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Religare 9 (1), 72 - 83, março de 2012

TRADIÇÃO ORAL: O SILÊNCIO DA CAMARINHA, A FALA DO


INCONSCIENTE

ORAL TRADITION: THE SILECE OF CAMARINHA, THE SPEECH OF


THE UNCONSCIOUS

Yuri Tavares
Universidade de São Paulo
Maria Elise Rivas
Faculdade de Teologia Umbandista

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Resumo: O objetivo deste trabalho é a análise de uma camarinha, ritual afeto ao candomblé e a umbanda
omolocô em seu sistema de transmissão que anula a fala como meio de comunicação e introduz outros meios
sensíveis, concretos, como forma de atuar no inconsciente do filho de santo ou adepto. A linguagem inarticulada,
que se abstém do som humano, assume outras dimensões da comunicação mítica, ritual e do próprio ethos que se
traduz nos arquétipos dos Orixás, no êxtase do ritual - a saída de santo. Usaremos como autores de referência
Francisco Rivas Neto e José Flávio Pessoa de Barros como suporte teórico para os rituais de camarinha e Gerd
Theissen para analise do tripé: rito, mito e ethos.

Palavras-chave: camarinha, mito, rito.

Abstract: The objective of this work is the analysis of a camarinha, ritual Candomblé and Umbanda affection to
omolocô in its transmission system which cancels speech as a means of communication and introduces other
means sensible, practical way to act as the child's unconscious saint or adept. The language that refrains sound
human communication takes on other dimensions of mythic, ritual and the very ethos that is reflected in the
archetypes of the Orixás, the ecstasy of ritual-output saint. We will use as reference authors Francisco Rivas
Neto and José Flávio Pessoa de Barros as theoretical support to the camarinha rituals and Gerd Theissen to
analyze the tripod: ritual, myth and ethos.

Keywords: camarinha, Oral Tradition, unconscious

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Introdução camarinha, que tem por premissa a


anulação da fala como meio de transmissão
A análise de um rito na camarinha é sentido pela Yawô. Temos muitos relatos
se torna um desafio não apenas pelo antropológicos (etnográficos) e sacerdotais
processo ritual, mas principalmente por do processo ritual na camarinha, mas muito
abordar a transmissão em uma religião de poucos relatos dos filhos e filhas de santo.
tradição oral, na qual o método utilizado é O nosso desafio é exatamente a
complexo e vai muito além da fala. visão de dentro, daquele que recebe, e seu
O nosso artigo nasce da sistema de transmissão que anula a fala
interrogação de como um ritual na como meio de comunicação introduzindo
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meios sensíveis, concretos, como forma de psicológico. Considerando estas duas


