividade ou controlo.

' Burawoy, "Toward a Marxist Theory of the Labor Process", p. 89.


O outro lado do cunicub ocuko r

Todavia, tal como detectamos importantes fragilidades na análise das


escolas, numa perspectiva meramente reprodutiva (e correndo assim o
risco de deixar escapar algo que tentarei descrever no próximo capítulo
- as possíveis formas, através das quais o dia-a-dia e a história interna
das escolas medeiam e frequentemente providenciam a possibilidade de
alguns alunos reagirem contra as mensagens sociais poderosas), assim
também tal perspectiva, descrita por Braverman de uma forma tão con-
vincente, pode-nos levar a negligenciar aspectos semelhantes que
podem acontecer no local de trabalho. Debrucemo-nos com mais por-
menor sobre esta questão.
O que é que encontramos ao nível da execução, ou seja, na própria
linha de produção? Será que a lógica inexorável e as técnicas do capital
evidenciam as lições aprendidas (ou pelo menos ensinadas) através do
currículo oculto da escola? Neste caso, pode ser preponderante um
exame sobre a separação entre concepção ou planificação e a execução.
.4 investigação recente relacionada com a história das relações entre o
capital e o trabalho, sobretudo do taylorismo, retrata um quadro de
certo modo distinto daquele que nos foi proposto por Braverman.
Torna-se cada vez mais claro que falta no referido esboço uma menção
sobre a reacção efectiva por parte dos trabalhadores às normas e estraté-
gias organizacionais e ainda sobre a sua capacidade de se oporem a essas
mesmas normas e estratégias. Este aspecto geral é muito bem funda-
mentado por Burawoy:
"Uma coisa é o capital apropriar-se do conhecimento, outra é mono-
polizá-lo. O próprio Braverman refere que: 'Uma vez que os trabalha-
dores não são destruídos como seres humanos, mas são simplesmente
usados de formas desumanas, as suas faculdades preponderantes e
capacidades conceptuais e intelectuais, independentemente do grau de
fragilização ou minimalização, permanecem sempre como uma
ameaça ao capital: Em vez de uma separação entre concepção e exe-
cução, verificamos uma separação entre a concepção do capital e a
dos trabalhadores, entre o conhecimento dos trabalhadores e o do
capital. A tentativa de aplicar o taylorismo leva os trabalhadores a
recriarem uma determinada unidade entre a concepção e a execução,
contudo, por oposição as regras do capital. Tanto antes como durante
e depois da 'apropriação do conhecimento: os trabalhadores revelam
uma enorme originalidade ao vencerem e ludibriarem os agentes da
administração científica. Em qualquer unidade fabril, por um lado,
existem formas 'oficiais' ou 'aprovadas pela gestão' de se executarem
. as tarefas e, por outro, existe o saber acumulado dos trabalhadores,
construído e revisto como resposta a qualquer ofensiva por parte da
administração. "'

Em essência, estudo após estudo têm confirmado que grande parte


dos trabalhadores adultos têm conseguido continuar o seu próprio
desenvolvimento colectivo de normas informais de produção e ainda a
capacidade para "desafiar" o supervisor e o "perito"! Na verdade, um
dos principais resultados das tentativas levadas a acabo para separar,
totalmente, a concepção da execução e ainda para realçar a submissão e
a obediência do trabalhador aos órgãos de gestão, na busca dos objecti-
vos ampliados de produção estipulados pela gestão, é precisamente o
oposto do pretendido pelos empresários. Em vez de criar sempre uma
"força de trabalho obediente", frequentemente "fomenta" a resistência,
o conflito e a luta. Contribuem para o fortalecimento da acção colectiva
dos trabalhadores na linha de produção e, desta forma, enfraquecem,
frequentemente, quer o controlo da gestão, quer as normas que eram
"requeridas" no local de trabalho1'.
Tal como é do nosso conhecimento, estas formas de resistência têm
uma história excepcionalmente longa. A evidência de que houve uma
luta dura e constante, na qual os trabalhadores se revelaram profunda-
mente preocupados com as "prerrogativas da administração", é docu-
) ir
i

mentada através das primeiras greves industriais frequentemente trava-


das em torno das regras e do reconhecimento dos sindicatos e em torno
de greves de solidariedade com outros trabalhadores com idênticas rei- 1 .:,
vindicações. Tais greves eram as derrotas mais amargas. As greves rela- c

cionadas com as questões salariais foram, regra geral, coroadas de ,,


êxito", o que nos permite perceber por que razão os sindicatos se torna-
ram, de alguma forma, um pouco mais economicistas. I
I e,

Ainda assim, as próprias exigências salariais, muitas vezes, encobriam


(e ainda encobrem) uma revolta latente relativamente aos métodos
levados a cabo pela gestão. A título de exemplo, nas célebres greves dos

.
Ibid pp 33-34
'Ibid p 34 -
'OIbid, p 40 Vide tarnbbm a analise sobre o "fracasso" do taylorismo em Noble. David (1977). America by Desiqn, New i1
York Alfred A Knopf i1
" Montgomery, David (1979) Workers' Control in America p 24 ' 11

128 cc

1
O outro lado do curriculo oculto

trabalhadores das fábricas de equipamento militar, na época em que o


taylorismo dava os seus primeiros passos, a questão parecia girar em
torno das taxas de pagamento dos que produziam ferramentas, que
variavam entre 38 e 90 centavos por hora, dependendo da tarefa de cada
um. Todavia, os operários das máquinas reivindicavam a institucionali-
zação de uma taxa-padrão extensiva a todos. Realmente, esta reivindica-
i;ão revelava uma contestação indirecta a todo um estenda1 relativo às
práticas levadas a cabo pelos órgãos de gestão, incluindo o "direito que a
gestão tinha para dividir o trabalho e estabelecer novas classificações,
nuitas vezes arbitrárias, relacionadas com as tarefas que iam ser retira-
das das mãos dos traba1hadores"l2.
Mesmo os trabalhadores com uma desqualificação muito relativa
I
lutavam pelos salários e pelo controlo. Mais uma vez torna-se difícil
separar os dois campos, mesmo no plano analítico. Quando a adminis-
, tração optava por estratégias que visavam um "acelerar" dos ritmos de
produção ou se socorria daquilo que mais parecia ser uma autoridade
,
, arbitrária com o intuito de aumentar o ritmo do trabalho - conse-
guindo, desta forma, melhores resultados no mesmo período de traba-
1 lho - as resistências dos trabalhadores pressupunham, habitualmente, a
i iorma de "auto-organização contínua encoberta de pequenos grupos
informais, no local de trabalho"13. Fortaleciam-se assim os próprios sis-
temas informais de controlo, evitando-se ainda o aumento da explora-
$0 económica.
3 Sucediam-se casos semelhantes durante as crises económicas. Em
- ipocas de dificuldade económica, quando tudo indicava que iriam ocor-
- rer despedimentos, muitos trabalhadores diminuíam o seu ritmo de tra-
e balho. Quer os trabalhadores sindicalizados como os não sindicalizados
t encontravam formas de proteger trabalhadores mais antigos que
oodiam não aguentar o ritmo acelerado de trabalho, envolvendo-se nou-
:ras acções com o objectivo de manter os postos de trabalho e o respec-
tivo contro10.'~Estes exemplos são históricos; ainda assim seria precipi-
tado partir do princípio que apenas possuem interesse histórico. Sem
dúvida, o controlo da produção por parte dos trabalhadores não é algo

w ' Ibid , p 103 Vide tarnbern Noble, Arnenca by Design


M . p 104
'Ibid,pp 143-151

CCPP-EP-09

-
estático que existiu e que, posteriormente, numa determinada fase, dei-
xou de existir. Pelo contrário, foi e é uma luta contínua, a qual tem
assumido uma "multiplicidade de formas"15.
Uma comprovação parcial das questões que aqui levanto - de que os
trabalhadores, aos mais variados níveis, resistiram e têm, frequente-
mente, resistido, de uma forma subassumida, que não são inteira e ver-
dadeiramente socializados para serem operacionais obedientes, tal
como pretendem deixar transparecer as teorias de correspondência -
pode ser encontrada na literatura sobre controlo burocrático. Esta
questão surge resumida num trabalho recente de investigação, condu-
zido por Daniel Clawson, sobre o aumento dos mecanismos burocráti-
cos no local de trabalho. Após uma extensiva revisão em torno das
investigações relacionadas com o tema em questão, Clawson destaca
que o rápido crescimento dos controlos burocráticos comprova a luta
levada a cabo pelos trabalhadores das fábricas e escritórios. Com efeito,
se todos os trabalhadores fossem obedientes, respeitassem a autoridade,
se trabalhassem tão arduamente quanto pudessem, se não "levassem
consigo materiais que não Ihes pertencem" e se fizessem sempre tudo o
que a administração pretende que façam, não seria necessário pagar os
enormes custos que advêm de uma supervisão e controlo burocráticos e
hierarquizados16.
Tal perspectiva é largamente reiterada por outros investigadores,
muito embora se corra o risco de uma sobrevalorização. Por exemplo,
um determinado número de autores têm defendido que a burocratiza-
ção crescente do local de trabalho não só deve ser vista como uma res-
posta aos esforços dos trabalhadores em manter um determinado con-
trolo, como também o próprio controlo burocrático, frequentemente,
tem gerado ainda mais conflito.
Richard Edwards retrata esta questão muito bem:
"hsim, o controlo burocrático tem criado, entre os trabalhadores
americanos, i m m o descontentamento, insatisfação,indignação, frus-
tração e aborrecimento com o trabalho. Não precisamos de inumerar
aqui os muitos estudos que medem a alienação: o célebre relatório

' 5 1 b ~ dp.. 10
l6 Clawson. Daniel (1978) "Class Struggle and the Rise of Bureaucracy" Tese de doutoramento (policopiada) State Un.-
versity of New York at Stony Brook A relaçáo estabelecida entre o crescimento da administração burocrática e o cor
trolo do trabalho surge também bem documentada no trabalho de Clawson A este propósito vide, também. Edwara
Richard (1979). Contested Terra~n,New York Basic Books
O outro lado do curriculo oculto

HEW Work in America, entre outras súmulas, já se encarregou dessa


tarefa. Retratou, por exemplo, que o melhor indicador da satisfação
ou insatisfação no trabalho é encontrado na resposta que o trabalha-
dor dá a seguinte pergunta: 'Que tipo de emprego tentaria arranjar se
pudesse começar tudo de novo?' A grande maioria dos trabalhadores
fabris e de escritório - e uma percentagem crescente deles ao longo do
tempo - aflt-maram que escolheriam um tipo de trabalho distinto.
Esta constatação encontra-se em consonância com uma vastíssima
literatura sobre o tema. A insatisfaçãoe a alienação crescentes no seio
dos trabalhadores, tomadas urgentes devido a procura de uma maior
segurança no emprego e pelas expectativas de postos de trabalho de
longa duração na mesma empresa, criam directamente problemas
para os empregadores (principalmente o da redução da produti-
vidade)."I7

Este conflito tem obrigado as entidades patronais a introduzirem


planos de enriquecimento e ampliação de tarefas, de autogestão dos
trabalhadores, de co-gestão trabalhador-entidade patronal, etc. No
entanto, não devemos ignorar que tais planos podem, em última aná-
lise, colocar em perigo o controlo da entidade patronal sobre o local
de trabalho. Deste modo, e tal como defende Edwards, "o problema é
que um pouco nunca é o suficiente. Tal como uma determinada segu-
rança no emprego conduz à exigência da garantia eterna dos salários,
assim também um determinado controlo sobre as decisões a respeito
do processo de trabalho fortalece a exigência para uma democracia
industrial"ls.
A história do crescimento do controlo capitalista no local de trabalho,
tal como nos recorda David Montgomery, não é uma história de simples
imposição. Uma descrição completa deve realçar sempre "as iniciativas
dos próprios trabalhadores, em vez das formas através das quais foram
manipuladas por aqueles com autoridade sobre si"'" Tal como salienta
'Iontgomery, a resistência dos trabalhadores e os seus próprios pro-
gramas para a conquista do controlo têm sido, frequentemente,
as "causas1', e não apenas os efeitos, da rápida evolução e difusão das

' Edwards, Contested Terrain, p. 123.


' Ibid, p. 124. Edwards distingue três tipos de controlo: simples. técnico e burocrático. Cada um deles conduz - e é em
oarte o r e s u l t a d o a tipos específicos de resistência. A análise que efectua a estes vários tipos de controlo vai seivir de
fundamento para uma parte significativa da investigacão que efectuarei no capitulo 5
Montgomefy, Workers, Control in America.
práticas de gestão. Inclusive práticas como a gestão "moderna" de pes-
soal foram desenvolvidas como "respostas de repressão e de cooptação"
às iniciativas levadas a cabo pelos trabalhadoresz0.
Como é que podemos compreender tudo isto? As teorias da correspon-
dência defendem que as escolas são excepcionalmente bem sucedidas ao
ensinar normas concretas vividas no local de trabalho. Contudo, na
melhor das hipóteses, se estas recentes investigações relativas ao fun-
cionamento efectivo do processo de trabalho se encontram correctas, a
hipotética correspondência descreve apenas de forma parcial aquilo que
"é" vivido no local de trabalho. Há que analisar portanto esta questão
mais detalhadamente.
Caso pretendamos compreender as verdadeiras vidas dos trabalhado-
res nos vários níveis da "escala ocupacional", um factor preponderante
é o que tem sido denominado por "cultura do trabalho". A cultura do
trabalho não é facilmente visível a um observador externo e, tal como
nos estudos relacionados com o currículo oculto, implica viver no seu
seio para se poder conseguir captar determinadas subtilezas e com-
preender a sua organização. Todavia, mesmo com o seu carácter subtil,
práticas informais e variações claras, pode ser geralmente definida
como sendo "uma esfera relativamente autónoma de acção no traba-
lho, um domínio de valores e regras informais e de costumes que
'medeiam a' estrutura de autoridade formal do local de trabalho, prote-
gendo os trabalhadores dos impactos provocados"". Em síntese, a cul-
tura do trabalho como uma "esfera relativamente autónoma" não é
necessariamente uma forma reprodutora. Constitui uma esfera de
acção que, em parte, permite o vigor e a possibilidade de uma activi-
dade transformadora.
A cultura do trabalho estimula uma base para o desenvolvimento de
normas alternativas, muito mais ricas que as descritas pelas teorias da
correspondência. Tais normas fornecem um espaço para a resistência
do trabalhador, pelo menos, um controlo parcial das suas destrezas,
cadência, conhecimento e ainda colectividade, ao invés de uma com-
pleta fragmentação das tarefas e de algum grau de autonomia em rela-
ção a gestão.

'O Ibid
" Benson. Susan Porter (1978) "The Clerking Sisterhmd Rationalization and the Work Culture of Saleswornen in Arnerican
Department Stores . RadcalAmerica XII. 41 A ênfase 6 da minha responsabilidade
O outro lado do curriculo oculto

Numa observação mais próxima, verifica-se uma série de normas que


perpassam o local de trabalho em muitas indústrias, que estimulam algo
mais que a simples aparência de autonomia e que "se manifestam, diaria-
mente, na forma de interacções que reproduzem a cultura do trabalho".
Entre a mais poderosa encontra-se a cooperação no trabalho. Um exemplo
é a prática comum entre trabalhadores nas indústrias em guardarem
peças acabadas de metal e de madeira. Estas peças são depois "empresta-
das" a outros trabalhadores "que tiveram um dia difícil (devido a uma ava-
ria das máquinas ou pelo facto de se terem sentido indispostos, etc.)"''.
Encontramos também em outros lugares contra-exemplos significati-
vos de aquiescência passiva, desqualificação e perda de controlo. Por
exemplo, os trabalhadores industriais, sobretudo da indústria do aço,
mantêm um grau significativo de autonomia, elaborando e reelabo-
rando uma cultura de trabalho que Ihes permite, desta forma, terem um
papel preponderante na produção. Mesmo nas indústrias altamente
mecanizadas, é evidente a "militância" dos trabalhadores em proteger o
que é adequadamente rotulado como "solidariedade". Na descrição que
Steve Packard faz do dia-a-dia nas fábricas de aço, esta questão é muito
bem demonstrada. Eis um exemplo:
"Certodia, um maquinista de guindastes branco foi escalonado para tra-
i
balhar com um outro guindaste que se encontrava em bom estado mas
que estava destinado a um maquinista negro. Os maquinistas negros das
gruas decidiram sabotar a produção até que a contenda fosse solucio-
nada. Contavam com algum apoio da maioria dos maquinistas brancos,
que eram também da opinião que o encarregado estava errado.
Nada pode funcionar sem que os guindastes transportem de um lado
para o outro o aço; assim, os negros, silenciosamente, paralisaram por
completo a fábrica. Colocaram os guindastes a uma velocidade mais
reduzida, trabalhando a um ritmo bastante mais lento. De imediato os
encarregados começaram a sair dos seus escritórios, olhando a sua -

volta, esfregando os olhos como se Ihes custasse acreditar no que se


estava a passar. Era como se o edifício inteiro se encontrasse sob o
efeito de narcóticos, ou como se o ar se tivesse transformado numa
espécie de gelatina espessa - a excepção dos encarregados, tudo se
movia a um décimo da velocidade normal.""

Aronowitz, Stanley (1978) "Marx. Braverman and the Logic of Capital'; Jhe Insurgent Sociologat VIII. p 142
Citado por Aronowitz "Marx. Braverman and the Logic of Capital'. p 142 Vide tambem Packard. Steve (1978).
SIeelmill Blues, San Pedro. California Singlejack Books. e Theriault. Reg (1978). Longshoring on the San Francisco
Waterfront, San Pedro, California Singlejack Books
Para dizer o bastante, aqui está um exemplo fantástico de que o capi-
tal não controla completamente os trabalhadores. A vida cultural não
retratada no seio da fábrica e o poder de cooperação dos trabalhadores
permitem um controlo significativo da parte dos trabalhadores sobre as
normas relativas ao lucro, a autoridade e a produtividade desejadas pela
entidade patronalz4.
Frequentemente, e tal como pudemos verificar, a resistência anterior-
mente referida tem optado por perspectivas claramente economicistas.
As greves surgem reivindicando questões relativas aos salários e benefí-
cios sociais e não propriamente como mecanismo para ganhar mais
controlo e poderz5. Obviamente que em determinadas indústrias - como
por exemplo nas minas de carvão - a prática de manifestas formas de
resistência é ainda mais explícita. Além disso, manifestações explícitas
ou formalmente organizadas de resistência (ou mesmo, por vezes, uma
ausência relativa de tais manifestações) não são tão significativas para a
análise que realizo como as manifestações de resistência informal ao
controlo, no local da produçãoz6.
De facto, e tal como destaca Nobel, ao invés de nos encontrarmos
sujeitos à força motriz imposta pelo capital, por um lado, e à impotên-
cia e desespero total, por outro, deparamo-nos, novamente, com exem-
plos opostos, ocorridos ao nível das práticas informais. Assim, por
exemplo, ao longo dos anos foram-se desenvolvendo novas tecnologias
na indústria metalúrgica com o propósito claro de aumentar a produ-
ção e desqualificar ocupações. Desta forma, a taxa de acumulação do
capital aumentaria de duas formas - mais mercadoria vendida e menos
salários a pagar aos trabalhadores, que agora apenas se limitam a "car-
regar em determinados botões". Nas últimas décadas, uma das tecnolo-
gias mais significativas relaciona-se com o desenvolvimento do con-
trolo numérico. Muito resumidamente, o controlo numérico garante
que as especificações de uma determinada peça que está prestes a ser
produzida na máquina reduzem-se a uma representação matemática
dessa mesma peça. Desta forma, tais representações são elas próprias

l4 Aronowitz, Marx, Braverman and the Logic of Cap~ral,p 143.


l5 Vide, Aronowitz, Stanley (1973). False Promises. New York McGraw-Hill.
z6Todavia. nao podemos ignorar que tais manifestaçóes de resist@nciapodem ser incorporadas pela administração
(e pelos sindicatos de cariz mais conservador) de forma que se situem numa dinâmica que não ameace a produçao
Vide. por exemplo, Burawoy, Michael, " l h e Politics of Production and Production of Politics A Comparative Analysis of
Piecework Machine Shops in the United States and Hungary". Political Powerand Sooal Thwry (no prelo).
O outro lado do curriculo oculto ;

convertidas numa descrição matemática da trajectória desejada da


máquina de corte que produzirá a peça. Finalmente, esta dinâmica con-
duz-nos a um sistema de controlo em que centenas de milhar de instru-
ções separadas se convertem num determinado código numérico, que é
automaticamente lido pela maquinaria. Desta forma, o controlo numé-
rico surge como um meio de separar, por completo, a concepção da exe-
cução, de "manietar o papel [do trabalhador] como uma fonte de inteli-
gência na produção (teoricamente)", conseguindo assim a entidade
patronal obter não só um maior controlo sobre os seus empregados
como uma maior obediência2'.
A ênfase colocada no vocábulo "teoricamente" é importante. A intro-
dução do controlo numérico não tem sido um processo pacífico. A este
respeito, deixem-me ser mais específico. Tanto a resistência explícita
como a oculta foram e são práticas muito comuns. Greves e paralisações
na produção têm sido frequentes. Na fábrica da General Electric em
Lynn, Massachusetts, a introdução do controlo numérico provocou uma
greve que manteve a fábrica encerrada durante um mês. Os trabalhado-
res aperceberam-se muito claramente do que estava em causa. Eis a opi-
nião de um determinado operador de uma máquina:
"A introdução da automatização implica uma degradação das destre-
zas que possuímos e, em vez de termos a possibilidade de poder pro-
gredir na hierarquia obtendo uma posição mais interessante, depa-
ramo-nos, agora. com hipóteses quer de desemprego quer de um
emprego sem qualquer perspectiva. Contudo existem determinadas
alternativas que os sindicatos podem explorar. Temos que manter a
posição firme de que os lucros que advirão desta transformação téc-
nica podem ser repartidos - ou seja, uma determinada percentagem
de tais lucros deve ser destinada aos trabalhadores, não devendo, por-
tanto, os lucros ser encaminhados na íntegra para a administração,
como acontece actualmente. Devemos exigir um progresso paralelo
entre o operador e a complexidade da máquina. Desta forma, em vez
de se verificar uma fragmentção no trabalho, o operador de máquinas
deveria ter uma formação que lhe permitisse programar e reparar o
equipamento de trabalho - uma tarefa perfeitamente ao alcance da
maioria das pessoas no mundo da indústria.
Reivindicações deste género afectam o hlcro das cláusulas prerrogati-
vas delineadas pela administração e que se encontram vigentes em

- - Noble. David (1979). "Social Choice in Machine Design" (artigo não publicado). p. 1 1
muitos contratos colectivos de trabalho. Deste modo, para lidar de
forma eficaz com as dinâmicas inerentes a automatização, devemos
atacar outro dos ingredientes essenciais do sindicalismo empresarial:
a ideia implícita na expressão 'deixem os gestores administrar a
empresa: A introdução deste equipamento [de controlo numérico]
obriga a um combate de tais ideia^.'''^

Este é um exemplo claro de resistência e luta explícitas e organizadas.


Todavia, que dizer das normas informais da cultura no local de traba-
lho? O que é que acontece nesse espaço? Será que quando não há greve
os trabalhadores cumprem com as normas de obediência em relação à
autoridade, pontualidade, etc.? Tal raramente acontece, muito embora,
em teoria, e perante as dinâmicas impostas pelo controlo numérico,
tudo o que um operador de máquina faz é limitar-se a carregar em
determinados botões para desligar ou ligar a máquina e continuar a car-
regar ou descarregá-la. Também aqui o processo actual de trabalho no
centro da produção não corresponde necessariamente às normas "exigi-
das". Frequentemente, encontramos trabalhadores, na zona de produ-
ção, aderindo ao que se denomina por "ritmo lento" ou "síndrome dos
70%" - a restrição colectiva da produção por parte dos trabalhadores
que estabelecem o ritmo da máquina, ou seja, apenas a 70-80% da sua
capacidade. De novo, muitas vezes podemos encontrar determinados
trabalhadores que impõem um ritmo mais acelerado à sua máquina
como forma de ajudar outros colegas. E, finalmente, há as formas mais
subtis de resistência, nomeadamente atitudes negativas de não coopera-
ção e de recusa de "aceitação espontânea da autoridade". Tal como
salientam alguns gerentes: "Quando se coloca um indivíduo numa
máquina de C. N. ele torna-se temperamental ... Depois, então, por um
processo de osmose, é a máquina que se torna temperamental"2g.

Mulheres no trabalho
Até agora - e a fim de esclarecer se a literatura em torno da questão
do currículo oculto perspectiva correctamente a correspondência entre
o que é pressupostamente ensinado às crianças da classe trabalhadora
nas escolas e o que é ('exigido" na sua participação posterior num mer-

Ibid , p 48
.
Ibid pp 45-46
O outro lado d o curriculo oculto

cado de trabalho estratificado -, tenho vindo a retratar o quadro dos


trabalhadores, predominantemente homens operários fabris. No
entanto, e as mulheres? Se os homens trabalhadores revelam, frequen-
temente, sérios indícios de um compromisso colectivo, de luta e de
tentativas para manter o controlo das capacidades e conhecimento que
possuem (embora por vezes informalmente) - e, desta forma, actuem
contra e não reproduzam necessariamente as normas desejadas pelo
mercado de trabalho -, será que podemos dizer o mesmo de outros
grupos de trabalhadores?
Tendo em consideração a relativa actualidade de um grande conjunto
de investigações sobre o trabalho quotidiano das mulheres. um determi-
nado número de aspectos interessantes emerge da referida literatura.
Por vezes, as mulheres revelam-se muito activas, resistindo as exigên-
cias e as normas impostas pelos empresários nas fábricas. Nas indústrias
têxtil e do calçado, "a sindicalização efectiva das mulheres trabalhadoras
teve um impacto assinalável sobre a organização". Partilha, respeito
mútuo, resistência ao controlo por parte da entidade patronal, todas
estas normas de contrapoder tornaram-se ainda muito mais explícitas
quando as mulheres trabalhadoras da indústria do calçado se organiza-
ram em conjunto com os homens trabalhadores. Neste caso, pelo
menos, as mulheres trabalhadoras foram muito agressivas na relação
com a entidade patronal"'.
Este não é o caso "apenas" das mulheres operárias. Exemplos como o
que descrevemos anteriormente podem ser encontrados em áreas de
emprego que por motivos económicos e ideológicos conscientemente
contrataram mulheres para trabalhos de escritório e de vendas3'. Provavel-
mente, o aspecto mais interessante desta estratégia pode ser constatado
nas posições relativas as vendas, nos grandes estabelecimentos.
Abundam exemplos de resistência subtil da parte de mulheres vende-
doras. Por exemplo, quando as orientações da administração, no sentido
de garantir níveis mais altos de obediência na secção de vendas, interfe-
rem com normas informais preestabelecidas que mantêm a cultura do
1 trabalho, tais orientações são sabotadas ou alteradas com eficácia.
Se tais directrizes incluem tarefas extraordinárias, por norma são sim-

Montgomery, Workers' Control of Machine Production in the Nineteenth Century. pp. 500-501
" Vide Rothman, Shela (1978). Wornan's Proper Piace, New York Basic Books; e Altbach, Edith (1974). Women in
Arnerfca, Lexington: D. C Heath.
plesmente recusadas ou informalmente contestadas. As vendedoras,
quando arranjam uma montra, propositadamente fazem-no de forma
descuidada ou de uma forma "excêntrica". Enquanto grupo, podem
recuperar as horas que a administração lhes extraiu com horas extraor-
dinárias durante a hora de almoço. Ou mesmo, podem explicitamente
1 confrontar a autoridade da administração, por exemplo, ignorando
propositadamente os requisitos impostos pelos códigos da loja de ves-
tuárid2.
Por norma, as contraposições da cultura do trabalho vão muito mais
longe. Dado que grande parte do trabalho das vendedoras é directa-
mente com o público e dado realizar-se nas lojas, implicando não só um
afastamento da administração como um contacto directo com as pes-
soas, muitas das vendedoras desenvolvem mecanismos habilidosos
como forma de ripostar a hostilidade e abusos de autoridade por parte
da administração. As vendedoras podem com toda a naturalidade emba-
raçar um cliente ou o gerente da loja em frente de um superior ou de
um cliente importante. Além do mais, a solidariedade contra as directri-
zes e controlo da administração era repetidamente reforçada com san-
ções informais. Uma vendedora que viole a cultura do trabalho pode,
com toda a naturalidade, encontrar a mercadoria da sua secção total-
mente desarrumada. As canelas podem ser golpeadas pelas gavetas. E tal
como acontece com os gerentes da loja, também a transgressora pode
ser embaraçada à frente de clientes ou dos órgãos da admini~tração~~.
Tudo isto não abona em nada a imagem de trabalhadoras que interiori-
zam e respeitam os imperativos das normas e dos valores impostos pela
ideologia da administração.
Em muitas lojas, a resistência e o compromisso colectivo vão ainda
mais longe. A cultura do trabalho na secção de vendas desenvolveu
importantes formas de controlar o ritmo e o significado do trabalho, as
quais reflectem as formas que encontrámos na análise inicial que tive
ocasião de efectuar sobre o dia-a-dia numa loja. Tal como na fábrica,
onde os trabalhadores encontraram formas que provocassem efectiva-
mente uma transformação, recusa ou oposição aos requisitos exigidos
pela administração, também os trabalhadores e trabalhadoras com
empregos em escritórios desenvolveram uma determinada cultura de q'
I
'' Benson, The Clerking Sisterhood, p. 49.
'' Ibid.
O outro lado do currículo oculto A

trabalho que estipulava limites em torno dos resultados, atenuando


assim a competição de vendas entre sectores. Tais estratégias são bem
descritas na seguinte citação:
"Cada sector tinha u m conceito do total de vendas que constituía u m
bom dia de trabalho. As vendedoras socorriam-se de vários mecanis-
mos para manter os seus 'índices' de vendas dentro dos limites aceitá-
veis: índices invulgarmente baixos colocam em perigo a situação da
trabalhadora perante a entidade patronal, assim como índices
extraordinariamente elevados a colocariam numa posição indelicada
perante as colegas. Assim, no final do dia, e quando os seus índices de
vendas se encontram elevados, as vendedoras evitam atender clientes,
ou então chamam outras colegas para as ajudar. Com uma regulari-
dade impressionante, as vendedoras conseguiam aproximar-se dos
índices informais, compensando as variações nos hábitos dos fregue-
ses através de estratégias que a entidade patronal jamais poderia ima-
ginar. Ajustavam o número de transacções para compensar o tama-
nho das compras; se faziam algumas vendas grandes no início do dia,
podiam então retirar-se para trabalhar no armazém. Na época baixa
de Verão ou durante a estações mais rigorosas, as vendedoras eram
mais expeditas perante u m número menor de clientes; durante as
estações altas, ignoravam determinados clientes porque podiam
colocá-las acima do seu índice de vendas."34

Os gerentes não são os únicos alvos destas práticas informais. Natu-


ralmente, os clientes são também parcialmente atingidos, uma vez que,
contrariamente ao que se passa numa fábrica, a loja envolve tanto a pro-
dução de bens como a "produção de clientes". Através de formas ocultas <I
- optando por clientes que se encontram a espera, fingindo não reparar
que se encontram clientes a espera, enquanto mexem nos artigos ou
conversam com as suas colegas, retirando-se para o armazém, demons- i

trando atitudes mal-educadas, etc. - as vendedoras transmitiam uma !I'


I
mensagem oculta tanto a gerência como aos clientes. Atendemos os
clientes de acordo com os nossos princípios e não de acordo com os vos- 1
sos. Muito embora possam ter uma posição superior a nossa, aqui nós é
que mandamos - controlamos a m e r ~ a d o r i a ~ ~ .
I
" Ibid , p. 50.
' Ib~d.,p. 51
Existem, obviamente, outros exemplos que podíamos acrescentar. Por
exemplo, é possível encontrarmos práticas "culturais" semelhantes no
trabalho das secretárias. Contudo, a questão essencial é que este e
outros exemplos colocam em causa de uma forma séria o mito - que
pode bem não ser mais do que isso - da mulher enquanto trabalhadora
passiva. Tal como tivemos oportunidade de verificar, homens e mulhe-
res possuem uma determinada capacidade de acção. Tal capacidade pode
ser relativamente informal e desorganizada, existindo apenas ao nível
cultural e não político. Todavia, existe sob formas que não são simples-
mente reprodutoras. Falando metaforicamente, o espelho reprodutor
possui algumas brechas.

Contra o romantismo
Neste capítulo, procurei reunir um conjunto de contra-exemplos no
sentido de demonstrar a parcialidade das análises sobre o currículo
oculto nas escolas. Defendi que as teorias da correspondência - mesmo
que desenvolvam u m sofisticado instrumento etnográfico e estatístico
para descobrir o que as escolas efectivamente ensinam - "dependem da
exactidão" da análise que efectuam ao processo de trabalho. Contudo, o
uso exclusivo da metáfora da reprodução leva-as a aceitar a ideologia
capitalista (ou seja, os trabalhadores são sempre orientados pela relação
salarial, pela autoridade, pela planificação efectuada pelos peritos, pelas
normas de pontualidade e produtividade) como a descrição efectiva do
que acontece fora da escola. Quando a metáfora da reprodução surge
complementada por investigações que descrevem outros modos de
determinação, como a mediação e transformação, etc., e quando exami-
namos a organização e controlo efectivo do processo de trabalho,
encontramos um quadro bem diferente em aspectos importantes da vida
do dia-a-dia daquele que esperaríamos encontrar.
Em vez de um processo de trabalho totalmente controlado pelos per-
gaminhos ideológicos, técnicos e administrativos do capital, em vez de
estruturas rígidas e implacáveis de autoridade e de normas de pontuali-
dade e obediência, verificamos uma complexa cultura do trabalho.
Tal cultura providencia condições importantes para a resistência do tra-
balhador, para a acção colectiva, para o controlo informal do ritmo de
trabalho e das destrezas e para a reafirmação da própria humanidade.
Nos contra-exemplos aqui descritos, homens e mulheres trabalhadores
O outro lado do currículo oculto a

parecem envolvidos numa actividade ostensiva ou informal que, de


certa forma, se escapa quando falamos, apenas, em termos reprodutivos.
Estes termos fazem-nos ver a escola e o local de trabalho como caixas-
-negrasx.
Estes aspectos são importantes uma vez que a organização e o controlo
do trabalho nas economias capitalistas "não podem" ser compreendidos
com profundidade sem uma referência aos esforços explícitos e implíci-
tos dos trabalhadores para resistir ao controlo racionalizador da entidade
patronal37.Uma teoria do currículo oculto que perca isto de vista arrisca-
-se a perder a própria vitalidade conceptual, para não falar da própria
precisão empírica.
Em termos culturais, Castells destaca a importância da resistência dos
trabalhadores:
'2 principal barreira estrutural na produção e circulação capitalista
é a resistkncia dos trabalhadores a e.uploração. Uma vez que um
aumento na taxa da mais-valia é o elemento básico exigido para
a acumulação de capital, a luta em torno da quantia relativa de
trabalho pago e não pago é o primeiro determinante da taxa de
exploraçáo e, consequentemente, da taxa de lucro e da velocidade e
forma do processo de acumulaçáo. Este factor não é indeterminado.
Historicamente, a resistência dos trabalhadores tende a aumentar e
o capital é, cada vez mais, incapaz de apropriar a mesma quantidade
de trabalho em termos ab~olutos."~~

Devemos ser extremamente cuidadosos quando falamos de tudo isto,


evitando adoptar, neste contexto, uma visão exageradamente romântica.
Destaquei a parte relativa às normas e princípios que orientam o local de
trabalho, que significam luta, resistência, conflito e aspectos de acção
colectiva que contrabalançam a estrutura da autoridade burocrática, de
obediência e de submissão, com as relações com os peritos que o capital
pretende impor. Além disso, embora necessitemos de observar de que
modo as condições vividas no local de trabalho medeiam as "exigências"

'Uma análise mais pormenorizada das instituições como se fossem caixas-negras pode ser venficada em Apple. Michael
(ed.) (1 982). Cultural and Economic Reproduction in Education, London: Routledge & Kegan Paul
" Brecher. Jererny (1978). "Uncovering the Hidden History of the American Workplace" Renew of Rad~calPolitical
EconornicsX. 3
'a Castells, Manuel (1980). The Econornic Crisis and American Society. Princeton Princeton University Press. p. 48.

/ E importante recordar que tais formas de resistgncia mudar20 com o tempo, dependendo todavia da alteração das con-
diçòes materiais e ideológicas
quer ideológicas quer económicas, revelando um potencial transformador,
precisamos de recordar constantemente que o poder "é" frequentemente
desigual nas fábricas, nos escritórios, nas lojas e nos grandes estabeleci-
mentos. Na realidade, a luta e conflito podem existir; contudo, isso não sig-
nifica o seu êxito. O êxito é determinado pelas limitações estruturais e
pelos processos de selecção que ocorrem no nosso dia-a-dia.
Há elementos poderosos dentro e fora do processo produtivo que mili-
tam contra um determinado sentido de colectividade e que exacerbam a
ideia de isolamento e passividade. A "organização da produção em
cadeia", em que as linhas de montagem espalham os trabalhadores pelo
amplo interior das fábricas (e agora em muitos escritórios), é disso
exemplo evidente3'. Esta questão surge associada às distinções de esta-
tuto e de nível no seio do local de trabalho, de modo que mesmo em
zonas marcadamente diferentes da fábrica - por exemplo, nos hospitais
- "existem, com frequência, imposições contra a camaradagem entre

trabalhadores de diferentes níveis no seio da hierarquia e penalidades


contra trabalhadores que procuram tomar iniciativas de acordo com os
interesses de um adequado cuidado com o pacienten4'. Obviamente,
estes exemplos não são exaustivos. (Como o demonstra a minha discus-
são inicial relativa ao taylorismo e ainda aos sistemas mais recentes
de controlo, de medida do tempo e do movimento, tais como o con-
trolo numérico). Contudo, demonstram como aquilo que se pode
denominar por atomização ou criação do indivíduo abstracto pode e vai
continuar41.
Qualquer avaliação honesta não pode ignorar a análise de Braverman
anteriormente referida. Historicamente, o capital "tem" tentado incor-
porar a resistência e ampliar o seu domínio sobre o local de trabalho;
muito embora, tal como tivemos oportunidade de observar, o sucesso
nem sempre tenha sido uma constante, o facto é que muitas das técni-
cas delineadas pela administração, desenvolvidas em reacção ao conhe-
cimento, ao controlo informal e à resistência dos trabalhadores, têm
sido relativamente eficazes sob dois aspectos.

39EhrenreichJohn: Ehrenreich Barbara (1976). "Work and Consciousness", h R. Baxendall et a/. (eds ). Technology, rhe
Labor Process and the Workfng Class. New York: Monthly Review Press. p. 13.
" Ibid., p 14.
" Relacionado com a criacão de um individuo abstracto como forma ideologica. vide Apple, Michael (1978). Ideology and
Form in Curriculum Evaluation". in George Willis (ed ). Oualitative Evaluarion, Berkeley McCutchan. Apple, Ideology
and Curriculum, Williams. Raymond (1961). The Long Revolution. London Chatto & Windus, e Lukes. Steven (1973).
hdiv~dualism,Oxford Basil Blackwel
O outro lado do currículo oculto *

Em primeiro lugar, apesar de os primeiros princípios da administração


científica terem tido muito pouco sucesso - e, na verdade, tenham
gerado, frequentemente, maior resistência por parte dos trabalhadores -
no que respeita ao controlo efectivo daquilo que ocorre nas fábricas e nos
escritórios importa recordar que tinham um segundo propósito subja-
cente. E em relação a tal propósito, o capital tem sido muito bem suce-
dido. Os procedimentos técnicos e administrativos foram também intro-
duzidos como parte integrante de uma estratégia ideológica muito mais
ampla, com o objectivo de desacreditar, aos olhos da opinião pública, as
práticas de trabalho prevalecentes. Desta forma, rótulos como "sorna"
foram afixados por Taylor e outros a todas as regras profissionais e a
todos os mecanimos de entreajuda controlados pelos trabalhadores.
Assim, o público (e, em última análise, os próprios trabalhadores) cons-
tatava a importância de "libertar os trabalhadores de algo que não era da
sua responsabilidade", uma vez que era, de facto, "imoral inserir nesse
conjunto heterogéneo de trabalhadores, como classe, a esperança de que,
algum dia, possa vir a poder administrar a empresan4'. O simples facto de
que apenas ultimamente os trabalhadores começaram, de novo, a levan-
tar questões sérias sobre como participar desse "trabalho de responsabili-
dade" comprova o sucesso relativo da estratégia do capital".
Em segundo lugar, em grande parte através do processo que descrevi
no capítulo anterior, a administração conseguir acumular, na verdade,
um reservatório de técnicas e conhecimento que poderia ser empregue
na altura propícia para a continuação quer da racionalização da produção
quer da reafirmação do controlo do trabalho44.
De entre tais técnicas encontram-se algumas que já mencionámos:
a racionalização da produção (sistemas de contabilidade de custos,
centralização da autoridade, formalização das estruturas e procedi-
mentos burocráticos e de supervisão), a redivisão do trabalho (trans-
iormando postos de trabalho qualificados em menos qualificados e
padronizados, formação e conhecimento diferenciados para adminis-
tradores e trabalhadores, uma forte divisão entre trabalho mental e

Montgomery, Workers'control in America. p. 17.


