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RIIBFM AIVFS

Da esperanc A
1968. A expressão “ Teologia da Libertação" nunca fora usa­
da no títu lo de um livro. O editor da Corpus Books (Washington)
examinou o manuscrito, de um autor desconhecido, e disse: "O
texto é bom. Publicaremos. Mas o títu lo terá que ser mudado.
Ninguém jamais ouviu falar nisso. Teologia da Libertação". E
foi assim que, de Towards a Theology of Liberation ele passou
a A Theology of Human Hope.
Naqueles dias a moda era essa, a Teologia da Esperança.
O momento estava grávido: a guerra do Vietnã, os movimentos
negros, fem inistas, estudantis, e a América Latina era sacudida
por fermentos de revolução. Este livro foi um dos prim eiros a
elaborar as implicações da fé bíblica, da perspectiva da luta
dos oprimidos por sua emancipação. E o que se sugere é que
o Nome Sagrado é um horizonte utópico de um mundo novo
quando as espadas serão transformadas em arados, as fardas
ensangüentadas serão queimadas no fogo, os desertos serão
transformados em jardins e os opressores serão derrubados dos
seus tronos.
Este livro foi, assim, o fruto temporão de uma colheita que
se seguiu.
Foi publicado em inglês, francês, italiano e espanhol.

E D I T O R A
(Trechos do prefácio de Harvey Cox ao
livro A Theology of Human Hope -D A
ESPERANÇA)
“ Prestem atenção vocês, ideólogos,
teólogos e teóricos do mundo rico,
dito desenvolvido. O “ Terceiro Mundo",
de pobreza, fome e impotência impos­
tas — e crescente indignação, encon­
trou uma voz teológica que se ouve
como um sino. Rubem Alves, um pro­
testante brasileiro, e um brilhante e
cortante intelectual latino-americano,
fala com uma autoridade que não pode

. ser ignorada, não apenas em discus­


sões sobre desenvolvimento e revo­
lução, mas onde quer que se fale so­
bre o lugar da fé cristã em nosso mun­
do contemporâneo convulsionado. Com
o aparecimento deste livro não é mais
possível falar sobre o Terceiro Mundo,
teologicamente (se é que isto foi pos­
sível algum dia). Agora ficou claro que
temos de escutar primeiro. Depois dis­
to qualquer discussão terá de ser com
e não sobre. Nas palavras de Alves, o
Terceiro Mundo não é nem mudo e nem
reflexivo. Ele não permitirá nem que o
seu destino político e nem que a sua
definição teológica venham de nós."
“A Theology of Human Hope (Da Espe­
rança) integra, em estilo e conteúdo,
muitos dos fios soltos que ficaram es-
voaçando ao vento, desde que o con­
senso teológico se fragmentou. Em seu
uso uso torrencial de palavras e metá­
foras. Alves freqüentemente nos faz
lembrar o irado jovem Barth. Em seu
fascínio pela linguagem ele traz à men­
te os filósofos e teólogos da lingua­
gem — mas com uma importante dife-
rança: Alves está mais preocupado com
o contexto cultural e político do qual
RUBEM ALVES

Traduzido do inglês por:


João-Francisco Duarte Jr.

Da Esperança
Título original cm inglês:
TOWARDS A THEOLOGY OF LIBERATION
© Corpus Books, Washington, 1969
capa: Francis Rodrigues
tradução'. João-Francisco Duarte Jr.
equipe de revisão: M. Clarice S. Villac (Coord.)
Sandra Vieira Alves
Marco Antonio Storani
Sílvia Dutra Valderramas
Ana Lucia Aily

Dados de Catalogação na Publicação (C IP) Internacional


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Alves, Rubem, 1933-
A482d Da esperança / Rubem Alves ; traduzido do inglês
por João-Francisco Duarte Jr. — Campinas, SP : Papi-
rus, 1987,
Bibliografia.
1. Cristianismo e política 2. Esperança — Aspectos
religiosos — Cristianismo 3. Humanismo 4. Liberdade
5. Teologia da libertação I. Título.
CDD-261.8
-144
-241.4
-261.7
87-2165 -323.44

índices para catálogo sistemático:


1. Cristianismo e política : Teologia social 261.7
2. Esperança : Teologia moral 241.4
3. Humanismo : Filosofia 144
4. Liberdade : Ciência política 323.44
5. Teologia da libertação : Cristianismo 261.8

DIREITOS RESERVADOS PARA A LÍNGUA PORTUGUESA


© M. R. Cornacchia & Cia. Ltda.

■ ■ p o p r ü / EDITORA
Av. Francisco Cilicério, 1314 - 2.° and.
Fone: (0192) 32-7268 - Cx. Postal 736
13013 - Campinas - SP - Brasil

proibida a reprodução total ou parcial por qualquer meio de impressão, em forma


idêntica, resumida ou modificada, em língua portuguesa ou qualquer outro idioma.
“E em meio ao inverno
eu aprendi finalmente
que bem dentro de mim
morava um verão invencível.”

A. Camus
ÍNDICE

Prefácio - Sobre Deuses e Caquis................................................ 9

CAPÍTULO UM: EM BUSCA DA LIBERDADE............................ 45

I - UMA CONSCIÊNCIA EM BUSCA DE LIBERDADE:


O HUMANISMO POLÍTICO .......................................... 47

II-A CONSCIÊNCIA DO HUMANISMO POLÍTICO E SUA


CRÍTICA À LINGUAGEM DO “TECNOLOGISMO" . . . 61
O Sistema Tecnológico e a Destruição da Negação . . 67
O Sistema Tecnológico e o Fim da E sperança........... 69
O Sistema Tecnológico e a Domesticação da Ação . . 71

III - A LINGUAGEM DO HUMANISMO POLÍTICO COMO


CRÍTICA DA LINGUAGEM TE O LÓ G IC A ..................... 72
A Linguagem Existencialista: A Verdade Como
Subjetividade ................ : ........................................... 80
O Paradigma Barthiano: Entre o “Não” e o “Sim" . . . . 90
A Linguagem da ‘Teologia da Esperança”: De um
Passado Rejeitado a um Futuro O fe rta d o ................ 103

IV - RUMO A UMA NOVA LINGUAGEM ................................... 118

CAPÍTULO DOIS: A VOCAÇÃO PARA A LIBERDADE___ _ . 125


CAPÍTULO TRÊS: O CARÁTER HISTÓRICO DA LIBERDADE 135

I - A LINGUAGEM DO MESSIANISMO HUMANISTA:


A HUMANIZAÇÃO COMO TAREFA ............................ 135

II - A LINGUAGEM DO HUMANISMO MESSIÂNICO:


A HUMANIZAÇÃO COMO DÁDIVA ............................ 137
Uma Linguagem Histórica .......................................... 137
Uma Linguagem de Lib erd a de ................................... 144
A Linguagem do H um anism o..................................... 149

CAPÍTULO QUATRO: A DIALÉTICA DA LIBERDADE.............. 153

I - O NEGATIVO NA HISTÓRIA: A POLÍTICA QUE FAZ


ABORTAR O NOVO A M A N H Ã ..................................... 159

II - A NEGAÇÃO DO NEGATIVO: O DEUS QUE SOFRE . . . 167

III - A POLÍTICA DA LIBERTAÇÃO: OS HORIZONTES


HISTÓRICOS SÃO ABERTOS AO P O S ITIV O ............ 175

CAPÍTULO CINCO: A DÁDIVA DA LIBERDADE:


A LIBERDADE PARA A V ID A ................................................... 187

I -A Liberdade Humana para o F u tu ro ..................................... 188


II -A Liberdade Humana para o Presente ................................ 200

CAPÍTULO SEIS: A TEOLOGIA COMO LINGUAGEM DA


LIB E R D A D E ................................................................................. 215

BIBLIOGRAFIA ........................................................... 225


PREFÁCIO

SOBRE DEUSES E CAQUIS

Peço desculpas por ter escrito um livro assim tão chato. Eu não
queria, porque eu não sou assim. Se escrevi deste jeito foi porque me
obrigaram, em nome do rigor acadêmico. Eles pensam que a verdade
é coisa fria e até inventaram um jeito engraçado de escrever, tudo
sempre no impessoal, como se o escritor não existisse, e assim o texto
parece que foi escrito por todos e por ninguém. E foi por causa deste
frio que se interditou o aparecimento da beleza e do engraçado nos
textos de ciência. O saber deve ser coisa séria, sem sabor.
O que me faz lembrar de um mural de Orozco, pintor mexicano
que passou anos ensinando a sua arte num “college” norte-americano,
e foi certamente em virtude daquilo que ele via acontecendo com os
moços que pintou “A Formatura":
o professor, alto, magro, cadavérico, verde,
entrega ao seu discípulo,
sua imagem,
também alto, magro, cadavérico, verde,
a prova final do saber,
o diploma,
um feto morto, dentro de um tubo de ensaio.
As coisas mais bonitas que se escreveram em filosofia não se­
riam aceitas nos círculos acadêmicos nem mesmo como uma modesta
tese de mestrado. Assim falava Zaratustra, por exemplo. É um livro
que transgride os interditos acadêmicos de várias formas:

9
é belo,
poético,
metafórico,
reticente,
uma coleção de fragmentos,
e é escrito com sangue...

Mas se alguém se dispuser a fazer deste poema o objeto de


suas dissecções analíticas, então sim, a dissecção virará dissertação,
coisa de entrada permitida nos círculos do saber. O que tem vida fica
de fora; entram as peças anatômicas, cheirando a formol.
Há aquele ditado Zen:
“O dedo aponta para a lua,
mas ai daquele que confundir o dedo com a lua. ”
Aqui é o contrário: mais vale o dedo que a lua...
Como Nietzsche observou, a condição para se passar num exa­
me de doutoramento é haver desenvolvido o gosto pelas coisas chatas.
Assim escreví feio, sem riso ou poesia, pois não me restava outra
alternativa: estudante brasileiro, sub-desenvolvido, em instituição es­
trangeira, tem mesmo é de se submeter, se quiser passar...
Hoje faria tudo diferente.
Começaria por informar meus leitores de que teologia é uma
brincadeira, parecida com o jogo encantado das contas de vidro que
Hermann Hesse descreveu, algo que se faz por puro prazer, sabendo
que Deus está muito além de nossas tramas verbais.
Teologia não é rede que se teça para apanhar Deus em suas
malhas, porque Deus não é peixe, mas Vento que não se pode segu­
rar...
Teologia é rede que tecemos para nós mesmos,
para nela deitar o nosso corpo.

Ela não vale pela verdade que possa dizer sobre Deus (seria ne­
cessário que fôssemos deuses para verificar tal verdade); ela vale pelo
bem que faz à nossa carne.

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Ah! Pensam que sou herege... Nada disto. Estou apenas repetin­
do coisa muito velha, esquecida, da tradição protestante, que diz que
“conhecer a Cristo é conhecer os seus benefícios”: de Deus, o único
que podemos saber é o bem que faz ao nosso corpo. Com o que con­
corda o sábio Riobaldo:
"Como não ter Deus? Com Deus existindo, tudo dá esperança, o
mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no
vai-vem, e a vida é burra. É o aberto perigo das grandes e pequenas
horas... Tendo Deus, é menos grave se descuidar um pouquinho, pois,
no fim, dá certo. Mas, se não tem Deus, então, a gente não tem licen­
ça para coisa nenhuma.”
Aqui se resume a teologia; o resto são floreios.
Há palavras que moram na cabeça e são boas para serem pen­
sadas. Com elas se faz a ciência.
Mas há palavras que moram no corpo, e são boas para serem
comidas. Chegam à carne sem passar pela reflexão.
Magia. Ou poesia, que é a mesma coisa.
Dito de forma clara, vi pela primeira vez na Emily Dickinson:
“Se leio um livro e ele torna
o meu corpo
tão frio que nenhum fogo seria jamais capaz
de me aquecer,
eu sei que aquilo é poesia.
Se eu sinto,
fisicamente,
como se o topo de minha cabeça tivesse sido arrancado,
eu sei que aquilo é poesia."
Por isto que, prá mim, poesia e magia são a mesma coisa:
a imagem é coisa bruxa que me possui,
se encarna em mim.
Teologia é um exercício de feitiçaria,
variações sobre o tema da Encarnação...
Deus se fez Carne,
Deus é a Carne em que se revelou,
Deus acontece quando o poema toma conta do Corpo.

11
Isto é o único que podemos dizer de Deus.
Não que saibamos coisa alguma a seu respeito.

Mas bem sabemos que aquilo que está acontecendo com o nos­
so corpo é coisa divina, que deveria existir sempre, eternamente, e
bem merecería que o nosso corpo ressuscitasse, eterno retorno, para
que o Poema fosse etemamente repetido, gozo, orgasmo, ciclo que
sempre volta ao início, canon, contra-ponto, variações sobre um mes­
mo tema.
Damos o nome de Deus a este êxtase do corpo (ou da alma; não
sei onde é que os dois se separam) possuído pela beleza.
Não há mistérios fora disto sobre que possamos falar.
Cito, como autoridade, outro teólogo, Alberto Caeiro:
“Pensar em Deus é desobedecer a Deus..."
A única coisa que temos é o tremor na Carne quando nela acon­
tece a magia, e ela fica possuída pelo poema. É então que as Ausên­
cias se fazem Presenças (fugidias...). Aquilo que .''Jietzsche sugeriu:
“Será que não percebes que o que amam em ti é o brilho de eternida­
de em teu olhar?” O Corpo vira altar-ou, como diriam os teólogos, 7o-
cus revelationis" - o lugar onde se toma visível que somos habitantes
de um outro mundo. Não, não me entendam mal quando falo de “outro
mundo". Nada a ver com céu ou inferno... De novo é a Poesia:

"Todos os dias atravessamos a mesma rua ou o


mesmo jardim; todas as tardes nossos olhos batem no
mesmo muro avermelhado, feito de tijolos e de tempo
urbano. De repente, num dia qualquer, a rua dá para um
outro mundo, o jardim acaba de nascer, o muro fatigado
se cobre de signos. Nunca os tínhamos visto e agora fi­
camos espantados por eles serem assim: tanto e tão
esmagadoramente reais. Sua própria realidade compacta
nos faz duvidar: são assim as coisas ou são de outro
modo? Não, isto que estamos vendo pela primeira vez, já
havíamos visto antes. Em algum lugar, no qual nunca es­
tivemos, já estavam o muro, a rua, o jardim. E à surpresa
segue-se a nostalgia. Parece que nos recordamos e que­

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ríamos voltar para lá, para esse lugar onde as coisas são
sempre assim, banhadas por uma luz antiqüíssima e ao
mesmo tempo acabada de nascer. Nós também somos
de lá. Um sopro nos golpeia a fronte. Adivinhamos que
somos de outro mundo...’’ (Octávio Paz)
Se uso a palavra Deus é como metáfora poética,
nada que eu conheça,
o significante que nada significa,
a não ser o espaço vazio onde aparecem as minhas
nostalgias
e onde se coloca o dizer poético.
De Deus só temos o Verbo,
Poema,
coisa que se diz quando a saudade dói...
Isto não é jeito que eu tenha inventado.
Aprendi lendo as Sagradas Escrituras, onde está interditado o
simples pronunciar do Nome Sagrado, que sempre que aparecia no
texto era substituído por um outro - Tabu! - e, se o simples pronunciar
do Nome Sagrado era blasfêmia, que dizer das tentativas de se escre­
verem anatomias e fisiologias do Mistério Divino, isto a que se dá o
nome de teologia?
Deus é símbolo que marca uma proibição de falar.
Onde ele se diz estabelece-se um grande.silêncio.
E sobre ele surgem as metáforas, que é um jeito de dizer o que
não pode ser dito.
Não podemos falar sobre Deus, mas podemos falar sobre as coi­
sas humanas. Teologia são os poemas que tecemos como redes sobre
a saudade de algo cujo nome esquecemos.
Qual deles é verdadeiro?
Poemas não podem ser verdadeiros.
Mas devem ser belos.
E é só por isto que eles têm o poder mágico de possuir o corpo.
A verdade é o que é; o que está presente. Mas o Corpo se inclina para
o que não é - Desejo! - o que ainda não nasceu, ou que já morreu,
contornos do “pedaço arrancado de mim". E me veio esta idéia insólita

13
de que Deus é o nome que damos a esta Ausência que habita o Cor­
po...
O que me leva a uma absurda conclusão: para fazer teologia
não é necessário acreditar que Deus exista.
A Cecília Meireles só escreveu sua “Elegia” depois da morte de
sua avó. O poema descreve o mundo mágico que ficou no espaço va­
zio deixado por um corpo que se foi.
“Teu corpo era um espelho pensante do universo...”
Teologia não é coisa de quem acredita em Deus
mas de quem tem saudades de Deus.
Acreditar: sei que Deus existe em algum lugar. Ah! Se não existir,
tudo estará perdido...
Ter saudade: mesmo que não exista lá fora, no meio das nuvens
ou no fundo do mar, eu o mantenho como "pedaço arrancado de
mim...”
"Oh! Pedaço arrancado de mim...
Oh! Metade arrancada de mim...
A saudade é o revés do parto.
A saudade é arrumar o quarto
do filho que já morreu..." (Chico)
Teologia,
celebração de um Vazio que nada pode encher.
É só por isto que dizemos que Deus é Infinito.
Não porque o tivéssemos medido,
mas porque sentimos o Infinito do desejo
que coisa alguma pode satisfazer.
Daí que estamos condenados a ser eternos pranteadores...
Mas teologia é coisa bela, um Sonho...
Sonhamos com Deus
e o sonho interpretado deixa ver os cenários que existem nos va­
zios da nossa nostalgia (ocultos pela bruma do esquecimento). E en­
tão nos tomamos poetas...
Acontece que o mundo está cheio de loucos.

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Muitos pensam que o que dizem sobre Deus tem consequências
cósmicas (mais próximos da verdade estariam se se contentassem
com as consequências cômicas)... O que me faz lembrar a estória de
um galo que acordava bem cedo, todas as manhãs, ainda escuro, e
anunciava solene aos seus companheiros, bichos de galinheiro:
Vou cantar para fazer o sol nascer...”
E se empoleirava no alto do telhado, olhava para o horizonte, e
ordenava, categórico:
Co-co-ri-co-có...”
Dali a pouco a bola vermelha mostrava o seu primeiro pedaço e
o galo comentava, confiante:
Eu não disse?..."
E os bichos ficavam boquiabertos e respeitosos ante poder tão
extraordinário conferido ao galo: cantar pra fazer o sol nascer. E nem
havia sombra alguma de dúvida, porque tinha sido sempre assim, com
o galo-pai, com o galo-avô...
Aconteceu, entretanto, que o galo certo dia perdeu a hora, e
quando ele acordou o sol já estava lá, brilhando no meio do céu...
Há teólogos que se parecem com o galo.
Acham que, se não cantarem direito, o sol não nasce: como se
Deus fosse afetado por suas palavras. E até estabelecem inquisições
para perseguir galos de canto diferente e condenam outros a fechar o
bico, sob pena de excomunhões. Claro que fazem isto por se levarem
muito a sério e por pensarem que Deus muda de idéia ou muda de ser
ao sabor das coisas que nós pensamos e dizemos. O que é, para mim,
a manifestação máxima de loucura, delírio maníaco levado ao extremo,
este de atribuir onipotência às palavras que dizemos.
Teólogos são, freqüentemente, galos que discutem qual a partitu­
ra certa: que canto cantar para que o sol levante? Neste sentido, con­
servadores fundamentalistas não se distinguem em nada dos teólogos
científicos que se valem de métodos críticos de investigação. Todos
estão de acordo em que existe uma partitura original, revelada, autori-
tativa, e que a tarefa da teologia é tocar sem desafinar. As brigas teo­

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lógicas sáo discussões sobre se a tonalidade é maior ou menor, ou se
o sinal é bemol ou sustenido. Uns querem que seja tocada com or­
questra de câmara e outros afirmam que o certo é tocar com banda.
Qualquer que seja a posição, todos afirmam que existe um único jeito
de tocar a música. Usando palavras de Lutero, “unum simplicem soli-
dum et constantem sensum" - o sentido uno, puro, sólido e constante.
Desafinações, variações ou modificações trazem consigo o perigo de
alguma grave consequência.
Eu penso, ao contrário, que não é nada disto.
O sol nasce sempre, do mesmo jeito, com galo ou sem galo.

Assim, o galo pode dormir à noite, sem a angústia de ter de


acordar na hora certa. Se dormir demais, o sol vai se levantar do
mesmo jeito. O que, sem dúvida, diminui seu senso de importância,
mas tem a compensação do sono tranquilo, o que não é de se desprezar.

Mais do que isto: o galo pode inventar outros cantos, sabendo


que o sol não vai se zangar e vai nascer como sempre, no mesmo lugar.

Traduzido em jargão teológico isto significa "graça”: a bondade


de Deus continua a mesma, sempre, independente de nossas afina­
ções ou desafinações. Ele nem nasce melhor quando estamos afina­
dos e nem nasce pior quando estamos desafinados... Temos, portanto,
a liberdade de fazer o que quiser... Eu não suportaria pensar que o
meu pensamento é tão poderoso que, caso eu pense errado, Deus vai
ficar torto.
A partitura tem o nome de teologia, mas quem dança somos
nós...
Uma outra parábola.
Algumas pessoas discutem sobre uma casa, que todos vêem.
Para um grupo, ela é habitada por um nobre, de hábitos aristocrá­
ticos e conservadores...
Outros afirmam o oposto: mora ali um operário, membro de sin­
dicato, revolucionário...
Alguns, por oposição, dizem que ela está vazia...

16
Eu me aproximo, apontam na direção da casa, pedem minha
opinião, e concluo que alguma coisa deve estar errada com os meus
olhos, pois não vejo casa alguma, só nossos próprios reflexos, através
dos vidros da vidraça.
Tive, no meu aquário, um peixe de cores banais. Mas era um
peixe guerreiro, que não suportava a presença de um competidor. Se
isto acontecia ele se transfigurava, e o seu corpo era possuído por co­
res escondidas que ninguém suspeitava morassem nele. Mas como
ninguém desejava o combate mortal, a magia podia se realizar com o
auxílio de um simples espelho.
Pobre peixe: incapaz de reconhecer sua própria imagem no reflexo.
As batalhas teologais me fazem lembrar meu peixe-de-briga. Por
não saberem que tudo não passa de um delicioso e divino jogo de es­
pelhos - coisa própria para o nosso prazer de brincar - os teólogos
mudam as suas cores e são possuídos por uma doença já catalogada:
odium theologicum. Assim se iniciam as batalhas em nome de Deus.
Seria tão mais honesto se reconhecessem que “ Deus” é o nome que
dão à sua própria imagem...
Faço meus poemas sobre um Vazio, o meu Vazio.
Não conheço nenhum outro.
Em obediência a um mandamento sacramental:
que o pão fosse comido e o vinho fosse bebido
na dor da Ausência.
A magia não está nem no pão
e nem no vinho
mas nas Palavras que dizem a tristeza da Falta.
O sacramento celebra a Ausência de Deus,
ele enuncia os limites dos espaços de espera que se dilatam
dentro de mim, eroticamente.
É a ausência que me excita.
Ou, nas palavras desta teóloga ímpar,
a Adélia Prado:
“Entre as pernas geramos e sobre isso
se falará até o fim sem que muitos entendam:
erótico é a alma.”

17
Será isto que é a alma, a Ausência que mora em mim, e faz o
meu corpo tremer? Não me canso de repetir esta coisa linda que disse
Valéry:
“Que seria de nós sem o auxílio das coisas que não existem?"
Estranho isto, que o que não existe possa ajudar...
Deus nos ajuda, mesmo não existindo: este o segredo da sua
onipotência.
Teologia é um encantamento poético, um esforço enorme para
gerar deuses...
Que deuses?
Os meus, é claro.
São os únicos que me é permitido conhecer.
Lembro-me de Feuerbach. Compreendeu que estamos destina­
dos ao nosso corpo, especialmente os olhos.
Vemos. Mas em tudo o que vemos encontramos os contornos da
nossa própria Nostalgia, o rosto da alma.
Como Narciso, que se enamorou de sua própria imagem, refleti­
da na superfície lisa da fonte. Também nós: o universo sobre que fa­
lamos é a imagem dos nossos cenários interiores. Com o que concor­
da a psicanálise, e antes dela o Evangelho: a boca fala do que está
cheio o coração.
Nossos deuses são nossos desejos projetados até os confins do
universo.
“Se as plantas tivessem olhos, capacidade de sentir e o poder de
pensar, cada uma delas diria que a sua flor é a mais bela".
Os deuses das flores são flores.
Os deuses das lagartas são lagartas.
Os deuses dos cordeiros são cordeiros.
E os deuses dos tigres são tigres...
Tudo é sonho.
Ou, como diz Guimarães Rosa:

18
“Tudo é real
porque tudo é inventado."
Também o real é uma invenção...
E o mágico é isto: que o corpo, desprendendo-se das ligações que o
prendem àquilo que é, possa ser possuído por aquilo que não é.
Aquela coisa pesada, que se arrastava desajeitadamente pelo chão,
repentinamente fica leve, transparente, utópica, ao vento. E assim, as
coisas que são, é como se não fossem; e as coisas que não são, é
como se fossem. (1 Cor. 1:28-29)
Teologia é um brinquedo que faço.
É possível plantar jardins,
pintar quadros,
escrever poemas,
jogar xadrez,
cozinhar,
fazer teologia...
Claro que um jogo não exclui o outro.
Alguns dirão que isto não é coisa séria.
Eu os conheço muito bem e já havia advertido o leitor contra eles.
Quem se leva a sério é, no fundo, um inquisidor.
Está só à espera de que a ocasião apareça.
As grandes atrocidades que se cometeram contra as pessoas fo­
ram todas levadas a cabo com espírito grave, com um senso de mis­
são, de salvação do mundo.
O diabo está sempre vestido de paletó e gravata e, a se acreditar
em Nietzsche, ele nem sabe contar piadas e nem sabe dançar: é o es­
pírito da gravidade. Já com Deus é o contrário, porque a oração come­
ça com o riso.
Jogo de contas de vidro.
Não são lindas, as contas?
O vidro sempre me fascinou. Como é possível isto, que haja algo
tão duro e que seja transparente?
Em especial, os pesos de papel. Tenho vários.
A forma lisa, arredondada, me faz lembrar um seio juvenil.

19
Já as folhas que vejo, lá dentro, e que mudam seus reflexos de
acordo com a posição da luz, me fazem lembrar luas e sóis. Galáxias,
universos.
Tudo dentro de um seio.
Não seria bom que fosse assim?
Elas não dizem nada, por isto podemos dizer tudo.
Tudo é inventado. Tudo é real. O corpo treme..
Sonho. Teológo: brinco com vidros coloridos sagrados, e deixo
que a luz passe por eles, e apareça multicolorida, mostrando sua bele­
za escondida.
Também eu sou um vidro, transparente, peso de papel.
Há, de fora, a superfície do meu corpo e, de dentro, universos
que desejo iluminar.

Para isso, é preciso luz...


É que é escuro.
Profundidades de fundo de mar.
"Nosso olhar é subm?rino.
Nossos olhos olham para cima
e vêem a luz que se fratura através de águas inquietas.”
(Eliot)
Com o que concorda a Cecília:
“Mas, neste espelho, no fundo
desta fria luz marinha,
como dois baços peixes,
nadam meus olhos à minha procura..."
“Tudo é nebuloso,
neblina misteriosa,
como se tudo víssemos na superfície embaçada de
um espelho mal polido". (São Paulo, 1 Cor. 13.12)
Ou sombra de mata encantada.
"Os bosques são belos, sombrios, fundos..." (Frost)

20
“...seu mundo interior, caos selvagem,
bosque antiqüíssimo e adormecido, sobre cujo silencioso
despertar verde-luz, seu coração se erguia.” (Rilke)
O brinquedo é este.

Não da luz total, que faz sempre mal aos olhos.

Coisa que me ensinou um poeta, o Heládio, que lia meus textos


com espanto e dizia:
Luz demais, estou ofuscado, é preciso trazer um pouco de ne­
blina...”
Achei que ele era doido.
Depois aprendi: Mallarmé, Debussy, Boulez.
E me lembrei do mestre que lera tanto, mas nunca entendera,
justamente porque eu queria entender: Kierkegaard. É preciso não di­
zer. Só a obscuridade modorrenta... E não é justamente aí que se ca­
çam sacis e os faunos aparecem, lúbricos, para as ninfas ardentes? O
encanto da hora da modorra, quando o corpo não está nem dormindo e
nem acordado. Aí aparecem as visões...
Vocês, que leram O Saci, sabem que, para apanhá-lo, é preciso
jogar peneira de cruz trançada sobre o olho do rodamoinho, pois é aí
que o Saci fica pulando. Depois, enfiar o gargalo de uma garrafa por
uma fresta da peneira, o Saci não resiste e passa. Arrolhar bem arro-
Ihada, com rolha com cruz cortada a faca. E, depois, olhar... E vem o
desapontamento. Não tem Saci nenhum que se veja, dentro da garra­
fa. É que Saci é moleque mágico, não se mostra à toa. É preciso ir pa­
ra o mato, depois do almoço, aquele calor de se fazer nada, as cigar­
ras zinindo no ar, e ficar debaixo de uma árvore, sem pressa, o sono
vai chegando, e o Saci começa a aparecer. Acontece o mesmo com as
ninfas e os faunos - tanto assim que Mallarmé e Debussy fizeram seu
poema erótico-onírico acontecer neste mesmo tempo em que o corpo
fica suspenso entre dois mundos.
As contas de vidro: nelas se misturam lisuras eróticas e funduras
de sonhos, seios e galáxias, saudades de paraísos. E a gente vai in­
ventando o real, construindo o mosaico, experimentando com as cores,

21
costurando distâncias com a luz, enchendo os espaços vazios com as
criaturas da fantasia, e o nosso avesso vai aparecendo, terrível e ma­
ravilhoso.
A teologia que faço é o avesso da minha carne.
Deus é o meu avesso...
Não,, não é que Deus seja o meu avesso. E l ( ) é mistério grande,
proibido. É a metáfora, o ponto que dou, com cor e luz, no jogo dos vi­
dros. Digo o meu avesso com o auxílio de um outro nome, que não o
meu. Eu não sou eu. Sou mais. Diferente. Mais bonito. Mais feio (por­
que no avesso também mora o diabo...).
Por que faço este jogo?
Pelas mesmas razões por que se jogam todos os jogos.
Puro prazer.
Vejam que absurdo: para vir escrever estas coisas, neste teclado
de máquina de escrever, silenciei um outro teclado, que se tocava no
aparelho de som, sonata de Mozart. Achei quase sacrilégio. Mas que
posso fazer? Não sei brincar com os sons como Mozart sabia, mas sei
brincar com palavras, imagens, contas de vidro. Recebi um elogio tão
grande, dias atrás, que até vou vencer a modéstia que se deve ter, por
educação, e dizê-lo. Foi o Benito Juarez, regente, comentando uma coi-
sinha que escrevi, e ele disse: “ - Tenho a impressão de que você faz
com as palavras o que Mozart fazia com as notas. Pura brincadeira.
Dá-se um tema e a sonata aparece." Claro que fiquei feliz e quero que
seja assim. Fazer música. Teologia é uma música que faço com pala­
vras, um móbile de contas de vidro, uma tapeçaria de luz. Faço por ra­
zões estéticas. E é por isto que nem mesmo necessito crer. Para se
amar as Variações Goldberg não é preciso acreditar em nada. Basta
ter ouvidos na alma (por favor, nunca se esqueça de que “erótico é a
alma”. Há excelentes ouvidos que só percebem ruídos, barulhos, guin­
chos e colisões). Para se amar Chagai também não é preciso acreditar
em nada, basta ter olhos na alma. Se os olhos estão cegados por cata­
rata, a leitura de Bachelard, sobre o mundo de Chagai, fará a devida
magia. Não é preciso acreditar em nada para se gozar um copo de vi­
nho: basta ter olhos para ver o vermelho que a luz atravessa, olfato pa­
ra deixar que parreirais maduros entrem nos lugares mais primitivos da
memória corporal, e gosto para sentir a forma como o líquido agrada o
corpo.