atuar no inconsciente individual da Yawô teorias citadas e partindo da premissa que o
ou do adepto em busca do resgate da rito na camarinha busca a interpenetração
memória ancestral, do inconsciente no inconsciente individual e coletivo,
coletivo, na interpretação de Jung. representado pelo arquétipo dos Orixás,
nascem algumas questões: O que se passa
com a Yawô na camarinha? Qual é a sua
experiência religiosa? Para entender a
A linguagem simbólica e o Inconsciente forma como se dá a conexão ritual na
camarinha com a experiência religiosa da
Usaremos como aporte teórico os Yawô, é necessário apontarmos dois
conceitos de Freud e Jung para elementos, sem abdicarmos do referencial
discorrermos como se dá o acesso ao do inconsciente: o primeiro é a base ritual
inconsciente individual da Yawô e a busca alicerçada na transmissão e o segundo a
ao inconsciente coletivo, que neste artigo linguagem simbólica.
estamos associando com a memória A base de transmissão pela qual
ancestral dos Orixás (os arquétipos dos optamos é a defendida por Debray, a
Orixás). diacrônica e caminhante, que ele qualifica
Embasaremo-nos no conceito de como uma trama, que vai além de um
Freud de inconsciente individual, em seus drama e estabelece a ligação entre os
aspectos de inconsciente dinâmico e vivos e os mortos (...) (ROLLAND, 2011),
autônomo com relação à anatomia do ou seja, a transmissão a qual nos referimos
cérebro. Focaremos nas características não se trata de um simples ato de “(...)
comportamentais do inconsciente comunicação, que consiste em fazer
individual em seus elementos circular uma informação no espaço em um
semiológicos, incluindo a indiferença ao momento específico (...) e, sim, a
tempo, bem como a descrição feita por capacidade (...) de portar uma
Freud do processo "primário”, que ele informação no tempo, isto é, construir uma
define como energia livre, ausência de duração, uma tradição, uma memória”
negação, de dúvida, de grau de certeza e (ROLLAND, 2011) por meio de
indiferença perante a realidade. reatualizações.
Na teoria de Jung, focalizaremos no Neste momento o mito, por
inconsciente coletivo, que inclui materiais intermédio do rito, ganha uma significação
psíquicos que não têm sua origem apenas especial, para o ato da transmissão, pois ele
na experiência individual. O inconsciente se torna capaz de abrir um “espaço”
coletivo tem, sim, material individual, mas, adequado para a constituição do resgate da
em pequena porção como já nos assinala a tradição e da memória. É neste instante em
nomenclatura, é uma construção coletiva e que entramos com o segundo ponto, a
nele há estruturas psíquicas ou arquétipos, linguagem simbólica, e “os
que são denominados por Jung de imagens comportamentos e os signos adquirem um
primordiais, pois corresponde a temas excedente simbólico e são relacionados
mitológicos presentes nas diferentes como sinais de outra realidade”
culturas. (THEISSEN, 2009, p.16).
Segundo Jung, os arquétipos são A transmissão ritual na camarinha
elementos estruturais que se firmam no ganha um novo significado, pois a fala não
inconsciente coletivo e são formas sem é parte integrante do processo, e, sim, a
conteúdo próprio que servem para linguagem simbólica, que é absorvida
organizar ou canalizar o material pelos canais sensoriais e, neste momento
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de interdição, se torna o principal conduto tempo. Possibilita o resgate de uma


da transmissão. memória atemporal contida no mito do
Cada detalhe no roncó (quarto de Orixá.
santo ou camarinha) é absorvido pela A memória para ser acionada é
visão, pelo olfato, audição, gustação e tato. sensibilizada na camarinha, na “feitura de
A Yawô é sensibilizada pela linguagem cabeça” proporcionando interpenetrar no
simbólica que atuará em sua percepção, e inconsciente individual e conectá-lo à
entendamos aqui percepção, sob a forma memória coletiva ancestral, ao
de percipuum de Pierce, dentro de uma das inconsciente coletivo, à Tradição do Orixá.
suas categorias que aborda a qualidade de A camarinha é um rito que como
sentimento vaga e indefinida que (...) soma todos os outros é a “concretização” do mito
a consciência de quem percebe, por meio da linguagem simbólica. Já o
envolvendo-a no lusco-fusco da símbolo ocupa lugar privilegiado, pois é a
imprecisão, imediaticidade qualitativa (...) própria expressão da vivência religiosa na
mero tônus de consciência porosa e camarinha. Ele ordena a expressão,
desarmada, que se dilata e dissolve, constitui o visível do enredo ligado à
absorvida entre o percepto e o sentimento linguagem fundante mitológica. Na
que tem como variável sua intensidade do camarinha, por meio de símbolos
imperceptível até a vaga de infinito difuso, específicos, símbolos focais, que serão o
sem começo nem fim”. (SANTAELLA, norte da ação ritual, recria-se a cosmovisão
1993, p. 69) e abre-se o caminho ao transcendente, a
Assim, vemos a Yawô no espaço primordialidade presente no mito,
sagrado na camarinha ser subtraído do sensibilizando a memória individual.
valor de espaço comum e da percepção No plano fenomênico, os símbolos,
ordinária. Tudo ganha novo significado. O usados nos ritos na camarinha, ganham
rito na camarinha se constitui de importância vital como meio de acionar a
significações próprias, conjunções de experiência religiosa. Segundo Croatto, as
símbolos que se arranjam na presença do linguagens religiosas se dão no plano
sacerdote ou sacerdotisa (pai ou mãe de fenomênico aliando a vivência religiosa e a
santo), Yawô (filho/a de santo) e do Orixá experiência religiosa. Elas recriam a
cultuado. interface do plano visível, sensível e
Todos os ritos são agregados de imanente com o plano invisível e
símbolos que se relacionam, formando transcendente (CROATTO, 2002).
uma rica e refinada trama específica A heterogeneidade dos símbolos
(BARROS, 2007, p. 2). Os ritos na presentes nas camarinhas depende do
camarinha não são diferentes dessa Orixá cultuado pela Yawô, porém um
premissa e são carregados de significados, mesmo símbolo pode apresentar múltiplas
valores, normas, crenças e sentimentos. A significações, na medida em que for
rica linguagem simbólica gera um sistema utilizado para a constituição ritual, como
próprio de sinais que altera a relação construção de sentido “incondicional”.
cognitiva, emocional e pragmática (...) Desta forma o símbolo tem um caráter
(THEISSEN, 2009, p. 14). polissêmico e possibilita encadear e
O sistema de significados na desencadear uma rede de significações e
camarinha é operante “não reflete como conexões no processo ritual na camarinha.
espelho, aquilo que os sentidos Em todas as possibilidades de significação,
comunicam” (ALVES, 1988, p. 40), mas o símbolo sempre terá por finalidade
possibilita falar do invisível, do representar a força viva do Orixá, seu
transcendente de outro tempo que não tem
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poder volitivo, constituindo assim, seu de realização e crescimento vinculado ao


