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ARTIGO DE REVISÃO

ARTIGO
ALESSANDRA DIEHL
DALZIRA DA SILVA
ALINE TAGLIATTI BOSSO

CODEPENDÊNCIA ENTRE FAMÍLIAS DE


USUÁRIOS DE ÁLCOOL E OUTRAS DROGAS: DE
FATO UMA DOENÇA?
CODEPENDENCY IN FAMILIES OF ALCOHOL AND OTHER
DRUG USERS: IS IT IN FACT A DISEASE?

Resumo Abstract
O conceito de codependência, embora muito popular The concept of codependency is very popular in the
no meio clínico do campo das dependências químicas, clinical setting in the field of addiction but continues
segue sendo considerado um constructo muito criticado to be a highly criticized and controversial construct
e controverso no meio científico. Nosso objetivo foi avaliar in the scientific literature. The objective of this paper
o estado da arte sobre o constructo de codependência was to evaluate state-of-the-art information on the
de familiares de usuários de álcool e outras drogas quanto construct of codependency of family members of users
à etiologia e outros possíveis fatores relacionados. Trata- of alcohol and other drugs with regard to etiology and
se de uma revisão da literatura através da busca de other possible related factors. In this literature review,
artigos indexados em bases de dados, publicados nos databases were searched for indexed articles published
idiomas inglês, português e espanhol, utilizando-se os in English, Portuguese, and Spanish, using the keywords
descritores codependência, transtornos relacionados codependency, substance-related disorders, and family.
ao uso de substâncias e família. Foram incluídos 16 A total of 16 articles were included in the review;
artigos nesta revisão, os quais retratam que o conceito according to these articles, the concept of codependency
de codependência segue teorizado e pouco explorado continues to be essentially theoretical and little explored
de forma empírica. Tentativas de escalas de rastreio empirically. Attempts have been made to use screening
foram realizadas sem replicações de estudos de campo. scales, but replication in field studies are lacking.
De uma forma geral, aqueles que se autoidentificam Overall, individuals who self-identify as codependent
como pessoas codependentes, uma vez que recebem report positive benefits – probably because they
suporte, relatam alguns benefícios positivos. O termo, receive support. The term codependency, more than a
mais do que um conceito psicológico de fato validado, validated psychological concept, seems to represent a
parece representar um movimento social que deu social movement that has empowered family members
empoderamento aos membros das famílias de usuários of users of alcohol and other drugs. More field studies
de álcool e outras drogas. Mais estudos de campo sobre a are necessary to achieve the conceptual validation of
validação conceitual da codependência e os fatores a ela codependency, as well as to investigate factors related
relacionados devem ser conduzidos, a fim de corroborar to it. Only then will the real clinical usefulness of this
sua real utilidade clínica e ampliação de evidência da phenomenon be confirmed, and the body of evidence of
existência desse fenômeno. its existence expanded.
Palavras-chave: Codependência, transtornos Keywords: Codependency, substance-related
relacionados ao uso de substâncias, família. disorders, family.

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ALESSANDRA DIEHL1, DALZIRA DA SILVA2, ALINE TAGLIATTI BOSSO2

1
Psiquiatra e educadora sexual. Departamento de Psiquiatria, Universidade Federal de São Paulo
(UNIFESP), São Paulo, SP. Instituto Américo Bairral de Psiquiatria, Itapira, SP. 2 Assistente social.
Especialista em Dependência Química pela UNIFESP, São Paulo, SP. Instituto Américo Bairral de
Psiquiatria, Itapira, SP.