'' V~deCarnoy, Martin, e Shearer. Dereck (1980), Econornic Dernocracy, New York: M. E. Sharpe; e Moberg. David (1980).
"Work in American Culture: The Ideal of Self-determination and the Prospeas for Sociaiisrn", in Sociabt Review X,
pp. 19-56.
A este respeito, v~deo interessante argumento em Lichtenstein. Nelson (1980). "Auto Worker Militancy and the Structure
of Factory Life", 1937-1955. The lournai of American History W I I . pp. 335-353.
manual) e o desígnio da tecnologia (dispositivos de controlo numérico
para eliminar o controlo e o conhecimento dos trabalhadores, produ-
ção em linha de montagem em que o ritmo do trabalho é regulado
pelo ritmo da linha). Outras técnicas incluem: práticas de recruta-
mento de pessoal (inúmeros testes para seleccionar possíveis empre-
gados, selecção de trabalhadores para empregos de baixo salário com
base na origem social, exclusão ou inclusão, de acordo com a raça ou
sexo), políticas empresariais de assistência social (formação em rela-
ções humanas compaginado ao taylorismo, aumentos "elevados" em
épocas de expansão económica, bonificações, planos de reforma e de
saúde, muitas vezes concedidos "a troco" de u m maior controlo
empresarial e plataformas de acordo contra as greves), políticas sindi-
cais ( h a b i t u a l m e n t e os sindicatos disciplinavam os militantes
impondo uma espécie de padrão nas reivindicações dos trabalhadores,
eliminando assim as greves espontâneas, não reconhecidas pelos sin-
dicatos), redistribuição dos locais de trabalho (a fuga das empresas
com estas a transferirem as fábricas e os escritórios para locais com
uma força de trabalho mais abundante, submissa, ameaçando ainda
encerrar as f á b r i ~ a s ) ~ ~ .
De facto, há provavelmente muito mais do que isto. E mesmo neste
caso concreto, tais estratégias não abrangem as pressões ideológicas e
económicas exteriores ao local de trabalho que podem estar na "origem"
de homens e mulheres aceitarem tanto o seu trabalho como a sua vida
social como um dado preestabelecido e natural". Nem tão-pouco expli-
cam a acção do próprio Estado na sua função de regular e ajudar no
processo de acumulação de capital, o que por vezes coloca obstáculos
sérios à acção colectiva.
Poder-se-ia também abordar ainda mais a cultura informal do traba-
lho. Muitas destas "tentativas" informais de transformação e as formas

'' Brecher "Uncovering the Hidden Hirtory of the American Workplace". pp 7-14.
6' A literatura relacionada com a criação e recriação da hegemonia ideológica tem-se tornado muito extensa e 6 obvia-
mente essencial para esclarecer esta questão. De entre as análises mais recentes que podem ser úteis a adordagem
desta questão encontram-se: Williams. Raymond (1977). Marxism and Literature New York: Oxford University Press.
Williams. Raymond (1975). Teievision: Technology and Cultural Form. New York: Schocken; Wright, Will (1975) 51.-
guns and Society Berkeley University of California Press; Connell, R. W 11977).Rukng Ciass, Ruling Culture New York.
Cambridge University Press, Centre for Contemporary Cultural Studies. (1977). On ldeology Working Paper in Cuitural
Studies X. Birmingham. Univer<ty of Birmingham Centre for Contemporary Cultural Studies, Brenkman. John (1979)
Mass Media. Froin Collective Experience to the Culture of Privatization, Social Text, 1. pp 94-109; Aronowitz, Stanley
(1979). "Film - The Art Form of Late Capitalism. Social Text 1, pp. 110-29: Jameson, Frederic (1979). Refication and
Utopia n Mass Culture". Social Texl 1, pp 130-48. e Gitlin, Todd "Television's Screens: Hegemony in Transition". ~n
Aple (ed.), Cuiturai and Economic Reproduction in Education.
O outro lado do currículo oculto -
I
pelas quais a cultura do trabalho pode mediar as pressões e a ideologia
da administração podem virar-se contra os próprios trabalhadores. Esta
questão é muito importante.
A título de exemplo, em algumas fábricas os operários "reapoderam-
-se" do tempo e do controlo utilizando as máquinas na criação de objec-
tos inúteis, embora por vezes complexos, "para benefício próprio". Ou
encontram formas de fazer jogos complicados entre eles, usando as
máquinas. Muitas vezes a gerência tem conhecimento quer dos jogos
quer da elaboração de tais objectos, no entanto, não intervém, dado que
tais eventos mantêm os operários ocupados e felizes no local trabalho
não prejudicando muito, e de forma geral, a produção. Em essência, a
resistência dos operários à monotonia e ao controlo técnicoladministra-
tivo "e" as suas próprias formas culturais vividas produzem aquilo que
Michael Burawoy denominou por fuga ~tópica'~. O ócio é definido como
1 ocupando o tempo fabricando objectos inúteis; toma-se na ausência de
I umtrabalho significativo sério. A luta no local de trabalho transforma-
-se, pelo processo de produção individual de mercadorias, na prática de
jogos de diversão. Muito embora, neste caso específico, o Iúdico possa
ser culturalmente criativo - e esta questão não pode ser de todo mini-
mizada -, em última análise, o efeito contraditório pode ser o de conti-
nuar a despolitização da relação entre o trabalho das pessoas, os produ-
tos, o processo e o controlo da produção.
Deste modo, e tal como tenho defendido, a questão que se deve colo-
car é se as referidas normas e práticas, relativamente autónomas, de
resistência existem, onde, quando, e como, "especificamente", podem
acabar por ser contraditórias, provavelmente reforçando inclusive as
rubricas ideológicas e económicas de uma forma ainda mais pro-
) funda.4RNão será fácil responder a esta questão; todavia, sem a formu-
larmos não podemos entender nem o currículo oculto nem o processo
de trabalho.
A procura de uma compreensão deste tipo exige, no mínimo, que
consideremos com mais seriedade a ideia de que a esfera cultural não
se reduz totalmente a económica. Paul Willis comprova esta questão
de uma forma esplêndida, desafiando a tendência dominante na

" Burawoy. The Poht~csof Producton and the Production of Pobtics


A analise que aqui efectuo deve-se a uma corivena com Paul Will~s
esquerda de tornar a cultura - mesmo aquela que se encontra no seio
dos trabalhadores no local de trabalho - apenas uma "resposta1' ou
uma reflexão epifenomenal às relações económicas ou "produtivas"
dominantes. Tal como esclarece:
"Não há razão nenhuma, na minha perspectiva, para contrapor o
'cultural' ao 'produtivo' ou ao 'real' como se o primeiro não tivesse
papel constitutivo nas relações sociais essenciais que governam a
forma da sociedade. Oponho-me à trivialização da noção de cultura, da
cultura da classe operária e, sobretudo, do seu domínio central: as rela-
ções/lutas/formas culturais no fulcro da produção. A cultura não é sim-
plesmente uma resposta à imposição, que obscurece ou mitiga uma
compreensão "adequada", nem é meramente uma compensação, um
ajustar por defeito - tais noções não passam de modelos essencial-
mente mecanizados, reactivos. As formas culturais ocupam precisa-
mente os mesmos espaços e potencialidades humanas que são disputa-
dos pelo capital para continuar a valorização e acumulação capitalistas.
Existem lógicas distintas possíveis na experiência directa de produção
que não são as que se encontram colocadas na relação do capital em si,
para si. Pelo simples facto de que o capital gostaria de tratar os traba-
lhadores como robôs não significa que eles sejam robôs. As experiên-
cias directas de produção são elaboradas através e durante a práxis dos
diferentes discursos culturais. De facto, tais discursos não emergem
puramente da base da produção, e muitos dos seus conteúdos impor-
tantes e relações internas provêm, em articulação com forças e insti-
tuições externas: da família, do Estado, das organizações operárias, etc.
É também evidente que nesta sociedade, hoje em dia, as consequências
materiais destas formas culturais atingem a produção continuada no
modo capitalista. Contudo, nada disto nos deve cegar ao ponto de não
verificarmos as complexidades, as lutas e tensões que se estabelecem
no local de trabalho, mesmo que nem sempre surjam de forma que as
possamos reconhecer. Existem práxis que emergem de um modo defi-
nido da actividade humana no local de produção que, no preciso
momento, providenciam as condições para as relações capitalistas
e, simultaneamente, invadem parcialmente e desafiam de várias formas
tais relações4'.

A9 Will~s,Paul (1979). "Shop Floor Culture, Masculinity and the Wage Forrn". in John Clarke. Chas Critcher & Richard
Johnson (eds.). Workhg Class Culture. Studies in Historyand Theory. London: Hutchinson. p. 187.
O outro lado do currículo oculto -

Acção educativa
Estes argumentos podem parecer muito desfasados da realidade prá-
tica da sala de aulas e da actividade curricular. Além do mais, o debate
académico sobre questões conceituais e justificações empíricas relacio-
nadas com o currículo oculto, em parte, não passa disso mesmo - um
debate académico sobre como interpretar o que acontece nas escolas.
Todavia, e não obstante a comparação entre aquilo que acontece nas
escolas e os supostos efeitos (ou relação) com o que acontece fora
delas, há, na verdade, uma série de aspectos que necessitam de ser
compreendidos. Como tive ocasião de afirmar atrás, existem relações
bem vincadas e explícitas entre a concepção e a acção. Tal como frisei
na ocasião, uma visão que admite uma degradação efectiva do trabalho
aceita involuntariamente, numa plataforma conceptual, a ideologia
capitalista que, no plano político, pode levar ao cinismo ou ao pessi-
mismo relativamente às possibilidades de sucesso de qualquer acção,
quer no campo socioeconómico, quer na escola. Ou, então, pode-nos
fazer esperar por u m cataclismo que, repentinamente, transforme
tudo. Qualquer das hipóteses conduz-nos, em última instância, à inac-
tividade.
Tendo tudo isto em consideração, regressemos à postura pessimista
que destaquei inicialmente neste capítulo. Tal reitera que as escolas não
podem ser mais que meros espelhos reprodutivos. Por esse motivo, qual-
quer acção no seu seio está, a partida, condenada ao fracasso. Se a análise
que formulei se encontra correcta - ou seja, que em quase todas as situa-
ções de trabalho há elementos de contradição, resistência e autonomia
relativa que têm um potencial transformativo - então, o mesmo se aplica
em relação às escolas. Se ignorarmos estas instituições, negligenciamos
algo de pertinente e que, aliás, devo retomar no capítulo quinto, ou seja,
o aspecto elementar que é o facto de milhões de pessoas se encontrarem
a trabalhar nelas. Devido à sua posição estrutural na qualidade de funcio-
nários do Estado, as condições de trabalho podem levá-los a iniciar uma
avaliação séria do poder e do controlo na sociedade. A medida que
aumenta a crise fiscal do Estado, à medida que as condições dos funcio-
nários do Estado se tornam mais instáveis devido à "crise de acumula-
ção", à medida que o trabalho educacional invade, cada vez mais, as áreas
política e económica, tal como prevejo que de facto irá acontecer,
aumenta também a possibilidade de uma determinada acção organizada
a u t o c o n ~ c i e n t e Mesmo
~~. ao nível do trabalho informal, a cultura de
trabalho dos professores (que, sem dúvida, existe, como o comprova a
minha experiência pessoal) pode ser utilizada com fins educativos. Pode
ser empregue num processo de educação política, utilizando os seus pró-
prios elementos como paradigmas da possibilidade de reconquistar, nem
que seja de uma forma parcial, o controlo sobre as condições do próprio
trabalho, clarificando as determinações estruturais que estipulam os
limites a actividade pedagógica progressista51.
Contudo, a acção deve ser levada a cabo não apenas no longo e lento
processo que habilita os professores a compreenderem a sua situação. Há
também uma enorme necessidade de acção curricular. Neste caso, não
acrescentarei muito mais ao que já foi referido por outras pessoas que
tiveram que lutar muito e arduamente para introduzir, nas escolas,
material controverso, honesto, racial, sexual e economicamente progres-
sista5'. Se encontramos resistências, se mesmo apenas numa plataforma
informal encontramos homens e mulheres nas empresas, fábricas e
outros lugares lutando pela manutenção dos seus conhecimentos, huma-
nidade e dignidade, então a acção curricular pode ser "mais" importante
do que supomos. Com efeito, os estudantes necessitam de ver a história e
a legitimidade destas lutas. O ensino da verdadeira história do trabalho,
organizado em torno das normas de oposição geradas por homens e
mulheres que resistiram ao currículo oculto, pode, neste caso concreto,
constituir uma estratégia efectiva para a acção educativa. Tal como nos
recorda Raymond Williams, o triunfo sobre o que ele denominou por
"tradição selectiva" é essencial para uma prática emancipatória actual"53.
De qualquer modo, tudo o que perdemos devido a tradição selectiva
pode ser constatado na seguinte citação de Montgomery:
"Os trabalhadores não só resistiam persistentemente aos esforços da
entidade patronal no sentido de introduzir cronómetros e pagamentos
de acordo com a produção, 'como frequentemente também formula-
vam as suas próprias contrapropostas' para a reorganização industrial.

Vide O'Connor, James (1978). Jhe Fiscal Crisis o f the State, New York St. Martin's Press; Wright. Eric Olin (1978)
Class, Crisis and the State London: New Left Books. e Castells, Jhe Economic Criws and American Society.
Neste contexto, é muito interessante a andlise proposta por Hinton. Vide Hinton. William (1966). Fanshen, New York:
Vintage
51 A este respeito, devemos destacar. de entre as andlises curriculares mais convencionais. o acentuado relevo que Fred
Newmann coloca nos problemas públicos e programas de acção comunitária. Vide, tambbm, a este propósito. a andlise
que efectuo com Newmann i n Weller. Richard (1977) (ed.), Humanistic Education, Berkeley. McCutchan.
Williams. M a n s m and Literature.
O outro lado do currículo oculto 5

A um determinado nível, tais propostas incluíam classificações-padrão


de pagamento, controlo sindical sobre as reduções na força de traba-
lho,jornadas de oito horas e, acima de tudo, o consentimento da enti-
dade patronal em tratar, com os delegados eleitos pelos trabalhadores,
todas as questões relacionadas com o processo de trabalho. A um outro
nível, e se por um lado os sindicatos dos mineiros e dos ferroviários,
falando com base em posições de força sem precedentes, reclamavam o
direito a propriedade pública das indústrias com um papel administra-
tivo importante para os empregados, por outro a Congregação dos
Trabalhadores das Indústrias de Confecção discutia, abertamente,
meios de assumir a gestão da indústria de confecção ma~culina."~~

O reconhecimento daquilo que perdemos requer todavia não só uma


análise teórica e histórica, mas também a produção ininterrupta de mate-
riais curriculares e estratégias de ensino viáveis que possam ser usados
nas salas de aula e em outros espaços". Devemos ainda considerar a acti-
vidade política e organizacional a nível local no sentido de criar condições
necessárias para utilizar inclusive material de documentação novo ou que
eventualmente já tenha sido elaborado previamente. A tradição selectiva
tem funcionado de tal forma que os materiais curriculares mais utilizados
dão uma ideia irrisória da herança histórica de um determinado seg-
mento significativo da população. Habitualmente, são desprezados aspec-
tos importantes relativos ao movimento operário, definidos como estando
fora das fronteiras da actividade do trabalho "responsável" ou sujeitos a
comentários editoriais que visam a sua desacreditaçãao social56.Em rela-
ção a esta questão, é evidente que se pode implementar um trabalho edu-
cativo e político concreto. Tal trabalho não se deveria cingir ao sistema
educativo formal. A educação política pode ser efectuada (e está a ser) no
local de trabalho - na lojas, fábricas e outros locais. Dado que existem ele-
mentos activos da cultura do trabalho e uma vez que se encontram pro-
cessos culturais de resistência, mediação e transformação, tal significa
que estes aspectos podem ser trabalhados. Educadores politicamente
progressistas, organizadores sindicais, grupos informal e formalmente

" Montgornery. Workers'Control in Arnerica, p 155.


Vide. por exemplo, Rydlberg, Pal (1974). The History Book, California: Peace Press; Quebec Education Federation (sld),
Pow une lournée au Service de Ia Class Ouvrière. Toronto: New Hogtown Press.
"Anyon. Jean (1979). "ldeology and U. S. History Textbooks", Harvard Educational Review XLIX. pp. 361-386; e Fanta-
sia. Rich (1979). "The Treatrnent of Labor in Social Studies Textbooks". Artigo não publicado. Depanrnent of Sociology,
Arnherst: University of Massachusetts.
organizados de mulheres, homens, negros, hispânicos e outros trabalha-
dores podem encetar um trabalho conjunto tentando descobrir formas
não elitistas de envolvimento em acções explícitas. Tal politização é um
complemento ideal para a "democratização" do conhecimento técnico
administrativo, que analisei no capítulo anterior.
Mas o que dizer sobre o modo como compreendemos, não o currículo
explícito, mas sim o currículo oculto? Se os modelos de simples repro-
dução e correspondência não podem descrever, adequadamente, a com-
plexidade do dia-a-dia quer das escolas quer do local de trabalho, tal
acarreta importantes implicações para a investigação futura sobre o cur-
rículo oculto. Não obstante aconselhar, mais uma vez, prudência para
não romantizarmos a resistência as "determinações" ideológicas e eco-
nómicas, devemos, no entanto, investigar se os padrões de mediação,
resistência e transformação parcial semelhantes aos que ocorrem no
local de trabalho podem também ser encontrados na escola. Será que,
perante a invasão crescente de procedimentos de racionalização e de
ideologias capitalistas nas escolas (por exemplo, sistemas de gestão,
administração por objectivos, ensino baseado na competência, cresci-
mento das avaliações nacionais, etc.), os professores respondem da
mesma forma que os trabalhadores, tal como aliás tivemos oportuni-
dade de verificar com os exemplos apresentados no capítulo anterior?
Será que os estudantes, como os que são referenciados no estudo de
Willis que tive oportunidade de descrever no primeiro capítulo, também
agem contra, transformam parcialmente ou, de qualquer outra forma,
se envolvem em actividades que ultrapassam a simples socialização e
reprodução das normas e valores considerados legítimos no currículo
oculto? Em última análise, será que isto, a um nível ideológico mais
profundo, acabará por se voltar contra eles? Que estudantes - de acordo
com a raça, sexo e classe - fazem o São estas as questões para as
quais devemos agora prestar atenção.

"Neste capítulo, e com o intuito de facilitar a leitura. propositadamente subteorizei a minha análise A nível teórico, as
questões que aqui levanto são parte integrante de um debate mais amplo no seio da análise da relação entre reprodu-
ção cultural e economica. Essencialmente, pretendo reclamar que "não" se trata apenas de uma possibilidade episte-
mológica. mas sim de evidenciar que um grande numero de trabalhadores pode. na verdade, construir formas de
conhecimento alternativas e "relativamente aut6nomas". que não são meramente representações de "categorias
sociais burguesas". Isto acontece mesmo perante o poder do capital económico e cultural das classes dominantes e do
aparelho do Estado nas mais distintas formas. Neste contexto, a minha posição e semelhante as de Willis e Aronowitz,
que se insurgem também contra as tradicionais fórmulas "base-superstrutura" e contra as teorias claramente determi-
nistas de Althusser, a escola da I6gica capitalista e outras. Vide, por exemplo, Willis. Paul (1077). Learning to Labor,
Lexington: D. C. Heath, Willis, Paul (1979). Class Struggle, Syrnbol and Discourse. Artigo não publicado. University of
Birm~ngham:Aronowitz. Mau, Braverrnan and the Logfc o f Capitdl.
O outro lado do currículo oculto i

Podemos descobrir que acontecem muito mais coisas para além das
que se podem constatar à vista desarmada ou para além daquelas que
alguns dos deterministas mais teóricos do currículo oculto nos querem
fazer crer. Se as determinações são entendidas como não reflectindo
propriamente a imagem pura, mas estabelecendo limites contraditó-
rios", que ao nível da prática são, frequentemente, mediados (e podem
"potencialmente" transformar) pela acção informal (e algumas vezes
consciente) de pessoas, então podemos explorar as formas através das
quais tais limites começam agora a ser contestados. No decorrer do pro-
cesso, podemos encontrar espaços em que os limites se dissolvem.
Há poucas coisas que conseguem ser mais nobres que este esforço.

Vide Apple, Ideology and Curr;culurn.


Resistência e contradições na
classe, cultura e Estado
A cultura como experiência vivida - I1

Desviemos agora a nossa atenção do local de trabalho para a própria


escola. Até aqui tenho analisado de um modo crítico as reivindicações
i
quer sobre a função da escola, enquanto aparelho ideológico do Estado,
I tal como propõe Althusser - produzindo agentes (com predisposições,
valores e ideologias "apropriadas" veiculados por intermédio do currí-
culo oculto) com o intuito de satisfazer as necessidades da divisão social
do trabalho na sociedade -, quer sobre o lugar que as instituições edu-
cativas ocupam na produção de determinadas formas culturais e de
conhecimento "exigidas" por uma sociedade desigual - ou seja, como
um local para a produção de mercadorias culturais (conhecimento téc-
nico/administrativo) cruciais para a economia e para determinadas clas-
ses sociais cada vez mais poderosas.
A análise que efectuei ao local de trabalho comprovou a necessidade
de entendermos a cultura, não só como um processo vivido, mas tam-
bém como uma mercadoria. Naquele contexto, as culturas de classe
mediavam e transformavam os grupos de "determinações" estruturais
nos quais se insere, sob diversas formas, o capital cultural empresarial.
Tal como a natureza relativamente autónoma da cultura providenciava
i uma importante chave para análise daquele contexto, também a noção

' Gostaria de deixar aqui expresw o meu agradecimento a Geoff Whitty da Universidade de Londres pela ajuda prestada
no esclarecimento dos argumentos desenvolv~dosneste capitulo.
de que não se pode reduzir a esfera cultural a um mero "reflexo" epife-
nomenal da esfera económica facultará a chave para a análise que pre-
tendo efectuar neste capítulo sobre o modo como são vividas as culturas
de classe nas escolas. Além do mais, neste capítulo, quando abordar a
resposta da escola a cultura vivida dos estudantes e as pressões prove-
nientes das esferas económica e política, emergirá, também, e de outra
forma, a questão da autonomia relativa.
A semelhança dos capítulos anteriores, defenderei que a reprodução
social é, em essência, um processo contraditório, não é algo que sim-
plesmente ocorre sem conflito2. Para tal, terei que examinar, de uma
forma empiricamente detalhada, a natureza das contradições que se
encontram ao nível cultural na escola e aprofundarei ainda mais a
minha abordagem sobre as "necessidades" do Estado. Com isto revelarei
como as contradições que os estudantes vivem no dia-a-dia podem aca-
bar por apoiar as ideologias e as instituições que a partida parecem
opor-se, oferecendo simultaneamente condições para a acção.
Finalmente, e à luz da apreciação das contradições no seio da cultura,
da economia e do Estado, analisarei algumas das propostas mais signifi-
cativas para a reforma educativa que surgem como resultado da inter-
venção do Estado na "resolução" de problemas gerados por estas lutas e
contradições - propostas como financiamentos educativos, apoios fis-
cais, etc. Isto permitir-nos-á avaliar até que ponto tais propostas servem
os propósitos pretendidos ou, pelo contrário, se acabam, em última ins-
tância, por servir os interesses da classe dominante na economia e no
Estado e não os interesses dos grupos desfavorecidos para os quais se
dirigem.
Tal como teremos ocasião de verificar, os dois aspectos existentes na
expressão de Althusser, "aparelhos ideológicos de Estado" - a ideologia
e o Estado - serão necessários para tentar entender a escola e as pro-
postas que actualmente se formulam para a reformular. Todavia, tam-
bém aqui a análise apresentada exigirá que abordemos quer a ideologia
quer a classe quer ainda a questão da autonomia relativa de uma outra

'As dificuldades que surgem com os modelos mais economicistas utilizados hoje em dia para descrever este processo de
reproduqao são abordadas com mais detalhe em Apple, Michael (ed) (1982). Cultural and Economic Reproduction in
Education. London Routedge & Kegan Paul. É importante salientar uma questão óbvia, pese embora frequentemente
esquecida. A reprodu(ão cultural e económica não acontece apenas na esfera capitalista. Neste contexto, as questões
mais pertinentes sáo: Que padrões culturais e estruturas sociais e especificas sáo reproduzidos? Para o beneficio de
quem? E até que ponto existe uma consciQncia crítica nos grupos afectados daquilo que é efectivamente reproduzido?
Resistenciae contradi$óes na classe, cultura e Estado

forma da que surge veiculada nas tradições mais funcionalistas e meca-


nicistas dominantes (incluindo Althusser). Neste caso, a perspectiva
utilizada reestabelece a classe (e o conflito que a acompanha) como
uma dinâmica fundamental na problemática da reprodução. Classe,
neste contexto, implica não só "quanto dinheiro se ganha" ou "qual o
tipo de trabalho", aliás, uma forma utilizada, habitualmente, pela
maioria dos investigadores na área da estratificação social e ainda por
muitos teóricos da esquerda política e da economia norte-americana -
mas a relação que se estabelece com o controlo e a produção de capital
económico e cultural. Mais importante ainda, classe significa também
um processo cultural complexo e criativo, incluindo, entre outras coi-
sas, linguagem, estilo, relações sociais íntimas, desejos, sonhos. A
classe é não só uma posição estrutural (qual é a posição que se ocupa
nos processos desiguais de poder, controlo e reprodução) "como tam-
bém" algo vivido, e não uma entidade abstracta ou u m conjunto de
determinações estruturais existentes "algures", num sector económico
da sociedade igualmente abstracto e totalmente separado". E as ideolo-
gias vividas não são simples reflexos daquilo que é funcional para a
reprodução.

Ideologia e cultura vivida


Demonstrei no capítulo anterior que nenhum processo de práticas e
significados ideológicos e nenhum conjunto de arranjos sociais e insti-
tucionais é totalmente monolítico. Tal como Gramsci, Wright e outros
categoricamente salientaram, ocorrem também práticas de oposição e
tendências contrárias. Estas tendências e práticas podem não ser tão
poderosas como as forças ideológicas e materiais de determinação que
visam a reprodução; podem, de facto, ser inerentemente contraditórias
e relativamente desorganizadas. Contudo existem. Ignorá-las significa
ignorar que em qualquer situação real existirão elementos de resistên-
cia, de luta e contradição que actuarão contra a determinação abstracta
das experiências de vida dos actores humanos. Tal como previamente
---
' Náo e este o local indicado para iniciar uma discussáo prolongada sobre o facto de a classe ter perdido a sua potencia
como categoria central da abordagen para o estudo dos Estados Unidos. Escusado sera dizer que me encontro satis-
feito por tal facto Para uma di5cussáo profunda. muito embora por vezes técnica. sobre muitas questões conceptuais e
empiricas aqui envolvidas vide Wright, Fric Olin (1978). Class, Crisis and lhe State, London. New Left Books; e Wright,
Eric Olin (1979). Class, Structure and lncorne Deterrnination. New York: Academic Press Vide, também. Karabel. Jerome
(1973). "The Failure of American Socialism Reconsidered", ~n Ralph Miliband & John Saville (ed ) (1973). The Scxialist
Register, London: Merlin Press, pp. 204-227.
deixei descrito, a vida social e cultural é simplesmente demasiado com-
plexa para poder ser totalmente abarcada por modelos deterministas4.
Verifica-se, assim, tal como observa Richard Johnson, devido ao vasto
estenda1 de significados e de práticas do senso comum que constituem
as ideologias dominantes e que podem ser internamente inconsistentes.
Esses significados e práticas do senso comum são, na maioria dos casos,
"profundamente contraditórios, envolvendo elementos ideológicos e de
bom senson5.Deste modo, paralelamente às crenças e às acções que
asseguram o domínio de classes e de grupos poderosos, haverá também
elementos de compreensão séria (embora talvez incompleta), elementos
que constatam os benefícios diferenciados e que permitem uma penetra-
ção no fulcro de uma realidade desigual. De novo, a análise de Johnson é
muito útil quando salienta:
"Sem dúvida alguma que existem condiç6es ideológicas para a exis-
tência de um determinado [modo de produção], contudo, em qualquer
sociedade, tal nâo esgota tudo o que pertence a instância ideológica.
Há determinados elementos culturais aos quais o capital é 'relativa-
mente' indiferente e muitos que têm grande dificuldade em alterá-los
permanecendo maciça e residualmentepresentes.""

Esta noção é claramente anti-reducionista e tem vindo a ser cada


vez mais partilhada por uma série de estudiosos de esquerda. Os argu-
mentos de Gramsci, Wright e Johnson comprovam o quanto ainda
temos a aprender com aqueles que se opõem as teorias mecanicistas
de reprodução económica e cultural. Mesmo u m reconhecimento rela-
tivamente superficial dos argumentos que defendem dever-nos-ia levar
a questionar processos e instituições sociais complexos como a escola,
avaliando a sua eficácia através das seguintes formas. Como é o nosso
modo de produção? Quais são as suas características mais importan-
tes? Que grupos de pessoas e de classes são mais e menos beneficiados

'Aronowitz. Stanley (1979). "Marx, Bravernan and the Logic of Capital". The Insurgent 50c;ologist VIII, pp. 126-146;
Wright. Class, Crisis and the State, capítulo 1; vide também Will~ams.Raymond (1977). Marxism and Literature. New
York. Oxford University Press; Apple, Micbael (1979), Ideology and Curriculum. London: Routlede & Kegan Paul; e ainda
o excelente trabalho sobre algumas das dispares tradiçoes em Centre for Conternporary Cultural Studies (1977).
On Ideology. Working Papers in Cultiiral Studies, 10, Birminghani: University of Birmingharn - Centre for Contemporary
Cultural Studies.
lohnson, Richard (1979). "Histories of Culturellheories of Ideoloqy". in Michele Barrett et a1 (eds.), Ideology and Cultural
Pmduction. New York: St Martin's Press, p 43.
lb1d. p. 75
Resistencia e contradi~õesna classe. cultura e Estado

com tais características? Como é que tais "padrões" de reprodução de


classe e de benefício diferenciado se desenvolvem, efectivamente, no
dia-a-dia, por exemplo nas actividades curriculares, pedagógicas e ava-
liativas nas quais participamos e as quais os alunos respondem nas
escolas? Além disso, acrescentam ainda algo mais. Se as formas cultu-
rais/ideológicas e políticas se encontram, na verdade, dialecticamente
relacionadas com as formas materiais (frequentemente retroagem e
medeiam algumas das determinações não Ihes sendo redutíveis), como
é que tal se opera nas escolas? Se, por vezes, as determinações são
contestadas, se a reprodução se encontra plena de conflitos, plena de
elementos de bom e de mau senso que lutam entre si, quais são as
bases verdadeiras das referidas lutas (por exemplo, onde se encontram,
referem-se a quê, etc.)?
Como se pode imaginar, estas questões não são tão fáceis de ser trata-
das, uma vez que a sua análise deve cumprir duas condições. Não só deve
ser estrutural - por outras palavras, ao nível da teoria, deve ser suficien-
temente abrangente para fornecer explicações produtivas de como a
ordem social é tanto organizada como controlada de modo que os benefí-
cios diferenciados sejam de forma geral explicados - como também,
simultaneamente, não deve ser tão abrangente que a incapacite de poder
explicar as acções, as lutas e as experiências dos actores, no seu dia-a-dia,
dentro e fora das escolas. Assim, deve considerar onde, como e por que
motivo as pessoas são envolvidas e onde pode não ocorrer, totalmente, tal
envolvimento. Isto requer uma perspectiva particularmente sensível,
uma combinação daquilo que se poderia denominar por abordagem
socioeconómica, com o intuito de apreender os fenómenos estruturais e
daquilo que se poderia denominar por programa cultural de analise com
o objectivo de captar o plano quotidiano7. Somente um programa dual
deste género, que procure as séries de relações e interpenetrações e não
apenas a determinação unilateral entre as esferas económica, política e
cultural, poderá ultrapassar os problemas levantados previamente relati-
vamente aos modelos de determinação directa do tipo "base/superstru-
tura". Em essência, precisamos de uma etnografia marxista de vida no
seio (e em torno) das instituições dominantes. I

'Abordei a controvérsia culturalista/estruturalista e o seu infeliz impacto na investiga@~educativa em: Apple. Michael, i
Cultural and Economic Reproduction in Education A analise de Richard Johnson sobre esta cesura é exemplar Mde.
1
Johnson. Histories of Culture, Theories of Ideology f
Desta forma, e no que se segue da discussão que aqui apresento, pre-
tendo fazer uma análise sobre as possíveis formas através das quais
podemos integrar tais elementos numa abordagem coerente que conti-
nue a superar as teorias mecanicistas de determinação. Socorrer-me-ei
de uma série de estudos interessantes, em particular da investigação de
Paul Willis, que se encontra no seu livro Learning to L U ~ O UaPanálise
,
de Robert Everhart sobre uma escola secundária norte-americana que
se encontra no seu livro The In-Between Yearsge ainda a investigação de
Angela McRobbie sobre meninas da classe operária nas escolas1". Tais
trabalhos facultam uma base importante a partir da qual podemos ques-
tionar a relação entre as características internas das escolas, a cultura
vivida dos estudantes no seu seio e as necessidades de acumulação e
legitimação as quais as escolas devem responder. Ajudam-nos a esclare-
cer o que acontece, realmente, nas escolas e quais são as verdadeiras
experiências dos alunos. Simultaneamente, providenciam, novamente,
importantes correctivos às abordagens marcadamente deterministas
que alguns de nós, na esquerda, temos vindo a adoptar com relativa
facilidade.

Determinações e contradições
Qualquer pessoa familiarizada com a investigação actual relacionada
com a escolarização e com a desigualdade encontra-se inquestionavel-
mente familiarizada também com o rápido crescimento da evidência de
como as escolas actuam como agentes na reprodução económica e cul-
tural de uma sociedade desigual". Nem tão-pouco há díivida alguma
sobre a existência de um currículo oculto nas escolas que tacitamente
tentam ensinar aos estudantes normas e valores relacionados com o tra-
balho na sociedade desigual1'. Além disso, o argumento que desenvolvi

Willis, Paul (1977). Learning to Labour. How Working Class Kids Get Working Classlobs Lexington: D. C. Heath.
Everhart, Robert (1979). The In-between Years. Student Life in a lunior High School. Santa Barbara: Graduate School of
Education. University of California.
'O McRobbie. Angela (1978). "Working Class Girls and the Culture of Femininity" ln Woman's Studies Group (eds.).
Women Take Issue London: Hutchinson. pp. 96-108.
" Vide, por exemplo, Apple (ed.), Cultural and Economic Reprcduction in Education; Apple, Ideology and Curriculum,
Bowles. Sarnuel, & Gintis. Herbert (1976). Schooling in Capitabt Arnerica, New York: Basic Books, Karabel, Jerome, &
Halsey, A. H. (eds.) (1977). Power and Ideology in Education, New York: Oxford University Press; e Persell. Caroline
Hodges (1 977). Inequaltyand Education, New York: Free Press
" Entre outros. vide, Apple. Michael, & King. Nancy (1977), CurriculumInquiry VI (4). pp 341-358; Jackson, Philip (1967).
Life in Classroorns. New York: Holt Reinhart & Winston; Young. Michael, & Whitty. Geoff (eds.) (1977). Society, 5rale
and5chooling. Guilford. Falmer Press. e Anyon. Jean (1980). "Social Class and Hidden Curriculum of Work", Thelour-
na1 o f Education CLXII, pp. 67-92
Resistência e contradições na classe, cultura e Estado +

na secção anterior deste capítulo significa que devemos contestar um


pressuposto particular - o da passividade. O pressuposto em causa tende
a ignorar que os estudantes, tal como os tabalhadores que previamente
examinei, agem criativamente através de formas que contradizem, habi-
tualmente, as normas e princípios que perpassam a escola e o local de
trabalho. De uma forma mais analítica, as instituições da sociedade
são caracterizadas tanto por "contradições" como pela simples repro-
dução'".
Como demonstrei no capítulo anterior, os trabalhadores em todos os
níveis tentam criar condições informais para conseguirem atingir um
determinado grau de controlo sobre o trabalho desenvolvido para, ao
longo do tempo, estabelecerem algum sentido de poder informal e para
utilizarem as suas destezas. Ao mesmo tempo que são controlados, ten-
tam também de uma forma contínua - frequentemente através de for-
mas culturais e não políticas - articular oposições ao referido controlo.
Tais estudos apoiam empiricamente a posição teórica geral que defendi
anteriormente, que repousa no facto de que a forma económica não
determina totalmente a cultural. A esfera cultural revela u m determi-
nado grau de autonomia relativa. Em breve desenvolverei mais esta
questão.
O mesmo se aplica aos alunos, especialmente para alguns dos que
estão destinados a tornarem-se operários naquelas mesmas indústrias;
qualquer avaliação do processo de escolarização deve ter isso em consi-
deração ou correrá o risco de fracassar. Os estudantes tornam-se muito
expeditos em "tornear o sistema". Grande parte dos estudantes das esco-
las urbanas de áreas circunscritas à classe trabalhadora, para não falar
de outras áreas, adaptam de forma criativa os seus ambientes de forma a
puderem fumar, sair da aula, introduzir humor nas suas rotinas, contro-
lar informalmente o ritual da sala de aulas e, de forma geral, tentar pas-
sar o dia. Nestas escolas, muitos estudantes excedem-se ainda muito
mais. Pura e simplesmente rejeitam os currículos oculto e explícito
da escola. O professor que lecciona Matemática, Ciências, História,
orientação vocacional, etc., é ignorado o mais possível. Além do mais,
repudiam simplesmente, tanto quanto possível, o ensino oculto da

" Parauma abordagem mais alargada sobre como, inclusivamente, algumas das análises que se centram na contradiçSo
não revelam significativa profundidade vide, Wexler. Philip, "Structure, Text and Subject a Critical Sociology of School
Knowledge", m Apple (ed.), Cultural and Economic Reproduction in Educatfon.
pontualidade, asseio, obediência e outras normas e valores de raiz mais C
económica. A verdadeira missão dos alunos é sobreviverem até ao toque
da campainha14. 4
Assim, a exemplo do local de trabalho, qualquer teoria do papel da ii
escola na reprodução económica e cultural deve reconhecer a rejeição R
por parte de muitos estudantes das normas que orientam a vida escolar. si
Na verdade, a referida rejeição dos currículos oculto e explícito oferece ci
um dos princípios mais significativos a partir do qual podemos analisar
o papel das instituições educativas na reprodução da divisão social do
trabalho e da desigualdade nas sociedades capitalistas.
I i:

Si
Na sua maioria, o modo como as escolas funcionam para produzir de tc
alguma forma o conhecimento e os agentes para o mercado de traba- t 11
lho encontra-se relacionado não propriamente com uma correspon- P(
dência forte e inflexível entre as características que as empresas ca
supõem desejar da parte dos seus trabalhadores e os valores que a re
escola ensina, mas, pelo menos no que se relaciona com determinados sc
segmentos da classe trabalhadora, com uma rejeição, por parte dos aZ:
próprios estudantes, das mensagens da escola e inclusive dos currícu- at
10s mais criativamente elaborados. Análises em torno desta rejeição
podem facultar-nos pistas que nos ajudem a desenvolver a compreen- Co

são das "funções" sociais da escola e dos valores por si promovidos. Só


com uma compreensão mais sólida sobre o que as escolas, efectiva- do
mente, fazem podemos abordar a série de reformas que vêm sendo
sugeridas. Todavia, como é que conseguiremos descobrir isso? Há que
entrar nas escolas e verificá-lo em primeira mão. Há que descobrir os
- esc
da

.ie
significados, as normas e os valores que os estudantes, professores e
'e)
outras pessoas experienciam nas escolas. Só após esta etapa podemos
nt
então constatar as hipóteses de mediação que existem "entre" o sector
económico da sociedade e as outras instituições. Em essência, a escola
'L11
torna-se numa instituição fundamental para analisar as relações e
t
tensões dialécticas entre as esferas económica, política e cultural. E a
;c
escola é o palco para desenvolver tais relações e tensões tal como
de
Willis, Everhart, McRobbie e outros têm sublinhado.

l4 Habitualmente. isto assume a forma de uma negociaçáo cínica entre professores e alunos. Vide. McNeil. Linda (1977). rst
"Economic Dimensions of Social Studies Curriculum. Curriculum as Institutionalized Knowledge". Tese de doutora- -'a
mento náo publicada. Madison: University of Wisconsin - Madison

160 1 =I
Resistência e contradições na classe, cultura e Estado ig

Classe, cultura e trabalho generalizado


Examinemos, antes demais, o trabalho estimulante de Paul Willis. As
questões cruciais que coloca relacionam-se com a formação de aspectos
importantes da ideologia operária e como surge recriada tal hegemonia.
Resumindo, P. Willis inicia a sua análise com uma questão em muito
semelhante à que nos tem preocupado. Como é que a ideologia e a
classe operam actualmente nas escolas? Quais as ideologias dominantes
t de que formas? Só há reprodução? Contrariamente a um determinado
grupo de teóricos da reprodução que defendem que as formas ideológi-
cas da sociedade capitalista são de tal forma poderosas que chegam a ser
totais, Willis sugere algo ligeiramente mais optimista. Para Willis, não
obstante o aparelho económico e cultural de uma sociedade desigual
possuir um enorme poder para controlar as acções e as consciências de
cada um, existem "profundas oposições e tensões agudas no decurso da
reprodução cultural e social". Tal como Willis sublinha, "os agentes
sociais não são portadores passivos de uma dada ideologia, mas sim
apropriadores activos que reproduzem as estruturas existentes somente
através da luta, contestação e penetração parcial de tais estrutura^"'^.
A obra Learning to Labour é uma abordagem etnográfica de um grupo
coeso de rapazes da classe operária de uma escola secundária situada
numa zona industrial na Inglaterra. Os "rapazes", como eram conheci-
dos, constituem um grupo de estudantes que, tal como muitos dos estu-
dantes que anteriormente mencionei, passam grande parte do tempo na
m o l a tentando manter a sua identidade colectiva fazendo com que o
dia passe. De u m forma hábil, ludibriam o sistema para ganhar u m
determinado controlo sobre como passar o tempo na escola, como con-
seguir conquistar algum tempo e espaço livres e como "ter alguns
momentos divertidos". Mais importante ainda, rejeitam uma grande
parte das mensagens intelectuais e sociais da escola, mesmo que a insti-
tuição tente ser "progressista".
Estes "rapazes" contrastam com outro grupo de estudantes - os "bem-
-comportadosn, assim apelidados dado que pareciam limitar-se sim-
plesmente a sentar e ouvir. Estes aceitavam a obediência a autoridade

Willis, Learning to Labour, p 175. Assim. grande parte do seu argumento pode ser lido como um debate explícito entre
estruturalistas-marxistas, como Althusser e Nicos Poulantzas. Vide o texto de Aithusser, LOUIS."ldeology and Ideological
State Apparatuses", in L. Aithusser (1971). Lenin and Philosophy and other Essays. London: New Left Books.
pp. 127-186; e Poulantzas. Nicos (1975). Classes in Conternporay Capitakm, London. New Left Books, p 19.
educativa, o conhecimento técnico, as classificações e os certificados.
Quase tudo o que se relaciona com os "bem-comportados" é rejeitado
pelos "rapazes". As roupas e os cortes de cabelo dos "bem-comporta-
dos", a conformidade quer dos valores quer do currículo da escola, as
relações afáveis com os professores, tudo isto são atributos de u m
mundo que os "rapazes" rejeitam. Tal mundo não é real; revela pouca
semelhança com o mundo do trabalho com o qual se familiarizam,
com a forma de sobrevivência económica numa comunidade industrial,
com a rua. Em vez disso, viram-se para "o mundo adulto, especifica-
mente o mundo do operário adulto masculino como manancial de
materiais para a resistência e exclusão"'~Para os "rapazes", a "vida
real" necessita de ser constrastada com a "adolescência oprimida''
representada pelo comportamento tanto dos professores como dos
"bem- comportado^"'^. Quer se trate das relações aceites pela escola, do
ensino formal daquilo que a escola considera como sendo conheci-
mento curricular legítimo, quer das normas que gerem o próprio edifí-
cio escolar, tudo é interpretado, não só como oportunidades, mas como
desafios para aumentar a mobilidade individual no recinto escolar, para
se encontrarem uns com os outros ou, basicamente, para passarem um
momento alegre.
Todavia, o que é que acontece relativamente a determinadas particula-
ridades do currículo formal que tendem a ser directamente "relevan-
tes"? Nem mesmo algo como a educação vocacional ou até currículos
que lhe são associados parece ter melhor sorte. Muito embora o currí-
culo escolar tente descrever postos de trabalho, oferecendo oportunida-
des de mobilidade, para gratificação pessoal, os "rapazes" não irão ter
acesso a nada disso. Na verdade, já experienciaram o mundo do trabalho
a partir do trabalho levado a cabo pelos pais, pelos seus próprios conhe-
cimentos, e nos próprios empregos em "part-time". Na verdade, tal
experiência contradiz as mensagens da escola que são assim vistas de
uma forma cínica. Apesar de possuírem uma vaga consciência em rela-
ção a essa matéria, os "rapazes" já "sabem" que estão destinados a um

l6 WIIIIS, Learning to iabour, p 19.


