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“A graça de DeusSalvador

suficiente, necessária para nós


Meditação do P. Giacomo Tantardini
Com essas palavras, Giovanni Battista Montini, em suas notas sobre as
Cartas de São Paulo, escritas quando ainda jovem sacerdote, sublinha a
experiência e a mensagem do Apóstolo

Agradeço a quem me convidou para vir a esta beta cidade de Ortona,


onde, na Catedral, está preservado o corpo do apóstolo Tomé. Agradeço
também a sua excelência dom Carlo Ghidelli, por sua presença neste en-
contro.
Não tenho a competência específica para falar de São Paulo. O que
conheço de Paulo vem simplesmente da leitura de suas Cartas, em particu-
lar a leitura que fazemos na santa missa e na oração do breviário, mas
creio que isso seja o mais importante. Paulo VI, num discurso proferido
num congresso de exegetas sobre a ressurreição de Jesus, citando Santo
Agostinho, dizia que, para compreender a Escritura, “praecipue et
maxime orent ut intelligant” , a coisa “mais importante e principal é rezar
para entender”.
Assim, na oração podemos receber o dom de intuir a experiência que
fez Paulo, a experiência de ser amado por Jesus. Ao dar início ao Ano
Paulino, o papa Bento XVI disse que Paulo é um nada amado por Jesus
Cristo. “Eu nada sou”, diz o próprio Paulo ao final da Segunda Carta aos
Coríntios (2Cor 12,11), e, na Carta aos Gálatas: “Amou-me e se entregou
a si mesmo por mim” (Gl 2,20).
A nós, infinitamente distantes do apóstolo, pode acontecer também a
mesma experiência, a mesma comunhão de graça, porque a comunhão dos
santos é real. E é essa identidade de experiência, a experiência de sermos
gratuitamente amados por Jesus Cristo, que faz as palavras do apóstolo
reviverem, que pode tornar Paulo tão próximo, tão chegado, tão amigo,
tão familiar.
Eu gostaria de começar lendo algumas frases ditas pelo papa Bento
XVI no Ângelus de domingo 25 de janeiro. Este ano, a festa da conversão
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de São Paulo caiu num domingo, e o Papa, explicando o encontro de
Saulo com Jesus no caminho para Damasco (o que lemos também na
missa de hoje, nos Atos dos Apóstolos), disse estas palavras que me
surpreenderam e confortaram, e que eu reli muitas vezes: “Naquele
momento [quando encontrou Jesus:“Eu sou Jesus, a quem tu estás Ano Paulino
perseguindo” (At 9,5)] Saulo compreendeu que a sua salvação [podemos
até dizer a sua felicidade, pois o reflexo humano da salvação é a
felicidade, o reflexo humano da Sua graça é o prazer pela Sua graça] não
dependia das boas obras levadas a cabo segundo a lei [fiquei muito
Meditação de P. Giacomo Tantardini
impressionado com esse adjetivo, boas. Boas obras, O Papa quis sublinhar
que a salvação não depende das boas obras, realizadas segundo a lei,
obras tão boas como boa e santa é a lei(cf.Rm 7,12)], mas do fato de que Ortona (Chieti), Itália
Jesus tinha morrido também por ele, o perseguidor [“Amou-me e se
entregou a si mesmo por mim” (01 2,20)], e tinha, e continua,
ressuscitado”. A outra palavra que me impressionou foi esse verbo no
presente: “Tinha, e continua, ressuscitado”. 1º de Maio de 2009
Este ano, Bento XVI proferiu vinte meditações sobre Paulo nas
audiências de quarta-feira. Uma dessas meditações, talvez a mais bela, a
décima primeira, trata da fé de Paulo na ressurreição do Senhor.
