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UCAM – UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES

GABRIEL DE ALENCAR PARENTE

O FENÔMENO DA EXPANSÃO LEGISLATIVA PENAL EM FACE DO


ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO.

CRATO – CE
2020
UCAM – UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES
GABRIEL DE ALENCAR PARENTE

O FENÔMENO DA EXPANSÃO LEGISLATIVA PENAL EM FACE DO


ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO.

Monografia Apresentada à Universidade Candido


Mendes - UCAM, como requisito parcial para a
obtenção do título de Especialista em Direito Penal e
Processual Penal.

CRATO – CE
2020
3

RESUMO

O presente trabalho visa analisar as consequências negativas concebidas


pelo expansionismo da legislação penal, observando a imprescindibilidade do
acatamento dos limites previstos pelos princípios constitucionais penais, de maneira a
delimitar a atividade penal através de uma mudança de perspectiva no reconhecimento
de ferramentas de combate ao crime nos três âmbitos de poder: 1) Executivo: como
forma de incentivar o reconhecimento de outras ferramentas de controle social, que
coadunem com o vigente Estado Democrático de Direito; 2) Legislativo: de modo a
restringir a hipertrofia do sistema penal e 3) Judiciário: no intuito de que este
desempenhe um monitoramento mais ostensivo sobre a constitucionalidade das normas
existentes.
Palavras-chave: Expansionismo do Direito Penal, Estado Democrático de Direito,
Controle Social, Direito Penal Simbólico, Princípios Constitucionais Penais.
4
5

ABSTRACT

The present work aims to analyze the negative consequences conceived by


the expansion of penal legislation, observing the indispensability of observing the limits
provided for by the constitutional penal principles, in order to delimit criminal activity
through a change of perspective in the recognition of tools to fight crime in three areas
of power: 1) Executive: as a way of encouraging the recognition of other tools of social
control, which are in line with the current Democratic Rule of Law; 2) Legislative: in
order to restrict the hypertrophy of the penal system and 3) Judiciary: in order for it to
perform more ostensible monitoring of the constitutionality of the existing rules.

Keywords: Expansionism of Criminal Law, Democratic Rule of Law, Social Control,

Symbolic Criminal Law, Criminal Constitutional Principles


6

INTRODUÇÃO_______________________________________________________6

1.-FORMAS DE CONTROLE SOCIAL E SISTEMA PENAL________________7


1.1-CONTROLE SOCIAL: FORMAL E INFORMAL________________________7
1.2.1- OBJETIVOS E RESTRIÇÕES DO DIREITO PENAL 9
1.2.2- ESCOPO DA PENA 10

1.3- A ATUAÇÃO INEPTA DO ESTADO NO ÂMBITO DO CONTROLE


SOCIAL 11
1.3.1- O VIÉS SELETIVO DO SISTEMA COERCITIVO 13
1.3.2- A INOPERÂNCIA DO PODER EXECUTIVO 14
1.3.2.1- A NEGLIGÊNCIA ESTATAL E A MARGINALIZAÇÃO SOCIAL 14

2-A EXPANSÃO DO SISTEMA PENAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE


DIREITO 15

2.1- PANORAMA SUCINTO DA CONCEPÇÃO DO ESTADO DEMOCRÁTICO


DE DIREITO 15
2.1.1- DO ESTADO LIBERAL AO ESTADO SOCIAL 16

2.2- A EXPANSÃO DA LEGISLAÇÃO PENAL 21


2.2.1- FATORES HISTÓRICOS DETERMINANTES PARA A INFLAÇÃO
LEGISLATIVA 22
2.2.2- LEGISLAÇÃO SIMBÓLICA 24
2.2.2.1- CONCEITO DE LEGISLAÇÃO SIMBÓLICA SEGUNDO MARCELO
NEVES 25
2.2.2.2- DIREITO PENAL SIMBÓLICO: ORIGEM, CONCEITO E EFEITOS 26

3-PRINCÍPIOS LIMITADORES DO “IUS PUNIENDI” ESTATAL 29

3.1- NOÇÕES INTRODUTÓRIAS SOBRE O GÊNERO “PRINCÍPIOS” 29

3.2- PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS PENAIS 30


3.2.1- PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA 31
3.2.2- PRINCÍPIO DA LEGALIDADE 32
3.2.3- PRINCÍPIO DA CULPABILIDADE 33
3.2.4- PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE 34

CONCLUSÃO 37
7

INTRODUÇÃO
A esfera penal é integrante do quadro de ferramentas de controle social
formal empreendido pelo poder estatal, constituindo-se como forma mais árdua de
interferência nas condutas da sociedade. A severidade dos dispositivos sancionadores
desse âmbito delimita a sua área de operação, tendo de ser empregada subsidiariamente
às restantes esferas do ordenamento jurídico, ou melhor, a sanção punitiva será a ultima
ratio demandada pelo Estado ,quando todos os demais artifícios menos danosos forem
exauridos.
Não obstante o seu viés secundário, esse ramo tem sido aplicado de maneira
excessiva, ampliando seu perímetro de exercício de tal jeito que transborda as
limitações impostas pela própria Magna Carta de 1988.
A inflação legislativa penal é um acontecimento desencadeado pela
incompetência estatal no que tange ao combate ao crime. Com efeito, conferida a
ocorrência de um delito que cause grande reverberação na sociedade, fazendo com que
o aparato midiático aumenta a pressão pela retaliação da conduta praticada e acirre o
sentimento de descontentamento do povo.
O poder público, ao seu turno, reage ao clamor social por medidas pujantes e
instantâneas, vale-se da intercessão através do campo penal como alternativa imediata e
menos onerosa ao hipócrita embate às diversas formas de desavenças existentes na
sociedade.
O aumento do “ius puniendi” não está simplesmente relacionado com a
extensão da violência, mas sim, antes de mais nada, a representação da composição
coletiva de um Estado depauperado, estruturado por uma categoria de políticos
desengajados com as verdadeiras necessidades da população.
A evidência da ineficiência do complexo repressivo para solucionar as
matérias de sua competência, por intermédio da rotineira estipulação de leis penais,
somente majora a percepção de incredulidade nas entidades integrantes do maquinário
público.
O ordenamento jurídico-normativo não deverá amparar qualquer legislação
penal que confronte os princípios constitucionais, notadamente aqueles que infrinjam a
dignidade da pessoa humana, no subterfúgio de visar a pacificação social, pois as
normas infraconstitucionais só têm legitimidade quando harmonizam com os
fundamentos da Lei Maior. Busca-se com isso um Sistema Penal que coadune com os
8

elementos basilares da nossa constituição, assegurando verdadeira guarita aos direitos e


garantias fundamentais.
1-FORMAS DE CONTROLE SOCIAL E SISTEMA PENAL
1.1-CONTROLE SOCIAL: FORMAL E INFORMAL
Para que a ordem social seja mantida, as normas limitadoras ao
comportamento humano devem ser obedecidas. Tais dispositivos normativos são
impostos pelo ordenamento jurídico e inerentes ao Estado Democrático de Direito,
buscando mitigar a insegurança social ao sancionar as condutas contrárias aos interesses
de ordem coletiva praticadas pelos indivíduos.
De maneira à regular a conduta humana, o poder Estatal atua em parceria
com diversos instrumentos de controle, tais como a família, a religião, a escola etc.
Estas ferramentas de disciplina são consideradas como instrumentos de controle
informais. Já quando o próprio Estado atua de forma direta, este realiza o controle
social na modalidade formal.
Entende-se que controle social é o conjunto de instituições, planos
estratégicos e punições imbuídas de regular as condutas dos indivíduos, impondo aos
mesmos os modelos e normas da coletividade.
Atualmente, com as sociedades cada vez mais povoadas de conflitos e
complexidade, demanda-se constantemente pela ampliação das ferramentas de controle
para auxiliar na árdua missão de submeter os seus membros às formas de conduta
ditadas pela coletividade e, consequentemente, aos dispositivos normativos legais.
De acordo com os autores Eugenio Raúl Zaffaroni e José Henrique
Pierangeli, os embates entre grupos são resolvidos de maneira que se obtenha
estabilidade, resultando na elaboração do sistema de poder de uma sociedade, o qual se
fraciona em: a) institucionalizado, através da polícia, escola, tribunais etc., por exemplo,
e b) difuso, por meio dos veículos de massa, da família, do preconceito etc.
Conforme se verifica no texto: “Investigando a estrutura de poder
explicamos o controle social e, inversamente, analisando este, esclarecemos a natureza
da primeira” (ZAFFARONI; PIERANGELI,2011). Explicitam também que:

A enorme extensão e complexidade do fenômeno do controle social


demonstra que uma sociedade é mais ou menos autoritária ou mais ou
menos democrática, segundo se oriente em um ou outro sentido a
totalidade do fenômeno e não unicamente a parte do controle social
institucionalizado ou explícito(ZAFFARONI;
PIERANGELI,2011,p.60-62).
9

O exercício do controle social pelo Estado deve estar em consonância com


as determinações expressas na Constituição Federal, pautando sua atuação na promoção
e tutela dos direitos e garantias já consagrados na Carta Magna. A Constituição estipula
limitações ao legislador ordinário, de modo que este deverá observá-las estritamente,
sendo vedada a elaboração de atos normativos que determinem sanções
desproporcionais, imputando penalidades mais severas que o necessário ao ser humano
e ultrapassando o limite básico para proteção dos interesses públicos.

O Estado possui uma gama de instrumentos de controle social, sendo o


Direito Penal uma delas. A ciência penal é uma das modalidades mais austeras no que
toca ao controle social formal, pois a sua aplicação resulta quase sempre na limitação do
bem jurídico mais importante ao ser humano, que é o direito de liberdade. Segundo
Mariângela Gomes (GOMES,2003), o Estado deve esgotar a possibilidade de uso dos
meios menos lesivos antes de recorrer a norma penal, utilizando-a de forma subsidiária.