"Num outro espaço critiquei Willis por partir do pressuposto que os "bem-comportados" e as raparigas com as quats c
rapazes interagem são, na realidade, totalmente complacentes Vide Apple. Michael (1979). "What Corresponden .
Theories of the Hidden Curriculum Miss", The Review o f Education V. pp 101-112. Este artigo é a base da parte c
capitulo em que nos encontramos. Clarificarei ainda mais esta analise na abordagem que em breve efectuarei a inves.
gaCão de Everhart e de McRobbie.
ResistE.nciae contradiçóes na classe, cultura e Estado

futuro de trabalho generalista. Assim, o trabalho não surge como algo


resultante de uma escolha efectiva (isto é, em essência, um constructo
da consciência de classe média). Pelo contrário, a maior parte dos
empregos semiqualificados e manuais são os mesmos. A escolha é relati-
vamente desprovida de sentido. Na mente dos "rapazes", praticamente
todo o trabalho surge "orientado pela incontornável necessidade ime-
diata de dinheiro, pelo pressuposto de que todo o trabalho é desagradá-
vel e de que o que realmente importa é o potencial que as situações de
trabalho apresentam para a construção do 'eu' e particularmente para a
expressão masculina, diversões e 'di~ertimentos""~.Tudo isso é apren-
dido criativamente na cultura informal da escola - aquilo que Willis
denomina por cultura contra-escolar.
Assim, o culturismo, a masculinidade e o trabalho manual estimulam
as oportunidades de confronto, não propriamente do "mundo falso" da
escola, mas da existência diária efectiva que os "rapazes" reiteram. Tal
processo de afirmação e rejeição fornece um dos conhecimentos mais
importantes relativamente ao papel social reprodutivo da escola.
Ao rejeitar o mundo da escola, ao rejeitar o que os "bem-comporta-
dos" fazem, os "rapazes" rejeitam também o trabalho mental. Enten-
dem-no como efemininado, como não sendo suficientemente físico. As
sementes da reprodução repousam exactamente nesta rejeição. As dis-
tinções estipuladas e vividas pelos "rapazes" contêm uma forte dicoto-
mia entre o trabalho mental e o manual. O primado do físico, por um
lado, e o desprezo da "aprendizagem livresca" mental, por outro, provi-
denciam um elemento importante na recriação da hegemonia ideoló-
gica das classes dominantes.
Como é que isso acontece? Tenha em consideração a seguinte questão.
Em geral, como tivemos oportunidade de constatar, um dos princípios
orientadores da articulação das relações sociais na economia é o progres-
sivo divórcio que se estabelece entre o trabalho físico e o trabalho men-
tallg. Há trabalhadores que operam com máquinas, que trabalham com as
mãos, ou que realizam trabalhos menores de escritório, e há aqueles tra- ' 1
salhadores que planificam e reflectem. Sempre que possível, separa-se a
2lanificação da execução, de forma que cada processo possa ser mais bem ,I
1 estandardizado e controlado. Com efeito, ao rejeitar o trabalho mental, os

1 =rning TO Labour, p 1 DO
Braverrnan, Harry (1974) Labor and Monopoly Capital New York Monthly Review Press
"rapazes" alimentam a diferença que se encontra no âmago das relações
sociais de produção. No entanto, tal não pode ser visto como um acto uni-
lateral. Existem, na verdade, pontos fortes e fracos - paradoxo e contradi-
ção - na actuação dos "rapazes" relativamente a essa diferença.
Com Willis, podemos utilizar duas grandes categorias para analisar as
contradições e os paradoxos da vida destes estudantes e da classe econó-
mica que representam: penetração e limitação20.A penetração refere-se
aos casos em que os estudantes desenvolvem respostas relacionadas
com a escola e com o trabalho, descrevendo a realidade desigual que
enfrentam. Tal rejeição de uma significativa parte do conteúdo e da
forma do dia-a-dia da vida educativa repousa na compreensão, quase
inconsciente, de que, enquanto classe, a escola não os deixará progredir
muito mais para além do espaço onde se encontram. Na verdade, a cul-
tura que os "rapazes" criam dentro e fora da escola constitui uma ava-
liação muito realista das recompensas da obediência e do conformismo
que a escola procura extrair dos jovens da classe trabalhadora. Na linha
de estudiosos como Bernstein e Bourdieu, para Willis o capital cultural
veiculado nas escolas assegura o sucesso dos jovens que pertencem aos
grupos dominantes da sociedadez1.O repúdio que os "rapazes" revelam
perante as ideias das classificações, dos diplomas e da submissão penetra
quase no âmago de tal realidade. O conformismo pode ajudar o indiví-
duo (mas, repito, não ajuda a classe trabalhadora em geral); mas os
"rapazes" conferem muito mais relevo ao seu próprio grupo informal e
não ao conformismo do modelo de realização individual representado
pela escola. Deste modo, penetram na ideologia do individualismo e da
competição que sustenta a economia.
Tal penetração não é, decerto, uma opção consciente, uma escolha
explícita representativa da solidariedade ideológica do movimento da
classe trabalhadora. Antes, é uma resposta às condições vividas dentro e
fora da escola, às condições vividas pelos "rapazes" em casa, na fábrica, no

'O Novamente. sou prudente no uso de um conceito como penetraçso dado o papel que as metáíoras sexistas desempe-
nham na organtzação da Iinguagem Todavia. continuarei aqui a empregar os próprios termos de Willis Tal cor
Bisseret recentemente demonstrou, as relacóes de genero podem bem ser reproduzidas no sistema referenc -
codificado na Iinguagem Vide Bsseret, Nicole (1979). Education, Class Language and Ideology, London. Routledgt .
Kegan Paul
" Bourdieu, Pierre. Passeron, Jean Claude (1977) Reproduction in Education Society and Culture Beverly Hills Sao
Publications, Bernstein, Basil (1977) C/as, Codes and Control, volume 3. London Routledge & Kegan Paul, App -
Ideology and Curriculum, Bernstein, Basil. "Codes, Moral Ties and Cultural Reproduction- a Model, in Apple, Cu1tu.-
and Econornic Re~roductionin Education
seio da cultura contra-escolar e noutros espaços. É uma resposta da cul-
tura informal as condições ideológicas e económicas e as tensões que
7
Resistência e contradi(6es na classe, cultura e Estado

enfrentam. E apesar de incluir a hipótese de uma consciência económica


e política, permanece relativamente desorganizada e desorientada.
Todavia, o conflito entre a cultura da classe trabalhadora dos ('rapa-
zes" e a da escola revela ainda uma outra face, que é apropriadamente
denominada por limitações. As penetrações culturais dos "rapazes" são
reprimidas e impedidas de progredirem (e, paradoxalmente, muitas
vezes coloca-os ainda mais numa economia desigual) pelas contra-
dições inerentes as acções que desenvolvem. A título de exemplo, e tal
como salientei anteriormente, ao rejeitarem o trabalho mental, refor-
çam a cesura entre o mental e o físico. Um outro exemplo é a forma
como os '(rapazes" tendem a tratar as meninas e as mulheres. O tra-
balho mental para eles é efemininado; desta forma, ao preferirem o
trabalho manual, afirmando assim a sua própria subjectividade, afir-
mam também uma divisão sexual do trabalho. Nas próprias palavras de
\Villis:
"Podemos aqui constatar a profunda, não intencional e contraditória
importância da instituição escola. Aspectos da ideologia dominante
são nelu informalmente derrotados, contudo, tal derrota acaba por se
sobrepor a estrutura mais ampla de forma mais inconsciente e natu-
ral det~idoa sua difícil vitória (de Pirro). O capitalismo pode conduzir
à derrota do individualismo no seio da classe trabalhadora, mas não a
sua divisão. O individualismo é penetrado pela cultura contra-escolar,
todavia, na realidade, produz divisão."22

Resumindo, a ideologia do individualismo é "derrotada", implicando,


no entanto, o aumento do poder das divisões económicas e sexuais mais
subtis e importantes. Convém verificar que, neste caso concreto,
nenhum modelo simplista de determinismo económico ou de corres-
pondência poderá fornecer um quadro teórico explicativo. A reprodução
acorre ao nível cultural dos "rapazes", quer por intermédio da contradi-
g o , quer através da autonomia relativa.
1 Será que é isso que a escola conscientemente pretende? Provavel-
mente não. Nem tão-pouco pretende outros resultados produzidos
de forma latente. Neste contexto, as crenças educativas e as práticas

Willis, Learning to Labour, p. 146


pedagógicas de muitos educadores actuam também de forma paradoxal.
Por exemplo, temos tendência para traçar determinados elementos de
uma dada pedagogia como sendo eficazes em "atingirem" os estudantes
com índices elevados de insucesso em ambientes mais tradicionais de
sala de aula. Cada vez mais, a variedade dos materiais curriculares, con-
ferencistas convidados, filmes, professores mais interessados, maior
autonomia dos estudantes, etc., são, frequentemente, entendidos como
respostas a uma educação mais agradável e recompensadora para os
estudantes.
Se conseguíssemos que estudantes como os "rapazes" ouvissem e
aprendessem com base em programas mais bem elaborados, então
poderíamos ajudar uma grande parte deles a conseguirem empregos
mais gratificantes, aumentando o espectro de mobilidade de muitos
deles (e, no decorrer do processo, legitimando a economia e o aparelho
educativo). Contudo, os valores tácitos que se encontram subjacentes às
escolas estão em total desacordo com os dos "rapazes".
O que realmente parece estar a acontecer é que os métodos de
algum modo mais progressistas estabelecem limites, permitindo que
os estudantes desenvolvam no quotidiano escolar um conjunto de
temáticas e atitudes da classe trabalhadora que lhes dão força e podem
actuar contra os valores ideológicos representados pela escola. Resis-
tência, subversão da autoridade, iludir o sistema, criar diversões e pra-
zer, formar um grupo informal que se opõe às actividades veiculadas
pela escola, tudo isto é provocado, especificamente, pela escola, muito
embora seja exactamente o oposto daquilo que é pretendido pelos
administradores e professores. Assim, se os trabalhadores são permu-
táveis e o próprio trabalho é indiferenciado e geral, parecendo assim
existir muita semelhança de emprego para emprego, a escola desem-
penhará um papel preponderante ao apoiar os "rapazes" no desenvolvi-
mento de mecanismos de penetração em relação a essa situação. Toda-
via, paralelamente, as limitações são claras, limitações que de uma
forma igualmente clara acabam por prender tais jovens da classe tra-
balhadora a um mercado de trabalho, preparando-os para um trabalho
geral e estandardizado.
Esta questão é essencial e precisa de ser um pouco mais desenvol-
vida. Tal como salienta Harry Braverman, na sua investigação excepcio-
nalmente importante relacionada com o papel das abordagens técnicas
e administrativas que o capital usa na produção económica, o uso do
166 .
I Resistência e contradições na classe. cultura e Estado

série de exigênciasz3.Em primeiro lugar, o processo de trabalho em si


deve ser realçado, intensificado e tornado mais rápido. Em segundo
lugar, o controlo deste processo deve ser retirado aos trabalhadores.
E em terceiro lugar, para criar um modo de produção ainda mais efi-
ciente, há que fragmentar as destrezas e habilidades complexas em
componentes menos complexos e, posteriormente, estandardizá-10s.
Assim, em geral (muito embora este aspecto varie de acordo com o
ramo de indústria e o "nível de ocupação" no local de trabalho), à
medida que se centraliza e racionaliza mais o controlo e à medida que
aumenta o espectro e o ritmo da produção, exige-se também um tipo
de trabalhador diferente. Torna-se assim essencial ter menos trabalha-
dores qualificados e permeáveis a um maior grau de sistematização.
Torna-se igualmente muito importante a existência de grupos de pes-
soas que estejam aptos a lidar com um ritmo de trabalho mais intenso
e que sejam suficientemente flexíveis ao intercâmbio entre os proces-
sos de trabalho estandardizados. O que não se precisa é de uma ideolo-
gia profissional com a sua concepção de controlo pessoal do trabalho,
de orgulho com o próprio trabalho, ou de um sentido pessoal da activi-
dade no trabalhoz4.
Neste caso, pode-se observar como determinados segmentos de uma
iorça de trabalho podem ser produzidos de uma forma não mecânica.
Com efeito, como tivemos oportunidade de observar, não existe necessa-
riamente uma reciprocidade entre as necessidades económicas e sociais
da produção capitalista e a imposição de tais exigéncias aos estudantes
nas escolas. Pelo contrário, a resposta cultural desses estudantes é com-
plexa, dando-lhes força e preparando-os para empregos que Ihes estimu-
larão muito pouco o orgulho ou as habilidades.
Esta parte do argumento que envolve o papel da escola e da cultura

reprodução da divisão social do trabalho pode ser aferida na seguinte

que tive oportunidade de analisar no capítulo 2 Vide, também. Noble, David (1971). America by Design- Sc~ence,
iechnology and the Rise o f Corporate Capitalism, New York. Alfred Knopf.

167
"Os processos culturais e institucionais [das escolas] - considerados
no seu todo - tendem a produzir grande número de trabalhadores que
se aproximam deste tipo. A natureza das 'penetrações parciais' que
observamos permitem, precisamente, desvalorizar e desacreditar ati-
tudes mais antigas em relação ao trabalho, sentimentos de controlo e
sentido no trabalho. Sob determinados aspectos, e em relação ao capi-
tal monopolista, tais desenvolvimentos são profícuos, possibilitando a
oferta de trabalhadores instrumentais, flexíveis, desiludidos, 'perspica-
zes: desqualificados mas bem socializados, necessários para integra-
rem os crescentes processos socializado^."^^

Neste caso, e tal como tivemos ocasião de reparar, opera-se uma verda-
deira contradição. A manutenção da economia capitalista implica que
não se deve exagerar na rejeição tanto das atitudes antigas em relação ao
trabalho, como das destrezas antigas. Se os trabalhadores rejeitam o tra-
balho moderno, ou têm uma compreensão completa da falta de sentido
da maior parte do trabalho que são chamados a desenvolver, tal pode
facilmente degenerar numa falta de lealdade e numa erosão de motivação
para trabalhar num mundo industrial cada vez mais centralizado e racio-
nalizado. A necessidade que o monopólio moderno tem de uma força de
trabalho menos estática e menos qualificada pode também resultar num
grupo de trabalhadores "permeáveis a perspectivas políticas críticas de
massas", sobretudo nas épocas de acentuada crise económica. De que
forma este sentido crítico da realidade do mundo do trabalho, protagoni-
zado por alguns trabalhadores, é impedido de se transformar num sen-
tido de solidariedade, numa perspectiva económica e política relacionada
com a sua própria falta de poder? É exactamente aqui que a escola
desempenha um papel importantíssimo. Com efeito, pese embora a cul-
tura informal de estudantes como os "rapazes" lhes faculte penetrar
quase no âmago dessa realidade, tal cultura contra-escolar por eles
gerada de certa forma actua também contra eles próprios. Em última
instância, acabam por se tornar nos trabalhadores exigidos por uma eco-
nomia desigual, mais habilitados para enfrentar o poder no local de tra-
balho, revelando com ele algumas aparências, mas que, em última aná-
lise, aplicam categorias e distinções que são, em essência, aspectos da
hegemonia ideológica exigida pela economia que começaram a penetrar.

25 Willis, Learning to Labour. p 146


I Resistência e contradições na classe, cultura e Estado :

Classe, cultura e mobilidade da classe trabalhadora


Até agora tenho-me centrado nos estudantes cujas origens numa
determinada comunidade industrial e num dado segmento da classe tra-
balhadora se reflectem ao longo das suas experiências. Apesar de tudo,
obviamente os "rapazes" não são os únicos estudantes existentes nas
escolas. Nas zonas operárias, tal como Willis admite, grande parte dos
alunos são membros daquele grupo amorfo que os "rapazes" denomi-
nam por meninos bem-comportados. Podem ser filhos de pais ligeira-
mente acima da condição média económica, mas são mesmo assim
parte integrante da classe trabalhadora.
O que é que se passa com estudantes como os bem-comportados? Será
que os alunos da classe trabalhadora, que, contrariamente aos "rapa-
zes", parecem, de algum modo, aceitar as formas de conhecimento, os
processos de certificação e a ética da mobilidade, se limitam simples-
mente a sentar-se e a ouvir de forma passiva? Encontrar-se-á a funcionar
também, neste caso concreto, uma forma cultural complexa e contradi-
tória? Ao que parece, a investigação mais recente parece apontar exacta-
mente para tal possibilidade. Com efeito, o caso dos "rapazes" da escola
secundária inglesa mencionados no estudo de Willis permite estabelecer
um paralelismo em relação aos estudantes dos Estados Unidos, muito
embora as especificidades de reprodução de classe, de certa forma, não
sejam tão explícitas mercê de uma história diferente e de uma articula-
@o mais complexa entre Estado, educação e economia. Neste contexto,
os estudantes participam novamente na reprodução contestada do sis-
tema material e ideológico de que são parte integrante. Tal como assi-
nala Robert Everhart, num estudo efectuado a uma escola secundária
frequentada, predominantemente, pela classe trabalhadora, o mundo
cultural desses jovens, como os bem-comportados, recria, assegura e
contesta também as formas hegemónicas predominantes da sociedade
cm geral, mas, repito, não de uma forma mecanicistaZ6.
Examinemos esta questão mais minuciosamente. Muito embora se
possa ficar com a impressão de que os referidos jovens pertencentes à
ilasse trabalhadora são sujeitos passivos que aceitam as mensagens
ideológicas formais da escola, o facto é que decididamente constatamos
algo de mais complexo. E, como no caso dos "rapazes", a complexidade
cstá repleta de penetrações e de limitações. A visão que podemos ter

- Everhart. The In-between years

-
destes "miúdos" (tal como Everhart os denomina) a medida que reali-
zam o seu trabalho, respondem as tarefas escolares e, basicamente,
apreendem normas de submissão e de relativa docilidade que lhes per-
mitirá assumir uma posição concreta no mercado de trabalho, não é tão
objectiva quanto julgamos.
Como o comprovam muitos outros estudos, a maior parte do tempo
que os referidos estudantes despendem na escola não é gasto em "tra-
balho" (naquilo a que os professores pensam ser o propósito da
escola), mas na geração de uma cultura vivida específica - falar sobre
desporto, discutir e planear actividades exteriores a escola - com ami-
I gos, falando sobre coisas "não académicas" que efectuam na escolaz7.
Tal como os "rapazes", grande parte do tempo é despendido no sentido
de encontrar mecanismos para "matar o tempo", tornar as aulas mais
interessantes, ganhar uma determinada margem de controlo sobre o
padrão das interacções quotidianas que é tão estandardizada na escola.
Na verdade, como revela Everhart, praticamente metade do tempo
passado na escola relaciona-se não com ['trabalho", mas com essoutras
actividades.
Contrariamente aos "rapazes", a maior parte destes grupos de miúdos
cumpriam, efectivamente, as exigências veiculadas pela escola. Faziam-
-no "não obstante um interesse profundo pelas suas próprias actividades
e da forma, de certo modo ambivalente, como lidavam com tudo o que
se relacionasse com o campo académico". Todavia, dada a sua abrangên-
cia e natureza burocrática e dada a grande quantidade de estudantes
com os quais a escola tinha de lidar, na verdade a escola exigia relativa-
mente pouco de tais estudantes. De facto, muitos deles podiam comple-
tar o trabalho exigido em muito pouco tempo (ou podiam copiar, e
copiavam, com facilidade, por outros), sobrando assim uma grande
quantidade de tempo para realizarem actividades culturais colectivas.
Os estudantes entregavam a escola, apenas, o mínimo exigido, nada
mais do que issoz8.
O mesmo acontece também em relação à conduta. Registavam-se não
só casos esporádicos de desrespeito para com um determinado professor
ou membro afecto à administração da escola, como também eram escas-

" /bid,-p. 1 16.


'' Ibid, P 213.
Resistência e contradiçóes na classe, cultura e Estado

sas as evidências de actos de delinquência ou v a n d a l i ~ m o As


~ ~violações
.
explícitas aos códigos da escola eram admissíveis caso não implicassem
um risco elevado para os miúdos. Apesar de faltar as aulas, matar o
tempo, envolver-se em lutas, proferir palavrões, beber e drogas fossem
parte integrante do mundo cultural de muitos dos miúdos, a maioria
revelava notas medianas ou boas. Contudo, tal não significa que aceita-
vam por completo a ideologia formal ou o currículo oculto veiculados
pela escola. Pelo contrário, parece sim indicar que uma parte significa-
tiva desses jovens consentiam o conjunto formal de crenças e práticas
como "o preço a pagar pelo desenvolvimento da sua própria activi-
dadeM3O.
Mesmo os estudantes cuja ligação com a classe social e as expectativas
familiares se apoiava no conceito de que se devia ter um bom desempe-
nho escolar, ter amigos e divertir-se era, frequentemente, mais impor-
tante do que lutar por uma média muito alta na avaliação efectuada na
escola"'.
A sua mensagem parecia encontrar-se nestes termos. Na rotina diária
da escola, satisfazemos as exigências mínimas requeridas pela institui-
ção, tentando manter tais requisitos no seu mínimo possível - e, simul-
taneamente, o grupo estrutura a sua própria agenda. Esta agenda cen-
trava-se em torno da resistência às regularidades da vida escolar
organizada e na criação de formas de oposição que, habitualmente, con-
tradiziam as ênfases da prática educacional formal. Novamente, a reali-
zação individualista, as competências técnicas e a ideologia de indivi-
dualismo que atravessam as características organizacionais da
instituição são contrariadas pela vida cultural dos estudantes, no qual os
constantes esforços desenvolvidos para manter um humor de grupo,
"arreliar os professores", ter respostas comuns e manter a coesão
perante práticas individualizadas da escola eram os elementos dinâmi-
cos que conduziam as vidas dos miúdos.
Para os estudantes desta escola secundária, dado a escola definir o que
é conhecimento legitimo, quais as estratégias mais apropriadas para o
obter, como devem ser tomadas decisões no seio da própria escola, e
dada esta definição que percorre a instituição, restam duas opções

T l b i d , p 218
I b ~ d p. 220
Ibid, p 260
(muito embora, naturalmente, não sejam decisões conscientes). Uma
delas, enquanto estudante, é aceitar tal definição e permanecer aborre-
cido a maior parte do tempo. A outra é encontrar brechas no controlo
organizacional, explorá-las para assim manter alguma margem de poder
sobre a vida diária. Caso a rejeição explícita das mensagens ideológicas
da escola, do seu conhecimento e autoridade seja muito arriscada,
podem usar-se as fissuras existentes, desenvolvendo-as sempre que pos-
sível, ou inclusive criando-as, caso não existam.
De facto, os estudantes mais bem sucedidos em mediar as exigências
impostas pelo trabalho mínimo e em explorar as referidas cesuras eram
vistos pelos colegas como modelos. Desta forma, a maioria dos estu-
dantes mais bem vistos perante os seus colegas eram os que combina-
vam dois atributos, importantes para perceber a ideologia e as suas
contradições numa situação deste género. "Os miúdos que eram 'esper-
tos' (ou seja, que conseguiam boas notas e que pouco faziam)" pare-
ciam ser os que se destacavam aos olhos dos colegas. Se fosse possível
obter um bom desempenho escolar com o mínimo de esforço e mesmo
assim ter tempo para a paródia, isso significava sucesso32.Assim,
o estudante ideal parecia aceitar os objectivos e procedimentos da
escola, mas ao mesmo tempo utilizava-os com propósitos próprios que,
frequentemente, eram profundamente opostos aos veiculados pela ins-
ti tuição.
Reparem no que se está aqui a passar. Muito embora os miúdos exer-
çam nitidamente uma boa dose de poder informal no seio da escola - ao
matar tempo, arreliando os professores, etc. - tal como os "rapazes",
tanto participam das ideologias hegemónicas como as reproduzem, pelo
menos parcialmente, quando de facto estas ideologias podem não ser
nada benéficas. Nas palavras de Everhart:
"Enquanto forma de conhecimento, enquanto sistema cultural não
muito distinto de padrões semelhantes registados em outros contex-
tos, o excercício do poder desta forma indica como as formas cultu-
rais são frequentemente reprodutivas e como os participantes, atra-
vés da oposição, na verdade participam dessa mesma prática
reprodutiva."33

'' Ibid. p. 337.


33 Ibid., p. 446.
Resistência e contradições na classe, cultura e Estado ,
i
,

Obviamente que estes jovens não são todos iguais. Para alguns alu-
nos desta escola secundária, as práticas de oposição são maciças. Pas-
sam todo o tempo sem fazer nada, "fumando droga1'ou simplesmente
"fugindo" as aulas. Tal como os "rapazes", estes alunos recriam as con-
dições do seu futuro como trabalhadores generalistas. Todavia, a um
outro plano, embora a cultura tenha um impacto diferenciado sobre
os estudantes, o futuro de todos é parcialmente "determinado" pela
cultura que os estudantes criam. Como adianta Everhart, a criação e
o surgimento destas formas culturais tendem a afectar todos os estu-
dantes:
"e serve para reforçar a interpretação de que os sistemas de relações
sociais não devem ser confrontados e criticamente analisados, mas,
pelo contrário, devem ser obstaculizados mediante tais formas de opo-
sição. E, na verdade, no surgimento das próprias formas, o significado
que transportam, o sistema básico de relacões sociais... permanece
intocável, não examinado... Parece então que /as verdadeiras formas
de conhecimento culturalgeradas pelos jovens], embora se encontrem
presentes nas formas de resistência, estão também presentes como
elementos reprodutivos do próprio sistema ao qual se opõem. Como
participantes, como criadores de tais formas culturais, os estudantes
reproduzem formas que os condenarão a expressões de reacção, mas
não desenvolverão uma oposição crítica. Nesta construção da cultura, I

os estudantes participam da elaboração dos processos reprodutivos I


que fazem com que provavelmente sofram do mesmo fado em outros
locais, sobretudo no local de t r ~ b a l h o " . ~ ~
'I
Se para alguns existe mobilidade, para muitos outros não. Qualquer
forma de resistência explícita constitui uma ameaça a essa possibilidade;
contudo não passa disso mesmo: apenas uma possibilidade. Tal é pres- I!
sentido e "sabido" na esfera cultural. Introduz-se no fulcro do mito da
economia, no entanto restringe muitos destes jovens candidatos a
empregos fabris e escriturários de baixa qualificação.
1
Em essência, quando a maioria dos trabalhadores norte-americanos 1
confessam que se pudessem voltar a escolher um novo emprego não 1
voltariam a trabalhar no mesmo, quando, no entanto, continuam a fazê- I
-lo sob tais condições - embora se esforcem - torná-lo mais suportável II
I

I I
pela via do humor e da formação de uma cultura informal de grupo - as
condições ideológicas que conduzem ao reforço de tal processo são
reproduzidas a partir da cultura estudantil, sob formas contraditórias e
complexas, em escolas deste géneroJ5.
Sob formas provavelmente menos explícitas que as dos "rapazes",
estes alunos "bem-comportados" já "sabem" as normas de sistematica-
mente "fazer ronhal' no trabalho, de procurar formas de gerar prazer e
sentimento colectivo e de ludibriar o sistema, aumentando o seu con-
trolo sobre a situação. Paralelamente, envolvem-se nas contradições,
nas limitações da sua própria resposta cultural vivida. Com efeito, a
manutenção de algum poder e autonomia na fábrica ou no escritório
não desafia necessariamente os requisitos do capital caso as exigências
mínimas de produção sejam, habitualmente, satisfeitas. Desta forma,
embora muitos destes estudantes da classe trabalhadora se encaminhem
para empregos mais qualificados ou de estatuto mais elevado que os dos
"rapazes", encontram-se também activamente envolvidos na recriação
das relações sociais que predominam no processo de produção capitalista.
Neste processo de produção o trabalho não necessita de ter sentido.
Encontra-se simplesmente ali para satisfazer as necessidades de outras
pessoas, necessidades essas que estão satisfeitas quando o trabalho está ter-
minado. Trabalha-se por dinheiro e porque o trabalho cria condições para
uma resposta cultural colectiva vivida uma vez que se está empregado. As
sementes da reprodução ideológica estão lançadas. Será uma reprodução
prenhe de contradições, que será continuamente contestada pela resposta
cultural dos jovens à medida que forem entrando no mundo do trabalho.
no entanto, permanecerá também relativamente improdutiva desde que
as penetrações na natureza do trabalho e do controlo geradas pelos jovens
da classe trabalhadora e pelos pais sejam desorganizadas e despolitizadas.

Classe e patriarcado: a cultura do feminismo


Provavelmente devido ao facto de muitos dos investigadores serem
homens, as formas culturais das jovens são interpretadas como margi-
nais. Todavia, tal como McRobbie e outros autores têm sublinhado, as
jovens parecem mais marginais porque frequentemente são "empurra-
das pela dominação masculina para a periferia da acção social", apesar

35 Ibfd. p 451 Com efeito, a existir qualquer correspondéncia estrutural seria entre o local de trabalho e as escolas e
precisamente a este nivel
Resistência e contradições na classe. cultura e Estado

de lutarem contra isso e actuarem sob formas culturalmente criativas


que, a semelhança dos "rapazes" de Willis e dos "miúdos" de Everhart,
também Ihes impõem limites e conferem poder, num momento histórico
único.
No entanto, as condições sob as quais muitas jovens pertencentes à
classe trabalhadora vivem podem ser significativamente distintas das
vividas por jovens como os "rapazes" de Willis ou os "miúdos" de
Everhart. O tempo livre de que dispõem é controlado de muito perto
pelos pais. "Pressupõe uma aprendizagem do trabalho doméstico que
começa em casa". De facto, uma das principais formas com que as
jovens conseguem ganhar o dinheiro de que provavelmente irão neces-
sitar consiste em ajudarem nas tarefas domésticas (e, naturalmente, ser-
vindo de amas de bebés)36.Não obstante as definições tradicionais dos
papéis ocupacionais das mulheres se tenham vindo a diluir, dado o pro-
cesso contínuo de contestação por parte de mulheres e homens, o facto
de quase todas as mulheres se encontrarem preparadas quer para o tra-
balho não doméstico quer para o trabalho doméstico"' revela que numa
época de crise económica - em que empregos decentes são tão escassos
- intensificar-se-ão determinados temas e formas culturais no seio da
cultura vivida das jovens pertencentes à classe trabalhadora.
A investigação levada a cabo por Angela McRobbie num grupo de
raparigas numa área predominantemente da classe operária revela-se
excepcionalmente pertinente para desenvolvermos mais detalhada-
mente esta questão. A semelhança de Willis e Everhart, McRobbie pro-
curou descrever as formas através das quais as referidas jovens da classe
operária viviam a sua classe e género como uma "forma distinta de
vida", se quiserem, prenhe de elementos de bom e de mau senso. Nesta
conformidade, a comunidade providenciava emprego para os pais numa
fábrica de automóveis e para as mães em trabalhos em "part-time" como
por exemplo empregadas de mesa ou de limpeza. Assim, estamos aqui a
descrever um outro segmento específico da classe trabalhadora.
Subjacente à preocupação de McRobbie, com a cultura repousa a cons-
ciência de que a cultura das referidas raparigas não só é "determinada"
parcialmente pela posição económica e sexual, como também corporifica

" Brake. Mike (1 980). The Sociology o f Youth Culture and Youth Subcuhures. London: Routledge & Kegm Paul. p. 142.
?'Vide Gail. Kelly and Nihlen. Ann, "Schooling and the Reproduction of Patriarchy", in Apple (ed.). Cultural and
Econornic Reproduction.
conjuntos de significados e de práticas relativamente autónomas. Está
envolvida tanto na reprodução como na contestação. Nas suas palavras,
'
devemos interpretar esta questão num plano de autonomia relativa por-
que, independentemente das formas, a cultura das jovens:
'hão [é] de forma alguma uma configuração que exista em liberdade
plena. Pelo contrário, [encontra-se] vinculada e, em parte, determi-
k nada, muito embora não de uma forma mecanicista, pela posição
material ocupada pelas jovens na sociedade; a classe social, o futuro
papel na produção, o papel actual e futuro na reprodução doméstica e
a dependência económica dos pais. E porque as culturas, apesar de se
i referirem as capacidades essencialmente e.~pressivasdo grupo em
questão, não se criam a partir do nada pelo grupo mas, em vez disso,
corporificam a 'trajectória de vida do grupo através da história, sem-
pre sob condições e com matéria-prima própria: então [é] importante
situar as jovens, logo a partida, no contexto de uma cultura pré-exis-
tente de feminilidade em que, enquanto mulheres numa sociedade
patriarcal, nasceram, sendo-lhes transmitida constantemente, ao
longo dos anos, pelas mães, irmãs, tias, avós, vizinhas, e t ~ . " ~ '

Essencialmente, o que McRobbie detectou foi que as actividades das


jovens acabam por se constituir num endosso dos papéis tradicionais
femininos e da "feminilidade", não porque Ihes são sempre "impostos"
(embora, na realidade, tal aconteça) mas como uma resposta criativa as
condições ideológicas e objectivas em que vivem. O trabalho doméstico,
casamento e filhos apresentavam-se como os três factos incontornáveis
da vida subjacentes à sua experiência e que providenciavam o horizonte
contra o qual as actividades desenvolvidas dentro e fora da escola eram
codificadas. Apenas duas coisas as "salvavam" daquilo que "sabiam",
pelas mães, irmãs, tias, vizinhas, etc., um futuro fastidioso e profunda-
mente real. Construíam amizades intensas, alicerçadas nas similaridades
da classe e do género. E, igualmente importante, tendiam a mergulhar
numa "ideologia de romance" e a actuar sob formas que acentuavam a
sua feminilidade sexual".

38 McRobbie Working Class Girls and the Culture o f Fernininity, p 97. Vide também MacDonald, Madeleine (1981
"Schooling and the Reproduction of Classe and Gender Relations", in Roger Dale. Geoff Esland, Ross Fergusson anr
Madeleine MacDonald íeds ). Educat~onand the State, volume 1, Sussex: Falmer Press; e MacDonald, Madele~r-
(1980). "Socio-Cultural Reproduction and Women's Education", in Rosemary Deem (ed.), Schooling for Wornen
Work, New York: London & Kegan Paul.
jP McRobbie. Work~ngClass Girls and rhe Culture o f Fernininity. p. 98.
Resistencia e contradicks na classe, cultura e Estado L

Em contraste com as jovens de classe operária, havia também um


grupo de jovens da classe média cujos pais pertenciam a nova pequena
burguesia, ocupando posições ao nível da gestão nas fábricas, no
governo ou desempenhando profissões liberais, etc. Estas jovens tinham
uma experiência decididamente diferente e uma forma distinta de codi-
ficar as experiências femininas e de classe. Muitas delas passavam o
tempo em centros de arte, realizando jogos, dançando ou fazendo teatro
e fazendo o trabalho da escola. Dado o "seu horizonte material muito
mais amplo", apesar de os rapazes e o romance ocuparem lugar prepon-
derante nas suas consciências, cada uma "sabia" que havia outras opor-
tunidades para além do casamento, do trabalho doméstico, cuidar dos
filhos e do trabalho monótono mal remunerado. Mesmo perante a crise
que se regista na economia, tanto as formas culturais de mobilidade no
seio da classe média, ao nível de carreiras e não apenas de empregos,
como as formas culturais emergentes de mobilidade entre as mulheres,
carreiras quer para as mulheres quer para os homens, eram vividas nas
vidas quotidianas4'. Apesar de ambos os grupos de jovens poderem
encontrar-se direccionados para o lar, as jovens da classe média encon-
tram-se orientadas para um tipo distinto de trabalho exterior a esse
espaço4'.
Em muitos aspectos, o mesmo não se passa com as jovens da classe
operária. Com efeito, à medida que as jovens da classe operária se apro-
ximam da adolescência, o seu aproveitamento escolar baixa drastica-
mente. Aumentam as pressões, não só para se conformarem com o ideal
feminino, como também para pensarem cada vez mais em rapazes, com
preocupações consequentes da sua própria atracção, popularidade, e t ~ . ~ ~
Quando as referidas pressões se articulam com a posição de classe das
jovens, estas actuam de uma forma muito poderosa.
Tal como os "rapazes" e "miúdos" retratados, respectivamente, por
Willis e Everhart, para as jovens o indicador de grande parte do
"SUC~SSO" assentava na capacidade que tinham de orientar o sistema
organizacional e curricular da escola para os seus próprios fins. Ao

'O lbid.. p. 101. Vide tambern a analise de Rayrnond Williams sobre as culturas residuais e emergentes em Marxism and
Literature.
Ibid.. p. I02 !hde lambem a interessante analise em Seccornbe, Wally (1980). "Domestic Labour and the Working
Class Household". e Seccornbe, Wally, "The Expanded Reproducton Cycle of Labour Power in Twentieth Century Capi-
talisrn", ambos, i n Bonnie Fox (ed.), Hidden n the Household Wornen's Domesric Labour Uridrr Capitabsrn. Toronto:
The Wornen's Press
lhid., p. 105
assumirem a sua oposição ao comportamento, linguagem, vestuário e
normas da classe média, estas jovens da classe trabalhadora procura-
vam transformar a escola num espaço para expandir a sua vida social,
"construindo fantasias relacionadas com os rapazes", ensinando umas
às outras as últimas danças, "ludibriando os professores", juntando-se
para fumar um cigarro, falar de música e de estrelas de rock, etc. Neste
conjunto de práticas oposicionistas, o seu próprio feminismo permitia-
lhes um distanciamento muito maior das jovens vistas como sendo
"snobs", ou seja, as jovens da classe média mais favorecidas material-
mente. De acordo com a sua perspectiva, as "snobs" da classe média, ao
aceitarem a ideologia e o conhecimento da escola, eram claramente
mais valorizadas pelos professores. Todavia, apesar de as jovens da
classe trabalhadora, de certa forma, se sentirem como um "fracasso" na
escola, o facto é que também são hostis a aplicação ao trabalho e à rigi-
dez das "snobs". Os antagonismos de classe são evidentes nos seus sen-
timentos de que as jovens da classe média não têm estilo, têm mau
gosto a respeito de rapazes, adulam os professores e utilizam uma lin-
guagem
Estas práticas de oposição são descritas por McRobbie da seguinte
forma:
"Uma das formas pelas quais as jovens combatem as características
opressivas da escola com base na classe é através da afirmação da sua
'qualidade de fêmea: pela introdução na sala de aula da sua sexuali-
dade e da sua maturidade tisica, de tal forma que obrigue os professo-
res a repararem. Assim, u m instinto de classe encontra a sua expres-
são no abandono da ideologia oficial destinada as jovens na escola
(asseio, diligência, aplicação, feminilidade, passividade, etc.) e na sua
substituição por uma ideologia mais feminina, inclusive mais sexual.
Deste modo, as jovens tinham prazer em utilizar maquilhagem na
escola, passar grande parte do tempo durante as aulas a conversar em
voz alta sobre os namorados, utilizando tudo isto com o intuito de
perturbar a aula...
Casamento, vida de família, moda e beleza, tudo isto contribuía para
esta cultura antiescolar feminina e, por conseguinte, ilustra perfeita-
mente as contradições inerentes às denominadas actividades de oposi-
ção. Afinal, não estarão as jovens a fazer exactamente o que delas se

" Ibid
Resistência e contradições na classe, cultura e Estado I

espera - e, se é este o caso, não se poderia argumentar de forma cate-


górica que a sua própria cultura é o agente mais eficaz de controlo
social das jovens, empurrando-as para uma submissão face ao papel
para o qual u m vasto leque de instituições na sociedade capitalista
!
também as orienta. Simultaneamente, expressam uma relação de
classe, muito embora de formas tradicionalmente feminina^."^^

O paradoxo é impressionante. As jovens desenvolvem formas culturais


que Ihes conferem poder. Podem, de algum modo, controlar as activida-
des dos rapazes (e os seus próprios futuros) acentuando a sua própria
sexualidade. Podem formar grupos que recriem a sua solidariedade
enquanto jovens da classe operária e que Ihes permita desenvolver e
expressar temas de resistência e de luta de classe. No entanto, as contra-
dições no seio da esfera cultural são muitas. São exploradas sexual-
mente pelos rapazes. A avaliação realista do seu futuro como mães e
esposas - de que o casamento é uma necessidade face à economia polí-
tica da área geográfica em que se encontram - leva-as a dependeram de
uma cultura de feminismo que é exploradora e que reproduz muitas das
condições nas quais se baseiam as divisões social e sexual do trabalho.
Este desempenho ideologicamente duplo da cultura vivida demonstra as
qualidades determinadas, criativas e autónomas da cultura. Os significa-
dos e práticas culturais que emergem da interacção do género e classe
introduzem-se no coração das relações patriarcais de poder e de classe,
1 limitando as possibilidades de acção, caso se encontrem, novamente,
desorganizadas. I
Assim, as dinâmicas de classe e de sexo operam conjuntamente de tal
forma que "obrigam" estas jovens a colocarem-se numa posição contra-
ditória, posição esta que é vivida diariamente. A sua relação antagónica
tanto em relação as jovens da classe média como à escola é expressa, :
habitualmente, em termos "femininos". No entanto, a experiência que
recolhem das suas próprias famílias ensina-lhes que necessariamente ;I
não se encontra o feminismo e o romantismo, ou que não são estados
duradoiros, face à realidade do papel de esposa, mãe ou trabalhadora.
I
Resumindo, "o código do romance não atinge as necessidades". Apanha- I 4

das nesta redoma não se conseguem ver a não ser como esposas e mães45.
Neste contexto, as mulheres da classe trabalhadora não são ingénuas.
Frequentemente, são muito conscientes relativamente às restrições do
casamento e dos papéis "tradicionais" que ele acarreta. Pelo contrário,
são também realistas a esse respeito. A posição económica e as condições
de opressão de género nas quais se encontram significam que uma rejei-
ção do casamento pode arrastar consigo elevados custos económicos e
emocionais. O culto do romance protege-as desses custos, confere-lhes,
na verdade, poder efectivo junto da família, enquanto reproduz em parte
as restrições dos papéis tradicionais económicos e de g é n e r ~ ~ ~ .
A análise de Mike Brake sumaria alguns destes argumentos e remete
para a dominação contínua da "feminilidade", como forma cultural
auto-seleccionada.
"As subculturas emergem como tentativas de resolução colectiva de
problemas vividos, como resultado de contradições na estrutura
social. /Elas] geram uma forma de identidade colectiz~a,a partir da
qual pode ser atingida uma determinada identidade individual fora da
que é imputada pela classe, pela educação e pela ocupação. Tal solu-
ção é quase sempre temporária e de modo algum é uma solução mate-
rial, mas sim uma solução que é resolvida no nível cultural. A s cultu-
ras jovens interagem /não de forma determinista] com as culturas
populares manufacturadas e seus artefactos... No conjunto, as cultu-
ras jovens tendem a ser uma determinada forma de exploração da
masculinidade. São, assim, machistas e /devemos] considerar os seus
efeitos sobre as raparigas... /Um] sinal distintivo da emancipação das
jovens do culto do romance e do casamento como verdadeira vocação
repousa no desenvolvimento de subculturas que explorem uma nova
forma de feminilidade. Perante o lugar material conferido as mulheres
na sociedade, actualmente, provavelmente, esta questão demorará
ainda o seu tempo."47

O desenvolvimento destas "novas formas de feminilidade" sucede-se à


medida que os actores conscientes da dinâmica de classe e de género
lutam em casa, na escola e no local de trabalho. No entanto, o sentido
global do raciocínio de Brake e da análise que efectuei sobre as jovens

'Brake, Mike (1980). Jhe Sociology of Youth Culture and Youth Subcultures. London: Routledge & Kegan Paul. p. 166.
" Ibid.. p7. Brake, na análise que efectua a literatura fundamental em torno das subculturas da classe trabalhadora e da
juventude. acrescenta que uma das razoes que levam a formaçáo de tais grupos repousa no facto de as "subculturas
tentarem recuperar elementos socialmente coesos perdidos e destruidos na cultura-padrào. combinando-os com
elementos de outros segmentos de classe. simbolizando uma ou outra das opções em confronto". p. 67.
Resistência e contradições na classe. cultura e Estado

objecto da investigação de McRobbie consiste em levantar uma questão


crucial relacionada com o modo como se deve estudar a reprodução e a
contradição na escola, na classe e na cultura. Neste contexto, a questão
não se traduz apenas em reconhecer a importância de uma determinada
perspectiva feminista na descodificação de tudo isto; nem de mencionar
ocasionalmente as mulheres na análise que efectuámos, por exemplo, ao
papel da educação na reprodução das relações de classe. Pelo contrário,
uma formação social necessita de ser compreendida como sendo consti-
tuída - ou seja, como sendo activamente reconstruída - com base nas
relações de género e de classe. Ambas, classe e género, não se encon-
tram separadas, mas articuladas entre si4'. Por exemplo, esta questão é
visível nos elementos culturais criativos dos "rapazes" descritos por Wil-
lis e das "raparigas" de McRobbie.
Em muitos aspectos, há que reconhecer que a divisão sexual do traba-
lho em que participam os jovens anteriormente referidos não resulta de
"uma divisão sexual a partir das próprias estruturas do capital". Pelo
contrário, "o capital construiu as suas próprias divisões nas divisões
sexuais já existentes". Assim, muito embora seja muito difícil separar as
relações patriarcais de género e as relações sociais capitalistas, elas não
se podem reduzir mutuamente. Bland et al. coloca a questão da
seguinte maneira: "A divisão sexual do trabalho estruturada com base
na dominação masculina é 'colonizada', 'envolvida' pelas estruturas do
capital."" Assim, o significados e as práticas ideológicas que observa-
mos nas raparigas, com todas as suas contradições, impondo-lhes tanto
limites como poder, só podem ser entendidos observando o modo como
a economia do capital, a ideologia do patriarcado e as formas culturais
da classe trabalhadora se reproduzem e se contradizem entre si.