caráter de hierofania. Orixá, “construído” no rito do bori seria
um “ser” autônomo. Com base nesta
premissa Latour afirma que a criatura,
Igbá-Orixa, supera até certo ponto seu
Yawô: o Símbolo Vivo criador ou criadora (a Yawô).

O símbolo remete a algo anterior a Porém se tomarmos o corpo da


contraparte visível do objeto. Sendo vital Yawô como o primeiro receptáculo onde
nos rituais, pois é através deles que a Yawô serão implantados todos os axés antes de
verá além dele. O símbolo é o elemento serem depositados em forma de “memória”
capaz de sensibilizar seu inconsciente no Igbá-Orixá já não podemos mais
resgatando a memória ancestral. afirmar a autonomia do mesmo e nem a
sua supremacia como entidade autônoma.
O primeiro símbolo a ser inserido
na camarinha é o próprio corpo da Yawô Entendamos o Igbá- Orixá como
que é descaracterizado da vida ordinária. memória, pois lá será inserido o axé que
Ela é despida de tudo que lhe remeta a vida está na Yawô e deverá ser sempre
secular, inclusive da própria voz. reatualizado. Aquele símbolo será a eterna
memória de seu rito de passagem e do que
São trocadas as vestes cotidianas constitui seus elementos estruturantes e
pela veste ritual. O tempo cronológico dá vitais. Alimentá-lo a partir deste dia
lugar ao tempo ritual perdendo a ideia de significa a manutenção de sua vida e da
tempo sequencial. O corpo da Yawô se memória da tradição do Orixa a qual está
torna a grande referência daquele espaço ligada e, não a transferência de poder ao
ritual. Junto com a mãe ou pai de santo o objeto.
filho ou filha de santo começam a
construção da referencialidade do espaço O corpo da Yawô é catulado em
sagrado. Iniciam pela ciça (esteira ritual) alguns casos curado, para ser ele o símbolo
marcando o centro do espaço sagrado que vivo da tradição implantada. Por isso nos
recebe a Yawô e que se torna à partir deste dedicamos a entender como é a experiência
momento o grande referencial para todo o religiosa que faz do corpo o receptáculo da
rito. força Orixá, do axé, o princípio de
realização e crescimento. (por isso que se
O corpo da Yawô é o opá (mastro diz que o axé foi implantado)
sagrado que liga o mundo natural ao
sobrenatural), denominado por Eliade de É neste momento que retomamos a
axis mundi. O corpo da Yawô é o principal experiência religiosa e entendamos a
símbolo na camarinha. experiência religiosa como cita Willians
James, em Las variedades de la
Por não considerar o corpo da experiência religiosa:
Yawô como símbolo vivo e dar ênfase
apenas aos objetos como símbolos rituais De ahí que hable de la experiência
na camarinha, principalmente no rito de religiosa, tratando de descobrir “los
sentimentos, los actos y las experiências
“fazer a cabeça”, é que grandes pensadores de hombres particulares em soledad, em la
como Bruno Latour concluíram que a medida em que se ejercitan em mantener
figura simbólica Igbá- Orixa; assentamento na relacion com la divindade” (James,
de louça que representa o axé, o princípio 1996, p.34)

