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NIETZSCHE E TURGUÊNIEV:

PARA UMA GENEALOGIA DO NIILISMO

Vitor Cei
Doutorando em Literatura Comparada – Universidade Federal de Minas Gerais

Resumo: Analisa as ressonâncias do niilismo na obra de Ivan Turguêniev, refletindo sobre sua
constituição histórica, seus valores e conseqüências para a modernidade. O referencial teórico da pesquisa
é o pensamento de Friedrich Nietzsche, filósofo que caracterizou o niilismo como um princípio
desorganizador que arruína as instituições e valores. O nihil (nada) prevalece, gerando ressentimento,
declínio, desnorteamento, incapacidade de avançar e criar novos valores. A leitura das obras de Nietzsche
e Turguêniev há de apontar para as possibilidades abertas ao pensamento filosófico pela literatura.

Palavras-chave: Ivan Turguêniev – Pais e filhos. Friedrich Nietzsche – Filosofia e Literatura. Niilismo –
Tema literário.

Abstract: This paper analyses the resonances of nihilism in the work of Ivan Turguêniev, thinking about
its historical nature, its values and consequences to modernity. The theoretical system of references is
based on Nietzsche‘s philosophy, author that characterizes nihilism as a disorganizer principle that ruins
values and institutions. The nihil (nothingness) prevails, generating resentment, decay, inability to
progress and create new values. The reading of Nietzsche‘s and Turguêniev‘s books can indicate the
possibilities opened to the philosophical thinking by the literature.

Keywords: Ivan Turguêniev – Fathers and sons. Friedrich Nietzsche – Philosophy and Literature.
Nihilism – Literary Theme.

O campo recepcional da obra de Ivan Turguêniev (1818-1883) no Brasil ainda é muito


restrito, em descompasso com a sua reconhecida importância para a história da literatura
universal. Primeiro escritor russo a conquistar fama na Europa ocidental,
contumazmente ele ocupa posição secundária no cânone, sendo ofuscado pelos
compatriotas Dostoiévski e Tolstói.

Os leitores da obra de Turguêniev, que não se limitam à chamada crítica especializada,


encontram-se em diversos campos disciplinares, muitas vezes buscando a obra do
escritor russo para estudos intertextuais, freqüentemente em perspectiva filosófica e em
diálogo com o pensador alemão Friedrich Nietzsche, consoante a nossa proposta.

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De nossa parte, buscamos identificar algumas das possibilidades abertas ao pensamento
filosófico pela obra Pais e filhos, de Turguêniev, tendo em vista um tema que desde o
século XIX provoca polêmica entre críticos e pensadores: o niilismo. Referenciando-nos
na noção de niilismo apresentada por Nietzsche, nosso objetivo geral é traçar o esboço
de uma genealogia do niilismo a partir da investigação de suas ressonâncias detectadas
na prosa do romancista russo.

Que conceitos de niilismo seriam pertinentes para a fundamentação interpretativa da


narrativa de Turguêniev? Em que sentido a prosa do autor russo pode ser caracterizada
como niilista? Que concepções de homem, mundo e vida a leitura de sua obra permite
vislumbrar? Tais são as questões que ora nos convidam e reúnem a pensar.

Considerando-se o estatuto ficcional da linguagem do escritor russo, não buscamos a


simples aplicação instrumental de conceitos filosóficos na análise da obra literária. Uma
interpretação desta natureza, externa à ficção, só poderá vir a constatar que na obra de
Turguêniev ou de qualquer outro escritor os conceitos não correspondem exatamente
aos originais. Nosso objetivo é, pois, efetuar um exame crítico das ressonâncias do
niilismo na estrutura interna da prosa do romancista.

Como ensina Benedito Nunes (autodeclarado híbrido de crítico literário e filósofo), não
se deve aplicar a filosofia ao conhecimento da literatura, na tentativa de uma pretensa
crítica filosófica, tampouco se deve fazer da literatura um instrumento de figuração de
teorias, reduzindo o exercício crítico à paráfrase do pensamento de filósofos. Nunes
propõe, sob o foco prioritário da estrutura narrativa da obra literária, a busca da verdade
da obra enquanto ficção: ―Nada melhor do que o seu modus operandi, o seu como, para
nos dar uma ideia da exigência de verdade que a norteia‖ (NUNES, 1993, p. 198).

