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Instituto de Estudos da Linguagem

Estudos Literários

TL709 – Introdução à obra de Franz Kafka

Professor Tomaz Amorim Fernandes Izabel

Fernando Barbin
(167485)

– Trabalho final –

Campinas

2020
I – Apresentação do tema

O trabalho final consiste no desenvolvimento de um ensaio criativo, paródico, do


conto “O abutre”, presente no livro “Narrativas do espólio”, de Franz Kafka. Esse
ensaio será criado a partir de uma reflexão sobre a temporalidade kafkiana.
Pensar o tempo, entretanto, já é pensar a história, porque ambos parecem estar,
algum modo, sempre entrelaçados. Como diz Agamben (2005, p. 11):

Toda concepção de história é sempre acompanhada de uma certa


experiência do tempo que lhe está implícita, que a condiciona e que é
preciso, portanto, trazer à luz. Da mesma forma, toda cultura é,
primeiramente, uma certa experiência do tempo, uma nova cultura não é
possível sem uma transformação desta experiência.

Nesse sentido, pensar a temporalidade kafkiana deve significar, em certo


sentido, (re)pensar a história. Para a tradição ocidental em geral, pode-se dizer que
tempo e história sempre estiveram intimamente associados: o fio condutor da história
não seria senão o próprio tempo, de modo que a história se desvelaria sempre e somente
a partir de uma certa linearidade sucessiva da temporalidade.
Segundo Frank Kermode (1967, p. 7), essa concepção lógico-positiva da
temporalidade encontra sua razão de ser na medida em que ela mesma seria a única
maneira de os seres humanos conferirem algum sentido às suas próprias vidas: como
cada um de nós invariavelmente nasce no meio de um fluxo contínuo de coisas, seria
necessário definir e cristalizar “inícios” e “fins” como forma de conferir alguma
significação à nossa própria existência.
Assim, o tempo tende a ser concebido como uma certa positividade cronológica
no interior da qual os eventos estão logicamente concatenados entre causas e efeitos.
Vale dizer, os fatos e os eventos vão sendo como que encaixados entre si à maneira da
construção de um grande edifício, com sua fundação estrutural de sustentação e andares
sobrepostos, tudo articulado entre si, desempenhando uma função específica no quadro
geral da obra – tal como evocado na imagem cartesiana de conhecimento, onde uma
premissa funda e fundamenta a próxima, e assim sucessivamente até que a catedral do
conhecimento esteja finalmente completada.
Por sua vez, em Kafka o que vemos é uma completa subversão desse conceito de
temporalidade. Fundamentalmente, a temporalidade kafkiana nega estes marcos
temporais “iniciais” e “finais”, de “causas” e “efeitos”, com o que, produz uma estética

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não-linear, não-lógica, mas constelar, no interior da qual, como em toda constelação, há
essencialmente ausências, vazios e escuridão, bem como incontáveis pontos de luz que
produzem vertigem no olhar, mas que também consubstanciam uma paisagem de
raríssima beleza.
Ao lermos Kafka, temos cada vez mais a impressão de que, para ele, a
identidade entre tempo e história nada mais é do que um pressuposto falho de
convergência entre coisas diversas. Assim, em uma série de momentos em sua obra,
Kafka rompe com a temporalidade tradicional presente na tradição, por meio de uma
temporalidade curiosa – para não dizer estranha.
Para Beda Allemann (1998), a temporalidade kafkiana não é a do acontecimento
histórico – ou, para colocar em termos mais filosóficos, não é a do campo fenomênico.
Assim, a temporalidade kafkiana, segundo o autor, seria uma temporalidade que
sobrepõe o início ao final, o pecado original ao juízo final. Como consequência dessa
sobreposição, teríamos, por um lado, um devir impossível e, por outro, (a possibilidade
de) uma consciência histórica plena.
Isso absolutamente não implica a impossibilidade de fazer vir a tona questões
sociológicas e antropológicas (dentro do que se encontraria, por exemplo, a questão
complexa de Kafka com a burocracia de seu tempo). Vale dizer, da premissa filosófica
de não identidade entre tempo e história não se segue qualquer ocultamento ao chamado
Zeitgeist (“espírito do tempo”) – muito pelo contrário, na verdade. De uma tal
reconfiguração da temporalidade segue-se justamente a possibilidade de novos olhares,
novas possibilidades para a história.
A temporalidade de Kafka, portanto, é em geral uma temporalidade ao mesmo
tempo negativa e entrecruzada, incompleta e residual: “Ainda nos impõem fazer o que é
negativo; o positivo já nos foi dado” (KAFKA, 2012, p. 32). Tomaz Amorim (2018, p.
24) coloca essa negatividade nos seguintes termos:

