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Vitor Cei
Doutorando em Literatura Comparada – Universidade Federal de Minas Gerais
Resumo: Analisa as ressonâncias do niilismo na obra de Ivan Turguêniev, refletindo sobre sua
constituição histórica, seus valores e conseqüências para a modernidade. O referencial teórico da pesquisa
é o pensamento de Friedrich Nietzsche, filósofo que caracterizou o niilismo como um princípio
desorganizador que arruína as instituições e valores. O nihil (nada) prevalece, gerando ressentimento,
declínio, desnorteamento, incapacidade de avançar e criar novos valores. A leitura das obras de Nietzsche
e Turguêniev há de apontar para as possibilidades abertas ao pensamento filosófico pela literatura.
Palavras-chave: Ivan Turguêniev – Pais e filhos. Friedrich Nietzsche – Filosofia e Literatura. Niilismo –
Tema literário.
Abstract: This paper analyses the resonances of nihilism in the work of Ivan Turguêniev, thinking about
its historical nature, its values and consequences to modernity. The theoretical system of references is
based on Nietzsche‘s philosophy, author that characterizes nihilism as a disorganizer principle that ruins
values and institutions. The nihil (nothingness) prevails, generating resentment, decay, inability to
progress and create new values. The reading of Nietzsche‘s and Turguêniev‘s books can indicate the
possibilities opened to the philosophical thinking by the literature.
Keywords: Ivan Turguêniev – Fathers and sons. Friedrich Nietzsche – Philosophy and Literature.
Nihilism – Literary Theme.
Como ensina Benedito Nunes (autodeclarado híbrido de crítico literário e filósofo), não
se deve aplicar a filosofia ao conhecimento da literatura, na tentativa de uma pretensa
crítica filosófica, tampouco se deve fazer da literatura um instrumento de figuração de
teorias, reduzindo o exercício crítico à paráfrase do pensamento de filósofos. Nunes
propõe, sob o foco prioritário da estrutura narrativa da obra literária, a busca da verdade
da obra enquanto ficção: ―Nada melhor do que o seu modus operandi, o seu como, para
nos dar uma ideia da exigência de verdade que a norteia‖ (NUNES, 1993, p. 198).
O genealogista deve buscar saber de onde provem seu objeto de estudo, traçar a história
de suas mudanças de sentido e apontar para cada emergência de um novo uso do mesmo
termo. É necessário marcar a historicidade dos acontecimentos, contra a tradição
histórica que acredita num desenvolvimento progressivo e linear, buscando sempre a
gênese de um estado original e puro. Maria Antonieta Borba explica que a história,
genealogicamente dirigida, é perspectivista, rejeita a profundidade e traz consigo a
negação da origem:
É certo que, a praticar desse modo a leitura como arte, faz-se preciso algo
que precisamente em nossos dias está bem esquecido – e que exigirá tempo,
até que minhas obras sejam ―legíveis‖ –, para o qual é imprescindível ser
quase uma vaca, e não um ―homem moderno‖: o ruminar... (NIETZSCHE,
1998, p. 15).
Na Rússia oitocentista o termo niilismo surgiu como uma tentativa de definição para
grupos revolucionários em luta contra o czarismo. Era uma palavra em voga, usada por
jornalistas e romancistas da época para designar e denegrir um movimento de rebelião
contra a ordem estabelecida, o atraso, o imobilismo da sociedade e os seus valores.
O romance de Turguêniev, que tem como base o conflito entre gerações, está voltado
para o advento da racionalidade burguesa no período em que a sociedade russa
importava os valores da modernidade européia: ―Uma rebelião contra a ordem
estabelecida, o atraso, o imobilismo da sociedade russa; um conflito entre gerações,
valores, perspectivas; um furor iconoclasta que demole ídolos e antigas certezas‖
(PECORARO, 2007, p. 13).
O olhar com que Turguêniev penetra nos meandros da sociedade russa de seu tempo
mostra a decomposição do sistema feudal, com a permanência da estrutura social
assimétrica e injusta. Prevalece o egoísmo das classes dirigentes e a disparidade das
relações sociais. A narrativa expressa a laceração na qual afundava o mundo no século
XIX, tornando-o uma era de decadência em que ganha primazia o niilismo enquanto
princípio desorganizador que arruína as instituições e valores.