O nosso trabalho crítico-teórico se encaminhará a partir do procedimento metódico


elaborado por Nietzsche, o mais adequado à sua teoria da interpretação: a genealogia
(NIETZSCHE, 1998). Este método de pesquisa é capaz de pensar os conceitos e as
coisas de um ponto de vista histórico ―efetivo‖, isto é, que investiga as condições de
surgimento dos valores, tendo em vista o questionamento da origem da própria
interpretação histórica dos valores.

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Nas palavras de Michel Foucault, leitor de Nietzsche: ―A história ‗efetiva‘ se distingue
daquela dos historiadores pelo fato de que ela não se apóia em nenhuma constância:
nada no homem – nem mesmo seu corpo – é bastante fixo para compreender outros
homens e se reconhecer neles‖ (FOUCAULT, 2010, p. 27).

A genealogia procede como um estudo da proveniência dos valores de uma determinada


época, que busca compreender o valor dos valores, isto é, quais são os seus interesses, o
que eles instauram, que concepção de homem, mundo e vida estes valores promovem. A
pergunta genealógica é: como ocorre, qual é a origem e a finalidade da interpretação
histórica do valor da existência?

O genealogista deve buscar saber de onde provem seu objeto de estudo, traçar a história
de suas mudanças de sentido e apontar para cada emergência de um novo uso do mesmo
termo. É necessário marcar a historicidade dos acontecimentos, contra a tradição
histórica que acredita num desenvolvimento progressivo e linear, buscando sempre a
gênese de um estado original e puro. Maria Antonieta Borba explica que a história,
genealogicamente dirigida, é perspectivista, rejeita a profundidade e traz consigo a
negação da origem:

A rejeição à idéia de origem, a descrença na consciência do sujeito, a recusa à


profundidade do discurso, a valorização deste discurso em sua materialidade
constituem alguns dos aspectos indicadores da noção de linguagem
possuidora de uma ordem própria e a de signo como algo que já se oferece
como interpretação, noções essas que são fundamentais à questão da
interpretação em Nietzsche (BORBA, 2004, p. 192).

Sob investigação genealógica, revela-se todo valor como histórico e culturalmente


emergente em configurações de poder, isto é, como interpretações, sejam de indivíduos,
grupos, sociedades ou civilizações. Por isso, é importante enfatizar o caráter
perspectivista desta pesquisa, assim como o de toda interpretação em geral.

Desconfiando de todo e qualquer dogmatismo, Nietzsche avança posições para


imediatamente colocá-las em questão. Pondo sob suspeita toda e qualquer certeza,
apresenta ideias para fazer experimentos com o pensar. No entanto, o perspectivismo e a

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recusa à profundidade não implicam num pluralismo do tipo ―vale tudo‖. O
genealogista, para praticar esta arte da interpretação, deve ser meticuloso e paciente:

É certo que, a praticar desse modo a leitura como arte, faz-se preciso algo
que precisamente em nossos dias está bem esquecido – e que exigirá tempo,
até que minhas obras sejam ―legíveis‖ –, para o qual é imprescindível ser
quase uma vaca, e não um ―homem moderno‖: o ruminar... (NIETZSCHE,
1998, p. 15).

A cor da genealogia é o ―[...] o cinza, isto é, a coisa documentada, o efetivamente


constatável, o realmente havido, numa palavra, a longa, quase indecifrável escrita
hieroglífica do passado moral humano!‖ (NIETZSCHE, 1998, p. 13).

Considerando-se a genealogia como o método mais adequado à teoria da interpretação


de Nietzsche, apropriamo-nos dela para investigar um problema filosófico e literário
fundamental para a compreensão da literatura e da filosofia do século XIX: o niilismo,
assunto que ora nos convida e reúne a pensar.

Segundo Martin Heidegger, a história do ocidente é configurada pelo niilismo —


história da desvalorização dos valores: o mundo supra-sensível, Deus, a lei moral, a
autoridade da razão, a ideia de progresso, a cultura e a civilização perdem sua força
construtiva e se anulam:

Niilismo é aquele processo histórico por meio do qual o domínio do ―supra-


sensível‖ se torna nulo e caduco, de tal modo que o ente mesmo perde o seu
valor e o seu sentido. Niilismo é a história do próprio ente: uma história por
meio da qual a morte do Deus cristão vem à tona de maneira lenta, mas
irremediável. Pode ser que ainda se acredite nesse Deus e que ainda tomemos
seu mundo por ―real‖, ―eficaz‖ e ―normativo‖. Isso é similar àquele processo
por meio do qual o brilho de uma estrela que se apagou há milênios continua
reluzindo, mas permanece, contudo, uma mera ―aparência‖ com essa
refulgência. Com isso, o niilismo não é, para Nietzsche, de maneira alguma
um ponto de vista ―defendido‖ por uma pessoa qualquer, nem tampouco um
―dado‖ histórico arbitrário entre muitos outros, que se pode documentar
historiograficamente. O niilismo é muito mais aquele acontecimento
apropriativo de longa duração, no qual a verdade sobre o ente na totalidade é
transformada essencialmente e é impelida para um fim por ela determinado
(HEIDEGGER, 2007, p. 23).

