Você está na página 1de 6

A vida inteira

1. Nina Leen, “Balanças de bebé são raras e só podem


ser compradas com receita médica”, EUA, c. 1945 2.
Horace Bristol, “Remendando as redes”, Japão, c. 1950
3. Fritz Henle, “Remendando as redes”, Nazaré, c. 1950
4. Joe Pazen, “Tenda de venda”, Fátima, c. 1950 5.
Federico Patellani, “Mineiros 
de Carbonia”, Sardenha,
c. 1940 6. Henri Huet, “Vive da caridade pública e da
curiosidade dos turistas”, Phnom Penh, Indochina
(Vietname), 1948

O museu municipal de Vila Franca de Xira iniciou uma


ímpar coleção de fotografia internacional neorrealista

1
texto Jorge Calado (curador da coleção “A Família
Humana”)

Tudo começou com um artigo no Expresso. No outono


de 2018 fui surpreendido em Nova Iorque por cinco (!)
exposições de fotografia italiana cobrindo as três
décadas do neorrealismo: prelúdio, apogeu e
decadência, 1930-1960. Percebi então o esquecimento
a que fora votada a fotografia italiana: o trabalho
pessoal dos fotógrafos acabara abafado pelo seu
envolvimento no cinema. Conhecíamos os nomes de De
Sica, Rossellini, Fellini, etc., mas não os de Mario
Carbone, Federico Pattelani ou Pierluigi Praturion, etc.
(ver Expresso de 29 de dezembro de 2018). Nove meses
depois — o tempo de uma gestação —, por intervenção
da diretora científica, Raquel Henriques da Silva, e com
o decisivo apoio da vereadora da cultura, Manuela Ralha,
e do diretor-geral de cultura, Alexandre Sargento,
começava a formar uma coleção de fotografia
internacional supostamente neorrealista para o Museu
do Neo-Realismo em Vila Franca de Xira. (Escrevo
‘supostamente’ porque não me quero aqui envolver em
discussões estéreis sobre o que é ou não o
neorrealismo.)

Os italianos sempre foram bons na chamada


‘Reconquista do Real’. No princípio do século XX, a ópera
evoluíra do belcanto para o verismo, onde os
personagens não são heróis nem aristocratas mas gente
que luta e trabalha para viver. Até a célebre Floria Tosca
— que começara como pastora — ganha a vida a cantar.
Apertados pelo fascismo e pela guerra, literatura e
2
cinema apropriaram-se do real, em parte estimulados
pelas ideias do guionista e teórico Cesare Zavattini. Ao
mesmo tempo, assistia-se a um renovado interesse pela
etnologia. O próprio fascismo contribuíra, direta e
indiretamente, para a aposta neorrealista. Por um lado,
a imagética da propaganda revoluciona as artes gráficas,
tanto à esquerda como à direita, na Rússia Soviética
como no Mundo Português do Estado Novo; por outro, o
combate ideológico requer uma bandeira, uma imagem
ou uma palavra de ordem: “No Pasarán!”, como gritou
Dolores Ibárruri, ‘La Pasionaria’, em Madrid em 1936.
Ação implica reação, ensinou-nos Newton. As imagens
neorrealistas sempre foram o instrumento mais eficaz
para o desenvolvimento de uma consciência social. A
miséria é a mesma em todo o lado; os horrores da
guerra, também.

Lá como cá e no resto do mundo, o neorrealismo nasceu


à esquerda; idem para o Museu de Vila Franca de Xira.
Ao criar de raiz uma coleção fotográfica para este
museu, quis seguir esse traço de identidade. Inspirado
pelo poeta Carl Sandburg que batizara a mais
importante e universal exposição de sempre, “The
Family of Man”, inaugurada no Museum of Modern Art
de Nova Iorque em 1955 e que circulou por 37 países —
mas não por Espanha, Portugal ou China — dei-lhe o
nome de “A Família Humana”. Nas palavras de
Sandburg, “Só há um homem no mundo e o seu nome é
Todos os Homens. Só há uma mulher no mundo e o seu
nome é Todas as Mulheres. Só há uma criança no mundo
e o seu nome é Todas as Crianças”. O resto era fácil:

3
seguir o compasso completo da vida, as sete idades da
espécie humana, do nascimento à morte, em todos os
continentes. Infância, aprendizagem, namoro e amor,
lazer, trabalho (no campo, no mar, em casa ou na
fábrica), luta e greves, guerra, religião, velhice, doença
e morte.