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Para James as raízes da religião se cada Orixá, pois nosso objetivo não é uma
encontram na experiência e desta forma análise de fundamentos do ritual.
não é acessível à razão, pois se trata de
estados místicos. Este estado, segundo o Cada Orixá tem uma comida ritual,
autor, se bem desenvolvidos têm o direito denominada de comida de santo, que
de ser autoridade absoluta sobre os estarão presentes na camarinha, durante o
indivíduos que a experimentam. período de reclusão da Yawô. Na
camarinha as comidas de santo eram: de
Yemanjá o ejá, de Oiá o acarajé entre
outros, de Ogum o alesi e de Xangô o
Relatos da experiência religiosa amalá.

Os relatos apresentados em nosso Realizamos uma entrevista com os


trabalho da experiência religiosa são recolhidos para que pudessem discorrer
efetuados por três mulheres e dois homens livremente de sua experiência e a primeira
que passaram pelo ritual na camarinha, a ser entrevistada foi a filha de Xangô, 45
“fizerem a cabeça” ou foram borizados no anos, casada, mãe de três filhos ligada as
ano de 2009. religiões afro-brasileiras desde os 13 anos.

Das três mulheres, duas delas são


filhas de Yemanjá e uma filha de Xangô.
As qualidades do Orixá Yemanjá das filhas Primeiro relato: Dias de Recolhimento
de santo são Ogunté e Assabá, assim,
embora sejam filhas do mesmo Orixá elas “Havia a ansiedade do
apresentam diversidade na qualidade do recolhimento tudo estava pronto. Quando
Orixa. A terceira filha de santo é de Xangô fui chamada a adentrar o espaço sagrado
cuja qualidade é Agodô. Os dois homens ritual não sabia ao certo o que ocorreriam
são de Ogum e Oiá. A qualidade do Orixa naqueles dias, sabia que muito do que
Ogum é Onirê e de Yansã é Apada. estava guardado em meu inconsciente
poderia ser liberado. Como? Não tinha
As Yawô apresentam diferentes ideia.
Orixás de cabeça e diferentes qualidades o
que se constituí uma diversidade dos mitos A primeira noite foi de preparação
fundantes ou primordiais, da linguagem de minha ciça, sob a orientação do meu pai
simbólica ou ritual e do ethos representado de santo, com as ervas adequadas onde
pelos arquétipos do Orixas. deveria me deitar nos próximos dias.
Literalmente construía passo a passo meu
Retomando a questão focal do leito sagrado. Os cheiros das ervas, a
elemento simbólico, que norteia o enredo, textura, as cores naquele momento onde
a ação e o desenvolvimento ritual, embora mais nada se dizia já ganhavam novo
nosso enfoque à partir deste momento se significado. O espaço era novo para mim,
será na experiência religiosa da (o) Yawô, mas neste primeiro momento o espaço se
daremos apenas um exemplo da restringia a minha ciça e nos movimentos
diversidade. de meu pai de santo.