A polêmica em torno de Pais e filhos se deve à sua ambigüidade, visto que o romance
não faz uma defesa explícita da antiga geração frente aos jovens, tampouco enaltece o
niilismo:
Turguêniev lembra nas suas memórias que utilizou o termo não no sentido de
uma reprovação, nem com o intuito de mortificar, mas sim como expressão
precisa e exata de um fato real e histórico. O efeito, porém, não foi o
esperado; e o termo niilista transformou-se em um instrumento de
condenação, em um estigma de infâmia (PECORARO, 2007, p. 15).
Turguêniev caracteriza os niilistas como aqueles que negam tudo aquilo que é fundado
sobre a tradição, sobre a autoridade ou sobre qualquer outra validade definida. O
personagem Bazárov seria o niilista por excelência. Apesar de afirmar que não se dedica
a causa alguma, ele engaja-se num conflito de gerações. Antagonista da velha
aristocracia russa, Bazárov busca uma sublevação e renovação de todos os modos de
vida, pessoal e social, profanando e dissolvendo os valores anteriormente estabelecidos:
Princípios não existem absolutamente, será que você não percebeu isso até
agora? Só existem sensações. Tudo depende delas. [...] Eu, por exemplo:
adoto uma atitude de negação por causa da sensação. Tenho prazer em negar,
o meu cérebro está constituído deste modo, e basta! (TURGUÊNIEV, 2004,
p. 195).
O niilismo incompleto, por sua vez, é aquele em que os novos valores estão ocupando o
mesmo lugar dos anteriores, isto é, preservando o ideal supra-sensível e a crença na
dualidade do mundo. Por exemplo, o homem moderno havia quebrado os ídolos
religiosos em nome da autonomia da razão; entretanto, a humanidade continuou
desvalorizando a vida em nome de valores abstratos e superiores (Bem, Mal, Verdade,
Falsidade, Justiça, Virtude) oriundos da velha metafísica platônica. De certo modo, é o
que acontece com os jovens niilistas russos, que trocam os valores tradicionais pelos
ideiais positivistas.
O niilismo completo revela-se como niilismo ativo, aquele que promove e acelera o
processo do crepúsculo dos ídolos, isto é, a tresvaloração de todos os valores, solapando
os antigos princípios: ―Destruímos porque somos uma força [...] Sim, uma força que não
tem de prestar contas de nada‖, afirma Arkádi (TURGUÊNIEV, 2004, p. 89).
Bazárov e seu discípulo Arkádi buscam um começo radical, um outro caminho a partir
de si mesmos. Entretanto, a narrativa mostra que ambos, em busca desse caminho
próprio, demonstram impotência frente à vida, análoga à impotência da ciência frente a
sentimentos contra os quais a razão não consegue dominar: ―Nossas ações se
fundamentam naquilo que julgamos útil — declarou Bazárov. — Nos tempos atuais, o
mais útil é a negação: nós negamos‖ (TURGUÊNIEV, 2004, p. 84-85).
O modo de ser do personagem dá a entrever uma vida marcada pela inação típica dos
niilistas, suplantando o ―espírito positivo‖ comteano apregoado pelo universitário. O
narrador, atento à feição ornamental do positivismo na Rússia de sua época, mostra que
a importação das ideias modernas resultou em anulação do potencial reflexivo, restando
apenas a sedução dos ornamentos.
As ideias eram transformadas em ―signo de distinção‖, para separar os filhos dos pais.
A adesão às perspectivas intelectuais dos grandes centros e de seus nomes de prestígio,
com seus projetos modernizadores, na maioria das vezes era fruto do fascínio que visava
apenas reconhecimento e engrandecimento intelectual.
O século XIX, com suas diversas rupturas, ausências e mortes (de Deus, da arte, da
filosofia), foi o século do niilismo. Este artigo mostrou evidências que a apontam para
as origens do niilismo para, a partir daí, esboçar sua genealogia e mostrar as diversas
formas de como o fenômeno foi tratado e interpretado por Turguêniev e Nietzsche.
Referências
Recebido em 31/03/2011
Aprovado em 06/05/2011