22
Não é preciso acreditar em nada.
Basta sentir.
Teologia é um morango que se colhe e que se come, pendura
dos sobre o abismo - sem nenhuma promessa de que ele nos fará flu­
tuar...
Pode parecer coisa irresponsável, num mundo tão cheio de gra­
ves problemas.
Mas eu me pergunto se a gravidade dos problemas não é causa­
da pela gravidade das pessoas que julgam que o destino do mundo
depende de sua ação.
Justificação pelas obras.
Se elas não se levassem tanto a sério talvez não construíssem
tantas armas e não fossem tão implacáveis na cobrança dos seus ju­
ros e tão autoritárias na imposição dos seus pensamentos.
Teologia é um exercício de beleza e de humildade.
Brincamos,
como a própria Santíssima Trindade que,
nos jogos intelectuais do venerável Santo Agostinho,
só fazia uma coisa,
nas transas intra-trinitárias:
brincar.
Autoerotismo.
É preciso expulsar o espírito de gravidade que aparece nas gra­
vatas e nos rostos dos senhores constituintes, nas roupas coloridas
dos senhores cardeais, na eloquência estudada dos senhores pastores,
nas fardas heróicas dos generais, na fala científica de professores ca-
tedráticos, nas contas implacáveis dos banqueiros, no rigor educador
das mães e dos pais...
Levar a vida a sério é compreender que “tudo é real porque tudo
é inventado”...0 que não se pode dizer sem que um riso enorme tome
conta do corpo...
Escrevi para me dizer.
Brincadeira comigo mesmo.
Se outros gostarem do jogo das contas de vidro, são bem-vindos.

23
Só que não adianta e nem faz sentido tentar me entender.
Nem sei se eu mesmo me entendo.
Quem é dono dos próprios sonhos?
No jogo o importante não é compreender a conta de vidro.
Ela não se oferece para ser objeto de análise.
Num jogo de palavras impossível de ser dito em português:
a questão não é “to understand it”,
mas antes
“to stand under it”.
Não os meus pensamentos, supostamente escondidos naquela
conta de vidro,
mas os seus pensamentos, que aquela entidade mágica evocou.
É preciso pensar os próprios pensamentos.
Assim, é como se fosse um duelo de improvisadores-repentistas:
um vai dizendo seus temas, e o outro vai contraponteando com os pe­
daços seus que vão aparecendo.
Que ninguém me acuse de heresia, pois não tenho a menor pre­
tensão de dizer verdades sobre entidades do outro mundo. Este mun­
do me basta. Prá dizer a verdade, o outro mundo me provoca sempre
profundo terror, acho que deve ser chatíssimo - se por acaso existir.
Sou um ente deste mundo. Lembro-me da Cecília Meireles, angustia­
da, indagando se depois de muito caminhar a algum lugar enfim se
chega. “O que será talvez até mais triste. Nem barcos, nem gaivotas,
apenas sobre-humanas companhias..." O que eu quero é esta terra.
Abro de novo a Suma Teológica da Adélia Prado: “Depois da mor-
te...eu vou querer o prato e a fome, um dia sem tomar banho, a grava­
ta pro domingo de manhã...Quando eu ressuscitar, o que quero é a vi­
da repetida sem o perigo da morte, os riscos todos, a garantia: de noite
estaremos juntos, a camisa no portal. Descansaremos porque a sirene
apita e temos que trabalhar, comer, casar, passar dificuldades, com o
temor de Deus, para ganhar o céu."
Minha teologia nada tem a ver com teologia.
É vício.
Há muito que deveria ter abandonado este nome.
E dizer só poesia, ficção.
Descansem os que têm certezas.

24
Não entro no seu mundo e nem desejo entrar.
Jardins de concreto me causam medo.
Prefiro a sombra dos bosques
e o fundo dos mares,
lugares onde se sonha...
Ali moram os mistérios
e o meu corpo fica fascinado.
Era uma tarde comum, na cidade de Nova Iorque. Fim de um ano
de sofrimentos. Tinha deixado esposa e filhos no Brasil para fazer um
mestrado. Mas a saudade era grande demais. Arrumei minhas malas
várias vezes para voltar, convencido de que nenhum grau acadêmico
valia a dor da separação. No meu quarto eu havia colocado um calen­
dário regressivo, com o número dos dias que ainda faltavam para a
volta. E, pela manhã, a primeira coisa que fazia era riscar mais um.
Agora eu estava feliz.Faltava só um mês. Já terminara todos os meus
compromissos acadêmicos, inclusive a tese de mestrado. O seu título
revelava o que nadava pela minha cabeça. Aqueles eram anos de fer-
vilhamento político-social no Brasil, e a gente sabia, com uma convic­
ção escatológica, que era inevitável que alguma transformação profun­
da acontecesse. E foi com estes pensamentos que escrevi A Theologi-
cal Interpretation o f the Meaning o f the Revolution in Brazil. Agora, tu­
do terminado, eu podia me entregar aos prazeres que aquela cidade
oferecia: os museus, os concertos, as livrarias e o simples andar pelas
ruas. Estava voltando para casa, contente e sonolento, num trem de
metrô. Preparava-me para um curto cochilo até a rua 119, onde deveria
saltar. À minha frente um homem lia o seu jornal. E foi então que fi-
quei instantaneamente congelado, o medo circulando pelo corpo, o vi­
dro liso estilhaçado por um golpe de pedra. Lá estava, letras enormes,
na primeira folha: “Revolution in Brazil".
Era o dia 19 de abril de I964.
Em um segundo fiquei sem saber se podería regressar.
Pátria, este lugar que a saudade enche de coisas boas, se trans­
formou em terra invadida: gigantes verdes, dragões amarelos.* No seu

* Sobre gigantes verdes e dragões amarelos leia O Flautista Mágico (Loyola), estória
para crianças.

25
lugar uma noite permanente, as prisões, as delações, o crime de se
pensar, de ter idéias diferentes.
Meu pensamento enlouquecia, na solidão do quarto, dando voltas
sobre si mesmo, amarrado e impotente.
O medo e o ódio se transformaram em diarréia, olhos arregala­
dos pelas noites, náuseas, claustrofobia.
E não era possível me comunicar com o Brasil. Falar e escrever
se tornaram coisas perigosas. Em 1984, um homem foi preso porque
falou enquanto sonhava. A ficção se transformara em realidade. Era
preciso cuidar para que nenhuma palavra traísse o pensamento - hábi­
to que veio a se transformar num estilo, por muito tempo. Cartas e te­
lefonemas eram confissões de crimes...
Passou-se o mês mais longo de minha vida. O tempo se esva­
ziou de qualquer coisa que nele pudesse ocorrer e se transformou em
espera, no seu estado puro, todos os minutos sofridos no seu conteúdo
de medo e raiva.
Eu conhecia a psicologia daquele momento que se vivia no Bra­
sil: "caça às bruxas”. Eu a aprendera no estudo e na experiência das
Inquisições, períodos em que desaparece a inocência e a simples de­
lação já constitui veredicto. A política eclesiástica aparecia como pro­
fecia da política secular. As duas são uma mesma coisa. A diferença
está em que se numa os deuses aparecem com vestimentas sagradas
e perfumes de incenso, na outra as roupas são de outras cores e os ri­
tuais litúrgicos seguem outros ritmos.
São momentos metafísicos, em que o sentimento do Absoluto é
respirado, de forma embriagadora, pelos Inquisidores. Na verdade seria
possível definir um Inquisidor como alguém que “cheirou” o Absoluto, e
ficou fora de si. A experiência é psicodélica: a pessoa fica possuída
pela certeza de estar pisando em terra santa, no centro mesmo do uni­
verso, no lugar onde se decide o futuro da história. Ali, naquele lugar,
naquele momento, está se travando a batalha pela salvação do futuro.
Ela e Deus - não importa o nome que se lhe dê - se con-fundem nu­
ma mesma coisa.
Ocorre então uma fantástica transformação na imagem que as
pessoas fazem de si mesmas. As mais insignificantes, perdidas no

26
sem sentido do dia a dia que se repete, se descobrem participantes de
uma coisa enorme. Elas podem ser cúmplices daqueles que empu­
nham a bandeira divina, na luta contra o Mal. Os vitoriosos, é claro.
Porque os perdedores são sempre definidos pelos nomes do Demônio:
bruxas, hereges, subversivos, comunistas, pequeno-burgueses. Tanto a
direita quanto a esquerda possuem os seus deuses, só que adoram
em altares diferentes e seus textos inspirados são outros. Efetua-se
uma operação algébrica: aparece um conjunto daqueles que partici­
pam do triunfo do Bem contra o Mal - uma nova Igreja. E, como na
matemática, são essenciais os símbolos que afirmam esta relação de
pertinência. Na religião são os atos sacramentais, as mesmas formas
litúrgicas repetidas, os gestos idênticos: assim os “irmãos” se dão a
conhecer. E assim também os que não pertencem se deixam trair: não
participam dos mesmos sacramentos, não repetem as mesmas ladai­
nhas e nem fazem os mesmos gestos. A diferença é a prova da cum­
plicidade com o demônio, porque quem não é igual a nós só pode ser
contra nós.

O mundo se divide entre Deus e o Diabo,


Verdade e Erro,
Salvação e Perdição,
Nós e os Inimigos.

Os momentos de “caça às bruxas" são sempre religiosos, apoca­


lípticos. Confronto entre o Bem e o Mal, no Armagedon. Tudo é Abso­
luto. E com o Mal absoluto não se pode ter nem complacência e nem
escrúpulos éticos. A ética é suspensa porque, para ser aplicada, é pre­
ciso que haja, por parte das pessoas envolvidas, o reconhecimento de
uma qualidade comum, que liga todas elas. A ética nasce da empatia,
esta capacidade que temos de sentir aquilo que está acontecendo com
o outro. Mas isto só é possível se se acreditar que somos parecidos,
moradores de um mundo comum, de alguma forma irmanados.

A “caça às bruxas" abole este elo de ligação. A “bruxa” é uma


emissária de um mundo infernal que não tem direitos. Por isto a luta
contra ela é semelhante à luta contra a AIDS: algo contra o qual todos
os métodos são válidos. Contra o Sujo não há “guerra suja”. Contra os
emissários do Inferno todas as torturas se justificam. Assim, quando os
torturadores se defendem, alegando inocência, eles estão absoluta­

27
mente certos. No mundo em que viviam, e que agora se encontra re­
traído provisoriamente aos seus espaços mentais, não podia existir
a ética, porque o inimigo era uma entidade de um outro mundo, não-
humano.
A ética só existe quando se aceita que todos oscilamos entre o
Bem e o Mal, entre Deus e o Diabo. Todos somos tentáveis, seres di­
vididos, misturados, permanentemente se defrontando com a necessi­
dade da decisão e da culpa. Mas no Mundo Absoluto da "caça às bru­
xas" tal situação não mais existe, porque Bem e Mal se separaram. To­
das as decisões já foram tomadas e não existe a possibilidade de cul­
pa. Assim, é possível torturar pela manhã e brincar com os filhos à
tarde...
Voltar ao mundo anterior à culpa é, de certa forma, recuperar o
paraíso; a participação nesta comunidade sagrada (que pode ser tanto
uma igreja, um partido ou uma organização de torturadores) é algo que
produz muito prazer: a sensação de poder, de verdade, de estar ao la­
do do futuro...
É aí que a violência se transforma em ato sacramental. Por meio
dela se definem lealdades, se delineiam conjuntos. Os que torturam
são irmãos. Recusar-se a torturar é afirmar-se como não pertencendo
ao conjunto. Como rejeitar o pão e o vinho. Disseram-me que, num
país da América Latina, encontravam-se cadáveres perfurados por mui­
tas dezenas de balas. E evidente que a função de tantas balas não era
prática: para matar basta uma. Sua função era outra: unir todos os par­
ticipantes num mesmo ato sacrificial. Cada bala no corpo da vítima era
um elo que ligava os participantes uns aos outros. Torturas, massa­
cres, linchamentos, mais que puros atos políticos, são atos eclesiais:
por meio deles se estabelecem laços de conspiração entre os mem­
bros de uma comunidade que se define como vivendo nos últimos
tempos, além das misturas entre o Bem e o Mal.
A delação é também parte desta liturgia de participação. Delatar
é dizer ao carrasco quem é que deve ser sacrificado. E, com isto, uma
nova operação matemática: sou diferente dele, separo-me do inimigo,
entrego-o ao sacrifício, e assim afirmo-me como membro do corpo sa­
cerdotal. A delação faz isto: ela afirma a pertinência a um grupo atra­
vés do estabelecimento prático do ódio a um outro. Delatar, portanto,
não é transgredir a ética; é enunciar uma metafísica e confessar uma
lealdade.

28
E era disto que eu tinha medo.
Somente muito tempo depois compreendí os fundamentos so­
ciais dos meus temores. A Igreja Católica tem uma eclesiologia forte -
na verdade é uma eclesiologia forte. Suas fronteiras institucionais e
sua teologia delimitam um espaço e um tempo imensos, transbordan­
do das limitações apertadas dos espaços e tempos políticos. Ela
aprendeu a arte da sobrevivência. E esta arte tem a ver com a manu­
tenção da integridade institucional, sempre que algum perigo surge.
Assim, em meio à “caça às bruxas”, a Igreja Católica se constituiu nu­
ma “cidade refúgio”, "santuário” onde os perseguidos encontravam
abrigo. O fato de pertencerem à Igreja era mais forte que sua pertinên­
cia ao Estado. Mas com as Igrejas Protestantes a situação era diferen­
te. Comunidades pequenas, marginais, sem reconhecimento, desejo­
sas de “pertencer” a algo maior: nada melhor que uma situação de
“caça às bruxas" para afirmar, perante o Estado, a sua lealdade, garan­
tindo assim o seu direito de participar do poder. E que melhor prova de
lealdade pode existir que entregar os seus próprios filhos ao sacrifício?
Voltei ao Brasil.
Comecei a aprender a conviver com o medo. Antes eram só as
fantasias. Agora, sua presença naquele homem que examinava o meu
passaporte e o comparava com uma lista de nomes. Ali ficava eu,
pendurado sobre o abismo, fingindo tranqüilidade (qualquer emoção
pode denunciar), até que o passaporte me era devolvido. No caminho
do aeroporto para a minha casa, no carro de um amigo, o início das
confirmações:
“- Olha, Rubem, foi enviado ao Supremo Concilio um documento
de acusações a seis pastores, e você é um deles. E circula também o
boato de que você foi denunciado à ID-IV, de Juiz de Fora...”
Era o início de uma grande solidão.
Primeiro, eu tinha de voltar à paróquia da qual eu era pastor, lá
em Minas. E eu me lembro daquela noite, no ônibus, a caminho de
Lavras, a viagem interrompida pelos militares que fiscalizavam a Fer-
não Dias, e eles, pausadamente, indo de pessoa a pessoa, no escuro,
eu não podia ver os seus rostos, as lanternas iluminando a lista dos
procurados, que traziam nas mãos, iluminando os documentos de cada
um e, finalmente, o foco de luz sobre o rosto. Eu já vira coisas assim
no cinema: a qualquer momento a possibilidade de ser arrastado para

29
o escuro, sem saber se voltaria. Estas coincidências: justamente na­
quele dia a cidade tinha sido tomada. Militares vindos de fora realiza­
vam o seu trabalho. O quartel da polícia já estava cheio de presos.
Como explicar, quando chegasse a minha vez, os livros da minha bi­
blioteca? Foi uma noite inteira abrindo caixotes, separando livros,
queimando, enfiando outros em sacos para serem jogados no rio.
Lembro-me que um deles foi Communism and the Theologians, de
Charles West, coisa perfeitamente inocente. Mas a capa era vermelha,
e havia a foice e o martelo. Lá se foi ele, consumido pelas chamas - e
em tudo o sentimento de um grande e absurdo pesadelo. Cedo, de
manhã, meus amigos me aconselharam a sair da cidade. Só voltei um
mês depois. E havia aquelas acusações contra os seis pastores junto
ao Supremo Concilio da Igreja Presbiteriana do Brasil. Dirigi-me à au­
toridade competente, solicitando uma cópia do documento. Foi-me dito
que eu não podia ser informado das acusações que pesavam sobre
mim. Só obtive uma cópia do mesmo porque um amigo a furtou. Eram
mais de quarenta acusações: que pregávamos que Jesus tinha rela­
ções sexuais com uma prostituta, que nos deleitávamos quando nos­
sos filhos escreviam frases de ódio contra os americanos, nas latas de
leite em pó por eles doadas (eram os anos do programa “Alimentos
para a Paz”), que éramos subvencionados com fundos vindos da União
Soviética. O bom do documento estava justamente na sua virulência:
nem os mais obtusos podiam crer que fôssemos culpados de tantos
crimes. Mas o trágico era precisamente isto: que pessoas da igreja, ir­
mãos, pastores e presbíteros, não tivessem um mínimo de sentimentos
éticos, e estivessem assim tão prontos a nos delatar.

Depois foi a delação direta aos militares. Era uma tarde bem fria,
sábado. O Sílvio Menicucci, prefeito, amigo, me telefonou.

- Venha aqui ao Hotel Central. Há um advogado de Juiz de Fora


com documentos que são do seu interesse.

Não disse mais nada. Não precisava. Compreendí. E gelei. Lá es­


tava o “dossiê”, resultado da incursão militar de meses antes. Eu era
um dos indiciados. O que mais doeu foi que uma das peças básicas
da denúncia era um documento da direção do Instituto Gammon, es­
cola protestante, que funcionava numa chácara que pertencera ao meu
bisavô, e que a vendera aos missionários que fugiam da epidemia de

30
febre amarela em Campinas, nos fins do século passado. As acusa­
ções não eram frontais. Sugestões. Nada temos a ver com este se­
nhor. Mãos lavadas. Vim a Campinas, para pedir que o “Board” diretor
me defendesse. Mas o que encontrei, de novo, foram mãos bem lava­
das. E foi sempre assim. Parecia-me que os protestantes tinham horror
absoluto a qualquer pessoa que estivesse sendo acusada. “Quem não
deve não teme”: o temor já era prova suficiente da culpa. Além do
mais, é muito perigoso ser amigo de quem foi delatado. Está lá no
Cancioneiro da Inconfidência: "Quando a desgraça é profunda, que
amigo se compadece?” Amigo de bruxa deve gostar de bruxaria.
Quem apareceu para ajudar, de forma absolutamente gratuita, foi o
Eugênio, maçon, que eu mal conhecia. Enfermeiro, parteiro, destas
pessoas que conhecem a cidade inteira. Bateu à minha porta. Fui
atender.
Nós soubemos que o senhor está em dificuldades. Queremos
nos oferecer para ajudá-lo..."
E lá foi ele comigo, até Juiz de Fora, abrindo portas com os má­
gicos sinais da maçonaria. Não o esqueci. Mas não havia nada que
pudesse ser feito.
Eu estava muito cansado. Compreendí a inutilidade da luta. Que­
ria ir embora, para longe do medo: poder amar e brincar sem sobres­
saltos, recuperar o prazer perdido de falar meus pensamentos sem vi­
rar a cabeça, à procura de ouvidos, sem baixar minha voz...
Foi então que a “ United Presbyterian Church - USA” (Igreja
Presbiteriana Unida dos Estados Unidos da América do Norte), em
combinação com o presidente do seminário teológico de Princeton, me
convidaram a fazer um doutoramento. Não me esqueço nunca do mo­
mento preciso quando o avião decolou. Respirei fundo e sorri, descon­
traído, na deliciosa euforia da liberdade. Ainda hoje, quando um avião
decola, sinto de novo aquele momento.
Mas, se na partida está a euforia da liberdade,
na chegada está a tristeza do exílio.
Aquele não era o meu mundo.
Olhava os meus colegas, passeando pelos gramados, sólidos,
claras definições profissionais à sua frente, a luta por credenciais que

31
lhes permitiríam ingressar na hierarquia do saber. Mas o meu desejo
estava longe. Parodiando a Cecília Meireles:

“O corpo naquelas salas,


a alma por longe terra,
em cada vida exilada,
que surda perdida guerra..."
O que o doutoramento exigia de cada um de nós era o domínio
de um campo de saber: “to dominate the field", “scholarship”. Acontece
que eu sonhava com um mundo que perdera. E me assombrava com
as questões que estudantes haviam escolhido como aquelas a que
dedicariam quatro ou cinco anos de suas vidas. Para mim eram fantás­
ticas abstrações, que eu não conseguia ligar a coisa alguma. Lembro-
me dos famosos colóquios com os estudantes doutorais de ética. As
questões mais dolorosas, de vida e morte, eram transformadas em tra­
pézios onde se executavam virtuosismos intelectuais. Porque o que
estava em jogo não era nem a vida e nem a política, mas os exercícios
analíticos em que se jogava uma habilidade intelectual. Mas não me
restavam alternativas: ao exilado só resta obedecer às leis do país que
o acolhe. Teria de aprender a jogar o jogo que todos jogavam.

O que eu desejava era pensar o meu destino.


E o pensamento é algo que acontece como na construção de ca­
sas. Em São Tomé das Letras, as casas são feitas de pedra, nas flo­
restas elas são construídas com madeira, e entre os esquimós se usa
o gelo para fazer iglus. É preciso usar os materiais à mão. O pensa­
mento faz assim também: busca os materiais de que dispõe para com
eles representar-se. Os materiais para o pensamento são os símbolos.
Cada época se pensa com os símbolos que possui. E nem poderia ser
de outra forma, pois o pensar não pode acontecer no vazio. Acontece
que os símbolos de que eu dispunha eram, em grande parte, religio­
sos, precipitados de uma vida, e se eu iria sugerir um “jogo de contas
de vidro”, os símbolos religiosos, partes do meu próprio corpo, teriam
de aparecer.
Este livro é uma meditação rude sobre o meu próprio corpo: o
seu espaço, o seu tempo, seus valores, suas esperanças, suas lutas.
Se percorremos caminhos aparentemente tão distantes da carne que ri

32
e chora é porque o rigor acadêmico proibiu que o corpo falasse. E é
por isto que, para falar, ele tem de se valer das falas de outros, porta­
dores de dignidade e reconhecimento. Se eu simplesmente digo, isto
não passa de minha opinião. Mas se eu cito, já a fala adquire o peso
de evidência e comprovação.

Eu precisava encontrar palavras que ajudassem o meu corpo a


se gerar de novo, agora nesta triste condição de exilado. Porque eu en­
tendo que teologia é basicamente isto - já o disse - um exercício de
feitiçaria sobre este mistério, de que a Palavra se faz Carne, e isto no
sentido mais absolutamente literal.

Aprendi a repetir, como nunca o fizera, aquele salmo terrível, o


137:
“Sentados às margens dos rios de Babilônia,
ali chorávamos,
com saudades de Sião.
Nossas harpas,
já não as carregávamos em nossas mãos:
nós as penduramos chorosos nos galhos dos chorões...
Pois aqueles que nos haviam levado cativos exigiam
que cantássemos,
ordenavam que estivéssemos alegres:
‘Cantai-nos canções da sua terra!'
Mas como poderiamos cantar as canções do nosso Deus
em terra de exílio?
Babilônia,
destruidora,
feliz aquele que se vingar por tudo o que nos fizeste!
Feliz aquele que tomar os teus filhos
e os despedaçar sobre as rochas."
Sei que não é edificante, mas é muito verdadeiro. A nossa ver­
dade nem sempre é bela: às vezes é terrível.
Pensar a espera.
Viver sobre a saudade.
Ser capaz de plantar árvores à cuja sombra nunca me assentaria.

33
Jeremias o disse por mim. Havia, em Babilônia, um bando de re­
volucionários que anunciavam para logo o fim do cativeiro. E o profeta
lhes escreveu aquela linda-medonha carta, que deve ter sido amaldi­
çoada como produto de uma mente derrotada e conservadora:

"Plantai árvores,
comei dos seus frutos.
Construí casas
e habitai nelas.
Gerai filhos,
e dai vossos filhos em casamento.
A demora será longa.
Enquanto se espera é preciso viver."

E então, aquele gesto maravilhoso, Jerusalém sitiada, a invasão


era certa. E o profeta toma os seus bens e compra um campo. Seus
amigos devem tê-lo julgado um louco. É investimento suicida comprar
terra que vai virar morada de chacais, onde vai crescer o capim... Mas
ele diz:
Ainda se plantarão vinhas neste lugar.”
E me pareceu, então, que “ Deus” era um nome que se pronun­
ciava sempre que alguém queria indicar a teimosia da esperança,
quando não havia nenhuma razão para esperar, o absurdo do sorriso,
quando não havia nenhuma razão para sorrir, Abraão construindo um
berço, sendo Sara já velha, de seios e ventre murchos.
"Sei que não há brotos nas figueiras
e nem frutos nas parreiras.
Não se colhem azeitonas
e nos pomares não se encontram frutos.
Nos pastos não se véem rebanhos
e nos currais não se vê o gado.
Todavia,
eu me alegro..."

Não, Deus não é um substantivo.


É esta estranha conjunção, todavia, que enuncia a absurda liga­
ção entre a morte que se anuncia e a vida que brota, a despeito de tudo.

34
Se fosse isto, eu poderia continuar a falar de Deus, como funda­
mento misterioso de uma teimosia de ter esperança. Foi então que
encontrei Bloch como precursor; ele já escrevera aquilo que naquele
momento eu estava me dizendo: “onde está a esperança ali está a re­
ligião.”
Eu queria re-inventar as palavras.
Porque as palavras, de tantas repetições, vão ficando gastas e,
de repente, nada mais são que cascas de cigarra, vazias, agarradas
aos troncos rugosos das árvores, testemunhos de um espaço onde es­
teve a vida. Era isto que eu sentia, em relação aos símbolos da minha
tradição; contas de vidro, opacas e sem brilho. Mas eu as amava. E
imaginava que, quem sabe, tal como acontecia com a lâmpada mágica
do Aladim, elas voltariam a brilhar transparentes, se fossem aquecidas
com sofrimento e esperança. Era esta minha doida-presunçosa espe­
rança: fazer viver uma coisa que, para mim, estava morta.
Este livro é isto: um exorcismo para a ressurreição dos mortos.
Quem sabe (eu pensava), estas coisas que vou escrever serão capa­
zes de ajuntar os conspiradores que amo, mesmo sem ver... E não é
este o segredo de qualquer livro? Que ele seja capaz de dar nomes e
de criar imagens vivas para nossos sonhos de amor? Eu já concordava
com Bachelard: para se convencer é preciso restaurar às pessoas os
caminhos para os sonhos primordiais.

Sonhar Deus de novo, de um outro jeito.


O pedaço arrancado do nosso corpo,
nome não dito da saudade,
satisfação fugaz (como a brisa que passa) do desejo
(inesquecível...)
Conspiradores:
companheiros a quem não precisaria explicar coisa alguma,
pois que respirávamos o mesmo ar: con/spirar...
Pois não é assim?

Entendem não porque expliquemos com clareza, mas porque já o


sabiam muito bem, antes que tivéssemos dito qualquer palavra. Dizem
que há, permeando as coisas físicas que fazem o corpo - músculos,
sangue, ossos - uma coisa invisível, a que deram o nome de alma.