1.2- SISTEMA PENAL: CONTROLE SOCIAL FORMAL


EXECUTADO PELO ESTADO
Consoante a corrente ideológica de Zaffaroni e Pierangelli(ZAFFARONI;
PIERANGELI,2011), o sistema penal é uma ferramenta de controle social punitiva
institucional, que age desde a suspeita da prática delituosa até o momento de imposição
e execução da punição, abrangendo a atividade “do público, da polícia, do legislador,
dos juízes e dos demais envolvidos na execução penal”.
Conforme os supracitados autores, esta é a noção genérica de sistema penal
em sentido limitado, enquanto que num sentido amplo estão contidas no controle ações
regulatórias e repressoras aparentemente estranhas ao sistema penal.
Eles também entendem que o sistema penal se fraciona em segmentos,
como o policial, o executivo e o judicial, versando sobre grupos de pessoas que atuam
no mesmo sentido na condução do sistema, tendo uma predominação específica para
cada etapa cronológica. Não podemos deixar de incluir nesse sistema os legisladores e o
público, tendo os primeiros a atribuição de estipular “padrões de conduta” e o segundo
o poder de impulsionar o efetivo funcionamento do sistema através da denúncia.
No nosso país, os intitulados “segmentos estáveis do sistema penal” são
representados da seguinte maneira: 1) Segmento policial: é formado pelas polícias
10

judiciárias estaduais e a federal; 2) Segmento judiciário: composto por um órgão


persecutório penal que é o Ministério Público e pelo poder judiciário; 3) Segmento de
execução: constituído por órgãos judiciais, como as varas de execuções penais, por
órgãos administrativos e por um sistema carcerário, que contém os presídios, as cadeias,
as penitenciárias, as colônias agrícolas e industriais e as casas de albergados.
O insucesso do Estado na escolha de mecanismos que favoreçam o concreto
combate ao crime acarreta uma falta de crédito desses segmentos, majorando,
consequentemente, o sentimento de insegurança e de impunidade. Como aduziremos a
seguir.

1.2.1- OBJETIVOS E RESTRIÇÕES DO DIREITO PENAL


O sistema penal tem o propósito de auxiliar na construção de uma sociedade
mais justa e pacífica e, segundo Fernando Capez, tem a missão de “proteger os valores
fundamentais para a subsistência do corpo social, tais como a vida, a saúde, a liberdade
e a propriedade, denominados bens jurídicos” (CAPEZ,2003,p.1).
A finalidade precípua do direito penal é combater o crime, no entanto esse
dever não é exclusivamente seu. Como representante do sistema penal, conforme já
abordamos anteriormente, a ciência penal é apenas uma das formas de controle social
diante das inúmeras modalidades passíveis de utilização pelo Estado e pela sociedade.
Sendo assim, o papel exercido por relevantes instituições da vida privada, como a
igreja, a família, a escola etc., são elementares para o controle preventivo de combate ao
crime, devendo atuar em conjunto com o Estado buscando a pacificação social.
A legislação penal tem o condão de tutelar os bens jurídicos de grande
relevância que, pelo caráter fundamental que eles têm , exigem uma proteção especial.
Atuando quando restarem insuficientes as medidas tomadas pelos demais ramos do
direito ou se a lesão ou ameaça do bem jurídico tutelado demonstrar gravidade. Ou seja,
a incidência da esfera penal deve ser a ultima ratio
Pontua Fernando Capez:
A ciência penal (...), busca a justiça igualitária como meta maior,
adequando os dispositivos legais aos princípios constitucionais
sensíveis que os regem, não permitindo a descrição como infrações
penais de condutas inofensivas ou de manifestações livres a que todos
têm direito, mediante rígido controle de compatibilidade vertical entre
a norma incriminadora e princípios como o da dignidade humana.
(CAPEZ,2003,p.1).
11

Um sistema normativo que ultrapasse os limites constitucionais previstos


vai de encontro também com os objetivos do direito penal. Portanto, para que se evite
intervenções exageradas e desnecessárias, causadoras de mazelas irreparáveis ante a
rigidez dos seus métodos, sua esfera de atuação é limitada, verificando no texto
constitucional suas balizas.

1.2.2- ESCOPO DA PENA


Diante da escolha do legislador, o Brasil adota a teoria unificada da pena
que, destarte as críticas às soluções monistas (teorias relativas e teorias absolutas),
confere a esta a natureza preventiva e retributiva ao crime, explicitando-se por meio do
Artigo 59 do Código Penal Brasileiro.
A punição é a consequência jurídica principal que advém da infração penal,
dela se valendo o nosso Sistema Penal, conforme já aduzido, como forma de retribuição
e prevenção da conduta delitiva; simboliza ela o cerceamento de certos bens jurídicos
do autor da prática delituosa, com o propósito de proteger os bens jurídicos de toda a
coletividade. Frederico Marques entende que a pena “é a sanção aflitiva imposta pelo
Estado, através do processo, ao autor de um delito, como retribuição do seu ato ilícito e
para evitar novos crimes (MARQUES,1999,p.136)”.
A retributividade da sanção penal tem a finalidade de punir todos aqueles
que desrespeitem o direito de outrem, maculando o bem jurídico tutelado. Em suma,
impõe castigo ao infrator pela transgressão praticada.
A atividade preventiva busca evitar novas incursões contra a sociedade por
meio da ressocialização e reeducação do apenado, conhecida como Prevenção Especial.
Age, ainda, de maneira social-pedagógica sobre a coletividade, no intuito de preservá-la
de eventuais futuras violações, atuação esta chamada de Prevenção Geral. Cesare
Beccaria diz que “o fim das penas não é tormentar e aflingir um ser sensível, nem
desfazer um delito já cometido (BECCARIA,1998,p.62)”, mas sim, exclusivamente,
impossibilitar o indivíduo de continuar a delinquir, bem como que a pena imposta ao
delinquente sirva de parâmetro aos demais cidadãos, para que estes não venham a
cometer transgressões.
De acordo com o entendimento de Assis Toledo(TOLEDO,2007), é por
meio de penalidades aos comportamentos típicos que o legislador procura intimidar as
pessoas, de maneira que condutas proibidas sejam evitadas. Não havendo êxito com a
ameaça exercida, o Estado converte a pena até então abstrata em realidade concreta por
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meio da sentença penal, de modo que a sanção seja exercida sobre a pessoa do
condenado como “verdadeira expiação, meio de neutralização da atividade criminosa
potencial ou, ainda, ensejo para recuperação, se possível, do delinquente, possibilitando
o seu retorno à convivência pacífica na comunidade dos homens livres
(TOLEDO,2007,p.14)”.
O ordenamento jurídico penal tem a característica exordial de atuar com o
fim preventivo, sendo assim, aplicando punição ou não, busca evitar a ação criminosa.
Conquanto, o aspecto ameaçador e intimidatório da pena através da existência de uma
norma tipificadora que comine sanções, tem a sua eficácia posta em xeque.
Consequentemente, é factível que delinqüentes potenciais não se intimidam com a mera
previsão legal de uma sanção, mesmo aquelas mais ríspidas.
A ciência da criminologia questiona fervorosamente a vocação preventiva
da pena, contudo, por mais que haja uma hesitação sobre a sua eficácia, não podemos
descartar o poderio intimidatório exercidos pelos dispositivos penais quando estes são
acompanhados por órgãos Estatais ostensivos, atuantes e obstinados no persecutio
criminis, fazendo com que as sanções penais sejam empregadas adequadamente. Dessa
forma, quando saímos do campo meramente abstrato e passamos a aplicar efetivamente
e proporcionalmente os tipos penais através do Estado, o caráter intimidatório também
sai do campo da ficção e se consubstancia num poderoso meio de apoio no combate ao
crime.

1.3- A ATUAÇÃO INEPTA DO ESTADO NO ÂMBITO DO CONTROLE


SOCIAL
As celeumas que permeiam o sistema penal brasileiro já não são
consideradas novidades, assim como em diversos países da América do Sul. A crise
afeta incisivamente os três segmentos componentes do sistema, quais sejam: o policial,
o judicial e o executório. As sequelas oriundas da deficiência desses segmentos
resultam em sérios prejuízos aos direitos humanos, conforme expressa Zaffaroni apud
Alberto Lima, através das seguintes características (LIMA,2006,p.14-15):

• Seletividade do Sistema:Incidindo somente sobre as classes economicamente


mais frágeis da população;

• Repressividade do sistema: Seus efeitos transbordam as disposições contidas


nos dispositivos normativos penais. A atuação desse sistema penal, na prática,
13

acarreta violência, maus tratos e sanções degradantes aos condenados. Tais


violações não advém da norma, mas sim do descumprimento dela. O Estado
falha em relação ao sistema penitenciário quando se mostra incompetente nos
âmbitos administrativo e fiscalizatório, onde há carência de instrumentos
auxiliares numa correta aplicação da pena e redução da reincidência delitiva.

• Estigmatização do apenado: O sistema condiciona aos seus sujeitos passivos um


presságio ofensivo, produzindo conseqüências que confrontam os próprios
princípios objetivos.

