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A partir da provocação das 30as Jornadas, quero levantar a hipótese de que há uma articulação entre
a função da ilusão e a função da escrita no ensino de Lacan.
Podemos contestar essa hipótese, apontando que a ilusão está do lado da fala, com seus
efeitos enganosos de verdade e de sentido. A escrita, caracterizada por sua identidade e pela
propriedade da letra de circunscrever um pedaço de real, seria por isso menos ilusória? Seria ela
unívoca? Curiosamente, Lacan afirma em 1976, a propósito do valor de trauma da escrita do real no
nó borromeano:
O forçamento de uma nova escrita […] é o que torna sensível, permite roçar, mas de
um modo completamente ilusório, aquilo a que chamamos de reminiscência, e que
consiste em imaginar, a propósito de alguma coisa que faz função de ideia, mas não é
uma, que a gente se reminisce dela, se posso me exprimir assim.1
1 LACAN, J. O Seminário, Livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. p. 127; grifo nosso.
2 LACAN, J. Les non dupes errent, lição de 8/1/1974. Inédito. Tradução nossa.
3 Ibid., lição de 11/12/1973.
que conta somente duas dimensões. Para Lacan, habitamos o mundo plano: falta-nos, quase sempre,
a espessura. Diante dessa geometria ilusória, temos apenas um recurso: scribouiller. Essa palavra
reaparece pontualmente nos seminários 19 a 23, e pode ser traduzida por “rabiscar" ou
“escrevinhar”. Trata-se de uma escrita prototípica, despretensiosa, da ordem do rascunho.
Scribouillage pode ser, talvez, o que ainda está em vias de se escrever. Lacan utiliza esse termo para
falar: dos primeiros esboços da lógica enquanto ciência, dos seus primeiros artigos, das anotações
dos seus alunos, dos seus próprios rabiscos no quadro negro. Quanto a Joyce, diz que ele deixou um
enorme número de “gribouillages, scribbledehobble”. O que está em jogo na passagem entre
escrevinhar, gesto que a princípio se daria no espaço geométrico sem maiores consequências, e
escrever, ato que funda o espaço tridimensional do nó borromeano?