35
Nunca a vi mas acredito, porque sempre me dói com dor que nenhum
remédio pode curar. E ouço, lá no fundo, um grito sufocado contra a
solidão. Pois é, nos mistérios da alma mora a nostalgia pelos amigos.
Era isto: eu pensava naqueles com quem poderia compartilhar, irmãos
por termos comido o mesmo pão amargo. Eles poderíam ser compa­
nheiros de batalhas futuras. Numa linguagem teológica, eu buscava os
contornos de uma eclesiologia nova, que fosse fiel à minha experiên­
cia. O venerável Santo Agostinho, que tem estado a ler as sagradas
escrituras por muitos anos, silenciosamente às minhas costas, do pôs­
ter em que o pendurei na parede, já me havia dito que uma comunida­
de se define em função de um amor comum. Com o que eu concordo.
Não é a origem, é o destino... E como eu me sentia longe e distante
daquela igreja que um dia fora objeto do meu amor! Me lembro do
primeiro dia quando cheguei a Lavras e entrei na igreja vazia, com
seus vitrais coloridos e o órgão de tubos: pensei que seria um bom lu­
gar para passar a vida toda. Agora, que restava da Igreja Presbiteriana
do Brasil que eu amara? Absolutamente nada. Meu desprezo era total,
irremediável, absoluto. A questão das “notae ecclesiae" - as marcas
da Igreja. Não é nada abstrato. É como quando se sai a procurar um
lugar onde se morar, e o coração diz que deverá ter árvores, e a casa
deverá ser velha, para contar muitas estórias (casas novas pouco fa­
lam, porque nunca foram cúmplices de mistérios), e será bom se, dela,
se puder ouvir, de vez em quando, o sino de alguma igreja, para que a
gente não se esqueça nem da infância perdida e nem da velhice que
chega. Assim, a boca vai falando das marcas da casa onde a gente
gostaria de morar. E a mesma coisa pode ser feita em relação ás pes­
soas com quem a gente gostaria de viver: terão que saber brincar, os
olhos com um brilho de eternidade, e haverá tanta confiança que,
àquilo que um disser, todos dirão “amém", sem que haja necessidade
de uma comissão de exame de contas. Igreja, aqui na minha teologia,
é apenas o nome da comunidade com que sonho. O problema é que
tanto Católicos quanto Protestantes pensam que eles já a encontra­
ram. E eu acho diferente: a Igreja é uma Ausência permanente, nome
de um Desejo, horizonte que convida e se afasta...

No princípio este livro era para ser uma eclesiologia. Traduzindo


em linguagem que todos entendem: um exercício em utopia, as marcas
de uma comunidade que não existe em lugar algum (é invisível) e que,

36
por isto mesmo, está em todos os lugares (é católica, universal), um
horizonte do desejo, algo que ainda não nasceu mas que, se nascesse,
o mundo todo sorriria. Como o “ Übermensch” de Nietzsche: homem
que ainda não existe, mas que está em gestação dentro de mim.
A vantagem disto?
Acho que, sobretudo, abrir o espaço para o sonho.
No cativeiro os presos sonham com a liberdade
e no exílio aparecem as canções do retorno.
Um horizonte de esperança.
E quando se espera, o futuro se torna um julgamento sobre o
presente.
Esta tem sido uma das grandes funções da utopia.
Mostrar que um mundo diferente é possível. E, com isto, o absur­
do do presente.

O presente se torna objeto de riso.


Rir das igrejas,
dos partidos,
dos estados.

Se a comunidade sagrada é uma Ausência, futuro de que se tem


saudades, então todas as coisas presentes só podem ser coisas hu­
manas, para sempre.

Não se lhes é permitido erigirem-se como altares.


Nada é sagrado: nem torres, nem programas, nem bandeiras.
Sagrado é apenas o vazio do desejo.

Os altares têm de se abrir para os espaços livres do futuro, onde


moram as coisas ainda não chegadas.

Sobretudo, está vedado a qualquer poder o direito de vida e mor­


te sobre as pessoas.

“Que as espadas sejam transformadas em arados,


que as fardas tintas de sangue sejam queimadas,
que as prisões sejam abertas,
que os escravos sejam libertos..."

37
A eclesiologia se transforma em política:
é política, em sua forma onírica.
Senti que a tarefa do teóiogo é a de ser o bobo da corte:
quando todos proclamam a beleza das vestes do rei, dos para­
mentos dos cardeais, dos ternos dos banqueiros, das fardas dos gene­
rais,
ele proclama
a nudez universal.
Quando o Nome Sagrado é pronunciado todas as fantasias ficam
invisíveis.
Só que eu não percebia o perigo da minha proposta:
quem se propõe a ser bobo da corte
acaba sendo boi para o corte.
Lá mesmo o corte começou.
Disseram que eu não poderia escrever uma tese como aquela
que me propunha escrever. Tese de doutoramento, alegavam, tem de
ser um exercício analítico, pura demonstração de mestria técnica. Tra­
balhar sobre o pensamento de outros. Mas eu me propunha a pensar
meus próprios pensamentos. Minha tese era construtiva. E isto estava
interditado.
Acontece que eu vivia em exílio, aguardando a volta; e era preci­
so pensar a vida. A minha dor não me permitia outra coisa. É sempre
assim: o pensamento aparece no lugar do sofrimento. Se o meu cora­
ção vai pulsando sem problemas, até me esqueço que ele existe. Mas
basta que dê uns tropeções para que se transforme no centro do meu
mundo. Ah! Como me torno consciente dele! O pensamento mora no
lugar onde o corpo me dói. E o meu doía num lugar diferente: minha
dor era a luta para continuar a ter esperanças. Seria terrível se a vida
ficasse só tristeza.
Só pude dizer que a minha tristeza não me deixava alternativas,
que eu tinha de escrever com o meu sangue os pensamentos nascidos
no meu próprio corpo. Faria análise sim, tomando a minha própria car­
ne como texto.
E não é isto que dizem os textos sagrados,
que somos um verbo encarnado?

38
Só que à minha came faltava a respeitabilidade acadêmica de
texto a ser investigado.
Para mim a verdade era bem outra:
eu como o único texto merecedor do meu trabalho intelectual.
Não há nenhuma arrogância nisto.
É que não é possível, a ninguém, estar fora de si mesmo: somos
nossos temas permanentes. Como dizia Feuerbach: o homem é o seu
próprio Absoluto.
E assim aconteceu, contra a interdição acadêmica.
Eu sabia que, para se pensar uma comunidade, é preciso pensar
primeiro a linguagem. É nela que se encontram os seus sonhos de
amor. É somente isto que faz um povo. Os homens e mulheres se dão
as mãos quando possuem um objeto comum de lealdade. Assim, de-
diquei-me a investigar duas coisas apenas: os objetos do desejo (em
jargão psicanalítico) ou objetos de fruição (na fala de Agostinho). Uma
meditação sobre “o obscuro objeto do desejo”. E, com isto, as vicissi-
tudes do poder, para chegar ao objeto do amor. Na verdade, parece
que este é o resumo de tudo o que existe: o poder e o amor. A vida
nada mais é do que uma tapeçaria que se tece sobre estes dois deu­
ses: Marte e Vênus. No meio deles está a nossa bela Terra, onde a vi­
da acontece...
Quando cheguei ao fim da investigação sobre a linguagem, en­
tretanto, já havia escrito mais de trezentas páginas, e o tempo estava
se tornando cada vez mais curto. Como disse o sábio do Eclesiastes,
“escrever livros e mais livros não tem limite, e o muito estudo desgasta
o corpo”. Pedi então ao meu orientador que aceitasse a minha introdu­
ção a uma eclesiologia futura como minha tese. Com o que ele con­
cordou. Já não se tratava então de eclesiologia. Era outra coisa: uma
meditação sobre a possibilidade de libertação. E lhe dei, então, o título
de Towards a Theology of Liberation. Era o ano de 1968.
Por que escolhi este nome, que até aquele momento não havia
aparecido como título de teologia alguma?
Eu havia abandonado completamente a ilusão de que a teologia
pudesse ser um conhecimento de Deus. Deus é um grande e inominá­
vel mistério e o que podemos dizer se refere apenas àquilo que acon­

39
tece em mim, ao me confrontar com aquilo que Rudolf Otto chamou
de “O Totalmente Outro”, “Mysterium Tremendum”. Teologia é antro­
pologia; falar de Deus é falar de nós mesmos (Feuerbach). Não, não
estou transformando o homem em Deus. Estou só dizendo que Deus é
um nome que só é pronunciado nas profundezas do corpo humano.
Assim, não me interessava absolutamente o esforço "científico" de se
escrever tratados de anatomia, fisiologia e psicologia divinas, em mo­
da nos seminários. Como é que tal tarefa incrível podia sequer ser
imaginada como possível? Porque se acreditava que havia uma reve­
lação escrita, nas Sagradas Escrituras. Tanto teólogos fundamentalis-
tas quanto exegetas crítico-científicos comungam nesta crença co­
mum: se chegarmos à verdade mesma do texto teremos chegado ao
conhecimento de um segredo de Deus. Mas eu não podia pensar as­
sim. As Escrituras me eram Sagradas somente porque elas diziam em
linguagem poética aquilo que, dentro de mim, já era um gemido inarti-
culado: revelação dos meus desejos, do Thánatos que me habita, da
Vida que me faz brincar e lutar. Somente eu podia dizer isto: são sa­
gradas, divinas, por serem um espelho de mim mesmo; experiência de
revelação. Assim, o nome da coisa que eu escrevera não podería se
referir a Deus. Era coisa modesta, humana...
Mas também não poderia ser modesta demais. O amor está
sempre em busca de um mundo. A moda, naqueles dias, era a teolo­
gia da esperança, de Jürgen Moltmann. Esperança é coisa bela, que
amo. Mas ela mora dentro da subjetividade, é coisa interior. E isto não
me bastava. Eu não queria só continuar a ter esperança. Queria ser
capaz de perceber os sinais de sua possível realização, na vida dos in­
divíduos e dos povos. Não me bastavam sonhos de jardins: era preciso
saber que jardins poderíam e iriam ser plantados. O amor pelos jardins
tinha de se transformar em manual de jardinagem. A esperança tinha
de se exprimir como política.
Estranho isto: esta metamorfose da teologia em política, este tra­
zer dos céus à terra. Mas eu estava convencido de que, naquele jogo
de contas de vidro que estava jogando, esta substituição era possível.
Este é o segredo da metáfora: isto é aquilo, este pão é o meu corpo,
coisas diferentes são iguais. Mas, de teologia à política? Teologia é
política? De que forma executar este salto mortal sobre o abismo?
Acontece que a teologia cristã se constrói sobre a absurda afirmação

40
da encarnação: Deus se fez homem, etemamente. O que significa que
Deus desaparece, mergulha para todo o sempre na invisibilidade, e a
única coisa que resta para ser vista é o rosto do homem e o jardim que
lhe é prometido. Não Deus, mas o Reino, não o Rosto impossível de
ser contemplado, mas a terra transfigurada. “ Eis que faço novas todas
as coisas..." Era isto: falar sobre este fazer que traz um novo amanhã.
A esperança saía do interior da subjetividade e se derramava sobre a
terra: os desertos se transformam em jardins... E me pareceu que uma
bela imagem poética para descrever este movimento era aquela de um
povo que fora escravo, caminhando pela esperança, através do deser­
to. Ou Jeremias, na amargura de um longo cativeiro, comprando um
pedaço de terra na sua cidade, sitiada, afirmando a teimosia da espe­
rança. Eu sentia que estas eram metáforas poéticas que reverberavam
na minha experiência. Esperança em movimento, lutando por um futu­
ro, (a)feto que deseja sair, mesmo que pela angústia de passagens
apertadas, parto: libertação. “A criação inteira geme, em dores de par­
to...” E assim eu batizei esta tese/filha: Towards a Theology of Libera­
tion, nome que se encontra lá no original e no registro de direitos auto­
rais.
A defesa foi uma batalha. Compreendo. Por decisão própria es­
creví o que quis. Pecado de “superbia”. O texto deve ter ofendido gos­
tos acostumados a teologias mais gentis. Alguma punição deveria ser
imposta. Desejava-se ou a reprovação ou que eu escrevesse tudo de
novo. Meu amigo R. Shaull, entretanto, deixou claro que eu nunca faria
isto. Não suportaria um ano a mais nos jardins suspensos de Babilô­
nia. Passaram-me com a nota mais baixa possível. Não sabia que
aquele era um primeiro afluente, quase sem água e sem nome, de um
grande rio: teologia da libertação...
Um editor católico se interessou pelo meu texto. Ele fez uma re­
serva apenas. O nome do livro era meio esquisito: libertação, nome
sem respeitabilidade teológica, sobre que ninguém falava. O que esta­
va na crista da onda era a teologia da esperança. E ele me sugeriu
mudar o título, para entrar no debate. É sempre mais fácil pegar um
trem que já está correndo que fazer um outro novo, a partir de nada...
E assim ficou: A Theology o f Human Hope (Washington, Corpus
Books, 1969). E, com isto, o nome “teologia da libertação” me esca­
pou... Harvey Cox escreveu o prefácio. Generoso. Nunca me havia vis­

41
to. Nada sabia a meu respeito. E o nome dele já era chave mágica que
abria todas as portas teológicas. E foi assim que ele abriu o que outros
quiseram trancar. Foi o início de uma amizade profunda. Ontem, sexta-
feira, 10 de julho de 1987, celebrei a Páscoa judaica em sua casa. O
sol estava se pondo e sua esposa iniciou a liturgia acendendo as velas
e cantando uma canção cujas origens se perdem no passado. Depois
foi a vez dele, abençoando o vinho e cantando uma outra canção, em
hebraico. Estranho isto: ver um teólogo batista dizendo palavras nesta
língua sagrada, numa tradição diferente... Mas ele logo comentou: “To­
dos nós pertencemos a este passado...” Senti os bons sentimentos de
estar ali comendo e bebendo com con/spiradores, celebrando memó­
rias e esperanças.
Agora sinto-me em paz com algo que já se anunciava no meu
texto, mas eu não tinha coragem de dizer, nem mesmo para mim
mesmo: acho que consigo viver sem Deus.
Um caqui é um caqui: mágico, erótico.
Efêmero.
Maravilhosamente divino.
Um caqui eterno não podería ser comido: não seria objeto de
gozo.
Gozo o caqui e, para isto, não necessito de provas encontradas
mais além das estrelas.
O caqui não tem porquês... Ele é vermelho porque é vermelho.
Assim é a vida,
assim sou eu,
caquis,
companheiros de "barcas e gaivotas”,
e a sua tranquila simplicidade de existir.
Tem uma tristeza, sim.
Todos os pores-de-sol,
todos os abraços de amor,
todas as coisas belas
são tristes.
Somos pranteadores.
Viver é con-viver com a perda.
É isto que nos torna belos: “o olhar de eternidade...”

42
Não que tenhamos visto a eternidade, e que ela se encontre mo­
rando em nós. É a eternidade do desejo, a imensidão da nostalgia, os
espaços sem fim. O Pai nosso mora nos céus, onde voam as aves,
espaço vazio, pura permissão, ausência.
Presença de uma ausência.
Por que escrevo teologia, se não preciso acreditar em Deus?
Não deve, qualquer tratado de teologia, começar com o capítulo “Pro­
vas da Existência de Deus"? Se houvesse provas eu não precisaria fa­
zer teologia. Quando vou à praia não necessito munir-me de provas da
existência do mar e provas da existência do sol. Na praia não penso
nem sobre o sol e nem sobre o mar. Simplesmente gozo, usufruo.
Quem precisa de provas da existência do mar e do sol são os
habitantes dos infernos, onde não existe nem sol e nem mar.
Quem faz ciência de Deus não deve estar muito confiante: ca­
rência de calor, carência do azul...
Na praia o que se faz não é provar: ciência.
É gozar: poesia.
Poesia é o discurso da fruição, da união mística.
Faço teologia por isto.
Porque é belo.
Teologia é como brinquedo:
alegria sem metafísicas...
Gozo no próprio texto.
Porque ele faz bem ao meu corpo.
Sacramento que distribuo aos conspiradores.
Um jeito de fazer amor universalmente,
espalhar minhas sementes,
buscar a suprema alegria de ver, no rosto dos outros,
a alegria de se encontrarem no que escrevo.
Sou-lhes, pelo meu texto,
um caqui.
Tomai e comei: isto é o meu corpo.
E é só isto que eu peço, quase vinte anos depois: que leiam este
texto pensando no poema que poderia ter sido, mas não foi. Bem que
quis ser poema, mas não sabia como, e nem pôde...

43
PS: Se você não é teólogo não é preciso ler A Linguagem do
Humanismo Político como Crítica da Linguagem Teológica (cap. pri­
meiro, III). Lá o caqui está verde, pega na boca, adstringente, e quem
não foi treinado tem vontade de cuspir. Se servi o caqui assim, verde,
é porque havia pessoas que gostavam. Lembra-se do que disse
Nietzsche? O segredo do doutoramento é aprender a gostar de coisas
chatas...

Rubem Alves
(julho/1987)
CAPÍTULO UM

EM BUSCA DA LIBERDADE

O homem é um ser histórico. Ele não nasce no mundo das coi­


sas, das pessoas e do tempo como um produto acabado. Seu ser não
preexiste à história. Torna-se o que é através da história de suas rela­
ções com o meio ambiente. Não é, por conseguinte, apenas um ser no
mundo: torna-se um ser com o mundo. Homem e mundo não se jun­
tam como duas entidades estranhas que estão eventualmente numa
relação de contato, como se fosse uma mente ou um ego que sim­
plesmente notasse aquilo que se lhe contrapõe, ou seja, a matéria. Se
assim fosse, o ser humano seria capaz de perceber o mundo; seria ca­
paz de tirar-lhe fotografias tal como uma câmera fotográfica faz. Mas
homem e mundo permaneceríam permanentemente estranhos um ao
outro. O ser humano não seria capaz de ser penetrado, transformado,
criado pelo mundo. E este, igualmente, não se tomaria humanizado. O
homem podería conhecer e manipular o mundo, porém este não leva­
ria a marca do humano.
O homem se modifica por não ser uma mônada: ele é aberto. Por
ser aberto é capaz de responder, ao invés de simplesmente reagir. O
reagir é um ato que se localiza na esfera do biológico. O responder,
contudo, pertence à esfera da liberdade. O homem responde porque
descobre o seu mundo como se fosse uma mensagem a ele endere­
çada, como um horizonte em direção ao qual pode se projetar. E ao
responder, o mundo torna-se diferente: toma-se histórico. Deixa de ser

45
a isolada esfera da natureza, adquirindo a marca da liberdade. E, pre­
cisamente nesse mesmo ato, o homem se faz histórico; histórico por­
que tomou-se diferente. Após a sua resposta, o ser humano já não é o
mesmo de antes. Na esfera da história tanto o homem quanto o mun­
do permanecem inconclusos, pois as relações possíveis entre eles ja­
mais se exaurem.
A linguagem do homem constitui um espelho de sua historicida-
de. Ela não emerge simplesmente do metabolismo que se dá entre o
ser humano e o seu mundo, mas é proferida como uma resposta às si­
tuações concretas nas quais o homem se encontra. É óbvio que a lin­
guagem nem sempre consiste na expressão da historicidade humana.
Muito frequentemente mostra-se tão-só um conjunto de símbolos que
funciona como uma forma taquigráfica de se representar o comporta­
mento da natureza, ou de se descrever aquilo que objetivamente ocor­
reu. Da mesma forma que um filme depois de revelado reproduz, nu­
ma dimensão diferente, o mundo objetivo das coisas, assim a lingua­
gem pode funcionar enquanto um resultado processado das tomadas
que o homem faz do mundo. Quando a linguagem é histórica, no en­
tanto, ela conta a história humana, o que não implica uma simples
descrição. Ela contém a interpretação humana da mensagem e do desa­
fio que este lança ao mundo, afirmando o que ele acredita seja a sua
vocação, o seu lugar, as suas possibilidades, a sua direção e a sua
função no mundo.
A linguagem histórica não se estabiliza. Permanece tão inconclu-
sa quanto a consciência e a história humanas. Não pode, portanto, ser
reduzida a um conjunto de símbolos matemáticos ou a-históricos. En­
quanto o homem se redescobre e se recria, redefinindo assim a sua
autocompreensão e a sua vocação, a linguagem vai se modificando.
Permanece em movimento ao mesmo tempo em que o homem se
movimenta. Isso se torna claro quando comparamos a linguagem do
adolescente com a do adulto. A do primeiro é feito um rio: fluida, plás­
tica, um interminável processo de se criar novas palavras e abandonar
velhas. Seu caráter efêmero indica o ritmo da experiência adolescente,
o violento processo de mudança, o esforço para se libertar de velhos
valores, a busca de novos significados, a ausência de fixações em
conquistas pretéritas. Consiste numa linguagem representativa de uma
procura. A linguagem do adulto, ao contrário, tende a ser a daqueles

46
que se estabilizaram, se não emocionalmente, ao menos como parte
da sociedade na qual vivem e cuja linguagem adotaram. Tal lingua­
gem indica, portanto, um tipo diferente de experiência, que muito difi­
cilmente poderia ser definida como uma busca.
Na medida em que a linguagem expressa e define uma certa ex­
periência, ela determina os limites de uma comunidade. Uma comuni­
dade depende, para a sua existência enquanto tal, de um senso de
experiência comum, de uma mesma auto-compreensão, de uma meta
compartilhada. Quando os homens falam uma linguagem comum, re­
conhecem-se como participantes de uma mesma compreensão do
mundo, como estando comprometidos com um mesmo projeto, como
unidos por uma vocação comum. Todavia, ao mesmo tempo em que
cria uma comunidade, a linguagem separa os homens uns dos outros.
“Pois a linguagem”, diz Ebeling, “que torna a compreensão possível a
um homem, impede-a a outro. A linguagem cria, simultaneamente, a
compreensão e a incompreensão, une e separa." (Gerhard Ebeling,
The nature of faith, p. 187.) Ela expressa a tensão existente entre uma
comunidade, que tomou uma certa decisão enquanto sua vocação no
mundo, e todas as outras comunidades que são indiferentes ou mes­
mo contrárias a este seu “interesse supremo”.
O aparecimento de uma nova linguagem anuncia, por conseguin­
te, o nascimento de uma nova experiência, de uma nova auto-compre-
ensão, uma nova vocação e, consequentemente, de um homem e de
uma comunidade diferentes. Por meio de sua linguagem, expressiva
de uma auto-consciência singular, a nova comunidade separa-se da
antiga. São criadas novas palavras e novos significados são dados às
velhas. Através de sua linguagem este novo sujeito faz-se presente na
história. Dialogar com este homem, responder à nova realidade que
ele representa mostra-se, desta forma, ocasião para modificações em
seu interlocutor. Não se pode responder sem tornar-se diferente. Se o
interlocutor não se modifica é porque se tornou cristalizado e congela­
do: deixou de ser histórico.

I - Uma Consciência em Busca de Liberdade:


O Humanismo Político

Estamos hoje (1966) assistindo à emergência de um novo tipo de


consciência e ouvindo a nova linguagem empregada por ela. Como in­

47
dicada anteriormente, uma nova linguagem, ao expressar um certo tipo
de experiência, determina uma comunidade. Essa nova consciência e
essa nova linguagem, portanto, anunciam o nascimento de uma nova
comunidade. Vamos nos referir a esta comunidade, por enquanto, co­
mo o “proletariado mundial”. Tornar-se-á óbvio que a palavra “comuni­
dade” não é totalmente adequada para descrever esse proletariado
mundial. Apesar disso, utilizar-se-á dela para indicar que, embora exis­
ta uma tremenda variedade de elementos separando aqueles que fa­
lam essa nova linguagem, permanece o fato de estarem unidos por
uma compreensão comum de sua experiência histórica e, por conse­
guinte, por uma estrutura de consciência semelhante.
É de máxima importância que se tenha em mente que o sujeito
de nossa investigação não é o mundo no qual essa consciência se en­
contra, e sim a maneira como ela se compreende no mundo. Portanto,
“proletariado” não será um termo empregado primordialmente como
descritivo de relações e estruturas sociais, econômicas ou políticas,
mas sim como descritivo da consciência que compreende a si própria
como proletária, no mundo em que se encontra. Preocupar-se-á, aqui,
com a descrição de tal consciência, e não com uma investigação
científica e uma crítica de suas pretensões. Além do mais, não se está
nem sugerindo que a pessoa marginalizada possua sempre uma cons­
ciência proletária, nem que tal consciência possa surgir apenas entre o
proletariado. Ela pode ser encontrada, por um lado, entre muitos gru­
pos estudantis de nações que, social e economicamente, pertencem
ao segmento rico de nosso mundo; por outro, ela também não tem
surgido entre muitos daqueles que, econômica e socialmente, perten­
cem ao grupo dos “despossuídos”. Quando se refere aqui ao “proleta­
riado mundial” temos então em mente uma nova consciência, uma no­
va auto-compreensão, que emprega uma linguagem nova e possui um
senso de vocação específico. E mais do que isso: quando se fala sobre
o proletariado mundial está se indicando que essa nova consciência
converteu-se num fenômeno verdadeiramente ecumênico, unindo po­
vos do Terceiro Mundo a negros, estudantes e a outros grupos das na­
ções ricas. Tal consciência, portanto, não se delimita por fronteiras na­
cionais, econômicas, sociais ou raciais.
A primeira associação que a expressão proletariado mundial nos
traz à mente é a pobreza. Pensamos logo nas massas de trabalhado­

48
res que viveram em condições ultrajantes naqueles países que por
primeiro passaram pela revolução industrial. Este é um bom ponto de
partida, pois parece que essa consciência nasceu primeiramente em
meio aos que descobriram este fato básico em suas vidas: a pobreza.
Foi o reconhecimento de tal fato que levou muitas nações pobres a se
denominarem “Terceiro Mundo". A expressão “Terceiro Mundo” repre­
senta uma recusa em se encaixar na classificação ideológica criada
pela guerra fria. Tais nações não pertencem a nenhum dos dois mun­
dos, o do leste e o do oeste. O seu é um mundo terceiro: o da pobreza,
da carência. Elas são subdesenvolvidas. Inicialmente pensava-se que
essa situação de subdesenvolvimento fosse simplesmente um estado
anterior ao desenvolvimento, isto é, que tais nações estivessem a ca­
minho de se desenvolver. Esperavam eventualmente alcançar o cha­
mado ponto de decolagem, no qual sua inércia seria vencida e uma
mudança qualitativa iria ocorrer: passariam para o outro lado, tornando-
se parte daquele mundo formado pelas nações ricas. Tal esperança,
todavia, está desaparecendo. A consciência proletária tornou-se sabe-
dora da brutal realidade desse crescente abismo que separa as nações
pobres das ricas. As ricas ficam mais ricas. As pobres, mais pobres. As
subdesenvolvidas não podem, assim, evitar um sentimento de fracasso
ou de inferioridade, dada a sua incapacidade de conseguir até mesmo
o essencial para a sobrevivência física de suas populações, tendo de
encarar diariamente a realidade da fome e da inanição. Ao mesmo tem­
po, têm de se defrontar com as economias da abundância, do desper­
dício e da guerra, das nações ricas do mundo.