Exemplificaremos a diversidade Após compor minha ciça todos se


simbólica presentes nas camarinhas destes retiraram e ali permaneci observando cada
Yawô, apenas com as comidas de santo de
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parte do local onde permaneceria dias Ele me fez sentir a importância de


consecutivos. cada rito, de cada símbolo, de cada cheiro
sem nunca trocar uma única palavra
Durante os dias que ali permaneci comigo.
via as Yabians apenas nos momentos de
alimentação e meu pai nos ritos diários que O que mais me chamou a atenção é
se seguiam progressivamente, a colocação que os símbolos eram muito presentes
da comida de santo (amalá) que me durante os rituais depois eles compunham
acompanharia nos dias de recolhimento. um todo de tal forma que não os observava
Era Xangô entrando por meio dos individualmente. Era como um jogo entre o
símbolos. visível e o invisível. Ora muito visíveis ora
invisíveis.
A lavagem com sabão da costa e
ervas de minha cabeça, mãos (louvando os Dois fatos sintetizam minha
meus ancestrais da direita e da esquerda), experiência em sua plenitude. A noite do
minhas pernas e meus pés para que meu principal ritual, na “feitura de cabeça”.
destino possa se realizar. A preparação de Após dias sem dormir eu adormeci no
meu bori, a introdução do Igbá-Orixá e a próprio rito e não consigo me recordar
formação do Obará (Pote do Destino), como este foi finalizado.
entre outros ritos.
A outra foi a saída de santo. No
O frescor do ewê (abo), o calor, a momento da preparação da saída de santo,
vida do ejé sobre minha cabeça. O obi quando era vestida pelas Yabians, estava
sinalizando a potencia da vida e da tão serena, tão quieta que me atrevi a dizer
espiritualidade.Componentes inesquecíveis para meu pai de santo que não sentia nada
guardados em minha memória e retificados e que seria impossível “virar” no santo. Ele
com toda a força pela experiência daquele apenas me responde que não era obrigada,
momento. mas buscasse ficar tranquila e feliz, pois
muitos me esperavam.
As minhas sensações internas eram
poucas. Fui tomada de um silêncio interno Sentei-me sobre minha esteira
tão profundo que não pensava e não numa saudade, que já se iniciava. As
conseguia pensar. Quase não dormi. Passei vozes, o burburinho do Templo, me
dias acordada e comia muito pouco. Os retirava pouco a pouca da mais sublime
ritos eram momentos de refazimento. A solidão que já vivera. Neste momento
cada rito me sentia mais lúcida e plena. O entendi que jamais estivera em solidão,
tempo não importava mais, se era dia ou mas repleta de Orixá e com o Orixá.
noite. Alimentei minha cabeça, dei de comer a
minha cabeça, devolvi a ela o Orixá que
O respeito por aquele homem que por algum motivo que desconhecia havia
chamava de pai ganhava novo sentido. arrancado. Ao contrário do que dizia
Tinha ciência de que não era por estar Latour eu passava a ser Orixá. Ter sim, o
isolada e ser ele apenas que mantinha Orixá não apenas em meu corpo, mas em
algum contato durante a feitura dos ritos de meu ori.
fundamento, mas pela sabedoria, pela
delicadeza na construção de cada passo, do Foi quando fui chamada a iniciar a
respeito que demonstrava por todos os saída respaldada pela mão de meu pai de
símbolos rituais que utilizava. santo que me conduzia sob o som do adjá
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tive sim, uma das experiências religiosa mim. No silêncio absoluto que reinava
mais marcante da minha vida. naquele quarto sagrado era eu comigo
mesmo. Parecia que toda a minha vida
Caminhava lentamente ao som do estava sendo passada em revista.
adjá e sem ao menos esperar comecei a ter
dificuldades de dar os passos. Perdi a Repentinamente um sono profundo
noção do espaço tentava tocar a parede em se abateu sobre mim e perdi a noção de