A negação do positivo dado exige a busca das opções até então


encobertas pelos pressupostos da tradição. Uma história não apenas do
que aconteceu, e de quem venceu, mas do que poderia ter acontecido, e
de quem perdeu, por fim, do que poderá acontecer, a história daqueles
que até agora têm perdido, mas podem eventualmente vencer. A origem
negativa [...] tem uma temporalidade que se caracterizaria pela
sabotagem dos três tempos [...] o presente eternizado; um futuro
incompletável; e um passado inalcançável.

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Fredric Jameson (1991, p. 26-27, tradução nossa) afirma que essa temporalidade
produz um sentido esquizofrênico na linguagem:

Se não podemos unificar o passado, o presente e o futuro da sentença,


então não podemos, similarmente, unificar o passado, o presente e o
futuro de nossa própria experiência ou vida psíquica. Com a quebra da
cadeia significante, portanto, o esquizofrênico é reduzido a uma
experiência de significantes puramente materiais, ou, em outras
palavras, a uma série de presentes puros e não relacionados no tempo.

Em termos concretos, isso pode significar muitas vezes a ausência de uma


estrutura ficcional estabelecida em uma série começo – meio – fim ou até mesmo um
final arbitrário, com ares de inacabamento. Seja como for, será sempre esperado, em
Kafka, um certo estranhamento de leitura. Segundo Politzer (1962, p. 17, tradução
nossa), a forma ideal de Kafka consiste em “[...] um parágrafo deflagrando a
absurdidade da existência”.
No caso específico do conto escolhido por nós como material de base para um
ensaio criativo de paródia, há ainda a questão da apropriação de temas da tradição
clássica feita por Kafka. Escolhemos “O abutre”, conto que recria à sua maneira o mito
grego de Prometeu. No mito original, apesar de algumas variações históricas, Prometeu,
ao roubar o fogo de Héstia e dá-lo aos mortais, é condenado por Zeus: Prometeu então é
amarrado em uma rocha por toda a eternidade e uma águia diariamente se alimenta de
seu fígado, o qual, sendo Prometeu imortal, regenera diariamente.
Na versão e atualização kafkiana deste mito, a águia dá lugar a um abutre (que,
ao contrário de uma águia, é uma ave de rapina que só consome carne putrefeita),
Prometeu dá lugar à própria figura do narrador, e, além de tudo isso, o alvo das bicadas
da ave não é o fígado, mas os pés do condenado.
Como se vê, a apropriação de temas da tradição por Kafka parece vir na esteira
de uma temporalidade concebida tal como mencionamos anteriormente, uma
temporalidade dentro da qual não há sucessão, concatenação lógica, linearidades.
Assim, Kafka não parece situar “O abutre” como um certo “passo adiante” no quadro
geral dos “resultados” literários históricos de uma certa temática tradicional. Pelo
contrário, o que Kafka faz é justamente amalgamar a essência, por assim dizer, do
âmbito literário nele mesmo, por meio de uma caracterização estética em formato de

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constelação, com mais ausências, com mais negatividade e, portanto, com menos
explicações lógicas do que o original mitológico que de algum modo lhe fundamenta.
Diante do exposto, nosso ensaio criativo pretende utilizar a temporalidade
kafkiana – seja no contexto geral de uma temporalidade existencial, seja no contexto
específico de uma temporalidade de apropriação de temas da tradição – no próprio
Kafka. A ideia é, a um só tempo, cruzar temporalidades que a tradição consideraria
diferentes – a temporalidade da Grécia clássica, do cristianismo, da literatura kafkiana e
mesmo da biografia do próprio Kafka –, para construir um texto com diversas camadas
de leitura. Seria algo como o avesso do avesso, mas, como aqui não estamos no campo
da lógica, naturalmente que o “avesso do avesso” não deve significar nenhum tipo de
ausência de modificação ou de restauração de um certo “estado normal” de coisas.
Para dizer em outras palavras, temos o intuito de sobrepor a “O abutre” – que é
uma paródia – uma paródia, para verificarmos o que é que pode resultar dessa
sobreposição. Se tudo correr bem, nossa paródia deve, em alguma medida, mostrar-se
ao leitor como um caleidoscópio de sentidos, de possibilidades – nenhuma e todas
corretas ou possíveis.