Ser mulato, negro e pobre


Os grupos de estudantes até agora abordados pertencem a segmentos
distintos da classe trabalhadora, mas são todos brancos. Verificam-se
também padrões idênticos de penetração cultural e de limitação no seio
dos mulatos e dos negros da classe trabalhadora. Entre os padrões

a Wornen's Studies Group (1978) (ed.). Wornen Take Issue London: Hutchinson, p. 10.
e Bland, Lucy; Brunsdon, Charlotte; Hobson, Dorothy; Winship, Janice (1978). "Wornen 'Inside' and 'Outside' the Relations
of ProduRion", in Wornen Take Issue, Women's Studies Group (ed.). p. 61. "(de também Michael Apple (ed.), Cultural
and Econornic Reproductionin Education
culturais predominantes na juventude da classe trabalhadora, especial-
mente nos homens, encontra-se uma celebração da masculinidade, de
fazer por parecer o "homem viril". Isto é notório nos padrões de resis-
tência cultural dos "rapazes" de Willis e encontra-se parcialmente
reflectido na criação e recriação de uma cultura da feminilidade por
parte das "raparigas" de McRobbie. Uma outra forma, bem visível nas
escolas das áreas urbanas de ambos os lados do Atlântico, é a prática de
se "manter indiferente". Esta prática envolve a abstracção da sua posi-
ção de classe, mediante um urdido processo de afastamento expresso no
vestuário, na postura, no andar e, cada vez mais, na linguagem5'. Tal
processo cultural criativo providencia uma base importante para a con-
testação dos padrões predominantes de exploração e de dominação de
género, classe e raça.
Por exemplo, entre os jovens negros, na Inglaterra, os padrões de contes-
tação e de luta encontram-se no desenvolvimento de uma cultura de resis-
tência especificamente afro-caraíbica, em muitos aspectos semelhante a
que se verifica nos guetos dos "decadentes" centros das cidades norte-ame-
ricanas. A cultura vivida desses jovens é um indicativo subtil da "consciên-
cia" de que a cultura da escola e o conhecimento formal expressos no cur-
rículo não respondem à história ou a experiência negra. Por tal facto,
muitos estudantes readoptaram o crioulo como língua, quer como sinal de
exclusão, quer como mecanismo de solidariedade.
Uma vez que o tipo de educação que os referidos estudantes não bran-
cos recebem "conduz a uma diminuição das oportunidades gerais de
emprego e de desenvolvimento educativo" - uma educação que "repro-
duz o trabalhador jovem não branco num plano educativo e de destrezas
inferior - fala-se o crioulo como parte de um processo complexo de con-
testação e de afirmação ao nível cultural. A cultura mais individualista
da escola, agora rejeitada, age como cenário cultural contra o qual se
desenvolve a resistência linguística51.
Todavia, emerge novamente uma situação semelhante à dos "rapazes".
"miúdos" e "raparigas". O crioulo actua como um "índice vivo" da
extensão da alienação negra relativamente às normas, valores e objecti-
vos daqueles grupos de pessoas que ocupam posições mais privilegiadas
na sociedade. No entanto, e paralelamente ao "reconhecimento" claro

"Sobre estes padrões culturais vide a andlise de Brake em Sooology o f Youth Culture and Youth Subcultures.
''Ib1d.pp 118-119
Resistência e contradições na classe, cultura e Estado '

daquilo que o futuro reserva para esses jovens negros e mulatos, provi-
denciando os fundamentos para a solidariedade no trabalho, o facto é
que os condena a posições salariais baixas e de exploração, idênticas as
que conseguiriam mediante a sua escolarização. Perante isto, muitos
deste jovens pura e simplesmente rejeitam eles próprios estas posições
económicas. Contudo, e independentemente da forma como isso é cons-
truído pela direita política, tal não significa uma rejeição ao trabalho em
si, mas uma recusa em aceitar os tipos de trabalho e respectivas condi-
ções laborais oferecidas. Na sua consciência vivida sobre o que as esco-
las lhes podem oferecer. enquanto grupo que sofre uma dupla opressão
- negro, ou mulato (ou vermelho, nos Estados Unidos) e pobre -, a sua
resistência a escola e o desenvolvimento das suas formas culturais reve-
lam também uma consciência de como as escolas e o trabalho ajudam a
definir a identidade de um indivíduo. Em face disto, os jovens negros e
mulatos como os que têm vindo a ser referidos procuram, habitual-
mente, uma "identidade dignificada num mundo que lhes exibe opres-
são, rejeição e humilhação"52. Força e fraqueza são realidades vividas
diariamente desta forma.
Muito embora não tenha a intenção de entrar em detalhes, as condi-
ções objectivas em que vivem as jovens negras e mulatas da classe tra-
balhadora contribuem para a produção de ideologias contraditórias
idênticas as das jovens que tive ocasião de analisar. Elementos da cul-
tura da classe trabalhadora, de culturas específicas de género e de tradi-
ções étnicas fundir-se-ão num complexo processo de criação e determi-
nação cultural, em que uma pequena parte de tal processo pode ser
directamente relacionada, de uma forma abstracta, com as forças econó-
m i c a ~ O~ género,
~. a classe e a raça, no seu conjunto, constituirão a cul-
tura das jovens. Neste caso, também a cultura da feminilidade, cujas raí-
zes se encontram na experiência das relações patriarcais, nas quais se
construíram e se transformaram, em parte, a lógica e as relações sociais
do capital, desempenhará um papel preponderante.
Brake revela a abrangência do impacto que têm os aspectos económi-
cos da actual crise estrutural sobre estas jovens e especialmente sobre
as jovens das "minorias". Tomando como exemplo o caso da Inglaterra,

M ,pp 135-136
I' Therborn, Goran (1980) The Idedogy of Powrand the Power Idmlogy Discurso proferido na Universidade de Wisconsin.
a 17 de Outubro
embora os números não sejam muito diferentes dos que se verificam
nos Estados Unidos, Canadá e outros lugares, Brake sublinha o
seguinte:
"/É importante recordar] a relação das mulheres com a produção.
Para os jovens da classe trabalhadora tem sido difícil encontrar traba-
lho. A s minorias, em particular, têm sentido dificuldades em encon-
trar emprego, sobretudo as jovens. A 'Manpouler Semices Commission'
adianta um aumento de 120% no desemprego entre a juventude para
os cinco anos anteriores a 1977, em contraste com 45% entre a popu-
lação como um todo, especialmente para jovens negros (350%).
O desemprego feminino cresceu rapidamente entre o grupo etário dos
18 aos 24 anos, tanto para negros como para brancos, contudo, regis-
tou-se um crescimento de 30% entre as mulheres negras, contra 22%
para todas as mulheres. Perante estes números, pode-se começar a
perceber a importância do culto da feminilidade (isto é, da identidade
dominada não-trabalho)para [muitas]j0~en.s."~~

A actividade das jovens ao lidar com tudo isto e a dos jovens que tive
oportunidade de aqui analisar são um exemplo vivo da profunda comple-
xidade da esfera cultural. O bom e o mau senso coexistem. A hegemonia
ideológica é parte integrante de um terreno contestado, contestação esta
que ocorre no próprio plano cultural. Sim, as escolas podem ser espaços
onde é recriada a distinção entre o trabalho mental e manual, onde se
reproduzem as divisões de raça, sexo e classe; no entanto, ocorrem mui-
tas outras coisas. Muito embora as escolas possam fazê-lo como parte
integrante da sua actividade, em "produzir estudantes" de acordo com as
categorias de desajustamento que são, na sua maior parte, provocadas
pelas suas funções na produção do capital cultural e técnico e na repro-
dução da divisão do trabalho, ignorar o papel que os estudantes desempe-
nham nesse processo implica perder por completo o poder e as limita-
ções existentes na esfera cultural.

Compreender a reprodução
Alonguei-me um pouco documentando algo que é muito importante
para a compreensão das escolas enquanto locais de reprodução econó-
mica e cultural. Observámos o que se ganha ao se entrar nas discussões

Brake. in 50c;ology of Youth Culture and Youth Subcultures. pp. 137-1 38.
Resistência e contradiqões na classe, cultura e Estado '

relativas ao papel social da escola e, sobretudo, ao combinar-se uma


análise das relações que as escolas podem estabelecer com outras insti-
tuições sociais poderosas como um esforço para ir mais além das teorias
de correspondência com o intuito de desenvolver as intrincadas inter-
relações entre as escolas, a economia e a cultura. Um dos elementos-
chave neste caso é, obviamente, a cultura. A potência dos estudos que
tive ocasião de analisar está no seu estatuto de etnografias marxistas.
Dito de outro modo, tentam apreender uma situação concreta e fazem-
no inserindo-a num quadro mais amplo de classe e de forças ideológicas
e materiais, forças que determinam os limites e, na verdade, ajudam a
produzir os significados e práticas aí encontrados. Ao mesmo tempo que
se esforçam por providenciar explicações sociais relacionadas com o
porquê e como tais condições são produzidas, estes estudos não perdem
a riqueza e a variedade da experiência dos estudantes dessa classe. Todos
eles revelam um compromisso muito forte com a ideia de que, na aná-
lise da totalidade social vivida através desses microcosmos, o conflito de
classe é fundamental para o estudo da cultura e das instituições relacio-
nadas com a organização, selecção e transmissão económica e cultural,
tais como as escolas. O que torna este trabalho tão importante para uma
investigação da escolarização e da reprodução é o relevo claramente
articulado que confere a classe, não como uma categoria abstracta, mas,
pelo contrário, como uma experiência vivida5'.
Além disso, facto que não podemos esquecer, revelam que o verda-
deiro problema não consiste apenas em questionar a realidade social das
escolas para descobrir onde as instituições se encontram relacionadas, e
como se constituem esses conjuntos de relações, mas também onde se
encontram os elementos contraditórios e, finalmente, onde é que tais
elementos são parcialmente progressistas e não totalmente reproduti-
vos. Em essência, qualquer análise sobre o papel da escolarização na
reprodução e qualquer avaliação dos processos e resultados da escolari-
zação devem ter em consideração que o trabalho da reprodução é difícil
sendo, frequentemente, c ~ n t e s t a d oDeste
~ ~ . modo, a preocupação exage-
rada com os resultados económicos das instituições, incluindo as esco-
las - com as suas contribuições, tanto na desigualdade, como no papel
de reprodução -, tende a suprimir o facto de que estas condições [para

55 Johnson. Lesley (1979). The Cultural Critics. London. Routledge & Kegan Paul. p. 206.
16 Johnson, Richard. Histories o f CulturflTheorres o f Ideology. p 74.
- uma reprodução com "êxito"] têm que ser continuamente conquistadas
-ou perdidas - nos conflitos e lutas específicos5'.
Os estudantes para os quais dirigi a nossa atenção corporizam estas
questões. Ajudaram a reproduzir os resultados inerentemente contradi-
tórios da instituição, mas só através da luta. Vivem a classe como uma
força activa, simultaneamente criativa e limitadora.
Nesta análise, a noção de consentimento, de autocriação se assim pre-
ferirem, é importante. De facto, como Willis, Everhart e McRobbie
demonstram, há um momento de apropriação activa a operar em pro-
cessos deste género. Podemos observar a hegemonia ideológica em todo
o seu poder e contradições, na forma, por exemplo, pela qual os jovens
da classe operária no estudo de Willis, de forma literal, praticamente
celebram a sua entrada futura no trabalho manual5! Só percebendo isto
estaremos em condições de compreender completamente os resultados
produzidos pela escola.
Este ponto é muito importante. Alguém poderia contrapor que a aná-
lise que realizo descreve o processo através do qual estudantes como os
rapazes, miúdos e raparigas acabam como perdedores, o processo atra-
vés do qual eles são subtilmente determinados, a forma pela qual "a eco-
nomia controla a cultura". No entanto, convém não esquecer a própria
natureza das determinações e contradições que procurei esclarecer
neste capítulo, socorrendo-me dos trabalhos de Willis, Everhart e
McRobbie. Com efeito, a ideologia hegemónica da sociedade em que
vivemos é "profunda e essencialmente conflituosa" num determinado
número de aspectos, aspectos estes que continuarão a provocar confli-
tos que podem ter uma resolução difícil no seio das relações e fronteiras
de poder existentes. Tal como salienta Todd Gitlin, por exemplo, as for-
mas ideológicas predominantes nas economias como a nossa obrigam as
pessoas a trabalhar arduamente; no entanto, simultaneamente, tais for-
mas propõem que a verdadeira satisfação seja encontrada não propria-
mente no trabalho, mas no lazer, uma área "que ostensivamente subs-
tancia valores opostos aos do trabalhon5! Por exemplo, este conflito é
notório no caso dos "rapazes" de Willis e dos rapazes de Everhart e
constitui-se naquilo que poderia ser melhor denominado como uma

I' .
Ibid p 70.
" Ib~d. p. 75
I9Gitlin, Todd (1979). "Prime Time Ideology: The Hegernonic Process in Television Entertainrnent" Social Problems WI.
D. 264.
Resistência e contradi<õesna classe, cultura e Estado 7

contradição estruturalmente provocada. Despoletará tensões e conflitos


que, quando sentidos por um grande número de pessoas, providenciarão
penetrações na realidade social semelhantes às "vistas" por aqueles
jovens. Conflitos e contradições no seio do patriarcado e entre o patriar-
cado e o capitalismo podem levar a coisas idênticas. Saber se as referidas
tensões e conflitos não acabarão por se virar contra aqueles que os
vivem, ligando-os, assim, ainda mais completamente à economia capita-
lista e acabando por beneficiar aqueles que controlam a economia e o
capital cultural é, naturalmente, uma questão fundamental, tendo em
consideração os argumentos que têm vindo a ser tratados ao longo deste
capítulo.
Mas a compreensão de que essas tensões e conflitos se desenvolvem
em quase todas as instituições, sobretudo na escola, como tivemos
oportunidade de verificar, permite-nos uma visão essencial da realidade
que enfrentamos diariamente como educadores. Ignorá-los ou negligen-
ciar o requinte socioeconómico e cultural necessário para a sua com-
preensão, infelizmente não fará com que desapareçam.
Na realidade, mesmo que quiséssemos não poderíamos ignorá-las,
I .
pois essas contradições culturais e económicas têm provocado, actual-
mente, uma enorme quantidade de reavaliações relativas a estrutura e
I
ao controlo da educação. Na verdade, existe hoje em dia um grande
número de educadores e conceptualizadores de políticas educativas que
propõem formas de "resolver" esses conflitos e tensões. E é para um
leque de propostas para reformar os arranjos institucionais nas escolas,
que se pressupõe serem as causas dessas tensões, que nos iremos debru-
çar de seguida. Como devemos entender tais reformas? Qual deve ser a
nossa posição perante essas reformas? Serão eficazes na ajuda aos
jovens como os que têm vindo a ser descritos?

Reprodução e reforma
A questão da definição da nossa posição relativamente as reformas
propostas não é uma questão despiciente, dado que, actualmente, têm
vindo a ser propostas reformas educativas que eliminariam, argumenta-
-se, algumas das condições económicas e culturais que temos visto
serem "reproduzidas" no dia-a-dia dos estudantes do ensino básico e
secundário que analisámos. Devemos compreender o sentido de tais
reformas se quisermos rejeitá-las ou apoiá-las.
187
Não precisamos de participar na análise do papel da escola na repro-
dução económica e cultural das estruturas de classe, género e raça em
que se encontram os rapazes, meninos e meninas para compreender
que existe actualmente um intenso conflito entre outros grupos em
torno da escola. Industriais e burocratas do Estado pretendem tornar as
escolas mais eficientes de forma a satisfazerem as exigências ideológicas
e de "mão-de-obra" da economia. Os problemas fiscais provocados pela
crise económica contribuem em muito para as tentativas desenvolvidas
por essas pessoas para tornar a educação mais eficiente6". Ao mesmo
tempo, devido à crise de legitimação, verifica-se uma pressão de "baixo",
a partir de muitos dos pais de estudantes com base na classe, género,
raça e grupos de interesse com o objectivo de dotar as escolas de capaci-
dade de resposta perante as conflituosas necessidades de cada um desses
grupos.
i Poderíamos continuar indefinidamente, elaborando uma listagem das
reivindicações em termos de tempo, políticas e recursos escolares. E
poderia ser utilizada a mesma quantidade de papel listando as propostas
para alterar a forma através da qual as escolas funcionam actualmente,
de forma a corresponderem, o mais possível, a essas reivindicações con-
flituosas. Todavia, entre as propostas mais evidentes, as do género pro-
gramas com subsídios educativos e benefícios fiscais" têm provocado
/ uma enorme discussão ao nível governamental. Se as escolas concreti-
zam todos estes aspectos sociais, tal como afirmam pessoas como
Althusser, Bowles e Gintis, Apple, McRobbie, Willis, Everhart e outros, e
se não têm capacidade de dar resposta aos interesses económicos e ideo-
lógicos em competição, então, argumenta-se, devem abrir-se ao mer-
cado. Se as escolas actuam como sítios importantes de produção e
reprodução da cultura e da economia, então devolvamos o controlo, por
exemplo, aos pais. Reduza-se o controlo do Estado, entregando aos pais
subsídios educativos mediante os quais podem escolher e pagar o tipo de
educação e de escola que pretendem para os filhos. Desta forma, prova-
velmente, poder-se-á reduzir o tamanho e a natureza burocrática da ins-
tituição e torná-la mais "relevante" para grupos maiores de crianças e
pais. Aqui os pais seriam basicamente livres para escolher entre pratica-

m O'Connor, James (1 973) The FiscalCrisis of the State. New York St Martin's Press
"Argumentos mais bem estruturados sobre propostas como, por exemplo. o plano dos subsídios educativos podem
ser encontrados em Coons, John. e Sugarman, Stephen D. (1978). Education by Choice: The Case for Farnily Control,
Berkeley-University of California Press.
Resistência e contradiçóes na classe. cultura e Estado +

mente qualquer arranjo educativo e curricular (naturalmente de acordo


com determinados limites) ao pagarem directamente as escolas públicas
ou particulares. O sistema educativo tornar-se-ia um mercado regulado
pelo Estado, contudo aberto a todos. Isto eliminaria muitos dos proble-
mas que analisei anteriormente neste capítulo. Será que eliminaria?

Compreendendo a legitimação, a acumulação e o Estado


Como salientei no início deste capítulo, muitos investigadores preo-
cupados com a relação entre a educação e a sociedade mais abrangente
vêem a escola como u m aparelho ideológico de Estado. Realcei
sobretudo um elemento desta expressão - ideológico. No entanto,
um outro elemento é igualmente importante - o facto de ser um apare-
lho do Estado. Está tão inserido no senso comum que tendemos a
esquecê-lo. Todavia, como revela a recente literatura sobre o papel
do Estado na reprodução social, esquecer isso significa negligenciar
as importantes funções que o próprio Estado desempenha na manuten-
ção das relações de dominação e de exploração na sociedade. Exacta-
mente do mesmo modo como quando vimos que caso pretendêssemos
descodificar as vidas quotidianas dos estudantes nas escolas teríamos
que as relacionar com a classe, a cultura e a economia "fora" das insti-
tuições, assim também precisamos de fazer o mesmo relativamente ao
Estado. Sem isso não podemos realizar uma apreciação completa
do quadro mais amplo no qual se inserem reformas como os planos de
subsídios educativos.
Convém recordar que, como um aspecto do Estado, as escolas pare-
cem estar envolvidas em duas actividades preponderantes, entre outras.
Contribuem tanto para o processo de legitimação como para o estabele-
cimento de algumas das condições prévias necessárias à acumulação de
capital. Muito embora a escola "produza" estes resultados de formas
contraditórias, não intencionais, e contestadas, é fundamental focali-
zarmo-nos mais directamente na relação que os referidos elementos
estabelecem com o Estado, sobretudo porque as reformas que se discu-
tem são geradas a partir do seu interior.
Um exemplo que utilizei no capítulo primeiro poder-nos-á ajudar a
recordar que as duas funções do Estado se encontram frequentemente
em conflito. Como defende Randal Collins, por exemplo, o papel do
Estado na acumulação tem conduzido a uma situação em que um
11
189 i i
I!
número crescente de trabalhadores obtêm, cada vez mais, subsídios
educativos. No decorrer do processo, os próprios títulos desvalorizam-
-se6'. Por esse motivo, a legitimidade por parte do Estado neste caso
concreto da própria escola é questionada. Assim, o papel das escolas na
acumulação pode conduzir a uma superprodução de trabalhadores cre-
denciados e desafiar a legitimidade do modo como operam as escolas.
Uma das funções do Estado encontra-se quase necessariamente em con-
flito com a outra. Tais contradições serão particularmente evidentes em
épocas de crise como acontece neste preciso momento com a economia.
Uma economia infectada pela inflação, desemprego e recessões recor-
rentes precisa de menos trabalhadores credenciados. Tal como as meni-
nas, os meninos e os rapazes analisados ao longo deste capítulo, a escola
vê-se envolvida numa contradição produzida estruturalmente.
É com base neste conflito que podemos começar a compreender o
actual requisito pelos benefícios fiscais e planos de subsídios educativos.
O próprio Estado começa a perder legitimidade, dada a crise da econo-
mia e de muitas das suas principais instituições. Não pode controlar a
economia a não ser que penetre, cada vez mais, directamente na econo-
mia; nem pode, perante as condições fiscais vigentes, manter essas
outras instituições sem se imiscuir também mais directamente no seu
funcionamento diário". Isto é um paradoxo praticamente sem vencedo-
res. O Estado não necessita simplesmente de controlar aquilo que se vai
sucedendo; necessita também de consentimento. Sem esse consenti-
mento, perde legitimidade no processo. Aqui está, portanto, o paradoxo.
O próprio Estado, ao intervir directamente, é entendido como o culpado
da crise estrutural geral. Uma vez que não pode controlar um número
suficiente de variáveis - isso exigiria uma dose enorme de poder atri-
buído ao Estado, algo que a população norte-americana provavelmente
não toleraria e algo, portanto, que despoletaria a sua própria crise de
consentimento - perde parte da sua legitimidade. Isso cria as condições
para uma verdadeira crise. Enquanto o Estado, como vimos no capítulo
segundo, deve intervir cada vez mais ao nível das políticas produtivas e
distributivas da economia e tornar-se mais activo em todas as áreas
sociais, deve, em alguns casos, recuar na referida intervenção activa na
educação assegurando assim a sua própria legitimidade.

" Collins, Randall (1979). The CredentialSociety New York: Academic Press.
63 Wright, Ciass, Cris~sand the State; e Castells. Manuel (1 980). The Econornic Crisis and Arnerican Society. Princeton.
Princeton University Press.
Resistência e contradi~óesna classe, cultura e Estado "

Dadas essas funções e pressões contraditórias e esses paradoxos, como


lidará Estado com tudo isso? Pode gerar o consentimento e a legitimidade
mediante a expansão do mercado das relações sociais capitalistas e de
consumo individual e assim regular esse mercado de forma a assegurar
que se cumpra a função de acumulação. Este elemento é preponderante
para a compreensão do papel de muitas reformas ao nível do Estado.
Isto é muito complexo, contudo, vou tentar explicar sumariamente o
que significa. Os argumentos iniciais serão de certo modo economicis-
tas, contudo, posteriormente explicarei aprofundadamente como ope-
ram determinadas ideologias. Para que a economia continue a produzir
lucros e emprego e para que a acumulação de capital prossiga, o consu-
midor deve ser estimulado a adquirir mais bens individualmente. Esta é
uma das principais formas de expansão dos mercados. Ou seja, há que
reforçar a ideologia daquilo que se poderia denominar por individua-
lismo possessivo. Todavia, as ideologias não são simplesmente ideias
abstractas que se restringem às relações económicas. Tendem a mediar
todas as experiências, conjuntos de relações sociais e expectativas. E é
exactamente aqui que podemos constatar as contradições actuando. Ao
estimular uma ideologia do individualismo possessivo, a economia
"cria" uma crise na escola. A escola que, perante as condições económi-
cas e ideológicas actuais, não pode satisfazer as necessidades dos indiví-
duos e dos grupos de interesse em competição, perde legitimidade.
Nesta conformidade, o Estado, para manter a sua própria legitimidade,
deve responder de tal maneira que continue a expandir tanto as relações
sociais capitalistas como um mercado individualista num único e pre-
ciso momento. É exactamente este o lugar dos planos de subsídios edu-
cativos e de sistemas de benefícios fiscais.
A contradição é relativamente clara. De certa forma, a crise é provo-
cada pelo facto de a economia necessitar de apoiar uma determinada
ideologia de consumo ao nível individual e não ao nível colectivo.
Assim, produzem-se e consomem-se mais bens. Todavia, simultanea-
mente, libertam-se determinadas forças sociais com impacto sobre pra-
ticamente todas as esferas da vida social. Grupos particulares centrar-se-
-20, assim, de uma forma menos colectiva no consumo de todos os bens
e serviços, incluindo a educação. As necessidades colectivas gerais, por
exemplo, sobre a educação serão vistas a luz do que esta pode fazer em
benefício do próprio grupo, da própria família ou da própria pessoa,
em particular, como um direito individual. Se as escolas não podem
satisfazer tais necessidades - e, de facto, em muitos aspectos não podem
mesmo -, o aparelho de Estado será apanhado numa crise de legitimi-
dade.
Realmente, isto dificulta qualquer avaliação sobre "Onde me posicio-
narei?" e sobre o potencial progressista desse género de propostas para
reformar as escolas. Habitualmente, elas são determinadas pelo papel
contraditório do Estado. Elas abrem uma área para as relações sociais
capitalistas e de mercado que outrora - mesmo perante muitos proble-
mas existentes nas escolas - era, de certo modo, menos aberta. Elas
contribuem para uma ideologia de consumo relativamente pouco con-
testada. No entanto, como teremos ocasião de verificar seguidamente,
apresentam, na realidade, a possibilidade de intervenções pertinentes
para criar os "valores e arranjos institucionais" alternativos que mencio-
nei no segundo capítulo.

Uma nota sobre a esfera política e o discurso liberal P


P
O facto de tais reformas permitirem determinadas possibilidades
d
implica que precisamos de prudência para não as interpretar como
reflexo das necessidades económicas centradas no individualismo, como , LI
,
mero resultado de contradições económicas que se desenvolvem em ins-
tituições "superstruturais" que, em última instância, nada mais podem
fazer do que apoiar económica e ideologicamente a burguesia. Com
efeito, não quero deixar transparecer que a noção de indivíduo é uma
categoria essencialmente económica. Também é uma categoria política.
1 a; I

i
O desenvolvimento gradual do discurso em torno dos direitos indivi-
\
duais na própria esfera política tem um grande impacto na esfera econó-
i 'i
mica. Ajuda-nos a compreender o motivo pelo qual surgem as propostas
O(
de subsídios educativos e de benefícios fiscais e a razão pela qual tais
planos podem contar com o apoio de muitos grupos, incluindo os pais
E:
Jc
de estudantes da classe trabalhadora como meninos, meninas e rapazes.
\
Gintis, ao analisar o lugar histórico que a ideia dos direitos individuais
o
(o que denomina por discurso liberal) teve nos conflitos de classe,
i
avança com uma tese muito provocante:
nr
'H luta de classes no capitalismo desenvolvido do século XX tem sido
realizada utilizando instrumentos do discurso do liberalismo, o
discurso dos direitos naturais. Tais instrumentos, embora apropriados
-
-
G

pela burguesia, têm vindo a ser transformados,no decorrer da luta, em


armas políticas eficientes e potencialmente revolucionárias. A refe-
rida transformaçüo tem-se verificado essencialmente através da
expansao da esfera na qual os direitos da pessoa devem ser aplicados
e da restrição da esfera na qual devem funcionar os direitos de pro-
priedade. Como resultado, podemos dizer que o discurso liberal,
longe de ser "burguês",é, em si, produto da luta de classes. Em parti-
cular, o discurso liberal não corresponde a qualquer visüo integrada
do mundo e tem sido usado, tanto pelo capital, como pelos trubalha-
dores, com fins bem distintos. No entanto, o discurso liberal não é
neutro, o conteúdo das reivindicações de classe tem sido moldado por
esses instrumentos de discurso e pela sua fransfonnação no decorrer
do tempo."64

Para Gintis, a utilização dos direitos da pessoa contra os direitos de


propriedade representa um dos aspectos mais característicos das classes i
populares. As claras e insistentes exigências dos trabalhadores pelo
direito de voto, com base na pessoa e não na posse de propriedades, é
disso exemplo. Um outro é a luta dos trabalhadores pelo direito de se I
organizarem contra as entidades empregadoras. Um terceiro, "e mani-
festamente inatingível ao abrigo do capitalismo", é o direito ao I
emprego. Podemos ainda encontrar outros exemplos: a reivindicação de
, que um tratamento justo e um procedimento jurídico apropriado se
apliquem às transacções de mercado; a luta do movimento das mulheres
pela igualdade de tratamento, "numa tentativa de enfraquecer o livre
Il
exercício dos direitos de propriedade por parte de entidades empregado- I
ras discriminatórias"; a acção dos trabalhadores apoiando as condições
ocupacionais e de saúde decentes, que têm sido procuradas utilizando o
I
Estado para regular e restringir os direitos de propriedade dos emprega-
dores; e, finalmente, o objectivo de igualdade de oportunidades. que é
"simplesmente a aplicação do conceito liberal de igualdade perante a lei,
contudo aplicado agora a própria economia ~apitalista"~~.
Assim, o domínio crescente dos direitos individuais sobre os de pro-
priedade tem provocado uma luta e uma exigência da "extensão da uida

I
Gintis, Herbert (1980). "Cornrnunication and Pditics: Manisrn and the 'Problern' of Liberal Dernocracy", Sociaiist
Review X, p 191. hfase de Gintis.
65 Ib~d.,pp. 194-195.

CCPP-EP-13
política e económica governada por práticas formalmente democrá-
t i c a ~ " ~Essencialmente,
. a luta de classes tem transformado e tem sido
transformada pelo discurso liberal, orientado pelos direitos do indiví-
duo. Para citar Gintis novamente, frequentemente "os avanços políticos
da esquerda têm-se expressado, justificado e organizado não em termos
[de categorias tradicionais marxistas], mas em termos de extensões do
discurso liberal'57.Adianta Gintis:
'TO]conteúdo da luta de classes provém, em parte, da sua forma; isto
é, dos mecanismos do discurso comunicativo, linguagem e outros
tipos de expressão simbólica - disponíveis na sociedade para a contex-
tualização de projectos e para a criação de solidariedade e unidade de
direcção no seio de uma colectividade. Os mecanismos de discurso
b- comunicativo não reflectema consci&ncia; pelo contrário, a consciên-
cia dos indivíduos e grupos é enquadrada pelas formas de discurso que
apropriam e utilizam nas lutas... Assim um aspecto crítico da luta de
classes envolve a reprodução e transformaçãodos próprios instrumen-
tos de discurso na qual se opera a luta de classes. Desta forma, o dis-
curso liberal moderno, o idioma dos direitos não é uma expressão da
hegemonia da burguesia. Antes, é um produto da luta de classes, subs-
tancialmente distinta em períodos históricos diferentes e interna-
mente contraditórios, dada a infiltração por elementos discrepantes
no curso de confrontações de classe específicas.Decorrem daqui as
possibilidades emancipatória~."~~

Isto permite-nos compreender, com alguma segurança, por que razão


a extensão da "liberdade de escolha individual" à própria selecção e
organização das escolas funciona tão apelativamente junto de determi-
nados grupos raciais e segmentos de classe. Uma vez que o discurscl
liberal tem sido um dos principais instrumentos, tanto para encaminhar
como para expressar o conflito entre as classes e as raças e uma vez que
apresenta uma dinâmica própria e relativamente autónoma, que se
intromete nas esferas política e económica, pode ser e tem sido usadc
por ambos os lados na luta pelo poder e pelo controlo. Como observare-
mos, é precisamente isto que lhe poderá conferir o potencial emancipa-

" lbid , p 195 Enfase de Gintis


Ibrd. pp 196-197 Ênfase de Gintis
"Ibrd. pp 198 199
Resistência e contradições na classe, cultura e Estado r

tório. Todavia, como também teremos oportunidade de verificar, face ao


desequilíbrio actual de forças no seio do Estado e perante a crise econó-
mica emergente, em que o Estado necessita de efectuar cortes na maior
parte dos seus gastos, o uso do discurso liberal neste caso concreto pode
conduzir à obtenção de mais vantagens por parte dos grupos que já se
encontram numa posição privilegiada na sociedade.

Exportando a crise para o Estado


Até aqui tenho vindo a realizar um esboço de uma análise sobre como
poderemos interpretar propostas para alterar as escolas e o controlo do
currículo, com base no facto de as escolas se constituírem como parte do
Estado. Defendi que as pressões contraditórias sobre o Estado e as exigên-
cias da própria esfera política criam necessidades no seu seio para que
sejam propostas reformas como os subsídios educativos que Ihes permiti-
riam lidar mais facilmente com suas próprias necessidades quer internas
quer externas. Tais propostas demonstram algo profundamente curioso.
Quando há uma crise aguda ao nível do Estado, como parece ser o caso
actualmente, uma estratégia muito eficaz consiste na tentativa do Estado
em exportar a crise. Assim, ao reduzir o controlo estatal explícito e trans-
formar o processo de escolarização num mercado, esvazia-se a crítica.
Esta estratégia desempenha uma função interessante. Ao desviar a crí-
tica do Estado e aparentemente estabelecer um mercado mais plural, a
questão crucial dos benefícios diferenciados da nossa formação social é
também desviada. O benefício simbólico de se poder escolher a escola
que se quer pode tender a significar apenas isso, simbólico. Os benefí-
cios materiais podem continuar a recapitular a estrutura de desigual-
dade6! A esse respeito precisamos, mais uma vez, de ter em considera-
ção os dados de Navarro, anteriormente referidos, de que em quase
todas as áreas sociais, dos cuidados de saúde às políticas anti-inflacionis-
tas, o verdadeiro impacto das políticas do Estado tem revelado uma
matriz consistente, 20% dos mais privilegiados da população a benefi-
ciarem de uma forma muito mais consubstanciada do que os restantes
A questão de tal matriz e os vários benefícios que parecem resul-
tar de uma solução pluralista ou de mercado para com os problemas
escolares são questões que devem ser seriamente consideradas.

L Edelrnan. Murray (1977). PoliticalLanguage New York: Academic Press. p. 21.


'Navarro. Vicente (1976). Medicine Under Capitalism. New York. Neale Watson Academic Publications, p 91
A possibilidade negativa desta questão é suficientemente clara se
analisarmos reformas deste tipo no contexto do ressurgimento actual
da direita nos Estados Unidos e em outros países. Uma das razões pelas
quais a direita tem vindo a conseguir granjear alguma vantagem nos
argumentos sobre como devemos lidar com os problemas escolares, do
Estado em geral, e da economia, deve-se, em parte, a sua "habilidosa
conversão populista de temas-chave em reivindicações relativas a
impostos, greves e burocracias". Tem sido capaz de reafirmar a defesa
da expansão das relações sociais capitalistas e de mercado através de
uma determinada forma, "como uma ordem de mercado que maximize
a escolha e liberdade individuaisn71. Neste caso, a incorporação do dis-
curso liberal é muito interessante. Assim, é bem possível que apoiar
planos de subsídios educativos e benefícios fiscais - muito embora per-
mita mais escolhas e opções mais interessantes para jovens pertencen-
tes a classe trabalhadora e outros grupos - produzirá um efeito menos
satisfatório a um nível ideológico e estrutural mais amplo. Pode con-
tribuir para a legitimação, através do Estado, do "ideal burguês
de mercado", um modelo para todas as relações sociais baseado no
"cálculo individual e na procura do auto-interesse e na acomodação
e ajuste dos interesses através da competição"'~ reproduzindo, desta
maneira e de certo modo, os diferentes benefícios descritos por
Navarro.
Todavia, ao afirmar isto não pretendo contradizer os argumentos que
previamente tive ocasião de mencionar contra uma visão que analisa o
Estado como as ideologias hegemónicas, como sendo internamente
monolítico. Na realidade, frequentemente acontece precisamente o
contrário. Esta questão aviva um outro aspecto que, novamente, faz
com que a avaliação directa e imediata das reformas fomentadas pelo
Estado seja uma tarefa difícil, dado que o Estado é um local de conflitos
e de dominação. O facto de o aparelho de Estado poder pretender
exportar a crise e reestabelecer o poder do mercado sobre as escolas
revela algum êxito de determinados grupos - grupos em função da
classe, raça ou género que historicamente não têm encontrado muito
apoio nas escolas - em desafiar a legitimidade das operações de rotina

" Gamble, Andrew (1979) "The Free Economy and the String State. The Rise of the Social Market Economy". in Ralp
Miliband and John Saville (eds 1, The Socialist RegEter London Merlin Press. p. 22
'I Ibid.
Resistència e contradições na classe, cultura e Estado 1.

dentro do Estado. Aponta, com efeito, para uma quebra parcial do con-
trolo h e g e m ó n i ~ o ~ ~ .

No sentido de uma acção política e educativa


Até este momento, tenho sido muito negativo relativamente a refor-
mas como, por exemplo, os subsídios educativos, benefícios fiscais e
afins. Contudo, não quero negligenciar a possibilidade de essas propos-
tas significarem na verdade uma quebra parcial do poder do Estado, um
diferente equilíbrio entre as forças em contenda no seio do próprio apa-
relho de Estado e que podem, desta forma, ser usadas para fins progres-
sistas. Um plano deste género poderia, de facto, ser utilizado para criar
modelos de educação socialista. Dito de outro modo, poderia criar esco-
las que seriam laboratórios para o desenvolvimento de alternativas
socialistas aos nossos modelos educativos dominantes. Isto é muito
importante. Perdemos a nossa própria história de educação socialista e,
em essência, somos obrigados a começar do nada. Há que desenvolver
pedagogias e modelos curriculares alternativos que contribuam para tal
processo. Os subsídios educativos podem, na realidade, providenciar
algumas dessas condições caso sejam utilizados cuidadosamente por
grupos de pessoas comprometidas.
Tenciono sublinhar este ponto. A articulação e a construção de verda-
deiras alternativas socialistas democráticas não podem ser encaradas de
forma leviana. Enquanto não existir essa alternativa clara, cada seg-
mento da população trabalhadora permanecerá dissociado dos outros
relativamente a sua visão de educação, avançando com planos e exigên-
cias discrepantes. Tais exigências corporativas individuais (como
Gramsci as denominaria) não serão eficazes na criação de pressões para
a reestruturação das instituições económicas e culturais e respectivo
controlo. Esta questão é muito bem abordada por Sassoon:
"O movimento operário não tem sido muitas vezes capaz de sugerir
u m programa adequado as necessidades das massas, que ultrapasse
as exigências corporativas dos vários sectores. Dada essa falta de
unidade objectiva e m torno de uma proposta política alternativa,
vários governos têm conseguido jogar u m grupo contra os requisitos
1 corporativos de

'' Sobre a natureza e o impacto da contestação no seio do Estado, vide Sassoon Showstack. Ann (1978). "Hegemony and
Political Intervention", in Saliy Hibbin (ed ). Pol~tics,Ideologyand the State, London: Lawrence & Wishart. pp. 9-39.
' Ibid., p. 39
Como parte do desenvolvimento de uma determinada proposta polí-
tica alternativa, a construção de um modelo pedagógico e curricular
claro a partir do qual e sobre o qual, por exemplo, os pais, sindicatos
progressistas e outros possam trabalhar poderia ser um importante
ponto de partida na articulação de um programa colectivo.
Os subsídios educativos poderiam ajudar ainda de uma outra forma. As
mudanças estruturais na sociedade devem ser ensaiadas através de expe-
riências ao nível local. Isto é, as destrezas e as normas de controlo demo-
crático das instituições em que trabalhamos e a sua reorganização de
modo a que beneficiem a maioria da população precisam de ser aprendidas
e testadas na prática. A criação de benefícios fiscais e subsídios educativos
pode propiciar um passo limitado nesta direcção caso se permita que as
pessoas se tornem, cada vez mais, profundamente envolvidas no dia-a-dia
da planificação e operação democráticos das instituições que as rodeiam.
Provavelmente, são estas as possibilidades mais positivas para o uso
progressista de tais reformas. No entanto, em muitos aspectos são
demasiado utópicas e, julgo eu, podem não contrabalançar o poder desi-
gual com que as instituições são controladas e atribuídos padrões de
benefícios desiguais. Perante tais condições, a mudança organizacional,
independentemente do seu grau de interesse, pode não ser suficiente.
Por este motivo, e embora possamos e devamos explorar o potencial
existente nas referidas reformas, penso que precisamos de ser por um
lado honestos relativamente a outras possíveis consequências negativas,
a longo prazo, das propostas fomentadas pelo Estado, e por outro procu-
rar estratégias alternativas coerentes para construir uma base mais
poderosa, com base na qual se desenvolverá a acção.
As estratégias apropriadas incluem formar alianças, acções políticas
concretas e alterar as práticas curriculares das escolas. Precisamos, por
exemplo, de prosseguir o lento e prudente trabalho de educação política
dos professores e outros trabalhadores no seio do Estado, tal como se
encontra organizado. Não quero com isto apresentar uma visão utópica.
Neste caso, os problemas orçamentais dos sistemas educativos em cida-
des como Chicago, Cleveland e outras, cujos professores deixaram de
receber pelo trabalho desenvolvido ou devem trabalhar em instalações
que progressivamente se vão degradando, têm importantes implicações.
Estas condições podem permitir uma análise político-económica mais
apurada entre os trabalhadores do Estado e podem providenciar boas
oportunidades de luta ao nível local.
I Resistência e contradições na classe, cultura e Estado

Todavia, é possível que a fragmentação dos planos de subsídios educa-


tivos possa conduzir também a uma fragmentação dos professores. Isto
é, pode haver menos condições para uma educação política dos profes-
sores. Neste contexto, a importância de conquistar os professores -
muitos dos quais estão desiludidos com os resultados, condições globais
do trabalho e com o impacto do seu ensino - para que assumam uma
perspectiva política mais progressista é minimizada. Que algumas das
condições sob as quais os professores trabalham possam levar a pos-
sibilidade de tal educação política é algo que retomarei já no próximo
capítulo.
Se estou correcto de que podem ser efectuados avanços com emprega-
dos do Estado, como, por exemplo, os professores, então uma outra
ideia se torna extremamente importante - vínculos. Estas lutas desen-
volvidas ao nível local nas escolas e instituições do Estado devem rela-
cionar-se com as lutas por uma justiça económica e política levadas a
cabo por outros grupos organizados, como trabalhadores nas fábricas e
nos escritórios, mulheres que se começam a organizar nos escritórios e
nas lojas, pais das minorias, etc. Os vínculos em questão são cruciais
para providenciar uma base de legitimidade e de poder. São uma parte
vital do desenvolvimento do programa colectivo previamente referido:
Mouffe. Uma vez que os professores cada vez mais são tratados como
empregados da indústria e do sector da prestação de serviços da econo-
mia, tais condições podem tornar-se ainda mais viáveis no futuro.
Os planos de subsídios educativos e de benefícios fiscais poderiam obs-
taculizar esta estratégia. Se, como pretendo fazer avançar, o difícil tra-
balho político ao nível das instituições locais - em particular a escola, as
instituições de segurança social, de saúde, o local de trabalho, etc. - é
essencial para a política socialista, então as propostas de abertura das
escolas às relações de mercado podem debilitar esse género de luta.
.i\ssim, devemos questionar se tais reformas farão com que seja muito
mais difícil criar vínculos, por exemplo, entre professores politicamente
comprometidos e grupos organizados de trabalhadores e de pais. Pode-
rão conduzir a uma avaliação mais colectiva? Em caso negativo, mere-
cem o nosso apoio?
Até aqui falei dos professores, dos pais e de outros grupos organizados
e do potencial de construção de coligações entre conjuntos de actores
de classe. Mas o que dizer relativamente aos estudantes? Os estudos de
Willis, Everhart e McRobbie anteriormente analisados colocam algumas
questões e estratégias muito importantes que devem ser seriamente
consideradas. A primeira relaciona-se com o plano de conteúdo das
escolas e torna ainda mais importantes os argumentos que desenvolvi
no terceiro capítulo, em favor do ensino da história das lutas e das
visões dos trabalhadores.
A questão não consiste apenas numa análise das reformas propostas em
I termos de arranjos organizativos, mas também em termos do que, na rea-
lidade, é ensinado e do que, na verdade, não é ensinado. Segmentos intei-
ros da população norte-americana têm vindo a ser cesurados do seu pas-
sado. As condições em que se encontram actualmente permanecem
relativamente por analisar, em parte porque as perspectivas ideológicas
que Ihes são oferecidas (e os instrumentos críticos que não Ihes são dispo-
nibilizados) fragilizam tanto a história económica e política como o apa-
relho conceptual, factores incontornáveis para uma avaliação completa da
posição que mantêm. Esquece-se a possibilidade de uma acção colectiva.
Esta questão, mais uma vez, remete-nos para a importância dos esforços
colectivos no envolvimento de mudanças curriculares com o intuito de
tornar visível tal história e os muitos programas actuais. Por exemplo,
controlo laboral disponível para estudantes, tais como os estudados por
Willis e por Everhart7" e os programas socialistas feministas para as rapa-
rigas (e para os rapazes).
Neste ponto, precisamos, obviamente, de ser realistas. Não basta
introduzir nas escolas apenas mais conhecimento ou conhecimento
diferente. Mas precisamos, mais uma vez, de conceber uma estratégia
socialista fundamentada numa frente abrangente, em que são necessá-
rias acções, num único e mesmo momento, tanto no plano cultural
como no plano político-económico. Provavelmente, tentativas isoladas
de reforma curricular não terão resultados. Mas, novamente. se pude-
rem estar vinculadas a outras lutas e a outros grupos, as hipóteses de
êxito aumentam sem dúvida. Como tive oportunidade de analisar ante-
riormente, nenhuma instituição ou ideologia dominante é totalmente
monolítica. Haverá "espaços" que podem ser trabalhados e que oferece-
rão a possibilidade, pelo menos, de um sucesso parcial, mesmo que tal
sucesso implique aprender mais tanto sobre a política de se organizar,

'I No que respeita a sugestões para o uso das lutas actuais dos trabalhadores, e outros, para fins pedag6gicos e curriculares
vide Dreier. Peter (1980). "Socialism and Cynicism An Essay on Politics Scholarship and Teaching", Socialist Rewew X
pp 105-131
Resistência e contradições na classe, cultura e Estado '

como das condições necessárias para um determinado trabalho suple-


mentar. , ,

Nesta conformidade, uma vez que os planos de subsídios educativos e


outros planos idênticos têm como objectivo controlar as escolas através
de um mercado individualista, será difícil exercer pressões sobre o
sistema escolar como um todo para transformar tal desequilíbrio no
conteúdo curricular. Igualmente importante, esta questão pode, na rea-
lidade, eliminar um aspecto preponderante em torno do qual um deter-
minado número de grupos se poderia organizar. Desta forma, os referi-
dos planos educativos podem dificultar a criação de condições para um
trabalho futuro em grande escala.
Uma última questão necessita de ser realçada, relativamente ao con-
teúdo e aos estudantes, que é de importância considerável, face aos
meus argumentos sobre os elementos constitutivos da cultura vivida
dos estudantes dos segmentos da classe trabalhadora que analisámos.
É fundamental recordarmos que o processo reprodutivo em que tais
estudantes participam nas escolas - e os pais no local de trabalho - não
é bem todo-poderoso. É um processo contestado. No seu seio existem
elementos de bom senso. Existem práticas colectivas alternativas que se
geram a partir dele, naquilo que denomino por nível cultural. Perante
isto, esta questão dirige a nossa atenção para o potencial da educação
política contínua, não só junto dos estudantes, como também junto dos
pais (e julgo também na possibilidade de uns e outros educarem os edu-
cadores). Pode ser possível utilizar estes elementos de resistência de
classe, tanto para propósitos pedagógicos (reorientando as práticas de
ensino de modo a estarem mais próximas dos elementos vitais da cul-
tura da classe trabalhad~ra)'~, como para o propósito de orientar o
relevo de tal descontentamento para as condições estruturais desiguais
que dominam a sociedade.
O facto de tal resistência existir significa que a própria cultura vivida
dos estudantes pode oferecer importantes áreas de trabalho político.
As próprias reivindicações para terem uma área física específica - cam-
pos de futebol, de basquetebol, discotecas, etc. - podem ser desenvolvi-
das em exercícios de poder político. As suas exigências quanto a empre-
gos decentes no seio da comunidade local podem também receber o

'' Mde Clarck. John,


Critcher, Chas, and Johnson. Richard (eds.) (1979). Working Class Culture: S t u d k in History and
Theory. London Hutchinson.