A evidente ineficiência do Estado na gerência do sistema repressivo no


nosso país gera desconfiança e incredulidade da população em relação aos segmentos
regulatórios que compõem o sistema, aumentando também a sensação de insegurança e
o sentimento de impunidade da sociedade.
O que tem contribuído também com a desestabilização desse complexo
coercitivo é a hipertrofia legislativa penal. A aplicação de medida punitiva é apenas
uma das diversas alternativas passíveis de recair sobre uma situação de conflito, sendo
aplicada quando a matéria não puder ser sanada por outra providência. Porém, o Estado,
em resposta aos anseios da sociedade por soluções céleres e austeras no que toca aos
conflitos desestabilizadores ali instalados, tenta transparecer diligência e ostensividade
através da elaboração de leis incriminadoras – ocorre um crime de grande repercussão
social que provoca uma mobilização da opinião pública e, de forma hipócrita e
demagógica, recrudescem as penas ou criam novos tipos penais.
Esta técnica legislativa “casuística” do sistema repressivo é ineficaz no
momento em que combate maciçamente as conseqüências do problema, quando na
verdade deveria pautar sua atuação nas causas que desencadearam o distúrbio. Ao optar
por medidas remediadoras em detrimento das preventivas, o sistema fica impedido de
alcançar seus objetivos.
A utilização da ciência penal de maneira desenfreada, como sendo o meio
mais célere e módico ao suposto combate às diversas formas de litígios sociais é
equivocada. Essa tarefa imposta ao direito penal ultrapassa a zona limítrofe de operação
e evidencia a ineficiência do sistema. A constante criação de normas só aumenta o
descrédito da população nas instituições Estatais e agrava a iminente sensação de
insegurança que assola a sociedade.
Ensina Assis Toledo que:
14

O crime é um fenômeno social complexo que não se deixa vencer


totalmente por armas exclusivamente jurídico-penais. Em grave
equívoco incorrem, frequentemente, a opinião pública, os
responsáveis pela Administração e o próprio legislador, quando
supõem que, com a edição de novas leis penais, mais abrangentes ou
mais severas, será possível resolver-se o problema da criminalidade
crescente. Essa concepção do direito penal é falsa porque o toma
como uma espécie de panacéia que logo se revela inútil diante do
incremento desconcertante das cifras da estatística criminal, apesar do
delírio legiferante de nossos dias. (TOLEDO,2007,p.14)

A ampla utilização do direito penal como solução dos litígios sociais à curto
prazo provoca a expansão do sistema penal brasileiro, motivo que aguça a consciência
da população na crença de uma legislação penal meramente simbólica.
É praticamente uníssono o discurso crítico sobre o sistema penal
contemporâneo, contudo, adotar medidas abolucionistas sugeridas por alguns
doutrinadores certamente não se perfaz uma atitude razoável. Mesmo com a sua
efetividade abalada com a série de adversidades que assolam o sistema, o direito penal
tem uma capacidade indiscutível de interferir e fazer cessar as condutas socialmente
inadequadas, faltando a aplicação no campo prático de medidas que aperfeiçoem a
esfera criminal, e não que a tornem reduzida.

1.3.1- O VIÉS SELETIVO DO SISTEMA COERCITIVO


O sistema repressivo não é imune à seletividade social do mundo
contemporâneo, fato é que as suas “vítimas” são, em sua grande maioria, indivíduos
pertencentes às classes mais desfavorecidas economicamente. Os infratores integram a
categoria dos excluídos, enfrentando problemas de cunho diversos, como falta de
estrutura familiar, educação precária, fome, desemprego etc., sendo, portanto, muito
mais propensos a adentrar ou até mesmo permanecer no mundo do crime. A batalha em
face da criminalidade se transforma na batalha contra os excluídos.
Valdomiro Vieira pontua:
A etiquetagem, seletiva, pelo sistema penal (lei, polícia, justiça)
atinge, principalmente àqueles que não tiveram acesso à educação,
ainda que formal e, sempre estiveram fora da sociedade,
marginalizados. A falácia dos meios de execução de penas, consiste
paradoxalmente em reeducar, quem nunca teve acesso à educação e a
ressocializar quem sempre esteve à margem da
sociedade.(VIEIRA,2006,p.77)
15

Essa particularidade entranhada no sistema vigente, enquanto não


enfrentada de maneira incessante pelo Estado por meio de políticas públicas basilares,
permanecerá como empecilho no combate à criminalidade.

1.3.2- A INOPERÂNCIA DO PODER EXECUTIVO


O galopante crescimento da criminalidade expõe também a crise da justiça
nos dias atuais. Uma pluralidade de fatores tem corroborado com esta conjuntura; além
dos já mencionados previamente (seletividade, repressividade, hipertrofia do sistema
penal, estigmatização do condenado, ineficiência do sistema carcerário etc.), podemos
incluir ainda a omissão Estatal na efetivação de políticas públicas e sua abstenção de
ações em prol do aparelhamento e estruturação dos órgãos integrantes do sistema
repressivo, de forma a viabilizar plenamente e de maneira adequada a aplicação dos
dispositivos legais penais existentes.

1.3.2.1- A NEGLIGÊNCIA ESTATAL E A MARGINALIZAÇÃO SOCIAL


A falta de organização do Estado e a precária realização dos seus serviços
são fatores determinantes para a atmosfera hostil vivida pela sociedade. A classe
política não tem um compromisso com as causas sociais, poucos se sujeitam a dirimir as
mazelas estruturais que assolam o nosso país.
A desigualdade social criada pela marginalização econômica é absurda. O
Brasil se encontra numa lista pra lá de indesejável, é o oitavo lugar no ranking mundial
de países com maior desigualdade social, segundo o Relatório de Desenvolvimento
Humano (RDH), elaborado pelas Nações Unidas (ONU).
No âmbito da política não é diferente, pois a marginalização do poder
político traz consigo a derrocada da democracia, onde a concentração do poder está
situada nas classes detentoras do capital.
No Brasil, os delinquentes são, em maioria avassaladora, pertencentes aos
grupos mais atingidos pelo desemprego e demais excluídos pelo sistema. As vítimas da
violência não fogem à regra, sua maior parte também está localizada abaixo da linha da
pobreza, conforme relatório apresentado em Março de 2016 pela especialista em
minorias Rita Izsák ao Conselho de Direitos Humanos da ONU.
Os integrantes das camadas sociais mais desfavorecidas praticamente não
têm lugar no espaço público. Não são ofertados mecanismos eficazes de garantias a
necessidades fundamentais e direitos sociais primários. Sem acesso à saúde, moradia,
16

educação e lazer, afastados das cadeias de produção e consumo, vêem o submundo do


crime como o meio mais eficiente para a sua sobrevivência.
O sociólogo Merton apud Grégore Moura, em análise sobre as fontes
culturais e sociais que motivam os desvios comportamentais, explana que a conquista
aos objetivos culturais recomendados pela sistemática social não é ofertada aos
membros de classes sociais mais baixas, situação em que, por terem um ínfimo acesso
aos meios lícitos que os conduziriam a maior probabilidade de lograrem êxito, acabam
por utilizar de métodos ilícitos mais ou menos eficazes. Destacamos parte dos seus
ensinamentos:
(...) É a falta de entrosamento entre os alvos propostos pelo ambiente
cultural e as possibilidades oferecidas pela cultura social que produz
intensa pressão para o desvio de comportamento. O recurso a canais
legítimos para ‘entrar no dinheiro’ é limitado por uma estrutura de
classe a qual não é inteiramente acessível em todos os níveis a homens
de boa capacidade. Apesar de nossa persistente ideologia de
‘oportunidades iguais para todos’, o caminho para o êxito é
relativamente fechado e notavelmente difícil para os que têm pouca
instrução formal e parcos recursos.(MOURA,2006,p.50-52)

Estudiosos que analisaram esse fenômeno citam que o Estado vem


utilizando a ciência penal como resposta para qualquer tipo de desestabilidade ocorrida
no seio da sociedade, seja causada por desequilíbrio econômico, escassez de políticas
sociais ou qualquer outra mazela. Ocasionando assim o aumento das intervenções do
aparelho policial e judiciário.
É sabido por muitos que a exclusão social tem grande parcela de
responsabilidade no aumento espantoso da criminalidade. Diante disso, o ente Estatal
deixa de pautar sua atuação nas políticas públicas básicas, onde a implementação destas
representariam uma poderosa arma no combate às causas dessa problemática e age
somente sobre as consequências, buscando remediar o problema após a sua concepção,
criando leis repressivas e tornando as já existentes em mais severas.
Tal posicionamento contribui diretamente para a instalação de um Estado
cada vez mais policial e penitenciário, menos igualitário e social, transgressor de
preceitos elementares do estado democrático de direito.

2-A EXPANSÃO DO SISTEMA PENAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE


DIREITO
17

2.1- PANORAMA SUCINTO DA CONCEPÇÃO DO ESTADO DEMOCRÁTICO


DE DIREITO
Muito tem se debatido acerca do Estado Democrático de Direito e seus
efeitos na construção do ordenamento jurídico vigente. Consequência de frequentes
modificações ao longo do processo histórico, o Estado progrediu para se amoldar às
demandas do povo e, dessa maneira, da gestão do próprio governo. Esse progresso,
indubitavelmente, ocorreu pela peculiar conexão dos atos da administração pública
simbolizando o Estado em suas atribuições, aos preceitos normativos trazidos pela
legislação, instituições e princípios basilares de Direito.
Com a Carta Magna de 1988, o Estado brasileiro tornou-se Democrático de
Direito. Trazendo logo em seu artigo 1° os fundamentos inerentes surgimento da própria
República, a tutela da soberania, da cidadania e da dignidade humana. Para abordarmos
as funções Estatais, faz-se mister examinar o seu progresso sob três vieses: Estado
Liberal, Estado Social e Estado Democrático de Direito.
É cediço que o Estado é construído pela confluência entre o poder político e
o Direito. O seu conceito, apesar de ser muito discutido pelos grandes doutrinadores,
não existe um consenso definitivo por conta da sua constante transformação, e, assim
como os conceitos, o Estado também vive em permanente mutação. Porém é uníssono
que o Estado subsiste através de um pacto entre as pessoas, se mantendo como pessoa
jurídica subjetiva.