Comentando o capítulo 15 da Primeira Carta aos Coríntios, o Papa
sublinhou que Paulo transmite aquilo que, por sua vez, recebeu (cf.lCor
15,3), ou seja, que “Cristo morreu por nossos pecados, segundo as
Escrituras. Foi sepultado, ressuscitou ao terceiro dia, segundo as
Escrituras. Apareceu a Cefas, e depois aos Doze” (lCor 15,3-5). A
ressurreição de Jesus é um fato que ocorreu num momento preciso do
tempo, e Aquele que ressuscitou, naquele preciso momento, está vivo
hoje, neste momento. Ressuscitou e, portanto, está vivo no presente. (Extraído da Revista 30 Dias nº6/7 anode2009)
A conversão de Paulo, segundo o Papa, está nessa passagem. A
passagem da consideração de que a salvação dependia de suas boas obras,
realizadas segundo a lei (a lei é a lei de Deus, a lei são os dez
mandamentos de Deus), para o simples reconhecimento de que a

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sofremos toda espécie de tribulação: por fora, lutas; por dentro, salvação era e é a presença de um Outro. Era e é a presença de Jesus.
temores” (2Cor 7,5ss). Ainda no Ângelus de domingo 25 de janeiro, o papa Bento XVI, (e isto
Como é verdade! “Entre as perseguições do mundo e as consolações de chamou minha atenção, também porque o rabino-chefe de Roma, Riccar-
Deus avança, peregrina, a Igreja”, diz a Lúmen gentium. Santo Agostinho, do Di Segni, por quem tenho grande estima e que posso chamar amigo de
na passagem da De civitate Dei de que é extraída essa frase, escreve que 3ODias, salientou essa observação do Papa), disse que não poderíamos
as perseguições do mundo vêm em primeiro lugar de dentro da Igreja. Até falar propriamente de uma conversão de Paulo, pois Paulo já acreditava
porque as perseguições do mundo são, antes de mais nada, nossos pobres no Deus único e verdadeiro e era “irrepreensível” no que concerne à lei de
pecados, que fazem sofrer o coração de quem é amado por Jesus e quer Deus. Ele mesmo o diz na Carta aos Filipenses (3, 6).
bem a Jesus. A conversão de Paulo (e permitam-me aqui retomar as palavras que
Continua Paulo: “Mas aquele que consola os humildes, Deus, conso- Santo Agostinho usa para indicar sua própria conversão) é simplesmente a
lou-nos pela chegada de Tito. E não somente pela sua chegada, mas tam- passagem da sua dedicação a Deus para o reconhecimento do que Deus
bém pelo consolo que recebeu de vossa parte”. Paulo, que em Trôade não cumpriu e cumpre em Jesus.
tinha tido forças para anunciar o Evangelho, é confortado com a chegada Agostinho descreve assim a sua conversão: “Quando li o apóstolo
de Tito, também porque Tito lhe fala do afeto que as pessoas de Corinto Paulo [e logo depois - pois nem ler as Escrituras é suficiente -
têm por ele. acrescenta:] e minhas feridas foram tocadas por vossos dedos e foram por
“A esta consolação pessoal sobreveio uma alegria maior ainda: a de eles curadas, discerni perfeitamente a diferença que havia inter
vermos a alegria de Tito” (2Cor 7,13). Porque não basta lembrar o afeto praesumptionem et confessionem / entre a dedicação e o reconhecimento”.
de pessoas distantes, se quem fala desse afeto não está ele mesmo alegre, Praesumptio não indica a princípio uma coisa ruim. Com o tempo é que
contente, no presente. descamba para uma presunção ruim; mas, a princípio, indica a tentativa
Quando vou rezar no túmulo de Paulo na Basílica de São Paulo Fora do homem de alcançar o ideal bom que intuiu. A conversão cristã é a
dos Muros, em Roma, de joelhos, repito sempre um hino: “Pressi passagem dessa tentativa do homem de realizar o bem (as boas obras,
malorum pondere, te, Paule, adimus supplices / Oprimidos pelo peso de como dizia o papa Bento XVI) para o simples reconhecimento da
tantas contrariedades [em primeiro lugar, de nossos pobres pecados], vi- presença de Jesus. Da praesumptio, dedicação, à confessio,
mos a ti, ó Paulo, suplicantes /[...] quos insecutor oderas defensor inde reconhecimento. A confessio, o reconhecimento, é como quando a criança
amplecteris / [...] aqueles que tu, quando eras perseguidor, odiaste, e diz: “Mamãe”. Como quando a mãe vem ao encontro da criança e esta lhe
agora corno defensor abraças”. Nesse abraço, nesse sermos amados por diz: “Mamãe”.
