Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Estudos Literários
Fernando Barbin
(167485)
– Trabalho final –
Campinas
2020
I – Apresentação do tema
2
não-linear, não-lógica, mas constelar, no interior da qual, como em toda constelação, há
essencialmente ausências, vazios e escuridão, bem como incontáveis pontos de luz que
produzem vertigem no olhar, mas que também consubstanciam uma paisagem de
raríssima beleza.
Ao lermos Kafka, temos cada vez mais a impressão de que, para ele, a
identidade entre tempo e história nada mais é do que um pressuposto falho de
convergência entre coisas diversas. Assim, em uma série de momentos em sua obra,
Kafka rompe com a temporalidade tradicional presente na tradição, por meio de uma
temporalidade curiosa – para não dizer estranha.
Para Beda Allemann (1998), a temporalidade kafkiana não é a do acontecimento
histórico – ou, para colocar em termos mais filosóficos, não é a do campo fenomênico.
Assim, a temporalidade kafkiana, segundo o autor, seria uma temporalidade que
sobrepõe o início ao final, o pecado original ao juízo final. Como consequência dessa
sobreposição, teríamos, por um lado, um devir impossível e, por outro, (a possibilidade
de) uma consciência histórica plena.
Isso absolutamente não implica a impossibilidade de fazer vir a tona questões
sociológicas e antropológicas (dentro do que se encontraria, por exemplo, a questão
complexa de Kafka com a burocracia de seu tempo). Vale dizer, da premissa filosófica
de não identidade entre tempo e história não se segue qualquer ocultamento ao chamado
Zeitgeist (“espírito do tempo”) – muito pelo contrário, na verdade. De uma tal
reconfiguração da temporalidade segue-se justamente a possibilidade de novos olhares,
novas possibilidades para a história.
A temporalidade de Kafka, portanto, é em geral uma temporalidade ao mesmo
tempo negativa e entrecruzada, incompleta e residual: “Ainda nos impõem fazer o que é
negativo; o positivo já nos foi dado” (KAFKA, 2012, p. 32). Tomaz Amorim (2018, p.
24) coloca essa negatividade nos seguintes termos:
3
Fredric Jameson (1991, p. 26-27, tradução nossa) afirma que essa temporalidade
produz um sentido esquizofrênico na linguagem:
4
constelação, com mais ausências, com mais negatividade e, portanto, com menos
explicações lógicas do que o original mitológico que de algum modo lhe fundamenta.
Diante do exposto, nosso ensaio criativo pretende utilizar a temporalidade
kafkiana – seja no contexto geral de uma temporalidade existencial, seja no contexto
específico de uma temporalidade de apropriação de temas da tradição – no próprio
Kafka. A ideia é, a um só tempo, cruzar temporalidades que a tradição consideraria
diferentes – a temporalidade da Grécia clássica, do cristianismo, da literatura kafkiana e
mesmo da biografia do próprio Kafka –, para construir um texto com diversas camadas
de leitura. Seria algo como o avesso do avesso, mas, como aqui não estamos no campo
da lógica, naturalmente que o “avesso do avesso” não deve significar nenhum tipo de
ausência de modificação ou de restauração de um certo “estado normal” de coisas.
Para dizer em outras palavras, temos o intuito de sobrepor a “O abutre” – que é
uma paródia – uma paródia, para verificarmos o que é que pode resultar dessa
sobreposição. Se tudo correr bem, nossa paródia deve, em alguma medida, mostrar-se
ao leitor como um caleidoscópio de sentidos, de possibilidades – nenhuma e todas
corretas ou possíveis.
5
II – A paródia de “O abutre”, de Kafka.
6
– Não vos esqueçais de que sou um mocho-galego, meu senhor – disse o mocho.
– Vosso filho não me ouviria. Mas, se minha senhora lhe falar, ele há de ouvir.
O mocho-galego levantou vôo e foi relatar o acontecido à sua senhora, que, em
resposta, deu-lhe em mãos um cabresto, dizendo-lhe que aquela situação não se
resolveria mediante a palavra, mas somente mediante a sujeição do filho. Enquanto isso,
o filho, que acabara de finalizar mais um livro de registros, voltava e já dava
prosseguimento às suas intervenções no corpo do senhor seu pai, o qual, preparando-se
para ser mais uma vez retalhado, novamente apiedava-se de sua criação.
7
Bibliografia
ALLEMANN, Beda. Stehender Sturmlauf. Zeit und Geschichte im Werke Kafkas. Org.
Diethelm Kaiser e Nikolaus Lohse. Göttingen: Walstein, 1998
JAMESON, Frederic. Postmodernism, or, the cultural logic of late capitalism. New
York: Duke University Press, 1991
KARFA, Franz. Aforismos reunidos. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Instituto
Moreira Salles, 2012
KERMODE, Frank. The sense of na ending. New York: Oxford University Press, 1967
POLITZER, Heinz. Franz Kafka, parable and paradox. Ithaca, New York: Cornell
University Press, 1962