IntRoduÇão propenso à manutenção da dependência química8. A


Vários estudos têm demonstrado que a dependência partir de uma perspectiva de intercâmbio social e da
de substâncias psicoativas e suas consequências são um teoria da aprendizagem, argumenta-se que os tipos de
grave problema de saúde pública em vários locais do estratégias de controle que os codependentes utilizam
mundo, com grande impacto social e econômico para os não são apenas ineficazes, mas eles realmente funcionam
países1, os quais afetam não somente o indivíduo que para reforçar a probabilidade do abuso de substâncias
usa álcool e drogas, mas também todo o seu núcleo ser repetido no futuro, principalmente através dos
familiar2-4. tipos de comunicação negativa entre os envolvidos8,10.
Em termos da proporção dessa interferência familiar do Argumenta-se que a natureza paradoxal da estrutura
consumo de álcool e drogas, chama a atenção o fato de de poder dentro do relacionamento do codependente
que mais de 25 milhões de indivíduos brasileiros habitam e seus familiares usuários de álcool e/ou drogas coloca
com um membro usuário de substâncias psicoativas, limites sobre os tipos de estratégias de controle que
segundo informações do Levantamento Nacional de codependentes podem utilizar em suas tentativas de
Famílias de Dependentes Químicos (amostra com 3.153 extinguir o comportamento do consumo de substâncias
famílias), cujas informações foram divulgadas em 2013 do seu parceiro ou de sua parceira10.
pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Apesar de a terminologia codependência ter
Os dados dessa pesquisa confirmam a interferência da adquirido muito rapidamente um espaço no campo das
vulnerabilidade social presente nos lares, tanto para dependências químicas11, ser amplamente utilizada e
um indivíduo como para todo o núcleo familiar, visto extremamente popular, observa-se, ainda nos dias atuais,
que, para cada dependente, há outras quatro pessoas que a mesma segue sendo considerada um constructo
convivendo com o problema dentro de casa5. muito criticado e controverso no meio científico.
Assim sendo, a família exerce um papel crucial tanto Isso porque parece existir uma carência de pesquisas
para o campo preventivo como para o domínio das destinadas a promover a validação da codependência
intervenções terapêuticas associadas aos transtornos enquanto conceito ou constructo psicológico, existindo
decorrentes do consumo de álcool e outras substâncias mais no campo teórico do que no empírico, que possa
psicoativas. Isso porque ora a família pode induzir riscos, corroborar de fato sua utilidade clínica e a ampliação de
ora pode servir como um sistema encorajador e protetor, evidência da existência desse comportamento, o qual foi
tanto na iniciação e experimentação de substâncias primeiramente descrito em esposas de dependentes de
psicoativas como no processo de recuperação para álcool12-14.
aqueles que já adoeceram devido ao consumo6,7. Muitas outras definições de codependência vêm
A busca pelo entendimento do impacto das relações sendo realizadas, como por exemplo: a codependência
entre familiares de dependentes químicos, de como elas como um sistema de vida que emerge em famílias
se constroem e, a partir delas, quais são os resultados disfuncionais de origem, produzindo uma estagnação
gerados deu origem, em meados dos anos 70, a uma no desenvolvimento e nos resultados dos processos
tentativa de definir um fenômeno comportamental de interação dessa família; como uma pessoa que
caracterizado por uma extrema dedicação em cuidar, tem uma reação exagerada ao exterior e com baixa
bem como de “salvar” o membro da família envolvido sensibilidade interna para solucionar problemas8; como
no consumo de substâncias psicoativas, os quais um comportamento de uma pessoa essencialmente
chegam a adquirir características e comportamentos tão “normal” que faz um esforço para se ajustar a um
disfuncionais quanto aqueles observados pelo membro cônjuge e a um evento de vida estressante; ou, ainda,
da família dependente de álcool e outras drogas8. como um padrão de dependência dolorosa sobre os
Tal fenômeno foi denominado de codependência9. O outros, comportamentos compulsivos na busca de
constructo inicialmente foi utilizado para descrever a aprovação, para tentar encontrar segurança, autoestima
pessoa, parente ou amigo, que tem uma relação direta e identidade. Também tem sido definida como um padrão
e íntima com um dependente de álcool e o torna mais de comportamento atrelado a traços de personalidade