vão. Senti o que era virar no santo. Fui tempo. O “isolamento” era interrompido
arrastada por uma força tão grande e me diariamente pela entrada de nosso pai de
senti uma folha ao vento. Minha cabeça santo e nessa hora a alegria era muito
realmente virou como se desse um giro grande. Breve pedido de benção e muita
sobre si mesma e não tinha mais controle alegria no coração.
de meu corpo. Me sentia enorme,
gigantesca ao mesmo tempo, que era Durante todo período o alimento
possuída de uma leveza. Senti a força do tinha outro sabor, a água tinha outro sabor.
inconsciente coletivo e era absolutamente Era o alimento reconfortante da alma que
impotente mediante ele. Curvei-me a força eu sentia.
da ancestralidade. Finalmente entendi o
que era a memória ancestral, a Tradição E então, serenamente, fui sentindo
dos Orixa. a presença de uma grande Mãe que vinha
ver seu filho. Uma guerreira velha,
Ao sair do transe todos diziam que poderosa, matriarca, serena e forte. Muito
era Xangô Agodô com sua fortaleza, o forte.
Obá. Devia ser mesmo, pois minha filha
adolescente me olhou e disse: “Eu não a O vento soprou e quando me senti
reconheço mãe, você é outra pessoa!” acolhido por ela, perguntei: Mãe, desde
quando me acompanhas?
Segundo relato: O recolhimento no
quarto E nesse veio a minha própria
imagem na mais tenra infância. Era minha
Este relato é do filho de Oyá, Mãe que me respondia.
homem de ...., pais de 2 filhas pertencente
as religiões afro-brasileiras desde ..... Então para ela prostrei-me e para
ela dancei até não saber mais o quanto era
“Quando nosso pai de santo nos ela e quanto era eu.
informou que seria o próximo a ser
recolhido, ou seja, ser submetido a um Sai do quarto sagrado para o mundo,
retiro a camarinha, confesso que fiquei mais fortalecido e mais feliz. Saúdo minha
apreensivo e exultante ao mesmo tempo. mãe: Axé Oyá Igbalé”.
Apreensivo, pois era uma nova vivência
desconhecida para mim. Exultante, afinal
no fundo sabia que era mais uma
oportunidade de fazer a ligação com o Terceiro relato: O ronkó
Orixá.
“O recolhimento ao ronkó foi
Logo que adentrei no espaço realizado em agosto de 2009, na
sagrado, na camarinha, uma imensa e madrugada de uma sexta-feira. Sobre a o
profunda sensação de paz tomou conta de orientação de meu Pai, lavei e purifiquei os
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objetos a ser utilizado, durante meu pai adentrou ao ronkó, meu coração
período de recolhimento, este primeiro transbordou de alegria, ele falou comigo,
momento já é muito marcante, focado no eu chorei, virei um menino, mais
trabalho, mas extremamente ansioso para o fundamentos, cantos, cortes precisos e
que ia transcorrer, esperei, mas o tempo e a profundos, sacrifícios sem dor. Permuta de
convocação não vinham, ansiedade, pura vidas, ligação com o Orixá.
ansiedade.
Mais um dia, mais sonhos e
Fui então convocado, entrei no visões, os sentidos pareciam gritar, muita
espaço sagrado onde meu Pai ali se sensibilidade e alegria até que chegou o dia
encontrava. Fui tomada de muita emoção, da saída, muita ansiedade. Foi então que
comecei a ouvir cantos, orikis e orins ( atos eu ouvi o som dos tambores, meu pai veio
louvatórios e cânticos sagrados) junto à me preparar para a saída.
preparação da minha esteira, neste
momento fui acometido por um torpor, Existia um corredor entre os
meu corpo sentia um cansaço extremo, cai espaços do ronkó e o salão onde os
de joelhos na esteira, e da minha garganta tambores e vozes ressoavam, quando ali
saiu um grito incontrolável, como se fosse pisei entrei em transe, um transe como
um lamento de libertação cai em um sono nunca havia sentido, eu era eu e muitos,
profundo nada mais vi, só senti a mão de todos os Oguns! Todos os caminhos!”
meu pai sobre minha cabeça e dormi
profundamente.