2.1.1- DO ESTADO LIBERAL AO ESTADO SOCIAL


No decurso dos séculos XI e XII nasce a burguesia, classe social que
comandou várias incursões em nome do poder econômico e político até o fim do século
XIX. Ainda nesse período, rotas comerciais foram descobertas, coma evolução dos
métodos de navegação, novas formas de produção e aperfeiçoamento da cultura agrícola
foram desenvolvidas e o até então fortíssimo poder de influência da Igreja Católica
mitigado.
A construção do Estado, na qualidade de nação, esteve intrinsecamente
relacionada às marchas internacionais para pacificação dos conflitos presentes no século
XVII. O tratado de Westfália foi de grande relevância para a ordem internacional
porque ele pôs fim à Guerra dos Trinta Anos entre o Sacro Império Romano Germânico,
de ingerência católica (Dinastia dos Habsburgos), apoiado pela Espanha, e os
anglicanos germânicos com arrimo dos Franceses e Suecos.
18

Após as contínuas negociações entre os Estados internacionais, até mesmo


apaziguando os embates entre os hispânicos e os Países Baixos, inúmeros países
submetidos ao domínio de outrem, tornaram-se independentes, originando assim a
diplomacia contemporânea.
O tratado de Westfália, destarte deu origem a influência soberana dos novos
Estados surgidos na Europa e, em relação aos demais daquele núcleo de força política e
econômica, os transformou em definidores do seu próprio rumo. Tal remodelação,
portanto, será decisiva para compreendermos o progresso do Estado nos três vieses
relacionados, sendo eles: Estado Liberal, Estado Social e Estado Democrático de
Direito.
O estudo dos métodos filosóficos e antropológicos que continuaram por
épocas viabiliza assimilar o meio com que as alterações políticas e econômicas
despontaram a partir do século XVIII. Dessa forma, esclarece-se a remodelação Estatal
e o processo evolutivo histórico da humanidade, ultrapassando barreiras até então
intransponíveis. Salienta-se que as transformações mais consideráveis ao Estado
somente foram viáveis no instante em que a sociedade se planejou para impulsionar essa
renovação.
O Estado Liberalista tem sua essência no âmago da Revolução Francesa. A
França, superada pelo obsoleto Regime Absolutista, não aguentava mais a exacerbada
intervenção do público em face do particular, criando assim uma circunstância de
insegurança jurídica e arresto econômico. Destacando a importância dessa revolução,
diz Eric J. Hobsbawm que “A Revolução Francesa é, assim, a revolução do seu tempo, e
não apenas uma revolução, embora a mais proeminente de sua espécie” (HOBSBAWM,
2008,p.13.)
O autoritarismo eivado do poder e das desigualdades sociais agravavam a
insurreição em prol da mudança e, centrada na classe burguesa, a Revolução Francesa
se beneficiou para desfazer, aplacada e efetivamente, com um Estado arbitrário e
absolutista.
Excetuado nas relações entre particulares e também na interferência na
economia, o Estado imbui-se, nesse momento, elemento ainda mais distante, e, como
resultado da aspiração de seus membros, exime-se da realidade. Assim é concebida a
teoria do “laissez-faire, laissez-passer”.
Esse modelo de acentuada liberalismo fez surgir, ao contrários dos seus
ideais perseguidos, um sistema ainda mais arbitrário e potencializador da exclusão
19

social. Tal situação veio à tona exatamente pela abstenção do poder Estatal nas relações
entre os particulares, sendo assim, vigorava uma espécie de “lei da selva”, na qual o
detentor de maior força e poder prevalecia sobre os demais.
A classe burguesa concentrava em seu poder tanto o capital econômico
quanto o predomínio nas decisões, já o restante do povo se via ainda mais excluído,
sobrevivendo à margem do corpo social. A selvageria das ações burguesas na busca da
“mais-valia” de maneira inescrupulosa e a ambiciosa busca por novas formas de
dominação das massas acarretaram, através de levante popular, na conversão do
presente Estado Liberal em Estado Social.
Com essa mudança o Poder Público não mais deve se abster de intervir nas
relações, muito pelo contrário, ele tem o dever de prestar ações afirmativas em prol do
bem comum. Houve também uma completa reestruturação do Estado no viés jurídico-
constitucional. Com isso, os direitos fundamentais e sociais trazidos desde a Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), tornaram-se efetivamente
constitucionalizados.
As constituições, portanto, oficializam e estabelecem limites ao poder
Estatal, sistematizando-o em atribuições elementares para sua organização e equilíbrio,
como por exemplo as funções de criar, julgar e executar as leis. Diante disso, havia o
desejo de fixar na Carta Maior os direitos em outros ordenamentos jurídicos de
ratificação internacional, resguardando a população das arbitrariedades.
O Estado Social, no entendimento atual, foi o símbolo de um inabalável
comprometimento com a sociedade no tocante à tutela dos interesses coletivos, contudo,
segundo Paulo Bonavides (BONAVIDES,2016), “O Estado Social se compadece com
regimes políticos antagônicos, como sejam a democracia, o fascismo e o nacional-
socialismo”.
O revés do Estado Social foi escancarado com o surgimento dos regimes
ditatoriais ocorridos na Europa, mais precisamente na Alemanha e Itália, que tinham
como seus líderes respectivos, Adolf Hitler e Benito Mussolini. Em ambos os países,
embora o Estado atendesse algumas necessidades primárias da população através de
ações afirmativas, outras prerrogativas e direitos eram abolidos por conta do
totalitarismo vigente, como a democracia, a liberdade de pensamento e a garantia dos
direitos humanos.
Os ditadores se utilizavam de grande eloqüência para persuadir o povo e
adquirirem novos adeptos para alcançarem seus propósitos mais escusos e obscuros,
20

afastando com isso a real finalidade do Estado e silenciando a população iludida que se
mantém inerte com o tolhimento de seus direitos fundamentais.
Isto posto, num período pós Segunda Guerra Mundial, com a missão de
obstar uma possível formação de novos regimes ditatoriais, surge o Estado Democrático
de Direito, a medida assecuratória dos direitos e garantias do cidadão. Considerado
como uma das principais idealizações jurídicas de todos os tempos, ele é o resultado do
amplo debate científico sobre as finalidades do Estado, sendo este o legítimo
responsável pela manutenção da ordem, paz social e segurança jurídica. As suas funções
jurisdicionais, executivas e legislativas, assim como a sua própria organização, terão
que obedecer aos mandamentos constitucionais.
A tutela exercida pelo Estado através da intervenção nas relações
interpessoais ocorrerá na medida em que estas interações tornem-se injustas ou
desproporcionais, momento em que o poder Estatal exercerá a sua legítima atribuição
legal de atuar na busca do bem comum, isto é, equiparar os desiguais. Essa
determinação, mencionada no próprio texto constitucional, ocorre através das funções
desempenhadas por meio de atos da administração pública.
De acordo com Alexandre Moraes, a obediência do poder à ordem jurídica é
patente, pois:
O Estado Democrático de Direito, que significa a exigência de reger-
se pelo Direito e por normas democráticas, com eleições livres,
periódicas e pelo povo bem como o respeito das autoridades públicas
aos direitos e garantias fundamentais, proclamado no caput do artigo
1° da Constituição Federal de 1988, adotou, igualmente em seu
parágrafo único, o denominado princípio democrático, ao afirmar que
“todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes
eleitos ou diretamente, nos termos desta constituição
(MORAES,2008).

Em conclusão ao breve histórico da formação do atual Estado Democrático


de Direito, cabe-nos destacar que, apesar de incompleta a sua definição e de ter certas
normas constitucionais inflexíveis, é uniforme a compreensão de que o Estado deve
intervir no sentido de assegurar a igualdade material entre os cidadãos. Uma vez
atingido seu objetivo, sendo ele a construção de uma sociedade absolutamente
igualitária e participativa, implicaria na extinção gradativa desse Estado.
Decerto, esse processo histórico levará séculos para se consolidar, se é que
se realizará, pois se levarmos à cabo a teoria do “Estado de Natureza” concebida por
Thomas Hobbes, que em suma afirma que os homens são maus por natureza, essa
sociedade completamente harmônica é mera utopia (HOBBES,2001).
21

Enquanto o Estado não alcançar o seu propósito maior deverá convergir as


suas ações em virtude dos anseios populares, consequentemente, não será tolerada a
omissão quanto ao cumprimento dos preceitos normativos nem o abrandamento das
atividades com fins sociais.
No Brasil, o Estado Democrático de Direito foi estabelecido com a
promulgação da Constituição Federal, após o tenebroso período da ditadura militar,
iniciado em 1964. A recente saída do regime ditatorial foi determinante para influenciar
o poder constituinte a elaborar uma Carta Magna profundamente garantista. O estigma
deixado pela ditadura fez com que o povo, temeroso com um eventual retorno desse
regime, pressionasse o legislador originário a pormenorizar expressamente as vedações
a qualquer resquício relacionado ao modelo autoritarista. Dessa forma, por ser extensa e
detalhada, nossa Constituição se distingue dos demais documentos de outros países,
pois em regra estes são sintéticos.
Já em seu artigo 1°, caput, nosso Documento Maior determina que o Brasil
constitui-se num Estado Democrático de Direito, irradiando desse relevante dispositivo
os princípios fundamentais do nosso Estado. Estes princípios positivados no
mencionado artigo devem ser vistos como elementos alicerçantes e essenciais do Estado
por exteriorizarem as decisões políticas do constituinte originário em relação aos seus
valores e ideais empregados, como paradigmas de existência. Logo, sob qualquer
pretexto, não podem ser mitigados do ordenamento, pois isto desfiguraria o sistema
constitucional, podendo inclusive resultar na sua desintegração.
Sendo o nosso País um Estado Democrático de Direito, as ciências jurídicas
aplicadas, especialmente a Penal, deverão ser legítimas, democráticas e submissas aos
princípios constitucionais, segundo Fernando Capez, na mesma obra, menciona que a
matéria dos tipos penais elaborados terá de ser estabelecida em consonância aos
supramencionados preceitos.
A grande disparidade social que aparta ricos e pobres traz graves
consequências para a ordem coletiva, partindo da transgressão aos Direitos Humanos até
a instabilidade da segurança pública. Quem governa está absolutamente alheio às
mazelas vividas pela sociedade, desinteressado com as reais necessidades dos seus
governados e omisso quanto a elaboração de políticas públicas realmente eficazes na
luta em face dessas enfermidades coletivas.
Essa atmosfera apresentada propicia a atuação casuística e incoerente dos
legisladores. Conforme já abordado, a falta de eficiência do Estado na resolução dos
22

litígios sociais instalados, por meio de ações concretas no combate à exclusão social e
ao crime, repercute no expansionismo do sistema penal, que recorre ao Direito Penal
como cura para todas as doenças.
Sobre isso, os mestres Zaffaroni e Pierangeli (ZAFFARONI;
PIERANGELI,2011,) observam que elaborar projetos de lei é muito mais simples e
barato ao legislador, pois não onera custos. Dessa maneira, a ciência penal intervirá em
ocasiões alheias às suas competências, atuação em que revelará o claro ultraje à base
principiológica do Estado Democrático de Direito.