Jesus, também por intermédio dos amigos de Jesus, podemos repetir:“A A conversão cristã, para Agostinho e para Paulo, é (permitam-me usar
amizade é uma virtude, mas sermos amados não é uma virtude, é a esta imagem de Dom Giussani, que, a meu ver, não tem equivalente) a
felicidade”. passagem do entusiasmo da dedicação ao entusiasmo da beleza; do
entusiasmo da nossa dedicação, que em si é bom, ao entusiasmo
despertado por uma presença que atrai o coração, uma presença que se
deixa encontrar gratuitamente e gratuitamente se deixa reconhecer. Paulo
não fez nada para encontrá-Lo. O fato de Ele vir gratuitamente ao nosso

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encontro realiza a passagem da nossa dedicação para a beleza da Sua (cf. Hb 2,15) com os argumentos de sabedoria, com os nossos
presença, que se deixa reconhecer por atração. E não existe contradição discursos. O medo da morte é vencido quando Jesus, agindo no presente,
entre dedicação e reconhecimento. Giussani diz simplesmente que “o se dá a reconhecer vivo. Jesus demonstra ser real, estar vivo, quando se
entusiasmo da dedicação é incomparável ao entusiasmo da beleza”. E o mostra. Quando mostra a Sua ação, quando mostra a Sua força. “Dando
mesmo termo que Santo Agostinho emprega quando descreve a relação uma prova totalmente Sua”, escreve Schlier, que experimentamos “como
entre a virtude dos homens e os primeiros pequenos passos de quem põe a realidade tangível”.
esperança na graça e na misericórdia de Deus. Concluo com as palavras de Giovanni Battista Montini, em suas notas
Poderíamos também dizer que, quando temos a graça de viver a mesma sobre as Cartas de São Paulo, escritas em Roma quando era ainda um jo-
experiência que Paulo, viveu, uma experiência idêntica à dele, mesmo vem sacerdote, entre 1929 e 1933: “Ninguém mais que ele [Paulo] sentiu
infinitamente distante dele, é como se todas as palavras cristãs, a palavra a insuficiência humana e reconheceu e exaltou a ação livre, por si só sufi-
fé, a palavra salvação, a palavra igreja, deixassem transparecer a iniciativa ciente, necessária para nós, da graça de Deus salvador”. É belíssimo!
de Jesus Cristo. É Ele que desperta a fé. A fé é obra Sua. É Ele que salva. Livre:“Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi” (lo
É Sua iniciativa doar a salvação. É Ele que constrói Sua igreja. 15,16). Por si só suficiente: “Basta-te a minha graça” (2Cor 12,9).
“Aedificabo ecclesiam meam” (Mt 16,18). Aedificabo é um futuro: Necessária para nós “Sem mim, nada podeis fazer” (lo 15,5).
“Edificarei minha igreja” sobre a profissão de fé de Pedro, sobre a graça E Montini acrescenta mais uma frase, comovente, se pensarmos nas hu-
da fé doada a Pedro (cf. Mt 16,18). É Ele que edifica pessoalmente, no milhações que ele também sofreu: “Ele [Paulo] sentiu aversão por sua
presente, a Sua Igreja sobre um dom Seu. presença ‘contemptibilis’ [desprezível]”.