I 201
nosso apoio e defesa. Um grupo cada vez maior de jovens trabalhadores
progressistas e trabalhadores sociais nos Estados Unidos, Inglaterra e
América Latina tem uma longa história de engajamento neste género
de acções. No decorrer do processo desenvolveram determinadas des-
trezas, organizando jovens negros, mulatos e brancos e estimulando o
crescimento de lideranças politicamente sensíveis entre esses jovens77.
Os educadores têm muito a aprender com estes jovens.
A contestação ao nível cultural e os elementos de bom senso no seu
interior possibilitam ainda outras oportunidades. Os temas de consciên-
cia feminista que começaram a emergir na cultura de algumas rapari-
gas da classe trabalhadora podem também ser realçados e utilizados.
Neste contexto, McRobbie apresenta uma análise interessante. Uma vez
que o ensino tem sido, frequentemente, uma carreira aberta as mulhe-
res, pode também ser possível que no preciso momento em que os
modelos tradicionais de ocupação forem apresentados aos estudantes, a
noção de uma identidade independente fora do lar e do casamento pode
também ser apresentada, contradizendo assim algumas das mensagens
ideológicas.
Além do mais, uma vez que a maior parte dos docentes são mulheres,
as mensagens de luta e resistência podem estar a ser difundidas sem no
entanto serem politizadas. Como salienta a autora, "a possibilidade que
a escola oferece para a introdução de críticas feministas na sala de aula
não deve ser subestimada, u m potencial que tem vindo actualmente a
ser explorado por grupos de professoras feminista^"^^.
Mais uma vez, é visível a importância de coligações entre pessoas
comprometidas. Grupos de activistas nas comunidades negras, hispâni-
cas, índios, nas comunidades de saúde e do direito, assim como um
determinado número de sindicatos progressistas e grupos feministas
têm vindo a considerar tudo isto com muita seriedade. Claramente.
uma quantidade substantiva de trabalho colaborativo necessita de ser
levada a cabo tanto ao nível educativo como ao nível político. Dada a
variedade de resistências que actualmente se vão construindo no local
de trabalho, essas coligações podem ser conseguidas com alguma facili-

" Brake, ihe Sociology of Youth Culture and Youth Subcultures p. 171. Vide rambem a discussão proposta por Brake
sobre o uso do rock e de outros elementos da cultura popular com o intuito de ganhar espaços a cultura dominante.
pp. 155.161 Estas probabilidades sáo também avançadas por Willis, Paul (1978). Profane Culture, London: Routledge
& Kegan Paul
" McRobbie, Working Class Girls and the Culture o f Fern~ninity,pp. 102-103.
Resistênciae contradyões na classe, cultura e Estado *

dade. (Todavia, convém recordar que a direita tem conseguido de forma


eficaz colocar estes grupos ao serviço dos seus próprios interesses. De
modo algum a acção progressista se encontra garantida e deve ser traba-
lhada, não se esperando que desabroche de uma forma naturalmente
determinada).

Conclusões
Nesta parte final do capítulo tracei, muito sumariamente, algumas
das principais críticas em torno das reformas propostas e ainda aquilo
que percebi como algumas das estratégias devem ser consideradas.
Como sublinhei, reformas como a dos benefícios fiscais e a dos siste-
mas de subsídios educativos são contraditórias. Uma vez que podem ser
transformadas, como tem sido historicamente todo o discurso liberal
no decorrer do seu uso pelas "classes populares", podem, na verdade,
conduzir ao crescimento de instituições alternativas, que podem ajudar
no desenvolvimento de modelos pedagógicos e curriculares socialistas
interessantes e viáveis. Esta questão não deve ser ignorada leviana-
mente.
Ao afirmar isto também digo que a planificação, a construção e a
administração de uma instituição deste género podem ser importantes
por permitirem que as pessoas aprendam as destrezas e as normas eco-
nómicas, políticas e organizacionais exigidas para o funcionamento
mais democrático das instituições. Todavia, e isto é muito importante,
esta questão pressupõe que tais grupos progressistas possam controlar e
organizar os programas que desejam. Assim, os referidos grupos devem
ser muito prudentes no caso de, eventualmente, não poderem controlar
o programa que se encontra proposto.
Se os planos de subsídios educativos, em vez de unirem determinados
grupos específicos, fragmentam-nos, a sua aceitação deve ser seria-
mente reconsiderada. Além do mais, a questão sobre como tais grupos
ganharão mais poder utilizando planos de subsídios educativos é cru-
cial. Por exemplo, nas propostas que estão a ser consideradas na Califór-
nia e noutros estados, muita coisa se encontra por explicar. Não se espe-
cificam os mecanismos específicos através dos quais grupos
pertencentes a classes menos favorecidas podem controlá-los e asse-
gurá-los. Perante o que Navarro e outros revelaram sobre o modo como
os lobbies, o poder e os benefícios desiguais operam ao nível do governo
local e estadual, tais planos, em vez de atenuarem os padrões de desi-
gualdade, podem levar a sua recriação. Perante isto, e até prova em con-
trário, deve-se ser muito céptico.
Numa escala mais abrangente, tive oportunidade de constatar que as
referidas propostas, não só podem permitir que o Estado exporte a sua
crise de legitimação, como também podem expor ainda mais uma parte
significativa das nossas vidas à reorganização com base nos princípios
das relações sociais capitalistas. Daí que tenha também argumentado
que ao permitir que o Estado exporte a sua crise e ao isolar pequenos
grupos de professores e da "comunidade" de actores da mesma classe, as
reformas propostas podem dificultar muito mais o desenvolvimento da
organização e da acção políticas. Finalmente, frisei que a acção política
e pedagógica organizada, a partir do nível local, mas relacionada com as
acções dos vários grupos progressistas engajados na luta por um con-
junto mais justo de arranjos institucionais, é uma condição prévia no
sentido de uma acção séria.
Ao afirmar isto, implicitamente realço que não há princípios gerais,
respostas fáceis sobre quando e onde devemos apoiar ou opor-nos a
reformas deste género. Tal depende decididamente do equilíbrio de for-
ças existente no seio de uma área específica. Só mediante uma análise
da especificidade de cada espaço individual podemos tomar uma decisão
relativa as estratégias apropriadas. Em alguns espaços, o "discurso libe-
ral" das referidas reformas pode, na realidade, providenciar a primeira
verdadeira oportunidade para que os grupos oprimidos organizem e
controlem as suas próprias instituições e desenvolvam as destrezas
organizacionais necessárias, com o intuito de transferirem tais princí-
pios e práticas para outras instituições no seio da sua comunidade. Nou-
tros espaços, pode muito bem suceder que tanto os benefícios fiscais,
como os subsídios educativos produzam precisamente o efeito contrá-
rio. A longo prazo, podem fragmentar grupos progressistas, tornando os
esforços colectivos e concertados muito mais difíceis. Só no contexto de
uma análise sobre as condições e as forças objectivas e ideológicas que
existem em cada local, em particular, e no Estado, em geral, estaremos
em condições de construir uma abordagem viável. De u m modo geral,
argumentaria contra o apoio a tais reformas. A um nível mais específico,
por vezes vejo-as como permitindo o início de acções mais progressis-
tas, mas apenas se se encontrarem satisfeitas determinadas condições
prévias que garantam u m controlo e u m poder efectivos. Deste modo, os
Resistência e contradiçbes na classe, cultura e Estado :'
I

nossos quadros de avaliação devem não perder de vista um determinado


cepticismo.
Por esta razão, tais questões devem ser sempre formuladas quando se
avaliam as reformas do Estado. Quais as reformas que genuinamente
podemos denominar por não reformistas, ou seja, reformas que tanto
transformem e melhorem as condições vigentes, como conduzam a
efectivas modificações estruturais? Que reformas podem ser apoiadas
devido a sua possível contribuição na educação política de um grande
número de pessoas ou as estratégias de aprendizagem que, em última
instância, lhes permitem reafirmar o controlo das instituições económi-
cas e culturais? Que reformas promovem coligações que podem alterar
o equilíbrio de forças? Que tipo de coligações tendem a ser progressistas
a longo prazo? Existem elementos no seio da cultura vivida dos próprios
estudantes e dos pais que penetrem na realidade das relações sociais
dominantes? De que forma podem ser utilizados esses elemento^?^"
Estas questões não são fáceis de responder. Requerem um sentido his-
tórico, um quadro que remeta para as configurações de classe e para as
relações de dominação económica, política e cultural das comunidades
e das escolas locais (e para além da comunidade também) e, finalmente,
provavelmente para uma experiência no seio daquele local.
Se, por um lado, as respostas não são fáceis, são também "difíceis de
contestar" as acções que nelas se apoiam. Tal como argumentei ante-
riormente, é preciso encarar a luta pela criação de instituições económi-
cas e culturais mais justas como uma guerra de posição, como uma luta
com várias frentesR0.Uma dessas frentes é certamente a educação. Se o
Estado - devido à crise económica e a sua própria crise de legitimidade,
às forças que competem no seu seio e à realidade que se encontra reser-
vada para os "rapazes", raparigas e miúdos - oferece possibilidades para
intervenções socialistas democráticas, devemos aproveitá-las. Contudo,
tal como tentei demonstrar na última parte deste capítulo, não é assim
tão fácil aproveitá-las. Podemos estar perante um daqueles momentos
em que temos que analisar os dentes do cavalo que nos apresentam.

-" Vide Willis. Learning to Labour, pp. 185-193


i) Mouffe. Chantal (ed) (1979). GramsciandManist iheory London: Routledge & Kegan Paul.
A forma curricular e a lógica
do controlo técnico
O regresso da mercantilização

Exportar os seus maiores problemas não é a única forma nem tão-


-pouco a principal pela qual o Estado pode responder à crise de acumu-
lação e legitimação em que se encontra. Face à dimensão burocrática
interna e dadas as intensas pressões actualmente por parte das forças
económicas, o Estado (e as escolas) pode e deve lidar com a crise refoca-
lizando as suas preocupações para dentro de si mesmo. Pode tentar um
controlo mais rígido na sua produção de conhecimento "útil" e de agen-
tes para a força de trabalho e também ao nível da sua própria força de
trabalho por intermédio de formas que corporizem o conhecimento e
procedimentos técnicos e administrativos utilizados no sector industrial
avançado da economia. Como demonstrarei ao longo deste capítulo,
esta questão pode ter um impacto muito grande junto dos professores.
Nos dois últimos capítulos, analisei como os trabalhadores e os estu-
dantes criam e recriam culturas vividas que oferecem as bases para as
resistências às ideologias de racionalização, aos procedimentos técnicos
e administrativos e às "necessidades" de controlo no local de trabalho e
na escola. Os trabalhadores não as aceitam sem luta. Os filhos de tais
trabalhadores frequentemente vivem na escola uma cultura contraditó-
ria, a qual "reflecte" as contradições que repousam no seio da cultura
que os pais foram criativamente desenvolvendo ao longo das próprias
experiências, não só com o processo de mercantilização, mas também
com o processo de trabalho do capital. No entanto, não obstante as
resistências se terem construído de forma histórica, tal não significa
que o resultado das referidas ideologias, formas de conhecimento e
procedimentos estão esquecidos ou mesmo não são utilizados. Pelo con-
trário, são transformados. Desta forma, a resistência do trabalhador ao
taylorismo e outras técnicas semelhantes conduziu não só à investiga-
ção como também ao desenvolvimento de técnicas ao nível da gestão
baseadas nas relações humanas e a utilização do manancial crescente de
conhecimento técnico/administrativo com o propósito de construir um
controlo mais subtil sobre o trabalho.
Esta história provocou uma transformação nos tipos de ideologias e
técnicas que incidem actualmente sobre a educação. Com efeito, dada a
aparente legitimidade de tais técnicas de gestão na economia (recorde-
mos que foi neste espaço que o taylorismo conseguiu, realmente,
sucesso, através de muitas formas) e face ao facto de o Estado não poder
escapar da sua actual crise de legitimidade económica mais ampla, os
resultados do referido conhecimento técnico/administrativo que tem
vindo a ser transformado nos escritórios, fábricas e empresas que
rodeiam a educação regressarão à escola como parte do modo como o
Estado supõe que deve lidar com esses problemas complexos. A produ-
ção inicial de tal conhecimento, em parte através dos sectores mais ele-
vados do aparelho educativo, conduziu finalmente a sua introdução a
todos os níveis de escolarização posterior.
Como teremos oportunidade de verificar ao longo deste capítulo, ao
mesmo tempo que o Estado tenta exportar alguns dos seus problemas.
tenta lidar com tais problemas através de outras formas, combinando.
nas suas acções do dia-a-dia, modelos técnicos e industriais com o dis-
curso liberal. Actualmente, a combinação das linguagens e procedimen-
tos do capital com o discurso liberal dos direitos do indivíduo é também
mais importante na educação, dado que as pressões da economia, de
outros sectores do governo e ainda de outros locais serão muito profun-
das. Mudanças no poder no seio do próprio aparelho de Estado revelar-
-se-ão muito visíveis. Aqueles grupos no interior da educação que se
posicionam a favor de uma maior aproximação entre as escolas e as
necessidades da indústria, relativamente ao capital económico e cultu-
ral, tornar-se-ão cada vez mais poderosos. Paralelamente, os próprios
capitalistas tornar-se-ão mais claros utilizando as escolas para as neces-
sidades de legitimação e acumulação da esfera económica. Este tipo de
mudanças ocorrem neste momento. Esta realidade não pode ser igno-
rada pelas escolas. Todavia, e isto é mais uma vez muito importante, tais
pressões criarão espaços para uma acção progressista.
A forma curricular e a lógica do controlo técnico

Ideologias empresariais: atingindo o professor


Não é preciso ter uma visão excepcionalmente perspicaz para perceber
as tentativas conduzidas pelo Estado e pela indústria no sentido de sin-
tonizar de uma forma mais próxima as escolas com as "necessidades
económicas". Nenhuma das duas margens do Atlântico tem ficado
imune a tais pressões. No Reino Unido, o "Great Debate" e o "Green
Paper" revelam-se documentos notáveis quanto à habilidade do capital
em conduzir disciplinadamente as suas forças numa época de crise
económica. De acordo com o "Green Paper", "verifica-se um grande
hiato entre o mundo da educação e o mundo do trabalho. Os rapazes e
as raparigas não se encontram suficientemente conscientes da prepon-
derância da indústria na sociedade e não se Ihes ensina muito a esse res-
peito"'.
Prossegue o citado documento, fazendo do critério da eficiência fun-
cional o elemento nuclear da política educativa:
"Os recursos globais que se encontram disponíveis para a educação e
os serviços sociais no futuro dependerão amplamente do sucesso da
estratégia industrial. É vital para a recuperação económica e para o
padrüo de vida da Inglaterra que a performance da indústria manufac-
tureira se desenvolva e que a vasta gama de políticas governamentais,
incluindo as da educaçüo, contribua o mais possível para melhorar o
desempenho industrial, aumentando assim a riqueza nacional.""

Nos Estados Unidos, onde as políticas governamentais se encontram


mais mediadas por uma articulação distinta entre o Estado, a economia e
as escolas, verifica-se também este tipo de pressão através de formas bas-
tante poderosas. Frequentemente, os mecanismos na indústria são mais
visíveis. Por todas as universidades do país multiplicam-se os cursos de
Mercado Livre orientados para a educação económica. Ensinar a mensa-
gem da indústria tornou-se numa força efectiva. Deixem-me dar um
exemplo, partindo do que é conhecido como "Plano Ryerson", um plano
empresarial que tem como escopo levar os professores, durante as férias
de Verão, a trabalharem essencialmente na gestão de indústrias de modo
a poderem explicar aos alunos um "conhecimento verdadeiro", relativo
as necessidades e aos benefícios empresariais:
----
' Donald. James (1979) "Green Paper Noise of a Crisis", Screen Educatron XXX. 44
' Ibrd , pp 36-37
'Itendência antiempresarial contra o mercado livre, predomi-
nante em muitos sectores da sociedade americana, é hoje em dia
muito real e tem vindo a aumentar. A não ser que deixemos simples-
mente de falar sobre isso - e façamos algo relacionado com isso - tal
tendência aumentará e usar-se-ánas mentes férteis dos jovens. Será
cultivada e alimentada por muitos professores, que, apesar das boas
intenções, ignoram como um mercado livre funciona numa socie-
dade livre.
O tecido empresarial norte-americano tem uma história extrema-
mente positiva para contar e um dos pontos mais importantes para
começar é ajuventude do nosso país. Os últimos 4000 anos de história
demonstram a interdependência entre a liberdade económica e a
liberdade pessoal em todas as civilizações, países e sociedades. Possuí-
mos um exemplo perfeito numa experiência actuul. Observe-se o
declínio registado na Grã-Bretanha ao longo dos últimos 30 anos.
A resposta é simples e eficaz. Atinjam-se os professores do ensino
secundário da América com uma história verdadeira do tecido
empresarial norte-americano e eles transportarão a mensagem aos
estudantes e colegas professores. A mensagem, proveniente directa-
mente do professor e não dos livros, panfletos ou filmes, provocará
um impacto muito mais expressivo e duradoiro. Convença-se um
professor da importância cmcial do nosso sistema de mercado livre e
este convencerá centenas de estudantes ao longo de muitos anos. É o
efeito da onda em que as facções antiempresariais têm capitalizado
durante anos.""

Para dizer o suficiente, é uma declaração interessante que tem tido


eco em todas as economias capitalistas desenvolvidas. Muito embora
seja, de certo modo, um tanto óbvio, para não mencionar a sua impreci-
são histórica, devemos agir com prudência para não ignorar esse género
de programas como propaganda explícita que é facilmente marginali-
zada pelos professores. Como salientou um professor, após ter concluído
um desses programas:
"A minha experiência com a indústria do aço neste Verãopermitiu-me
um conhecimento positivo e prático do mundo empresarial que
jamais teria se não fosse a iniciativa proporcionada pelo 'Plano
Ryerson: Neste momento, encontro-me em condições de passar um

' Ryerson, J.; Son. Inc (sld). The Ryerson Plan: A Teacher Work-Learn Program. Chicago: Ryerson and Son, Inc. (Artigo
náo publicado). Agradeço a Linda McNeil por me ter dado a conhecer este material.

210
A forma curricular e a lógica d o controlo técnico a3

quadro mais positivo da indústria aos alunos: alunos que são habi-
tualmente muito críticos, muito descrentes e basicamente ignorantes
em relação ao funcionamento da grande indústria a~tual."~

Naturalmente, tal plano é apenas um entre muitos que existem com o


propósito de fazer com que a mensagem ideológica se difunda. Na ver-
dade, muito embora tenha existido uma forte resistência a esse tipo de
material da parte das forças progressistas nos Estados Unidos, o movi-
mento "ensinar para as necessidades da indústria" tem vindo a desen-
volver-se de uma forma tão vertiginosa que se fundou, na Universidade
do Texas, uma instituição, denominada adequadamente The Institute for
Constructive Capitalism, com o propósito de tornar o material mais dis-
ponível ao p ú b l i ~ o . ~
Com efeito, não pretendo minimizar a importância de tais tentativas
explícitas de influenciar professores e estudantes. Seria uma nítida falta
de bom senso. Todavia, ao destacarmos apenas as referidas tentativas
explícitas que tentam construir uma correspondência mais íntima entre a
política educativa e o currículo com as necessidades empresariais, pode-
mos correr o risco de menosprezar o que se está a passar, possivelmente
de uma forma igualmente poderosa, ao nível da prática escolar quoti-
diana. Poder-se-iam travar batalhas contra os avanços explícitos do capital
(e provavelmente ganhar algumas dessas batalhas) e mesmo assim per-
dermos no seio da escola. Na verdade, e como terei ocasião de frisar, para
professores e alunos algumas das influências ideológicas e materiais do
tipo de formação social que vivemos não se encontram predominante-
mente ao nível desse tipo de documentos ou planos, mas ao nível da prá-
tica social no seio da própria rotina das escolas6.
Essencialmente, como salientei anteriormente, tenciono salientar que
as ideologias não são apenas conjuntos globais de interesses, coisas
impostas por um grupo a outro. São constituídas pelas nossas práticas e
significados de senso comum7. Deste modo, caso pretendamos
compreender a ideologia que opera nas escolas, devemos observar os

'Ib~d
' Downing. Diane (1979). "Soft Choices: Teaching Materials for Teaching Free Enterprise". Austin. Texas: University of
Texas. Institute of Constructive Capitalism, policopiado
'Tal nao significa negar a importància de se analisarem documentos oficiais emanados do Estado. O ensaio de James
Donald sobre o "Green Paper" observado acima oferece um excelente exemplo do poder da análise do discurso, por
exemplo, para se descobrir o que significam e que papel desempenham tais documentos.
Williams. Raymond (1977). Marxisrn and Literatiire. New York. Oxford University Press
aspectos concretos da vida curricular e pedagógica da mesma maneira
que fazemos com as declarações proferidas pelos porta-vozes do Estado
- ou da indústria. Citando Finn, Grant e Johnson, precisamos de analisar
não só as ideologias "sobre" a educação, mas também as ideologias "na"
educaçãos.
Com isto não pretendo afirmar que o nível da prática nas escolas é
fundamentalmente controlado, de forma algo mecânica, pela empresa
privada. Como sector do Estado, a escola medeia e transforma um vasto
leque de pressões económicas, políticas e culturais por parte de classes e
segmentos de classe que se encontram em competição. No entanto, ten-
demos a esquecer que isso não significa que as lógicas, os discursos ou
os modos de controlo do capital não provocarão um impacto crescente
no dia-a-dia das instituições educativas, sobretudo em épocas de "crise
fiscal do Estado"! Este impacto, claramente visível nos Estados Unidos
(embora também se esteja a tornar predominante na Europa e na Amé-
rica Latina), é especialmente evidente no currículo, essencialmente em
alguns dos aspectos mais importantes dos materiais com que alunos e
professores interactuam.
Neste capítulo estarei particularmente interessado na forma e não no
conteúdo curricular. Isto é, a minha preocupação não repousará naquilo
que é realmente ensinado, mas na maneira como o ensino se encontra
organizado. Como tem sido defendido por um determinado número de
analistas culturais marxistas, o modo como funciona a ideologia pode
ser mais bem constatado ao nível da forma, assim como ao nível daquilo
que essa mesma forma contémlO.Tal como defendi neste capítulo, esta
questão é uma das chaves que esclarecem o papel da ideologia "na" edu-
cação.
De forma a compreender parte do que se está a passar na escola e as
pressões ideológicas e económicas que têm vindo a incidir sobre ela e
que a permeiam, tal como tivemos oportunidade de verificar ao longo
dos capítulos 2, 3 e 4, há que situá-la no seio de determinadas tendên-
cias de longo prazo no processo de acumulação de capital e verificar a

'Finn, Dan; Grant, Neil; Johnson, Richard and the CCCS Education Group (1978) "Social Democracy. Education and the
Crisis" Birmingham: University of Birmingham Centre for Contemporary Cultural Studies. p. 34, policopiado
'O'Connor, James (1973). The Fiscal Crisis o f the State New York: St Martin's Press.
''A titulo de exemplo vide Jarneson, Fredric (1971). Marxism and Forrn, Princeton. Princeton University Press; Williams,
Marxisrn and Literature, e Apple, Michael, "ldeology and Form in Curriculum Evaluation", in George Willis (ed) (1978).
%/!tative Evaluation. Berkeley: McCutchan, pp. 495-521
A forma curricular e a lógica d o controlo técnico -;

relação que estabelece com o processo de trabalho. Ultimamente estas


tendências têm vindo a ser intensificadas e têm tido um grande impacto
em muitas áreas da vida social. De entre tais tendências podemos identi-
ficar algumas, nomeadamente:
'h concentração e centralização de capitais; a expansão de proces-
sos de trabalho baseados em tecnologias e formas de controlo da linha
de produção; o declínio contínuo da 'indústriapesada' e o movimento
do capital orientado para formas mais 'leves' de produção, sobretudo a
produção de bens de consumo de longa duração; e grandes mudanças
na composição da força do trabalho - a tendência secular para a 'des-
qualificação:a separação entre 'concepção' e 'execução' e a criação de
novas destrezas técnicas e de controlo, a transferência do trabalho da
produção directa para a circulação e distribuição e a expansão do tra-
balho no interior do Estado.""

Como veremos, o desenvolvimento de novas formas de controlo, o


processo de desqualificação, a separação entre concepção e execução
não se encontram limitados às fábricas e aos escritórios. Estas tendên-
cias minam cada vez mais instituições como a escola. Para a compreen-
são desta questão, urge aprofundar um pouco mais a abordagem sobre a
natureza da lógica da desqualificação e controlo capitalista proposta nos
capítulos anteriores.

Desqualificação e requalificação
Antes demais vou abordar superficialmente a natureza desse tipo de
controlo. Na produção capitalista, as empresas compram a força do tra-
balho. Ou seja, compram a capacidade que um indivíduo tem de realizar
trabalho e, obviamente, procuram expandir a utilização do trabalho tor-
nando-o mais produtivo. Esta questão tem, no entanto, um lado oposto.
Com a compra da força de trabalho, adquire-se também o "direito" de
estipular (dentro de determinados limites) como deve ser manuseada,
sem muita interferência ou participação dos trabalhadores na con-
cepção e planificação do trabalho1" Naturalmente, a forma como esta

" Clarke, John (1979). "Capital and Culture The Post War Working Class Revisited", in John Clarke, Chas Critcher e
Richard Johnson (eds.), Work~ngClass Culture, London: Hutchinson. Vide também as importantes analises em Braver-
man, Harry (1979). Labor and Monopoly Capital, New York Monthly Review Press; e Burawoy, Michael (1979).
"Toward a Marxist Theory of the Labor Process: Braverman and Beyond", in Politfcs and Sooety VIII (314)
Edwards. Richard (1979) Contested Terrain: The Transfonnation of the Workplace in the Twenrieth Century New York:
Basic Books. p. 17.
estratégia tem sido conduzida varia ao longo do tempo. Empiricamente,
tem havido uma transformação na lógica de controlo, que tem procu-
rado atingir tais propósitos.
Perante este facto, convém diferenciar os tipos de controlo que têm
sido utilizados. No sentido de uma melhor compreensão, vou simplificar
esta questão, usando tipos ideais básicos.
Podemos distinguir três tipos de controlo que têm sido usados com o
intuito de ajudar a conseguir mais trabalho - simples, técnico e buro-
crático. O controlo simples é exactamente isso, dizendo-se simples-
mente a um indivíduo que se decidiu o que deve ser feito e que, ou ele
obedece, ou sofre as consequências. Os controlos técnicos não são tão
óbvios. São controlos inseridos na estrutura física do trabalho. Mais
uma vez, um bom exemplo é o da tecnologia de controlo numérico na
indústria de máquinas, na qual um trabalhador insere um cartão numa
máquina que determina o ritmo e o nível de destreza da operação. Desta
forma, o trabalhador limita-se a ser um simples assistente da máquina.
Por último, o controlo burocrático significa uma determinada estrutura
social em que o controlo é menos visível, dado que os princípios do con-
trolo se encontram nas relações sociais hierárquicas do local de traba-
lho. As regras impessoais e burocráticas relacionadas com a orientação
do trabalho de cada um, os procedimentos de avaliação do trabalho, as
sanções e recompensas são medidas oficial e previamente aprovadas13.
Tem-se apurado, ao longo dos anos, cada um destes modos de controlo,
embora o controlo simples tenda a tornar-se menos importante a
medida que aumentam o volume e a complexidade da produção.
O longo período de experimentação por parte da indústria dos modos
mais eficazes de controlar a produção tem levado a uma série de conclu-
sões. Em detrimento de um controlo simples exercido explicitamente
pelos supewisores ou pessoas com autoridade para tal (e poderia, por-
tanto, ser subvertido pelos trabalhadores), o poder pode-se "tornar invi-
sível" ao ser incorporado na própria estrutura do trabalho. Tal levanta as
seguintes questões: Deve o controlo provir daquilo que parece ser uma
estrutura global legítima? Deve incidir no verdadeiro trabalho e não se
basear em factores que lhe são estranhos (por exemplo, favoritismos,
etc.)? Powentura ainda mais importante, o emprego, o processo e o pro-

l3 Ibid., pp. 19-2 l

214
A forma curricular e a logica do controlo técnico

duto devem ser definidos de uma forma tão precisa quanto possível,
com base no controlo da gerência, não do trabalhador, do conhecimento
especializado necessário para realizar o trabalho14? Habitualmente, esta
questão implica o desenvolvimento do controlo técnico.
O controlo técnico e a desqualificação tendem a caminhar lado a lado.
Como observámos no terceiro capítulo, a desqualificação faz parte de
u m longo processo em que o trabalho é dividido e posteriormente redi-
vidido com o propósito de aumentar a produtividade, reduzir a "inefi-
ciência" e controlar quer o custo quer o impacto do trabalho. Tem
implicado, com frequência, assumir trabalhos relativamente complexos
(a maior parte dos trabalhos são mais complexos e exigem muito mais
tomadas de decisão do que geralmente se imagina), trabalhos que exi-
gem uma enorme destreza, tomada de decisões, e uma divisão em
acções específicas, com resultados concretos, de forma que os trabalha-
dores menos qualificados e mais baratos possam ser utilizados, ou de
modo que o controlo do ritmo do trabalho e do resultado se intensifi-
que. Naturalmente, a linha de montagem é um dos arquétipos de tal
processo. Inicialmente, a desqualificação tendia a envolver técnicas
como o taylorismo e vários estudos de tempo e movimento. Muito
embora tais estratégias para a divisão e controlo do trabalho não fossem
muito eficazes (geraram, contudo, enorme resistência e conflito^)'^,
tiveram êxito ao ajudar a legitimar um estilo de controlo apoiado, em
grande parte, na desqualificação.
Uma das estratégias mais eficazes tem sido a incorporação do controlo
no processo de produção. Desta forma, hoje em dia, a maquinaria nas
fábricas é muitas vezes planeada de forma que o operador não tenha que
fazer mais do que carregar e descarregar a máquina. Nos escritórios, a
tecnologia de processamento de texto é utilizada com o propósito de
reduzir os custos do trabalho e desqualificar as mulheres trabalhadoras.
Assim, a administração tenta controlar não apenas o ritmo de trabalho,
como também as destrezas requeridas para aumentar, de forma mais efi-
caz, as margens de lucro ou a produtividade. Mais uma vez, tal como o
comprova a história da resistência formal ou informal dos trabalhadores,
este género de estratégia - a construção de mecanismos de controlo na

Ibid., p. 1 10
li Vide Noble, David (1977). America By Design. Science, Technology and the Rise of Corporate Capitalism. New York:
Alfred A Knopf; e Burawoy. "Toward a Marxist Theory of the Labor Process".
própria rede e trama do processo de produção - tem sido contestadaI6.
Contudo, é bem explícito o crescente requinte no recurso aos procedi-
mentos de controlo técnico por parte dos empresários e dos burocratas17.
Como frisei, a desqualificação é um processo complexo à medida que
penetra numa variedade de instituições económicas e culturais. No
entanto, não é difícil captar um dos seus mais importantes aspectos.
Quando os trabalhos são desqualificados, o conhecimento que os coad-
juvava, que era controlado e utilizado pelos trabalhadores no dia-a-dia
nos postos de trabalho, desloca-se para algum local. Como analisei no
capítulo terceiro, a gestão tenta (com vários níveis de sucesso) acumu-
lar e controlar esta amálgama de destrezas e de conhecimento. Dito de
outro modo, tenta separar a concepção da execução. O controlo do
conhecimento permite que os órgãos de gestão planifiquem; ideal-
mente, o trabalhador deveria simplesmente realizar as referidas planifi-
cações de acordo com as especificações e o ritmo estabelecidos por pes-
soas distantes do verdadeiro centro da produção.
Contudo, a desqualificação faz-se acompanhar de algo mais, por
aquilo que se poderia denominar por requalificação. São necessárias
novas técnicas que garantam o funcionamento das novas máquinas;
novas ocupações são criadas à medida que se avança com a redivisão do
trabalho. É necessário u m reduzido número de profissionais qualifica-
dos e a grande quantidade de trabalhadores até então existentes é subs-
tituída por u m pequeno número de técnicos com diferentes habilita-
ções que supervisionam as máquinas18. Habitualmente, este processo
de desqualificação e requalificação encontra-se largamente distribuído
pelo campo da economia, o que dificulta um rastreio das relações que
provoca. Não é muito comum vê-lo operar a u m nível de especificidade
tal que se torne explícito, uma vez que enquanto um grupo se encontra
sujeito a processos de desqualificação, um outro grupo, muitas vezes
separado no tempo e no espaço, encontra-se submetido a processos de
requalificação. Todavia, uma determinada instituição - a escola - provi-
dencia u m excepcional microcosmos através do qual podemos consta-
tar estes tipos de mecanismos de controlo em funcionamento.

i t z , (1978). "Marx. Braverman and the Logic of Capital". The Insugent Scciologist VIII. pp. 126-146; e
' 6 A r ~ n ~ ~ Stanley
Montgomery. David (1979). Worker's Control in Arnerica. New York: Carnbridge University Press.
" Edwards, Contested Jerrain.
'' Barker. Jane: Downing, Hazel (1979). "Word Processing and the Transformation of Patriarchal Relations". Birmingham:
University of Birmingham Centre for Contemporary Cultural Studies. Artigo não publicado.
A forma curricular e a lógica d o controlo técnico ;ir

Ao examinar esta questão, convém recordar que a produção capitalista


tem-se desenvolvido desequilibradamente, de forma que determinados
sectores das instituições sociais oscilam de acordo com o tipo de con-
trolo utilizado. Algumas instituições são mais resistentes que outras à
lógica da racionalização empresarial. Dada a natureza relativamente
autónoma do ensino (habitualmente podemos fechar a porta da sala de
aula sem sermos perturbados) e dada a história interna dos tipos de
controlo na instituição (estilos paternalistas de administração, frequen-
temente, nos Estados Unidos, baseados em relações de género), a escola
tem resistido parcialmente ao controlo técnico e burocrático, ao nível
da verdadeira prática, até há bem pouco tempo. Hoje em dia, tal "auto-
nomia relativa" pode estar a desaparecer". Com efeito, tal como o dis-
curso e padrões de interacção diários na família e, digamos, os media
registam transformações progressivas e subtis pela lógica e pelas con-
tradições das ideologias dominantes2', também a escola se assume como
u m espaço onde ocorrem tais transformações ideológicas subtis.
Defendo que tal se verifica através de um processo de controlo técnico.
Como vamos ter ocasião de verificar, as referidas lógicas de controlo
podem ter um impacto profundo nas escolas.

Controlando a forma curricular


Os melhores exemplos de desenvolvimento dos procedimentos de
controlo técnico encontram-se no recurso crescente da utilização de
conjuntos pré-empacotados de materiais curriculares. Por exemplo,
hoje em dia, é quase impossível entrar numa sala de aula nas escolas
norte-americanas sem se deparar com caixas nas prateleiras ou a serem
utilizadas contendo materiais de Ciências, Estudos Sociais, Matemática
e de leitura (por vezes denominados "sistemas")". Neste contexto,
habitualmente um sistema escolar adquire um conjunto completo de
material estandardizado que inclui a descrição dos objectivos, todo o

'' Dale, Roger (1979). "The Politicization of School Deviance". In Len Barton & Roland Meighan (eds ). School, Pupils and
Deviance. Driffield. Nafferton Books, pp 95-1 12
'O Gitlin. Todd (1979) "Prime Time Ideology. The Hegemonic Process in Television Entertainment" Social Problems XXVII.
pp 251-66. Neste caso é ainda importante o livro de Wexler Philip. Crrtrcal Social Psychology. London. Roiitledge &
Kegan Paul, no prelo, sobre a discussão da mercantilização das rela(-óesintimas.
" Este fenómeno náo se circunscreve apenas a realidade norte-americana. As subsidiárias estrangeiras das companhias
que produzem tais materiais transferem e comercializam os produtos no Terceiro Mundo e noutros mercados. Fm mui-
tos aspectos. e semelhante ao imperialismo cultural da Walt Disney Productions. Vide. por exemplo, Dorfman. Ar~el.e
Mattelart, Armand (1975), How To Read Donald Duck, New York: International General Editions.
conteúdo curricular e material necessário, pré-especificação das acções
, dos professores e das respostas adequadas dos alunos e testes de diag-
nóstico e de desempenho coordenados com o sistema. Geralmente,
estes testes implicam um conhecimento curricular "reduzido" a "apro-
priação" de destrezas e comportamentos. Esta ênfase colocada nas des-
trezas revelar-se-á extremamente importante na análise que vou fazer
mais adiante.
Deixem-me dar um exemplo, a partir de um dos sistemas curricula-
res mais largamente utilizados, entre o grande conjunto de materiais
que se tornaram estandardizados nas escolas básicas norte-americanas.
O exemplo é extraído do "Módulo 1 de Ciência: Uma Abordagem de
Processo". A noção "módulo" é aqui muito importante. O material
encontra-se pré-empacotado em caixas de papelão com cores atractivas.
Está dividido em 105 módulos separados, cada um deles incluindo um
conjunto de conceitos predeterminados a serem ensinados. O material
especifica todos os objectivos. Inclui tudo o que um professor "neces-
sita" para ensinar, contém já as etapas pedagógicas que um professor
deve dar de forma a atingir tais objectivos e também inclui processos
de avaliação. Mas isto não é tudo. Não só pré-especifica quase tudo o
que o professor deve saber, dizer e fazer, como ainda, frequentemente,
oferece um quadro sobre as respostas adequadas dos alunos a tais ele-
mentos.
Com o propósito de esclarecer ainda mais esta questão, eis uma
sequência retirada do material que descreve o procedimento institucio-
nal, a resposta do aluno e a actividade avaliativa. Relaciona-se com as
cores:
"Assim que a criança chegar a escola prenda u m rectângulo de
papel vermelho, amarelo ou azul na sua roupa... e faça um comentá-
rio sobre a cor do papel, pedindo a criança para dizer o nome da cor
que tem...
Coloque trinta quadrados de papel amarelo, vermelho ou azul num
saco grande ou numa pequena caka. Mostre as crianças três fichas de
papel: uma vermelha, outra amarela e outra azul. (Para sugestões
sobre como devem ser pintadas, ver "Materiais".)Estas cores devem
ser exactamente as mesmas que se encontram no saco. Peça & crian-
ças que se dirijam, poucas de cada vez, para a frente da sala de aula e
faça com que cada uma tire um quadrado do saco colocando-osobre a
ficha marcada com a cor correspondente. [Precisamente para que o
A forma curricular e a lógica do controlo técnico 41

professor não tenha dúvidas, é inserida neste ponto do material uma


fotografia que retrata uma criança a tirar u m papel do saco e a
colocá-lo sobre uma ficha]. A medida que cada criança vai tirando u m
quadrado colorido, pergunte-lhe o nome da cor do referido quadrado.
Se a criança hesitar, diga-lhe o nome.'""