2.2- A EXPANSÃO DA LEGISLAÇÃO PENAL


A inflação da legislação penal dos sistemas penais da atualidade é uma
situação cada vez mais percebida e frequente. Observamos esse fenômeno ainda mais
explícito nos países com menor índice de desenvolvimento humano. A ciência penal em
campos diversos de sua real competência, adentrando situações relacionadas à vida
social que antes não abordava através da sanção penal, sendo estas reprimendas
utilizadas pelo Estado como uma resposta para maior parte dos conflitos e demais
mazelas ocorridos no seio da sociedade.
Não demanda grande conhecimento jurídico para verificar a crescente
expansão das normas penais produzidas nas últimas décadas no Brasil, onde a maciça
maioria destas leis são editadas sem qualquer critério técnico-jurídico, ou até mesmo
sob a chancela da política criminal. A legislação incriminadora é concebida, na maioria
dos casos, de maneira duvidosa, para responder os anseios populares e tentar apaziguar
a pressão midiática. Podemos exemplificar tal atuação do Estado quando ocorre um
crime de grande comoção social, fazendo com o que os legisladores se sintam
pressionados a tomarem alguma medida repressora de caráter urgente.
Na prática, temos um rol extenso de normas elaboradas de maneira
simbólica (seu conceito e algumas considerações serão abordados posteriormente), ou
até mesmo com o fim meramente eleitoreiro, todos com efetividade mitigada. Temos
diversos exemplos práticos desse tipo de atuação Estatal, mas vamos pontuar
inicialmente a lei dos crimes hediondos, n° 8.072/1990, que em seu artigo 2°, §1°,
vedava a progressão de regime para os crimes nela contidos. Este texto foi considerado
inconstitucional pela Suprema Corte Federal (Habeas Corpus n° 82.959-7), pois
segundo o próprio STF ele vai de encontro aos princípios constitucionais basilares
instados na Constituição Federal.
23

Partindo do pressuposto de que a missão do Direito Penal é tutelar os bens


jurídicos mais preciosos da humanidade, atuando de forma subsidiária às demais esferas
jurídicas, deve-se, portanto, utilizá-lo quando nenhum outro ramo for capaz de dirimir a
situação fática apresentada. Porém, a partir do instante que a legislação criminal é
utilizada como “cura para todas as doenças sociais”, abre-se automaticamente o
precedente do engrandecimento do sistema penal.
O fator que induz o expansionismo penal é exatamente a abrangência de
bens jurídicos diversos, ou seja, que são passíveis de incidência de outras esferas
jurídicas. Dessa forma, tenta-se justificar a frequente intervenção penal como medida de
proteção dos interesses de ordem coletiva, se prolongando até as lides mais corriqueiras
entre os indivíduos.
Zaffaroni (ZAFFARONI; PIERANGELI,2011), aponta a exclusão social
como um dos vetores fundamentais para o crescimento galopante do crime,
especialmente nos países periféricos. O autor também faz duras críticas quanto à postura
desidiosa e desinteressada da classe política frente à realidade demonstrada. Ele entende
que os políticos, quando se veem encurralados pelo clamor social, encenam
providências emergenciais para os problemas surgidos, sendo que a maneira mais
simples que se deparam para fazê-las é a edição de normas penais. Todas as mazelas
sociais, como a droga, a violência, a psiquiatria etc., se convertem em bens tutelados
pela ciência penal.

Com isso, o Direito Penal de ultima ratio obteve uma nova perspectiva,
procurando gerar apenas uma falsa sensação para a sociedade do controle do poder
público em relação à crescente criminalidade. Sobre o tema, pontua Cezar Roberto
Bitencourt:
[...]todo esse estardalhaço na mídia e nos meios políticos serve apenas
como discurso legitimador do abandono progressivo das garantias
fundamentais do Direito Penal da culpabilidade, com a desproteção de
bens jurídicos individuais determinados, a renúncia dos princípios da
proporcionalidade, da presunção da inocência, do devido processo
legal etc.[...] (BITENCOURT,p.13,2007)

O abuso intervencionista penal também demonstra a incapacidade da


própria sociedade de enfrentar o problema da criminalidade, ao passo que não elege
representantes políticos verdadeiramente capazes de trabalhar para que sejam criadas e
aplicadas políticas públicas eficazes que venham a reduzir as desigualdades existentes e
ofertar à população circunstâncias para uma vida digna.
24

2.2.1- FATORES HISTÓRICOS DETERMINANTES PARA A INFLAÇÃO


LEGISLATIVA
O Direito Penal é uma ciência bastante antiga e, por conta disso, já
perpassou por inúmeras fases ao longo do processo histórico da humanidade que
exigiram a adaptação dessa esfera jurídica, como as circunstâncias de guerra, as
alterações nas formas e regimes de governo, as mudanças de sistemas econômicos e
outras tantos exemplos.
As mais substanciais alterações na estrutura da sociedade ocorreram após a
eclosão da Revolução Industrial, meados do século XVIII. Após este fato histórico, a
sociedade que antes era essencialmente rural migrou em número acentuado e de maneira
desordenada para os grandes centros urbanos, passando a população destes centros a
exercer funções laborais relacionadas com o setor produtivo industrial, em meio a
gigante concorrência e condições instáveis de sobrevivência.
Chegando às cidades, ávidos por melhores condições de vida e novas
oportunidades de trabalho, os migrantes se deparam com uma realidade totalmente
discrepante da imaginada, a exclusão social. Os grandes centros não tinham estrutura
para recebê-los adequadamente, pois conforme já mencionado, o êxodo ocorreu de
forma exacerbada.
Desta forma, os populares advindos do campo passaram a se instalar nas
áreas periféricas das cidades, onde não existia um suporte mínimo para habitação, como
saneamento, segurança etc., em suma, elementos primordiais para uma moradia
apropriada. A consequência fatal disso foi a eclosão da criminalidade, de maneira geral,
às margens dos grandes centros urbanos, situação que perdura até hoje.
Dentre outros tantos vetores que têm corroborado com a exclusão social,
destacamos os emanados da intensa evolução tecnológica, característica intrínseca a
evolução humana, trazendo inovações que facilitam a vida do homem no aspecto
individual, mas que em consequência levam uma gama de desarranjos para o convívio
em sociedade.
Contemporaneamente, por efeito da sucessão de avanços tecnológicos,
poder dizer que estamos situados na era da informação, na qual todas as pessoas podem
ter acesso a mesma praticamente em tempo real ao acontecimento dos fatos. Essa
instantaneidade é derivada das inovações concebidas pelo homem, como o rádio, o
jornal, a televisão e a internet, todos estes meios de comunicação em massa.
25

A informação nos dias atuais é acompanhada paralelamente pelo


crescimento da economia, já que o objetivo de toda a produção social econômica é a
erradicação das suas necessidades, trazendo cabedal para a sociedade. Porém, se por um
lado o direito à informação é democratizado, pelo outro, não há como discernir e
sintetizar a enxurrada de informações veiculadas, desse modo, não há como distingui-
las como verdadeiras ou falsas. O acesso a todo tipo de informação não credencia
automaticamente o sujeito a ter um conhecimento crítico sobre uma determinada
situação.
Sobre essa democratização e instantaneidade das informações, ou seja, a
globalização , Bauman (2007, p. 13) afirma:
O atributo da ‘abertura’, antes um produto precioso, ainda que frágil,
da corajosa mas estafante auto-afirmação, é associado, hoje,
principalmente a um destino irresistível -, aos efeitos não planejados e
imprevistos da ‘globalização negativa’ -, ou seja, uma globalização
seletiva do comércio e do capital, vigilância e da informação, da
violência e das armas, do crime e do terrorismo; todos unânimes em
seu desdém pelo princípio da soberania territorial e em sua falta de
respeito a qualquer fronteira entre Estados. Uma sociedade ‘aberta’ é
uma sociedade exposta aos golpes do ‘destino’.

Os abusos praticados através dos veículos de comunicação, em especial a


internet e a televisão, estimulam o clima de medo e incerteza que permeia a sociedade.
A veiculação de notícias sensacionalistas, cujo objetivo precípuo é atrair a atenção dos
espectadores, induz as pessoas a acreditarem copiosamente no que é exposto pela mídia
que, em regra, faz repercutir um conceito maior de perigos que os realmente existentes.
A imprensa sensacionalista está em grande evidência hodiernamente ,
incluindo-se como integrante das agências do âmbito penal, rotulando os transgressores
legas e forjando uma sensação de insegurança constante na sociedade. Notícias que "a
priori" seriam de repercussão local são elevadas ao patamar nacional de forma
alegórica, no intuito de dar legitimidade às ações policiais do Estado e inflar o clima de
revanchismo contra os criminosos. Acordando com esse pensamento, afirma o
doutrinador Luiz Flávio Gomes:
[...]o discurso midiático é atemorizador, porque ele não só apresenta
como espetaculariza e dramatiza a violência. Não existe imagem
neutra. Tudo que ela apresenta tem que chocar, tem que gerar impacto,
vibração, emoção[...] (GOMES,2008)

Certo é que esse discurso da mídia oferta um meio extremamente propício


para a propagação de um Direito Penal Simbólico. Os reflexos de toda essa repercussão
26

são os mais prejudiciais, uma vez que instiga nas pessoas o sentimento de ódio e
vingança, enrijecendo drasticamente o sistema penal quanto às suas reprimendas. Logo,
a sensação que predomina é a de que a mera elaboração de leis ou o recrudescimento
das punições diminuirá a expressiva criminalidade.