O niilismo no sentido estrito, enquanto conceito e problema teórico surgiu na Europa


dos oitocentos. No século XIX, decadência, pessimismo e niilismo eram termos de

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freqüente circulação entre escritores, críticos e filósofos europeus. Supostamente, o
primeiro a fazer um uso filosófico da palavra niilismo foi Fr. H. Jacobi, que assim
caracterizou o idealismo alemão: ―Verdadeiramente, meu caro Fichte, não deve me
aborrecer se o senhor, ou quem quer que seja, quiser denominar quimerismo aquilo que
contrapus ao idealismo, que deploro como niilismo...‖ (JACOBI, apud HEIDEGGER,
2007, p. 21).

Na Rússia oitocentista o termo niilismo surgiu como uma tentativa de definição para
grupos revolucionários em luta contra o czarismo. Era uma palavra em voga, usada por
jornalistas e romancistas da época para designar e denegrir um movimento de rebelião
contra a ordem estabelecida, o atraso, o imobilismo da sociedade e os seus valores.

O conceito ganhou ressonância na obra de Turguêniev, que popularizou a palavra


niilismo com sua obra Pais e filhos, romance político escrito no momento em que a
Rússia vivia tardiamente – se comparada aos países da Europa ocidental – a tensão entre
um mundo feudal em crise e uma modernidade em processo de gestação.

O projeto de modernização se realizou com uma série de grandes projetos de


construções – pontes, canais, edifícios, indústrias, ferrovias e estradas. Como
conseqüências ocorreram intensos movimentos de pessoas – êxodo rural, migrações
entre países e continentes. Populações inteiras foram expulsas de seus locais de origem,
obrigadas a habitar nas periferias do sistema.

Karl Marx e Friedrich Engels resumiram, no Manifesto do Partido Comunista, os abalos


que a modernização burguesa provocou no planeta, mostrando ao mesmo tempo o
impulso revolucionário do capitalismo e seus efeitos funestos, pensando dialeticamente
o capitalismo como um progresso e uma catástrofe simultâneos:

Onde quer que tenha conquistado o poder, a burguesia destruiu todas as


relações feudais, patriarcais, idílicas. Dilacerou impiedosamente os
variegados laços feudais que ligavam o ser humano a seus superiores
naturais, e não deixou subsistir de homem para homem outro vínculo que não
o interesse nu e cru, o insensível ―pagamento em dinheiro‖. Afogou nas
águas gélidas do cálculo egoísta os sagrados frêmitos da exaltação religiosa,
do entusiasmo cavalhereisco, do sentimentalismo pequeno-burguês. Fez da
dignidade pessoal um simples valor de troca e no lugar das inúmeras
liberdades já reconhecidas e duramente conquistadas colocou a liberdade de
comércio sem escrúpulos. Numa palavra, no lugar da exploração mascarada

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por ilusões políticas e religiosas colocou a exploração aberta, despudorada,
direta e árida (MARX; ENGELS, 2001, p. 47-48).

A burguesia, com sua prática desenvolvimentista, agindo como um torvelinho em


perpétua desintegração e renovação, convertendo o tempo em dinheiro, provocou a
constante sublevação e renovação de todos os modos de vida pessoal e social,
profanando e dissolvendo os valores anteriormente estabelecidos. Assim nasceu o
niilismo.

O romance de Turguêniev, que tem como base o conflito entre gerações, está voltado
para o advento da racionalidade burguesa no período em que a sociedade russa
importava os valores da modernidade européia: ―Uma rebelião contra a ordem
estabelecida, o atraso, o imobilismo da sociedade russa; um conflito entre gerações,
valores, perspectivas; um furor iconoclasta que demole ídolos e antigas certezas‖
(PECORARO, 2007, p. 13).