A decisão ocorreu no momento certo. Dois marchands


nova-iorquinos, amigos de longa data, Katrina Doerner
e David Winter, tinham recentemente adquirido um
histórico arquivo de imprensa com mais de 30 mil fotos
vintage abrangendo as décadas de 1930-60. Deram-me
o privilégio da escolha em primeira mão, e vi-as todas,
uma a uma. Foi assim que descobri o trabalho de Toni
Frissell na Nazaré, de Jean Manzon sobre Amália ou de
Ingeborg Lippman sobre a pesca do atum nas águas do
Algarve. De resto, socorri-me de galeristas europeus e
das pechinchas ocasionais do eBay. O prazer que é
encontrar belas imagens de Fátima por Joe Pazen ou
uma evocativa foto vintage de William Vandivert, o
cofundador esquecido da Magnum em 1947, por menos
de cem euros! Um museu que se preze deve ter
ambições internacionais, pelo menos naquilo que
coleciona; caso contrário, demite-se de uma das suas
missões para se remeter ao provincianismo estreito.
Portugal continua, porém, no cerne deste projeto.

As imagens são como as cerejas: cada uma pede ou


sugere outra, o que ajuda a construir uma narrativa e a
estabelecer laços familiares. É reconfortante enfrentar
crianças nas escolas americanas, no Peru ou no Senegal,
ou observar pescadores em Portugal, Espanha, Itália,
4
Grécia ou Japão e reconhecer semelhanças, para citar
apenas dois núcleos da coleção. Depois, há as
fotografias à volta de outras fotografias. Uma imagem
de David ‘Chim’ Seymour (outro cofundador da
Magnum) da série ‘Crianças da Europa’ levou-me a optar
também por uma foto anónima da tentativa frustrada de
recuperação do corpo de dois fotojornalistas, um dos
quais Seymour, vítimas colaterais da Guerra do Suez em
1956. Num golpe de sorte consegui ainda identificar o
terno retrato (1955) de Roberto Rossellini com Ingrid
Bergman e os três filhos, Robertino, Isabella e Ingrid,
como sendo de Chim.

A literatura e o cinema foram dois esteios do


neorrealismo. Há, pois, lugar para imagens associadas a
filmes marcantes como “As Vinhas da Ira” (1940), de
John Ford, baseado no romance homónimo de John
Steinbeck, e “Stromboli” (1950), de Rossellini, teatro da
paixão vulcânica entre o realizador e a sua estrela. O
livro de Steinbeck — com a história de uma morte e vida
severina antes de tempo — fora queimado pelos
latifundiários ausentes da Califórnia, mas contribuiria
para o Prémio Nobel de Literatura em 1962. (A foto do
escritor a receber o prémio em Estocolmo também já
consta da coleção.) Uma fotografia das raparigas nos
arrozais do rio Pó, por Max Scheler (filho do filósofo
alemão com o mesmo nome), puxou logo por um
fotograma de “Arroz Amargo” (1949), o filme de
Giuseppe de Santis que lançou Silvana Mangano.

A guerra ou os seus efeitos foi, talvez, a primeira


realidade cruel a ser captada pela câmara (por Roger
5
Fenton, na Crimeia, em 1855). A coleção dá conta do
sofrimento da Família Humana durante as Guerras Civil
de Espanha, II Mundial (com uma imagem rigorosa da
ocupação nazi de Paris por Pierre Jahan), Médio Oriente,
Coreia, Vietname, e também a Guerra Colonial
Portuguesa nas frentes de Angola, Moçambique e Guiné
(pretexto para um penetrante retrato de Amílcar
Cabral).

Um novo e penoso realismo começara nos anos 1930


nos EUA com a Grande Depressão, combatida com os
instrumentos do New Deal rooseveltiano. Nada de
medidas avulsas — como agora, por aí — antes criando
agências inovadoras, bem dirigidas, com planos
estratégicos e pondo à cabeça as artes e os artistas!
Lembrado disto, procurei e consegui reunir na coleção
fotos de Jack Delano, Russell Lee e Arthur Rothstein,
figuras maiores da Farm Security Administration. De
resto, há fotografias de autores tão diversos como Bruno
Barbey, Horace Bristol, Ernst Haas, Bert Hardy, Fritz
Henle, Lewis Hine, Nina Leen, Anna Riwkin, Erika Stone,
etc. Sem esquecer a andrógina Annemarie Clarac (ou
Schwarzenbach), íntima dos filhos de Thomas Mann, que
também passou por Lisboa; Carson McCullers dedicou-
lhe os “Reflexos Num Olho Dourado” (1941). À data, “A
Família Humana” já ultrapassou as 160 fotografias de
mais de cem artistas, incluindo 13 mulheres e
englobando 33 países nos seis continentes. Nestes
tempos difíceis e perigosos, a mensagem só pode ser
uma: fotógrafos e povos de todo o mundo, uni-vos!

Você também pode gostar