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claramente identificáveis de um membro da família natural de cuidar dos outros. Também critica o fato de
que tem um dos entes afetado por dependência de que cuidar da parceria é de algum modo responsável pela
substâncias psicoativas15. Outra definição encontrada na manutenção do “comportamento adicto” do outro18.
literatura e bastante utilizada por profissionais da área é Outros críticos argumentam que o modo como este
que se trata de uma doença primária presente em todos fenômeno vem sendo conceituado e, sobretudo, utilizado
os membros da família que têm um dependente químico pelos conselheiros em dependência química e grupos
em seu seio, com manifestações psicossomáticas, o de mútua ajuda tende a colocar um holofote sobre a
que pode muitas vezes ter um prognóstico pior do questão, de forma a patologizar um comportamento
que a própria dependência química. Codependência interpessoal ou de “medicalizar” um comportamento
também se define como uma característica emocional dito “desviante”, principalmente de mulheres (esposas de
e psicológica do comportamento que ocorre como dependentes de álcool), diminuindo a identidade feminina
consequência de um conjunto opressivo de regras que e reforçando uma cultura sexista e de vitimização, o
impedem a manifestação aberta de sentimentos e o que, em geral, tende a aumentar a estigmatização da
diálogo sobre problemas pessoais e interpessoais14. condição, sobretudo das mulheres esposas de usuários
Também o termo codependência foi definido como uma de álcool e outras drogas19,20.
condição para o vínculo que se manifesta pela tendência Por outro lado, o modelo de codependência praticado
excessiva em “carregar” ou cuidar de outros. Trata-se e amplamente difundido pelos grupos de mútua
de um padrão na realização de autonomia e identidade. ajuda destinados a acolher familiares de dependentes
O conceito de codependência tem sido usado também químicos, como, por exemplo, o Al-Anon, Nar-Anon e o
para descrever um padrão exagerado de dependência Alateen, tem se mostrado uma ferramenta importante21-
que faz com que o indivíduo, em detrimento de si 24
, que promove segurança, estabilidade e esperança
mesmo, acabe desequilibrando sua própria vida pessoal, às famílias cujos membros são portadores da síndrome
familiar, de trabalho e áreas sociais, com prejuízo de sua de dependência ao álcool. Além disso, tende a fornecer
própria identidade16. O codependente, em geral, tende a suporte social e eficácia no potencial para mudar o
perder o controle de sua própria vida e de seus limites, comportamento do bebedor e do uso de drogas25-29.
investindo toda a sua energia em ser útil e pertencer à Portanto, justifica-se a importância de conduzir uma
vida do outro8. revisão da literatura na tentativa de verificar qual é o
Ao mesmo tempo em que muitas tentativas de estado da arte tanto do conceito quanto da etiologia
definições foram formuladas, resultados empíricos e de outros fatores relacionados ao constructo
adquiridos através da investigação científica têm codependência entre familiares de usuários de álcool e
levantado dúvidas sobre a validade do conceito e do outras drogas, sendo este o objetivo deste estudo.
constructo17. O psicólogo Dr. Robert Westermeyer,
em texto de publicação não indexada, fez uma crítica Métodos
bastante severa ao conceito de codependência em artigo Trata-se de uma revisão da literatura realizada através
que intitulou “The codependency idea: when caring da busca de artigos científicos nas bases de dados
becomes a disease”, o qual, na tradução literal quer dizer LILACS, MEDLINE, PubMed e SCIELO utilizando os
“A ideia da codependência: quando cuidar tornou-se uma seguintes descritores combinados: no idioma português,
doença”. Ele afirma que o termo codependência para ele codependência, família, transtornos relacionados ao
é uma das “mais confusas e iatrogênicas ideias no reino uso de substâncias; no idioma inglês, codependency,
da psicologia clínica”. O autor justifica reforçando o que substance-related disorders, family; e em espanhol,
outros autores já haviam mencionado com relação ao combinados e separados com codependencia, trastornos
fato de não haver estudos empíricos suficientes sobre relacionados con sustancias, familia. Foram selecionados
a temática e a carência de cientificidade avaliando essa artigos publicados na década de 1980, quando o conceito
condição e a terminologia. Ele critica dizendo que a ideia de codependência começou a ser difundido, até 2016,
da codependência tende a patologizar uma tendência nos idiomas português, inglês e espanhol, indexados nas

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1
Psiquiatra e educadora sexual. Departamento de Psiquiatria, Universidade Federal de São Paulo
(UNIFESP), São Paulo, SP. Instituto Américo Bairral de Psiquiatria, Itapira, SP. 2 Assistente social.
Especialista em Dependência Química pela UNIFESP, São Paulo, SP. Instituto Américo Bairral de
Psiquiatria, Itapira, SP.