2.2.2- LEGISLAÇÃO SIMBÓLICA


As legislações simbólicas surgem mediante a exigência da sociedade ou até
mesmo de um grupo social específico, de uma resposta célere do poder público às
demandas coletivas. Com fulcro na pseudo ideia de que a elaboração de leis trará
prontamente a resolução de uma determinada lide que, de maneira superficial, se revela
insolúvel. Contudo, ao ser editada a legislação, não se avalia as sequelas trazidas pela
“novel” lei. Observamos ainda, especificamente no viés legislativo, consequências mais
graves e causadoras de danos quando isso ocorre, partindo da premissa de que o caráter
subsidiário deveria pautar a utilização do Direito Penal.
Com essa conjuntura, as intervenções do Estado no âmbito de políticas
públicas são irrisórias para combater as causas da expressiva violência. Nesse ínterim, o
recrudescimento das ações incide sobre as leis penais, tranformando o ramo penal como
ferramenta principal no combate às mazelas sociais.

2.2.2.1- CONCEITO DE LEGISLAÇÃO SIMBÓLICA SEGUNDO MARCELO


NEVES
O conceito de legislação simbólica foi trazido ao universo jurídico por
Marcelo Neves, sendo ele:
[...] o predomínio, ou mesmo hipertrofia, no que se refere ao sistema
jurídico, da função simbólica da atividade legiferante e do seu
produto, a lei, sobretudo em detrimento da função jurídico-
instrumental. (Neves apud Lenza)

Neves sugere uma “tipologia da legislação simbólica”, expressando que o


seu conteúdo pode ser: “a) confirmar valores sociais; b) demonstrar capacidade de ação
do Estado e c) adiar a solução de conflitos sociais através de compromissos
dilatórios”.(Neves apud Lenza)
No caso, os anseios de um determinado grupo, favorecido pelo legislador, é
sobreposto aos preceitos da sociedade promovendo legislação exclusiva para essa
classe, quase sempre sem os cuidados e acuidade necessários.
27

Outro reflexo advindo desse tipo de legislação está relacionado à criação


legislativa para revelar uma imagem fictícia de cumprimento das tarefas, normalmente
exibidas pelo Estado.
Como já expressamos anteriormente, criou-se um costume na sociedade de
que cada problema surgido na ordem coletiva pode ser resolvido através da edição de
uma norma penal. Com isso, a classe política se aproveita da percepção distorcida do
povo e promove suas campanhas eleitorais através de projetos de lei que nem mesmo
são dignos de ser discutidos.
Como derradeiro reflexo aqui demonstrado temos a protelação de medidas
efetivas para o combate aos conflitos sociais, à medida que se transfere a resolução de
determinada matéria para um futuro incerto e a norma elaborada somente acalma a
animosidade das pessoas.

2.2.2.2- DIREITO PENAL SIMBÓLICO: ORIGEM, CONCEITO E EFEITOS


O Direito Penal Simbólico se origina na cultura da emergência vivida nos
tempos atuais, sendo uma forma de reação diante dos obstáculos surgidos no seio da
sociedade, precipuamente os vinculados à violência e também a criminalidade.
Conforme já abordamos,não se pode olvidar que vários sãos os vetores que
encorpam a exclusão social e, consequentemente, podem também ser contextualizados
nessa descrição de “emergência”. Existem aqueles relacionados aos poderes políticos,
que usufruem desse elemento de maneira abusiva para suscitarem a suposta carência
legislativa, assim como também há os consectários ao poderio midiático, que em muitos
casos, como já pontuamos, dissemina uma notícia ou uma informação tendenciosa e
parcial, afetando negativamente a formação da opinião das pessoas e desencadeando
uma série de intempéries de ordem coletiva.
Alguns elementos históricos indicam o aparecimento desse modelo de
atuação Estatal chamado de Estado de Emergência durante a década de 80, consoante as
palavras de Damásio de Jesus:
A população passou a crer que a qualquer momento o cidadão poderia
ser vítima de um ataque criminoso, gerando a ideia da urgente
necessidade da agravação das penas e da definição de novos tipos
penais, garantindo-lhe a tranquilidade. E essa pressão alcançou os
legisladores. (1977, p.49)

Com essa conjuntura, a alteração da norma ou até mesmo a elaboração desta


provocadas pelo clamor público, proporciona a concepção do Direito Penal Simbólico.
28

Podemos conceituar essa expressão, segundo as palavras de Claus Roxim


(ROXIM,2012), como sendo o conjunto de normas penais elaboradas no clamor da
opinião pública, suscitadas geralmente na ocorrência de crimes graves envolvendo
famosos, com relevante repercussão midiática que seleciona seu enfoque para casos
pontuais e específicos. Esses acontecimentos são escolhidos de acordo com o critério
parcial dos produtores do meio comunicativo, ambicionando escamotear as causas
históricas, sociais e políticas da criminalidade, induzindo o público a respaldar a criação
de novos e mais rigorosos comandos normativos como única resposta para segurança da
ordem coletiva.
Exemplos desse simbolismo legislativo no Brasil não faltam. Podemos
elencar os mais recentes, como a criação da Lei n° 12.737/2012 (Lei Carolina
Dieckmann), que gerou um grande alarde nos meios de comunicação e foi promulgada
de maneira surpreendentemente rápida, ou seja, ainda no mesmo ano do cometimento
do crime.
Outra norma penal alvo de críticas e por vezes taxada de simbólica é a Lei
n° 13.142/2015, que, dentre outras determinações, torna “Hediondo” (Lei 8.072/1990),
o homicídio praticado contra os agentes de segurança pública por conta da sua função.
De forma superficial, entende-se como “Crimes Hediondos” as condutas delituosas
previstas de maneira expressa no rol da supracitada Lei, pautadas pelo legislador como
sendo merecedoras de maior reprovação por parte do poder estatal.
Sobre a Lei n° 13.142/2015, esta vem sofrendo diversas críticas dos
estudiosos da ciência penal, pois grande parcela doutrinária, além de considerá-la como
norma meramente simbólica, também seria antagônica ao princípio constitucional da
igualdade. Em conformidade com essa linha ideológica acima destacada está Cezar
Roberto Bitencourt, que expressa:
Com a Lei 13.142, de 9 de julho de 2015, o legislador brasileiro
prossegue em seu desiderato irrefreável de transformar todos os
crimes mais graves em crimes hediondos, com todos os consectários
que lhes são característicos, no velho estilo de usar simbolicamente o
direito penal, como panaceia de todos os males que afligem a
sociedade brasileira.

Portanto, através dessas criações legislativas emergenciais temos uma


pseudo-sensação de eficiência e pleno resultado quando as observamos de forma rasa,
contudo, tais normas não possuem efeito no campo jurisdicional.
29

Para uma melhor compreensão dos efeitos diretos da aplicação do Direito


Penal Simbólico, faz-se necessário relembrar a missão e a finalidade principal do
Direito Penal, trazidas no capítulo inaugural. Sinteticamente, como já sabemos, o uso
dessa ferramenta deve se restringir aos bens jurídicos mais importantes para a
subsistência do homem em sociedade.

Segundo o entendimento de Zaffaroni e Pierangeli, conceitua-se Direito


Penal:
O conjunto de leis que traduzem normas que pretendem tutelar bens
jurídicos, e que determinam o alcance de sua tutela, cuja violação se
chama “delito”, e aspira a que tenha como consequência uma coerção
jurídica particularmente grave, que procura evitar o cometimento de
novos delitos por parte do autor.(ZAFFARONI; PIERANGELI,
p.85-86,2011)
Observando a conceituação acima, podemos abstrair dois sentidos de grande
valia para a ciência penal. O primeiro está relacionado a punição severa para quem viola
bem jurídico sob sua tutela, em decorrência disso deve ser aplicado subsidiariamente ou
em ultima ratio – é o Direito Penal mínimo – já o segundo revela o caráter preventivo
da ciência, a fim de se evitar a prática de novos crimes.

Logo, é equivocada a utilização do Direito Penal numa função simbólica,


pois distintamente do entendimento conceitual de Direito Penal, acima exposto, o
Direito Penal Simbólico não prima pela tutela do bem jurídico, preocupando-se
exclusivamente em gerar uma sensação de paz e segurança na sociedade.

O uso deliberado da reprimenda Estatal não resulta numa proteção efetiva


dos bens jurídicos, longe disso, ocasiona a hipertrofia penal que culmina no descrédito e
insegurança jurídica frente à sociedade. A grande parcela de demandas jurídicas
poderiam ser tranquilamente resolvidas através de outros ramos do direito diversos da
Ciência Penal.

O efeito material concebido por essa legislação simbólica é o ceticismo na


ordem jurídica, uma enxurrada de regramentos excepcionais que põem em xeque a força
intimidativa das proibições.

Outro efeito constatado, da mesma maneira, é a convicção acentuada na


função social da Ciência Penal, delegando inclusive funções que não lhe são pertinentes,
resultando na perda de suas efetivas capacidades com o decurso do tempo.
30

Por conseguinte, a vultosa edição de leis criadas como respostas aos anseios
sociais, especialmente aos mais desfavorecidos e marginalizados, os mais carentes de
uma gama de normas sociais, ainda que deixe a sensação de tranqüilidade, não
apresenta qualquer benesses no tocante à finalidade precípua do Direito Penal, isto é:
inibir as práticas delituosas.

Por último, podemos ainda elencar o derradeiro reflexo da legislação penal


simbólica, a letargia dos processos, já que a desenfreada elaboração de leis acarreta no
aumento da demanda e expõe ainda mais a precariedade estrutural da polícia e do
judiciário, que não conseguem acompanhar essa dinamicidade. Corporificando o arcaico
juízo popular de que a justiça é lenta e complacente.