Tudo, excepto a sacola ou a caixa, está incluído no material curricular


fornecido - todas as fichas e papéis coloridos.
Tive oportunidade de verificar que não são apenas os elementos curri-
culares e pedagógicos que se encontram pré-especificados, mas também
todos os aspectos relacionados com a acção do professor. Assim, na
"Avaliação" deste módulo, pede-se ao professor que:
"Peça a cada grupo de seis crianças que traga uma caixa de lápis de
cera e que se sentem juntas ... Peça a cada criança que aponte para o
lápis vermelho quando o professor pronunciar a palavra "vermelhoJ<
Repita este exercício para todas as seis cores. Peça a cada criança para
fazer corresponder u m lápis com uma peça de vestuário que alguém
traga vestida... Antes que cada grupo deue a actividade, peça a cada
criança para, individualmente, dizer e apontar para os lápis vermelho,
azul e amarelo.'"''

Mesmo com esta quantidade de orientação, é ainda "essencial" que se


saiba se cada criança atingiu ou não o nível adequado de destreza. Desta
forma, como um elemento final, o material traz incluído medidas de
destreza. Nesta etapa a especificação atinge o seu estágio mais pormeno-
rizado, dando ao docente as palavras exactas que deve utilizar:
Tarefa 1: Mostre à criança u m cubo amarelo e pergunte: Qual é a
cor deste cubo?

Esta tarefa é feita para cada cor. Posteriormente, após colocar os cubos
laranja, verde e roxo em frente de uma criança, o material prossegue:
Tarefa4: Diga: Coloca o dedo sobre o cubo laranja.
Tarefa 5: Diga: Coloca o dedo sobre o cubo verde.
Tarefa 6: Diga: Coloca o dedo sobre o cubo roxo".

" Science, A Process Approach: Module One (Lexington: Ginn & Co.. 1974). pp. 3-4.
" Ibid, p. 7 .
" Ibid.
Alonguei-me um pouco na transcrição do exemplo para dar a ideia da
abrangência do controlo técnico na vida da escola. Muito pouco daquilo
que poderia ser metaforicamente denominado por "processo de produ-
ção" é deixado ao acaso. Em muitos aspectos, poder-se-ia considerá-lo
como a descrição de um processo de desqualificação. Observemos esta
questão mais detalhadamente.
Neste caso, o meu objectivo não é o de argumentar contra o conteúdo
curricular ou pedagógico específico desse tipo de material, muito
embora uma análise desse género pudesse ser interessante'". Pelo con-
trário, pretendo debruçar-me sobre a forma. Que impacto provoca?
Repare no que acontece aqui. Os objectivos, o processo, o resultado e os
critérios de avaliação são definidos o mais precisamente possível por
pessoas externas a situação. No caso da avaliação de competências no
final do módulo, tal inclui a especificação precisa das palavras que
devem ser proferidas pelo professor.
Repare também no processo de desqualificação em vigor. As destrezas
de que os docentes habitualmente necessitavam, tidas como essenciais
para a arte de trabalhar com crianças - tais como a planificação e a
deliberação do currículo, a planificação de estratégias curriculares
e de ensino para grupos e indivíduos específicos, com base n u m
conhecimento íntimo das referidas pessoas -, já não são necessárias.
Com o fluxo massivo de materiais pré-empacotados, a planificação
separa-se da execução. A planificação realiza-se ao nível da produção,
tanto das regras para a utilização do material, como do próprio
material. A execução é empreendida pelo docente. No decorrer do
processo, aquilo que previamente se considerava como destreza válida,
gradualmente, vai-se atrofiando, porque são exigidas com menor
frequênciaz6.

A título de exemplo, wde a análise que realizo sobre os currículos de Ciências em Apple, Michael (1979). Ideology and
Curr~culurn,London Routledge & Kegan Paul
'6Todavia, não 6 minha intencao romantizar aquele passado. Muitos professores provavelmente simplesmente seguiam
antes o manual. Contudo, o nível de especificidade e a integracão dos aspectos curriculares. pedagógicos e avaliativos
da vida na sala de aula num sistema e acentuadamente diferente A utilização do sistema transporta consigo muito
mais controlo técnico de cada aspecto do ensino do que os currículos anteriores baseados no manual Obviamente.
alguns professores não seguirão as normas do sistema Mas. face ao nível de integração, será indiscutivelmente muito
mais difícil ignorá-lo dado muitos sistemas constituírem o programa central ou unico naquela area curricular em toda a
escola ou distrito Desta forma, a responsabilidade perante o próximo nível escolar e a prestação de contas aos gestores
dificultam a possibilidade de ignorá-lo Regressarei mais a frente a esta questão
Para uma interessante análise teórica sobre o desenvolvimento histórico e das razões que levaram outros a denominar
por "alienação do professor a partir dos seus produtos" no decorrer do referido processo de desqualificação. vide
Levin, Henry (1980). "Education Production Theory and Teacher Inputs", in Charles Bidwell e Douglas Windham (eds ).
The Analysa of Educat~onalProductiv~ty, volume 11, Cambridge, Mass Ballinger Press, pp. 203-231
A forma curricular e a lógica do controlo técnico -

O que dizer da requalificação que, tal como tive oportunidade de refe-


rir anteriormente, é fundamental para a compreensão do modo como as
formas ideológicas podem penetrar no centro de instituições como as
escolas? Contrariamente a economia, onde, geralmente, a desqualifica-
ção e a requalificação não surgem a actuar num único e preciso
momento, com uma única e mesma pessoa, na escola é exactamente
isso que acontece. A medida que os procedimentos de controlo técnico
entram na escola sob a forma de "sistemas" pré-planificados de currí-
culo, ensino e avaliação, os professores vão sendo desqualificados. No
entanto, também vão sendo requalificados de uma forma que não deixa
de ser inconsequente. Podemos constatar sinais disto mesmo quer nas
instituições de formação de professores, nos cursos de formação, nos
jornais e revistas dirigidos aos docentes, nos padrões de financiamento e
de matrícula, quer nos próprios materiais curriculares em vigor.
Enquanto a desqualificação implica a perda da técnica, a atrofia progres-
siva das destrezas pedagógicas, a requalificação envolve a substituição
pelas destrezas e visões ideológicas capitalistas. O crescimento das téc-
nicas de modificação de comportamento e das estratégias de gestão da
sala de aula e a respectiva incorporação quer dos materiais curriculares,
quer do repertório dos professores traduzem esse tipo de modificação.
Ou seja, à medida que os professores vão perdendo o controlo das des-
trezas curriculares e pedagógicas para as grandes editoras, tais destrezas
são substituídas por técnicas para melhor controlar os alunos.
Este fenómeno, pelas repercussões que acarreta para professores e
alunos, não é insignificante. Uma vez que o material, frequentemente,
se organiza e utiliza procedimentos e resultados específicos que se
encontram incluídos no próprio tipo de material (juntamente com
numerosas folhas de exercício e de testes), ele é "individualizado" sob
muitos aspectos. Os alunos, à medida que se tornam mais familiarizados
com os procedimentos, que são profundamente estandardizados, podem
manusear sozinhos o material, quase não necessitando de uma interac-
ção explícita com o docente ou entre si. O progresso dos alunos através
do sistema pode ser individualizado, pelo menos no que diz respeito ao
ritmo; e tal foco na individualização do ritmo (em geral através de
folhas de exercício e afins) em que o aluno progride através do sistema,
tem-se acentuado ainda mais nos sistemas curriculares mais recentes.
Dado que o controlo é técnico - isto é, as estratégias de gestão são
incorporadas no referido controlo como um aspecto importante da
própria "maquinaria1' pedagógica/curricular/avaliativa - o professor
torna-se algo semelhante a um gerente. Isto acontece ao mesmo tempo
que as condições objectivas do trabalho desenvolvido pelo docente se
tornam progressivamente "proletarizadas", dada a lógica de controlo
técnico da forma curricular. Tal situação é peculiar e, certamente,
requer uma análise mais detalhada. O impacto possível de tais formas de
controlo técnico sobre os alunos é uma questão igualmente séria e é
algo a que devo retornar a breve trecho.
Para além da desqualificação e da requalificação, verificam-se outras
consequências importantes. Como reaviva a literatura relacionada com
o processo de trabalho, a divisão e o controlo progressivos do trabalho
têm provocado um impacto ao nível das relações sociais, na forma como
as pessoas se envolvem e interagem. Muito embora esta questão tenha
tido um impacto profundo nas fábricas e escritórios, os seus efeitos
serão, sem dúvida, sentidos também ao nível da escola. E a exemplo do
que acontece no local de trabalho, o impacto pode originar efeitos con-
traditórios.
No que diz respeito a esta questão, deixem-me ser um pouco mais
específico. Com a utilização crescente de sistemas curriculares pré-
-empacotados, como a forma curricular básica, virtualmente não se
exige qualquer interacção ao professor. Se quase tudo se encontra racio-
nalizado e especificado previamente a execução, então o contacto entre
os professores relacionado com os verdadeiros assuntos curriculares é
minimizadoZ7.
Se tal controlo técnico é eficaz, ou seja, se os professores realmente
respondem através de formas que implicam a aceitação da separação
entre planificação e execução, então podemos esperar resultados que
ultrapassem essa "simples" separação. Podemos esperar, ao nível da prá-
tica da sala de aula, que se tornará mais difícil para os professores obter,
em conjunto, o controlo sobre as decisões curriculares, dado o isola-
mento crescente em que se encontram. Em essência, se tudo está prede-
terminado, não há necessidade de uma interacção entre os professores.

" Isto pode ser semelhante ao que sucedeu nas primeiras fdbricas na Nova Inglaterra. quando os processos estandardiza-
dos de produção diminuíram abruptamente o contacto entre os trabalhadores. Vide Edwards. Contested Terrain, p. 114.
Todavia, um recente trabalho da autoria de Andrew Gitlin descreve que nalguns ambientes a interacção aumenta. con-
tudo. relativamente as questões tecnicas levantadas pelo material. No referido trabalho, os professores lidam inicial-
mente com problemas de eficiencia organizacional face As pressões da própria forma curricular. Vide Gitlin, Andrew
(1980). Understanding the Work o f Teachers, University of Wisconsin, Madison. Tese de doutoramento não publicada
A forma curricular e a lógica do controlo técnico *

Estes tornam-se indivíduos sem vínculos, divorciados quer dos colegas


quer da verdadeira matéria do trabalho. Todavia, e aqui radica parte do
que pretendo dizer quando me refiro a '(efeito contraditório", muito
embora isto possa representar uma estimativa precisa de um dos resul-
tados do controlo técnico a um determinado nível, o facto é que ignora
que a maioria dos sistemas de controlo transportam consigo as suas
próprias contradições. Por exemplo, embora a desqualificação, as formas
de controlo técnico e a racionalização do trabalho tenham criado indiví-
duos isolados em fábricas, historicamente e por inúmeras vezes produ-
ziram também pressões contraditórias. Frequentemente, a utilização do
controlo técnico tem trazido, por arrastamento, a sindicalização".
Mesmo tendo em consideração a ideologia do profissionalismo (uma
ideologia que pode dificultar o desenvolvimento de lutas colectivas), que
tende a dominar determinados sectores do ensino, outros funcionários
do Estado, que no passado se chegaram a conceber como profissionais,
tiveram êxito na conquista de u m maior sentido colectivo como res-
posta a métodos idênticos de controlo. Desta forma, a perda de controlo
e de conhecimento numa determinada área pode originar tendências
contrárias noutra.
Neste momento, não podemos dizer como tal se processará. Tais
resultados contraditórios só surgirão após longos períodos de tempo. Na
indústria, foram preciso décadas para que o impacto fosse sentido. Sem
dúvida que irá suceder o mesmo com as escolas.

Aceitando o controlo técnico


Ao longo deste capítulo, tenho perspectivado os professores como
trabalhadores. Dito de outro modo, defendi que os processos que inci-
dem sobre trabalhadores das fábricas e dos escritórios na esfera social
mais abrangente entrarão e estão a entrar nas formas culturais consi-
deradas legítimas nas escolas. Entretanto as escolas, dada a sua própria
história interna, são diferentes, sob aspectos muito importantes, das
fábricas e dos escritórios, e os professores são ainda bem mais diferen-
tes de outros trabalhadores em termos de condições de trabalho. Os
produtos não são tão explícitos (a não ser muito posteriormente na
reprodução aproximada da força de trabalho, na produção e reprodução
das ideologias e na produção do conhecimento técnico/administrativo
"requerido" pela e c ~ n o m i a ) 'como
~ nos escritórios e nas fábricas. Os
professores têm aquilo que Erik Olin Wright denomina por "localização
contraditória de classe" e, assim, não se pode esperar que reajam da
mesma forma que os trabalhadores e empregados das grandes empre-
sas3'. Além disso, há crianças que interagem com os professores de
mesma maneira que um automóvel numa linha de montagem ou um
papel sobre uma mesa - isto é, nada conseguem fazer3'. Finalmente, o
ensino não acontece numa linha de montagem, mas, na maioria dos
casos, em salas separadas.
Todas estas condições não significam que as escolas se encontrem
imunes ou sejam autónomas a lógica do capital. A lógica será mediada
(em parte devido ao facto de a escola ser um aparelho de Estado);
entrará, por onde puder entrar, sob formas parciais, distorcidas ou codi-
ficadas. Face as diferenças específicas entre as escolas e outros locais de
trabalho, não será tanto ao nível do controlo simples ou explícito (faz
isto porque te digo para o fazeres) ou ao nível das formas de controlo
burocrático (porque determinados professores podem ainda encontrar-
-se relativamente livres desse tipo de interferência) que se verificam tais
penetrações". Naturalmente que esses tipos de controlo ocorrerão; mas
podem ser menos importantes que a inclusão codificada do controlo téc-
nico na própria essência da forma curricular.
Estas formas de controlo não entram nas escolas devido a qualquer
conspiração por parte dos industriais no sentido de fazer com que as
instituições educativas sirvam os interesses do capital, tal como foi
possível verificar com os exemplos anteriormente citados do "Green
Paper" e "Ryerson Plan". Em grande parte acontecem precisamente porque
as escolas são um mercado muito lucrativo. Este conjunto de materiais é

" Apple. Ideology and Curriculurn. e Noble, Arnerica By Design Poder-se-ia também argumentar que as escolas operam
para criar um valor de uso e não um valor de troca. Erik Olin Wright, comunicaçáo pessoal
O' Olin Wright, Erik (1978). Class, Crisis and theState. London: New Left Books.
'' Assim, quaisquer resultados da escolarizaçao devem ser analisados como os "produtos" das resistências culturais. poli-
ticas e econ6micas e ainda como conjuntos de determinações estruturais, tal como tive oportunidade de referir no capi-
tulo 4. Vide Apple, Michael W. (1980). "Analyzing Determinations: Understanding and Evaluating the Production of
Social Outcomes in Schools", Curriculurn Inquiry X, pp 55-76
" Náo pretendo ignorar a questso da relaçáo entre capitalismo e burocracia. Weber e outros não estavam errados
quando salientaram que há necessidades de racionalizaçáoespecíficas das próprias formas burocraticas.Todavia, nem a
forma como a burocracia cresceu nas economias corporativas. nem os seus efeitos foram neutros. Esta questão surge
tratada mais pormenorizadamente em Clawson. Daniel C. (1978). Class Struggle and the Rise o f Bureaucracy, State
University of New York, Stony Brook. Tese de doutoramento não publicada. Vide, tambem. Wright. Class. Crisn and the
State.
A forma curricular e a lógica do controlo técnico

publicado pelas firmas que os comercializam de uma forma agressiva


onde quer que exista necessidade ou onde possam criar necessidades.
A comercialização de material deste género é simplesmente uma boa
prática comercial em termos de margens de lucro uma vez que a com-
pra pela primeira vez do "sistema" ou grupo de módulos implica o
aumento de compras ao longo dos anos. Deixem-me explicar esta ques-
tão, comparando-a com outra área em que se utilizam técnicas seme-
lhantes para aumentar a acumulação de capital. Tomemos como exem-
plo os barbeiros. Grandes fábricas de lâminas de barbear vendem as
lâminas abaixo do preço de custo, ou até, em determinadas épocas do
ano, oferecem-nas como "brindes" de promoção, uma vez que acreditam
que uma vez adquirida a lâmina as pessoas continuarão a comprar a
mesma e as consequentes versões actualizadas ano após ano. Nos siste-
mas curriculares que aqui estamos a analisar, o significado é o mesmo
que a compra dos módulos (alguns baratos) com os seus conjuntos de
material estandardizado. É "preciso" continuar a comprar folhas de
exercício e de testes, os químicos, os papéis com o formato e cores ter-
tas, as substituições dos materiais e lições obsoletas levadas a cabo pelas
editoras, etc. O lucros aumentam a medida que se procede a cada subs-
tituição. Uma vez que a compra das actualizações de material é, fre-
quentemente, um processo centralizado no escritório do gestor, por
motivos relacionados com o controlo do orçamento, o material adicio-
nal é comprado directamente do produtor (habitualmente a preços
exorbitantes) e não nas livrarias a nível local.
Deste modo, tal como as restantes indústrias, tal "boa prática comer-
cial" significa grandes volumes de negócio, a estandardização de cada
um dos elementos do produto vendido e da sua forma, actualização do
produto e, depois, o estímulo as compras de substituição, elementos
cruciais para assegurar os
No entanto, a noção de uma comercialização agressiva e a ideia de
bom negócio são apenas uma explicação parcial de tal crescimento. A
fim de compreendermos totalmente a aceitação dos procedimentos de
controlo técnico inserido na forma curricular precisamos de perceber
a história inicial desse tipo de materiais. Deixem-me resumir esta his-
tória.

Barker e Downing. "Word Processing and the Transformation of Patriarchal Relations". Vide também Noble, America
By Design, e a sua opiniáo sobre a estandardizaçáoe a sua relação com a acurnulaçáo de capital.
A introdução original de material pré-empacotado foi estimulada por
uma rede específica de forças políticas, culturais e económicas nos
anos 50 e 60, nos Estados Unidos. A perspectiva, por parte dos académi-
cos, de que o docente não revela preparação em muitas áreas do currí-
culo "obrigava" à criação daquilo que se denominou por "materiais à
prova de professor". O clima de guerra fria (na sua maior parte, criado
e estimulado pelo Estado) levou a uma ênfase na produção eficiente de
cientistas e de técnicos, bem como à criação de uma força de trabalho
significativamente estabilizada; deste modo, tornava-se assim cada vez
mais importante a "garantia" de tal produção através do currículo esco-
lar34. A acrescentar a tudo isto, a decisão do aparelho educativo do
Estado, através do National Defense Education Act, providenciando o
equivalente a benefícios financeiros às Direcções Regionais na compra
de novos currículos criados pelo "sector privado", a fim de aumentar
a eficiência. Simultaneamente, as dinâmicas internas da educação
desempenhavam o seu papel, uma vez que a psicologia comportamen-
tal e da aprendizagem - cujos princípios fundamentam muitos destes
sistemas - adquiriam um prestígio crescente num campo como o edu-
cativo, em que ser considerado como uma ciência era um acto critica-
mente importante, quer para a obtenção de financiamentos, quer para
desviar a crítica35,fortalecendo, desta forma, a sua legitimidade no seio
do aparelho de Estado e no público. Num passado mais recente, a
influência crescente do capital industrial dentro dos ramos executivo e
legislativo do governo, bem como a burocracia auxiliar36, constitui,
sem dúvida, um elemento essencial, dado existir uma evidência recente
de que o governo federal tem recuado na produção e distribuição gene-
ralizada de currículos de grande escala, preferindo estimular o "sector
privado" de modo que este se envolva mais profundamente em tal pro-
d~ção~~.
Isto permite-nos uma visão rápida da história, no entanto, por que
razão tal movimento perdura ainda actualmente? Um elemento-chave.

Spring. loel(1976) The Sorting Machine New York David McKay.


Apple, Ideology and Curriculum
'' Vide. por exemplo, O'Connor. The Fiscal Crisis o f the State
" Entre as razoes para o facto de o Estado se ter retirado lenta mas seguramente de tal p r o d u ~ ã oe distribui~àorepousa
a controvérsia envolvendo "Man A Course of Study" e, sem dúvida. os intensos esfor(os de lobbies por parte dai
editoras As empresas deixarão o governo socializar os custos do desenvolvimento. todavia obviamente prefeririam
empacotar e distribuir os currículos sozinhas. Ver Apple, Michael W (1977). "Politics and National Curriculum Policy"
Curriculum hquiry VI1 (7). pp. 351-361
A forma curricular e a lógica do controlo técnico

neste caso, encontra-se na visão da escola como um aspecto do aparelho


de Estado. Com efeito, a necessidade que o Estado tem de consenti-
mento e de controlo implica formas de controlo na escola que serão
codificadas através de formas específicas".
A importância estratégica da lógica do controlo técnico nas escolas
repousa na sua capacidade para integrar num único discurso o que era
visto, frequentemente, como sendo movimentos ideológicos em compe-
tição e, desta forma, para tentar gerar consentimento da parte de cada
um deles. A necessidade que os gestores administrativos têm de con-
trolo e de prestação de contas, as verdadeiras necessidades dos professo-
res de algo que seja '(prático" para utilizar com os alunos, o interesse do
Estado na produção eficiente e salvaguarda dos custo^^^, as preocupa-
ções dos pais com uma "educação de qualidade" que "funcione" (uma
preocupação interpretada de forma diferente pelas classes distintas e
segmentos de classe), as exigências próprias do capitalismo industrial
por uma produção eficiente, etc., tudo isto pode ser agrupado. Mais uma
vez aqui podemos constatar como podem ser cumpridas duas das
importantes funções do Estado. O Estado pode apoiar o processo de acu-
mulafão de capital providenciando um "processo de produção" mais efi-
ciente nas escolas. Paralelamente, pode legitimar a sua própria activi-
dade moldando o discurso numa linguagem suficientemente abrangente
de forma a fazer sentido a cada um dos que vê como parte da sua clien-
tela e, no entanto, suficientemente específica para providenciar algumas
respostas práticas para aqueles que, como os professores, a "requerem".
Tendo em consideração que a forma adoptada por tais sistemas curricu-
lares é muito controlada, tornando a "prestação de contas" mais acessí-
vel, que é habitualmente individualizada ( u m elemento ideológico
importante na cultura da nova pequena burguesia), que enfatiza a
aprendizagem de destrezas numa época em que se vive uma suposta
crise no ensino de ('destrezas básicas", etc., tudo isto assegura, pratica-

' mente, a sua aceitação por parte de uma vasta gama de classes e grupos
de interesses.

j8 Donald, "Green Paper: Noise of a Crisis". 44.


j9 Isto não significa que o Estado sempre serve directamente as necessidades do capital industrial. Tal como referi no capl-
tulo 4, o Estado. na realidade, tem um grau significativo de autonomia relativa sendo tambem um espaço de conflito
de classes. Vide Donald. "Green Paper: Noise of a Crisis". Wright. Clao, Crisis and the State, e Dale, Roger (1982).
"Education and the Capitalist State Contributions and Contradictions". in Michael W. Apple (ed.). Cultural and Econo-
mic Reproduction in Education: Essays on Class, Ideology and the State, London Routledge & Kegan Paul.
Assim, a lógica do controlo é mediada e reforçada pelas necessidades
dos burocratas do Estado de procedimentos racionais e passíveis de presta-
ção de contas e ainda pela trama específica de forças que incidem sobre
o próprio Estado. A forma curricular assumirá os aspectos necessários
para a realização da acumulação e da legitima~ão*~. Como afirma Clark:
"Mesmo quando as instituições alcançam a lógica requerida pelo capi-
tal, a sua forma e direcçüo nunca expressam o resultado de uma
imposição unidireccionalpor parte do capital. Implicam u m complexo
trabalho político de concessão e compromisso, quanto mais não seja
para garantir a legitimidade do Estado perante a opinião popular."41

É precisamente o que tem acontecido com a utilização deste tipo de


forma curricular.

O indivíduo possessivo
Tenho vindo a analisar o aumento no trabalho dos professores de sis-
temas de controlo técnico que se encontram incorporados na forma
curricular. No entanto, os professores não são os únicos actores presen-
tes no quadro em que encontramos o referido material. Existem tam-
bém os alunos.
Vários autores têm salientado que cada tipo de formação social
"requer" um tipo particular de indivíduo. Williams e outros, por exem-
plo, têm-nos ajudado a descrever o desenvolvimento de um indivíduo
abstracto, nascido das práticas teóricas, culturais e económicas do capi-
t a l i ~ m o Não
~ ~ . estamos perante meras mudanças na definição de indiví-
duo, mas perante transformações nos verdadeiros modos de produção,
reprodução e consumo material e cultural. Ser indivíduo na sociedade
significa uma inter-relação complexa entre os significados e as práticas
diárias e um modo "externo" de produção. Muito embora não pretenda

''Todavia. conforme tive ocasião de salientar anteriormente, deveríamos recordar-nos que a acumulação e a legitimaçáo
podem, por vezes, estar em conflito entre si. Vide Wright, Class, Crisis and the State, para uma análise de possíveis con-
tradiçóes e para uma abordagem da crucialidade de se compreender o modo como o Estado e as burocracias medeiam
e retroagem sobre "determinações econ6micas". Muito embora não tenha especificamente afirmado isto aqui, a trans-
formação do discurso nas escolas e semelhante e precisa ser analisada a luz do processo descrito por Habermas na sua
análise sobre os interesses constitutivos da acção intencionallracional Abordo esta questáo com alguma profundidade
em Apple. Ideology and Curriculum
'' Clarke, Capital and Culture The Post War Working Class Revisited, p 241
'Williams, Raymond (1961). The Long Revolution London Chatto & Windus, e MacPherson, C. 0. (1972) The Political
iheory o f Possessive Individualism New York Oxford University Press
A forma curricular e a lógica do controlo técnico -

neste caso introduzir um simples modelo do tipo base/superstrutura, o


facto é que em alguns aspectos importantes existe uma relação dialéc-
tica entre as formas económica e cultural. Tal como Gramsci e outros
autores colocariam, a hegemonia ideológica sustenta a dominação de
classe; as subjectividades não podem ser vistas como não estabelecendo
uma relação com a estrutura. No entanto, permanecem as seguintes
questões: De que forma se encontram relacionadas? Quais os locais
onde se desenvolve tal relação? A escola oferece um espaço importante
através do qual podemos observar o desenvolvimento de tais questões.
Como observa Richard Johnson: "Não é tanto uma questão de que as
escolas ... são ideologia, muito mais do que isso são locais onde as ideo-
logias são produzidas na forma de s~bjectividades"~~.
Mas que tipo de subjectividade, de ideologia e de indivíduo pode estar a
ser produzido aqui? As características corporificadas nos modos de con-
trolo técnico inseridos na própria forma do currículo são idealmente
apropriadas para a reprodução do indivíduo possessivo, uma visão de si
mesmo que se encontra na essência ideológica das economias capitalistas.
A concepção de individualismo inerente ao material que temos vindo
a analisar é muito idêntica às de outras análises relativas aos aspectos
do aparelho cultural da sociedade. Por exemplo, como demonstrou Will
Wright, na recente investigação sobre o papel de artefactos culturais
como os filmes, enquanto portadores e legitimadores de mudanças cul-
turais, aspectos importantes do aparelho cultural representam um
mundo no qual a sociedade reconhece cada membro como um indiví-
duo; contudo, tal reconhecimento depende quase inteiramente de des-
trezas técnicas. Paralelamente, apesar de reforçarem o valor da compe-
tência técnica, os referidos filmes conduzem o indivíduo à rejeição da
importância dos valores éticos e políticos através da sua forma. Descre-
vem um determinado individualismo, contextualizado numa economia
capitalista, em que "o respeito e a amizade só serão atingidos caso a pes-
soa se torne num técnico competente". O indivíduo aceita e faz qual-
quer trabalho técnico que lhe é oferecido e apenas deve lealdade aos que
possuam uma idêntica competência técnica e não, primordialmente, a
"quaisquer valores comunitários e sociais em c ~ m p e t i ç ã o " ~ ~ .

Johnson, Richard (1978) "Three Problematics. Elements of a Theory of Working Class Culture". In John Clarke. Chas
Critcher e Richard Johnson (eds.), Working Class Culture. London: Hutchinson, p. 232
" Wright, WiII (1975) S~xgunsand Society Berkeley: University of California Press. p. 187.
Um exame efectuado a estes "sistemas" curriculares revela a ampli-
tude em que ocorre esse tipo de movimento ideológico, através de for-
mas curriculares, cada vez mais dominantes. Em tais sistemas, a cadên-
cia em que um estudante avança é individualizada; todavia, tanto o
verdadeiro produto obtido, como o próprio processo são especificados
pelo próprio material". Deste modo, não é "só" o professor que enfrenta
a invasão do controlo técnico e a desqualificação. As respostas dos alu-
nos são também profundamente pré-especificadas. A maior parte do
leque crescente de materiais tenta, o mais possível, especificar não só a
linguagem, mas também a acção adequada do aluno, frequentemente
reduzindo-as à aprendizagem de conjuntos de competências ou de des-
trezas. Neste contexto, parece-me correcta a análise de Wright.
A ideia de reduzir o currículo a um conjunto de destrezas é importante,
uma vez que se insere num processo mais abrangente através do qual a
lógica do capital apoia a construção de identidades e transforma significa-
dos e práticas culturais em mercadorias4'j.Ou seja, se o conhecimento em
todos os seus aspectos (do tipo lógico como "quê", "como" ou "para quê" -
isto é, informação, processos e predisposições ou tendências) é fragmen-
tado e mercantilizado, então, e à semelhança do que acontece com o capi-
tal económico, também pode ser acumulado. O estigma de um bom aluno
é a posse e acumulação de uma vasta quantidade de destrezas ao serviço
dos interesses técnicos. Esta questão é muito interessante enquanto meca-
nismo ideológico de manutenção da hegemonia. As pessoas, numa socie-
dade mais ampla, consomem como indivíduos isolados. O seu valor é
determinado pela posse de bens materiais ou, como Will Wright salientou,
de destrezas técnicas. A acumulação de tais bens ou do "capital cultural"
de competência técnica - neste caso, fracções atomísticas de conheci-
mento e destrezas medidas por pré-testes e pós-testes - é um procedi-
mento técnico que exige apenas a aprendizagem de destrezas técnicas pré-
vias necessárias e tempo suficiente para o cumprimento das regras, de
acordo com um determinado ritmo, até à conclusão. É a mensagem da
nova pequena burguesia que extravasa para o campo ideológico da escola,
mensagem que pode, na verdade, conduzir à sua rejeição por parte dos
estudantes de outras classes ou segmentos de classe no dia-a-dia da escola.

O trabalho de Bernstein sobre classe e c6digos educacionais e aqui interessante Tal como salienta o autor, "o ritmo do
conhecimento educativo baseia-se na classe" Bernsteln, Basil (1977) Class, Codes and Control, volume 3 London
Routledge & Kegan Paul, p 113
4 6 A r ~ n ~ Stanley
~ ~ t z ,(1973) Fake Promises New York McGraw-HiII. p 95
A forma curricular e a logica do controlo tecnico

Com efeito, poderíamos adiantar a hipótese de tal tipo de movimento


expressar uma indicação sobre a importância crescente, no aparelho
cultural, das ideologias de segmentos com localizações de classe con-
traditórias, em particular o que denominei por nova pequena burguesia
- os g r u p o s q u e c o m p õ e m a s ocupações técnicas e de gestão
intermédia47. Neste caso, o tipo particular de individualismo registado
constitui uma interessante mudança, de uma ideologia de autonomia
individual, em que uma pessoa é chefe de si própria e controla o seu
destino, para u m individualismo carreirista. Aqui o individualismo
encaminha-se para a mobilidade organizacional e para o avanço
mediante regras técnicas. Como salienta Erik Olin Wright, para a nova
pequena burguesia o "individualismo encontra-se estruturado de
acordo com os requisitos do desenvolvimento burocrático"". Pode
inclusive ser o "reflexo" codificado da progressiva proletarização do tra-
balho mental. Na verdade, enquanto o individualismo anterior expres-
sava um sentido de autonomia relacionado com o modo como se traba-
lhava e como se produzia, para uma determinada percentagem dos
empregados afectos a trabalhos não propriamente manuais a autono-
mia tornou-se em algo t r i v i a l i ~ a d o ~O~ritmo
. de trabalho de cada um
pode ser individualizado, no entanto, o trabalho em si, a sua realização
e ainda as especificações precisas do produto final, tudo isto é, cada vez
mais, predeterminado.
Nesta fase, ficamos ainda c o m m u i t a s questões por resolver.
Quando o controlo técnico implica uma forma curricular altamente
especificada, que é individualizado numa tal amplitude que exige
pouca interacção com os alunos, de forma que cada actividade é
necessariamente vista como um acto intelectual individual de des-
treza, e m que as respostas assumem, frequentemente, a forma de
simples actividades físicas (como vimos no módulo anteriormente
analisado), em que as respostas são consideradas certas ou erradas
com base na aplicação de regras técnicas, e esse tipo de forma é
seguido durante todo o ensino básico, qual o efeito sobre os professo-
res e estudantes que interagem diariamente com esse tipo de forma
ao nível da prática?

Wright, Class, Crisis and the State. p. 79.


" Ibid., p. 59.
'' Ib~d..p. 81. Vide também Braverman, Labor and Monopoly Capital
Temos, na verdade, evidências que indicam o efeito de tais procedi-
mentos sobre os trabalhadores tanto nas indústrias como nos escritórios.
Em muitos casos, mesmo com o desenvolvimento de uma cultura do
trabalho que providencia condições para formas culturais de resistência,
a racionalização crescente e um nível mais refinado de controlo, ao
longo de um período extenso de tempo, tendem a estimular as pessoas a
manifestarem uma gama interessante de características: "regras orien-
tadoras", ou seja, uma preocupação com regras e procedimentos e o
hábito de segui-los; uma maior dependência, isto é, a capacidade de
desempenhar um trabalho de uma forma relativamente consistente, ser
eficaz e realizar o trabalho mesmo quando as regras têm de ser ligeira-
mente modificadas para atender às mudanças de condições do dia-a-dia;
e a "internacionalização dos objectivos e dos valores empresariais" - isto
é, o conflito vai sendo reduzido de uma forma paulatina e segura, tende
a existir uma homogeneização face aos interesses explícitos de emprega-
dos e empregadores5'.
Isto também acontecerá nas escolas? Nitidamente, esta questão
remete-nos para a importância da análise do que realmente acontece na
caixa-negra da escola. Será que os professores e os alunos aceitam isto?
A introdução progressiva da lógica do controlo técnico despoletará
resistências, quanto mais não seja no plano cultural? Será que as cultu-
ras de classes e culturas do trabalho idênticas às que examinámos nos
capítulos 3 e 4 irão contradizer, mediar ou até mesmo transformar os
resultados previstos? É sobre este conjunto de questões que me vou
debruçar já a seguir.

Resistências
A perspectiva que apresentei não é nada optimista. Tal como as activi-
dades dos alunos são progressivamente especificadas e como as regras,
processos e resultados padronizados se vão integrando nos materiais
curriculares e vão sendo por eles adaptados, também os professores são
desqualificados, requalificados e votados ao anonimato. Os alunos
apoiam-se em materiais cuja forma tanto isola os indivíduos uns dos
outros, como estabelece condições para a existência do indivíduo pos-

%Edward. Contested Terrain, p. 151 Naturalmente, isto náo significa que não irão suceder importantes resistências e
praticas contrárias Como demonstrei no capítulo 3. frequentemente, sucede precisamente o contrario. Todavia.
ocorrem, habitualmente, no terreno estabelecido em grande parte pelo capital
I
A forma curricular e a logica do controlo tecnico ei

.
sessivo: os conteúdos do material curricular e a natureza do processo
de controlo técnico têm praticamente o mesmo impacto junto do pro-
fessor. Envolvida numa lógica específica de controlo, a força objectiva
das relações sociais inseridas na própria forma tende a ser muito mais
poderosa.
No entanto, não defendo uma espécie de perspectiva funcionalista em
bruto, em que tudo se encontra medido ou se dirige para a capacidade
de reproduzir uma sociedade estática. A criação do tipo de hegemonia
ideológica "provocada" pela introdução galopante do controlo técnico
não é "naturalmente" predeterminada. É algo ganho ou perdido em
lutas e conflitos específicos5'.
Por u m lado, os professores serão controlados. Tal como destacou
uma professora a respeito de um conjunto muito utilizado de materiais
escolares, muito mais específico e orientado do que aqueles que tive
oportunidade de analisar anteriormente: "Olha, não tenho escolha. Pes-
soalmente, não gosto do material, mas todas as escolas da Direcção
Regional têm que o utilizar. Tento fazer também outras coisas, no
entanto, em essência, o currículo fundamenta-se nestes materiais."
Por outro lado, as resistências estarão lá. Essa mesma professora que
discorda de tal currículo, mas que, no entanto, o utiliza, em parte, tam-
bém o subverte de formas interessantes. A referida professora utiliza-o,
apenas, três vezes por semana e não nos cinco dias, como se encontra
especificado. Como diz a própria professora: "Se nós trabalhássemos
arduamente, concluiríamos todo este material em dois ou três meses;
além do mais, é confuso e maçudo. Assim, tanto quanto possível, tento
ir um pouco mais além, desde que não ensine a matéria que irá ser lec-
cionada no próximo ano lectivo". Como podemos constatar da parte
final do comentário desta professora, as condições internas fazem com
que as resistências explícitas sejam de muito difícil concretização.
Entretanto, tais condições internas não devem constituir u m obstá-
culo para os professores se apropriarem dessas formas mercantiliza-
das, de provocar respostas criativas às ideologias dominantes, de
algum modo, idênticas às que os grupos de estudo contraculturais
realizados pelos etnógrafos marxistas efectuaram à mercantilização
da cultura.