Corno é bonito dizer as palavras cristãs mais simples, a palavra fé, a “Praesentia corporis infirma [escreve na Segunda Carta as Coríntios,
palavra esperança, a palavra caridade, e perceber que essas palavras 10, 10] / Uma vez presente, é um homem fraco / et sermo contemptibilis/
indicam uma iniciativa d’Ele, permitem vislumbrar um gesto Seu, a Sua e a sua linguagem é desprezível”./“Ele sentiu aversão por sua presença
ação. Como experimentou Santa Teresinha do Menino Jesus: “Quando contemptibilis. Experimentou depressões de espírito desoladoras”.
sou caridosa, é só Jesus que age em mim”. Uma expressão dessa humanidade tão fraca de Paulo se encontra em
Nós, sacerdotes, na segunda semana depois da Páscoa, lemos no 2Cor 2,12: “Cheguei então a Trôade para lá pregar o evangelho de Cristo,
breviário as cartas que Jesus envia às sete igrejas, no livro do Apocalipse. e, embora o Senhor me tivesse aberto uma porta grande [portanto, era
Numa dessas cartas, Jesus diz: “Não renegaste a minha fé” (Ap 2,13). A possível para ele anunciar o Evangelho de Cristo, não tive repouso de
minha fé. É a fé de Jesus. espírito, pois não encontrei Tito, meu irmão. Por conseguinte, despedi-me
“Gratia facit fidem”. Como é simples e bela essa expressão de Santo deles e parti para a Macedônia”. Paulo também não tem forças para anun-
Tomás de Aquino! É a graça que cria a fé. É Ele que se deixa reconhecer. ciar o Evangelho, se não possui o conforto da graça do Senhor, que brilha
“Ninguém pode vir a mim se o Pai não o atrair” (Jo 6,44 e 65), diz Jesus. refletida no rosto de uma pessoa querida. Querida simplesmente por esse
E Santo Agostinho comenta: “Nemo venit nisi tractus/ Ninguém vem [a reflexo de graça.
Jesus], se não é atraído”. A fé é iniciativa Sua. A salvação é iniciativa E depois continua: “Quando chegamos à Macedônia, nossa carne
Sua. É iniciativa Sua a Sua Igreja. [nossa pobre humanidade] não teve repouso algum, mas

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Como isso é importante! A luz da Igreja é apenas uma luz refletida. Permitam-me contar-lhes um de meus primeiros encontros com Dom
“Lúmen gentium cum sit Christus/ É Cristo a luz dos povos”. A Igreja Giussani. A oportunidade para esse encontro me foi dada pelo fato de ter
reflete essa Sua luz como num espelho. Uma das frases mais belas de conhecido Angelo Scola, o atual patriarca de Veneza, na época do
Paulo, muito valiosa para mim, diz: “E nós todos que, com a face seminário, em Venegono. Foi ele que me levou a encontrar Dom
descoberta, refletimos como num espelho a glória do Senhor, somos Giussani. Ainda me lembro daquele encontro em Milão. Giussani falava a
transfigurados nessa mesma imagem [o reflexo de Jesus é eficaz: muda a um grupo de jovens. A certa altura, perguntou: “O que é que nos põe em
vida], cada vez mais resplandecente, pelo Espírito do Senhor” (2Cor relação com Jesus Cristo? O que é que, agora, nos põe em relação com
3,18). Jesus Cristo?”. Alguns responderam: “A Igreja”, “a comunidade”, “a
Paulo anuncia o que recebeu, o que o próprio Jesus Cristo testemunhou nossa amizade”, etc. Depois de todos esses depoimentos, Giussani repetiu
a Seus apóstolos. a pergunta: “O que é que nos põe em relação com Jesus Cristo?”, e em
Faço uma segunda observação a respeito do anúncio de Paulo. Esta seguida deu ele mesmo a resposta:
coisa belíssima também pode ser lida na Primeira Carta aos Coríntios “O fato de que Ele ressuscitou”. Isso não esquecerei jamais! “O fato que
(2,lss). O anúncio de Jesus traz consigo a prova da sua verdade. A questão Ele ressuscitou”. Porque, se não tivesse ressuscitado, se não estivesse
não é que nós demonstremos que Jesus está vivo. É o próprio Jesus que, vivo, a Igreja seria uma instituição meramente humana, como tantas
mostrando-se, agindo, demonstra estar vivo. Do contrário, aumentamos a outras. Um peso a mais. Todas as coisas meramente humanas, no final, se
dúvida, nossa e dos outros. É Jesus que, agindo, e portanto mostrando-se, transformam num peso.