bases de dados mencionadas. Foram utilizados como A busca de artigos foi realizada no período de agosto de
critérios de inclusão: artigos que retrataram aspectos 2015 a julho de 2016.
relacionados ao termo codependência em usuários de
substâncias psicoativas e algum envolvimento de análise REsultAdos
de famílias. Foram utilizados como critérios de exclusão: Foram rastreados potenciais 55 artigos, sendo
artigos que versavam sobre outras morbidades que não incluídos nesta revisão 16 artigos que preencheram os
a dependência de substâncias, como, por exemplo, jogo critérios de inclusão e exclusão mencionados para esta
patológico ou dependência de sexo; artigos que não revisão8,9,14,17,30-41. A Tabela 1 mostra os artigos incluídos,
tivessem o abstract nos idiomas mencionados; e artigos suas respectivas metodologias e os principais achados e
que avaliaram codependência em profissionais da saúde. comentários dos estudos avaliados.

Tabela 1 - Metodologia e principais achados dos estudos selecionados sobre codependência entre familiares de
usuários de álcool e outras drogas (2016)
Autores Ano Metodologia Principais achados Comentários
Knapek & 2014 Revisão da literatura - A codependência varia num espectro - Homens também podem
Kuritárné de gravidade entre psicopatologia se tornar codependentes.
Szabó14 da personalidade, dependência - Condição sub-
comportamental ou “comportamento reconhecida.
feminino excessivo”. - Pode cursar com
- Etiologia ligada a hipóteses de insuficiência sintomas depressivos e
do córtex pré-frontal para inibir respostas mascarar a necessidade
empáticas, multiplicidade de experiências de receber atenção
aversivas em uma família disfuncional, também para a
alterações na percepção do papel de codependência.
mulher.
Noriega et al.30 2008 Estudo de corte - 25% da amostra foi positiva para
transversal com 845 codependência.
mulheres - As mulheres com um roteiro cultural
de submissão foram oito vezes mais
propensas a desenvolver codependência
do que aqueles sem essa programação.
Fatores associados a mais chance de
codependência: parceiro com dependência
de álcool, pai com problemas de álcool,
maus tratos físicos e sexuais pelo parceiro e
história de maus tratos emocionais.
Dear & 2005 Revisão de quatro A validade do constructo foi encontrada nos
Roberts31 estudos da aplicação subitens da escala e demostraram associações
da escala Holyoake significativas com outras variáveis psicológicas
Codependency Index e demográficas.

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Autores Ano Metodologia Principais achados Comentários


Rotunda et al.32 2003 Estudo de corte A maioria dos pacientes e parceiros relataram
transversal com 42 que o parceiro assumiu tarefas ou deveres do
indivíduos dependentes dependente de álcool em algum momento
de álcool e seus durante a relação, bebeu ou usou outras
familiares utilizando um drogas com o paciente e mentiu ou deu
instrumento chamado desculpas para os outros para encobrir o
The Behavioral Enabling bebedor.
Scale
Harkness 33
2003 Estudo piloto com O comportamento codependente tende a
amostra heterogênea amplificar a relação entre a família de origem e
de homens e mulheres os problemas médicos crônicos.
Harkness34 2001 Estudo piloto de Não houve associação significativa que
corte transversal com suporte presença de dependência de
pequena amostra de substância na estrutura intrafamiliar ou o
famílias que convivem desenvolvimento de codependência entre
com dependência de seus membros.
substâncias
Nisikawa et 1999 Estudo de corte Equilíbrio entre coesão familiar e capacidade O envolvimento excessivo
al.35 longitudinal com 1 de adaptação familiar esteve relacionado com das esposas com os
ano de seguimento maiores taxas de abstinência do parceiro. problemas de álcool dos
com 105 esposas de maridos não levou à
dependentes de álcool; abstinência dos mesmos.
87 responderam ao Não houve diferença
seguimento entre a frequência de
participação em grupos de
apoio de familiares para a
manutenção da abstinência
do membro da família
afetado pelo alcoolismo.
Teichman & 1996 Estudo de corte Houve mudanças no nível de codependência As associações não foram
Basha36 transversal em e nas percepções de suas relações familiares significativas.
três comunidades entre o início e as fases iniciais e tardias do
terapêuticas de Israel tratamento dos residentes.
Hinkin & 1995 Estudo de corte Os resultados revelaram níveis
Kahn37 transversal com significativamente maiores de sintomatologia
97 mulheres que psicológica entre os indivíduos que convivem
conviviam com algum com algum dependente de álcool e têm uma
dependente de álcool história familiar de alcoolismo, os quais foram,
em parte, consistentes com a sintomatologia
hipotética de codependência.
Miller17 1994 Artigo de comentários O entendimento do campo da codependência
críticos e discussão e sua capacidade de ajudar o cônjuge são
do autor sobre alguns limitadas, a menos que outras conceituações
dos problemas do possam ser consideradas.
modelo de doença de
codependência