A experiência do negro nos Estados Unidos é basicamente a


mesma. O que era ele? Nada mais do que um homem que vivia
aquém das fronteiras de uma economia abundante. Os frutos de tal
economia estavam ali, diante dele: excelentes escolas, ricos bairros
residenciais, bons empregos, carros luxuosos, uma vida de lazer. Mas
ele não era admitido neste mundo exclusivo. E lá ficava, à margem da
sociedade, vivendo nos "buracos" deixados pelo homem branco. Sua
sociedade era a do gueto e da favela, num chocante contraste com a
sociedade branca dos subúrbios ricos. Assim como o homem do Ter­
ceiro Mundo sonhava em fazer parte das nações desenvolvidas, o ne­
gro sonhava com a integração, sonhava em ser aceito na e pela socie­
dade branca. Queria tomar parte nela: viver nas mesmas vizinhanças,

49
comer nos mesmos restaurantes, ter os mesmos empregos, frequentar
as mesmas escolas e as mesmas igrejas dos brancos. Queria estar li­
vre da segregação racial, de forma a ser aceito no mundo do bem-es­
tar econômico.
Porém, uma notável mudança ocorreu na compreensão que o
negro tinha de si mesmo. Ambos, o homem do Terceiro Mundo e o
negro norte-americano, tomaram consciência de que, apesar da po­
breza ocasionar um terrível sofrimento, ela não constituía problema
fundamental. Notaram, assim, que não eram simplesmente pobres,
mas que foram tornados pobres. Sua pobreza era consequência de
uma relação colonial em que o poderoso dominava e controlava a vida
do mais fraco. O colonialismo não fora apenas uma situação do pas­
sado. Ele era, sim, intrínseco às relações entre pobres e ricos, e, com
efeito, a própria causa da pobreza. Mais do que isso, o colonialismo
passou a ser visto como uma relação em que aos dominados não se
permite que se tomem criadores de sua própria história, pois estão re­
duzidos a uma situação de reflexividade. Ou seja: a vida das nações ou
dos grupos coloniais não era planejada segundo as suas próprias ne­
cessidades, e sim de acordo com as necessidades da economia dos
grupos dominantes. As vidas dos dominados haviam se tornado sub-
sistemas que reagem sempre de acordo com os estímulos dos seus
senhores, sem nunca conseguir modificar as relações de dominação
em que se encontram. Por isso, o subdesenvolvimento passou a ser
entendido não mais em termos temporais, e sim relacionais; passou a
ser visto como “soò-desenvolvimento”: o resultado de uma relação na
qual o rico e poderoso se coloca sobre o pobre e o fraco. Para a cons­
ciência proletária isso explicava porque, após todos os programas de
ajuda ao desenvolvimento patrocinados pelas nações desenvolvidas,
as subdesenvolvidas se tornavam, mais do que nunca, uma presa fácil
do crescimento anormal de suas contradições internas, da deterioração
de suas economias e do abismo que as separava das nações ricas. E
como poderia ser de outra forma, se não lhes havia sido permitido se­
rem sujeitos de seu próprio desenvolvimento?
Os negros norte-americanos têm uma experiência parecida. Seu
passado consistia na história de sua impotência face ao domínio do
homem branco. Não podiam se lembrar de quando haviam sido sujei­
tos de sua própria história. A única coisa que sua memória guardava

50
era a presença do “eles” anônimo da sociedade branca, um “eles" que
os havia forçado à situação de reflexividade. Tanto quanto podiam se
lembrar, seu futuro tinha sido imposto, e não escolhido livremente.
Nunca haviam sido os criadores de sua história, mas objetos da histó­
ria de outrem.
A consciência proletária modificou-se, então, de consciência da
pobreza para consciência da impotência, ou melhor, para a consciência
de ter se tornado impotente perante a história. É esse sentimento o
que torna possível a uma nova geração de estudantes identificar-se
com a causa do negro e com as nações do Terceiro Mundo. Obvia­
mente, eles não se identificam pela pobreza. Tais estudantes são bem
alimentados, bem vestidos e com todas as portas da riqueza abertas
diante de si. Estão identificados, sim, pela experiência comum de não
lhes ser permitido tornarem-se criadores de sua própria história. Foram
colocados numa universidade que, nas palavras de Clark Kerr, mostra-
se "uma fábrica para a produção de conhecimentos e técnicas a servi­
ço das muitas burocracias da sociedade." Se isso é algo normal para
os que agora controlam a sociedade, para os estudantes significa que
estão sendo preparados para se ajustarem e servirem a um sistema
estabelecido. Desta maneira, têm de apreender como participar de “um
jogo no qual todas as regras já foram determinadas, sem que possam
ser alteradas." Para o bem do sistema, e como condição necessária
para que sejam nele admitidos, “devem reprimir os impulsos mais cria­
tivos que possuem em si." (S.M. Lipset e S. S. Wolin, eds., The Berke-
ley student revolt: facts and interpretations, pp. 213 e 219.)
Consequentemente, os estudantes passaram a se ver como víti­
mas de uma conspiração adulta que cria as instituições educacionais,
intituições estas que, na verdade, são “fábricas” que “produzem pes­
soas bem acabadas, com as arestas aparadas", (ibid., p. 219.) Portanto,
eles se consideram uma classe explorada, já que o seu lado não é
empregado para a construção do seu mundo, e sim para a preservação
do mundo adulto. “Os adultos suspeitam dos jovens, e são particular­
mente temerosos quanto à direção que eles poderíam imprimir ao futu­
ro, que consiste ainda num futuro dos adultos”, comenta Pierre Furter.
O adulto racionaliza: “o jovem é bom... mas deve ser orientado”. Con­
tudo, “a meta desta cínica e hipócrita atitude não é ‘fazer do jovem a
causa da história’ , e sim torná-lo seu objeto. Tem-se então de inven­

51
tar técnicas que os condicionem, influenciem, orientem e - por que
não? - promovam-lhes uma lavagem cerebral. Tudo isso de modcque
a juventude faça aquilo que nós, os aduMtos, acreditamos que deva ser
feito.” (Pierre Furter, Caminhos e descafmmhos de uma política da ju­
ventude, em Paz e Terra, n9 3, pp. 27 e 2?8.)
Aqui está o denominador comum i que identifica a consciência
proletária: a consciência de dominação psor um poder que não lhe per­
mite criar a própria história. Dentro desssas relações de dominação, "a
história de fato chegou ao fim”. (Mário íSávio, em Lipset e Wolin, Ber-
keley student revolt, p. 217.)
O colonialismo não é uma situaçãio nova. Ela é, de fato, muito
antiga. Novo, porém, mostra-se o fato deí a consciência, antes submer­
sa nessa relação, e por ela condicionadas ter emergido. No passado o
colonialismo obteve tanto sucesso que fo>i capaz não apenas de manter
o homem oprimido, mas também a sua (Consciência. E uma consciên­
cia oprimida é toda aquela consciência cdomesticada pela situação de
opressão em que se encontra. Consistte numa consciência tomada
verdadeiramente reflexa*, incapaz de serr sujeito, desprovida do senso
de direção e de vocação histórica. DonTiinada pela reflexividade, tal
consciência jamais poderia falar. Incapazees de entrar em diálogo crítico
com seu meio ambiente, devido â relação de dominação que as opri­
mia, as sociedades colonizadas tornaram-se então “mudas”.1
Sua linguagem não expressava urrna auto-consciência histórica,
já que haviam sido reduzidas à a-historiciidade pelo colonialismo. Fala­
vam uma linguagem que não lhes pertencia: repetiam, feito um eco, os
slogans daqueles que as dominavam.*1 2

* "Reflexive", no original. Se traduzida por "rellJexiva", a palavra adquiriría, em portu­


guês, o sentido oposto ao pretendido pelo autor, já quJe uma "consciência reflexiva" é justa-
mente aquela que pensa e interroga. Assim, optou-see por “ consciência reflexa", querendo
significar uma consciência que náo indaga e não racitfocina para agir, mas apenas reproduz
como um reflexo do espelho. (N. do T.)
1. "As sociedades a que se nega o diálogo —ccomunicação - e, em seu lugar, selhes
oferecem ‘comunicados’, resultantes de compulsão ou ‘(doação’ se fazem preponderanterrcnte
‘mudas’. O mutismo não é propriamente inexistência dde resposta. É resposta a que faltaleor
marcadamente crítico." (Paulo Freire, Educação como prrática de liberdade, p. 69.)
2. "De Paris, de Londres, de Amsterdã, pronunc-iávamos as palavras "Parthenon! Fra­
ternidade!', e em algum lugar da África ou da Ásia lábio>s se abriam ‘...thenon! ...nidade!'Esta

52
Moldada pela reflexividade e pelo mutismo, a consciência opri­
mida foi reduzida à paralisia. A ação criativa só é possível no contexto
da esperança e do poder, só é viável quando o homem vislumbra um
futuro e acha-se poderoso o suficiente para domar o meio ambiente
através de sua atuação, de forma a alcançar a sua meta. A consciên­
cia oprimida, porém, é desprovida desses dois elementos: esperança e
poder. Não possui qualquer futuro. O futuro pertence ao seu senhor. A
ação, por conseguinte, não cria um novo futuro, pois tal consciência
está sempre dominada pelo amo. Portanto, a consciência oprimida é
incapaz de planejar o futuro. Apenas joga com ele, fazendo apostas: a
vida é uma grande loteria. Retrai a sua ação, recusando-se, defensi­
vamente, a trabalhar. Não há como ser de outra maneira. A inação do
homem oprimido é um reflexo da impotência à qual foi reduzido pelo
colonialismo. Sua “preguiça" (que sempre é usada pelo senhor para
explicar o problema aos pobres) não é um vício. Ela se mostra, isso
sim, produto de uma relação de dominação na qual o homem é tritura­
do, além de consistir também numa reação de defesa natural e neces­
sária contra tal relação.3
Hoje, contudo, algo se modificou. O homem ainda oprimido co­
meçou a falar uma linguagem diferente. Uma linguagem própria, que
indica ter ele emergido para a história. Ele agora percebe a situação
de opressão que o domina, e a sua consciência não se acha mais do­

loi a era dourada." (J.P. Sartre, em seu prefácio para The wretchedollhe earth, de Frantz Fa-
non, p. 7.)
A obra de Fanon encontra-se traduzida e publicada no Brasil pela Editora Civilização
Brasileira, com o título Os condenados da Terra. (N. do T.)
3. A relação entre o "mutismo" e a impotência para uma ação que produza o novo não
é encontrada apenas entre os povos pobres, pois não constituem primeiramente sintomas de
privação econômica, e sim de uma consciência oprimida que ainda não emergiu para a histó­
ria, tomando o mundo tal qual ele é. Assim, o jovem estudante americano dos anos cin­
quenta apresentava os mesmos sintomas de a-historicidade. Ele “ desejava muito pouco, pois
tinha muito... e não queria arriscar o que possuía. Envelheceu antes do tempo; chegava quase
â meia-idade antes dos vinte. O universitário dessa época era tipicamente um jovem orientado
profissionalmente que buscava, quase como uma idéia fixa, um lugar que o protegesse e que,
segundo lhe disseram, podería perder se "arriscasse” algo. Mantinha a boca fechada e o olhar
fixo; aspirava apenas a alcançar um lugar melhor, idêntico àquele em que nascera ou a este
ao qual seu pai, recentemente e após muito suor, ascendeu". Esta geração "carregará a ru­
brica de Geração Silenciosa", e “ o desamparo pode ser a chave" para a sua compreensão.
Perceba a relação entre o silêncio, o desamparo e a ação direcionada ao estabelecido. (Lipset
e Wolin, Berkeleystudent revolt, pp. 385-386.)

53
mesticada. Está determinado a se libertar historicamente. No passado,
o futuro esteve-lhe fechado, e a sua consciência cerrada ao futuro.
Hoje, apesar de. o futuro ainda permanecer fechado, sua consciência
está aberta a ele. Este homem se insere num presente histórico como
uma contradição, uma negação, que conduz a um novo amanhã. Tor­
nou-se um sujeito histórico, com senso de vocação definido. A nova
linguagem anuncia que um homem novo nasceu na história.

A contradição entre a abertura da consciência para a criação de


um novo futuro e a realidade das sociedades fechadas nas quais ela
se encontra, empresta a essa nova linguagem um caráter fundamen­
talmente negativo. O caráter opressivo de seu presente "é transforma­
do dentro de si mesmo numa obstinada recusa da condição animal”.
(Sartre, prefácio para The wretched of the earth, p. 15.) Não se tem de
concordar com Frantz Fanon para se entender a sua análise da cons­
ciência dos povos oprimidos. O colonialismo, diz ele, distorceu-os en­
quanto seres humanos, o que se constitui numa forma de violência,
pois impede ao homem qualquer relação livre com o seu mundo e o
seu futuro. A violência a que foi submetido este homem tornou-se par­
te de seu próprio ser. Ela o criou à sua própria imagem. E agora, por
ter-se decidido a tomar nas mãos o seu próprio futuro e destino, não
pode evitar a explosão daquela violência que o colonialismo injetou-lhe
nas veias. Tornou-se violento a fim de voltar à normalidade de um ho­
mem livre, por meio da destruição desse poder que o reduziu à inuma-
nidade. (Cf. Fanon, The wretched of the earth.) A violência expressa a
sua recusa da condição animal â qual foi reduzido pelo seu senhor.

Tal processo pode ser descrito como um processo de emergência


da liberdade. O homem deixa de ser um ser unidimensional, cuja
consciência se encontra submersa nos fatos que lhe são exteriores. Ela
ganha distância. Olha os fatos como algo que lhe é oposto. O homem
não consiste mais numa repetição reflexa de seus contatos com o
mundo. Nasce para a liberdade ao se fazer crítico. (Paulo Freire, Edu­
cação como prática de liberdade, pp. 40 e ss.)

Essa negação básica, portanto, não brota da inveja do escravo


pelas “coisas” dos senhores. Ela não antevê um mundo onde os opu­
lentos serão saqueados pelas massas invejosas que, então, tornar-se-
ão ricas. A questão central não são as “coisas", mas a liberdade para

54
se criar a história. Por isso, uma sociedade que cria e perpetua o ho­
mem como um animal reflexo é rejeitada por esta consciência.
A transformação experimentada pelo movimento dos direitos ci­
vis parece provar este ponto. De início, os negros eram oprimidos pelo
sentimento de privação econômica. Queriam se integrar à sociedade
branca, de maneira a compartilhar a sua riqueza. Contudo, precisa­
mente quando os brancos liberais começaram a se mexer para dar-lhe
espaço, o negro percebeu que seu problema fundamental não consis­
tia na privação econômica, e sim na falta de poder. Ele se descobriu
então “como o único caso de colonialismo” em meio a uma sociedade
de abundância. A comunidade negra constituía uma “colônia” e, con­
sequentemente, os negros tinham “suas decisões políticas tomadas
pelos senhores coloniais”. (S. Carmichael e C. V. Hamilton, Black po-
wer, pp. 3, 5 e 6.) Ela entendeu assim que a integração exigia “que o
negro abrisse mão de sua identidade de negro", tornando-se parte “das
principais instituições da sociedade, instituições das quais [tinha] sido
tradicionalmente excluído”. (L. Killian e C. Grigg, Racial crisis in Ameri­
ca, pp. 55 e 53.) A nova consciência, porém, via as coisas de forma di­
ferente. O principal problema não consistia em participar da riqueza da
sociedade branca. O negro precisa se resgatar, tornando-se criador de
sua própria história. Porém, isso apenas será possível se ele detiver o
poder. Sua consciência transfere-se então da integração para o “black
power” (poder negro). Com isso, pretende desempenhar um papel cria­
tivo na história.4
O protesto dos estudantes tem o mesmo significado. Eles estão
profundamente conscientes da desumanidade da sociedade branca.
Tal desumanidade não repousa na incapacidade dessa sociedade para
a produção de bens; ela os produz com o maior sucesso. Os estudan­
tes protestam, sim, por se sentirem um grupo explorado que vai sendo
preparado para funcionar como parte de uma sociedade fechada e fi­
nal que se acredita correta, apesar de todas as contradições que vem

4. “ Os Negros estão reconhecendo o sentido da tragédia vivida por eles em nosso sé­
culo. Recusam-se a serem integrados à civilização branca, pois a consideram acabada. De-
•.e|am, assim, desempenhar um papel criativo na história. Os escritores negros nos advertem
de que a civilização branca está em vias de perecer pela servidão que eia impôs aos Negros."
(Jnn Czmecky, “ Revolution noire aux Etats Unis", em Christiamsme social, janvrier-fevrier,
1967, p. 91.)

55
criando em termos de injustiça, interna e internacionalmente. Eles
também recusam a integração. "Em crescente número, não desejam
tornar-se parte dessa sociedade. A partir de sua posição social periféri­
ca são capazes de manter valores humanos, valores esses que, sa­
bem, serão distorcidos ou destruídos quando adentrarem ao prático e
comprometedor ‘mundo adulto’." (Lipset e Wolin, ob. cit., p. 225.) Sentem
que a sociedade branca deve ser rejeitada, seja retirando-se dela - atra­
vés de um estilo de vida que nega a imagem ideal que ela mesma
criou -, seja por meio de uma ação radical contra ela. “É preferível
morrer do que ser padronizado, substituível e irrelevante." (ibid., p. 219.)
Como primeira expressão da liberdade humana, ao reagir ao so­
frimento criado por sua situação, a negação pode parecer irracional,
desprovida de uma proposta clara, a um observador distante. Muito
frequentemente este é o caso. Porém, como podería ser de outra ma­
neira? O homem distanciado acha que é fácil manter-se frio, que é fá­
cil agir de forma calculista. No entanto, como se pode esperar tal com­
portamento do homem que experimenta a morte em vida? Será a sua
reação, a sua negação, menos humana, menos verdadeira, menos au­
têntica, por causa disso? Este homem provavelmente é incapaz de de­
finir com a precisão da lógica científica os fundamentos e a meta de
sua negação. Ela emerge, primeiramente, como uma “realidade mo­
mentânea", como um grito de dor, de raiva e de recusa. Mas se ex­
pande; torna-se uma “sinfonia da negação”, que inclui não só o tipo de
violência descrito por Fanon, como ainda o humor do comediante que
ridiculariza o status quo e a determinação do cientista e do filósofo pa­
ra desempenharem o papel de críticos de suas sociedades (e não me­
ramente as funções analíticas e descritivas que comumente lhes são
atribuídas).

O fato surpreendente a respeito dessa consciência crítica que


nega o mundo em que está inserida consiste no fato de que ela se re­
cusa a permanecer negativa. Negar significa rejeitar a suprema valida­
de do presente estado de coisas. Porém, devido ao presente não ser
visto como final, faz-se possível e necessário buscar as possibilidades
que nele só aparecem como ausências. A consciência projeta-se então
em direção ao futuro, fazendo nascer a esperança. “Esse clima de es­
perança”, assinala Paulo Freire, “nasce no momento exato em que a
sociedade inicia a volta sobre si mesma e descobre-se inacabada, com
um sem-número de tarefas a cumprir. (...) a desesperança e o pessi­
mismo anteriores, em torno de seu presente e de seu futuro, como
também aquele otimismo ingênuo, substituem-se por otimismo crítico.
Por esperança...” (Paulo Freire, ob. cit., pp. 54-55.) Descobre-se que “a
história não está terminada, que uma sociedade melhor é possível e
que vale a pena rnorrer por ela". (Lipset e Wolin, ob. cit., p. 218.)
Assim, tal consciência está determinada, por um lado, pela apre­
ensão do caráter inumano e, por conseguinte, contraditório da socie­
dade, e, por outro, pela descoberta tanto do caráter de inconclusão do
mundo como dos horizontes abertos que convidam à criatividade e à
experimentação. Todavia, feito um amante, ela não permite que sua
posição permaneça subjetiva. Quer fertilizar a terra, gerar um filho,
criar um novo amanhã no qual a sua negação e a sua esperança tor-
nar-se-ão históricas. Mas tal possibilidade apenas se transforma em
realidade pela mediação de atos livres. “ Somente quando a consciên­
cia está ciente do fato de ser ela a causa dos atos livres", aponta A. V.
Pinto, “ela pode se tornar origem de um plano de existência para a
comunidade, isto é, do plano de sua liberdade.” (A. V. Pinto, Consciên­
cia e realidade nacional, p. 527.) O novo amanhã, portanto, não é me­
diado pela lógica imanente aos fatos do presente estado de coisas. Na
verdade, é esta mesma lógica que é negada pelo novo sujeito. O que
ele deseja é introduzir na história uma lógica não derivada daquilo que
é dado, e sim derivada da criação humanizante da liberdade, criação
esta que nega a divindade e o caráter determinante dos fatos. O hu­
mano, assim entendido, não emerge dos fatos que agora produzem
o inumano. O humano é criação de um sujeito humano, cuja consciên­
cia coloca-se contra a contradição dos fatos. Somente uma consciên­
cia dessas é capaz de moldar o novo amanhã de acordo com a sua
esperança.
A liberdade, assim, é subordinada e posta a serviço das condi­
ções concretas da vida humana no mundo. No fim da libertação tem-
se de encontrar uma “dádiva": um mundo mais humano. A sociedade
“será racional e livre", assinala Marcuse, “na medida em que seja or­
ganizada, sustentada e reproduzida por um sujeito essencialmente no­
vo”, um sujeito que não está submerso e determinado pela lógica dos
fatos dados. (H. Marcuse, The one-dimentional man, p. 252.*) Desta

* Traduzido e publicado no Brasil com o título/4 ideologia da sociedade industrial, pela


Zahar Editora. (N. do T.)

57
maneira, uma sociedade e um mundo mais humanos são mediados
por um ato através do qual a liberdade do novo sujeito torna-se históri­
ca. Apenas por meio de seu ato o homem pode se fazer criador da his­
tória.

Este homem não pode, portanto, aceitar a proposta dos senho­


res, qual seja, a de criar-lhe um futuro. Se o seu futuro for criado pelos
senhores, ele, ser humano, permanecerá um “objeto", e o novo futuro
não consistirá na encarnação de sua negação e de sua esperança, e
sim num outro triunfo do senhor sobre ele. Aqui repousa o perigo dos
programas de ajuda que as grandes nações do mundo propõem às po­
bres, como sendo a solução para a sua situação de subdesenvolvimento.
“O grande perigo do assistencialismo está na violência
do seu antidiálogo, que, impondo ao homem mutismo e
passividade, não lhe oferece condições especiais para o
desenvolvimento ou a \abertura’ de sua consciência que,
nas democracias autênticas, há de ser cada vez mais
crítica. (...) É esta falta de oportunidade para a decisão e
para a responsabilidade... que leva suas soluções a con­
tradizer a vocação da pessoa em ser sujeito..." (Paulo
Freire, ob. cit., pp. 57 e 58.)

A humanização, por conseguinte, não se faz através de pana-


céias econômicas. Ela existe na medida em que cada homem, como
um sujeito livre, cria o seu futuro, futuro este que o liberta da passivi­
dade na qual o senhor o mantém. “O homem só é verdadeiramente
homem” , observa Paulo VI em Populorum progressio, “quando é se­
nhor de seus próprios atos e juiz de seus valores, quando é o autor de
seu próprio progresso.” (Populorum progressio, n9 34.)55

5. “A reordenaçáo da sociedade numa forma mais justa, eqüitativa e humana, diz res­
peito mais intensamente aos pobres, trabalhadores, camponeses, às classes sociais que se
encontram mantidas, pela força, à margem da sociedade, sem possibilidades de acesso aos
seus bens e serviços, e incapazes de participar de suas decisões; decisões que, exatamente
por dizerem respeito diretamente aos interesses dos pobres e marginalizados, não deveríam
ser tomadas sem a sua participação ativa. Ninguém deveria ocupar o seu lugar na tomada de
decisões básicas referentes aos seus interesses, mesn.o com a desculpa de fazê-lo melhor do
que eles.” (Pedro Arrupe, Superior Geral dos Jesuítas, Ada romana socieialis Jesus, vol. XIV,
fase. VI, pp. 292-973.)

58
A nova auto-consciência das negros e dos estudantes comparti-
llia esta mesma visão, qual seja, a de que a partir de uma sociedade
fechada e inumana nenhum novo> amanhã irá brotar por si mesmo. Se­
tes humanos livres têm de tom,ar o poder em suas mãos a fim de
criá-lo. Eles sabem que “os senhores são capazes de melhorar a vida
do escravo, melhorando assim a sua exploração". Porém, tão-só “o es­
cravo é capaz de abolir os senhores e de cooperar com eles.” (Marcu-
so, ob. cit., p. 142.)
Para se compreender esta nova consciência não basta ter-se em
mente a dialética entre a negação e a esperança, que a determina.
Deve-se estar ciente do seu caráter radicalmente histórico e secular.
Ela é determinada pela negaçãc) e pela esperança, e não por tomar
como ponto de partida uma verdé^de maior do que a história. Tal cons­
ciência nega a história em nome da história e a partir do próprio inte­
rior da história. O presente é negado porque o homem, vivendo nela,
apreende tudo aquilo que cria a dior, o sofrimento, a injustiça e a ausên­
cia de futuro da história. Devido ao presente ser historicamente doloro-
\o e, portanto, desumanizante, e?le tem de ser negado. A esperança
não se deriva de uma idéia a-histórica a respeito de uma sociedade
perfeita; ela constitui, ao contrário), a forma positiva assumida pela ne­
gação do presente inumano e negativo. A insatisfação da consciência
"não se origina da percepção de um padrão apriorístico, anterior à per­
cepção dos fatos e, por isso, eterno", comenta A. V. Pinto, “mas sim de
seu desacordo com o modelo de futuro obtido a partir de sua percep­
ção da presente realidade. O plano provém da realidade, é empírico, e
esta é a razão de sua eficácia.’’ W V. Finto, ob. cit., p. 527.) Esta
consciência, assim, brota da história e para ela permanece voltada.

Aqui o homem atinge uma nova auto-compreensão. Descobre-se


como um sujeito histórico, como alguém que gera um novo amanhã. É
esta a sua vocaçao, e nela ele encontra a sua humanidade.

A criação da história, contudo, só é possível por meio do poder.


Somente através do exercício histórico do poder é possível negar-se o
hoje inumano e abrir-se caminho rumo a um futuro mais humano. Por­
que o homem está presente em sua ação, o novo dia por ela criado
pode ser mais amigável. O uso do poder, portanto, constitui a forma
histórica assumida pela liberdade^ do ser humano, pela sua transcen­

59
dência em relação aos fatos dados. Porém, o emprego do poder é um
ato político. Por isso, a nova consciência acredita que um novo homem
e um novo amanhã só serão criados por meio de uma atividade carac-
teristicamente política. A política seria, assim, a prática da liberdade,
uma atividade do homem livre com o intuito de criar um novo amanhã.
Neste contexto, a política não mais é eintendida como uma atividade
de poucos, como um jogo de poder das; elites. Antes, ela consiste na
vocação do ser humano, pois todos são chamados a participar, de uma
forma ou de outra, na criação do futuro. A política torna-se, para esta
consciência, o novo evangelho, a anunciação da boa nova: se o ho­
mem emergir da passividade e da vida reflexa, como sujeito da histó­
ria, um novo futuro poderá ser criado. Ela desafia o homem: "buscai
primeiramente o reino da política e de seu poder, e tudo isso será vos­
so."6
Tem-se aqui uma nova compreensão do homem - de fato, um
novo paradigma da humanização. A libertação humana mostra-se o re­
sultado da atividade responsável do homem, quando este assume o
risco de criar um amanhã mais amigável. Se se perguntasse a este
homem: "qual é a forma do novo amanhã?’’, "o que é esta humaniza­
ção que você persegue?”, provavelmente ele falaria das exigências de
sua situação, das tarefas que a sua sociedade ainda tem pela frente.
Porém, não teria uma definição apriorística do humano, pois, no pro­
cesso de criação do mundo., acredita ele, o homem se torne diferente,
descobrindo novas dimensões e novos critérios para a humanidade.
Desta forma, a linguagem a respeito da humanização apenas pode ser
falada “no caminho”, no contexto histórico no qual o homem se encon­
tra e a partir do compromisso dele exigido pelo seu hoje e seu ama­
nhã. Trata-se de um novo tipo de humanismo, baseado não numa de­
finição abstrata da essência do homem, e sim na liberdade humana
para recriar novamente o seu mundo e a si próprio, de acordo com sua

6. Esta paráfrase do texto bíblico (Mt. 6:33) atribui-se a Nkrumah. Bola Ige, represen­
tante de uma nação africana na "World Conference of Church and Society" (Genebra, 1966),
comenta que "mesmo soando sacrílego a alguns ouvidos, isso acende a imaginação dos po­
vos das novas nações. Para nós, a política é a arma mais importante com a qual se pode criar
um novo tipo de homem e de sociedade, criar o novo e apropriado sistema que desejamos e
gerar a energia necessária para se enfrentar os velhos poderes." (Cf. Adendo ao seu discurso
“ The political dynamics of the new awakened peoples” , mimeografado, World conference of
church and society, Genebra, 1966.)

60
própria escolha. Trata-se de um humanismo político. E, mais do que
isso, consiste num novo tipo de messianismo, que crê que o homem
possa se libertar apenas através dos poderes humanos: um messia­
nismo humanista.7

II - A Consciência do Humanismo Político e sua Crítica à


Linguagem do “Tecnologismo”

A linguagem do humanismo político é a linguagem da esperança.


Ela nega, mas não permanece negativa. Olha para o futuro e ama as
possibilidades que poderiam tornar-se históricas se o homem aceitas­
se o desafio de converter-se no criador da história.
A esperança que ela apresenta, no entanto, é quase eclipsada
pela linguagem brilhante do “tecnologismo”: um tipo de consciência
que vê a tecnologia como caminho para o futuro, citando as maravi­
lhas tecnológicas como prova de suas convicções. Aqui encontramos
uma linguagem de irresistível otimismo: ela proclama deter o poder e a
habilidade para transformar a Terra de deserto em jardim. Mark Twain
expressou essa esperança infinita e essa expectativa numa carta que
escreveu para Walt Whitman pelo seu septuagésimo aniversário:
"Você viveu justamente os setenta maiores anos da his­
tória do mundo, e os mais ricos em benefícios e avan­
ços para os povos. Estes setenta anos fizeram muito
mais para ampliar a distância entre o homem e os ou­
tros animais do que foi feito nos cinco séculos que os
precederam. Que grandes nascimentos você testemu­
nhou! A prensa a vapor, as embarcações a vapor, o na­
vio de aço, a estrada de ferro, o descaroçador perfeito
para o algodão, o telégrafo, o fonógrafo, a fotogravura, o
eletrotipo, a luz a gás, a luz elétrica, a máquina de cos­
tura e os infinitamente variados, extraordinários e inu­
meráveis derivados do carvão, as mais recentes e me­
lhores maravilhas de uma era maravilhosa. E você viu

7. Devo ao prof. Paul Lehmann a expressão “ messianismo humanista", que se aplica


perteitamente à descrição do humanismo político aqui empreendida. (Cf. Ideology and incar-
nalion, p. 25.)

61
ainda nascimentos melhores do que estes; pois viu a
aplicação da anestesia à prática cirúrgica, pela qual o
antigo domínio da dor, iniciado quando a primeira vida
foi criada, chegou ao seu fim nesta Terra... Sim, você
realmente viu muito - mas espere um pouco, pois o
maior ainda está por vir. Aguarde trinta anos e então
olhe para a Terra! Verá maravilhas e mais maravilhas
acrescidas àquelas cujo nascimento você presenciou; e,
visível ao seu redor, verá o Resultado - o homem final-
mente tendo quase atingido a sua inteira estatura - e
ainda crescendo, nitidamente crescendo enquanto você
olha... Espere até ver que grande figura surgirá, e perce­
ba a distante cmtilaçâo do sol em sua bandeira; então
poderá despedir-se satisfeito, sabendo ter visto aquele
para quem a Terra foi feita, e que proclamará ser o trigo
humano mais que o joio humano, organizando então os
valores do homem em tal base." (Ass.) MARK TWAIN
(Citado por Lewis Mumford, The condition of man, pp.
305-306'.)

É este o ium qeral da linguagem dos profetas da era cibernético-


cultural. Em sua esfera, o amanhã e a esperança do homem conver­
tem-se nas realidades de hoje. Ela diz ao homem: “diga-me quais são
os seus sonhos e eu lhe ensinarei como iu.má-los realidade; diga-me
quais são os problemas do mundo, o que lhe faz sofrer, e eu lhe mos­
trarei como alcançar a libertação."

A humanidade sofre por não ter o suficiente para comer. A tec­


nologia sabe como produzir alimentos para o mundo todo. Proclama
que não mais as pessoas precisam morrer de fome, porquanto ela co­
locou a humanidade “no limiar de uma nova era da história humana,
era na qual uma abundância jamais sonhada poderá eliminar a escas­
sez e a necessidade de se competir por parcos recursos." (Henry Clark,
“Value questions and policy proposals for a society of abundance”,
Union Seminary quarterly review, n9 21, p. 403.) “ Podemos produzir o

* Traduzido e publicado no Brasil com o tílulo A condição de homem: uma análise dos
propósitos e fins do desenvolvimento humano, pela Editora Globo. (N. do T.)

62
suficiente para que todos usufruam os bens da Terra, diz o seu profe­
ta.” (Harvey Cox, The secular city, p. 184.*)
A humanidade sofre devido à apocalíptica ameaça de explosão
demográfica. A tecnologia sabe como resolver isso. É capaz de criar
pílulas maravilhosas e dispositivos anticoncepcionais que tornarão
possível a cada homem a racionalização do tamanho de sua família,
não apenas de acordo com os seus recursos econômicos, mas tam­
bém com as suas necessidades psicológicas, sociais e espirituais.
A humanidade sofre porque o trabalho tem contribuído para
oprimir e desumanizar o homem. Não é esta a acusação feita por mar­
xistas, comunistas, socialistas, cristãos, humanistas e todos aqueles
preocupados com a justiça? Acusação de que todos os trabalhadores
são explorados, pois seu pagamento não corresponde ao valor real de
seu trabalho? A dura realidade do dia-a-dia já não provou que o traba­
lho, em vez de constituir uma experiência libertadora, consiste numa
coisa verdadeiramente desumana? A tecnologia sabe como libertar o
homem de tal situação. Através da cibernética, “do acoplamento do
computador à máquina", que “reduz o papel do homem à programação
da tarefa e à manutenção do equipamento", ele se libertará do traba­
lho enquanto um fardo. Como será conseguido tal milagre?
“...haverá menos empregos [e] os que houver exigirão um
nível cada vez mais alto de habilidades; porém, [como]
resultado seremos pela primeira vez capazes de produ­
zir bens e serviços suficientes, de forma que ninguém
necessite viver na pobreza ou na privação." fibid., p.
184.)
“ Não precisaremos mais forçar as pessoas a trabalhar naquilo
que o mercado define como importante", comenta R. Theobald; “pode­
remos deixá-los livres para fazer aquilo de que gostam. Este é um dos
resultados de se dar a todos uma renda: agora temos recursos para
afirmar que, se você quiser cultivar o seu jardim, melhorar a aparência
da cidade, trabalhar com os carentes culturais, nós lhe pagaremos por
isso.” (ibid., p. 188.) Estamos assim vivendo numa “era em que gran-

• Traduzido e publicado no Brasil com o tílulo A cidade do homem, pela Editora Paz e
Terra.