demonstra estar vivo. A demonstração da verdade do cristianismo é a ação “O que é que nos põe em relação com Jesus Cristo? O fato de que Ele
e a manifestação de Jesus no presente. ressuscitou . A Igreja é a visibilidade d’Ele vivo. “A Igreja não goza de
Schlier diz isso usando uma expressão belíssima: “O kerygma e os outra vida”, diz o Credo do povo de Deus, de Paulo VI, “senão a vida da
dons, o kerygma e os milagres são uma coisa só”. E Paulo o diz de sua graça”. Não tem outro início, a cada momento, senão a Sua atração, o
maneira ainda mais simples que o grande exegeta: “Eu mesmo, quando fui fascínio da Sua graça. A igreja é o termo visível do gesto de Jesus vivo
ter convosco, irmãos, não me apresentei com o prestígio da palavra ou da que encontra o coração e o atrai.
sabedoria para vos anunciar o mistério de Deus [o testemunho que Deus Ler Paulo, vivendo por graça o que Paulo compreendeu em sua
deu]. Pois não quis saber outra coisa entre vós a não ser Jesus Cristo, e conversão (como diz o Papa), faz Jesus Cristo transparecer em todas as
Jesus Cristo crucificado. Estive entre vós cheio de fraqueza [como é palavras cristãs, dá a todas as palavras cristãs essa leveza. Do contrário,
bonito isso!], receio e tremor; minha palavra e minha pregação nada elas se tornam pesadas. Se a fé fosse uma iniciativa nossa, estaríamos aca-
tinham da persuasiva linguagem da sabedoria [não queria demonstrar ele bados. Como é uma iniciativa d’Ele, é sempre possível a renovação do
que Jesus era real], mas eram uma manifestação do Espírito [ou seja, do Seu dom. E, portanto, é sempre possível recomeçar. É uma iniciativa
fato de que Jesus ressuscitado se manifesta] e poder [de Sua ação, de Sua d’Ele, a cada instante. “ Gratia facit fidem [...] quamdiu fides durat”.
manifestação], a fim de que a vossa fé não se baseie sobre a sabedoria dos Foi uma coisa muito bonita o fato de, em 1999, a Comissão Teológica
homens, mas sobre o poder de Deus” (1 Cor 2,1-5). de Estudos entre a Igreja Católica e os luteranos, valorizando justamente
A fé só pode basear-se na força de Deus, ou seja, na ação de Jesus, na essa frase de Santo Tomás de Aquino, ter reconhecido que entre a teologia
manifestação de Jesus. Não vencemos o medo da morte de Lutero sobre a justificação pela

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fé e os aspectos essenciais da doutrina dogmática do Concílio de 3. 0 Evangelho que Paulo transmitiu
Trento, no decreto De iustificatione, há uma surpreendente identidade.
Santo Tomás de Aquino, portanto, diz que “a graça cria a fé não apenas Duas breves observações sobre o anúncio de Paulo.
quando a fé começa, mas a cada instante em que dura”. E acrescenta esta O que Paulo anuncia? Em primeiro lugar, o que ele, por sua vez, recebeu.
observação belíssima: é necessária a mesma atração da graça, o mesmo Como é bonito! Paulo não inventa nada, anuncia aquilo que ele mesmo
tesouro de graça, quer para fazer que nós que cremos permaneçamos na recebeu.
fé, hoje, quer para fazer uma pessoa (caso haja aqui alguém que não crê) Vou ler lCor 15,lss. Estes versículos contêm todo o anúncio de Paulo.
passar da não-fé para a fé. Todo o anúncio de Jesus Cristo.