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1
Psiquiatra e educadora sexual. Departamento de Psiquiatria, Universidade Federal de São Paulo
(UNIFESP), São Paulo, SP. Instituto Américo Bairral de Psiquiatria, Itapira, SP. 2 Assistente social.
Especialista em Dependência Química pela UNIFESP, São Paulo, SP. Instituto Américo Bairral de
Psiquiatria, Itapira, SP.

Autores Ano Metodologia Principais achados Comentários


Hawks et al.38 1994 Estudo de corte O número de problemas de comportamento As associações de
transversal com 293 de adolescentes esteve associado com atitude uso de substâncias
adolescentes e seus perseguidora dos pais e com sofrimento. e comportamentos
pais problemáticos com
codependência não foram
moderadas por preferência
religiosa ou por ser um
membro de uma religião que
prega a abstinência.
O’Gorman9 1993 Revisão narrativa - Codependência como um aprendizado no
exploratória da desamparo.
literatura - Empoderamento necessário para aqueles
que crescem em famílias disfuncionais.
Izquierdo8 2002 Revisão da literatura Conceituada como uma doença primária, ou Etiologia multifatorial.
com descrição de uma característica de personalidade, ou uma
uma metodologia de resposta a uma situação de stress como forma
tratamento baseado de cuidar.
na psicoterapia
interpessoal
Hernández 2008 Revisão narrativa da A codependência está fundamentada na
Castañón & literatura divisão de gêneros.
Villar Luis39
Blanco40 2013 Estudos de casos Resultados dialogam com a questão da
de mulheres resiliência e responsabilidade pela sua busca
codependentes que de autonomia.
frequentam grupos de
autoajuda e sofreram
violência
Bortolon et 2016 Estudo de corte Mães e esposas com menos de 8 anos
al.41 transversal avaliando de educação têm mais sintomas de
550 famílias de codependência. Quanto maior o nível de
usuários de álcool e codependência imposta ao familiar, maior
outras drogas a carga significativa sobre o bem-estar
físico e emocional dos afetados, resultando
em problemas de saúde, reatividade,
autonegligência e responsabilidades
adicionais.

dIsCussão aos usuários de substâncias psicoativas e popularizado


Através da análise dos estudos incluídos nesta revisão, entre os grupos de mútua ajuda23,24 para familiares
pode-se observar uma heterogeneidade de estudos cujo algum dos membros tem problemas com álcool e
com diferentes métodos e medidas de desfechos, drogas, segue sendo um constructo pouco explorado
onde o conceito de codependência segue um modelo de forma empírica e não pode ainda ser considerado de
teorizado. Isso significa dizer que apesar de amplamente fato uma doença14,18.
utilizado na prática clínica de muitos serviços de atenção

