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Mesa Redonda: a psicose de Freud a Lacan

Título do trabalho: A escrita de Joyce e a suplência na psicose

Autor: Maria Lídia Oliveira de Arraes Alencar

Na década de 70, Lacan estabelece a Clínica Borromeana, uma clínica das

suplências, que, não desmentindo a sua primeira formulação (estrutural), estabelece

agora, como princípio, uma equivalência entre sintoma e Nome-do-Pai. Nessa

perspectiva, a Metáfora Paterna se relativiza, sendo apenas uma das formas de cifrar o

gozo de que o sujeito se serve. Assim, se os fenômenos elementares continuam a ser

um índice para o diagnóstico da psicose, ao mesmo tempo, não são mais o único

norteador nessa localização do sujeito. Outras formas particulares de ciframento do

gozo passam a ser consideradas. Desloca-se, portanto, a neurose do lugar de

paradigma para pensar o sujeito. As articulações entre os termos sintoma, gozo e

linguagem, exigem um novo ordenamento, e a solução edípica é recolocada como

resposta particular da neurose à falha no Outro.

Equivaler o sintoma ao Nome-do-Pai não é uma tentativa presente apenas na

fase final do ensino de Lacan. Já a encontramos em A Relação de Objeto (1956-57),

quando, a propósito da fobia de Hans, Lacan indica que a fobia aos cavalos representa

um Nome-do-Pai substitutivo, e que, justamente, a lógica da cura, nesse caso,

consiste em suplantar esse substitutivo pela elaboração da Metáfora Paterna. Logo, já

aqui, pai e Nome-do-Pai já não coincidem.

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A instauração da Metáfora Paterna traz como consequência o efeito de

significação, procedendo a uma elaboração de gozo, fruto da passagem da pulsão à

castração, pela qual se inscreve o falo, o significante da falta. Esse percurso dominou

grande parte da discussão a respeito da constituição do sujeito no ensino de Lacan,

definindo o sintoma sempre relativamente ao campo do desejo, a partir da posição do

sujeito frente ao Outro. Mas Lacan observa, em R.S.I., que Freud, para manter sua

construção, se vê obrigado a recorrer a um quarto termo, o Complexo de Édipo, sem

o qual os registros (Real, Simbólico e Imaginário) ficam livres, à deriva.

A questão da estrutura como pedra de toque da clínica diferencial entre

neurose e psicose não desaparece, mas sofrerá um deslocamento essencial, que

distingue esses dois momentos de seu ensino, tão distanciados no tempo. No intervalo

de mais de 15 anos que os separa, vamos ver a estrutura se localizar no plano dos

discursos, separando-se do campo da linguagem, em que Lacan virá a recolher outros

modos de saber-fazer com o gozo. Trata-se portanto de uma dessacralização do Pai,

de sua condução à categoria de suplência, ou seja, o pai é um sintoma, um entre

outros elementos, capaz de instaurar a relação entre os registros. Pergunta, em R.S.I.:

será que a multiplicação dos Nomes-do-Pai, que destituem a primazia do Édipo em

suturar a falha no Outro, vai nos levar a dizer que o Nome-do-Pai já não é

indispensável?

No Seminário sobre as Psicoses (1955-56), Lacan toma a estrutura do sintoma

como uma função da metáfora, um ponto de capitonagem entre um significante e um

significado, e a psicose, conseqüentemente, é concebida como uma falha dessa

função, pois o significante aparece fora da cadeia, no real, por carência do efeito

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metafórico. Entretanto, nos Seminários R.S.I. (1974-75) e O Sinthoma (1975-76), a

noção de sintoma se inverte, já não tem nada a ver com nenhum sujeito, e “não diz

nada a ninguém: é ciframento e é gozo puro de uma escritura”. (Miller). A partir

disso, é a psicose que dá o modelo do núcleo real de todo sintoma. Muda o acento, e

Lacan concebe o sintoma como a “maneira em que cada um goza do inconsciente,

enquanto o inconsciente o determina” (Lacan, RSI). Sua função não é metafórica,

mas, sim, fruto da função da letra em fixar o gozo sem Outro. Pode se dizer que há, a

partir disso, a tomada do mecanismo da foraclusão como paradigma, sendo o sintoma

neurótico, agora, um suplemento, um acréscimo à função do Nome-do-Pai.

No Seminário O Sinthoma, dedicado ao escritor James Joyce, Lacan localiza,

a propósito de sua escrita, uma solução singular de amarração dos registros Real,

Simbólico e Imaginário, cujo efeito não é a produção de sentido. Sua arte “é uma arte

para o que convém o nome de sinthoma” (Lacan). Joyce goza da letra fora de sentido,

e é, para Lacan, a referência dessa virada final, na medida em que seu saber-fazer

com a letra, por um modo completamente particular, retirado do campo que leva ao

efeito de sentido, a letra como lixo, é um saber- fazer com lalangue (lalíngua) .

Segundo Lacan, “a linguagem é feita de lalangue, é uma elocubração de saber sobre

lalangue ... lalangue é uma cifragem que suporta o inconsciente, e o que se faz com

lalangue ultrapassa em muito o de que podemos dar conta com o título de

linguagem...os efeitos de lalangue já estão se fazendo sentir antes mesmo de tudo que

o ser que fala é suscetível de enunciar, e, se o inconsciente é um saber, isso se deve a

que ele é um saber-fazer com lalangue (S.XX, p.190).