Eu disse isso apenas para explicar que a conversão de Paulo, como de “Lembro-vos, irmãos, o evangelho que vos anunciei, que recebestes,
todo cristão , se realiza na passagem da iniciativa do homem para a no qual permaneceis firmes, e pelo qual sois salvos, se o guardais como
iniciativa de Jesus, para a surpresa da iniciativa de Jesus, para a confessio vo-lo anunciei; doutro modo, teríeis acreditado em vão. Transmiti-vos, em
supplex. Como era bonito, na missa em latim, quando, antes do Sanctus, primeiro lugar, aquilo que eu mesmo recebi: Cristo morreu por nossos
dizíamos sempre: “Supplici confessione/ Com reconhecimento que pede”. pecados, segundo as Escrituras. Foi sepultado, ressuscitou ao terceiro dia,
Pois não é possível reconhecer uma presença que ama você, a não ser segundo as Escrituras. Apareceu a Cefas, e depois aos Doze”. Paulo
pedindo que ela continue a amá-lo. anuncia o testemunho de Jesus. “O testemunho de Deus” (lCor 2,1). O
testemunho que Deus deu ressuscitando Jesus dos mortos. O testemunho
LEITURA que Jesus Cristo deu de ter ressuscitado, mostrando-se aos discípulos. Faz
parte da essência do anúncio cristão a manifestação visível do
Agora, três sugestões. Ressuscitado às testemunhas que Ele escolhe. Se não se tivesse tornado
visível às testemunhas, se Ele mesmo não tivesse dado testemunho de ter
1 . “... pela fé no Filho de Deus, que me amou...” ressuscitado, o testemunho dos apóstolos teria sido uma invenção deles.
Heinrich Schlier, que, na minha opinião, é o maior exegeta que a Igreja
Leiamos Gal, 15, em que o próprio Paulo descreve a passagem da sua teve no século passado, insiste muito nesse fato! É Jesus que, dando-se a
iniciativa para a iniciativa de Deus. ver, dá testemunho de Si mesmo. É Jesus que, dando-se a ver aos
“Quando, porém, Aquele que me separou desde o seio materno [a graça apóstolos, deixando-se tocar e comendo com eles, testemunha a realidade
da fé nasce de um mistério, que é o da escolha de Deus, da eleição de da Sua ressurreição: “Tomé, vê e põe teu dedo aqui” (cf Jo 20,27). “ Visus
Deus. Nós não podemos julgar esse mistério: “Não fostes vós que me est, tactus est et manducavit. Ipse certe erat / Foi visto, foi tocado, comeu.
escolhestes, mas fui eu que vos escolhi” (Jo 115,16)1... quando Aquele Era realmente Ele”, diz Santo Agostinho num discurso contra os
que me separou desde o seio materno e me chamou por sua graça [como é gnósticos, comentando a aparição de Jesus ressuscitado aos apóstolos a
bonito esse me chamou por sua graça! Não basta a voz, nem mesmo a partir do Evangelho de Lucas (lc 24,36-49).
voz de Jesus, se a atração de Jesus não toca o coração. E a Sua graça, é a É Jesus que, dando-se a ver, testemunha ter ressuscitado, estar vivo. O
Sua atração que comove o coração], houve por bem revelar a mim o seu testemunho dos apóstolos é um reflexo de Seu testemunho.
Filho...”, Houve por

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o afastasse de mim [que afastasse esse sofrimento, essa tentação, essa bem revelar-me Seu Filho. Essa é a conversão de Paulo, Aquele que
fragilidade]. Respondeu-me, porém: ‘Basta-te a minha graça, pois é na me escolheu e me chamou por Sua graça me fez reconhecer Seu Filho.
fraqueza que a força manifesta todo o seu poder”’ (2 Cor12 ,7ss). A Sua GL 2,20: “Minha vida presente na carne [na condição humana,
força se manifesta plenamente na fraqueza. marcada pelo pecado original, mesmo depois do batismo. O batismo tira o
Permitam-me fazer uma pequena correção a uma frase que li num pecado, mas deixa a fragilidade que vem do pecado e inclina para o
painel da mostra sobre São Paulo. Eu não escreveria que Paulo tem pecado], eu a vivo pela fé no Filho de Deus [no reconhecimento do Filho
“orgulho de sua fraqueza”. Não podemos ter orgulho de nossa fraqueza. de Deus], que me amou e se entregou a si mesmo por mim”.
