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Escrevinhar, escrever: uma ilusão que faz nó

A partir da provocação das 30as Jornadas, quero levantar a hipótese de que há uma articulação entre
a função da ilusão e a função da escrita no ensino de Lacan.
Podemos contestar essa hipótese, apontando que a ilusão está do lado da fala, com seus
efeitos enganosos de verdade e de sentido. A escrita, caracterizada por sua identidade e pela
propriedade da letra de circunscrever um pedaço de real, seria por isso menos ilusória? Seria ela
unívoca? Curiosamente, Lacan afirma em 1976, a propósito do valor de trauma da escrita do real no
nó borromeano:

O forçamento de uma nova escrita […] é o que torna sensível, permite roçar, mas de
um modo completamente ilusório, aquilo a que chamamos de reminiscência, e que
consiste em imaginar, a propósito de alguma coisa que faz função de ideia, mas não é
uma, que a gente se reminisce dela, se posso me exprimir assim.1

Nessa passagem, articulam-se escrita e trauma, real e imaginário, reminescência e ilusão. A


reminescência se distingue da rememoração, uma vez que esta última denota as representações já
articuladas na cadeia simbólica; e a primeira está ligada ao que, do trauma, está perdido num tempo
mítico do qual o sujeito não pode se lembrar e nem se esquecer. Faz-se necessário então imaginar,
imaginar que uma escrita enquanto invenção possa roçar, tornar sensível, algo do gozo que para o
ser falante resta de seu próprio troumatisme. É uma ilusão que termina por realizar-se; na condição
de cedermos ao que Lacan, no Seminário 21, chama de “tolice de uma escrita”2. Essa formulação
vem denotar que, se o sujeito subsiste no efeito de puxamento provocado pela diferenciação das três
dimensões RSI, o nó borromeano torna esses registros estritamente equivalentes e sua distinção só
se realiza mediante a atribuição de letras às rodas de barbante. É então que Lacan, promovendo uma
ética da tolice, assinala que é necessário se deixar capturar, cair de bom grado na armadilha da letra,
para que se produzam os seus efeitos.
“A escrita não se faz num espaço menos especular do que os outros”3, ele diz ainda em Les
non dupes errent. Ao espaço borromeano, trinitário, opõe-se o espaço kantiano do senso-comum,

1 LACAN, J. O Seminário, Livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. p. 127; grifo nosso.
2 LACAN, J. Les non dupes errent, lição de 8/1/1974. Inédito. Tradução nossa.
3 Ibid., lição de 11/12/1973.
que conta somente duas dimensões. Para Lacan, habitamos o mundo plano: falta-nos, quase sempre,
a espessura. Diante dessa geometria ilusória, temos apenas um recurso: scribouiller. Essa palavra
reaparece pontualmente nos seminários 19 a 23, e pode ser traduzida por “rabiscar" ou
“escrevinhar”. Trata-se de uma escrita prototípica, despretensiosa, da ordem do rascunho.
Scribouillage pode ser, talvez, o que ainda está em vias de se escrever. Lacan utiliza esse termo para
falar: dos primeiros esboços da lógica enquanto ciência, dos seus primeiros artigos, das anotações
dos seus alunos, dos seus próprios rabiscos no quadro negro. Quanto a Joyce, diz que ele deixou um
enorme número de “gribouillages, scribbledehobble”. O que está em jogo na passagem entre
escrevinhar, gesto que a princípio se daria no espaço geométrico sem maiores consequências, e
escrever, ato que funda o espaço tridimensional do nó borromeano?

L. chega a uma instituição de orientação psicanalítica trazida por responsáveis do abrigo


onde vive. É designada violenta, hiperativa, mentirosa. Agride fisicamente suas colegas; “inventa
doenças e histórias”. A adolescente havia sido separada há anos de sua mãe, que foi acusada de
negligência e abandono, e seu pai cumpria sentença de prisão. Logo ao chegar, L. define o seu
tratamento: “um lugar para conversar sobre minha família”. Entretanto, essa conversa não se dá no
registro biográfico: o tema da história familiar aparece como um insuportável nos atendimentos.
Durante as sessões, L. produz rabiscos e desenhos nos receituários que encontrou no
consultório médico. Sobre eles, conta, sempre na terceira pessoa, histórias de orfanatos, chiqueiros,
meninas abandonadas no lixo do portão. Num desses receituários, preencheu o nome do analista no
cabeçalho e produziu uma carta, que consistia no escrito: MC RICK LIXO. MC L.4; entregou-o ao
analista.
Essa escrita correspondeu a uma virada no estado clínico da paciente. A partir de então ela
pôde se desobrigar de algumas identificações imaginárias, como sua posição de “menina robô", e
acessar novos encontros e fazer laços com outros adolescentes do serviço.
A adolescente deixa de se projetar como policial ou carcereira, “para bater nas pessoas", e
passa a dizer que vai ser lixeira ou agente do conselho tutelar; e, posteriormente, psicóloga, “para
ajudar as pessoas conversando num prédio”. Esse futuro não está decidido; após alguns meses, L.
decide concluir seu percurso na instituição.
Para "conversar sobre família”, L. se serve do scribouillage que decanta na escrita de uma
carta. Nessa produção, algo se delimita daquilo que, na história de sua destituição parental, aparece

4 O nome de MC L. está abreviado por corresponder a uma versão masculina do nome de L.


como reminiscência: não é exatamente lembrado, mas construído. Trata-se de uma ilusão, não tanto
no sentido de falseio, mas no sentido etimológico de ludos, do que constitui um jogo pelo qual o
objeto dejeto ganha um contorno de letra e no qual o analista pode ser incluído como um parceiro;
um destinatário da carta.
A passagem entre escrevinhar e escrever é aquela pela qual a letra captura o sensível do
trauma “de um modo completamente ilusório”: retomando essa passagem de Lacan até suas últimas
consequências, podemos dizer que a identidade entre um buraco, real, e sua borda, simbólica,
precisa de ser imaginada: depende de um quantum de ilusão.
No caso relatado, a escrita não vai sem o lúdico do rabisco; e a leitura não dispensa a ilusão
própria do discurso analítico: a ilusão de que um pedaço de real cessa de não se escrever.

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