Johnson. Richard (1970) ' Historles of Culturefiheories of Ideology Notes on an Irnpasse", in Michele Barrett et a1
I'

(eds ) Ideology and Cultural Productton New York St Martin s Press p 70

233

A
Tais grupos transformavam e reinterpretavam os produtos que com-
pravam e utilizavam tornando-os em ferramentas para a criação de espa-
ços alternativos de r e ~ i s t ê n c i a ~Alunos
~. e professores podem também
encontrar métodos de utilização criativa de tais sistemas de formas ini-
magináveis, quer pelos burocratas do Estado, quer pelas editoras capita-
listas. (Todavia, devo admitir que as repetidas observações de salas de
aula que tenho efectuado ao longo dos últimos anos não me deixam
muito optimista quanto a possibilidade de tal acontecer com frequência).
No entanto, outros elementos inseridos no referido contexto podem
permitir um espaço para que significados e práticas distintos se desen-
volvam no seio da própria forma curricular. Com efeito, devemos
recordar que podem existir elementos progressistas dentro do con-
teúdo do currículo contradizendo as mensagens da forma53. O próprio
facto de os industriais se mostrarem interessados no conteúdo denun-
cia a crucialidade do conteúdo numa área polémica. E é na interacção
do conteúdo da forma e da cultura vivida dos estudantes que se for-
mam as subjectividades. Nenhum elemento desse conjunto de relações
pode ser ignorado.
Muito embora tivesse aqui salientado a forma do material escolar, é
importante especificar mais pormenorizadamente o que está em ques-
tão ao analisar as possíveis contradições que existem entre a forma e o
conteúdo. Uma "leitura" ideológica de qualquer material não é uma
questão simples. De facto, uma leitura desse género não se pode limitar
a uma análise de conteúdo, ao que um "texto" simples e abertamente
"diz", sobretudo se estivermos interessados nas bases a partir das quais
se pode gerar a resistência. A esse respeito, as análises podem vir a bene-
ficiar muito da interpretação do trabalho de autores como Barthes,
Macherey, Derrida e outros investigadores do processo de significação e
do impacto da ideologia sobre a produção cultural. Deste modo, com-
pletar a análise do conteúdo implica o envolvimento numa leitura
semiológica do artefacto cultural com o intuito de "extrair a estrutura
de significações no seio do objecto que oferece um parâmetro" para as
suas possíveis leituras54.Tal não significa que todas as leituras possíveis
possam ser especificadas. Devemos ter presente, como argumenta

Willis, Paul (1978). Profane Cultvre. London: Routledge & Kegan Paul.
I3 Geoff Whitty ajudou-me muito a compreender esta questão.
" Summer. Colin (1 979) Reading Mmlogies. New York Academic Press, p. 134
A forma curricular e a lógica do controlo técnico

Derrida, por exemplo, de que ler um texto é um processo activo de sig-


nificação. Tal como salienta um investigador, esse processo activo "des-
centra o significado ortodoxo e usual do discurso, invocando outros
significados e referências menos ortodoxos"". Desta forma, todo o dis-
curso, todo o conteúdo, pode representar um "excedente de signifi-
cado". O referido excedente pode criar um "jogo" no processo de signifi-
cação, de modo que, embora cada elemento do texto possa ter formas
"normais" de uso, se refere, simultaneamente, também a outros signifi-
cados possíveis.
Pretendo sublinhar este ponto. A problematização do conteúdo em si
é fundamental, não só para observar quais as ideologias "expressas" ou
"representadas" na matéria curricular (em primeiro lugar, a noção de
representação é por inerência complexa e difícil), como também para
que possamos decifrar a forma através da qual qualquer conteúdo "é ele
próprio parte de um processo activo de significação mediante o qual se
produz um significado"" e ainda compreender as possíveis contradições
dentro do próprio conteúdo e do texto.
Hill, na discussão em torno da falta de uma análise sobre a contradi-
ção nos estudos relacionados com o conteúdo de produtos culturais,
como, por exemplo, os "media",desenvolve um argumento idêntico:
"Se os 'media' não expressam simplesmente ideologias, então necessi-
tam de ser considerados como activamente constitutivos das ideolo-
gias. Isto é o mesmo que dizer que as ideologias não são meramente
ingredientes a serem detectados nos 'media: como também os seus
produtos. E, novamente, as ideologias, enquanto produções activas,
não são simplesmente para serem vistas como conjuntos de positivida-
des, mas também como processos de exclusão - com as referidas
'exclusões' a revelarem-se potencialmente capazes de reagir para per-
turbar ou deformar o sistema progenitor (apetrechando, assim, a
nossa análise com uma noção de 'contradição' recuperada tanto de
um reducionismo que a vê simplesmente como um reflexo de contra-
dições determinadas no plano económico, como de uma homeostase
de um funcionalismo marxista apoiado na noção de reprod~ção)."~

Ibid., p 149.
56 HIII, John (1979). "ldeology. Economy and the British Cinema". in Michele Barreii et al. (eds ), ldeology and Cultural
Production. New York: St. Martin's Press, p. 114
'' Ibid.. p. 1 1 5.
Tal como afirma Hill na citação anteriormente referida, o "signifi-
cado" do conteúdo não deve ser procurado apenas no texto ou no pro-
"
duto cultural em si, nos códigos e regularidades (muito embora uma
leitura nesses termos seja parte essencial de uma análise completa).
O significado é também constituído "na interacção do texto e dos seus
u t i l i z a d ~ r e s " neste
~ ~ , caso, entre o conteúdo do currículo e o aluno.
No entanto, esta questão está ainda incompleta. Como Hill também
salienta, a noção de exclusão é um elemento-chave. Os produtos cultu-
rais não só "dizem", como também "não dizem". O facto de precisarmos
de investigar não apenas "o que o material diz" e o respectivo excedente
de significado, mas também o que exclui, é salientado por autores como
Macherey e Eagleton. Como ambos frisaram, qualquer texto não é
necessariamente constituído por significados imediatamente explícitos
- as tais positividades destacadas anteriormente na citação de Hill - e
facilmente constatados por qualquer observador. Pelo contrário, u m
texto "traz inscrito no seu interior as marcas de certas ausências deter-
minadas, que transformam as suas significações num conflito e contra-
dição". O que não é dito num texto é tão importante quanto o que é
dito, dado que "a ideologia encontra-se presente no texto na forma dos
seus eloquentes silêncio^"^^.
Desta forma, e resumindo, para examinar adequadamente as possíveis
contradições entre forma e conteúdo nos materiais curriculares, preci-
samos de descodificar o que se encontra presente e ausente no próprio
conteúdo, que estruturas fornecem os parâmetros para as suas possíveis
leituras, que "dissonâncias" e contradições existem no seu seio que
podem remeter para leituras alternativas e, finalmente, as interacções
de conteúdo e cultura vivida do leitor".
Este último ponto relativo a cultura vivida dos actores, os próprios
estudantes, deve ser realçado, uma vez que precisamos de recordar as
suas culturas vividas anteriormente descritas. Devemos esperar resistên-

"1b1d.p 122.
'' Eagleton. Terry (1976). Critfc~smandldmlogy London: New Left Books, p 89.
Naturalmente. estas leituras internas podem ir longe de mais. Com efeito, centrar a atenção apenas sobre as contradi-
~ ó e se ideologias no seio de e produzidas por tal matéria, ou sobre as contradiçoes produzidas pela relação entre forma
e conteúdo. acarreta um perigo sério Podemos negligenciar o quanto sáo fundamentais as for~asque "determinam" a
verdadeira produção do material curricular sob essa forma. uma questão que abordei previamente na andlise sobre o
modo como a escola se tornou num mercado muito lucrativo. A titulo de exemplo, vide os ensaios sobre a
economia política da produção cultural por Golding e Murdock e outros em Barrett e t a1 (eds ), Ideology and Cultural
Rcduct~on.
A forma currtcular e a lógica do controlo tecnico -

cias, em relação às práticas ideológicas analisadas ao longo deste capí-


tulo, por parte dos estudantes e dos professores, resistências que podem
ser específicas, de acordo com a raça, o género e a classe. A citação de
Johnson anteriormente trazida à colação insere-se aqui muito bem.
A formação de ideologias - mesmo as do tipo de individualismo já abor-
dadas no contexto desta análise, não é um simples acto de imposição.
São produzidas por actores concretos e corporificadas em experiências
vividas que podem resistir, alterar ou mediar as referidas mensagens
sociais6'. Tal como tive oportunidade de demonstrar nos capítulos ante-
riores, na análise da cultura vivida de segmentos particulares da classe
trabalhadora, por exemplo, os jovens da classe trabalhadora derrotam,
em parte, a ideologia do individualismo. O mesmo se passa com muitos
estudantes das "minorias" e mulheres. Entretanto, muito embora possa-
mos e devamos realçar tais resistências, o seu verdadeiro significado
pode não ser muito claro. Será que também reproduzem, como as
jovens anteriormente analisadas, a um nível ainda mais profundo, práti-
cas e significados ideológicos que fornecem poderosos suportes a rela-
ções de dominação? É uma questão que precisa de ser aprofundada.
Tomemos como exemplo o caso dos professores. Muito embora os
controlas técnicos possam possivelmente levar à sindicalização, dentro
da escola a maior parte da resistência acontecerá, necessariamente, no
plano individual e não no plano colectivo, dadas as próprias relações
sociais geradas pela forma do currículo62.Assim, os efeitos podem ser
profundamente contraditórios.
1 Convém também recordar que, tal como salientei previamente, esses
modos mais "invisíveis" de controlo podem ser aceites se forem entendi-
dos como provenientes de uma estrutura globalmente legítima. O facto
de as comissões de selecção de currículo permitirem aos professores
alguma participação no currículo que vão utilizar significa que algumas
1 das condições prévias para obter o consentimento necessário para que
esse tipo de controlo tenha êxito foram já estabelecidas. Em parte, a
escolha é realizada pelos próprios professores. Perante isto a oposição
é difícil. Novamente, isto afecta a área do conteúdo. Muito embora per-
maneça a ideologia da escolha, os professores e inclusive os grupos
conselheiros de pais encontram-se, habitualmente, limitados na sua

c' Johnson. "Three Problematics: Elements of a Theory of Working Class Culture"


Edwards. Conteste3 Terrain, p 154.
escolha a conjuntos de materiais curriculares pré-empacotados ou tex-
tos, publicados por algumas poucas grandes empresas editoriais, que
comercializam os produtos de uma forma agressiva. Muito embora
numericamente as possibilidades de escolha possam ser elevadas, fre-
quentemente há pouca diferença entre os materiais curriculares que
podem ser escolhidos. Ao nível do conteúdo, sobretudo nas escolas do
ensino básico, as diferenças ideológicas existentes relativas a raça, sexo
e classe nas comunidades em que os editores pretendem vender os pro-
dutos estabelecem limites substanciais relativamente ao que pode ser
considerado conhecimento "legítimo" (ou seguro). Além do mais, a pro-
dução de tais materiais curriculares é um negócio. Além disso, também
nos Estados Unidos, a maioria dos textos e dos materiais curriculares
pré-empacotados são produzidos de acordo com as políticas de adopção
de materiais vigentes em cada estado. Ou seja, u m determinado
número de estados mantêm listas dos materiais curriculares aprovados.
As escolas adstritas a uma Direcção Regional que comprarem os mate-
riais da lista aprovada terão os custos parcialmente reembolsados pelo
Estado. Assim, é muito importante para um editor ter o produto
incluído nessa lista, uma vez que tem praticamente assegurado um
lucro significativo.
Perante isto, não são necessárias conspirações para eliminar materiais
provocativos ou honestos. O funcionamento interno de um aparelho
educativo, conjuntamente com a economia política da publicação e com
a crise fiscal do Estado, é suficiente para homogeneizar o essencial do
currículo. Tal não significa negar o poder da indústria ao fazer seu o
principal problema que as escolas têm que enfrentar, ou negar o poder
do capital, em comparação com outros grupos. Pelo contrário, significa
reclamar que o seu poder é profundamente mediado e introduz-se na
escolarização através de formas que nem sempre correspondem aos
intentos iniciais. O efeito pode ser a homogeneização ideológica, con-
tudo, afirmar que é isso que, em última análise, a indústria pretende é
substituir a lógica do tipo causa-efeito por uma conjuntura particular
de forças e conflitos ideológicos, culturais, políticos e económicos, que
"cria" as condições de existência desse mesmo material curricular.
No entanto, o próprio processo de determinação pode ser contraditó-
rio, em parte devido a crise fiscal que os sistemas escolares enfrentam.
Uma vez implantado o currículo, os custos iniciais subsidiados tor-
nam-se fixos e são assumidos pela direcção escolar local. Uma vez que
I A forma curricular e a lógica d o controlo técnico

os orçamentos das escolas são cada vez mais reduzidos, não há dinheiro
disponível para comprar novos materiais ou para substituir os obsole-
tos. Qualquer "excedente" em dinheiro tende a ser canalizado para a
compra contínua do material consumível exigido pelo currículo pré-
empacotado. Gradualmente, acabam por ficar com "dinossauros" caros.
É importante entender as questões económicas de tal processo, caso
pretendamos perceber as pressões contraditórias que origina. Uma vez
que o aparelho do Estado tem ampliado o leque de participação no pro-
cesso de tomada de decisão curricular, criando comissões de selecção de
materiais (as quais, em alguns casos, incluem agora pais, bem como
professores), embora os materiais seleccionados não possam, na maior
parte dos casos, ser posteriormente substituídos dado o custo envolvido,
o Estado abre novos espaços de oposiçãoa. 0 crescimento do discurso
sobre os direitos de selecção (um direito que não pode, actualmente, ser
exercido de nenhuma forma significativa) surge objectivamente em
desacordo com o contexto económico em que o Estado presentemente
se encontra. Transforma, desta forma, a questão numa questão poten-
cialmente volátil, de uma forma muito semelhante a que foi retratada
na análise que efectuei no capítulo 4, relativa à relação contraditória
entre o discurso liberal dos direitos da pessoa e as "necessidades" do
capitalismo avançado64.
Todavia, tais conflitos potenciais podem ser enfraquecidos pelas con-
dições económicas e ideológicas muito poderosas que se revelam tão
explicitamente para os que trabalham no seio do aparelho do Estado. E
as referidas pressões podem provocar implicações importantes e idênti-
cas para aqueles professores que, na realidade, podem reconhecer o
impacto que a racionalização e o controlo têm sobre si próprios.
Com muita facilidade se esquece uma questão: que não atravessa-
mos uma boa época, ideológica ou economicamente, para professores
que se envolvem em actos explícitos de resistência. Actualmente,
perante o difícil clima ideológico e a situação de emprego entre os
professores - com milhares de demitidos ou vivendo sob a ameaça
de demissão - a perda do controlo pode desenvolver-se quase sem
qualquer oposição. Desqualificação e requalificação, processos de

Donald. "Green Paper. Noise of a Crisis".


Gintis. Herbert (1980). "Comrnunication and Politics: Marxism and the 'Problern' of Liberal Dernocracy", Socialirt
.
ReviewX pp. 189-232.

- 239
anonimato e racionalização progressivas, a transformação do trabalho
educativo, todas estas questões parecem de algum modo menos
importantes que as preocupações económicas, como por exemplo a
segurança no emprego, o salário, etc., mesmo que nos pareçam ser,
claramente, parte integrante da mesma dinâmica.
No entanto, ao afirmarmos isto, devemos reconhecer que tais mensa-
gens sociais poderosas, muito embora imbricadas nas verdadeiras expe-
riências dos professores e dos alunos, a medida que se sucede o seu dia-
-a-dia nas salas de aula, são profundamente mediadas por outros ele-
mentos. O facto de os professores individualmente, tal como a maioria
dos trabalhadores, poderem desenvolver padrões de resistência aos
padrões de controlo técnico, ao nível cultural informal, altera as referi-
das mensagens. As ideologias contraditórias do individualismo e da co-
operação, geradas naturalmente a partir das condições de sobrelotação
de muitas salas de aula (não se pode ser um indivíduo isolado o tempo
todo, quando existem vinte ou trinta pessoas com as quais o professor
deve lidar), providenciam também possibilidades de acção contraditórias.
E por último, do mesmo modo que os trabalhadores das fábricas e dos
escritórios têm encontrado, constantemente, formas para assegurar a
sua humanidade, lutando ininterruptamente para integrar a concepção
e a execução no trabalho desenvolvido (quanto mais não seja, pelo
menos, para aliviar a monotonia), digamos que também os professores e
os alunos podem encontrar plataformas, nas brechas, para fazer as mes-
mas coisas. A verdadeira questão não é a de saber se tal resistência
existe efectivamente - como tenho demonstrado neste livro, nunca se
encontram muito longe da superfície - mas se são, em si, contraditó-
rias, se conduzem a algum lugar para além da reprodução da hegemo-
nia ideológica das classes mais poderosas da sociedade, se podem ser
utilizadas na educação e em intervenção política.
A primeira tarefa é encontrá-las. Há que, de alguma forma, dar vida às
resistências, às lutas. O que fiz aqui foi apontar para o terreno dentro
das escolas (a transformação do trabalho, a desqualificação e a requalifi-
cação, o controlo técnico, etc.) onde se estabelecem as referidas lutas.
As resistências podem ser informais, não inteiramente organizadas ou,
inclusive, inconscientes; no entanto, tal não significa que não terão
qualquer efeito. Na verdade, como nos recordam Gramsci e J ~ h n s o na~ ~ ,

"Johnson, "Histories of Culturellheories of Ideology".


A forma curricular e a 16gica do controlo técnico

hegemonia é sempre contestada. O próprio trabalho poderia ajudar na


referida contestação e remeter para espaços onde nos podemos engajar

I
activamente.
A análise do processo através do qual o conhecimento técnico-admi-
nistrativo é reintroduzido na escola, pelas formas curriculares domi-
nantes, remete para algumas das estratégias de acção que oportuna-
, mente analisei nos capítulos anteriores. Como salientei, a expansão de
lógicas particulares de controlo do processo de trabalho gera efeitos

! contraditórios e providencia potencialidades para um trabalho político


com êxito. Com a perda de controlo, deveríamos esperar uma sindicali-
zação crescente por parte dos professores. Esta questão cria um con-
texto preponderante. Muito embora a história do sindicalismo seja, em
parte. uma história de reivindicações economicistas (e isto, aliás, nem
sempre está errado), não está ao mesmo tempo naturalmente predeter-
minado que salários, etc., sejam as únicas questões inseridas na
agenda. Desta forma, isto torna mais significativa a sugestão por mim
formulada anteriormente de que a progressiva "proletarização" dos tra-
balhadores do Estado e o rápido decréscimo do padrão de vida e da
estabilidade no emprego podem, na realidade, facilitar a formação de
coligações entre os professores e outros trabalhadores que se encon-
tram em idênticas condições. Se o argumento de Castells está correcto
- que, em última análise, as condições acabarão por piorar - então os
cortes nos serviços públicos, bem-estar, educação, saúde, subsídio de
desemprego, etc., aumentarão progressivamente num futuro imediato.
Este quadro tenderá a colocar a atenção dos empregados das escolas
nas exigências pela manutenção dos seus programas e postos de traba-
lho, a par do grande número de pessoas que terão que lutar para con-
servar os programas, serviços e direitos que conquistaram após anos de
lutas.
Tal tendência surge agregada a algo mais. A rapidez do ritmo com
que se introduzem procedimentos para racionalizar o trabalho dos
professores e para controlar o mais possível determinados aspectos da
educação está a provocar um impacto semelhante ao que sucedeu
quando se introduziu o taylorismo na indústria. O seu efeito último
pode não ser o de u m controlo totalmente bem sucedido, muito
embora não se devam minimizar o poder e a sofisticação que expres-
sam. Pelo contrário, a longo prazo pode conduzir a um descrédito
sobre a possibilidade de os professores poderem organizar o seu pró-
CCPP-EP-16 24 1
prio trabalho, de modo que as actividades necessárias para que ocorra
uma verdadeira educação, actividades que os professores têm desenvol-
vido a partir das suas próprias experiências e cultura do trabalho,
sejam rotuladas com o equivalente educativo de "fazer ronha", sempre
que não se encontrem expressamente vinculadas a produção do conhe-
cimento e dos agentes requeridos pela economia. Escusado será adian-
tar que isto terá um efeito nefasto sobre qualquer sistema educativo
digno deste nome.
Permitir aos professores que percebam as implicações destas questões
e que eles e outros trabalhadores reconheçam as semelhanças da sua
condição colectiva é um passo político importante. Se ocupam, na reali-
dade, uma posição de classe contraditória, então é possível iniciar uma
importante jornada no sentido de uma educação política. Naturalmente,
isto é algo que pessoas progressistas inseridas nos sindicatos de profes-
sores nos Estados Unidos, Canadá, América Latina, Inglaterra e outros
países da Europa têm reconhecido e em relação ao qual se encontram a
actuar.
No interior da própria escola, existem áreas que também precisam de
ser realçadas, mesmo que sumariamente. A questão do conteúdo curri-
cular que tive ocasião de levantar anteriormente é também um aspecto
preponderante. Ao longo deste capítulo, tenho defendido que muito
embora ler os elementos ideológicos ou os efeitos do conteúdo não se
revele uma tarefa simples, o facto de ser uma área em contestação atesta
a importância de esforços continuados tanto para manter os elementos
democráticos que existem actualmente no seio do próprio conteúdo,
como para continuar a combater a intromissão explícita ou implícita da
ideologia empresarial e dos interesses da direita na selecção do conheci-
mento curricular adequado.
Contudo, os argumentos que desenvolvo neste capítulo têm apontado
também para a necessidade de acção sobre algo mais que o conteúdo. Ao
nível da forma, fica claro que a ênfase colocada no material individuali-
zado, racionalizado. dificulta o desenvolvimento de experiências colecti-
vas de aprendizagem. Assim, é importante modificar o mais possível tal
ênfase, estimular actividades conjuntas - mesmo que se limitem a rela-
tórios, trabalhos escritos, investigações, arte e teatro colectivamente
produzidos, etc. Isto pode e deve ocorrer também em relação ao con-
teúdo explícito, no qual é tão necessária a desmistificação da teoria da
história e da ciência do "grande homem". Aqui podem-se salientar as
242
I A forma curricular e a lógica do controlo técnico 2

contribuições de verdadeiros grupos de trabalhadores actuando conjun-


tamente como princípio organizadoPb.
Naturalmente, muito mais poderia ser dito. Mais uma vez, o argu-
mento que desenvolvi não defende a facilidade de se poderem estabele-
cer tais coligações progressistas ou iniciar quer uma educação política
entre trabalhadores do Estado quer a reforma do currículo. Perante as
actuais condições económicas e a hábil integração levada a cabo pelas
forças de direita entre as exigências democráticas populares e as do
capital e a incorporação de temas populares a retórica de uma esfera
progressiva de relações sociais capitalistas, as implicações são exacta-
mente contrárias. É possível, muito embora não seja tarefa fácil. Toda-
via, é no terreno que identifiquei neste capítulo que se irá travar grande
parte da luta. O terreno não oferece apenas incorporação, racionalização
e controlo crescentes, mas também oportunidades.

66 Vide, como exemplo, alguns dos materiais sugeridos em Wolf-Wasserman Miriam, & Hutchinson, Kate (1978). Teaching
Hurnan Dignity Minneapolis Education Exploration Center Tarnhem se revela pertinente neste caso o trabalho de Shor
Ira (1980). Critical Teaching andEveryday Life Boston South End Press

243
Trabalho educativo e político
Será possível o êxito?

Reconstruindo a tradição
Ao longo deste livro tentei fazer uma série de coisas. Grande parte dos
meus argumentos envolveram uma crítica conceptual e empírica sobre
as teorias mecanicistas da reprodução, não negando as efectivas "deter-
minações" que existem. Defendi que não se podem simplesmente redu-
zir todos os aspectos da forma e do conteúdo do currículo explícito e do
currículo oculto veiculado nas escolas a expressões directas das necessi-
dades económicas. Mesmo quando a educação "opera" apoiando a
manutenção do modo de produção actual, os motivos de tal actuação
são profundamente mediados e corporizam "sempre"mais do que uma
simples funcionalidade. Em grande parte, tal problemática deve-se ao
facto de que não se pode ler a cultura e a política como se fossem ima-
gens-espelho que passivamente reflectem os interesses da classe domi-
nante. Uma abordagem deste género não só seria inerentemente não
dialéctica, como também significaria ignorar a importância crucial e a
dinâmica do patriarcado.
Obviamente, existem relações importantes entre as esferas cultural,
política e económica, sendo esta última muito poderosa. E é ainda igual-
mente óbvio que há condições materiais e ideológicas que favorecem con-
dições de existência de uma parte significativa da nossa formação social.
Contudo, paralelamente a isto, a natureza "relativamente"autónoma de
tais esferas, as contradições existentes entre elas e no seu próprio seio e as
suas complexas interpenetrações desperdiçar-se-ão caso não desafiemos as
teorias claramente deterministas que dominam as análises contemporâ-
neas da educação. Igualmente importante é o facto de ao ignorarmos as
contradições reduzirmos de forma irrealista as áreas em que a verdadeira
acção educativa e política pode e deve desenvolver-se.
Por outro lado, se entendermos a cultura e a política como espaços de
luta, o trabalho contra-hegemónico no seio de tais esferas torna-se
muito importante. Se a forma e o conteúdo culturais e o Estado (bem
como a economia) são inerentemente contraditórios, e se as referidas
contradições são vividas na própria escola por professores e alunos, o
leque de acções possíveis aumenta consideravelmente.
Todavia, neste caso concreto é aconselhável salvaguardarmos um
aspecto. Neste livro, não tive intenção de refutar ou ignorar totalmente o
trabalho desenvolvido pelos economistas políticos da educação ou pelos
teóricos da reprodução cultural. Tal como comprovam os argumentos
que tive oportunidade de expor, algumas das suas reivindicações, e inclu-
sive alguns aspectos relacionados com o seu aparato conceptual, preci-
sam de ser questionadas. Contudo, fazê-lo de uma forma generalista sig-
nificaria ignorar o quanto os referidos autores nos permitiram avançar e
o quanto Ihes devemos. Pelo contrário, precisamos de construir a nossa

I
análise a partir do seu trabalho, rejeitando o que parece agora demasiado
simplista ou incorrecto, e estender a nossa abordagem a áreas para as
quais eles não se encontravam preparados para abordar.
Deste modo, necessita-se, neste caso, de um tipo específico de disci-
plina que não só seja crítica das categorias explicitamente redutoras e
economicistas que, a longo prazo, se revelaram prejudiciais à tradição
marxista, como também - simultaneamente - problematize a escola
com o intuito de denunciar as raízes da dominação e da exploração
que, sem dúvida, existem. É um caminho difícil a percorrer. Implica
criticar uma determinada tradição e, ao mesmo tempo, utilizá-la. Con-
tudo, na verdade não é assim tão difícil, como qualquer leitura da
recente literatura de esquerda de imediato documenta - vivemos um
período de intenso debate teórico e político dentro da tradição. Tais
debates ajudaram a criar (na verdade, a recriar) muito mais flexibili-
dade e abertura e repetidamente influenciaram as análises levadas a
cabo neste livro1.

' Abordei
estes debates de uma forma consideravelmente mais detalhada em Apple, M (ed ) (1982). Cultural and
Economic Reproduction in Education, London Routledge & Kegan Paul

246
Trabalho educativo e político *c

Tal como salientam Finn, Grant e Johnson, uma das maiores fragilida-
des conceptuais e políticas de muitas teorias da reprodução (Althusser é
um dos principais exemplos) é que "parecem dar pouco espaço à capaci-
dade para a resistência a qual pode ser exercida por crianças e professo-
res nas e s c ~ l a s " Assim,
~. embora seja importante compreender que as
escolas contribuem para reproduzir relações de género e relações
sociais de produção, "elas também reproduzem, historicamente, 'de um
modo indirecto', formas específicas de resistêncian3. Obviamente que
tais pontos não se limitam as discussões que efectuamos sobre as esco-
las, mas estendem-se também ao local de trabalho, a família, etc.
Philip Wexler desenvolveu um argumento idêntico na sua crítica rela-
tiva as limitações de uma parte significativa dos estudos encetados pela
esquerda. Tal como adianta Wexler, muitos dos modelos conceptuais
utilizados actualmente "rendem-se antecipadamente a capacidade
humana para a apropriação e transformação das necessidades de um sis-
tema para o qual os indivíduos são meros suportes e~truturais"~.
Existirão, naturalmente, correspondências entre as características
"internas" das escolas e as instituições "externasn5. Na verdade, sur-
preender-nos-íamos caso não existissem. Contudo, tais correspondên-
cias, quando encontradas, não expressam um princípio orientador cujo
percurso se faz do exterior para o interior de forma algo mecânica. Em
vez disso, são construídas com base nas interacções internas de actores
reais no seio de uma determinada cultura vivida, actores que lutam,
contestam e actuam de variadas formas podendo contradizer a corres-
pondência "necessárian6.
Por estes motivos, e devido às próprias necessidades do Estado rela-
cionadas quer com o processo de acumulação de capital quer com a sua
-
'Finn, Dan, Grant, Neil, Johnson, Richard e o CCCS Education Group (1978) "Social Democracy. Education and the Crisis".
Birmingham, England: Univenity of Birmingham: Centre for Contemporary Cultural Studies. policopiado, p. 4.
ibid., p. 34.
Wexler, Philip "Structure, Text and Subject: A Critical Sociology of School Knowledge". in Apple (ed ), Cultural and
Economn Reproduction in Educatlon.
Vide também Giroux Henry (1980) "Beyond the Correspondence Theory: Notes on the Dynamics of Educational
Reproduction and Transformation". Curriculurnhquiry. X, pp. 225-247.
Na realidade, poder-se-ia alegar que tais correspondências são, na verdade, mais claras, actualmente, tace ao poder
emergente da nova direita e do capital na crise estrutural vigente. Vide, a titulo de exemplo, Dale, Roger (1979). "The
Politicization of School Deviance", in Barton. Len, & Meighan. Roland (eds.) (1979). Schools, Pupils and Deviance. in
Driffield. Natferton Books, pp. 95-1 12.
Neste contexto, 6 muito importante o papel dos "media" na construção dos problemas sobre os quais as pessoas
actuam. Wde a interessante discussão em CCCS Education Group (1980). Unpopukr Education: Schooling and Social
Democracy in England Since 1944. London: Hutchinson.
legitimação e a do processo em si, argumentei ao longo da minha aná-
lise que a escola é um local de reprodução e produção. No entanto, tal
perspectiva não significa simplesmente a reprodução e a produção de
agentes, conhecimento e ideologias, mas de tendências contraditórias
numa série de esferas, cada uma das quais com um efeito significativo
sobre as restantesi. Com base nesta perspectiva, sugeri estratégias e
acções numa variedade de frentes: nas escolas e nas universidades
envolvendo o currículo, a democratização do conhecimento técnico,
utilizando e politizando a cultura vivida dos alunos e dos professores,
etc.; e fora da escola, envolvendo tanto práticas educativas em sindicatos
progressistas, grupos políticos e feministas, entre outros, como uma
acção política que construa um movimento socialista e democrático de
massas nos Estados Unidos.
Desta forma, na sua maior parte a análise que aqui desenhei pretende
responder ao que para mim constitui uma das mais importantes ques-
tões que podemos colocar. Pode ser feita alguma coisa neste momento?
Com efeito, se a educação não é mais do que um simples reflexo da eco-
nomia e das exigências ideológicas da burguesia e da nova pequena bur-
guesia, então, é na economia que devemos colocar todas as nossas aten-
ções. Neste livro, ao questionar as escolas de formas distintas -
focalizando os conflitos de classe, as formas culturais de resistência, o
local de trabalho, a escola como um aparelho contraditório de Estado, o
papel do sistema educativo formal, não só na reprodução e distribuição,
como também na produção - estou ainda mais convencido de que uma
análise desse género efectuada a educação revela a sua importância
como um processo e como um conjunto de instituições. Numa guerra
de posição, ignoramos isto em detrimento do nosso prejuízo.
Entretanto, e mesmo que esteja parcialmente errado, mesmo que as
lutas económicas ofereçam a única resposta as condições (e a muitas
outras) que descrevi no capítulo 1, não podemos ignorar a educação. Na
verdade, mesmo que, por exemplo, as lutas relativas ao modo de produ-
ção, no local de trabalho e no centro da produção, sejam a resposta
principal, tal não atenuaria a importância da escola. Como tive ocasião

' A necessidade de observar a totalidade das condições culturais, políticas e económicas 6 salientada por Hogan, David,
"Education and Class Formation: The Peculiarites of the Americans". in Apple (ed ). Culturai and Economic Reproduc-
tion in Education. Para uma análise mais profunda sobre o impacto que uma acção efectuada na "superstrutura" tem
sobre a "base". vide também Carnoy, Martin. "Education, Economy and the State". in Apple (ed ), Cuitumi dnd Econo-
rnic Reproductron !n Educatron
Trabalho educativo e político 3

de demonstrar no capítulo 5, a escola "é" um local de trabalho. O pró-


prio Estado emprega milhões de pessoas - muitas das quais são mulhe-
res - cujas condições no dia-a-dia e cuja posição na sociedade se encon-
tram em transformação dada a crise que enfrentamos.
Claro que não são alternativas que se excluem. O "trabalho educativo"
deve ser feito no local de trabalho; o "trabalho económico" necessita de
ser feito na educação. As estruturas de exploração e dominação de
classe, raça e género não se encontram "por aí", no abstracto, algures
numa coisa designada "economia". Elas rodeiam-nos. Vivemo-las nas
nossas práticas e discursos quotidianos, nas famílias, nas escolas e nos
trabalhos que as constituem. Assim, começamos por esse nível. Tal
como tenho defendido insistentemente, a construção diária de práticas
e significados alternativos nas nossas instituições não pode ser interpre-
tada como algo isolado. Deve ser organizada e vinculada com o trabalho
de outros grupos e pessoas progressistas. Só dessa forma podemos fazer
sentir uma diferença a nível estrutural.
Como tivemos oportunidade de verificar, parte desse nível estrutural é
definido pelo processo de mercantilização, pelas inter-relações contradi-
tórias do conhecimento como uma mercadoria e da forma económica.
Este conjunto de relações tanto pode ser reprodutivo como pode exacer-
bar tensões. Daí a minha ênfase colocada no papel do conhecimento téc-
nico na economia, no Estado e na cultura.
Cada vez mais o conhecimento técnico define as concepções relativas
à subjectividade e à competência. Embora esta tendência se encontre
mais avançada nos Estados Unidos que noutros países - em parte devido
à ausência relativa de uma linhagem aristocrática como, por exemplo,
se verifica na Inglaterra -, a sua incorporação através dos países indus-
triais avançados é acentuada. Esta questão tem implicações importantes
nos níveis cultural e ideológico em toda a parte uma vez que, progressi-
vamente, aquilo que Habermas denomina por "esfera pública" é redu-
zida a expressões de valores, regras, procedimentos e preocupações téc-
nicos'. No plano económico, os usos conferidos a este conhecimento na
nossa economia são parte de processos mais abrangentes de acumulação
e legitimação, bem como padrões transformadores das relações de

BAgradeço ao meu colega leffrey Lukowsky por me relembrar a importância do pensamento de Habermas na nossa
tentativa de teorizar tais problemas.
classe. A subteorização de tal dinâmica constitui uma das maiores fragi-
lidades das análises anteriores efectuadas a escola.
Um dos elementos principais que constitui o quadro teórico desenvol-
vido ao longo deste livro repousa numa investigação das relações entre a
cultura mercantilizada e vivida, relações que causam um determinado
impacto na escola e que contribuem, na realidade, para construí-la
como um local de conflito de classe, raça e género. Pese embora a "cir-
culação" do conhecimento técnico-administrativo como uma forma de
capital (e como um conjunto de complexas relações sociais de explora-
ção) não seja linear, entendi ser útil pensar nele empregando a própria
metáfora da circulação. Sumariando, como observámos, o aparato edu-
cativo encontra-se organizado de tal maneira que acaba por se consti-
tuir num importante local para a produção de conhecimento técnico-
-administrativo, através dos seus agentes, programas de investigação e
compromissos. Tal não surge "coercivamente" sobre o aparelho educa-
tivo, mas é, na sua maior parte, devido às "funções" contraditórias em
que tais instituições se encontram envolvidas. Este conhecimento é
mercantilizado e acumulado como forma de capital cultural pelos mais
poderosos interesses ao nível da economia e do Estado. As técnicas de
controlo e as formas de relações sociais daí geradas são empregadas
numa percentagem crescente de locais de trabalho na sociedade, no
controlo humano e na publicidade, nas comunicações, na família e na
culturaY.É mediado, sofre resistência e é, por vezes, transformado.
Desenvolvem-se novas formas tornando-se, no decorrer do processo,
mais refinado e "humano".
Entretanto, a sua própria utilização confere-lhe legitimidade, aumen-
tando desta forma a sua difusão posterior em instituições do Estado
como é o caso da escola. Esta condição reforça-se e o seu ritmo é acele-
rado, face à crise nos processos de acumulação e legitimação como um
todo. A medida que se espalha na sociedade como um conjunto de técni-
cas e uma ideologia de "prestação de contas" e de controlo, o referido
capital cultural corporifica-se na nova pequena burguesia empregada
como burocratas de nível médio, engenheiros, técnicos, supervisores,
gerentes e profissionais na indústria, no sector da prestação de serviços

*Para um estudo perspicaz relativo ao modo como o conhecimento técnico especializado 6 utilizado na família. sobre-
tudo MS mulheres. vjde. Apple. Rima, D. (1980). "To be used only under the direction of a physician commercial infant
feeding and medical practice 1870-1940". Bulletni of the History of Med~crneLIV, pp. 402-41 7.
Trabalho educativo e ~ o l í t i c o
+

e no Estado"". A forma que esse capital cultural assume e a sua utilização


providenciam quer o emprego contínuo e o desenvolvimento sustentado
da nova pequena burguesia, quer o seu controlo final pelo capital''. Toda-
via, quando finalmente atinge a escola, é novamente mediado e transfor-
mado pelos professores e pelos filhos daqueles trabalhadores e emprega-
dos que historicamente se têm confrontado com conhecimento
técnico-administrativo nos seus próprios postos de trabalho. E aceite ape-
nas em parte como culturas vividas de classe, raça e género permitem aos
estudantes (e, novamente, a muitos professores) rejeitarem elou media-
rem a sua lógica e as relações sociais. Este processo íntimo de resistência,
mediação e transformação (parte do qual actualmente é retratado pelos
baixos resultados nos testes e pelos baixos índices de comportamento,
problemas disciplinares, falta de motivação, etc.) faz com que se introdu-
zam novas formas de controlo técnico (através da forma do currícuIo,
etc.), tal como acontece nos escritórios e nas fábricas. E é a partir destas
mesmas formas transformadas de controlo e de relações sociais que um
novo conhecimento técnico-administrativo e novas ideologias são, em
última instância, produzidos nole pelo aparelho educativo.
No entanto, para o capital, tal produção não precisa de ser sempre
"funcional". A título de exemplo, e embora se registem alturas em que o
desenvolvimento das forças produtivas da sociedade implica uma "trans-
formação" quer do processo de trabalho quer do trabalho humano,
convém recordar que tais transformações podem exigir também condi-
ções sociais e tecnológicas que podem, em última instância, não ser de
todo compatíveis com a lógica capitalista.

"Uma questao identica é levantada por Bernstein i n Bernstein. Basil (1977). Class, Codes and Control, volume 3.
London. Routledge & Kegan Paul A literatura sobre a "nova classe media" e também útil aqui. Vide o debate em
Walker, Pat (ed) (1 979). Between Labor and Capital, Boston South End Press
" Todavia. um dos resultados da crise na acumulação e que as possibilidades de emprego para essas pessoas serão tam-
bém significativamente mais reduzidas. Tal como tive opoitunidade de referir no capitulo 2. desde que o conhecimento
tecnico/administrativo se torne acessível pdrd USO por parte do capital. n3o é realmente imperativo que se empregue
uma grande percentagem de individuos detentores de tal conhecimento, a não ser que tais individuos se revelem
necessBrios ao controlo do trabalho Com efeito, o facto é que o crescimento de emprego mais vertiginoso nos Estados
Unidos tem-se verificado no sector da prestação de serviços em que é necessdrio uni nuiiiero significativamente redu-
zido de supervisores A razão pela qual tal se verifica pode ser constatada no crescimento que se tem registado no sec-
tor de "fast food" Grande parte do trabalho e mecanizado utilizando-se mecanismos de controlo tecnico para a cozi-
nha, etc Deste modo, pese embora seja crucial que tais indústrias assimilem um fluxo continuo de novas técnicas e de
conhecimento. a sua incorporaçáo com êxito pode. realmente, constituir uma ameaca ao crescimento de posições para
a nova pequeiid burguesia. Csta questao criara os seus prõprios problema5 de legitimação. Sobre o crescimento do sec-
tor da prestação de serviços e o declínio da necessidade de superv'sores. vide Rothschild, Emma (1980). "Reagan and
the Real America". New York Review of Books XXVIII (February, 5). pp. 12-18.
"Por exemplo, o desenvolvimento da investigação científica exige
u m investimento maciço em educação cujo lucro só se verifica a
longo prazo. Deste modo, também a introdução da informação
como uma força produtiva implica uma grande autonomia no
processo de tomada de decisão e produz uma situação que é total-
mente contraditória a disciplina que o capital impõe aos traba-
Ihadore~."~~
"Tal como o demonstra este exemplo, a produção e a utilização do
conhecimento técnico-administrativo é, ao mesmo tempo, reprodu-
tivo e não reprodutivo. Assim, podemos novamente constatar que a
sociedade não é meramente 'um sistema de auto-reprodução estru-
tural'. Pelo contrário, é uma estrutura instável e contraditória de
relações assimétricas multidimensionais. "I3

Acção política, democracia e educação


São perfeitamente observáveis determinadas tendências estruturais
que exacerbarão as contradições não só entre as esferas económica, polí-
tica e cultural, como também no seio de cada uma delas. Tais tendências
remetem para campos onde se enquadra um determinado número de
acções e estratégias sugeridas ao longo deste livro.
O capital tentará, sem dúvida, disciplinar o trabalho, quer controlando
directamente o processo de trabalho em todos os sectores da economia,
quer controlando, indirectamente, mais o Estado, mantendo um nível
relativamente elevado de desemprego. Os serviços sociais serão substan-
cialmente reduzidos uma vez que "são muito dispendiosos". (Claro que
isto conduzirá também a uma redução de empregos dentro do aparelho
de Estado, que emprega a maior parte desses serviços). Nesta conformi-
dade, os trabalhadores da classe trabalhadora tradicional e os que se
inserem no que se tem denominado de "nova classe trabalhadora", tais
como os que pertencem ao sector da prestação de serviços, enfrentarão
pressões para que os seus serviços sejam mais racionalizados, divididos
e redivididos, com o objectivo de aumentar a "produtividade" e a "efi-
ciência". Para além disso, muitos deles serão obrigados a aceitar salários
muito mais baixos e condições de trabalho menos dignas. O que vai

" Castells, Manuel (1 980) The Economic Crisa and American Soc~etyPrinceton Princeton University Press. p 51
'' Ibid , P 47
Trabalho educativo e ~ o l i t i c o

atingir arduamente os trabalhadores negros, mestiços e mulheres que


trabalham no sector mais competitivo da ec~nomia"'~.
Estas pressões irão provocar tensões muito poderosas na esfera polí-
tica e a um nível cultural, especialmente se tomarmos em consideração
os argumentos de Cintis anteriormente abordados e que estão relacio-
nados com a dinâmica do discurso sobre os direitos da pessoa e as ten-
dências contraditórias que se prendem com a ampliação dos procedi-
mentos democráticos formais. O capital, na sua cruzada pela eficiência,
autoridade tecnocrática, racionalização e crescente disciplina, pode fra-
gilizar a substância da democracia. Tal como advertiu o documento da
Comissão Trilateral, A Crise da Democracia, um "excesso de democra-
cia" provoca muitos perigos sociais. Estender a substância da democra-
cia as esferas económicas e culturais, estender tal substância para além
dos mecanismos formais da política, tais como o voto, não serve, neces-
sariamente, o capital. Assim, capitalismo e democracia podem vir a
registar um crescente conflito.I5
Isto significa que a defesa da democracia, e sua expansão com aspec-
tos importantes da nossa vida, é extremamente importante, quer subs-
tantiva quer estrategicamente. Pode ajudar a unificar a maioria da
população, unindo-a em torno de um tema historicamente nuclear,
quer nos Estados Unidos, quer em outros países. Pode ainda contribuir
para superar, na esfera política, a divisão da classe trabalhadora em
segmentos de classe provocada pelos arranjos produtivos da socie-
dade.16
Richard Edwards, na análise que efectua sobre a importância de se
desenvolver um programa que seja "democrático e ao mesmo tempo
inteiramente socialista", sumariza uma série dos argumentos acima
referidos. Tal como adianta Edwards, o interesse renovado pela demo-
cracia industrial e política por parte das bases com o intuito de demo-
cratizar ainda mais o Sindicato dos Metalúrgicos, para instituir um pro-
grama de iniciativas ao nível local no Sindicato Unido dos Mineiros,
etc., todas estas tentativas visam reatribuir poder aos associados dos sin-
dicatos e sugerem que no dia-a-dia do local de trabalho um segmento
--
l4 .
Ibid pp. 235-236. Vide tambbm Rothschild, Reagan and Jhe Real America. Sobre o Estado. o mercado de trabalho e
1 as condi~õeseconómicas e respectivos impactos sobre trabalhadores hispánicos. vide Barrera. Mario (1979). Race and
Clas in the Southwest A Theory of Racialhequahry, Notre Darne, Indiana. University of Notre Dame Press.
l 5 Edwards. Richard (1979). Contested Terrain. New York. Basic Books. pp. 21 1-212.

I6Ibid p 215
crescente da classe trabalhadora encontra-se já envolvido na "luta emer-
gente por um poder demo~rático"'~.
Acrescenta ainda Edwards:
"Assim, a defesa da democracia implica uma exigência da sua aplica-
ção a todos os níveis e esferas da sociedade. Este é um ponto crucial,
uma vez que emerge aqui o tema nuclear de todos os programas
socialistas: a defesa da democracia política é simplesmente o corolário
lógico da exigência da democracia no local de trabalho e de controlo
social do processo de produção. Uma vez que os trabalhadores come-
cem a contestar o sistema de controlo vigente na empresa, irão com-
tatar, através da sua experiência, o conteúdo comum de tais lutas. Em
última instância, a defesa e a extemão da democracia podem repousar
nos esforços da classe trabalhadora para [reorganizar e democratizar]
os meios de produção e para organizar, através de um governo demo-
crático, os recursos materiais da sociedade em benefício de todos.
Deste modo, a democracia toma-se no mote não só para unir as várias
fracções da classe trabalhadora, como também para unificar as lutas
políticas e económicas dessa classe."'"

Numa época em que o capital e o Estado não podem mais "ceder" a


uma democracia substantiva, há que reapropriar a direita a democracia
como um discurso e um conjunto de práticas. Neste contexto, nem eu
nem Edwards nos referimos a democracia como uma simples monta-
gem de mecanismos formais. Durante um período muito longo isso
tem servido em muito para legitimar a exploração. Pelo contrário, refe-
rimo-nos a uma prática cujo controlo das decisões de produção, distri-
buição e consumo se encontra nas mãos da maioria dos trabalhadores
deste país, controlo esse que não se limite a esfera política, mas que,
por exemplo, abarque as relações económicas e, de uma forma prepon-
derante, as relações de género. Como parte de um programa de transi-
ção e como um objectivo em si mesmo, isto revela-se extremamente
importante.
Perante o ressurgimento da direita, esta questão pode parecer uma
utopia. Todavia, existem fundamentos para uma posição optimista.
A título de exemplo, numa investigação recente em torno das atitudes
Trabalho educativo e político '

públicas perante a economia encontramos resultados como os que a


seguir se descrevem:
"66% dos inquiridos concordam que as pessoas não trabalham tanto
quanto poderiam 'dado que lhes está vedado poderem participar nas
decisões que interferem com os seus trabalhos: 74% apoiariam u m
plano no qual os consumidores das comunidades locais 'se encontra-
riam representados nu direcção das empresas que operam na sua
região: 52%apoiariam u m plano 'em que os empregados determina-
riam as grandes linhas da política empresarial'. 66% revelar-se-iam a
favor do trabalho numa empresa que fosse dos empregados e por eles
controlada."'"