Santo Irineu, comentando esse trecho da Segunda Carta aos Coríntios, Leio-lhes como o papa Bento XVI comentou essa frase: “A sua fé [a fé
e tendo em mente a gnose (um dos elementos essenciais da heresia de Paulo] é a experiência ‘de ser amado por Jesus Cristo de modo muito
gnóstica é a não distinção entre o bem e o mal, a ponto de apresentar, e pessoal. [...] Cristo enfrentou a morte [...]por amor a ele - a Paulo - e,
Hegel o teoriza, o mal em Deus e de Deus), tem extrema atenção em como Ressuscitado, ainda o ama. [...] A sua fé não é uma teoria, uma
mostrar a diferença entre fraqueza e graça. A fraqueza evidencia a graça. opinião sobre Deus e sobre o mundo. A sua fé é o impacto do amor de
A fraqueza, quando é abraçada, torna mais evidente o fato de sermos Deus sobre o seu coração”.
abraçados. Mas o positivo é que sejamos abraçados, não a fraqueza. Na A fé de Paulo nasce do impacto do amor de Jesus com seu coração. A
fraqueza, que é a condição humana, o fato de alguém ser abraçado fé é a iniciativa do amor de Jesus Cristo sobre o seu coração.
gratuitamente por Jesus é mais evidente. Quando uma criança está doente, Permitam-me ler a vocês uma frase que descobri indo a Cássia rezar a
é como se a mãe e o pai a amassem mais, mas o fato de a criança estar Santa Rita (Santa Rita era casada e tinha dois filhos. O marido é
doente não é um valor. É que essa fraqueza torna mais evidente o fato de assassinado e ela perdoa publicamente o assassino e pede que seus dois
que é amada. Num tempo, como o nosso, em que a gnose é culturalmente filhos não vinguem o pai. Depois, entra no mosteiro das monjas
hegemônica na mentalidade do mundo, e muitas vezes também na Igreja agostinianas de Cássia). A frase que vou ler para vocês é de um monge
do Senhor, como é importante essa distinção! A fraqueza não é um bem agostiniano beato, cujo escrito sobre a paixão de Jesus era conhecido por
em si mesma. A fraqueza torna mais evidente o fato de sermos abraçados Santa Rita: “A amizade é uma virtude, mas sermos amados não é uma
quando somos abraçados, o fato de sermos amados quando somos virtude, é a felicidade”. Parece-me que essas palavras indicam de onde
amados. Torna mais evidente a gratuidade de sermos amados. O pecado é vem a caridade e o que é a caridade. A amizade é uma virtude, é o ponto
pecado e o pecado mortal merece o inferno, como diz o Catecismo. Mas mais alto da virtude. Santo Tomás de Aquino diz que a caridade é
quando Jesus, depois de ter sido traído, olhou para Pedro (Lc 22,61), esse amizade. Mas sermos amados não é uma virtude, é a felicidade. Sermos
olhar evidenciou o amor de Jesus pelo pobre Pedro. amados vem antes (cf. lJo 4,19). Para amar, é preciso que sejamos
“Por conseguinte, com todo o ânimo prefiro gloriar-me das minhas amados. É preciso primeiro que estejamos contentes por ser amados.
fraquezas, para que pouse sobre mim a força de Cristo” (2Cor 12,9). A Santo Agostinho, na passagem fantástica em que, comparando os após-
fraqueza é a condição para que a Sua força se revele com mais evidência a tolos Pedro e João um com o outro, questiona-se quem é melhor entre os
todos. dois, responde que Pedro é melhor, pois quando

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Jesus lhe pergunta: “Simão, filho de João, tu me amas [agapás] mais os menores e pecadores”. Da mesma forma, Paulo diz ser o último, o
do que estes?” (Jo 21,15), Pedro responde: “Sim, Senhor, tu sabes que te menor.