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Ao tomar o exemplo da obra de Joyce como paradigma, Lacan reconhece no

seu trabalho de desmontagem da língua inglesa, um ato de tomar as palavras ao nível

de lalangue, de fazer da letra, enquanto lixo, parasito, um riocorrente sonoro, ao

deixar-se invadir por sua polifonia, seguir o fluxo indecidível entre o fonema, a

palavra e a frase, produzindo um escrito para não ler. Promove, desse modo, um

curto-circuito no sentido usual das palavras, usando um tipo especial de equívoco, e,

além dos efeitos que causou na literatura, serviu-se de sua arte como suplência à

psicose. Essa é a hipótese de Lacan, a de uma psicose não-desencadeada em Joyce.

Não é sem reservas que enuncia sua suposição da psicose em Joyce, pois toma

como apoio não os traços que se poderia chamar de ‘paranóicos’ do artista, mas, sim,

toma os elementos específicos, analíticos, por assim dizer, que são: 1) o fato de que o

pai não lhe retorna, que o pai é ‘uma ficção legal’, no dizer do próprio Joyce, cuja

carência ele enfrentará fabricando artificialmente um nome do pai pela arte da

escritura. Para que os três registros não estejam em continuidade é preciso que exista

um quarto termo, um elo suplementar, nascido de um corte no simbólico, fazendo

uma clivagem entre símbolo e sinthoma, escrito com uma nova grafia, com th,

indicando uma função fundamental, uma função de nomeação.

Trata-se, a partir disso, para Lacan, de reconhecer e formalizar as distintas

versões do pai que se pode recolher da clínica, para o que é preciso tomar, como

operação fundamental, a confecção desse quarto elo, o sint(h)oma, cuja demonstração

estaria na escrita de Joyce, que, com essa escrita, fez-se filho de um pai inventado,

inventou sua própria nomeação.

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A hipótese de Lacan de uma psicose em Joyce é tocada com muita reserva, e o

que lhe indica esse caminho é, principalmente, o fato dele padecer de ‘palavras

impostas’, que operam como o próprio terreno onde sua escrita se fará, num trabalho

em que a linguagem mesma termina por se dissolver. Além desse ponto, há dois

outros aspectos que chamam a atenção de Lacan. O primeiro seria o fato de sua

escrita expulsar o imaginário do sentido, sendo um jogo entre Simbólico e Real,

homogêneo aos fenômenos elementares, segundo Lacan, já que é na psicose que um

significante aparece no Real, fora de sentido, sem a mediação do Imaginário. Seu

método seria distinto do recurso delirante, mas, ainda assim, um modo de tratar as

palavras como coisas, expulsando o sentido, do qual mantém só um resto com função

de enigma.

O segundo aspecto a considerar seria a relação de Joyce com o próprio corpo.

A indicação é retirada de um episódio de sua juventude, em que foi surrado

violentamente e que, transposto para uma narrativa literária, esse episódio denota a

experiência de abandono do corpo próprio, ao mesmo tempo acompanhado de uma

desrealização do sentido das palavras, que passam a lhe parecer irreais. A perda de

consistência, relativa à abolição da relação imaginária com o corpo próprio, e com o

efeito de sentido das palavras, é, portanto, o segundo indicador, para Lacan, da

psicose de Joyce. Isso se confirma pela relação do autor com sua obra, onde o sujeito

se tece no exercício mesmo da escrita, tece a si mesmo. O ego de Joyce é sua obra.

Através dela o sujeito se ‘aperta’ como um nó, se enlaçando como corpus textual,

fazendo frente ao vazio do Nome-do-Pai. Resgata o pai empreendendo um intenso

trabalho com o Nome, fazendo reverberar as palavras de seu pai, restos da lalação,

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impostas ao sujeito, por uma espécie de ‘domínio retórico’do pai, a ser desmontado e

revisitado pelo puro gozo da letra, reinventado, na via da evocação de restos sonoros,

re-invenção do que, na escrita, é objeto-voz, literalizado, fazendo litoral com o literal.

Gozando desse saber-fazer que o fixa ao parasitismo das palavras, Joyce

trabalha com restos, que eleva à dignidade da arte, articulando simbólico e real. O

imaginário, que está solto em Joyce, em vez de fazer sintoma, como um

acontecimento de corpo, faz sintoma literário, erigindo um ego via obra, no que, e é

preciso que se diga, é imprescindível que seja publicada. Esse é o ponto _da obra

como suplência ao vazio do Nome-do-Pai, enodando letra e lugar.

Lacan se detém aí, redefinindo o conceito de suplência, como diverso da

estabilização, quando esta é puramente imaginária, a partir do que Joyce demonstra.

Quando sua escrita entra em correlação com os outros, funciona como um

‘enganchamento’ no Outro, sem passar pelo desencadeamento da psicose.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LACAN, J. – Seminário XX, Mais, Ainda, (1972-73), Jorge Zahar Ed, Ltda, RJ, 1982.
------------- - Seminário XXIII, O Sinthoma, (1975-76) , Jorge Zahar Ed. Ltda, RJ, 2007.
LAIA, S. – Os Escritos Fora de Si, Autêntica Ed./FUMEC, Belo Horizonte, 2001.
MANDIL, R. – Os Efeitos da Letra, Contracapa/UFMG, RJ, 2003.
MILLER, J-A – Los Signos Del Goce, Paidós, B. Aires, 1998.
SOLER, C. – O Filho Necessário, in Os Destinos da Pulsão, Contracapa, RJ, 1997.

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