Acordei sem ter noção do tempo, só Quarta Experiência: na Camarinha


sei que dormi muito, acordei muito
relaxado, apesar de dormir na esteira dura, “Parecia mais um dia de trabalho
ai percebi que existiam folhas debaixo da como todos os outros no terreiro até que
esteira, que sinceramente não sei como nosso pai de santo nos chamou em sua sala
foram ali se instalar, uma tranquilidade para falar sobre as “coisas do santo”, a
estava instalada dentro de mim, dormi camarinha, como se davam as obrigações,
muito e sonhei. Vi minha mãe e meu avô enfim, tudo fascinava, e enquanto ele
ambos já desencarnados, se apresentarem falava eu pensava: Será que um dia vou
vestidos de branco, meu coração se encheu passar por isso? Será que aguentaria vários
de alegria. dias de recolhimento?

Durante todo o período de No meio dos meus pensamentos


recolhimento não falava com ninguém, veio uma voz dizendo que iria para a
porque ninguém falava comigo, restrições, camarinha, e que seria na quinta-feira, dia
fundamentos, tudo propiciando um 30 de julho de 2009, o que deveríamos
mergulho muito profundo dentro de mim levar e como se daria o processo.
mesmo, minhas irmãs, as Yabians
entravam no ronkó e serviam a comida que Nem sei se processei a primeira
alimentava o corpo e o espírito, sem informação: camarinha! Mas como nosso
proferir nenhuma palavra. Estava sozinho, Pai sempre diz: “A vida não se demora no
dentro de mim mesmo. ontem”. Afinal, eu não estava lá a passeio,
mas sim para viver e aprender TUDO o
Em algum período durante a noite que o terreiro poderia e pode nos
(perdemos toda a noção de tempo), meu proporcionar na sua magnitude!
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Dizer que eu entendia realmente o poderia mais ser igual, que aquele com
significado de tudo aquilo... Não, eu não certeza seria o divisor de águas da minha
entendia, mas sabia que para minha vida. Chorei ainda mais, durante muito
iniciação seria apenas o primeiro passo. tempo, e me deparei com o silêncio. O
silêncio do lugar e do silêncio interno que
Era 30 de julho de 2009 eu estava eu sentia tomar conta de mim era quase
alegre e falante. Chegando lá, nosso pai de como um vazio, mas era só silêncio, e ao
santo pediu que não fizéssemos nenhum mesmo tempo meu corpo estava sendo
esforço, que ficássemos tranquilas e preenchido de tudo aquilo que faltava para
quando fosse a hora nos chamaria. me permitir ser feliz. Parei de chorar e
voltei a dormir.
Após algum tempo, pediu que
trocássemos de roupa e fôssemos para a Dormi e quando acordei já era o dia
camarinha nos preparar para “deitar”. de nossa saída, e percebi que poderia ter
Antes era necessário despertar as folhas ficado ali por quanto tempo mais fosse
que iriam embaixo de nossas esteiras, e necessário.
assim fui entrando em outro estado, feliz,
calmo, um pouco entorpecente. Passamos ‘Sair’, foi dolorido como nascer,
por alguns outros processos e “deitamos”. mas tão lindo quanto, sentir o que eu senti,
sendo levada pelo nosso Pai ao som de seu
Naquele primeiro momento, lembro Adjá. Não conseguiria explicar o que senti
que pensava que talvez não fosse conseguir nem em mil anos. Existem coisas que
ficar ali; não se pode falar na camarinha e temos que viver para saber e essa, sem
não se pode entrar de meia na camarinha. dúvida alguma, foi até hoje a melhor
Estava muito frio (fiquei sabendo depois experiência da minha vida”.
que foram os dias mais frios do ano até
aquela data) e acreditava que os dias
seriam eternos. Quando menos percebi era
dia claro. Antes de comer, o banho de Quinto depoimento: Minha experiência
ervas, depois, a primeira refeição do dia. na camarinha
Tinha vontade de levantar, mas era como
se algo me puxasse para a esteira, passava “Em primeiro lugar foi uma
as horas deitada, dormindo, acordava e surpresa para mim, pois estávamos
dormia novamente, só tinha vontade de montando uma oferenda para Yemanjá,
dormir, era um sono interminável. quando nosso Pai falou que eu iria ‘deitar’.
E assim foi.
Aos poucos fui me percebendo, me
enxergando e entrando em contato comigo Ao entrar na camarinha pude notar
mesma. Antes de ir para a camarinha, todos os elementos simbólicos ali deixados
estava passando por processos difíceis em pelas minhas irmãs de santo. Estava
minha vida pessoal em todos os níveis: montada no chão uma mesa com todas as
saúde, afetivo material e a maior oferendas brancas que compõe uma mesa
transformação de todas: espiritual. de Ori, canjica cozida, inhame pilado, mel,
efun (pemba branca), dendê, arroz cozido,
Quando percebi que ali eu teria que obis e muita quartinha de água. Acho que
me enfrentar, chorei muito, sabia que não esqueci nada.
aquele processo de transformação mudaria
minha vida como um todo, que nada
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Após observar tudo que continha na terminasse. Logo depois voltei para a
camarinha. Comecei a sentir uma sensação camarinha, mas a minha sensação era que
de insegurança, pois tudo que me é tudo estava meio longe, demorou um
desconhecido me causa essa sensação. Na tempinho para eu voltar a sentir como
primeira noite fui tomada de uma estava antes. E foi isso, adorei e gostaria de
ansiedade que mal pude dormir. Fiquei voltar e fazer um bori completo”.
pensando em muitas coisas e
principalmente o que esta experiência iria Considerações Finais
me causar, quais modificações faria em
meu ser, o que iria acontecer. As experiências religiosas vividas
pelas Yawôs no rito da camarinha
Passei a maior parte do dia demonstraram que a ausência de voz não
dormindo e acordando. Não tenho a comprometeu o ato da transmissão.
lembrança de contato com o meu pai de Observamos no testemunho das Yawôs
santo na primeira noite. Outro dia tarde da características similares quando retratam a
noite o nosso pai de santo entrou sem dizer ausência da voz como fator sensibilizante
uma palavra e deu de comer para nosso Ori e, capaz de produzir uma forma
e depois ofertou um peixe e Obi. Fui “silenciosa” na consolidação da
catulada. Neste momento senti uma paz transmissão, mas também a composição
dentro de mim e logo em seguida dormi deste processo ritual com outros elementos
profundamente sem sonhar ou sentir simbólicos diversos que permitiram a
qualquer incomodo. Após este momento penetração no inconsciente individual, que
entreguei-me ao sono. Este sono me foi liberado de maneiras diferentes por
consumiu. cada recolhido.