quero bem [filéo]” (Jo 21,15). Portanto, Pedro é melhor que João. “Em último lugar, apareceu também a mim como a um abortivo. Pois
Comparando a condição de Pedro, que quer mais bem a Jesus, com a sou o menor dos apóstolos, nem sou digno de ser chamado apóstolo,
condição de João, que é mais amado por Jesus, Agostinho diz: “Facile porque persegui a Igreja de Deus. Mas pela graça de Deus sou o que sou:
responderem meliorem Petrum,feliciorem Ioannem / É fácil para mim e sua graça a mim dispensada não foi estéril. Ao contrário, trabalhei mais
responder que Pedro é melhor [porque quer mais bem a Jesus], mas João é do que todos eles; não eu, mas a graça de Deus que está comigo”.
mais feliz [porque é mais amado por Jesus]”. Sermos felizes depende de
sermos amados. Não depende do nosso pobre amor. Pedro é melhor
porque quer mais bem a Jesus, mas João é mais feliz porque é mais amado 2. Paulo é sempre arrebatado pela iniciativa de Jesus
por Jesus.
O Papa diz que a fé de Paulo é o impacto do amor de Jesus sobre seu Paulo é sempre arrebatado pela iniciativa da graça. E essa é uma das
coração, e assim a própria fé, justamente porque é o impacto do amor de coisas mais impressionantes para quem lê suas Cartas. Não apenas o
Jesus sobre seu coração, desperta e é também o pobre amor de Paulo a início é graça, não apenas o início é iniciativa de Jesus. Paulo é sempre
Jesus. Essa atração amorosa de Jesus, enchendo de contentamento o arrebatado pela iniciativa de Jesus, momento por momento. E é isso que
coração de Paulo, desperta também o pobre amor de Paulo a Jesus, pobre acontece a cada um de nós. Mas a experiência de Paulo, desse ponto de
como o de Pedro. vista, é de uma dramaticidade e de uma beleza únicas.
O papa Bento XVI, numa audiência de quarta-feira, comentando a Leio-lhes uma passagem da Segunda Carta aos Coríntios ( 12,7ss) que
pergunta de Jesus a Pedro: “Simão, filho de João, tu me amas?”, insistiu já me confortava muito quando eu estava no seminário. Na época, o que
na diferença entre os verbos gregos que Jesus e Pedro empregam. Jesus me impressionava eram as palavras; hoje, o caminho da vida, por Sua
usa um verbo que indica um amor totalizante (... tu me amas [agapás]?”). graça e sua renovada misericórdia, deu realidade a essas palavras.
Pedro usa um verbo que expressa o pobre amor humano (“sabes que te A Segunda Carta aos Coríntios, para mim, é a Carta mais bonita, pois é
quero bem [filéo]”).“Eu te quero bem tal como é possível a um pobre aquela em que Paulo — como ele mesmo diz — abre todo o seu coração
homem”. Então, na terceira vez (é belíssimo como o Papa descreve isto!), (2Cor 6,11). E a Carta em que Paulo, diante da “mansidão e bondade de
Jesus se adapta ao pobre amor humano de Pedro e pergunta-lhe Cristo” (2Cor 10,1), descreve aquilo que ele é, o ser indefeso que ele é, a
simplesmente se lhe quer bem, tal como um pobre homem pode querer fragilidade que ele é.
bem. “Já que essas revelações eram extraordinárias, para eu não me encher
Lerei agora lCor 15,8ss. Paulo descreve mais uma vez, aqui, o encontro de soberba, foi-me dado um aguilhão na carne — um anjo de Satanás para
com Jesus no caminho para Damasco: “Em último lugar, apareceu me espancar — a fim de que eu não me encha de soberba [como quer que
também a mim...”. Como é bonito esse último lugar! Na liturgia am- leiamos esse “aguilhão na carne” , essa fragilidade, essa tentação, é assim
brosiana, o sacerdote que celebra a missa diz: “Nobis quoque minimis et que Paulo se expressa]. A esse respeito [em razão desse sofrimento] três
peccatoribus”. Na liturgia romana, diz apenas: “Nobis quoque peccatori- vezes pedi ao Senhor que
bus”. Na liturgia ambrosiana, aquele que celebra a santa missa, quer seja
o bispo, quer seja o último dos padres, diz:“Também a nós que somos

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A graça
de Deus
Salvador
Suficiente,
necessária para
nós

meditação do P Giacomo
Tantardini

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