63
des quantidades de tempo livre estarão à disposição daqueles que as
desejarem.” (Henry Clark, loc. cit., p. 403.)

“Isto significa que as pessoas que quisessem trabalhar


em empregos de mercado assim o fariam, e aqueles
cujos interesses e talentos sejam invendáveis, como os
poetas e pintores, seriam capazes de viver sem prosti­
tuir o seu talento... A divisão tradicional entre o trabalho
e o lazer seria derrubada." (Harvey Cox, ob. cit., pp. 187-
188.)

O mais estupendo resultado desta revolução, contudo, seria o


nascimento de um novo homem, livre de preocupações quanto às ne­
cessidades materiais e, por conseguinte, livre para uma nova dimen­
são espiritual.

“Uma psicologia da abundância produz iniciativa, fé na


vida, solidariedade. O fato é que muitos homens ainda
estão psicologicamente ligados aos fatos econômicos
da escassez, enquanto o mundo industrial já está en­
trando numa nova era de abundância econômica... Outro
efeito da renda garantida... seria o fato de que os pro­
blemas religiosos e espirituais da existência humana
tornar-se-iam reais e imperativos. Até agora o homem
se ocupou com o trabalho (ou esteve por demais cansa­
do após ele) para mostrar-se seriamente preocupado
com problemas tais como: ‘q ual é o sentido da vida?’,
‘no que acredito?’, 'quais são os meus valores?’, ‘quem
sou eu ?’, etc. Se ele deixar de estar principalmente ocu­
pado com o trabalho, ou ficará livre para enfrentar tais
problemas seriamente ou se tornará meio louco pelo té­
dio, remunerado ou não. De tudo isso concluir-se-ia que
abundância econômica, a libertação do medo da fome,
marcaria a transição de uma sociedade pré-humana pa­
ra uma verdadeiramente humana." (Erich Fromm, “The
psychological aspects of the guaranteed income", em
Guaranteed income: next step in economic revolution
ed. fíobert Theobald, pp. 176-177.)
A obra de van Leeuwen, Christianity in world history (O cristia­
nismo na história do mundo), acrescenta uma nota teológica a esta
esperança trazida pela tecnologia. Sua tese afirma que a tecnologia,
através de seu poder para promover a abertura de sociedades fecha­
das, é capaz de libertar a história dos ídolos que a fazem estacionar.
Desta forma, ela conduz o homem a novas dimensões de liberdade e
experimentação. A tecnologia seria, assim, a inimiga mortal da estabi­
lidade e a mãe da revolução. Tal tese não é nova: Marx sustenta um
ponto de vista semelhante, acreditando que seja a tecnologia a mãe
da classe revolucionária (o proletariado). O que se mostra radicalmente
novo no livro de van Leeuwen é o fato de ele proclamar que a tecnolo­
gia é filha e expressão do ímpeto para fazer a história encontrado na
fé bíblica, bem como do permanente conflito que esta mantém com as
sociedades fechadas, finais, sagradas e ontocráticas. A tecnologia é
um fenômeno único numa civilização formada sob a influência de “mo­
tivações espirituais discerníveis”, tais como “uma particular visão de
Deus, do homem e do mundo." (van Leeuwen, ob. cit., p. 401.) Essas
motivações espirituais cumpriram uma função dessacralizante e secu-
larizante em relação ao mundo e à natureza, permitindo ao homem a
liberdade para conhecê-los e dominá-los. Portanto, pode-se afirmar
com bases históricas, crê van Leeuwen, que a “revolução tecnológica
[não apenas] nutriu-se no seio da civilização cristã, mas[é], de fato,
uma de suas ‘filhas’.” (ibid., p. 403.) O impulso secularizador oriundo da
luta entre o Deus bíblico e os poderes da estabilidade consegue, na ci­
vilização ocidental, a sua maior vitória, pois agora, pela primeira vez
"na história da humanidade... o padrão ontocrático foi quebrado e su­
plantado pelo padrão tecnológico." (ibid., p. 402.)

O poder de fazer a história que a tecnologia detém, entretanto,


mostra-se contagioso. Quando os poderes ocidentais invadiram as ci­
vilizações não-ocidentais, escravizando-as através de relações colonia­
listas, levaram consigo a tecnologia como um dos instrumentos de ex­
ploração. Sua introdução, porém, equivaleu à injeção de um vírus re­
volucionário. Ali, a tecnologia pôs abaixo velhos padrões sociais, liber­
tando as populações colonizadas de seu provincianismo e de seu
mundo fechado em si mesmo, ao mesmo tempo em que servia à ex­
ploração. Tal afirmação não pretende ser uma justificativa para o colo­
nialismo, mas simplesmente descrever o que, historicamente, ocorreu.

65
Uma vez que os velhos padrões foram destruídos, os povos coloniza­
dos se descobriram vivendo na história, num contexto onde o status
quo não é definitivo e um amanhã novo e diferente precisa ser busca­
do. Este ímpeto secularizante da tecnologia fez nascer os movimentos
de libertação da segunda metade do século vinte: um desfecho não
premeditado (e até inoportuno) para a ação da tecnologia ocidental,
que pretendia não ser mais do que um método de exploração e domi­
nação.

Este processo, porém, não consiste simplesmente num processo


de criação de sociedades mais abertas. Na medida em que estas so­
ciedades se libertam dos absolutos verticais e de seus acanhados limi­
tes, em favor de horizontes experimentais e mais abertos, um novo
homem nasce: aquele que tem por lar um mundo secular e provisório,
prescindindo do templo e de todos os absolutos religiosos e metafísi­
cos. Ele se torna livre para a história, entendida como uma experimen­
tação permanente.

A tecnologia deixou de ser simplesmente uma técnica, um ins­


trumento nas mãos do homem. Ela criou uma nova linguagem, lin­
guagem que não se restringe à questão do “know-how”, mas que fala
de uma nova esperança quanto à libertação da história. A tecnologia
tornou-se tecnologismo: ponto de partida para um novo tipo de huma­
nismo. A linguagem do tecnologismo é, de fato, a linguagem de um
novo tipo de messianismo, que afirma que a libertação virá na e pela
sociedade tecnológica.

Que indícios a linguagem do humanismo político pode oferecer


para justificar-se? Face às conquistas e maravilhas proclamadas pela
linguagem do tecnologismo ela parece uma opção quase absurda. Não
seria tal linguagem a dos românticos, que pensam a partir de suas
emoções e não com base numa avaliação realista de seus recursos?
Não seria a linguagem do humanismo político assim como que um gri­
to de protesto, cuja resposta e realização se encontram no messianis­
mo tecnológico? Por que não abandonar o grito e abraçar as realiza­
ções? Tal opção, no entanto, tem sido obstinadamente recusada pelos
que falam a linguagem do humanismo político, apesar de parecerem
incapazes de oferecer um programa alternativo mais eficiente do que o
apresentado pelo tecnologismo. E por quê? Em sua obra One-dimen-

66
tional man (,A ideologia da sociedade industrial, no Brasil), Marcuse
fornece uma expressiva resposta a esta questão. Ele sugere que os
indícios e as maravilhas apresentadas pela linguagem do tecnologismo
como fundamentos para a esperança da libertação, ao invés de tornar
possível a criação de um novo futuro através de um homem livre, aca­
ba por fazer exatamente o contrário. Marcuse aponta que na chamada
sociedade tecnológica, a tecnologia não consiste mais numa ferramen­
ta que, nas mãos do homem livre, seria necessária para a criação de
um mundo melhor. Ela tornou-se um sistema que envolve, condiciona
e determina o homem. A tecnologia está, com efeito, criando um tipo
de homem, um homem que se tornou unidimensional e obeso devido
aos bens produzidos pelo sistema tecnológico. O ser humano não usa
mais a tecnologia: ele agora é parte desse sistema total. Consequen­
temente, tornou-se incapaz de pensar e de agir criticamente, transfor­
mando-se num ser a-histórico e sem futuro, que se sente à vontade
num sistema convertido em seu lar e em seu amanhã permanente. Ao
examinarem-se, a seguir, alguns aspectos da crítica que a linguagem
do humanismo político tece à linguagem do tecnologismo, tem de se
ter em mente que tal crítica é endereçada não à tecnologia em si
mesma, mas aos sistemas tecnológicos totalitários e às pretensões
messiânicas da linguagem do tecnologismo.

O Sistema Tecnológico e a Destruição da Negação

Na análise anterior procurou-se demonstrar que a linguagem do


humanismo político é basicamente crítica. Seu caráter crítico se deriva
do fato de que o homem, como um ser histórico, apreende o presente
no qual se encontra em termos de sofrimento, de ausência de futuro e
de impotência. O presente, assim, precisa ser negado. E nesse ato de
negação o ser humano afirma tanto a sua historicidade e liberdade,
quanto à sua transcendência sobre a história. Tão-só como^um ser
não-submerso nos fatos, como alguém deles liberto, mostra-se capaz
de negar. No entanto, a sociedade tecnológica tem obtido sucesso na
destruição dessa distância crítica, fazendo do homem um componente
seu. Através de sua capacidade para produzir bens ela vincula
"...os consumidores aos produtores, mais ou menos de
maneira agradável e, através destes últimos, os consu-

67
mídores ao todo. Este é um bom modo de vida (melhor
do que o anterior) que, como tal, opõe-se a mudanças
qualitativas. Brota assim um modelo de pensamento e
de comportamento unidimensionais, no qual todas as
idéias, aspirações e objetivos que, pelo seu conteúdo,
transcendem o universo estabelecido do discurso e da
açâo, são ou repelidos ou reduzidos aos próprios termos
deste universo. São redefinidos através da racionalidade
e da expansão quantitativa do sistema." (Marcuse, ob.
cit., p. 12.)

Ao se rediscutir os resultados do colonialismo sobre os povos


colonizados, indicou-se que ele era capaz de criar uma consciência
oprimida, ou seja, uma consciência domesticada e desprovida de futu­
ro. Isto é conseguido tornando-se impossível uma visão de futuro ao
homem oprimido. Nas sociedades tecnológicas esta mesma consciên­
cia oprimida é criada, mas agora por uma razão diferente: o futuro ali
não é mais necessário; já chegou. Se o sistema fornece ou promete
fornecer ao homem tudo aquilo com que este sonha (e mesmo aquilo
que está além de sua imaginação), por que ser contra ele? O sistema
não lhe causa dor, e sim prazer. “As pessoas desta maneira se reco­
nhecem em seus bens de consumo: encontram a sua alma no seu au­
tomóvel, no seu equipamento de som, na sua casa moderna, na sua
cozinha planejada." (ibid., p. 9.) A tecnologia cria um homem falso, um
homem que aprende a buscar a felicidade naquilo que o sistema lhe
dá. Sua alma é feita à imagem daquilo que pode ter. Na medida em
que o sistema gera novas necessidades e ao mesmo tempo provê os
objetos que as satisfazem, mostra-se eficiente para manter o ser hu­
mano como parte de si próprio. Coisas que tradicionalmente se opu­
nham, aparecem agora unidas. “Sob as condições de um crescente
padrão de vida”, comenta Marcuse, “a não-conformidade com o siste­
ma parece ser, em si mesma, algo socialmente inútil.” (ibid., p. 2.) A
sociedade adquire, consequentemente, um caráter totalitário, com o
desaparecimento da distância e da oposição. O sucesso do sistema na
produção de bens fornece agora os fundamentos para a sua justifica­
ção ideológica e a sua perturbação prática. Tudo aquilo que produz
bens de consumo só pode ser verdadeiro! A felicidade interna requer
defesas contra o que se mostre uma ameaça externa. Em conseqüên-

68
cia, o Estado que promove o bem-estar social e o Estado que prospera
com a guerra tornam-se um só, vivendo numa simbiose harmônica.
“Assim como o Estado produtivo depende dos militares para o seu
crescimento e auto-preservação, os militares também dependem das
empresas, não só para as suas armas, como ainda para o conhecimen­
to de qual tipo de armas precisam." (ibid., p. 33.)
Essa união chega a tal ponto que a pesquisa universitária e a
militar, o investimento em países subdesenvolvidos e as intervenções
(diretas ou indiretas) das forças armadas não podem mais ser objeti­
vamente consideradas questões distintas. O sistema tornou-se global
e, a fim de se manter e de se expandir, precisa permanecer global.
Consequentemente, seu maior inimigo é tudo aquilo que o nega, que
se coloca contra ele, que se recusa a tomar-se parte sua.
A fim de preservar uma ordem de crescimento quantitativo, o sis­
tema precisa destruir a eclosão de tudo aquilo que se mostre qualitati­
vamente novo.
"Nem a produtividade crescente, nem o alto padrão de
vida dependem da ameaça externa, mas a contenção de
mudanças sociais e a perpetuação da servidão sim. O
Inimigo é o denominador comum de tudo o que se faz e
se desfaz. E o Inimigo não se identifica com o capita­
lismo ou com o comunismo atuais: ele consiste, em
ambos os casos, no fantasma da verdadeira libertação."
('ibid., p. 52.)
Em outras palavras: o grande inimigo do sistema é a distância
crítica, tanto no pensamento quanto na ação, distância esta que rompe
a sua totalidade ideológica e funcional, integradora de todos os opos­
tos. O inimigo, o “fantasma da libertação”, é o Negador, é o homem
político que não deseja trocar sua vocação de criador da história pelo
papel de consumidor de bens. Assim, o sistema torna-se o ópio do po­
vo, pois através de sua capacidade para produzir bens numa escala
sempre crescente, emprega "a conquista científica da natureza para a
conquista científica do homem.” {ibid., p. XIV.)

O Sistema Tecnológico e o Fim da Esperança

O humanismo político consiste numa linguagem da esperança.


Com a sua crítica radical ao presente, considera a sociedade algo ina­

69
cabado. O novo pode e deve ser criado. Uma sociedade nova e melhor
é sempre possível. Desta maneira, mostra-se comprometido com a
“nomeação das 'coisas ausentes’.” Porém, o universo de discurso da
sociedade tecnológica não deixa espaço para a negação qualitativa,
mostrando-se fechado ao novo. “A maneira pela qual a sociedade or­
ganiza a vida de seus membros”, observa Marcuse, “envolve a escolha
inicial de uma entre várias alternativas históricas... Trata-se de um
projeto entre outros. Mas, uma vez que este projeto tenha se tornado
operante nas instituições e relações fundamentais, ele tende a se tor­
nar exclusivo.” (i b i d p. XVI.) O sistema possui uma lógica interna, qual
seja, a lógica da quantidade e da extensão: como produzir coisas dife­
rentes, melhoradas ou em maior quantidade; como se expandir; como
vender; como progredir; como criar novas necessidades no ser huma­
no, de forma que tudo o que a máquina produza possa ser vendido. O
futuro e a esperança são assim reduzidos a dimensões quantitativas, a
novas formas de integração no sistema: integração em sua lógica e
em seus valores.

É esta a ironia da tecnologia: sua excelência funcional contribui


para a preservação da sociedade na qual está inserida; seu virtuosis­
mo quantitativo cria uma imobilidade qualitativa, e o seu caráter expe­
rimental e aberto solidifica o fechamento da sociedade por ela criada.
A tecnologia coloca um ponto final na história.

A oposição do humanismo político às pretensões messiânicas da


tecnologia não é, por conseguinte, expressão de uma avaliação irreal
das próprias possibilidades, e sim decorrência da decisão de buscar o
novo na história. Por isso muita gente, nas nações pobres do mundo,
está dando as costas aos tecnocratas. As pessoas se recusam a ser
transformadas em peças de um mecanismo, mecanismo no qual a so­
ciedade se deixa dominar pela lógica interna de um sistema que não
permite a eclosão do qualitativamente novo. Por isso também muitos
estudantes estão descot.mdo a extensão da desumanização desse
sistema que tudo promete. Eles sabem que ao se tornarem parte dele
deverão “reprimir seus impulsos mais criativos”. E por isso ainda os
negros recusam a integração. Integrar-se é abdicar da esperança en­
quanto categoria crítica face à lógica triunfante da sociedade tecnoló­
gica.

70
O Sistema Tecnológico e a Domesticação da Ação

Para o humanismo político a ação deve se dar cono negação do


velho e criação do novo. Por meio dessa ação o homem se faz cons­
trutor da história, que carrega, assim, a marca de sua liberdade. A tec­
nologia, no entanto, transforma o comportamento criativo em opera­
cional. A universidade torna-se “uma utilidade pública a serviço das
necessidades puramente técnicas da sociedade", “uma fábrica para a
produção de conhecimento e de técnicas que servem às inúmeras bu­
rocracias sociais." De criador da história o ser humano é transformado
em alguém que perpetua o estabelecido. Não há lugar para a ação
transgressiva; é preciso ser funcional. Manipulam-se quantidades mas
não se permite o nascimento do novo. Por isso, “face à fisionomia to­
talitária dessa sociedade", assinala Marcuse, “a tradicional noção de
‘neutralidade’ da tecnologia não se sustenta mais. A tecnologia não
pode ser isolada do uso a que se destina; a sociedade tecnológica é
um sistema de dominação." (ibid., p. XVI.) A tecnologia torna impossí­
vel a mudança qualitativa ao fazer da quantitativa o seu modo de vida.
Quando se vê a dinâmica da sociedade tecnológica por este ân­
gulo, a idéia de renda garantida adquire desagradáveis tonalidades. O
que os profetas do tecnologismo prometem ao homem, que sempre
considerou o trabalho um fardo, é a possibilidade de dispor de tempo
livre para atividades criativas. É até possível que isto venha a ser ver­
dade. Porém, deve-se levar em conta também o outro lado da questão:
tal assertiva significa que a sociedade tecnológica não precisa mais
desse homem, podendo até pagar-lhe para que nada faça. Assim, ele
estará definitivamente apartado do coração do sistema. As elites tec­
nológicas deterão o monopólio do poder necessário à criação do futu­
ro. O tempo livre constituirá então um tempo de impotência e de lazer,
mas não de criação. Consistirá no tempo do homem-objeto, homem
que não é sujeito da história. Ele poderá pintar quadros, plantar jardins,
ou mesmo fazer o que quiser, exceto determinar de maneira significa­
tiva a forma de seu futuro. Por isso creio haver uma grande dose de
verdade na interpretação que Marcuse faz das realizações da socieda­
de tecnológica.
“Nossa sociedade se distingue pela conquista das forças
centrífugas e sociais por meio da Tecnologia (e não do

71
Terror), com base numa eficiência esmagadora e num
crescente padrão de vida. Esta contenção da mudança
social talvez seja o que de mais singular tenha conse­
guido a sociedade industrial avançada." fibid., p. X-XI.)
A contenção da mudança social talvez seja mesmo a conquista
mais singular da sociedade industrial avançada. Entretanto, não é ver­
dade que isso seja conseguido por meio da tecnologia e não do terror.
Nossa experiência histórica atual é algo diferente, pois encaramos a
tecnologia como um terror. Se nas relações domésticas a tecnologia
refreia a mudança social através da criação da felicidade e da elimina­
ção da dor, via produção de bens, nas relações internacionais este
mesmo ímpeto repressor assume uma forma adicional, barrando a
mudança social através da morte, da destruição e do terror. Basta
apenas dar uma olhada nos orçamentos militares das nações podero­
sas para se verificar isso. No primeiro caso, a sociedade tecnológica
destrói a mudança social tornando a consciência fechada ao futuro. No
segundo, chega ao mesmo resultado tornando o futuro fechado à
consciência.
Se concordamos com van Leeuwen quanto à tecnologia ser, num
certo sentido, a mãe de uma nova liberdade para a história, temos de
acrescentar agora: uma mãe que, feito Saturno, devora o próprio filho.
A crítica que a linguagem do humanismo político endereça à lin­
guagem do tecnologismo não deve ser entendida como negação da
tecnologia. Isso seria algo sem sentido. O humanismo político não
quer destruir a tecnologia, mas humanizá-la. E a humanização da tec­
nologia significa que ela tem de permanecer um instrumento a serviço
de sujeitos livres, comprometidos com a criação de um novo amanhã.
No esquema da sociedade tecnológica este ato de criação tornou-se
impossível, dada a destruição do ser humano enquanto sujeito. Apenas
quando o homem é livre como sujeito de sua história, a tecnologia se
mostra um instrumento necessário (mas não mais que um instrumen­
to) para a criação de uma sociedade e de um amanhã em que o ser
humano possa encontrar novas formas de libertação e de realização.

III - A Linguagem do Humanismo Político como Crítica da


Linguagem Teológica

A linguagem do humanismo político constitui um novo paradigma


da humanização. Ela não descreve aquilo que é, mas indica o que o

72
homem precisa fazer a fim de ser realmente humano. Procura enten­
der a humanização a partir da relação que o homem mantém com a
história: como sujeito ou objeto, como criador ou criatura.
O homem que é objeto da história, que se ajusta e se adapta aos
fatos dados, perde sua transcendência. Está submerso no mundo e,
em consequência, perde seu poder para criticá-lo e recriá-lo. A positivi-
dade dos fatos triunfa. Por isso, rejeita-se o messianismo da tecnolo­
gia: a sociedade tecnológica rouba do homem a sua distância para a
negação, a sua abertura à esperança, a sua liberdade para transgredir.
O materialismo triunfa porque as relações de produção obtêm sucesso
na criação de um homem feito à sua própria imagem.8
O humanismo político fica com a segunda opção. Como indicado
antes, tal opção não se deriva de uma compreensão a-histórica da na­
tureza humana. Ela consiste, sim, numa decisão e num risco históri­
cos. Numa decisão de tornar-se um sujeito livre. E o sujeito é livre ao
negar a inumanidade do presente, ao expandir sua consciência para a
exploração do caráter infinito deste mundo, nomeando “as coisas au­
sentes” e, através de sua ação, tornando sua negação e sua esperança
históricas. A transcendência humana consiste, assim, no poder que faz
findar um dia e outro novo nascer. O homem transcendente vive, en­
tão, entre os tempos. E os tempos se dividem entre a inverdade deixa­
da para trás e a verdade rumo à qual se move, já que o ser humano
está na história. A transcendência, desta maneira, adquire forma histo­
ricamente. Só enquanto um ser histórico o homem é capaz de negar e
de ter esperança. E somente como um ser que transcende a história é
capaz de criar uma outra: a história da sua liberdade. A transcendência
se direciona para o futuro. A maior realização da verdade, rumo à qual
a consciência se expande, deverá ser encontrada num novo amanhã.
O novo futuro consiste no seu além, na sua determinação e no seu amor.
A linguagem mais comum das igrejas, entretanto, revela que a cons­
ciência que a fala possui uma estrutura radicalmente diferente. John A.
T. Robinson observa que a linguagem eclesial está particular­

8. Em uma de suas teses sobre Feuerbach, Marx ataca o materialismo exatamente por
este motivo: por não dar lugar ao homem que cria os latos materiais. "A doutrina materialista,
que diz que os homens são produtos das circunstâncias e da educação e, portanto, homens
diferentes são produtos de outras circunstâncias e de diferentes educações, esquece-se de
que é o homem quem modifica as circunstâncias." (Karl Marx, "Theses of Feuerbach” , em On
religion, p. 70.)

73
mente determinada por “acimas” e por “foras”. Ela se refere à trans­
cendência como algo que “está literal ou fisicamente acima, seja como
uma realidade espiritual, seja como metafísica, mas que se localiza fo­
ra daqui.” (J. A. T. Robinson, Honest to God, p. 13.) Tal linguagem não
compreende a transcendência como uma realidade em meio à vida,
como criadora da história. Antes, separa tempo e eternidade, transcen­
dência e história. A transcendência torna-se uma verdade maior, acima
e além da história. A consciência, consequentemente, não se expande
na direção de um novo amanhã, mas tenta se mover para o alto, rumo
à experiência de um reino transcendente, localizado além da matéria e
do tempo: a esfera espiritual e eterna. Assim, tal consciência cria a re­
ligião como uma casa da transcendência, tomando-se estável e fixa
em meio ao processo histórico.
A estrutura da consciência do humanismo político, porém, não
tem lugar para este tipo de transcendência. Ela se mostra totalmente
secular, nascida da história e com ela comprometida. Sua exigência
ética, seu imperativo categórico para a transformação do mundo, não
se deriva de um além, e sim de seu caráter histórico, de sua inserção
no presente, de sua participação no sofrimento da comunidade huma­
na, que constitui o seu único ponto de referência. Tanto a exigência da
situação quanto os recursos disponíveis para a realização da tarefa
são totalmente humanos e seculares. Aqui encontramos um homem
que, nas palavras de Bonhoeffer, “aprendeu a enfrentar todas as ques­
tões importantes sem recorrer a Deus como uma hipótese de traba­
lho." (Dietrich Bonhoeffer, Letters and papers from prison, p. 191.)

Quando compreendemos a diferença estrutural entre esses dois


tipos de consciência - uma que vê a transcendência inserida na histó­
ria, e outra que acredita ela se localize além da história - , percebemos
os problemas que surgem ao se tentar um diálogo entre ambas. A lin­
guagem da teologia e da Igreja, a linguagem dos muitos hinos, litur­
gias e sermões soa ao homem secular, comprometido com a tarefa de
criar um mundo novo, como a voz de uma esfera estranha e remota.
Esta é uma das razões porque um crescente número de pessoas estão
deixando as igrejas e optando por um humanismo totalmente secular.9

9. Num artigo intitulado “ Reflections After Reading Two Articles On Contemporary


Atheism” (Reflexões Após a Leitura de Dois Artigos Sobre o Ateísmo Contemporâneo), E. G.
Baldo indica que a opção pelo ateísmo entre estudantes de seu país “ nasce basicamente de

74
Parece que no confronto entre essas duas linguagens é-se levado à
conclusão de que, para se estar livre para a história e para se trans­
formar a sociedade, tem-se de desaprender a linguagem da teologia.
Não se vê como possa ser possível, por um lado, manter-se fiel à vo­
cação de criador da história e, por outro, ser membro de uma comuni­
dade que retira o homem da história e empurra-o para uma esfera me-
ta-histórica. Obviamente, a lealdade acaba se desviando para as co­
munidades onde se fala uma linguagem comum em favor da libertação
humana na história. As pessoas logo percebem a grandeza daqueles
“que não buscam ver atrás das estrelas primeiro para encontrar razões
para o sacrifício, mas que se sacrificam a si mesmos livremente em
favor da Terra." (F. Nietzsche, Thus spoke Zarathustra, em The porta-
ble Nietzsche, ed. Walter Kaufmann, p. 127.)
O problema do conflito entre as duas linguagens é mais sério do
que parece. A questão não consiste em que elas sejam linguagens di­
ferentes. Se assim fosse, seria possível chegar-se a um diálogo entre
as duas pelo simples processo de aprendizagem da outra linguagem.
O fato, contudo, é que elas parecem ser estruturalmente opostas, de
forma que o verdadeiro aprendizado de uma, isto é, a apreensão da
experiência histórica que ela carrega em si, requer o esquecimento da
outra. No entanto, nesta atmosfera de “diálogo” que se tem hoje, as
arestas tendem a ser esquecidas na tentativa de se encontrar um ter­
reno comum para a conversação. Não creio que isso seja bom, pois tal
atitude evita o confronto verdadeiro, o choque, que podería tomar-se
ocasião para uma auto-crítica radical de ambos os lados e, conseqüen-
temente, para uma nova experiência histórica, experiência esta que
poderia deixar o homem mais livre do que antes. Um diálogo verdadei­
ro requer, pois, uma consciência plena dessa oposição radical.
Parece-me que tal oposição não está indicada em nenhum lugar
de forma mais convincente e apaixonada do que nos escritos de
Nietzsche. Nietzsche saudou a morte de Deus - e, com ela, o fim da
linguagem teológica - como uma alegre e libertadora realidade.
“Sentimo-nos como se uma nova aurora estivesse bri­
lhando sobre nós quando recebemos a notícia de que 'o
velho deus morreu'; nosso coração transborda de grati­

uma escolha política em lavor de uma mudança social baseada na busca de justiça." (Cf. CIF
Reports, vol. V, p. 27.)