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II – A paródia de “O abutre”, de Kafka.

O pai, o filho e o mocho-galego

Dissecando meu corpo, escalpelava-me por inteiro, completamente obcecado


pela natureza do meu ser. Minucioso e diligente, empregava toda sua técnica a serviço
de uma análise exaustiva e completa de minha estrutura, composição e organização: era
como uma autópsia de infinitas causas mortis, com a diferença de que eu estava vivo e,
portanto, sentia muita, muita dor a cada nova incisão ou talho dentro de mim. Sempre
que terminava mais um experimento, ausentando-se por algum tempo, analisava as
amostras coletadas em algum lugar não muito distante, onde também registrava todos os
resultados obtidos. Um mocho-galego então voou por ali, viu tudo aquilo e perguntou
por que eu me submetia àquele homem.
– É meu filho – eu disse. – Desde criança, quando eu o pus no mundo, ele
sempre teve muita curiosidade em me examinar, em saber como sou por dentro e qual é
a minha essência. Então ele foi crescendo, se desenvolvendo, e assim cada vez mais foi
fazendo novas investidas contra mim, tudo para realizar o seu sonho de menino.
– Mas senhor – perguntou o mocho –, vós nunca tentastes demovê-lo de tal
insensatez?
– Tentei convencê-lo, sem sucesso, de que ele faria melhor dedicando sua vida a
outras coisas – disse eu. – Mas, no final das contas, acabou prevalecendo uma certa
misericórdia paterna. A felicidade de um filho é sempre o mais importante.
– Diga-me, senhor, há quanto tempo voluntariamente vos submeteis a este
fraternal martírio? – o mocho perguntou.
– Não sei dizer... já faz uma eternidade – disse eu.
– Meu senhor, preciso confessar, estais completamente irreconhecível em vosso
semblante, tamanha já é a desfiguração que as amputações vos infligiram. Isso sem falar
nas dilacerações feitas no centro de vossa testa, diafragma e em cada um dos ombros.
Posso ser de alguma ajuda para vós?
– Talvez pudesses, minha cara, conversar com ele para, quem sabe, dissuadi-lo
deste seu procedimento – disse eu. – Poderias falar-lhe sobre coisas mais oportunas
pelas quais um homem pode viver.

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– Não vos esqueçais de que sou um mocho-galego, meu senhor – disse o mocho.
– Vosso filho não me ouviria. Mas, se minha senhora lhe falar, ele há de ouvir.
O mocho-galego levantou vôo e foi relatar o acontecido à sua senhora, que, em
resposta, deu-lhe em mãos um cabresto, dizendo-lhe que aquela situação não se
resolveria mediante a palavra, mas somente mediante a sujeição do filho. Enquanto isso,
o filho, que acabara de finalizar mais um livro de registros, voltava e já dava
prosseguimento às suas intervenções no corpo do senhor seu pai, o qual, preparando-se
para ser mais uma vez retalhado, novamente apiedava-se de sua criação.

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Bibliografia

AGAMBEN, Giorgio. Tempo e história: crítica do instante e do contínuo. In: Infância e


história. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005

ALLEMANN, Beda. Stehender Sturmlauf. Zeit und Geschichte im Werke Kafkas. Org.
Diethelm Kaiser e Nikolaus Lohse. Göttingen: Walstein, 1998

IZABEL, Tomaz Amorim Fernandes. A. F. Franz Kafka e Walter Benjamin: contar do


tempo interrompido. Tese de Doutorado em Teoria Literária e Comparada. Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2018

JAMESON, Frederic. Postmodernism, or, the cultural logic of late capitalism. New
York: Duke University Press, 1991

KARFA, Franz. Aforismos reunidos. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Instituto
Moreira Salles, 2012

KERMODE, Frank. The sense of na ending. New York: Oxford University Press, 1967

POLITZER, Heinz. Franz Kafka, parable and paradox. Ithaca, New York: Cornell
University Press, 1962

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