O olhar com que Turguêniev penetra nos meandros da sociedade russa de seu tempo
mostra a decomposição do sistema feudal, com a permanência da estrutura social
assimétrica e injusta. Prevalece o egoísmo das classes dirigentes e a disparidade das
relações sociais. A narrativa expressa a laceração na qual afundava o mundo no século
XIX, tornando-o uma era de decadência em que ganha primazia o niilismo enquanto
princípio desorganizador que arruína as instituições e valores.

A polêmica em torno de Pais e filhos se deve à sua ambigüidade, visto que o romance
não faz uma defesa explícita da antiga geração frente aos jovens, tampouco enaltece o
niilismo:

Turguêniev lembra nas suas memórias que utilizou o termo não no sentido de
uma reprovação, nem com o intuito de mortificar, mas sim como expressão
precisa e exata de um fato real e histórico. O efeito, porém, não foi o
esperado; e o termo niilista transformou-se em um instrumento de
condenação, em um estigma de infâmia (PECORARO, 2007, p. 15).

No início da narrativa de Pais e filhos, o estudante Arkádi Kirsánov retorna à casa do


pai em companhia de seu amigo Ievguêni Bazárov, estudante de medicina de origem

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plebéia autodeclarado niilista. Nikolai Petróvitch Kirsánov, aristocrata da velha geração,
divide-se entre a alegria pela presença do filho e a melancolia pelo problema de
administrar as suas terras após a libertação dos servos.

Arkádi e Bazárov representam a intelectualidade emergente, formada principalmente


por universitários provenientes das classes mais abastadas. Frustrados com os lentos
avanços das reformas modernizantes, fascinavam-se com o positivismo de Comte. Como
teoria do saber, o positivismo nega-se a admitir outra realidade que não sejam os fatos e a
investigar outra coisa que não sejam as relações entre os fatos. A ciência então era
considerada o único conhecimento possível e, por conseguinte, único guia da vida
individual e social do homem.

Arkádi e Bazárov seguem preceitos positivistas, quando consideram que o método da


ciência, por ser o único válido, deve ser estendido a todos os campos de indagação e da
atividade humana: ―Um químico honesto é vinte vezes mais útil do que qualquer poeta
— interrompeu Bazárov‖ (TURGUÊNIEV, 2004, p. 52).

Sendo o método científico puramente descritivo, limita-se a descrever os fatos e mostrar


as relações constantes entre os fatos expressos pelas leis, que permitem a previsão dos
próprios fatos: ―Qualquer homem é capaz de entender até como o éter vibra e o que se
passa no sol; mas, como outro homem pode assoar o nariz de um jeito diferente do seu,
isto ele não consegue entender‖ (TURGUÊNIEV, 2004, p. 214).

Bazárov, ao associar a crença no progresso científico a um profundo pessimismo em


relação à cultura, à sociedade e ao desprezo em relação ao status quo, provoca um
conflito familiar significativo. Como agravante da situação, na Rússia da época ainda
vigorava o ethos aristocrático para o qual o saber era apenas verniz, não instrumento de
conhecimento e ação. O sentimento de mal-estar é expresso no diálogo de surdos entre
Arkádi Kirsánov, seu pai e seu tio Pável Petróvich, durante uma refeição:

— Niilista, disse Nicolai Petróvich. — Vem do latim nihil, nada, até


onde posso julgar; portanto essa palavra designa uma pessoa que... que não
admite nada?
— Digamos: que não respeita nada — emendou Pável Petróvich e
novamente se pôs a passar manteiga no pão.
— Aquele que considera tudo de um ponto de vista crítico —
observou Arkádi.

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— E não é a mesma coisa? — indagou Pável Petróvich.
— Não, não é a mesma coisa. O niilista é uma pessoa que não se
curva diante de nenhuma autoridade, que não admite nenhum princípio aceito
sem provas, com base na fé, por mais que esse princípio esteja cercado de
respeito.
— E o que há de bom nisso? — interrompeu Pável Petróvich.
— Depende, titio. Para uns é bom, mas para outros é péssimo.
(TURGUÊNIEV, 2004, p. 46-47).

Turguêniev caracteriza os niilistas como aqueles que negam tudo aquilo que é fundado
sobre a tradição, sobre a autoridade ou sobre qualquer outra validade definida. O
personagem Bazárov seria o niilista por excelência. Apesar de afirmar que não se dedica
a causa alguma, ele engaja-se num conflito de gerações. Antagonista da velha
aristocracia russa, Bazárov busca uma sublevação e renovação de todos os modos de
vida, pessoal e social, profanando e dissolvendo os valores anteriormente estabelecidos:

Princípios não existem absolutamente, será que você não percebeu isso até
agora? Só existem sensações. Tudo depende delas. [...] Eu, por exemplo:
adoto uma atitude de negação por causa da sensação. Tenho prazer em negar,
o meu cérebro está constituído deste modo, e basta! (TURGUÊNIEV, 2004,
p. 195).