75
dão, assombro, antecipação, expectativa. Finalmente o
horizonte parece-nos livre outra vez, mesmo que não es­
teja claro; finalmente os nossos navios podem de novo
se aventurar, arriscando-se em novos perigos; toda a
ousadia daquele que ama o conhecimento é novamente
permitida; o mar, o nosso mar, estende-se aberto outra
vez." (F. Nietzsche, "The gay Science", em The portable
Nietzsche, p. 448.)
Observe como a morte de Deus consiste no complemento de
uma nova liberdade para a Terra, para o futuro: “nossos navios podem
se aventurar outra vez...” Se a morte de Deus significa a libertação do
homem é porque a vida de Deus implicava sua escravidão. Ele consti­
tuía os muros de uma prisão, uma limitação da liberdade, uma domes­
ticação da ousadia e da criatividade humanas - pelo menos este Deus
de que fala a linguagem da Igreja. Temos de ler Nietzsche como poe­
sia e imaginação profética. Não importa que sua descrição não seja
científica nem possua detalhes acurados. O que interessa é o fato de
sua linguagem assemelhar-se a uma lupa, através da qual tudo aquilo
que não percebemos como inumano nos é apresentado em sua brutal
nudez, revelando-se então a sua fealdade e distorção. Ele nos mostra
o Deus presente na linguagem da Igreja como o anti-homem, e aque­
les que falam esta linguagem como os perpetuadores de tal inumani-
dade.
"Eis o s sacerdotes; apesar de serem meus inimigos, pas­
se por eles em silêncio e com a espada adormecida...
Eles chamaram de ‘Deus’ o que lhes era contrário e lhes
causava dor... E não sabiam como amar este deus se­
não crucificando o homem... Quem quer que viva próxi­
mo a eles vive junto a lagoas escuras, em que um sapo
agourento canta sua canção com doce melancolia. Eles
teriam de cantar canções melhores para que eu tivesse
fé em seu Redentor: e seus discípulos precisariam mos­
trar-se mais redimidos." (ibid., p. 204.)
Nietzsche aponta aí que a linguagem cristã a respeito da trans­
cendência expressava uma experiência que esvaziava o corpo, os sen­
tidos, a liberdade e a criatividade de toda a sua validade e beleza, ne­
gando-as em nome de outro mundo. A glorificação de Deus equivalia,
portanto, ao sofrimento e à aniquilação do homem Seu era o nome

76
que expressava “aquele ódio contra tudo o que fosse humano, e ainda
mais: contra tudo o que fosse animal, material... uma repugnância para
com os sentidos, para com a própria razão... um medo da felicidade e
da beleza, [um] desejo de afastar-se de toda aparência, mudança e
transformação”, ou seja, expressava a negação da história e do mundo
enquanto casa do homem. (ibid., p. 452.) A vida termina, portanto, on­
de “começa o reino de Deus.” (ibid., p. 490.)10 Feuerbach faz a mesma
acusação contra a linguagem teológica: “o empobrecimento do mundo
real e o enriquecimento de Deus se dão num único ato. Somente o
homem pobre tem um Deus rico. Deus brota do sentimento de carên­
cia. (...) Deus consiste numa compensação para a pobreza da vida...
Ele é, para a religião, o substituto do mundo perdido.” (L. Feuerbach,
The essence of christiamty, pp. 73 e 196.)
É óbvio que há uma diferença entre Nietzsche e Feuerbach. Para
o primeiro, Deus é a causa do sofrimento humano: ele faz o homem
sofrer. Para o segundo, Deus se mostra uma compensação para o so­
frimento humano: consiste no sofrimento e no anseio humanos projeta­
dos sob a forma de felicidade e de riqueza. Para ambos, contudo, o re­
sultado é o mesmo, já que Deus não permite ao homem vencer a sua
própria miséria. E não permite ou porque ele mesmo consiste na causa
dessa miséria, ou porque reconcilia o ser humano com ela, ao dar-lhe
esperança de uma libertação transcendente e meta-histórica. O sofri­
mento e a miséria transformam-se então na causa perene dos seres
humanos. Se Deus causa o sofrimento do homem, ou se deste o liber­
ta meta-historicamente, não importa: em ambos os casos o sofrer per­
de a sua característica de contradição, contradição esta que precisa
ser superada por intermédio da ação. Assim, o negativo converte-se
em positivo e os homens são levados a "reconhecer e agradecer, como
uma concessão dos céus, o fato de estarem subjugados, conduzidos e
possuídos.” (K. Marx, “Contribution to the critique of Hegefs philosophy
of right”, em On religion, pp. 44-45.)

10. Este caráter inumano da linguagem da Igreja não é simplesmente criação de um


homem enfermo. Bonhoeffer também bate na mesma lecla. Acusa a Igreja porque, a fim de ser
ouvida, ela vem empregando uma linguagem que deixa o homem incerto sobre si mesmo,
destruindo a sua emancipação no mundo. A apologética abre caminho, para o homem condu-
zindo-o ao desespero quanto à vida. (Veja-se o seu Letters and papers from prison. pp.
195-196.)

77
O humanismo político se mantém irreconcíliado com a negativi-
dade da história. O negativo tem de ser negado. Se Deus transforma o
negativo em positivo, então a crença em Deus proíbe o ser humano de
negar o que o está destruindo. Deus é, desta forma, a negação da cons­
ciência do humanismo político. O conflito entre as duas linguagens
é óbvio. A negação do negativo não pode dialogar com a positivação
do negativo.
Nietzsche aponta outra inumanidade na linguagem teológica:
Deus constitui o término da história. Ele é o “ Unico e o Pleno e o Ina­
movível e o Saciado e o Permanente.” (Kaufmann, ed., The portable
Nietzsche, p. 198.) O mundo é irreal: Deus é a realidade. Mas Deus já
está pronto, terminado. Como poderia o homem encontrar a sua voca­
ção para a criação do mundo se este é irreal? E como poderia criar al­
go novo se tudo já está pronto em Deus? Quando o homem dirige o
seu pensamento a Deus, perde o seu mundo e a sua liberdade para
criar. É este homem, então, o grande perigo para a história. “Quem re­
presenta o maior perigo para o futuro de todos os homems?”, pergunta
Nietzsche. “ Não serão os bons e os justos? Porque eles dizem e sen­
tem em seus corações: ‘sabemos o que é bom e justo, e isto nós pos­
suímos.’ (...) O nobre quer criar algo novo e uma nova virtude. O bom
quer o velho, e o quer preservado." (ibid., pp. 324 e 156.) O pecado do
homem bom é o mesmo dos burocratas da sociedade tecnológica.
Ambos crêem que a história terminou. Se Deus contém todos os valo­
res, o homem não pode criar o novo. Tem apenas de se enquadrar, de
repetir o velho. A história, apesar de caminhar rumo a novos horizon­
tes, torna-se direcionada para o passado. A transcendência humana
não consiste em criação, mas em adaptação. O homem não sabe que,
por suas virtudes de repetição, transformou-se de lobo em cão: conver­
teu-se num animal doméstico, (ibid., p. 282.) Deus, desta maneira, não
consiste em liberdade para o ser humano, e sim na sua domesticação,
no fim do "homocreator".
Quando a morte de Deus é anunciada, o homem torna-se de no­
vo livre para o seu mundo, para a história, para a criação. O mundo é
dessacralizado. Seus valores congelados se derretem. Nada é definiti­
vo. Os horizontes se fazem permissivos e convidativos. O homem está
livre para a experimentação. A verdade do mundo se estabelece; o
homem torna-se liberto para dele fazer o seu lar. (Cf. Marx, “Contribu-
tion to the critique of Hegel’s philosophy of right”, p. 42.) Está liberto do
fardo do passado, fazendo-se livre para o futuro. A partir de sua espe­

78
rança mostra-se livre para recriar o mundo, com seu amor e liberdade.
A Terra, o corpo, os sentidos, são agora deliciosas dádivas, consistem
em ocasião para a alegria e a celebração.

A redescoberta da verdade da Terra traz em si a descoberta da


vocação do homem. Sua tarefa: dar à Terra uma significação humana.
(Kaufmann, ed., The portable Nietzsche, p. 188.) Uma tarefa muito
humilde: abdica-se da pretensão de se escalar as muralhas da eterni­
dade. A liberdade e a transcendência humanas se voltam agora para a
transformação da Terra “num lugar de recuperação”. O presente é vivi­
do em função do futuro humano, (ibid., p. 189.) O "homo creator”, o
homem que vive em função do futuro, nasce quando a linguagem que
sacralizava e paralisava o presente chega ao fim. A linguagem do hu­
manismo político mostra-se então radicalmente oposta a qualquer ou­
tra linguagem que, em nome de uma verdade maior que a humana, faz
com que o homem se sinta em casa na inumanidade do presente. A
religião, portanto, tem de ser destruída em benefício da Terra, em favor
da liberdade do ser humano para criticar o seu mundo de forma a
transformá-lo. “Então, a crítica do céu torna-se a crítica da Terra, a crí­
tica da religião transforma-se na crítica do direito, e a crítica da teolo­
gia na crítica da política." (Marx, “Contribution to the critique of Hegel’s
philosophy of right”, p. 42.) A crítica do céu, da religião e da teologia
constitui-se na negação de uma presença situada além da história,
presença esta que afirma ser possível, sem a mediação da ação hu­
mana, eliminar-se a negatividade do presente. Por conseguinte, a
consciência não encontra em Deus um lugar de descanso. Permanece
inquieta entre o seu presente, que ela deve negar, e a esperança de
um novo futuro, que precisa ser criado.111

11. “ O que nos torna ateus", diz Garaudy, "não é nossa suficiência, nossa satisfação
conosco mesmos e com a Terra, não é algum tipo de limitação de nosso projeto. A razão para
tal consiste em que, de nossa experiência, similar à dos cristãos, quanto à inadequação de to­
dos os seres parciais e relativos, não se pode concluir sobre uma Presença, um ‘ser necessá­
rio’ que dê respostas a nossas angústias e impaciência. Se rejeitamos o nome de Deus é por­
que este nome implica uma presença, uma realidade, ao passo que é apenas uma Exigência o
que vivemos, uma Exigência jamais satisfeita de totalidade e de absoluto, de onipotência sobre
a natureza e de uma pedeita reciprocidade de amor entre as consciências. Podemos viver essa
Exigência e atuar a partir dela, mas não podemos concebê-la, nomeá-la ou contar com ela.
(...) Temos de assumir o risco a cada passo do caminho, já que para nós, ateus, nada está
prometido e ninguém nos espera." (Roger Garaudy, From analhema to dialogue, pp. 65 e 94.)

79
Como indicado anteriormente, o humanismo político consiste
num paradigma da humanização, um paradigma que se mostra domi­
nado pela paixão e pela visão da libertação humana. Seu compromis­
so histórico indica o que ele entende por humano e quais são os recur­
sos de que dispõe para essa tarefa. E se ele critica a linguagem teoló­
gica é porque a percebe como pertencendo a um outro projeto. Se não
estamos verdadeiramente comprometidos com a tarefa de tornar o
homem mais livre, historicamente, então nossa tarefa acaba aqui. Não
há base para reflexões posteriores. Voltamos à nossa linguagem tradi­
cional e permanecemos a salvo dentro de seus limites. Se, ao contrá­
rio, amamos a Terra, o homem concreto e o futuro que pode ser criado,
temos duas tarefas pela frente. Primeira, a de indagar sobre a veraci­
dade da crítica que o humanismo político faz à linguagem da comuni­
dade de fé. E, segunda, a de explorar os recursos positivos que a ex­
periência histórica da comunidade de fé pode oferecer para o trabalho
de libertação do homem. Passemos então a examinar algumas das
linguagens da comunidade de fé e os paradigmas da libertação huma­
na nelas contidos, segundo a perspectiva da crítica que o humanismo
político lhes endereça.

A Linguagem Existencialista: A Verdade Como Subjetividade

O existencialismo tem grandes afinidades com o humanismo po­


lítico. Ambos afirmam que o homem não continua humano quando
deixa de ser sujeito da história. Da mesma forma que o humanismo
político consiste num protesto contra os poderes que recriam o homem
à sua imagem e semelhança, destruindo-o enquanto sujeito, o existen­
cialismo constitui um protesto contra os poderes da “massificação”,
que acabam com a liberdade humana. Para os dois, a vida humana
oscila entre duas possibilidades: de um lado, a liberdade no mundo, vi­
vida através de uma existência autêntica, e, de outro, a queda nas gar­
ras hipnóticas do poder do mundo e a existência inautêntica que tal fa­
to acarreta.
O existencialismo mostra-se, assim, expressão de uma profunda
preocupação com a liberdade do homem no mundo, com a sua trans­
cendência, com a preservação de seu caráter autenticamente humano,
consistindo numa radical oposição a tudo o que signifique a perda da

80
singularidade da existência individual em qualquer coisa que a engolfe
ou submerja. Este é o motivo principal para Kierkegaard ter rejeitado o
sistema hegeliano. A filosofia de Hegel transformara o indivíduo num
acidente dentro do processo histórico total. A verdade da história con­
sistia na verdade do processo, e apenas na medida em que o indivíduo
se colocasse nesse processo a sua existência participaria da verdade.
Kierkegaard não via, entretanto, qualquer verdade maior do que a do
indivíduo e da subjetividade. “A verdade é a subjetividade”, proclama
ele. E a partir desta convicção básica investe contra as estruturas - fi­
losóficas, políticas e religiosas - que absolveram o homem da questão
central da “salvação", isto é, da tarefa de se tomar um indivíduo.
Na análise do Dasem empreendida por Heidegger novamente se
encontra a mesma compreensão da estrutura da vida autêntica e da
inautêntica. Heidegger indica que, quando o homem “está fascinado
pelo mundo” e por ele absorvido, cai num tipo de vida que se mostra
inautêntica, fazendo então com que o ser humano se perca. De fato,
este homem pode ser descrito como “perdido no espaço público do
‘eles’ ” ,do impessoal, no qual submergiu. (M. Heidegger, Being and ti­
me, p. 220.) O existencialismo, portanto, através de sua preocupação
com o protesto do humanismo político contra as estruturas da socie­
dade tecnológica que criam o homem unidimensional, ou ainda contra
as estruturas do colonialismo, que não lhe permitem ser um sujeito li­
vre na história. Ambos os paradigmas chegam a um diagnóstico se­
melhante quanto àquilo que torna o homem inumano. Eles divergem,
porém, ao indicarem “o que é preciso para se fazer e manter humana a
vida do homem no mundo.” O humanismo político convida o homem a
ser o criador da história. Acredita que uma existência autêntica possa
transformar o mundo, criando-o à imagem e semelhança de sua pró­
pria liberdade. A inumanidade das estruturas que desumanizam o ser
humano devem ser destruídas por meio de um ato desse mesmo ho­
mem. Com seu poder ele pode penetrar no hoje que o domestica e,
através de sua ação, criar um novo amanhã. Este amanhã tem de ser
a reconciliação entre a existência e o mundo, entre o subjetivo e o ob­
jetivo, já que consiste num produto da vida humana autêntica. O hu­
manismo político acredita, assim, que a ação humana é capaz de re­
conciliar e unir o homem, enquanto um ser livre e transcendente, com

81
o seu mundo. A humanização, por conseguinte, requer a agressividade
da subjetividade humana. Por um ato no qual a subjetividade invade o
mundo do espaço e do tempo, o homem é capaz de criar uma ruptura
na história, de produzir uma mudança qualitativa no tempo, mudança
que consiste, de fato, no nascimento do novo.

O existencialismo, contudo, aponta uma solução diversa, pois


uma de suas mais básicas pressuposições consiste na irreconciliabili-
dade entre o subjetivo e o objetivo. A transcendência e a liberdade es­
tão sempre separadas do mundo objetivo por uma “infinita diferença
qualitativa". O existencialismo, assim, aceita o mundo dividido da filo­
sofia kantiana. De um lado está o mundo do tempo, do objetivo, da ra­
zão científica: o mundo profano e fenomenológico. De outro está o da
liberdade, da eternidade, de Deus, da transcendência: o mundo nume­
ral. Esta é a polaridade básica - e por que não dizer “ruptura"? - que
dá forma ao pensamento de Kierkegaard. Em consequência, tal pen­
samento se move na esfera de um ascetismo radical face a tudo o que
signifique tempo ou objetividade. Não pode sequer levar a história a
sério. A história, uma categoria temporal, não fornece qualquer pista
de uma transcendência para além do tempo. "Nada que seja histórico
pode se tornar infinitamente certo para mim", diz ele, "a não ser o fato
de minha própria existência, mas isso não é algo histórico." (S. Kierke­
gaard, Concludmg unscientific postscript, p. 75.) Se colocarmos a liber­
dade e o histórico numa mesma linguagem não podemos evitar de
quebrar as regras do pensamento lógico. Tal conjunção aparecerá co­
mo algo que, objetivamente, só pode ser descrito como “absurdo".
{ibid., p. 188.) E ainda como algo que não pode ser expresso senão
pela linguagem do paradoxo, (ibid., p. 186.) Essa descontinuidade radi­
cal indica o quão impossível é, para o existencialista, conceber a
transcendência como um impacto sobre o tempo, como modificadora
das estruturas do tempo e, assim, criadora do novo, da forma como o
humanismo político a concebe. O transcendente permanece sempre
fugidio: uma sombra que jamais se torna história, (ibid., p. 218.)

Este mesmo dualismo percorre a interpretação de Bultmann a


respeito do Evangelho enquanto paradigma da humanização. Sua
teologia parte de uma preocupação profundamente missionária. Em
seu diálogo com o homem moderno, que fala a linguagem da ciência,

82
Bultmann tem consciência de que este homem vive num mundo dife­
rente daquele do Novo Testamento. "O querigma não pode ser crido
pelo homem moderno", declara ele, “pois este se acha convencido de
que a visão mítica do mundo é obsoleta.” E então pergunta: “pode a
pregação cristã esperar que o homem moderno aceite a visão mítica
do mundo como sendo verdadeira?” (R. Bultmann, Kerygma and myth,
p. 3.) Isso seria algo ao mesmo tempo “sem sentido e impossível.”

A alternativa é óbvia: ou o Evangelho tornou-se obsoleto junto


com a visão mitológica de mundo do Novo Testamento, e portanto de­
ve ser abandonado, ou o Evangelho não está relacionado a uma visão
de mundo. Se o Evangelho não tem relação com uma visão de mundo,
a tarefa da teologia consiste então em retirar toda a mitologia nele
existente, ou seja, na sua libertação de um quadro de referência incor­
reto, retirada esta acompanhada de sua transcrição nas categorias do
quadro correto. Bultmann opta pelas categorias fornecidas pela “ inter­
pretação existencialista como sendo a única solução.(ibid., p. 15.) Isto
significa, basicamente, que a mensagem do Evangelho como uma
mensagem da e para a libertação do homem tem a ver exclusivamente
com a esfera subjetiva, existencial. O mundo continua fora do alcance
da transcendência. Como é possível falar-se da transcendência no
mundo se a experiência histórica do ser humano não é de libertação, e
sim de submissão? "Aqueles que suportaram as privações de um
campo de prisioneiros russo sabem melhor que ninguém que não se
pode dizer Terra ubique Domini* como um dogma explícito”: a verdade
é que “o mundo todo é profano." (ibid., pp. 198 e 211.) Como é possí­
vel encontrar lugar para Deus num mundo fechado dentro dos limites
da razão científica e dominado por relações causais, mundo este que,
com efeito, não dá lugar para a liberdade, segundo Kant indicou? A
impossibilidade de se falar sobre Deus e transcendência conjuntamen­
te com o mundo objetivo é o que faz "da interpretação existencialista
a única solução", pois a esfera existencial tem a possibilidade de per­
manecer livre do mundo da causalidade. O “existencial” é, assim, o lu­
gar da transcendência, e é com ele que a tarefa da libertação humana
tem a ver.

* Em latim, no original: "Deus está em toda parte da Terra” . (N. do T.)

83
Quando a transcendência é compreendida em termos da “infinita
diferença qualitativa entre tempo e eternidade", em termos da ruptura
irreconciliável entre o mundo da liberdade, existencial e subjetivo, e o
mundo das estruturas objetivas, o homem tem de abdicar da vocação
para criar um novo amanhã a partir de sua liberdade e transcendência.
Tomando emprestada de Barth uma das imagens que ele usa em sua
primeira fase, poderiamos dizer que a transcendência e a liberdade
humanas permanecem sempre tangenciais ao mundo do tempo e do
espaço, tocando-o mas sem nunca adquirir uma forma. A política, as­
sim, jamais poderá ser uma resposta à questão “o que é preciso para
se fazer e manter humana a vida do homem no mundo?” A resposta
encontra-se noutro lugar.

O existencialismo responde ao problema da humanização a partir


de sua análise do “eu” do homem. O “eu" humano consiste num es­
pelho que reflete ambos os mundos: o da liberdade e o da necessida­
de. Existe entre esses dois mundos, estendido entre o finito e o infini­
to, atraído pela vocação para ser livre e, ao mesmo tempo, “fascinado
pelo mundo". “O homem”, observa Kierkegaard, “é uma síntese do in­
finito e do finito, do temporal e do eterno, da liberdade e da necessi­
dade.” Porém, como a finitude e a infinitude, o tempo e a eternidade
estão infinitamente separados, a síntese não é uma síntese. É, sim,
um “processo de se tornar”, um “infinito afastar-se de si mesmo atra­
vés do processo de se tornar infinito, e um infinito retornar a si pelo
processo de se tornar finito, de forma que o eu nunca adquire equilíbrio
e descanso.” (S. Kierkegaard, Sickness unto death, pp. 146 e 162-163.)

O indivíduo existente se mostra, desta maneira, dividido entre


duas possibilidades: ou permanece transcendente sobre o mundo,
existindo de forma autêntica, ou torna-se cativo da objetividade, per­
dendo assim a sua liberdade e vivendo inautenticamente. Nesta pola­
ridade encontram-se ambas as possibilidades humanas: como existên­
cia autêntica e como um ser perdido. É a transcendência que, ontolo-
gicamente fazendo parte do seu eu, torna-o ciente de ser “um ser para
a morte". (Heidegger, Being and time, p. 310.) Isso significa o desespe­
ro (Kierkegaard) ou a ansiedade (Heidegger). O ser humano, portanto,
não pode evitar de se preocupar com a segurança. E quando tenta en­
contrar segurança, ou se torna verdadeiramente humano através do

84
risco da liberdade, ou se perde nas estruturas do mundo, nas quais
pensava, incorretamente, poder salvar-se da morte.

A tentação é decidir pelo objetivo. O homem se equivoca quando


pensa que as promessas quantitativas do mundo são capazes de
transpor o abismo qualitativo que separa a transcendência do tempo,
acabando por optar pela segurança objetiva. Porém, ao fazer isso,
transforma-se num dançarino; um dançarino que, a partir de sua habili­
dade para saltar bem alto, pretende fazer com que os outros e ele
mesmo acreditem seja capaz de voar! Assim, ele se toma “cômico".
(Kierkegaard, Concludlng unscientific PostScript, pp. 32 e 112.) E se
toma cômico por deixar que a infinita paixão de sua interioridade re­
pouse sobre um objeto finito. É este o mesmo homem que Bultmann
descreve como aquele que confia nas suas próprias obras. Aquilo que
faz, o seu desempenho, constitui-se no fundamento de sua segurança.
Na “preocupação” do homem oculta-se, então, uma atitude de auto­
confiança que acredita que ela possa ser resolvida por meio do poder
para dispor do mundo. Mas quando isso ocorre, a autoconfiança “torna-
se vítima do mundo”. O homem então perde a sua liberdade, sua au­
tenticidade. Fica sob o domínio de “escravidão", e a sua liberdade é
substituída pelo medo que ronda todas as esferas de sua vida.

O mundo objetivo, assim, constitui uma ameaça, um mundo den­


tro do qual o homem cai, um mundo que o seduz e o objetiva. Este
jamais será o seu lar. Pelo contrário: ele se sente como que atirado em
seu interior. Conseqüentemente, tomar-se-á humano apenas na medi­
da em que tomar a decisão de não se deixar “fascinar” por ele (Hei­
degger, Being and time, p. 174.) Esta oposição entre o homem e o
mundo é o tema central dos escritos de Kafka. O ser humano ali se
mostra atemorizado e sem esperança, tornando-se presa das estrutu­
ras impessoais e burocráticas do mundo. Não existem possibilidades.
O homem não pode escolher entre fugir ou enfrentar os poderes exis­
tentes por detrás das burocracias. Não há opções porque não existem
saídasr. E por não haver saídas não existe esperança.

Novamente encontramos o mesmo elemento indicado anterior­


mente: a estranheza da liberdade e da transcendência no mundo do
tempo e do espaço. O mundo não pode ser e não será um lar para o

85
homem. O projeto de humanização, portanto, não pode ser entendido
como a transformação do mundo pelo homem e para o homem.

O paradigma da libertação humana oferecido pelo existencialis-


mo mostra-se, em consequência, necessariamente subjetivo. Tornar-se
humano é tornar-se livre subjetivamente. Humanização é subjetivação,
pois “a subjetividade é a verdade, a subjetividade é a realidade." (Kier-
kegaard, Concludmg unscientific postscript, p. 306.) O resultado da
humanização não deixa marcas na Terra! Consiste na substituição de
uma velha auto-compreensão, na qual o homem encontrava segurança
no seu desempenho, por uma nova, na qual renuncia à sua segurança
auto-adquirida e se torna livre da escravidão do mundo. (Bultmann,
Kerygma and myth, p. 315.) A consequência imediata do caráter total­
mente subjetivo da humanização, entendida como uma nova auto-
compreensão, consiste em que o mundo objetivo seja descartado co­
mo inteiramente desprovido de significação e de importância para a ta­
refa de tornar humana a vida do homem no mundo. Kierkegaard, por
exemplo, ao declarar que a “salvação” tem a ver tão-só com o “como”
da subjetividade, acrescenta também que o mundo objetivo não possui
realidade. Com efeito, para ele é o “como” da subjetividade que de­
termina o conteúdo da realidade. (Kierkegaard, Concluding unscientific
PostScript, p. 189.)12 “ É a paixão do infinito o fator decisivo, e não o
conteúdo”, diz ele, “pois seu conteúdo é precisamente ela mesma.”
(ibid., p. 181.)

Se a humanização consiste na mesma coisa que a emergência


de uma nova subjetividade, uma subjetividade apaixonada, uma nova
auto-compreensão, temos então de perguntar: qual é o método a ser
seguido nessa tarefa? Como o homem pode se envolver com a liber­
tação humana? A missão é clara: induzir uma nova auto-compreensão.
Porém, isso é algo que não pode ser comunicado diretamente, (ibid., p.

12. “ Se alguém que vive em meio à cristandade sobe à casa de Deus, à casa do ver­
dadeiro Deus, com a verdadeira concepção de Deus em seu conhecimento e ora, mas ora com
o espírito falso; e alguém que vive numa comunidade idólatra reza com a inteira paixão do infi­
nito, apesar de seus olhos mirarem a imagem de um ídolo; onde existirá mais verdade9 Um ora
a Deus com a verdade, apesar de adorar um ídolo; o outro ora falsamente ao Deus verdadeiro
e, por isso, de fato, adora um ídolo."

86
73.)13 Kierkegaard, conseqüentemente, vê a sua tarefa como sendo a
de tornar a objetividade cada vez mais fuçidia, de forma a provocar no
ouvinte, por indução, a paixão impossível de ser reduzida a palavras.
Ou, para Bultmann, o instrumento da humanização é a pregação da
Palavra, proclamadora do acontecimento que chama o homem à deci­
são, a uma nova auto-compreensão. Quardo a subjetividade é tocada,
induzida à paixão, ou levada a uma decisão de fé, o fenômeno da
transcendência ocorre. O instrumento paré a humanização, por conse­
guinte, não pode ser medido pelo seu poder para criar um novo ama­
nhã, e sim pelo seu poder para tocar a subjetividade humana.
A importância do evento dessa nova auto-compreensão consiste
no fato do homem ser retirado da história, ser retirado das relações de-
terminísticas que o rodeiam no mundo do tempo e do espaço. A ação
de Deus, o evento da transcendência, “eleva o homem acima de seus
laços mundanos e coloca-o diretamente aerante os seus olhos.” Tal
ato consiste na sua retirada da história, ou na “perda do caráter secular
tanto de Deus quanto do homem." “...Deus, que se posta distante da
história das nações, encontra cada ser humano em sua pequena histó­
ria, em sua vida cotidiana, em sua vida dária de entregas e procuras;
retirado da história (isto é, despido de sua suposta segurança, obtida
em seu grupo histórico), o homem é guiacb rumo ao encontro concreto
com o seu próximo, no qual descobre a sja verdadeira história.” (Bult­
mann, Kerygma and myth, pp. 25-26.) O mesmo mostra-se verdadeiro
para Kierkegaard. Na ocorrência da pakão infinita, a realidade do
transcendente torna-se presente, destruinto assim o espaço e o tem­
po, determinantes que constituem o quacto de referência do mundo e
da história. Desta forma, a transcendêncic consiste no fim do tempo; a
existência escatológica (Bultmann) é aqjela vivida antes do Agora
eterno.
Esta colocação parece contradizer abertamente o que o próprio
Bultmann afirma a respeito da relação eitre fé e esperança, relação
que aparece como uma determinação do ‘êu" para o tempo.
“A 'Fé' não é nenhuma condição contida na alma huma­
na, mas aponta para o futuo... [Assim], a F é ’ é também

13-“ 0 conteúdo total do pensamento subjetive que é essencial, mostra-se basica­


mente secreto, pois não pode ser diretamente comunicalo."