Isto pouco ou nada tem a ver quer com a lógica quer com a política do
capital.
Rache1 Sharp estende esta problemática às escolas, destacando que, se
pretendemos manter a democracia, devemos bater-nos continuamente
pela democratização dos procedimentos de tomada de decisãoz0.Os
esforços crescentes por parte de grupos de professores - tais como o
Rank and File na Inglaterra, o Wommis Educational Fress no Canadá, e
o Boston Womm's Teachers Group nos Estados Unidos - no propósito de
combinar acções contra as relações patriarcais, contra o racismo e a
intromissão de técnicas e interesses ideológicos levados a cabo pela
direita, contra processos de tomada de decisão antidemocráticos nos
serviços sociais, pela construção de alternativas efectivas e viáveis para
os conteúdos e métodos educativos actuais e por um movimento contí-
nuo interagindo com outros grupos, apontam para a consciência que
muitos educadores têm perante estas questões no seu dia-a-dia.
É muito importante apoiar tais perspectivas contrabalançando desta
forma as tendências opostas em educação. Na Inglaterra, por exemplo,
as reformas promovidas pelo Estado ao longo das últimas três décadas
"ajudaram a afastar... os professores dos alunos e dos pais da classe tra-
b a l h a d ~ r a " ~Muitos
~. dos professores já admitem isto. Se a análise que
efectuo neste livro estiver correcta, este aspecto pode e precisa de ser
criticado e questionado.

j9 Carnoy. Manin e Shearer, Derek (1980) EconornicDernocracy White Plains, New York M.E. Sharpe. p. 360.
O' Sharp. Rache1 (1980) Knowledge, ldeoiogy and the Politics of Schooling. London Routledge & Kegan Paul. p. 164. Isso

/ :'
M o diz respito apenas aos professores Com efeito, t a poderia ~ubverteralgumas das condições de um programa de
transiçáo. t u incluiria. neste quadro, a juventudeda classe operária e os respectivos pais.
CCCS Education Group, Unpopular Education, p. 67.
Todavia, não basta criticar o funcionamento do sistema. A crítica pre-
cisa de ser coadjuvada por "propostas específicas de um modelo social
alternativo (que pode, caso pretendamos, denominar-se por socialista)".
Tais propostas não devem ser decalcadas, no seu todo, de outros países,
mas precisam ser adaptadas às condições actuais, no meu caso, do povo
americano e em oposição aos interesses do capital. Sem isto, repito,
pouco haverá a esperar de uma mudança estrutural orientada de uma
forma séria e progressista2'.
Como tem sido documentado por vários autores, há alternativas que
têm sido construídas e que têm vindo a aumentar. Tais exemplos contra-
-hegemónicos podem e devem ser utilizados com o objectivo de devol-
ver às pessoas um determinado sentido de possibilidade imaginativa.
Providenciam significativos pontos de referência demonstrando o que se
pode realizar actualmente no domínio do trabalho concretoz3. No
entanto, as referidas lutas levadas a cabo com êxito revelar-se-ão em
vão, caso não sejam comunicadas. Se pretendemos superar a apatia e o
cinismo, bem como os resultados da tradição selectiva, as reformas não
reformistas que as pessoas se encontram a implantar por toda a socie-
dade podem ser parte integrante das agendas apenas se outras pessoas
tiverem conhecimento delas. A este respeito, os activistas sindicais, os
professores universitários, e outros, podem desempenhar um papel pre-
ponderante. De certo modo, isto prende-se com a questão de se obter
aquilo que Gramsci imperiosamente sugeriu como a construção de um
grupo de "intelectuais" que se constituam como membros orgânicos das
"classes subordinadas".
Em parte, isto é uma questão que se relaciona com a pedagogia
política e com o ensino apropriado. Desta forma, como adianta Peter
Dreier:
"Os professores ajudam a moldar os pressupostos, os valores e as
escolhas dos seus alunos, tanto pelo que dizem como pelo que não
dizem. A existência de estudos marxistas, socialistas e radicais, agora
disponíveis em monografias, te,~tose antologias, periódicos e filmes,
revela-se um antídoto importante contra as análises dominantes na
sociedade. Contudo, independentemente da receptividade por parte

Castells The Econorn~cCr~sis


and Arnerican Society. p 259
23 Carnoy e Shearer Econornic Dernocracy Nesta obra os autores descrevem muitas destas ahernativas. algumas das quais
5áo claramente 'reformistas', enquanto outras sao precisamente aquilo que denominei por reformas não reformistas

256

-
I, Trabalho educativo e politico

dos estudantes, as análises que permitem uma crítica radical dos


actuais problemas do capitalismo só contribuirão para reforçar o seu
cepticismo, a nüo ser que se encontrem acompanhadas de uma aná-
lise sobre as hipóteses de transformur a situaçüo em algo melhor...
Durante as últimas duus décadas, muitos radicais passaram de espe-
ranças falsas ... para desprovidos de qualquer esperança. Agora, há
que aprender, como professores, estudiosos e activistas, a caminhar
equilibradamente entre o romantismo e o cepticismo. As lições que
emprestam os nossos próprios estudos radicais são claras: a constru-
ção de u m movimento popular implica uma crítica do presente, uma
visão do futuro e uma estratégia. No entanto, ao nível das massas,
nem a visão nem u estratégia serão possíveis, caso o cepticismo rela-
tivo a transformaçãosocial que descreve actualmente a política e a
cultura norte-americanas nüo possa ser ultrapassado."4

Nesta conformidade, e na verdadeira acepção da palavra, parte da


nossa tarefa é educativa. Podemos ajudar os trabalhadores na recupera-
ção das tradições parcialmente perdidas. Muito embora, partes impor-
tantes de tais tradições se encontrem ainda a ser vividas através de
determinadas formas culturais nos escritórios, armazéns, fábricas e
minas'" - algo que tive ocasião de descrever na análise que efectuei em
torno da cultura do trabalho de homens e de mulheres no seu dia-a-dia
- a história em torno dos motivos que levaram o povo a lutar, das visões
de uma sociedade mais igual e das lutas em favor e em torno delas, tudo
isso necessita, novamente, de se tornar visível e legítimo.
A educação interna dos associados dos sindicatos, dos colectivos femi-
nistas, dos grupos educacionais de base, etc., nas questões do crescente
controlo empresarial, da democracia cultural, política e económica e,
sobretudo, das alternativas às formas de organização económica e polí-
tica vigentes, é, desta forma, uma etapa inicial crucialZ6.Esta questão
não é unidireccional. Tanto os importantes argumentos feministas
socialistas relacionados com o modo como nos podemos envolver em
actividades contra-hegemónicas, como os movimentos de base e os
ambientalistas podem ensinar-nos muita coisaz7.

l4 Dreier. Peter (19801. "Socialism and Cynicism: An Essay on Politics, Scholarship. and Teaching", So«alist Revew LIII.
pp. 128.129.
" 0 filme excepcional Harlan Counfy USA denuncia quão vitais e vivas se encontram actualmente tais tradições.
I 'Vide. por exemplo. Cariioy e Shearer, Economic Democracy, p. 384
"Para uma discussão relativa aos princípios de organizaçao socialista feminista. vide Adlarn, Diana (1980). "Socialist
Ferninism and Contemporary Politics". n Pobtics and Power I.London. Routledge & Kegan Paul. pp. 81-1 02.
Não é apenas ao nível da acção política ou educativa que o trabalho
dever ser conduzido. É também necessária uma investigação num I
determinado número de áreas vitais. A título de exemplo, as verdadeiras

II
histórias das práticas educativas socialistas e de oposição encontram-se
ainda por contar28.Há que desenvolver discussões e análises sérias rela-
cionadas com os princípios dos modelos socialistas de currículo e
ensino, modelos que reduzam, por exemplo, a divisão entre a concepção
e a execução e entre o trabalho manual e o mental. Estamos também
perante uma questão prática. Não podemos esperar que o Estado, num
acto de magia, abra as suas portas - tal como nos planos de subsídios
educativos, com todas as contradições inerentes - ao desenvolvimento

I
de princípios, conteúdos e métodos socialistas. Precisamos urgente-
mente de modelos viáveis2'. Isto implica que comuniquemos uns aos
outros, formal e informalmente, o que nos encontramos a fazer.
Todavia, não basta comunicarmos com outros educadores. Pais e
jovens da classe trabalhadora, grupos organizados de trabalhadores, e
outros, deveriam ser inseridos na articulação e na crítica de tais propos-
tas. No decorrer do processo, os educadores podem simultaneamente
educar-se e educar os referidos grupos. Além do mais negar que os pro-
fessores sabem coisas que tendem a funcionar nas salas de aula é falta de
bom senso. Neste sentido, trabalhando conjuntamente com outros, a
prática de desenvolvimento dos nossos métodos e conteúdos corporifi-
cará também os compromissos sociais que pretendemos articular''.
O facto de a actividade educativa se tornar mais importante, e não
menos, é reforçada pelos membros do Educational Group at the Centre
for Contemporary Cultural Studies, da Universidade de Birmingham, na
Inglaterra. Tal como propõe o referido grupo: "A reprodução só se
encontra assegurada depois de um significativo trabalho ideológico e,
mesmo assim, está exposta a u m trabalho educativo de tipo contra-

'' Vide Reese William e Teitelbaum. Kenneth (1981). "American Socialist Pedagogy and Experimentation in the Progres-
sive Era The Socialist Sunday School Artigo nao publicado apresentado no Teachers College, Columbia University
Uma interessante descriç2o pode ser encontrada in Shor Ira (1981) Critical Jeaching and Everyday Life, Boston South
End Press Alguns defendem que Dewey oferece muito do que e necessario neste caso Naturalmente, uma parte
significativa pode ser aprendida a partir de Dewey nao obstante as debilidades politicas finais. wde Smith, Richard and
Knight John (eds ) (1980) "The Right Side A Reader in the Theory and Practice of Knowledge and Control" University
of Queensland Australia Artigo nao publicado
O' Isto envolvera sempre um equilibrio entre o ensino e a aprendizagem entre providenciar o liderar intelectual e politico,
e o seguir Desta forma e neste coritexto o papel dos intelectuais orgânicos nunca se encontra estabelecido, nunca
traduz um itinerario simples Sobre as analises da posiçao de Gramsci relacionadas com esta questao vide Chantal
Mouffe (ed ) (1979) Gramsci dndMarxlst Theory London Routledge & Kegan Paul

258

+
Trabalho educativo e ~ o l i t i c o"

-hegemónico ou de oposição". 31 Neste caso, a chave repousa na articu-


lação de uma dupla ênfase tanto na actividade socialista como na femi-
nista. A transformação da cultura, da política e do modo de produção
depende do reconhecimento da importância determinante do género
(bem como da raça).
Isto significa que "as formas mais antigas de populismo socialista que
fundiam as experiências particulares de raparigas, de mulheres jovens e
de mães com as de uma população indiferenciada ou com as de uma
classe trabalhadora não são mais adequadas como ponto de partidan3'.
Neste caso, os intelectuais podem apoiar, colocando em relevo as expe-
riências das mulheres, tornando-as parte integrante das análises e
acções que desenvolvem" e inserindo-as totalmente num programa
alternativo.
Se o desenvolvimento de programas alternativos é essencial, tais
alternativas devem assentar na consistência democrática que real-
mente existe nos Estados Unidos. Sem programas claros que pareçam
oferecer, pelo menos, soluções parciais aos problemas locais e nacio-
nais, "a maioria das pessoas aceitarão a visão dominante que é ineren-
temente não democrática e anti-igualitária". Assim, convém que estes
programas sejam sensíveis tanto aos activistas em tempo integral,
como às pessoas trabalhadoras com famílias e empregos".
Novamente, a análise de Carnoy e Shearer ajuda-nos a especificar as
características de um programa de transição que, a longo prazo, não só
permita construir um movimento estruturalmente orientado, como
também abarcar aquilo que referi no capítulo 4 como reformas não
reformistas.
'2possível que um movimento perca muitas vezes no sentido conven-
cional - em eleições, [etc.] - e, não obstante, ganhe, a longo prazo, na
construção de uma sociedade mais democrática.
Um movimento deve detkir o progresso político e m termos mais
abrangentes dos que são definidos pelos políticos convencionais - e
deve enquadrar a noção de progresso político num quadro global de
um programa de transição e de uma estratégia de longo prazo.

'' CCCS Education Group, Unpopular Education. conclusão. p 11. policopiado.


32 Ibid., p. 12.
33 Um exemplo de investigação necessária que poderia ser efectuada relaciona-se com a resistência das mulheres em casa.
provavelmente algo semelhante as questóes que tive ocasião de problematizar no capitulo 3.
34 Carnoy e Shearer, Econornic Dernocracy, p. 385.
Tal programa de transição registaria as seguintes características:
deveria, uma vez decretado, aumentar o poder das pessoas sobre as
suas próprias vidas e reduzir o poder das empresas e dos ricos; deveria
I
I
ser facilmente explicável as pessoas e encontrar-se expresso em medi-
das claras tais como leis, iniciativas e reivindicações organizadas;
deveria possuir uma identificaçãosimples (como, por exemplo, EPIC -
End Poverty in Caiifomia - nos anos 30); os seus elementos deveriam,
teoricamente, realizar-se ao nível da luta política na qual as pessoas
se encontram engajadas - governo nacional, local e distrital; tanto

I
quanto possível, deveria encontrar-se relacionado com as necessidades
quotidianas das pessoas; finalmente, o programa deveria reflectir o
espectro populacional que construiria u m movimento da maioria que
defenderia a mudança."35

Muito embora se refira essencialmente a questão da democracia eco-


nómica, a parte destacada na referida citação é também muito impor-
tante para um conjunto de aspectos mais abrangentes. Sublinha a
I
importância de algo que mencionei anteriormente. É ao nível da vida
quotidiana que se vivem as esferas culturais, políticas e económicas, em
todas as suas complexidades e contradições e não apenas nas mais afas-
tadas áreas da alta finança, governo nacional, etc. (muito embora isto
não possa ser ignorado)36.A esse nível, a análise teórica, apesar de
essencial, não pode substituir o trabalho concreto em todas as três esfe-
ras.
Então, quais são as possibilidades de sucesso? Aqui há que ser
honesto. Simplesmente não estamos em condições de saber. O que
podemos fazer é assegurar que, como investigadores e intelectuais, no
plano teórico, as investigações que efectuamos incidam tanto sobre as
formas de reprodução como sobre as de não-reprodução que se encon-
tram em desenvolvimento. Podemos observar como é que a crise estru-
tural emergente "determinará" as nossas acções e as dos outros e ofere-
cer possibilidades. Naturalmente, não é apenas uma questão teórica.
Como poderemos estar em condições de saber que actividade não repro- 1
dutora ocorre se não participamos em tais actividades? Se nos assumi-
mos como seres activos - tal como insisti ao longo deste livro e tal
como o documentam as acções de inúmeras pessoas no seu trabalho
I
Ibfd , p 386
36 .
I b ~ d pp 394-395

260

.- -- - - - - -- . - -- --- -
I Trabalho educativo e político W

produtivo - então a transformação é possível. A medida que nos torna-


mos menos redutores e menos mecanicistas, ocorrerão, na realidade,
mudanças importantes nas teorias que formulamos. Todavia, lógica e
politicamente, tais mudanças implicam uma prática. As realidades
socioeconómicas e culturais com as quais comecei este livro podem ser
modificadas apenas se as considerarmos seriamente.
ADLAM, Diana (1980).
"Socialist Feminism and Contemporary
Politics". In
Politics and Power 1.
London: Routledge & Kegan Paul, pp. 81-102.
APPLE, Michael W. (1979).
"The Politics of School Knowledge".
In Review o f Education V, 1-14.
APPLE, Michael W. (1979).
Ideology and Curriculum.
I
ALTBACH, Edith (1974). London: Routledge & Kegan Paul.
Women in America.
Lexington: D.C. Heath. APPLE, Michael W. (1980).
ALTHUSSER, Louis (1971). "Analyzing Determinations: Understanding
"ldeology and Ideological State and Evaluating the Production of Social
Apparatuses". In Outcomes in Schools".
Lenin and Philosophy and Other Essays. In Curriculum Inquiy X,55-76.
London: New Left Books, pp. 127-186.
APPLE, Michael W. (ed.) (1982).
ANYON, Jean (August 1979).
"Ideology and U.S. History Textbooks". In
Harvard Educational Review XLN, 361-386.
Cultural and Economic Reproduction in
Education: Essays on Class, Ideology and I
the State.

I
ANYON, Jean (1980). London: Routledge & Kegan Paul.
"Social Class and the Hidden Curriculum of APPLE, Michael W. (1993).
Work". Oficial Knowledge: Democratic Education
Joumal o f Education CLXII, 67-92.
in a ConservativeAge.
APPLE, Michael W. (1977). New York: Routledge.
"Politics and National Curriculum Policy".
In Curriculum Inquiy VII. APPLE, Michael W. (1995).
(Number 7), 351-361. "Cultural Capital and Official Knowledge".
In Higher Education Under Fire,
AF'PLE, Michael, W. (1978). Carey Nelson and Michael Berube (eds.).
"ldeology and Form in Curriculum
New York: Routledge.
Evaluation". In
Qualitative Eualuation. AF'PLE, Michael W. (1996).
George Willis (ed.). Berkeley: Cultural Politics and Education.
McCutchan, pp. 492-521. New York: Teachers Collegr Press.
APPLE, Michael W. (November 1978). APPLE, Michael W.; KING, Nancy, (1977).
"The New Sociology of Education: Analyzing
"What Do Schools Teach?".
Cultural and Economic Reproduction".
In Curriculum Inquiy VI.
In Harvard Educational Review XLVIII,
495-503. (Number 4). 341-369.

APPLE, Michael W. (1979). "What APPLE, Michael W.; JOEL. Taxe1 (1982).
Correspondence Theories of the Hidden "Ideology and the Curriculum". In
Curriculum Miss". In Educational Studies and Social Science.
Review o f Education V, 101- 112. Anthony Hartnett (ed.). London: Heinemann.
APPLE, Michael W.: BEANE, James A. (eds.) BAXENDALL, R, et al. (eds) (1976).
(1995). Technology, the Lobor Process, and the
Democratic Schools. Working Class.
Washington, D.C.: Association for New York: Monthly Review Press.
Supervision and Curriculum Development.
BENSON, Susan Porter (1978)
APPLE, Rima D. 1980. "The Clerking Sisterhood: Rationalization
"To Be Used Only Under the Direction of a and the Work Culture of Saleswomen in
Physician: Commercial Infant Feeding and American Department Stores". In
Medical Practice 1870-1940". In Radical America XII, (March-April), 41-55.
Bulletin o f the History o f Medicine LIV RERNSTEIN, Basil (1977).
(Fall), 402-417. CLoss, Cdes and Conhvl Volume 3:TowardF
ARONOWITZ, Stanley. (1973). a Theory o f Educational Transmissions.
False Promises. London: Routledge & Kegan Paul.
New York: McCraw-Hill. BERNSTEIN, Basil (1982).
"Codes, Modal Ties and Cultural Reproduc-
ARONOWITZ, Stanley (1978).
tion: A Model". In
"Marx, Braverman and the Logic of Capital".
Cultural and Economic Reproduction in
In Insurgent Sociologist VI11
Education,
(Fall), 126-146.
Michael W . Apple (ed.). London: Routledge &
ARONOWTZ, Stanley (1979) Kegan Paul.
"Film The Art Form of Late Capitalism".
-
BEST, Steven; KELLNER. Douglas (1991).
In Social Text I, (Winter), 110-129. Poshnodern Theory.
BALL, Stephen, (1994). London: MacMillan.
Education Policy. BISSERET. Noelle (1979).
Philadelphia: Open University Press. Education, Class Longuage and Ideology.
BARRERA, Mario, (1979). London: Routledge & Kegan Paul.
Roce and Class in the Southwest: A Theoy BLAND, Lucy: BRUNSDON, Charlotte;
o f Racial Inequality. HOBSON, Dorothy: WNSHIP Janice (1978).
Notre Dame, Indiana: University of Notre "Women 'Inside' and 'Outside' the Relations
Dame Press. of Production".
In Women Take Issue,
BARRETT, Michele; et 01. (eds.) (1979).
Women's Studies Group (ed.). t
Ideology and CulturalProduction. London: Hutchinson, pp. 35-78.
h'rw York: St Martin's Press.
BOURDIEU, Pierre; PASSERON. Jean-Claude
BARTON, Len; MEIGHAN, Roland íeds.) (1978). (1977).
Sociological Intetpretations o f Schooling Reproduction in Education, Society and
and Classrooms:A Reappraisal. Culture.
Driffield, England: Nafferton Books. London: Sage Publications.
BARTON, Len; MEIGHAN, Roland (eds.) (1979). BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude
Schools, Pupils and Deviance. (1979).
Driffield, England: Nafferton Books. The Inheritors.
Chicago: University of Chicago Press.
BAUDELOT, Christian: ESTABLET. Roger
(1975). BOWLES, Samuel; GINTIS, Herbert (1976).
La Escuela Capitalista. Schooling in Capitalist America.
Mexico City: Siglo Vientiuno Editores. New York: Basic Books.
BOYD,William Lowe (1978). CASEY, Kathleen (1993).
"The Changing Politics of Curriculum I Answer With My Life.
Policy-Making for American Schools". In New York: Routledge.
Reuiew o f Educational Research XLVIII, CASTELLS, Manuel (1980).
(Fali), 577-628. The Economic Crisis and American Socieíy.
BRAKE, Mike (1980). Princeton: Princetori University Press.
The Sociology o f Youth Culture and Youth CCCS Education Group (1981).
Sub-Cultures. Unpopular Education: Schooling and
London: Routledge & Kegan Paul. Social Democracy in England Since 1944.
London: Hutchinson.
BRAVERMAN, Harry (1974).
Labor and Monopoly Capital. Centre for Contemporary Cultural Studies
New York: Monthly Review Press. (1977).
On Ideology: Working Papers in Cultural
BRECHER, Jeremy (1978).
Studies X.
"Uncovering the Hidden History of the Birmingham, England: University of
Arnerican Workplace". In Birmingham Centre for Contemporary
Review o f Radical Political Economics X Cultural Studies.
(Winter), 1-23.
CLARKE, John (1979).
BRENKMAN, John (1979). "Capital and Culture: The Post War Working
"Mass Media: From Collective Experience to Class Revisited".
the Culture of Privatization". In

1
In Working Class Culture,
Social Text I (Winter),94-109. John Clarke, Chas Critcher and Richard
BRIDGES, Amy B (1974). Johnson (eds.). London: Hutchinson,
pp. 238-253.
"Nicos Poulantzas and the Marxist Theory of
the State". CLARKE, John; CRITCHER. Chas;
In Politics and Society N JOHNSON, Richard (eds.) (1979).
(Winter), 161-190. Working Class Culture.
London: Hutchinson.
BURAWOY, Michael (1979).
"Toward a Marxist Theory of the Labor Pro- CLARKE. John (19911.
cess: Braverman and Beyond". New Times, Old Enemies.
In Politics and Society VI11 London: HarperCollins.
(Number 3-4), 247-312.
CLAWSON, Daniel (1978).
BURAWOY, Michael (in press). "Class Struggle and the Rise of Bureau-
"The Politics of Production and the Produc- cracy". unpublished doctoral dissertation.
tion of Politics: A Comparative Analysis of State University of New York. Stony Brook.
Piecework Machine Shops in the United COLLINS, Randall (1977).
States and Hungary", in Political Power "Some Comparative Principies of
and Social Theoy. Educationa1 Stratification".
CARNOY, Martin (1982). In H m r d Educational Review XLVII
"Education, Economy and the State". (February). 1-27,
In Cultural and Economic Reproduction in COLLINS, Randall (1979).
Education, Michael W. Apple (ed.). The Credential Society.
London: Routledge & Kegan Paul. New York: Academic Press.
CARNOY, Martin; SHEARER, Derek (1980). CONNELL, R.W. (1977).
Economic Democracy. Ruling Class, Ruling Culture.
White PIains, New York: M.E. Sharpe. New York: Cambridge University Press.
CONNELL, R. W. (1979) DOWNING, Diane (1979).
"A Critique of the Althusserian Approach to "Soft Choices: Teaching Materials for Tea-
Class". In ching Free Enterprise". Austin, Texas: Uni-
T h m y and Society VIII (November),303-345. versity of Texas, Institute for Constructive
Capitalism (mimeo).
COONS, John E; SUGARMAN, Stephen D.
(1978). DREIER, Peter (1980).
"Socialism and Cvnicism: An Essay on Poli-
Education by Choice: The Case for Family
tics. Scholarship, and Teaching". In
Control.
Socialist Review X (September-October),
Berkeley: University of California Press. 105-131.
COWARD. Rosalind; ELLIS, John (1977). EAGLETON, Terry (1976).
Lnnguage and Materialism. Criticism and Ideology.
London: Routledge & Kegan Paul. London: New Left Books.
CURTIS, Bruce (1992). EDELMAN, Murray (1977).
True Govemment By Choice Men?. Political Lnnguage.
Toronto: University of Toronto Press. New York: Academic Press.
DALE. Roger (1979). EDWARDS, Richard (1979).
"The Politicization of School Deviance". Contested Terrain.
In Schools, Pupils and Deviance, New York: Basic Books.
Len Barton and Roland Meighan (eds.). EMRENREICH, John; EHRENREICH,
Driffield, England: Nafferton Books, Barbara (1976)
pp. 95-112. "Work and Consciousness".
In Technology, the Lnbor Process, and the
DALE, Roger (1982).
Working Class, R. Baxendall et a/. (eds.).
"Education and the Capitalist State: New York: Monthly Review Press, pp. 10-18.
Contributions and Contradictions",
In Cultural and Economic Reproduction in ERBEN. Michael; GLEESEN, Denis (1977).
Education, MichaeI W. Apple (ed.). "Education as Reproduction".
London: Routledge & Kegan Paul. In Society, State, and Schooling.
Michael Young and Geoff Whitty (eds.).
DALE, Roger (1989). Sussex: Falmer Press, pp. 73-92.
The State and Education Policy.
EVERHART, Robert (1979).
Philadelphia: Open Universitv Press.
The In-Behueen Years: Student Life in a
DIMAGGIO, Pau1 (1979). Junior High School.
"Review Essay: On Pierre Bourdieu". In Santa Barbara, California: Graduate School
American Joumal o f Sociology LXXYN of Education, University of California.
(May), 1460-1474. FANTASIA, Rich (1979).
"The Treatment of Labor in Social Studies
DONALD. JAMES (1979).
Textbooks", unpublished paper, Department
"Green Paper: Noise of a Crisis",
of Sociology, University of Massachusetts,
Screen Education XYX Amherst.
(Spring), 13-49.
FEATHERMAN, David: Hauser Robert (1976).
DORFMAN, Ariel; MATTELART, Armand "Sexual Inequalities and Socio-Economic
(1975). Achievement in the U.S.. 1962-1973".
How To Read Donald Duck. In American Sociological Review XLI (June),
New York: International General Editions. 462-483.
FEINBERG, Walter (1977).
"A Critica1 Analysis of the Social and
Economic Limits to the Humanizing Transition". In Cultural and Economic
of Education". Reproduction in Education, Michael W.
In Humanistic Education, Apple (ed.).
Richard Weller (ed.). London: Routledge & Kegan Paul.
Berkeley: McCutchan, 1977, pp. 247-269.
GOFFMAN, Erving (1961).
FELDBERG, Roslyn, L. (1980). Asylums.
"Union Fever: Organizing Among Clerical New York: Doubleday.
Workers, 1900-1930". ln
Radical America X N (May-June), 53-67. GORZ, Andre (ed.) (1976).
The Division of Labour.
FINN, Dan; GRANT, Neil; JOHNSON. Atlantic Highlands: New Jersey: Humanities
Richard; CCCS Education Group (1978).
Press.
"Social Democracy, Education and
the Crisis". HALL, Stuart (sld).
Birmingham, England: University of Bir- "The Schooling-Society Relationship: Parallels.
mingham Centre for Contemporary Cultural Fits. Correspondence~,Homologies" (rnimeo).
Studies imimeo).
HARGREAVES, David; et al. (1975).
GAMBLE, Andrew (1979). Deviance in Classrooms.
"The Free Economy and the Strong State: London: Routledge & Kegan Paul.
The Rise of the Social Market Economy".
In The Socialist Register, HARTNETT, Anthony (ed.) (1982).
Ralph Miliband and John Saville (eds.). Educational Studies and Social Science.
London: Merlin Press, pp. 1-25. London: Heinemann.
GINTIS, Herbert (1980). HAUBRICH, Vernon (ed.) (1971).
"Communication and Politics: Marxism and Freedom, Bureaucracy and Schooling.
the 'Problem' of Liberal Democracy". In Washington, D. C.: Association for
Socialist Review X (March-June). 189-232. Supervision and Curriculum Development.
GIROIIX, Henry (1980). HERRNSTEIN, Richard; MURRAY, Charles
"Beyond the Correspondence Theory: Notes (1994).
on the Dynamics of Educational The Bell Curve.
Reproduction and Transformation", New York: The Free Press.
Curriculum Inquiy X (Fall), 225-247.
HILL, John (1979).
GiTLIN, Andrew (1980).
"ldeology, Economy and the British
"Understanding the Work of Teachers",
Cinema". In
unpublished Ph. D. thesis.
Madison: University of Wisconsin.
Ideology and Cultural Production.
Michele Barrett et al. (eds.).
GITLIN, Andrew (ed.) (1995). New York: St Martin's Press, pp. 112-134.
Power and Method.
New York: Routledge, 191 HINTON, William (1966).
Fanshen.
GITLIN, Todd (1979). New York: Vintage.
"Prime Time Ideology: The Hegemonic
Process in Television Entertainment". HIRST, Paul (1979).
In Social Problems XXVI (February), On Law and Ideology.
251-266. London: MacMillan.
HOCAN, David (1982). JOHNSON, Richard (1979).
"Education and Class Formation: The Pecu- "Histories of Culture Theories of Ideology:
liarity of the Arnericans". In Notes on an Irnpasse".
Cultural and Economic Reproduction in In Ideology and Cultural Pmduction,
Education, Michael W. Apple (ed.). Michele Barrett (ed.).
London: Routledge & Kegan Paul. New York: St Martin's Press, pp. 49-77.
HOLLOWAY, John: PICCIO'TTO, Sol (eds.) JOHNSON, Richard (1979).
(1978). "Three Problernatics: Elements of a Theory
State and Capital. of Working Class Culture".
London: Edward Arnold. In Working Class Culture,
HOLLOWAY, John; PICCIOTTO, Sol (1978). John Clarke, Chas Critcher, and Richard
"Introduction: Towards a Materialist Theory Johnson (eds.).
of the State". In London: Hutchinson, pp. 201-237.
State and Capital,
KARABEL, Jerorne (1972). "Cornrnunity
John Holloway and Sol Picciotto (eds.).
Colleges and Social Stratification".
London: Edward Arnold, pp. 1-31.
In Harvard Educational Review XLII
HONDERICH, Ted (1990). (Novernber), 521-522.
Conservatism.
Boulder, CO: Westview. KARABEL, Jerorne (1979).
"The Failure of Arnerican Socialism
JACKSON, Philip (1968). Reconsidered".
Life in Classrooms. In The Socialist Register
New York: Holt, Rinehart & Winston. Ralph Miliband and John Saville (eds.).
JAMESON, Fredric (1971). 1,ondon: Merlin Press. pp. 204-227.
Marxism and Form. KARABEL, Jerorne; HALSEY, A. H. (1977).
Princeton: Princeton University Press. "Educational Research: A Review and
JAMESON, Fredric (1979). Interpretation". In
"Reification and Utopia in Mass Culture". Power and Ideology in Education,
In Social Tert, I (Winter), 130-148. Jerorne Karabel and A. H. Halsey (eds.).
New York: Oxford University Press, pp. 1-85.
JENCKS, Christopher; et al. (1979).
Who Gets Ahead?. KARABEL, Jerorne; HALSEY. A. H. (eds.)
New York: Basic Books. (1977).
Power and Ideology in Education.
JESSOP, Bob (1977)
"Recent Theories of the Capitalist State". New York: Oxford University Press.
In Cambridge Journal o f Economics I KELLY, Cail; NIHLEN, Ann (1982).
(Decernber), 353-373. "Schooling and the Reproduction of
JESSOP, Bob (1978) Patriarchy". In
"Capitalisrn and Dernocracy". In Cultural and Economic Reproduction in
Power and the State, Education, Michael W. Apple (ed.).
Cary Littlejohn et al. íeds.). London: Routledge & Kegan Paul.
New York: St Martin's Press.
KIRST, Michael; WALKER, Decker (1971).
JOHNSON, Lesley (1979). "An Analysis of Curriculurn Policy-Making".
The Cultural Critics. In Review o f Educational Research XLI
London: Routledge & Kegan Paul. (Decernber), 479-509.
KLIEBARD, Herbert (1971). MACPHERSON. C.B. (1962).
"Bureaucracy and Curriculurn Theory". In The Political Theoy o f Possessiue
Freedom, Bureaucracy and Schooling, Individualism.
Vernon Haubrich (ed.). New York: Oxford University Press.
Washington, D. C.: Association for Supervi-
sion and Curriculurn Developrnent, MCCARTHY, Carneron: CRICHLOW, Warren
pp. 74-93. (eds.) (1995).
Race, Identity, and Representation in
LADSON-BILLINGS, Gloria (1995). Education.
The Dreamkeepers. New York: Routledge.
San Francisco: Jossey-Bass.
MCROBBIE, Angela (1978).
LEVIN, Henry (1980). "Working Class Girls and the Culture of
"Education Production Theory and Teacher Fernininity".
Input". In In Women Take Issue,
The Analysis o f Educational Productiuity,
Wornen's Studies Group (eds.).
volume 11.
London: Hutchinson, pp. 96-108.
Charles Bidwell and Douglas Windharn (eds.).
Carnbridge, Mass.: Ballinger Press, II Manifesto. "Challenging the Role of
pp. 203-231. Technical Experts".
In The Division of Labour, Andre Gorz (ed.).
LICHTENSTEIN, Nelson (1980).
"Auto Worker Militancy and the Structure of New York: Hurnanities Press, 1976,
Factory Life, 1937-1955". In pp. 123-143.
The Journal o f American Histo y LXVII MARGLIN, Stephen (1976).
(September), 335-353. "What Do Rosses Do?". In
LUKES. Steven (1973). The Diuision o f Lubour,
Indiuidualism. Andre Gorz (ed.). New York: Humanities
Oxford: Basil Blackwell. Press, pp. 13-54.

MACDONALD, Madeleine (1980). MEYER, John (1977).


"Socio-Cultural Reproduction and Wornen's "The Effects of Education as an Institution".
Education". In Schooling fot Women3 Work, In American Journal o f Sociology LXYXIII
Rosernary Deern íed.). (July),55-77.
London: Routledge & Kegan Paul.
MILIBAND, Ralph (1977).
MACDONALD, Madeleine (1981). Marxism and Politics.
"Schooling and the Reproduction of Class New York: Oxford University Press.
and Gender Relations".
In Education and the State, MOBERG, David (1980).
Roger Dale, Geoff Esland, Ross Furgusson "Work in Arnerican Culture: The Ideal of
and Madeleine MacDonald (eds.). Self-Determination and the Prospects for
Sussex: Falmer Press. Socialisrn". In
Socialist Review X (March-June), 19-56.
MiCHEREY, Pierre (1978).
A Theoy o f Literay Production. Montgornery. David (1976).
London: Routledge & Kegan Paul. "Workers' Control of Machine Production in
the Nineteenth Century".
MCNEIL, Linda (1977). In Lubor Histoy XVII (Fall),485-509.
-Econornic Dirnensions of Social Studies
Curriculurn: Curriculum as Institutionalized MONTGOMERY, David (1979).
Knowledge", unpublished Ph.D. thesis, Uni- Workers' Control in America.
wrsity of Wisconsin, Madison. New York: Carnbridge University Press.
MOUFFE, Chantal (1979). PIVEN, Francis Fox; CLOWARD. Richard
"Hegemony and Ideology in Gramsci". (1977).
In Cramsci ond Marxist Theory, Poor People's Mouements.
Chantal Mouffe (ed.). New York: Vintage.
London: Routledge & Kegan Paul, pp. 168-204.
MOUFFE, Chantal (ed.) (1979).
POULANTZAS, Nicos (1975).
Classes in ContemporaryCapitalism.
I
Cramsci and Mamist Theory.
London: Routledge & Kegan Paul.
London: New Left Books.
Quebec Education Federation (sld).
I
NAVARRO, Vicente (19761. Pour Une Journee Au Seruice De Lu Class
Medicine Under Capitalism.
Ouurière.
New York: Neale Watson Acadernic Publications.
Toronto: New Hogtown Press.
NELSON, Daniel (1980).
Frederick W. Toylor and Scientific REESE, Williarn; TEITELBAUM, Kenneth
Management. (1981).
Madison: University of Wisconsin Press. "American Socialist Pedagogy and Experi-
mentation in the Progressive Era: The Socia-
NOBLE. David (1977). list Sunday School," unpublished paper pre-
America By Design. sented at Teachers College, Columbia
New York: Alfred A. Knopf. University, January.
NOBLE, David (1979).
ROMAN, Leslie; APPLE Michael W. (1990).
"Social Choice in Machine Design"
"1s Naturalism a Move Beyond Positivisrn?".
unpublished paper.
Cambridge: Massachusetts Institute of In Qualitatiue Inquiry in Education,
Technology. Elliott Eisner and Alan Peshkin (eds.).
New York: Teachers College Press.
O'CONNOR, Jarnes (1973).
The Fiscal Crisis o f the State. ROSENBAUM, Jarnes (1976).
New York: St Martin's Press. Making Inequality.
New York: John Wiley.
OFFE, CIaus; RONGE Volker (1975).
"Theses on the Theory of the State". ROTHMAN, Sheila (1978).
In New Cerman Critique VI (Fall), 137-147. Woman's Proper Place.
New York: Basic Books.
OLLMAN, Bertell (1971).
Alienation. ROTHSCHILD, Ernrna (1980).
New York: Cambridge University Press. "Reagan and the Real America".
OLNECK, Michael; CROUSE, James (1978). In New York Reuiew o f Books ~ I I
Myths o f the Meritocracy: Cognitiue Skill (February 5), 12-18.
and Adult Success in the United States. RUBIN, Lilian (1976).
Madison. Wisconsin: University of Wisconsin
Worlds o f Pain.
Institute for Research on Poverty, Discussion
New York: Basic Books.
Paper 485-578, March.
PACKARD, Steve (1978). RYDLBERG, Pai (1974).
Steelmill BCues. The History Book.
San Pedro, California: Singlejack Books. Culver City, California: Peace Press.

PERSELL, Caroline H (1977). SAID, Edward (1993).


Education and Inequality. Culíure and lmperialism.
New York: Free Press. New York: Vintage.
SASSOON, Anne Showstack (1978). SPRING, Joel (1976).
'Hegemony and Political Intervention". The Sorting Machine.
In Politics, Ideology and the State, New York: Oavid McKay.
Sally Hibbin (ed.). SUMNER, Colin (1979).
London: Lawrence & Wishart, pp. 9-39. Reading Ideologies.
SECCOMBE, Wally (1980). New York: Academic Press.
"Domestic Labour and the Working Class TAPPER, Ted; SALTER, Brian (1978).
Household". Education and the Political Order.
In Hidden in the Household: Wornen's New York: MacMillan.
Domestic Labour Under Capitalism,
TEPPERMAN, Jean (1976).
Bonnie Fox íed.). "Organizing Office Workers",
Toronto: The Wornen's Press. Radical America X
SECCOMBE, Wally (1980). (January-February),3-20.
"The Expanded Reproduction of Labour THERBORN. Goran (1978)
Power in Twentieth-Century Capitalism". What Does the Ruling Class Do When It
In Hidden in the Household: Domestic Rufes?.
Labour Under Capitalisrn, London: New Left Books.
Bonnie Fox (ed.).
THERIAULT, Reg. (1978)
Toronto: The Wornen's Press.
Longshoring on the San Francisco
SELDEN, Steven (1977). Waterhnt.
"Conservative Ideologies and Curriculurn". San Pedro, California:
In Educational Theoy Singiejack Books.
XXVII (Surnmer),205-222. USEEM, Michael (1980).
"Corporations and the Corporate Elite",
SHARP, Rachel (1980).
Annual Reuiew o f Sociology VI, 41-77.
Knowledge, Ideology and the Politics o f
Schooling. WALKER, Pat (ed.) (1979).
London: Routledge & Kegan Paul. Behueen Labor and Capital.
Boston: South End Press.
SHARP, Rachel; GREEN, Anthony (1975).
Education and Social Control. WELLER, Richard (ed.) (1977).
London: Routledge & Kegan Paul. Humanistic Education.
Berkeley: McCutchan Publishing.
SHOR, Ira (1980).
Critical Teaching and Eueyday Life. WEXLER, Philip (1982).
Boston: South End Press. "Structure, Text, and Subject: A Critical
Sociology of School Knowledge". In
SMITH, Gregory (ed.) (1994). Cultural and Economic Reproduction in
Public Schools That Work. Education, Michael W. Apple (ed.).
New York: Routledge. London: Routledge & Kegan Paul.

SMITH, Richard; KNIGHT, John (eds.) WEXLER, Philip (in press).


(1980). Critical Social Psychology.
"The Right Side: A Reader in the Theory and London: Routledge & Kegan Paul.
Practice of Knowledge and Control", WEXLER, Philip (1992).
unpublished manuscript. Becoming Somebody.
Australia: University of Queensland. New York: Falmer Press.
WHITTY, Geoff (1978). WSE, Arthur (1979).
"School Exarninations and the Politics of Legislated Leaming: The Bureaucratiza-
School Knowledge". tion o f the American Classroom.
In Sociological Inteq~retationso f Schooling Berkeley: University of California Press.
and Classrooms:A Reappraisal,
Len Barton and Roland Meighan (eds.). WOLFE, Alan (1974).
Driffield, England: Nafferton Books, "New Directions in the Manrist Theory of
pp. 129-144. Politics".
In Politics and Society IV
WHITTY, Geoff; EDWARDS, Tony; (Winter), 131-159.
GEWIRTZ, Sharon (1994).
Specialization and Choice in Urban W O L F - W A S S E R M A N , M ~ ~ ~ ~ ~"~ ;
Education. HUTCHINSON, Kate (1978).
New York: Routledge. Teaching Human Dignity.
Minneapolis: Education Exploration
WILLIAMS, Rayrnond (1961). Center.
The Long Revolution.
London: Chatto & Windus. ! WOODS, Peter; HAMMERSLY. Martin (eds.)
: ,;
(1977).
WILLIAMS, Raymond (1974).
School Experiente.
Television: Technology and Cultural Fonn.
New York: St Martin's Press.
New York: Schocken Books.
WRIGHT, Erik Olin (1978).
WILLIAMS, Raymond (1977).
Class, Crisis and the State.
Marxism and Literature.
London: New Left Books.
New York: Oxford University Press.
WRIGHT, Erik Olin (1979).
WlLLIS, Paul (1977).
Learning to Labour. Class Structure and Income
Westmead: Saxon House. Detennination.
New York: Academic Press.
WILLIS, Paul (1978).
Profane Culture. WRIGHT, Will (1975).
London: Routledge & Kegan Paul. Sixguns and Society.
Berkeley: University of California Press.
WLLIS, Paul (1979).
"Shop Floor Culture, Masculinity and the YOUNG, Michael; WHITTY, Geoff (eds.)
Wage Forrn". (1977).
In Working Class Culture: Studies in Society, State and Schooling.
Histoy and Theoy, John Clarke, Chas Sussex: Falmer Press.
w Critcher and Richard Johnson (eds.).
ZIPIN, Lew (1995).
London: Hutchinson, pp. 185-198.
"Emphasizing Discourie and Bracketing
WILLIS, Paul (1979). Foundations", unpublished paper,
"Class Struggle, Syrnbol and Discourse", Department of Educational Policy Studies,
unpublished paper, University of Birmingham. University of Wisconsin.
\

Coleccão Currículo, Políticas e Práticas


coordenada por José Augusto Pacheco

1 Escolas Democráticas
Iíiçhael W, Apple e James .I. Beane (orgs.)
2 Teorias do Currículo
Uma introdução crítica
Tomaz Tadeu da Silva
3 Políticas de Integração Curricular
José Augusto Pacheco (org.)
4 Investigação sobre Políticas Educacionais
Terreno de contestação
Jenny Ozga
5 Currículo, Género e Sexualidade
Guacira Lopes 1,ouro
6 Educação e Poder
blicharl W. Apple
7 Desenvolvimento Profissional de Professores
Os desafios da aprendizagem permanente
Christopher Day
8 Por que é que vale a pena lutar?
Nichilel Fullan e Andy Hargrt.avc.s
9 O Currículo em Mudança
Estudos na construção social do currículo
Ivor F. Goodson
Cakeção Cum'culo, Políticas e

-o e Poder
Thbsg L mn livra que rdecte um &o pakítico sobre a
em relação a mock> mmo o &imentu uiilimíb
~~~~lb~~~e:%ofrrar.ats&ruturaaam~ãeswi&mtana~,~
e iasr pdítica e na cultura.

wmw.~tocsdttora.pt
6áik ndW
Melhor site - 2000

1 -.I0 ISBN 97203480&2

Você também pode gostar