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Apenas os estudos de Dear & Roberts31 demonstraram codependência, estariam questões psicodinâmicas
validade do constructo, mesmo com amostras pequenas relacionadas principalmente aos tipos de vinculações
de sujeitos avaliados. Hinkin & Kahn37 e Bortolon et afetivas durante a infância e a manifestação de uma
al.41 mostraram níveis significativamente maiores de forma sutil de direito narcisista8.
sintomatologia psicológica entre os indivíduos que Miller questiona a capacidade de o conceito de fato
convivem com algum dependente de álcool e têm ajudar os cônjuges identificados como codependentes e
uma história familiar positiva de alcoolismo, os quais a necessidade de ampliação de outras conceituações17.
sugerem que os achados são parcialmente consistentes No entanto, de uma forma geral, aqueles que se
com a sintomatologia hipotética descrita para a autoidentificam como codependentes, uma vez que
codependência31,41. recebem suporte, relatam alguns benefícios com relação
Além disso, percebe-se que os conceitos existentes à mudança de comportamento8,36,40. Estes achados já
de codependência dentro de um modelo de doença foram observados em outros estudos que avaliaram
parecem sugerir que uma vez codependente, para sempre desfechos semelhantes e positivos nos grupos Al-
codependente em recuperação, não havendo uma clara Anon22-25.
noção de cura. Outras abordagens psicológicas de Entre as principais limitações metodológicas desta
famílias de dependentes químicos podem compreender revisão, está o fato de que a grande maioria dos
que existe uma diferença entre ser codependente e estudos não utilizou pesquisa de campo com amostras
estar codependente, havendo uma compreensão de representativas que possam de fato ser generalizadas.
que tal condição faz parte de um sistema familiar e que Os estudos de revisão, por sua vez, apoiaram-se também
é possível transitar para uma condição de melhora e em bibliografia e referências de construções teóricas
remissão de sintomatologia6,7. oriundas de livros (incluindo livros desenvolvidos com a
Tentativas de escalas de rastreio para a codependência característica de serem de autoajuda), capítulos de livro
utilizaram a Holyoake Codependency Index, como no e textos não indexados.
estudo conduzido por Dear & Roberts31, que mostraram Assim sendo, o estado da arte atual quanto ao conceito,
validade do construto encontrada nos subitens da escala origem e fatores relacionados à codependência entre
e demostraram associações significativas com outras os usuários de álcool e outras drogas e seus familiares
variáveis psicológicas e demográficas. No entanto, a permanece sujeito a críticas e ceticismo.
replicação da utilização dessa escala em estudos de
campo com amostras maiores não foram observadas em Conclusão
outras pesquisas31. Mais estudos de campo sobre a validação conceitual da
O’Gorman sugere que o termo “codependência”, codependência e os fatores a ela relacionados devem ser
mais do que um conceito psicológico de fato validado, conduzidos, a fim de corroborar sua real utilidade clínica
parece representar uma necessidade de identidade do e ampliação de evidência da existência desse fenômeno
movimento social iniciado na década de 1970 e que e, por conseguinte, a inserção do conceito dentro de uma
serviu para empoderar os membros das famílias de ótica de apoio e suporte aos indivíduos dependentes de
usuários de álcool e outras drogas9. substâncias psicoativas e seus familiares.
Knapek et al. sugerem que a origem da chamada
codependência é multifatorial e especulam algumas Artigo submetido em 11/07/2016, aceito em 25/07/2016.
hipóteses, tais como: a insuficiência do córtex pré- Os autores informam não haver conflitos de interesse
frontal para inibir respostas empáticas, multiplicidade associados à publicação deste artigo.
de experiências aversivas em uma família disfuncional, Fontes de financiamento inexistentes.
abuso emocional e negligência e alterações na percepção Correspondência: Alessandra Diehl, Rua Borges Lagoa,
do papel da mulher do dependente químico14. Entre 570, Vila Clementino, CEP 04038-020, São Paulo, SP.
outras causas aventadas para o desenvolvimento da Tel./Fax: (11) 5571.7254. E-mail: alediehl@terra.com.br

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Psiquiatra e educadora sexual. Departamento de Psiquiatria, Universidade Federal de São Paulo
(UNIFESP), São Paulo, SP. Instituto Américo Bairral de Psiquiatria, Itapira, SP. 2 Assistente social.
Especialista em Dependência Química pela UNIFESP, São Paulo, SP. Instituto Américo Bairral de
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42 revista debates em psiquiatria - Jan/Fev 2017

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