Nietzsche, posteriormente, se apropria da palavra e, de acordo com Franco Volpi


(1999), torna-se o primeiro grande teórico do assunto e autor a partir do qual a reflexão
filosófica sobre o problema alcançou o seu mais alto grau. ―Que significa niilismo? —
Que os valores supremos desvalorizem-se. Falta o fim; falta a resposta ao ‗Por quê‘‖
(NIETZSCHE, 2008, p. 29).

Ponto culminante da lógica inerente à modernidade, o niilismo é o mais inquietante e


perturbador de todos os hóspedes, fenômeno que promove e acelera o processo de
destruição dos valores, gerando incerteza, ressentimento, regressão, declínio,
desnorteamento, incapacidade de avançar e criar novos valores. No fragmento póstumo
―O Niilismo Europeu‖, o pensador alemão afirma: ―Essa é a mais extrema forma do
niilismo: o nada (o ―Sem-Sentido‖) eterno‖ (NIETZSCHE, 2005, p. 57).

O nihil, isto é, o nada, prevalece. Acontece um descomunal de esgotamento dos valores


e dos ideais que sustentavam todas as esferas de atividades humanas no mundo
ocidental: artes, política, economia, metafísica, estética, ciência, moral, religião e até
mesmo o chamado ―senso comum‖, que orienta os hábitos cotidianos das pessoas. ―A

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visão do homem agora cansa – o que é hoje o niilismo, se não isto?... Estamos cansados
do homem...‖ (NIETZSCHE, 1998, p. 35).

Nietzsche, ao longo de suas reflexões fragmentárias, em estilo aforismático e


perspectivista, analisa o problema do niilismo em suas nuances, apresentando quatro
conceitos fundamentais: ―niilismo completo‖, ―niilismo incompleto‖, ―niilismo ativo‖ e
―niilismo passivo‖.

O niilismo passivo, presente na prosa de Turguêniev, é hóspede de sociedade que se


encontra desestruturada e em conflito, caracterizando a perda do sentido dos valores
estabelecidos. Motivo de ressentimento, regressão e declínio, é incapaz de criar novos
valores. Nessa conjuntura encontra-se a juventude russa representada em Pais e Filhos.
Enquanto os mais velhos ancoram-se nos antigos valores, os jovens negam tudo e não
preconizam nada: ―Resolvemos não nos dedicar a coisa nenhuma — repetiu Bazárov,
com ar soturno‖ (TURGUÊNIEV, 2004, p. 88).

O niilismo incompleto, por sua vez, é aquele em que os novos valores estão ocupando o
mesmo lugar dos anteriores, isto é, preservando o ideal supra-sensível e a crença na
dualidade do mundo. Por exemplo, o homem moderno havia quebrado os ídolos
religiosos em nome da autonomia da razão; entretanto, a humanidade continuou
desvalorizando a vida em nome de valores abstratos e superiores (Bem, Mal, Verdade,
Falsidade, Justiça, Virtude) oriundos da velha metafísica platônica. De certo modo, é o
que acontece com os jovens niilistas russos, que trocam os valores tradicionais pelos
ideiais positivistas.

O niilismo incompleto é alimentado pelos pensadores e poetas que criticam o projeto


moderno com o intuito de rejuvenescê-lo, aprimorá-lo ou reformá-lo. Nietzsche, em
contrapartida, quer superar o projeto moderno a partir de uma tresvaloração de todos os
valores. Assim teríamos o niilismo completo.

O niilismo completo revela-se como niilismo ativo, aquele que promove e acelera o
processo do crepúsculo dos ídolos, isto é, a tresvaloração de todos os valores, solapando
os antigos princípios: ―Destruímos porque somos uma força [...] Sim, uma força que não
tem de prestar contas de nada‖, afirma Arkádi (TURGUÊNIEV, 2004, p. 89).

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Todavia, a tresvaloração de todos os valores significa não apenas destruir os antigos
valores, mas também o próprio espaço que ocupavam, o do mundo ideal, pretensamente
verdadeiro. Assim, alcança-se a possibilidade de se completar o niilismo e ganhar a
condição necessária à instauração de novas maneiras de avaliar.