87
'esperança’ quanto ao futuro e 'abertura' para ele, exis­
tentes no homem de fé, já que este transformou sua an­
siedade quanto a si mesmo e ao seu futuro em obe­
diência a Deus."(Ibid., pp. 319-320.)
Uma vez mais gostaria de indicar a semelhança entre a análise
existencialista e a do humanismo político. Este último fala de uma no­
va auto-compreensão do homem, que o liberta das estruturas do pas­
sado (estruturas essas que se tornaram lei), deixando-o livre para um
novo futuro, um futuro que consiste num “ainda não” e num "risco". Es­
truturalmente, pois, essas são as dimensões da liberdade criadas pela
fé. Contudo, existe uma oposição radical entre o existencialismo e o
humanismo político. Vejamos o que o próprio Bultmann diz:
"...a proclamação de Jesus sobre a vontade de Deus de­
ve ser descrita como uma ética escatológica. Porque ela
não vislumbra um futuro a ser moldado neste mundo
através de planos e de esboços para a ordenação da vi­
da humana. Apenas dirige o homem para o Agora do
encontro com o seu próximo." (ibid., p. 19.)
Esta colocação merece a nossa atenção. Bultmann declara que a
fé torna o homem aberto ao futuro. Assim, a fé é esperança. Mas ago­
ra declara que o evento escatológico não tem nada a ver com um futu­
ro histórico, mas tão-só com o Agora. Como será possível ter-se no ato
da fé tanto a retirada do homem da história, a sua libertação do tempo,
quanto a sua libertação de um futuro que, no entanto, não tem nada a
ver com um futuro histórico, mas apenas com o Agora escatológico? A
resposta é simples. O evento da transcendência realmente retira o
homem da história. A liberdade para o futuro de que fala Bultmann é
uma forma de subjetividade, um êxtase do Dasem (Heidegger). Ela
tem a ver com a abertura da subjetividade. O outro lado da moeda, en­
tretanto, diz respeito ao futuro não estar aberto ao homem. O futuro
histórico permanece profano, secular. A ação de Deus modifica a auto-
compreensão humana; o homem agora está livre para o futuro. Porém,
isso não tem nada a ver com o tempo. O futuro não está. livre para o
homem. Como antes indicado, um novo futuro é impossível dentro do
paradigma existencialista, já que a transcendência não se insere na
história e no mundo por meio da liberdade humana, mas permanece
circunscrita à esfera da subjetividade. Parece que nos defrontamos

88
aqui com um novo tipo de ficção: o ser humano vive como se o futuro
lhe estivesse aberto, sabendo, todavia, que não está. Em consequên­
cia, Bultmann mostra-se totalmente desinteressado do problema da
eficácia. O importante não é o conteúdo objetivo mas a forma como
ele é vivido (a mesma polaridade entre o “que" e o “como” encontrada
em Kierkegaard). O próximo deixa de ser um ser histórico, vivendo se­
gundo as determinações do tempo e do espaço. O humanismo político
diria: amo o ser humano e sei que ele vive no mundo, que está por ele
determinado. Por isso, porque amo o meu próximo, que vive hoje, te­
nho de criar um mundo novo, no qual ele possa ser mais livre amanhã.
A isto, diz Bultmann:
"A busca do amor não necessita de estipulações formu­
ladas; o exemplo do Bom Samaritano mostra que um
homem pode e deve saber o que tem de fazer quando
vê o seu próximo necessitando de ajuda. A pequena ex­
pressão ‘como a ti mesmo', no mandamento do amor,
indica previamente tanto a imensidade quanto a direção
da conduta amorosa... O fato mostra que a sua procla­
mação da vontade de Deus não consiste numa ética de
reforma do mundo." fibid., p. 19.)
Não se pode perder de vista o objetivo destas reflexões sobre o
existencialismo. Está-se examinando, por um lado, a congruência entre
o projeto histórico com o qual cristãos e comunidades de não-cristãos
estão comprometidos, no sentido de criar-se um novo futuro para o
homem e, por outro, os recursos oferecidos pela linguagem teológica
para essa tarefa. Assim, está-se investigando as relações entre um
projeto de humanização que é eminentemente político e os recursos
possíveis oferecidos pelos paradigmas de humanização mais comuns.
Por isso examinamos alguns aspectos do existencialismo, relaciona­
dos com o problema.
Podemos resumir as conclusões a que já chegamos utilizando-
nos das três determinações básicas da consciência política como qua­
dro de referência:
1. O humanismo político nega a inumanidade das presentes es­
truturas e o seu poder desumanizante, em benefício de um amanhã
melhor. Nega o mundo de hoje justamente por amar o mundo, por que­

89
rer transformá-lo num lar, num “lugar de recuperação”. O existencia-
lismo, ao contrário, nega o mundo pura e simplesmente. No mundo,
um novo amanhã jamais será possível. Nele, o ser humano nunca se
sentirá em casa. As mudanças possíveis no mundo, sejam quais fo­
rem, não têm nada a ver com a questão da humanização e da desu-
manizaçáo.
2. O humanismo político tem esperança quanto a um novo futuro.
Por ser o homem aberto ao futuro, pode tornar o mundo aberto a si
mesmo. A sua esperança, portanto, mostra-se histórica. Tem a ver com
o mundo e com o tempo. Ela seculariza e torna o homem histórico. En­
tretanto, o existencialismo, devido ao seu desespero com relação ao
mundo, reduz a esperança a uma dimensão da subjetividade, sem
qualquer importância para a transformação do mundo. Sua esperança
não cria, e sim anula a história.
3 .0 humanismo político entende o homem como “homo creator”,
dono de “poder” para inserir no espaço e no tempo a sua transcendên­
cia. Assim, esta se torna ato, história, criando o novo e permitindo a
reconciliação entre o existencial e o objetivo, já que o amanhã irá re­
ceber a marca da negação e da esperança humanas. O humanismo
político, por conseguinte, pretende conduzir a paixão e a visão existen­
cialista da vida até suas últimas consequências. Quer ver a vida autên­
tica, a subjetividade livre, criando um novo amanhã, um novo tempo,
um novo mundo. Por isso entra em conflito com o próprio existencia­
lismo, quando este opera a sua divisão fundamental entre o mundo da
liberdade e o mundo do espaço e do tempo. No contexto dessa divi­
são, a ação humana toma-se impotente para criar um novo amanhã.
Permanece como um lampejo do Agora Eterno no tempo, sempre tan-
gencial, sempre impotente para fertilizar a Terra.
O existencialismo, apesar de em muitos casos constituir um pa­
radigma e uma ajuda bastante preciosa para a humanização, não ofe­
rece, assim, os recursos necessários para um projeto de natureza polí­
tica. É preciso um novo paradigma para a humanização, e, portanto,
uma nova linguagem de fé.

O Paradigma Barthiano: Entre o “Não" e o "Sim”

A tarefa agora consiste em explorar as possíveis contribuições da


linguagem criada por Karl Barth para o projeto político de libertação

90
humana, com o qual muitos cristãos e comunidades cristãs estão
comprometidos. O procedimento será o mesmo adotado na precedente
discussão sobre o existencialismo. Nós nos defrontaremos com a lin­
guagem barthiana perguntando: Qual a resposta que é dada à questão
sobre “aquilo que é preciso fazer para que a vida permaneça humana
em nosso mundo”? E a pergunta sobre o seu paradigma de libertação.
Partindo daí trataremos de verificar a forma como sua resposta pode
lançar luz sobre este projeto de se criar um novo futuro para a huma­
nidade.

Crise

A situação que fez nascer a linguagem barthiana foi a do conflito


entre as expectativas otimistas do liberalismo do século XIX e as duras
realidades da experiência histórica representada pela Primeira Guerra
Mundial. As expectativas quanto ao progresso tecnológico, quanto à li­
bertação do homem, ao triunfo da razão humana sobre o irracional e o
instintivo na história, bem como a certeza de que o homem se liberta­
ria da tutelagem dos poderes heteronômicos da política e da religião -
todas essas esperanças e certezas que estavam implicadas na afirma­
ção de Kant acerca da maioridade do homem (I. Kant, What is enli-
ghtnment? e Foundations o f the metaphysics of morais, p. 85) - foram
confrontadas com um Não radical e inesperado. O otimismo da lingua­
gem do progresso enquanto paradigma da libertação humana não po­
dería sobreviver à dura linguagem dos fatos: em seu processo, a histó­
ria não era provida de um poder imanente para tornar humana a vida
do homem.
Ao mesmo tempo Barth descobriu haver muito mais realismo na
linguagem da Bíblia do que na linguagem do liberalismo do século
XIX. A Bíblia não fala do progresso. Pelo contrário: mostra-se mais
ciente das potencialidades auto-destrutivas da criatividade humana. A
destruição das esperanças quanto à auto-libertação progressiva, desta
maneira, podia ser entendida a partir da perspectiva do “estranho
mundo da Bíblia”. (Cf. K. Barth, The word of God and the word of
man.) Por isso Barth declara que “uma leitura completa da literatura
secular contemporânea - especialmente dos jornais - é... recomenda­
da a todo aquele que deseja entender a Epístola dos Romanos”. (K.
Barth, The epistle to the Romans, p. 425.) Ambas as linguagens, a da
Bíblia e a dos jornais, apontam o mesmo fato: a história não é portado­

91
ra da humanização; ela não pode oferecer quaisquer promessas mes­
siânicas; pelo contrário: o que nos oferece é o desespero, a frustração
e a destruição do homem.
O empreendimento teológico de Barth, em consequência, adquire
a forma daquilo que ele mesmo denomina “tarefa antisséptica”. (K.
Barth, Church dogmatics, CD 1/2, p. 50.) Barth aspirava à criação de
uma linguagem liberta de falsas esperanças, criadas por uma compre­
ensão acrítica do homem e da história. Como não poderia haver qual­
quer esperança de humanização por parte da verdade histórica e de
sua frustrante negatividade, então a missão de se criar um novo para­
digma da humanização tinha de ser primeiramente destrutiva: o falso
paradigma - a falsa resposta à questão "o que é preciso para se fazer
e manter humana a vida do homem no mundo?" - deveria ser mostra­
do como uma ilusão. Barth percebeu não haver qualquer esperança
para o homem, exceto no contexto da desesperança com relação à
história. A humanização, assim, não podia ser vista como uma dádiva
da história. Ela proviría daquilo que estava além da história e que a
negava.
O paradigma da humanização de Barth mostra-se então radical­
mente crítico, daí este ter-lhe dado o título de "teologia da crise”. Deve-
se notar, entretanto, que Barth não considerava sua tentativa de criar
uma nova linguagem teológica meramente como fruto do desaponta­
mento para com a história. Acreditava, sim, ser a sua postura crítica
basicamente bíblica e teológica, e não um simples resultado de análi­
ses críticas. Teológica e biblicamente não havia qualquer base para a
messianização da história e do homem. A possibilidade da libertação
humana estava ao lado de Deus, constituía uma graça divina. No en­
tanto, esse Deus sobre quem repousavam todas as esperanças de
realização humana, situava-se radicalmente além da história. Assim,
com Kierkegaard, Barth afirmava existir uma “ infinita diferença qualita­
tiva” entre Deus e o homem, entre eternidade e tempo. Porque “a re­
velação não é um predicado da história”, a humanização não consiste
numa de suas possibilidades imanentes. (CD 1/2, p. 58.) Tudo o que o
mundo e a história nos apresentam, “em última instância... não aponta
para Deus, e sim para nós mesmos, para as nossas almas Dele alie­
nadas." (CD 11/1, p. 76.) Não podemos conhecer nem Deus nem nós
mesmos e nossos destinos a partir do mundo e da história. Deus não

92
pode ser apreendido nem por meio de sentimentos piedosos (S-
chleiermacher), nem por meio da história (Hegel e Baur), nem pela
consciência moral (Kant, Ritschl). Ele permanece oculto, além da histó­
ria, como o “Totalmente Outro". A realidade de Deus é, assim, basi­
camente separação, oposição, negação. A característica de Deus de
mostrar-se "Totalmente Outro” mantém-se mesmo no evento da reve­
lação. Diz Barth: "Esse ocultamento, completamente contrário à natu­
reza como ela é, consiste numa determinação necessária à revelação.”
(CD 1/2, p. 63.) Não se pode, desta maneira, falar inequivocamente a
respeito da presença de Deus. Ele "deve ser visto como o invisível e
expresso apenas como o inexprimível.” (CD 11/1, p. 190.) Nossas pala­
vras acerca de Deus têm de representar o seu “ocultamento", já que “o
ser apreendido por nós em pensamentos e palavras consiste sempre
ou no ‘ainda não’ ou no ‘não mais’ do ser de Deus”, (ibid., p. 187.) É
preciso que assim seja devido a Deus opor-se à história e ao tempo. A
dialética do pensamento, por conseguinte, é nada mais que o espelho
do caráter tangencial da revelação, tocando o mundo e a história sem
nunca tornar-se mundo e história.

Como anteriormente citado, a influência da compreensão kantia-


na e kierkegaardiana acerca da transcendência é fundamental para es­
te paradigma. A transcendência não penetra na história, e sim coloca-
se contra ela. É o tempo em sua totalidade, o mundo em sua totalida­
de, a criatividade humana em sua totalidade, bem como as esperanças
históricas em sua totalidade que recebem o Não de Deus. Deus é livre
do tempo, e por isto nega o tempo. Em Barth encontramos "um senti­
do mais metafísico de crise da humanidade toda perante Deus”, co­
menta C. C. West. (Charles C. West, Communism and the theologians,
p. 179.) O histórico e o negativo estão assim identificados. Como Bul-
tmann, Barth poderia ter dito que a revelação consiste em retirar Deus
e o homem da história e do secular. Portanto, sua teologia da trans­
cendência constitui uma forma radical de pensamento negativo: tudo o
que seja tempo e mundo é negado, pois seu ser de tempo, ser de
mundo, ser de história, ser de homem, opõem-se a Deus e são por ele
negados. Ao defrontarmo-nos com Deus "permanecemos... ante uma
irresistível e abrangente dissolução no mundo do tempo e das coisas
humanas, ante uma insidiosa e suprema Krisis, ante a supremacia de
uma negação com a qual toda a existência vai de roldão.” (Barth,

93
The epistle to the Romans, p. 91.) Esta negação radical, em decor­
rência, converte-se no instrumento crítico por meio do qual chegamos
a saber o que a história e a criatividade humanas constituem verdadei­
ramente:

“A exibição de supostas vantagens do poder e da inteli­


gência, que alguns homens possuem sobre outros, a lu­
ta pela existência hipocritamente descrita pelos ideólo­
gos como luta pela justiça e liberdade, o fluxo e refluxo
das velhas e novas formas de justiça humana, cada
uma delas rivalizando-se com o resto em solenidade e
trivialidade." Ç\bid., p. 77.)

"Ordem! O que é a ordem existente? ...uma nova fortale­


za e uma nova defesa do homem contra Deus; uma pro­
teção para o curso normal do mundo..., uma conspiração
dos muitos contra o Único. Que legalidade não é, no
fundo, ilegal? Que autoridade não consiste numa tira­
nia? (West, ob. cit., p. 180, citando Der Romerbrief.^

Será isso o fim da história e o fim do homem? Não estará nas


raízes dessa negação metafísica a justificação teológica para o niilis-
mo? Barth não pensa assim, e não pretende que o seu pensamento
seja entendido desta forma. A negação existe em favor da afirmação.
Com efeito, a negação apontava para o terreno transcendente de onde
ela mesma provinha, para o além que, exatamente por negar a negati-
vidade da história, constituía uma outra realidade, a realidade de Deus,
a base da esperança para o homem. “Esse Não”, comenta Barth com
relação à cruz, “é um Não que não pode ser ignorado ou contradito, é
um Não divino que repousa no divino Sim da revelação...” (CD I/2, p.
111.) A cruz revela o que pode fazer aquilo que de mais elevado existe
na piedade e na ordem humanas. Nega o Filho de Deus e, com ele, o
homem. A cruz, por conseguinte, consiste no fim da história, na revela­
ção da impiedade que se esconde por detrás de tudo o que ocorre no
tempo. Porém, a cruz, enquanto negação, não permanece a última
palavra. A ressurreição a segue, mostrando-se a possibilidade impossí­
vel. Impossível porque as possibilidades da história haviam-se esgo­
tado na cruz; mas possível devido ao fato da graça de Deus operar
precisamente quando as possibilidades da história já se esgotaram.

94
O divino Sim da revelação é então encontrado na ressurreição, que
consiste no triunfante Sim negando a cruz e abrindo caminho para a
possibilidade criada pela graça de Deus. A possibilidade de Deus, o
novo tempo, conquista, assim, a negatividade da história, apesar da
realidade desse tempo negado ainda permanecer. (ibid., p. 61.)14 Po­
rém, tal realidade permanece apenas por um momento, pois a última
palavra já foi pronunciada por Deus em sua afirmação de uma realida­
de “inteiramente outra” que a ressurreição inaugura.
Não é preciso que se diga como essa polaridade entre o Não e o
Sim pode auxiliar no projeto de criação de um novo futuro para o ser
humano. Está-se aqui frente a frente com a polaridade estrutural bási­
ca encontrada em nossa análise da consciência do humanismo políti­
co: a negação crítica daquilo “que é” cria a esperança quanto àquilo
“que pode ser”, mas que "não é ainda”. Precisamente quando a trans­
cendência se coloca na história, a negação do velho e a criação do no­
vo se tornam possíveis. A transcendência, assim, faz a mediação do
novo na história através da criação de um novo amanhã.
Barth, entretanto, não admite tal possibilidade. Percebe que al­
guns podem usar sua dialética entre a negação e a afirmação como
um instrumento crítico para a transformação do mundo, mas nega ve­
ementemente que seja esta a sua intenção. E mais que isso: nega que
a sua teologia possa dar lugar a esse tipo de conclusão.

“Não é improvável que sua leitura [de The epistle to the


Romans - A epístola aos romanosy possa encorajar um
desprezo pela presente ordem e uma atitude de nega­
ção contra ela. A intranquilidade, o questionamento, a
negação, a enfática insistência sobre a parábola da mor­
te com que o cristianismo está definitivamente compro-

14. "Deus revela-se, e isto se afirma em vista da fatual resistência do homem quanto
ao domínio divino... O velho aeon consiste no tempo de Deus confrontando-se com os ho­
mens, homens que se jactam de seu próprio poder e, assim, tornam-se pecadores e decaí­
dos."
“A consumação do tempo, pela revelação, não significa, por certo, sua realização ple­
na, mas tão-só a anunciação da iminência do fim de nosso tempo... Da mesma forma como
a revelação ainda não é a redenção (Mc. 1:15), mas apenas a 'aproximação' do Reino de
Deus, também o nosso tempo continua realmente conservado." (ibid., pp. 67-68.)

95
metido (XIII.6), podem ser tanto mal interpretados como
transformados num método positivo de conduta huma­
na, num meio de justificação, de fato, num titanismo da
revolta, da sublevação e da renovação. O Titã revolucio­
nário é mais ímpio e mais perigoso do que a sua con­
trapartida reacionária." (Barth, The epistle to the Ro-
mans, p. 478.)

Uma declaração assombrosa! Existe mais impiedade na tentativa


de criação de um novo amanhã para o homem do que na afirmação
acrítica deste presente que destrói o ser humano! Por quê? A resposta
encontra-se no conceito de transcendência, que está permanentemen­
te exilada neste mundo, um mundo que nunca é lar, como ocorre com
o existencialismo. A salvação de Deus é, assim, o fim da história: ela
cria “na história, o horror pela história." (Barth, The epistle to the Ro-
mans, p. 90.) A esperança inaugurada.pela revelação de Deus, desta
forma, mostra-se não apenas meta-histórica, como anti-histórica. E
tem de ser assim, pois a história, enquanto tempo e espaço, não deixa
lugar à humanização.

O resultado dessa transcendência doceta consiste no senso de


futilidade que então passa a dominar a ação humana. Como em Kaf-
ka, não há saídas. A criatividade humana não pode produzir um novo
futuro porque a esperança oferecida pela negação de Deus não aponta
um novo amanhã na história. O fato é que “o julgamento de Deus
constitui-se no fim da história, e não no início de uma nova, de uma
segunda época. Por ele a história não se prolonga, mas é abolida."
(ibid., p. 77.) Todas as opções são igualmente rejeitadas. “A reação e a
revolução", comenta Barth, “sempre se alimentaram da mesma fonte,
uma do medo e a outra do desejo, mas ambas da impiedade.” (CD 11/1,
p. 468.)

O que resta ao homem para ser feito? Qual é o paradigma dei­


xado para a missão de se fazer e manter humana a vida do homem no
mundo? Na medida em que o mundo é negado a vida humana no
mundo consiste, na verdade, numa vida que rejeita o mundo, que en­
contra o seu lar noutra esfera, como ocorre com o existencialismo. A
humanização, portanto, não tem nada a ver com o “homo creator” - o
Titã! - e com a criação de um novo amanhã. O resultado desta posi­
ção, indica o Dr. West, é que a partir do paradigma da humanização de
Barth, “o cristão não deve se distrair com lutas relativas ao poder na
história, desviando-se de sua tarefa primordial que é proclamar a re­
conciliação do homem com Deus, em Cristo". (West, Communism and
the theologians, p. 269.) Desta maneira, nossa esperança se encontra
na realidade meta-histórica anunciada pela palavra e tangenciando o
mundo: ela não oferece instrumentos críticos para a missão de se criar
um novo amanhã. A humanização dá-se em função de se ter ouvido
corretamente a palavra, e não de transformações críticas da história.
Poderiamos perguntar então se este paradigma da humanização não
funciona, na verdade, como o ópio do povo!

O “Sim" da Escolha

O próprio Barth percebeu que este paradigma da humanização


era, no fundo, profundamente inumano. Em seu artigo "The humanity
of God” (A humanidade de Deus) ele menciona o caráter “um tanto
cruelmente inumano” e as implicações de sua compreensão anterior da
transcendência. As expressões que apontavam a radical separação e
oposição entre Deus e o mundo - tais como a “infinita diferença quali­
tativa", “a verticalidade desde o acima”, o “vácuo”, o “ponto matemáti­
co”, a “tangente" - eram inumanas, porquanto não partiam da realida­
de de Jesus Cristo, Deus para nós e conosco. (Barth, 'The humanity of
God, em God, grace and gospel, p. 35.) Tais expressões têm origem
na filosoüa de Kant e na de Kierkegaard. A transcendência de Deus
não pode ser entendida a partir de um “inteiramente outro" abstrato,
mas deve sê-la a partir da percepção de que a transcendência de Deus
consiste num nome diferente para a “humanidade de Deus”. E verdade
que uma antropologia não pode ser o ponto de partida para uma teo­
logia. Mas, por certo, é também verdade que para a fé cristã Deus
apenas faz-se conhecido como homem. E ainda é correto que a reve­
lação não constitui um predicado da história: porém, deve-se acrescen­
tar que “a palavra de Deus, em seu sentido mais forte, faz a história."
(CD 1/1, p. 153.) A transcendência torna-se história, mundo, tempo.
A palavra, diz Barth, “não queda transcendente sobre o tempo, não se
encontra com ele meramente num ponto, mas penetra-o; ainda mais,
apropria-se dele; e mais: assume-o; e mais ainda: cria-o para si mes­
ma." (CD, I/2, pp. 45 e 50.) E o que torna a transcendência histórica é

97
a liberdade de Deus, que se converte em ato. O ato de Deus consiste,
então, na mediação entre ele e o mundo. Deus age e o mundo se mo­
difica; surgem sinais de objetividade sob a forma de criaturas.(CD 1/1,
p. 164.) is
Nota-se aqui uma mudança substancial no paradigma da huma-
nização de Barth. Anteriormente a esperança de libertação humana es­
tava unida à negação total do mundo. Agora a transcendência de
Deus, apesar de negar o mundo, oferece-o ao homem como permis­
são. Esta substituição foi possível devido a Barth ter percebido que a
transcendência de Deus sobre o homem e o mundo deveu-se à sua
auto-determinação de ser para o homem e à determinação de que o
homem fosse para Ele. “Em Jesus Cristo [que é a única forma de
transcendência de Deus], Deus, em sua graça livre, determina-se para
o pecador e o pecador para Ele. Ele é a decisão de Deus, antes da
qual, sem a qual e fora da qual Deus não pode tomar qualquer outra
decisão”. (CD, 11/2, p. 177.) Porque Deus é para o homem e com o ho­
mem, porque o homem e o mundo são abraçados pela decisão de
Deus, eles recebem uma autonomia simples e compreensiva.
Assim como o Não da crise transformou todos os créditos da his­
tória em débitos, agora o Sim de Deus cancela todos os débitos e con­
fronta o homem com um horizonte de permissão. Os tons niilistas da
primeira fase de Barth dão agora lugar ao “triunfo da graça”, nas pala­
vras de Berkouwer. (G.C. Berkouwer, The triumph of grace in the
theology of Karl Barth).
Mas qual será o significado preciso desta afirmação, a de que a
transcendência toma-se tempo? Significará que agora Barth deu um
passo atrás e voltou a cair no imanentismo do século XIX? Significará
que ele agora está pronto para aceitar que eternidade e tempo coinci­
dem? Significará que a história tornou-se messiânica, sendo portadora
da esperança de humanização? Não. “Seria uma ilusão", diz Barth,
"explicá-la [a eternidade] como o conteúdo oculto de todo o tempo e,
portanto, todo tempo como o seu continente - então somente um conti-15

15. "Um ato consiste...numa alteração relativa do meio ambiente que procede dele."
(Loc. cit. acima.)
A revelação, como o ato pelo qual Deus se faz conhecido, significa "a doação dos sig­
nos", "significa sacramento, sob a forma de objetividade". (CD 11/1, p. 53.)

98
nente da eternidade”. (CD 1/2, p. 8.) A afirmação de que a eternidade
tornou-se tempo é válida tão-só para o tempo de Jesus Cristo e para
nenhum outro. É “o tempo de Jesus Cristo [que] constitui o tempo do
Senhor do tempo... tempo dominado e, por esta razão real e consuma­
do. (...) Assim, o tempo que Deus tem para nós... deve ser visto como
o tempo eterno. (...) O tempo consumado é aquele dos anos de 1 a
30.” (ibid., pp. 52, 51 e 58.)
Se o tempo consumado, tempo que Deus tem para nós, mostra-
se o da encarnação, da vida histórica de Jesus Cristo, o que se poderá
dizer a respeito do tempo anterior e do posterior a Cristo? Esta ques­
tão é de fundamental importância, pois tem a ver com a possibilidade
de humanização num tempo que não seja o consumado.
Barth responde: “Esses são tempos diferentes, distingüidos não
só pela diferença em períodos e conteúdos... mas pela atitude variada
de Deus para com o homem." (CD 1/1, p. 165.)
O tempo anterior ao consumado, mostra-se o da “tentativa insa­
tisfatória da pedagogia” (CD I/2, p. 109.), da “expectativa, mas apenas
de uma expectativa quanto à revelação de Jesus Cristo” (ibid., p. 82.),
tempo quando a revelação "ainda não" era, quando "a revelação de
Deus tomar-se-á realidade." (ibid., p. 89.).
O tempo “depois dos anos 1-30”, “como o da pré-história, é um
tanto diferente do consumado.” (ibid., p. 101.)
O problema torna-se ainda mais complicado, já que nem todo o
tempo consumado se coloca no mesmo nível. O tempo da ressurreição
é algo diferente, se comparado aos anos da vida de Jesus, que o pre­
cederam. O que faz esse tempo diferente, o que o torna consumado
“por excelência"? Responde Barth: “Quais os pronunciamentos do No­
vo Testamento que, devido a serem pronunciamentos de uma memó­
ria definida, não são implícita ou explicitamente escatológicos?” (ibid.,
p. 110.)
A única “grande excessão” é o tempo da ressurreição, que con­
siste, literalmente, no fim da escatologia. Tal tempo, diz Barth, mostra-
se um “presente sem qualquer futuro... uma presença eterna de Deus
no tempo. E como ele não pode tornar-se passado, nem precisa de
qualquer futuro, constitui um tempo puramente presente.” (ibid., p.114.)

99
A cruz é deixada para trás. É passado. A intromissão negativa da
transcendência na história não existe mais; está acabada, completada.
O velho aeon não mais existe. Chegou ao fim "com a cruz de Cristo.”
{ibid., p. 56.) Não há mais lugar para a negação histórica. Com efeito,
"se o velho aeon acabou, não precisamos lutar contra ele.” {ibid., p.
107.) A crise terminou.

Lembremo-nos de nossa discussão a respeito da consciência po­


lítica, na qual se afirmou ser a criação do futuro correlativa à negação
crítica do passado. O homem cria de maneira a conduzir a negativida-
de a um fim. Se, por qualquer motivo, a crise se acabar (uma impossi­
bilidade histórica, do ponto de vista do humanismo político), não existe
qualquer possibilidade para a criação de um novo futuro. Poderiamos
dizer que se isso ocorresse o futuro teria chegado, teria se tornado
presente e estaria em vias de se tornar passado. Esta é, precisamente,
a conclusão a que Barth chega. Ele declara que, apesar de “Sua res­
surreição [de Cristo] e de sua parúsia constituírem dois eventos para
nós”, isso não consiste na verdadeira realidade, já que, para Deus, eles
são “apenas um”. (CD III/2, p. 490.) Realmente, não existe futuro en­
quanto um tempo ainda aberto. O que parece, da perspectiva da histó­
ria, ser um futuro, consiste numa ilusão de ótica, já que para Deus as
duas dimensões do tempo coincidem. É verdade que Barth admite que
Cristo ainda está em movimento: “Ele se encontra em movimento, ou
em Seu caminho, como um mediador humano-divino, avançando des­
de o Seu começo rumo à meta nele já indicada e incluída. (...) Enquan­
to revelador de Seu trabalho, ele ainda não alcançou a Sua meta. Ain­
da se move rumo a ela." (CD IV/3, p. 326.) Assim, depois de tudo, pa­
rece haver um futuro aberto, que permanece futuro mesmo para o Me­
diador. Todavia, deveriamos ter em mente que a Sua incompletude re-
fere-se à tarefa da revelação de um mundo já consumado. Este traba­
lho já consumado, então, determina formal e fatualmente os limites e
a realidade do futuro. Deveriamos nos lembrar que esta destruição da
realidade do futuro se apóia inclusive na doutrina de Barth a respeito
da Trindade. A eternidade, enquanto expressão do ser de Deus, con­
siste “na simultaneidade e na coincidência do passado, presente e fu­
turo." (CD III/2, p. 526.) Se mesmo da perspectiva de Deus não há fu­
turo, como podem os homens se comportar feito fóssem capazes de
criar o futuro? Realmente, “o tempo que se sobrepõe ao nosso tempo"

100
é aquele não-escatológico, desprovido de futuro, puramente presente.
[ibid., p. 116.)
Se a humanização do homem não pode assim ser relacionada à
criação de um novo amanhã, como acredita o humanismo político, “o
que será preciso para se fazer e manter humana a vida do homem no
mundo?” Como ser-se humano se o tempo da humanização, da trans­
cendência, já é passado e, portanto, localiza-se para além da busca
humana de liberdade? Com o existencialismo, Barth responde a esta
questão indicando ser a consciência o que transpõe o homem para o
tempo de Deus. É dentro dos limites da consciência (determinados,
obviamente, pelo Espírito Santo) que um milagre ocorre: o futuro deixa
de ser futuro e o passado, passado; tornam-se presente. Desta manei­
ra, a expectativa e a memória não são formas de ausência, e sim mo­
dos de contemporaneidade. Comenta Barth: "Onde a expectativa é
genuína, ‘previamente’ não significa 'ainda não’; assim como, onde a
memória é genuína, ‘posteriormente’ não significa ‘não mais’." (ibid., p.
70.) O problema da humanização é o problema da contemporaneidade
com o tempo que Deus tem para nós, ou seja, o tempo da coincidên­
cia e da simultaneidade do passado, presente e futuro, o tempo da
ressurreição. Com efeito, esse é o único tempo real, o tempo de Deus
para o homem, e, portanto, o tempo em que ao homem é permitido ser
homem. "O que queremos dizer com tempo”, assinala Barth, “é que
ele ali se mostra real. Assim, temos o nosso tempo não aqui, mas lá.”
(ibid., p. 66.)
Porém, como ocorre esse milagre da transtemporalização? A
resposta a esta questão é de fundamental importância, dado ser ela,
na verdade, a resposta à questão “o que é preciso para se fazer e
manter humana a vida do homem no mundo?” A resposta: as Escritu­
ras nos despojam deste tempo, do nosso presente; elas "roubam-nos o
tempo" e nos transportam de volta ao tempo em que seremos capazes
de encontrar a verdadeira libertação.
"Isso não consiste, portanto, num ardil edificante do pen­
samento, mas na assimilação de um alimento absolu­
tamente indispensável à nossa vida, quando a Sagrada
Escritura e a proclamação de sua mensagem nos cha­
mam e nos transportam de nosso tempo para aquele
outro, quer dizer, o de Jesus Cristo." (ibid., p. 66.)