Minhas irmãs preparavam nossa O inconsciente coletivo, o arquétipo


alimentação com muito carinho, mas eu do Orixá é observável na saída ritual, no
não senti muita fome, mas o sono era momento em que ocorre a “virada de
profundo e estranho. Chorei muito, mas santo”, o transe das Yawôs onde
sem saber ao certo o motivo. Foi estranho, reatualizam o mito do Orixa
pois não estava triste. consubstanciado no arquétipo redivivo.
Podemos neste momento observar o mito,
No decorrer dos dias fiquei o rito e o ethos dos filhos de cada Orixa.
totalmente tranquila e serena, dormi menos
e comi menos ainda. Sempre ao anoiteceu A transmissão na Tradição Oral não
e também não sei a que horas nosso pai é um processo simplista que se resume a
entrou e pediu que levantássemos devagar. fala, mas um sistema complexo que a
E logo em seguida começou a tocar o Adjá. integra não como fonte absoluta, mas como
Nossa! Esta foi à melhor sensação que eu um dos fatores que a compõem.
já senti ao longo dos meus anos de vida e
de vivência com a espiritualidade.

Minhas pernas não se firmavam e Referências Bibliográficas


um dançar suave me possuiu e fui tomada
por uma sensação deliciosa. Neste ALVES, Rubens. O enigma da
momento saí da camarinha. Ficaria Religião.Campinas: Papirus Editora, 1988.
dançando por muito tempo se isso fosse BARROS, José Flávio Pessoa de Barros,
possível, para que esta sensação não MELLO Marco Antônio Marco, VOGEL,
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Sobre o autor:

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Maria Elise Rivas: graduou-se em Teologia pela Faculdade de Teologia Umbandista- SP. É
professora e vice-diretora da FTU. Mestrando em Ciências da Religião pela PUC-SP
(Retirado do texto informado pelo autor no currículo lattes)
.

Yuri Tavares: Mestre e Doutor em Geografia Física pela Universidade de São Paulo. É
professor do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).
(Retirado do texto informado pelo autor no currículo lattes)

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