3-PRINCÍPIOS LIMITADORES DO “IUS PUNIENDI” ESTATAL


3.1- NOÇÕES INTRODUTÓRIAS SOBRE O GÊNERO “PRINCÍPIOS”
Preliminarmente à abordagem das espécies de princípios constitucionais
penais, faz-se necessário pontuarmos algumas noções introdutórias sobre o gênero
“princípios jurídicos”, abordando superficialmente o tema desde a sua definição até a
distinção quando comparados com as leis.
Segundo o aclamado doutrinador Celso Antônio Bandeira de Mello
(2004.p.451), podemos definir princípios como:
(...)mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele,
disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas
compondo-lhes o espírito e servindo de critério para a sua exata
compreensão e inteligência, exatamente para definir a lógica e
racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica de lhe
dá sentido harmônico.

Portanto, depreende-se que os princípios não são apenas um conjunto de


valores ou preceitos, mas também “normas de caráter cogente”,(GOMES.2015.p.7),
assim como possuem atribuições integrativas e interpretativas. Apesar do status
normativo coercitivo, os princípios não podem ser confundidos com as leis. Não
obstante ambas possuírem abstração, os princípios gozam de uma aplicabilidade
abstrata mais extensa.

Na prática, a leis é criada para imperar de maneira abstrata sobre um fato


específico, ao passo que um único princípio poderá incidir sobre diversas situações.
Para ilustrar melhor esse cenário, citamos o exemplo trazido por Rogério Sanches
31

(2015.p.68.) que utiliza o artigo 155 do Código Penal Brasileiro e o princípio da


legalidade para simbolizar o grau de abstração das leis e princípios:

(...) a norma incriminadora prevista no artigo 155 do Código Penal


serve para reger todas as situações em que ocorra um furto. De outra
parte, o princípio da legalidade serve de respaldo para a análise de
rodo o Direito, e, por conta disso, permeia a análise de rodos os tipos
penais.

Outro aspecto básico de distinção está na forma de solucionar os conflitos


existentes. Havendo confronto entre as leis, apenas uma delas subsistirá, em detrimento
das outras. Já no embate entre os princípios, deve-se observar a possibilidade de
aplicação cumulativa caso sejam compatíveis. É o que expressa Sanches (2015.p.67.):

Neste caso, invoca-se a proporcionalidade" (ou ponderação de


valores), aplicando-os em conjunto, na medida de sua
compatibilidade. Logo, não há revogação de princípios.

Realizadas as noções introdutórias sobre princípios em sua forma genérica,


trataremos então dos princípios constitucionais de âmbito penal e suas espécies.

3.2- PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS PENAIS


A continuidade de um Estado Democrático de Direito se consubstancia
necessariamente pela obediência do próprio Estado às normas que integram o seu
ordenamento jurídico. As limitações ao “ius puniendi” Estatal são fixadas através dos
princípios constitucionais penais, que estruturam e balizam o uso do sistema repressivo,
sendo eles fundamentais para garantir a proteção das pessoas contra os abusos
praticados pelo Poder Público, sujeitando ao crivo constitucional as suas intervenções,
além de sinalizar a correta interpretação das leis.
Todavia, mesmo sendo condição indispensável para preservação de um
Estado Democrático, os princípios vêm sendo progressivamente inobservados pelos
legisladores, operadores do direito e demais integrantes do sistema penal. Adverte Luiz
Flávio Gomes (2015.p.4) que passamos por duas crises de natureza principiológica
penal que ameaçam o Estado Democrático de Direito.
A primeira se externa por meio do inconformismo da sociedade nas
situações em que a justiça emprega os princípios penais, desencadeando na exígua
legitimidade social desses. A outra crise suscitada pelo autor está relacionada à
desobediência dos próprios operadores da justiça aos mandamentos constitucionais. O
resultado dessas celeumas é a iminente perda de força do Estado Democrático.
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Conforme os fundamentos constitucionais, os doutrinadores elencam vários


princípios de ordem penal, diferindo a quantidade numérica de princípios consoante o
autor escolhido. Apresentamos os mais utilizados: Princípio da Dignidade da Pessoa
Humana (de acordo com Luiz Flávio Gomes o “princípio-síntese de todo Estado
Democrático de Direito”); Princípio da Legalidade; Princípio da Culpabilidade;
Princípio da Proporcionalidade; Princípio da intervenção mínima; Princípio da Co-
culpabilidade; Princípio da Pessoalidade; Princípio da Individualização da Pena;
Princípio da Adequação e Princípio da Lesividade.
Não olvidando da importância de cada um desses princípios no tocante à
proteção dos direitos e garantias fundamentais que permeiam o Estado Democrático, o
presente estudo irá se dedicar apenas a análise dos princípios considerados mais
relevantes para o estudo proposto, sem a ambição de exaurir a matéria.
Por conseguinte, elencamos os princípios: Da Dignidade da Pessoa Humana,
Legalidade e Culpabilidade pelo caráter “alicerçante” deles ao Direito Penal e quesito
obrigatório para existência do Estado de Direito e, por fim, Da Proporcionalidade e Da
Intervenção Mínima,pela significância irrefutável para o plano penal e por derivarem
outros princípios consectários.

3.2.1- PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA


A Magna Carta de 1988 aduz em seu art. 1º “A República Federativa do
Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal,
constitui-se em um Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...) III – a
dignidade da pessoa humana”.
Conforme Nucci, “nada se pode tecer de justo e realisticamente isonômico
que passe ao largo da dignidade humana, base sobre a qual todos os direitos e garantias
individuais são erguidos e sustentados” (NUCCI, p.72). Inclusive porque, não existiria
justificativa de perdurar direitos e garantias fundamentais se não fosse o princípio
constitucional da dignidade da pessoa humana.
O mesmo autor faz o diagnóstico do princípio constitucional da dignidade
da pessoa humana sobre dois aspectos: a) objetivo: no qual há uma garantia de um
mínimo existencial, para uma vida digna humana, atendendo as suas necessidades
básicas, conforme expresso no art. 7º da CF/88, dentre eles: alimentação, saúde,
educação, moradia; b) subjetivo: traduz-se no sentimento de autoestima e
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respeitabilidade inerentes a pessoa humana, em relação aos quais não se pode renunciá-
los ou muito menos abandoná-los.
Esse princípio também está positivado no art. 5º da Convenção Americana
de Direitos Humanos anuncia:
Art. 5º: “Toda pessoa humana tem direito a que se respeite sua
integridade física, psíquica e moral. Ninguém deve ser submetido a
torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes.
Toda pessoa privada de liberdade deve ser tratada com o devido
respeito à dignidade inerente ao ser humano”

O Estado Democrático de Direito terá de orientado pela premissa na qual


não deverá ser posta a nenhuma pessoa sanção nociva à sua dignidade, pois é proibido
ao Estado usar penalidade indigna, cruel, desumana e degradante, desde a elaboração
normativa, sua aplicação e a execução. Antevendo, uma rigorosa obediência ao
ordenamento jurídico atual.
Isto posto, o princípio da Legalidade implica uma limitação real ao poder
estatal de interferir no contexto das liberdades individuais. Possui fundamento político,
democrático e jurídico. O fundamento político, diz respeito a exigência dos Poderes
Executivo e Judiciário e vinculação às leis formuladas pelo Legislativo de forma
genérica e abstrata. Já o fundamento democrático diz respeito à obediência no tocante à
separação dos poderes, ocasião em que o poder Legislativo é o responsável pela criação
de dispositivos penais incriminadores.
No que se refere ao fundamento político, concretiza-se no fato de que uma
criação prévia e clara da lei produz um significante efeito inibitivo. Daí, a vedação de se
criar crimes a partir de medidas provisórias, respeitando assim, o princípio democrático.

3.2.2- PRINCÍPIO DA LEGALIDADE


O princípio da Legalidade orienta a elaboração das normas penais e
condiciona tal criação a função exclusiva da lei, ou seja, nenhum fato pode ser
considerado como crime sem uma lei anterior que o defina, bem como também,
nenhuma pena poderá ser aplicada sem prévia cominação legal. A lei deve definir de
forma precisa inteligível a conduta na norma penal incriminadora.
Esse princípio da Legalidade está presente tanto na Constituição Federal de
1988, no seu art. 5º, XXXIX: “ (...) não há crime sem lei anterior que o defina, nem
pena sem prévia cominação legal”; quanto no Código Penal, art. 1º: “ Não há crime sem
lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal”. Não se pode
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olvidar que está também presente no art. 9º da Convenção Americana Sobre Direitos
humanos (Pacto San José da Costa Rica), tanto o principio em comento quanto o princío
da retroatividade:
“Ninguém pode ser condenado por ações ou omissões que, no
momento em que forem cometidas, não sejam delituosas, de acordo
com o direito aplicável. Tampouco se pode impor pena mais grave que
a aplicável no momento da perpetração do delito. Se depois da
perpetração do delito a lei dispuser a imposição de pena mais leve, o
delinquente será por isso beneficiado”.

O estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional também apresenta o


dispositivo da legalidade, presente no art. 22º:
Art. 22º - “Nullumcrimensine lege”: 1 – Nenhuma pessoa será
considerada criminalmente responsável, nos termos do presente
Estatuto, a menos que a sua conduta constitua, no momento em que
tiver lugar, um crime da competência do Tribunal. 2 – A previsão de
um crime será estabelecida de forma precisa e não será permitido o
recurso à analogia. Em caso de ambigüidade, será interpretada a favor
da pessoa objecto de inquérito, acusada ou condenada. 3 – O disposto
no presente artigo em nada afectará a tipificação de uma conduta
como crime nos termos do direito internacional, independentemente
do preseste Estatuto.