Bazárov e seu discípulo Arkádi buscam um começo radical, um outro caminho a partir
de si mesmos. Entretanto, a narrativa mostra que ambos, em busca desse caminho
próprio, demonstram impotência frente à vida, análoga à impotência da ciência frente a
sentimentos contra os quais a razão não consegue dominar: ―Nossas ações se
fundamentam naquilo que julgamos útil — declarou Bazárov. — Nos tempos atuais, o
mais útil é a negação: nós negamos‖ (TURGUÊNIEV, 2004, p. 84-85).

Bazárov, ao compreender o mundo a partir do ponto de vista exclusivo de seu próprio


interesse, expõe a ambivalência entre ideário burguês e feudalismo inscrita na conduta
dos grupos sociais russos do século XIX: ―E, quanto à época, por que eu deveria
depender dela? É melhor que a época dependa de mim‖, afirma Bazárov
(TURGUÊNIEV, 2004, p. 62).

O modo de ser do personagem dá a entrever uma vida marcada pela inação típica dos
niilistas, suplantando o ―espírito positivo‖ comteano apregoado pelo universitário. O
narrador, atento à feição ornamental do positivismo na Rússia de sua época, mostra que
a importação das ideias modernas resultou em anulação do potencial reflexivo, restando
apenas a sedução dos ornamentos.

As ideias eram transformadas em ―signo de distinção‖, para separar os filhos dos pais.
A adesão às perspectivas intelectuais dos grandes centros e de seus nomes de prestígio,
com seus projetos modernizadores, na maioria das vezes era fruto do fascínio que visava
apenas reconhecimento e engrandecimento intelectual.

Podemos encontrar outras contradições no comportamento de Bazárov: nega os valores


aristocráticos, mas hospeda-se na propriedade rural de um aristocrata e desfruta do seu
conforto; recusa o amor romântico, mas apaixona-se; não crê na religião, mas aceita a
extrema unção.

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As contradições supracitadas vão ao encontro dos paradoxos históricos da formação da
Rússia moderna, com as tensões entre as distintas gerações e o descompasso temporal
em que conviviam o pré-moderno e o moderno nos oitocentos. A importância da obra
de Turguêniev está na configuração ficcional de um problema emergente na época e que
até hoje não tem solução: ―A respeito do niilismo, sustentamos a mesma convicção
válida para todos os verdadeiros problemas filosóficos: eles não têm solução, mas
história‖ (VOLPI, 1999, p. 10).

O século XIX, com suas diversas rupturas, ausências e mortes (de Deus, da arte, da
filosofia), foi o século do niilismo. Este artigo mostrou evidências que a apontam para
as origens do niilismo para, a partir daí, esboçar sua genealogia e mostrar as diversas
formas de como o fenômeno foi tratado e interpretado por Turguêniev e Nietzsche.

Diante do problema, as interfaces literatura/filosofia e Turguêniev/Nietzsche têm muito


a nos dizer. Com as possibilidades abertas ao pensamento filosófico pela literatura, a
crítica literária pode ser um contraponto ao niilismo e à indigência intelectual que até
hoje predomina.

Referências

BORBA, Maria Antonieta Jordão de Oliveira. Tópicos de teoria para a investigação do


discurso literário. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2004.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Tradução de Roberto Machado. Rio de
Janeiro: Graal, 2010.
HEIDEGGER, Martin. Nietzsche II. Tradução de Marco Antônio Casanova. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2007.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Tradução de
Pietro Nasseti. São Paulo: Martin Claret, 2001.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Genealogia da moral: uma polêmica. Tradução de
Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

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NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. O Niilismo Europeu: Lenzer Heide. Tradução de
Oswaldo Giacoia Jr. Clássicos da Filosofia: Cadernos de Tradução, Campinas, n. 3, p.
55-61, 2005.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A vontade de poder. Tradução de Marcos Fernandes
e Francisco Moraes. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.
NUNES, Benedito. No tempo do niilismo e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1993.
PECORARO, Rossano. Niilismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
TURGUÊNIEV, Ivan. Pais e filhos. Tradução de Rubens Figueiredo. São Paulo: Cosac
& Naify, 2004.
VOLPI, Franco. O niilismo. Tradução de Aldo Vannuchi. São Paulo: Loyola, 1999.

Recebido em 31/03/2011
Aprovado em 06/05/2011

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