Como visto, o princípio da Legalidade está nos textos dos diplomas


insculpidos no nosso ordenamento jurídico e nos documentos internacionais. É
importante destacar que, não obstante a Constituição Federal e o Código Penal
expressem os termos “não há crime” e “não há pena”, entende-se que a garantia da
legalidade se estende, respectivamente, a contravenção penal e a medida de segurança.
Existe uma diferença entre a legalidade formal e a material, a primeira diz
respeito à obediência ao devido processo legislativo, diante disso, ao obedecer à
legalidade formal haverá uma lei vigente. Já a legalidade material é o respeito às
restrições e às garantias fundamentais humanas. Respeitada essa legalidade, há uma lei
estabelecida. Para melhor elucidá-las, vejamos o seguinte exemplo: o regime integral
fechado estava previsto em uma lei vigente, ou seja, que está em conformidade com a
legalidade formal, contudo, está inválida, conforme o Supremo Tribunal Federal, pois
vai de encontro com as garantias fundamentais.

3.2.3- PRINCÍPIO DA CULPABILIDADE


É notório que o princípio da culpabilidade é um limitador do direito de punir
estatal. Isso se deve ao fato do Estado só poder cominar pena ao agente imputável, isto
é, penalmente capaz; com potencial consciência da ilicitude do fato e de determinar-se
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de acordo com esse entendimento, e não podendo agir de outra forma. Portanto, os
elementos da culpabilidade são: I) imputabilidade; II) potencial consciência da ilicitude
e III) exigibilidade de conduta diversa.
Cezar Roberto Bitencourt ensina que há um triplo aspecto ao conceito de
culpabilidade. Primeiramente, a culpabilidade (como fundamento da pena), significa um
juízo de valor que permite responsabilizar uma pessoa pela prática de um fato típico e
antijurídico com imposição de uma reprimenda penal.
O segundo aspecto deve-se entender a culpabilidade como elemento de
limitação da pena. Nesse plano, a culpabilidade não funciona como fundamento da
pena, mas como limite dela, pois o limite e a medida da pena devem ser razoáveis e
proporcionais à gravidade do fato típico e antijurídico.
Por último, deve-se entender a culpabilidade como proibição da aplicação da
responsabilidade penal objetiva, o que é vedado pelo nosso ordenamento jurídico
vigente. Portanto, ninguém será culpabilizado por um resultado absolutamente
imprevisível se agir dolosamente ou de forma culposa.

3.2.4- PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE


De acordo com o Princípio da Proporcionalidade, a aplicação da pena deve
ser proporcional à gravidade do ato praticado. Para grande parte da doutrina, trata-se de
um princípio constitucional implícito na individualização da pena. Num Estado
Democrático de Direito, segundo Rogério Sanches: “a proporcionalidade surge
vinculada à concepção de limitação do poder estatal, tendo em vista a tutela dos
interesses individuais”(SANCHES,2015,p.389). A conduta do Estado deve ser
proporcional, observando os meios empregados para a consecução dos fins almejados.
Cezar Roberto Bitencourt leciona que tal princípio foi consagrado não como
simples critério interpretativo, mas como uma garantia legitimadora e limitadora de todo
ordenamento jurídico estatal. Ou seja, há um vínculo constitucional capaz de enquadrar
os fins de um ato estatal e os meios escolhidos para alcançar sua finalidade.
Na relação entre o preceito primário (crime) e o preceito secundário (pena)
deverá existir um equilíbrio entre a gravidade da conduta indesejada e a sanção a esta
aplicada. Nas quais, os direitos fundamentais dos indivíduos devem ser tidos como
indisponíveis, afastados do livre arbítrio ou da livre deliberação estatal, pois o Estado
além de respeitá-los, deve garanti-los. Nesse sentido o STF:
“Os direitos fundamentais não podem ser considerados apenas
como proibições de intervenção, expressando também um
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postulado de proteção. Pode-se dizer que os direitos


fundamentais expressam não apenas uma proibição do excesso,
como também podem ser traduzidos como proibição
insuficiente ou imperativos de tutela” (...). (STF – Segunda
Turma – HC 104410 – Rel. Min. Gilmar Mendes – Dje
27/03/2012).

Para melhor elucidação, pode-se dividir o princípio da proporcionalidade


em dois vieses: o primeiro, a proibição de excesso e o segundo, a proibição da proteção
deficiente. Pois, é reprovável tanto o excesso quanto a resposta não satisfatória do
Estado punitivo.
À luz do princípio da Intervenção Mínima, o direito penal deve ser utilizado
minimamente possível, devido a sua consequência jurídica muito danosa. Isto é, só
deverá ser aplicado o direito penal quando for imprescindível, mantendo-se subsidiário,
ou seja, sua intervenção fica condicionada ao revés dos demais ramos do Direito, e
fragmentário (dever de observância aos casos de relevante lesão ou perigo de lesão ao
bem jurídico tutelado).
Para Rogério Sanches, subsidiariedade e fragmentariedade são atributos, e
não sinônimos de intervenção mínima. Diante disso, a subsidiariedade norteia a
intervenção em abstrato: o direito penal só tipifica um fato como crime quando as
demais ciências do direito sejam insuficientes ou ineficazes, logo o direito penal é a
“última ratio”. Já a fragmentariedade norteia a intervenção em concreto. Significando
assim, que o eixo repressivo só intervém no caso concreto quando estiver presente
relevante lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico tutelado.
O princípio da insignificância ou bagatela é um desdobramento lógico da
fragmentariedade, não da subsidiariedade (SANCHES, 2015).Assim, para se averiguar
o princípio da insignificância, o autor esclarece:
“Ainda que o legislador crie tipos penais incriminadores em
observância aos princípios gerais do Direito Penal, poderá ocorrer
situação em que a ofensa concretamente perpetrada seja diminuta, isto
é, incapaz de atingir materialmente e de forma relevante e intolerável
o bem jurídico protegido. Nesses casos, estaremos diante do que se
denomina “crime de bagatela” (Sanches, p. 70).

Segundo o mesmo autor, sob o aspecto hermenêutico, o princípio da


insignificância pode ser entendido como uma ferramenta restritiva de se interpretar a
norma penal, sendo a conduta típica e relevante a lesão, devendo ser feita a subsunção
da norma penal em abstrato ao caso concreto. Esse entendimento é elucidado pelo STF,
que tem decidido:
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“A tipicidade penal não pode ser percebida como o trivial exercício de


adequação do fato concreto à norma em abstrato. Além da
correspondência formal, para a configuração da tipicidade, é
necessária uma análise materialmente valorativa das circunstâncias do
caso concreto, no sentido de se verifica a ocorrência de alguma lesão
grave, contundente e penalmente do bem jurídico tutelado. O princípio
da insignificância reduz o âmbito de proibição aparente da tipicidade
legal e, por consequência, torna atípico o fato na seara penal, apesar
de haver lesão a bem juridicamente tutelado pela norma penal” (STF –
primeira turma – HC 108946 – Rel. Min. Cármen Lúcia – Dje
07/12/2011).

Como exposto, havendo somente a subsunção em abstrato, porém carecendo


de tipicidade material, deverá ser afastada. Isso porque, não basta somente que a
conduta praticada pelo agente se amolde ao tipo penal em abstrato, sendo
imprescindível que se faça um juízo entre suas conseqüências praticadas pela conduta e
a reprimenda imposta ao agente.
São requisitos do princípio da insignificância: I) mínima ofensividade da
conduta do agente; II) nenhuma periculosidade social da ação; III) reduzido grau de
reprovabilidade do comportamento e, IV) inexpressividade da lesão jurídica provocada.
Apesar de haver julgados no Superior Tribunal de Justiça condicionando a aplicação
desse princípio aos bons antecedentes do agente, prevalece que a incidência de tal
princípio depende somente de requisitos objetivos (acima expostos), sob pena de se
exumar o direito penal do autor.
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CONCLUSÃO
A progressiva ampliação do crime demonstra o colapso da justiça nos dias
atuais. Vários vetores têm corroborado com este panorama, dentre eles: a omissão
estatal na execução de políticas públicas essenciais; a ineficácia do Estado na
administração e fiscalização do sistema penitenciário, proporcionando a aplicação de
ferramentas que contribuem na correta execução das penas, de maneira a reduzir a
problemática da reincidência eo uso da ciência penal como pronta resposta a todos os
dissídios instalados, culminando na inflação do sistema penal..
Por conta do notório revés das instituições do Estado, tem prevalecido no
nosso país a chamada “técnica legislativa casuística”, onde a prática de um determinado
crime instiga o clamor público e, de forma demagógica, se recrudesce as penas ou
fabricam novos delitos; a invocação ao sistema penal se transforma na única ferramenta
com poder de reparar as mazelas sociais, cuja gênese advém do insucesso do sistema
gestor.
Perante essa alarmante conjuntura, se faz indispensável a moderação das
ações arbitrárias do Estado por meio do controle da aplicação do sistema repressivo.
Somente com isso constataremos a revalidação de um Estado Democrático de Direito.
Os princípios constitucionais de âmbito penal mostram-se eficazes
ferramentas de controle e remediação dessas deformidades. Eles integram o presente
Estado Democrático, tratando-se de técnicas de legitimação e racionalização do Direito
Penal, os quais impelem que a atividade estatal seja desempenhada em consonância com
os direitos fundamentais do homem, especialmente os direitos à vida, à liberdade e à
dignidade, sob pena de se converter em ilegítima e arbitrária.
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Estas restrições se perfazem não exclusivamente no instante da produção


legislativa penal, mas também na atividade jurídica em relação à interpretação das
normas criminais existentes.
É imperioso que seja levada à cabo a eficácia restritiva dos princípios
constitucionais penais, partindo-se da premissa de que um dos objetivos basilares do
Direito Penal é o de tutelar os bens jurídicos mais relevantes, mas de maneira
subsidiária e fragmentária, estimulando a percepção dos governantes para que
reconheçam nas políticas públicas de inclusão social a condição elementar de reação da
sociedade ao crime, sendo, inclusive, muito mais eficaz que a punição.

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