101
“O problema do Mundo de Deus consiste no fato de hoje
ser concedido a este homem particular, por meio da
proclamação deste texto bíblico particular, esta particu­
lar manifestação de Deus, isto é, um illic et tunc* parti­
cular se transforma num hic et nunc** particular.” (CD
1/1, p. 170.)

A única ação humanizante, a única ação que pode tornar possível


o milagre da transtemporalização é, assim, a pregação da palavra, a
anunciação da realidade do tempo que Deus tem para nós: o tempo
não-escatológico da ressurreição.

Onde estaria então o lugar do trabalho e da criatividade huma­


nos? Num mundo onde o futuro já está pronto, onde a humanização é
uma função da pregação, a ação humana se toma, na verdade, secun­
dária. Ela “não consiste realmente numa criação, mas num movimento
que se dá no interior do mundo criado.” (CD III/4, p. 520.) É uma ação
que não nega o já dado, mas que ocorre dentro dele, como um tipo
simples de movimento. A tarefa da humanização se transforma, des­
tarte, em monopólio dos pregadores, ordenados ou leigos. Quanto ao
homem que deseja criar um novo futuro, que pretende criar a história,
ele se encontra completamente equivocado acerca daquilo que acredi­
ta seja a sua vocação. "Mesmo fazendo o melhor, não somos mais
que crianças engajadas numa brincadeira séria e verdadeira.” (ibid.,
p. 553.)
Chegamos assim à nossa conclusão.
Pretendia-se observar em que medida a linguagem de Barth po­
dería auxiliar aqueles envolvidos com a missão de criar um novo futuro
para o homem. Começou-se pela sua primeira fase, fundada num con­
ceito de transcendência kantiano-kierkegaardiano, e chegou-se à se­
gunda, na qual Deus converte-se no tempo. Quais seriam, então, as
conclusões sugeridas pelo nosso diálogo com a teologia de Barth?
Tentar-se-á resumi-las a partir das três determinações centrais daquela
consciência que busca um novo amanhã para o homem.

* Em latim, no original: “ ali e entáo” . (N. do T .)


*’ Em latim, no original: "aqui e agora". (N. do T.)

102
1. A primeira fase de Barth poderia ser de grande ajuda na com­
preensão da negação. Contudo, seu conceito de transcendência torna
isso impossível. Ali Deus se contrapunha ao mundo inteiro. Sua trans­
cendência não o inseria no mundo. Em decorrência, ela não podia
permitir a criação de um novo amanhã, pois conduzia a história a um fim.
Na segunda fase a negação foi engolfada pelo triunfo da afirma­
ção. O negativo não tem existência real. Por conseguinte, não há lugar
para o pensamento negativo.
2. A negação, em sua primeira fase, consistia na contrapartida da
esperança. Porém, devido ao caráter “contra-o-mundo” da transcen­
dência, a esperança aí estava relacionada a uma realidade meta-histó-
rica. A transcendência não permitia preocupações quanto à criação de
um novo amanhã. Não havia lugar para um futuro histórico.
No contexto do triunfo metafísico da afirmação, uma coisa pare­
cida ocorre: o futuro se torna passado. O tempo verdadeiro não é o
tempo histórico, com seu caráter inconcluso, e sim o tempo metafísico
da ressurreição.
3. Em ambas as fases a humanização coloca-se como função da
pregação, que consiste na tarefa de humanização por excelência. O
homem não se mostra homo creator. Na primeira fase, suas possibili­
dades mais criativas são descartadas como novas formas de rebelião.
Na segunda, a ação humana se reduz a um movimento dentro de es­
truturas já dadas. Ao refletir-se sobre este problema em Barth, é con­
veniente que se lembre daquilo que um estudante disse contra os bu­
rocratas: “eles crêem que a história tenha chegado ao fim.” E aqui, não
se chega a conclusão semelhante?
Parece então que, para aqueles comprometidos com a criação de
um novo futuro, enquanto exigência da humanização e expressão da
transcendência humana, faz-se necessário prosseguir na busca de
uma linguagem apropriada ao seu projeto histórico e à sua condição
de membros de uma comunidade de fé.
A Linguagem da "Teologia da Esperança": De um Passado Rejeitado a
um Futuro Ofertado
“O que é preciso para se fazer e manter humana a vida do ho­
mem no mundo?” Jürgen Moltmann, em sua Theology of Hope (Teolo­

103
gia da Esperança) sugere, a partir de um diálogo com a linguagem bí­
blica, um paradigma diferente da humanização, paradigma esse que
se pretende examinar agora.
Seu ponto de partida é o conflito entre a humanização em termos
de absorção pela eternidade atemporal e a humanização em termos
de participação na história - história que se move desde um passado
e um presente rejeitados rumo a um futuro ofertado. Na verdade, Mol-
tmann não começa trabalhando com a humanização, a não ser indire­
tamente, ao levantar a questão da revelação. Como a linguagem bíbli­
ca entende o impacto de Deus sobre as pessoas? Qual é a natureza
dessa revelação? Moltmann indica que a influência dos métodos gre­
gos de pensamento nos têm levado a pensar na revelação como algo
que ilumina "a realidade do mundo ou da natureza humana", algo que
interpreta essa realidade “apresentando sua verdade pelo emprego de
uma compreensão própria, a fim de assegurar que os homens concor­
dem com ela." (ibid., p. 186.) No ato da revelação o homem ver-se-ia
defronte à verdade daquilo que é, e, deste modo, tornar-se-ia reconci­
liado com ela. A revelação consistiría na “epifania do presente eterno”
{ibid., p. 84.), na revelação do Deus de Parmênides, Deus esse que se
encontra etemamente em sua perfeição, Deus que, portanto, no ato de
sua revelação liberta o homem da transitoriedade da história e integra-
o na verdade daquilo que é.
Na revelação aconteceriam duas coisas básicas: primeira, o ho­
mem se defrontaria com a explicação das contradições do mundo,
desde as suas origens primordiais; e, segunda, o homem tornar-se-ia
integrado à estrutura total da realidade. Contudo, Moltmann assinala
que, para a Bíblia, a revelação, em vez de explicar aquilo que é, “con­
tradiz a realidade existente" e “assim inaugura um estágio aberto para
a história." {ibid., p. 86.) Isso ocorre devido à revelação bíblica não con­
sistir na “epifania do presente eterno”, e sim na revelação do “ Deus da
esperança... Deus que tem o futuro ‘como sua natureza essencial’.”
{ibid., p. 86.) No primeiro caso a revelação tem a ver com “a presença
do eterno”. No segundo, ela aponta o futuro prometido por este Deus
cuja natureza essencial é o futuro, {ibid., p. 43.)
Se Deus é o futuro, em sua natureza essencial, não podemos
encontrá-lo nem como uma realidade “ intra” e nem como realidade
“extra-mundana”. {ibid., p. 16.) Ele não pode ser apreendido como um

104

“ser”, pois revela-se como alguém ausente, apontando sempre para o


futuro. Sua aparência é então apreendida como a manifestação de
uma palavra de promessa. Ele “nos encontra em suas promessas de
futuro.” (ibid, p. 99.) Por conseguinte, não se pode “tê-lo". Pode-se “a-
penas aguardar com ativa esperança", (ibid., p. 16.)
Se o Deus bíblico é aquele que se revela ao prometer um novo
futuro ao homem, chega-se a uma nova compreensão da humaniza­
ção, em termos da vida como uma resposta à esperança criada pela
promessa divina. Desta maneira, o ser humano se liberta dos limites
impostos pelas estruturas do mundo. Liberta-se da prisão daquilo que
é, tornando-se livre para pensar e conduzir-se de acordo com possibili­
dades não-imanentes de seu mundo. De fato, “uma promessa consiste
numa declaração que anuncia a vinda de uma realidade ainda não
existente. (...) O futuro esperado não tem de se desenvolver a partir do
quadro de referência das possibilidades inerentes ao presente, mas
pode surgir daquilo que é possível ao Deus da promessa”, (ibid., p.
103.) O desenvolvimento da história, então, não deve ser entendido
como um processo imanente, e sim como uma criação da palavra.
“Não são a evolução, o progresso e o avanço que separam o tempo
em ontem e amanhã, mas é a palavra de promessa que introduz o cor­
te no acontecer, dividindo a realidade numa realidade que está pas­
sando e pode ficar para trás, e outra que tem de ser esperada e bus­
cada." (ibid., p. 103.) Em vez de o futuro emergir da inverdade do pre­
sente, a palavra de promessa “anuncia a vinda de uma realidade ainda
não existente, proveniente do futuro da verdade”, (ibid., p. 85.)
Está-se aqui frente a uma análise da consciência da comunidade
de fé da Bíblia notavelmente próxima à consciência do humanismo
político. Como mencionado antes, o humanismo político mostra-se
uma recusa em admitir que a história tenha chegado ao fim (como di­
ríam os “burocratas" e a “epifania do Agora Eterno”), e também uma
crença de que não temos de pensar e de nos comportarmos como fun­
ções do sistema estabelecido. Ao contrário: a transcendência do ho­
mem está relacionada à sua liberdade para pensar e se comportar res­
pondendo a um futuro que “ainda não" existe, exceto sob a forma de
esperança.
Porém, o que constitui a base dessa vida de esperança? Molt­
mann responde que "a esperança cristã quanto ao futuro provém da

105
observação de um evento único, específico: a ressurreição e aparição
de Jesus Cristo”. (ibid., p. 194.) Como Barth, ele também afirma que
nosso futuro depende de um evento do passado: da ressurreição. Con­
trário a Barth, entretanto, Moltmann não identifica o evento da ressur­
reição com o nosso futuro. A ressurreição é a base da esperança, mas
o futuro não termina nela. “A escatologia cristã examina a tendência
interna do evento da ressurreição perguntando sobre o que pode e de­
ve ser esperado de um Senhor ressuscitado e louvado.” (ibid., p. 194.)
A ressurreição, desta maneira, poderia ser comparada a uma semente,
a uma vitalidade imanente, com uma tendência definida. A base do fu­
turo já se acha oculta na semente. De forma semelhante, “a fé se vol­
ta, em esperança e expectativa, para a revelação daquilo que já se en­
contra oculto em Cristo", (ibid., p. 88.) Todavia, isso não significa que o
futuro já tenha chegado, e, por isso, temos de tratar, na escatologia
cristã, com “Jesus Cristo e o Seu Futuro”, (ibid., p. 17.) O que se en­
contra oculto segue, segundo a sua tendência interior, rumo a um futu­
ro que “ainda não" existe.
Cristo, deste modo, é o espelho de nosso futuro. Olhando na di­
reção dos horizontes históricos, eles nos parecem fechados e bloquea­
dos. Quando, porém, nos voltamos e observamos um evento específi­
co do passado, o futuro torna-se aberto. A abertura do futuro é, assim,
descoberta por meio de um reflexo especular.
O ouvir da palavra de promessa quanto ao futuro de Deus, en­
quanto experiência que reflete este evento, cria a história. “A experiên­
cia da realidade enquanto história tomou-se possível a Israel", comenta
Moltmann, “pelo fato de Deus ter-se revelado em suas promessas.”
(ibid., p. 107.) Porque a palavra de Deus promete um futuro, para além
das promessas do presente, o homem se movimenta. A história é cria­
da e pode, assim, ser descrita como uma criação da palavra, que a di­
vide em promessa e realização, (ibid., p. 112.)16
Porém, como isso ocorre?
Moltmann fornece uma resposta bastante sugestiva a esta ques­
tão:

16. "Entre a promessa e a realização estende-se o processo da história do trabalho da


palavra.” (Loc. cit. acima.)

106
“Uma promessa constitui uma declaração que anuncia a
vinda de uma realidade ainda inexistente. Assim, a pro­
messa coloca o coração humano num futuro histórico.
(...) A força da promessa, e da fé nos termos da promes­
sa, consiste essencialmente em manter o homem em
movimento numa tensa inadequatio rei et intellectus*,
contanto que a promissio** que governa o intellectus
ainda não tenha encontrado a sua resposta na realida­
de. É da promessa que surge aquele elemento de in­
quietude que não permite que se contente com um pre­
sente irrealizado." (Ibid., pp. 103 e 102.)

“A lembrança da promessa feita... penetra como um es­


pinho na carne do presente, abrmdo-o ao futuro. Nesse
sentido, a revelação do Senhor ressuscitado não se tor­
na 'histórica', como resultado do fato de a história conti­
nuar, queira-se ou não, mas permanece como um pri-
mum movens*** na vanguarda do processo histórico. É
em virtude dessa revelação que a realidade do homem
e de seu mundo se torna 'histórica', e é a esperança
posta nessa revelação que torna inadequada toda a rea­
lidade, enquanto transitória e ultrapassável. É a promis­
sio inquieta**** a verdadeira fonte do cor inquietum*****
de Agostinho. É a promissio inquieta que não permite
que a experiência humana do mundo tome-se uma ima­
gem fechada cósmica da divindade, mantendo a nossa
experiência do mundo aberta à história." ('ibid., p. 88.)

A gênese da história pode assim ser descrita: o homem se en­


contra imerso no poder daquilo “que é”, sem qualquer distância crítica

*Em latim, no original: "a inadequação entre a coisa e o intelecto". (N. do T.)
** Em latim, no original: "promessa". (N. do T.)
*** Em latim, no original: "primeiro movimento". Expressão da filosofia aristotélica
para designar a causa primeira de um processo, aquilo que dá início a uma cadeia de eventos.
(N. do T.)
**** Em latim, no original: "promessa inquieta” . (N. do T.)
***** Em latim, no original: "coração inquieto". (N. do T.)

107
para negá-lo, sem qualquer dimensão de futuro. Como consequência,
a sua consciência se torna vítima do poder daquilo “que é”. Somente a
palavra de promessa cria uma nova dimensão, a inadequatio rei et in-
tellectus. A promessa consiste então no elemento que, introduzido no
intelecto, provê-lhe a distância crítica necessária para negar aquilo
“que é”. Este ponto precisa ficar claro, pois coloca-se em notória opo­
sição à consciência do humanismo político. Para o humanismo político,
não são uma promessa e uma esperança quanto a um reino transcen­
dente que tornam o homem cônscio de sua situação dolorosa. Ele se
torna dela ciente simplesmente devido ao fato de ser uma pessoa hu­
mana, e de sentir em sua carne a inadequação entre ele, o seu mundo
e a sua comunidade. A inadequatio rei et intellectus, assim, consiste
simplesmente num reflexo da inumanidade da situação. É a partir des­
ta inadequatio que a consciência se expande para a exploração do ca­
ráter inconcluso de sua realidade, buscando possibilidades que elimi­
nem a negatividade do presente. Portanto, sua esperança é filha de
sua negação e por ela totalmente determinada. A esperança, assim, é
histórica, estando relacionada com a forma de dor na qual o homem se
encontra. Para Moltmann, entretanto, a situação é diferente: existe
uma esperança transcendental (porque não está relacionada com ne­
nhuma situação específica) que faz o homem ciente de seu doloroso
presente. Chega-se então à conclusão - bastante difícil de ser funda­
mentada historicamente - de que não existe proximidade entre o ho­
mem e a negatividade de seu presente, e que ele sente a sua negati­
vidade apenas quando ela está mediada por uma esperança transcen­
dente.
O modelo de movimento histórico que Moltmann oferece mostra-
se, desta forma, basicamente platônico. É Eros (e não a encarnação!)
o que cria o cor inquietum. E mais do que isso: Deus torna-se, como
em Aristóteles, o primum movens que arrasta a história para o futuro,
sem nela se envolver.
Por conseguinte, não pode haver qualquer história separada da
consciência do Messias e de sua esperança, separada da consciência
da promessa. O “sofrimento apaixonado e prolongado” pelo futuro é
“incendiado pelo Messias” somente. (ibid., p. 16.) E por meio das pro­
messas que “o futuro oculto já se anuncia e exerce a sua influência no
presente através da esperança que desperta.” (ibid., p. 18.)

108
O evento da promessa, portanto, consiste no começo da crítica
de tudo aquilo que é. Porque a palavra de Deus, ao anunciar que a
verdade está no futuro, nega todo o presente.
“A expectativa quanto ao que virá, em virtude da ressur­
reição de Cristo, tem então de transformar toda a reali­
dade que pode ser experienciada e toda a experiência
verdadeira numa experiência provisória e numa realida­
de que ainda não contém em si aquilo que é esperado.
Deve, pois, contradizer todas as rígidas definições meta-
físico-substancialistas a respeito do núcleo comum dos
eventos do mundo. ” (Ibid., p. 180.)
“Quando o mundo e a natureza humana são postos em
questão dessa maneira, tornam-se então ‘históricos’,
pois mostram-se sustentados pela crise do futuro pro­
metido e a ela submetidos.” (Ibid., p. 164.)
O futuro prometido faz nascer a crise do presente. Não é a crise
do presente que faz nascer a esperança de um futuro promissor. A cri­
se do presente depende pois da palavra, que, fazendo nascer a fé, “a-
valia a realidade presente pelo padrão dessa palavra”, (ibid., p. 104.)
O mundo se torna histórico quando nossa experiência fechada se
defronta com o anúncio de um tipo de realidade diferente, que não
apenas a contradiz, mas também vence a sua negatividade. Moltmann
sugere que “o presente e o futuro”, “a experiência e a esperança , con­
tradizem-se uns aos outros na escatologia cristã... contradição esta
que se mostra ser aquela entre a ressurreição e a cruz.” {ibid., p. 18.)
De um lado, o presente e sua negatividade; de outro, o futuro onde
Deus revela a sua fidelidade, o mundo que se encontra no fim das
promessas de Deus. Moltmann explica os conteúdos da contradição da
experiência cristã, mãe da inadequatio rei et intellectus, citando Calvi-
no: “É-nos prometida a vida eterna, mas o que temos são os mortos.
É-nos proclamada uma resssurreição bendita, enquanto estamos ro­
deados pela deterioração. Somos chamados de justos, e ainda o pe­
cado vive entre nós.” (ibid., p. 19.)
A cruz como expressão do presente, como algo que expressa o
conteúdo de nossa experiência humana, representa uma vida com to­
das as possibilidades futuras bloqueadas, uma vida na qual cada valor

109
está reduzido a nada pelo poder da finitude e da decadência. Assim foi
com Jesus. Sua cruz, diz Moltmann, “implica não apenas o fim de sua
vida, mas também o fim da vida amada por ele e na qual tem espe­
rança”. (ibid., p. 210.) A cruz representa, deste modo, a morte, o fim,
uma situação sem qualquer possibilidade: o término do futuro e da es­
perança. Representa nossa experiência presente, vazia de transcen­
dência, já que Deus é puramente futuro. Existe então um “abismo” en­
tre a cruz e a ressurreição, que pode apenas ser transposto por um ato
de “creatio ex nihilo"*. (ibid, p. 209.) Este ato, porém, nunca se conver­
te em história, tornando-se-nos presente tão-só sob a forma de pro­
messa. A revelação não é histórica, mas “arrasta” a história. É, quali­
tativamente, “totalmente outra", como em Barth. Em termos de relação
mostra-se tangencial, também como em Barth. O impacto de sua
anunciação produz o advento da “crise", da mesma forma que em Bar­
th. O que promete é um novo mundo, que chega quando todas as pos­
sibilidades humanas estão esgotadas, ainda como em Barth. A posi­
ção de Moltmann sugere-me um giro de noventa graus na idéia de
transcendência do primeiro Barth. A “infinita diferença qualitativa entre
tempo e eternidade” representa o abismo ex nihilo que nos separa do
futuro de Deus, sempre oculto, sempre à frente, nunca presente, nunca
história, sempre ação, nunca ser, apenas apreendido na proclamação
da palavra.

A consequência dessa posição mostrar-se-á de crucial importân­


cia para um possível diálogo com o humanismo político. Na análise
que dele fizemos, indicou-se que a esperança nasce da negação. A
negação, como parte da experiência humana na história, mostra-se
expressão da transcendência e mãe do futuro do homem. Estamos tra­
tando aqui da transcendência em meio à vida, transcendência revelada
como negação da negatividade. É da participação humana na negação
da história que emerge uma nova possibilidade para um futuro novo, a
partir da situação de dor concreta e encarnada na qual o homem está.
A negação dos fatos por parte dessa consciência “não provém de sua
percepção de um modelo anterior à percepção dos fatos, e que por es­
ta razão seria eterno, mas sim de seu desacordo com o modelo de fu­

* Em latim, no original: "criação a partir do nada". (N. do T.)

110
turo extraído de sua percepção da presente realidade. (...) O plano é
obtido a partir da realidade, é empírico, e isso constitui a base para a
sua efetividade.” (A. V. Pinto, Consciência e realidade nacional, p.
527.) A negação da dor, então, mostra-se mãe da esperança e da efe­
tividade. Em decorrência, a cruz, o sofrimento, aparecem como parte
integrante do impulso dialético que se move em direção a um novo fu­
turo para o homem. O sofrimento não é apenas a origem do expandir
da consciência em busca das possibilidades interrompidas da situação,
mas ele determina também a forma da esperança, pois esta existe de­
vido ao homem que sofre. “Somente por causa dos desesperados a
esperança nos é dada." (Marcuse, One-dimentional man, citando Wal-
ter Benjamin, “ Nur um der Hoffungslosen willen ist uns die Hoffnung
gegeben".)

Em Moltmann, contudo, o processo adquire uma forma totalmen­


te diferente. A esperança não pode emergir de nossa experiência, de
nosso presente, da cruz. Ela provém, sim, “de um futuro da verdade”.
O futuro não é criado a partir da negação, mas, pelo contrário, é este
futuro transcendental que nega aquilo que é. E o futuro é transcenden­
tal porque pretende ser “um modelo anterior à percepção dos fatos e,
por isso, eterno". Consiste num futuro que pretende reconciliar as con­
tradições da experiência presente. Comenta Moltmann: “o futuro da
ressurreição chega ao tomar sobre si a cruz. Assim, a escatologia do
futuro e a teologia da cruz estão entrelaçadas." (Moltmann, Theology
of hope, p. 164.) Acho difícil perceber onde elas estejam entrelaçadas,
apesar de obviamente estarem relacionadas em termos de negação e
realização: a ressurreição nega a realidade da cruz e cria um novo
mundo de plenitude, ex nihilo. É difícil perceber onde estão entrelaça­
das porque, se Deus é essencialmente futuro e, portanto, totalmente
tangencial ao presente, como pode ser possível tal relação? A relação
evidente consiste em que o mundo transcendental da ressurreição
promete superar a “finitude" do mundo da experiência, da cruz, da mor­
te. A cruz e a ressurreição, todavia, não são consideradas como os
dois pólos dialéticos da transcendência, transcendência esta criadora
de um novo amanhã para o homem. E por isso perde-se um elemento
absolutamente fundamental à compreensão daquilo “que é preciso fa­
zer para se manter humana a vida do homem no mundo”: o caráter
basicamente político da história.

111
Isso me parece evidente na exposição de Moltmann. Considere­
mos primeiro a sua compreensão da cruz: as categorias que usa para
descrevê-la são basicamente orgânicas, relacionadas à decadência, fi-
nitude e morte, próximas ao que Teilhard de Chardin denomina “passi-
vidades do esvaziamento”. A importância da ressurreição para uma
compreensão da “negatividade” de nossa experiência consiste em que
“através do conhecimento da ressurreição do crucificado a contradição
é perceptível sempre e em toda parte num mundo irredimido, e a tris­
teza e sofrimento causados por esse mundo são absorvidos pela con­
fiança da esperança.” (ibid, p. 196.) Assim, o impacto sobre a cons­
ciência produz o efeito de que agora, em vez de ver o mundo fechado
pela morte, ela o vê como estando aberto.
"A esperança não considera as coisas como paradas, e
sim enquanto progresso: coisas em movimento, com
possibilidades de mudança." (ibid., p. 25.)

“A ressurreição, como realidade última, como o primum


movens que arrasta a história, informa à consciência
que o mundo está realmente aberto, progredindo. Em
consequência, a esperança e a antecipação do futuro...
são modos realistas de se perceber o alcance de nossas
verdadeiras possibilidades, e assim elas colocam tudo
em movimento e em estado de mudança." (ibid., p. 25.)

A conclusão a que se chega é: a promessa da ressurreição, en­


quanto resultado da creatio ex nihilo e em descontinuidade absoluta
com a história, informa-nos sobre a abertura do processo no qual es­
tamos, em que tudo progride. A descontinuidade entre o futuro e o
presente nos informa sobre o processo contínuo pela qual o presente
se move rumo ao futuro, apesar daquilo que parece interromper este
movimento progressivo, a saber, a decadência e a morte. O resultado
desta posição é bastante estranho. Lembremo-nos da crítica de Mar-
cuse acerca da sociedade tecnológica e de sua capacidade para fazer
o homem pensar funcionalmente, dentro dos limites do possível que o
sistema dita. Esta forma de pensar pressupõe que o futuro humano es­
teja em continuidade ao sistema dado, nele existindo embrionariamen-
te. Marcuse indicou então como este mundo se tornou fechado, elimi­
nando assim as formas negativas de pensamento. Nesse contexto,

112
apenas quando o homem começa a perceber o fechamento do mundo
no qual vive é que chega à posição de poder negá-lo. A percepção do
poder limitaaor do mundo dado é, assim, pré-requisito para o tipo de
ação que o faz abrir-se. De modo inverso, declara Moltmann:
"...a missão transformadora requer na prática uma certa
Weltanschauung*, uma confiança no mundo e uma es­
perança quanto a ele. Ela busca aquilo que é verdadeira
e objetivamente possível neste mundo, de forma a
apreendê-lo e realizá-lo em direção ao futuro de justiça
prometido... Por isso vê o mundo como um processo
aberto." (ibid., pp. 288-289.)
A Weltanschauung modelada pela esperança vê o mundo como
um processo aberto. Em decorrência, o estabelecido consiste num pro­
cesso aberto às futuras possibilidades de justiça. Novamente Molt­
mann se aproxima de Barth: o velho aeon está destruído; não temos
mais de lutar contra ele. O mundo fechado já é passado, uma possibi­
lidade superada. Para a esperança, a cruz e a morte foram deixadas
para trás. Não pertencem à realidade que arrasta a história.
Tal conclusão, entretanto, contradiz basicamente a experiência
que faz nascer o humanismo político.
Em primeiro lugar, a história não está aberta. O problema do fu­
turo e da esperança na história não se mostra primordialmente relacio­
nado à decadência e à morte, e sim aos poderes que mantêm cativa a
história. A cruz não representa a morte, mas o assassinato, os poderes
que destroem os homens. Assim, a história não está fechada devido a
realidades orgânicas, e sim devido a poderes ativos de natureza políti­
ca. Deste modo, a cruz não consiste jamais numa realidade deixada
para trás, eliminada pela esperança.
Em segundo lugar, não se pode assumir, portanto, que a história
esteja progredindo, movendo-se em direção a novas possibilidades.
Tem-se de abrir a história. E isto significa um confronto com os pode­
res que a mantêm presa. A ressurreição, então, não existe nunca sem
a cruz, sem o confronto. Não existe transcendentalmente, mas surge

* Em alemão, no original: "visão de mundo".

113
quando a liberdade entra em conflito com os poderes que mantêm ca­
tiva a história.
Em terceiro lugar, a história é posta em movimento não por um
primum movens, e sim pela dialética da liberdade enquanto encarnada
no sofrimento do mundo e que, em consequência, faz nascer a nega­
ção, a esperança e a ação. A estrutura da transcendência, assim, está
sempre dialética e historicamente relacionada com a esperança trans­
cendente. Em resumo: o humanismo político não opera com categorias
tomadas do reino orgânico, como usualmente faz Moltmann ao inter­
pretar a cruz e a ressurreição. Por exemplo, relacionar a cruz com a
ressurreição enquanto tendência latente parece muito próximo da in­
terpretação de Aristóteles quanto ao movimento orgânico: na semente
existe a forma num estado latente, enquanto que na planta totalmente
desenvolvida (a forma realizada) encontra-se a tendência natural do
movimento.
Para o humanismo político, tanto a negação quanto a esperança
são determinações permanentes da transcendência na criação de um
novo amanhã para o homem. A eliminação de um dos pólos em favor
do outro é, ipso facto, suicídio; consiste na destruição da esperança e,
consequentemente, no aborto do novo amanhã.
As últimas palavras de Moltmann em seu livro têm a ver com a
missão da Igreja. Se a Igreja tem o seu ser na fé quanto à proclama­
ção do futuro de Jesus Cristo, como um futuro que proclama a abertu­
ra da história, sua inteligência se volta para “a percepção teórica e prá­
tica da estrutura do processo histórico e para o desenvolvimento ine­
rente à situação que precisa ser organizada, e, assim, para as poten­
cialidades e o futuro dessa situação." (i b i d p. 335.) Isto significa que à
Igreja é dado o apostolado da esperança que envolve o mundo das
nações, no êxodo desde o presente fechado até o futuro prometido.
“Essa esperança”, assinala Moltmann, “faz da Igreja uma fonte de con­
tínuos novos impulsos rumo á realização da justiça, da liberdade e da
humanidade." [ibid., p. 22.)
O clímax da teologia de Moltmann não consiste simplesmente
em que a Igreja seja chamada a trabalhar pela justiça no mundo. O
que ele verdadeiramente afirma é que a história constitui um modo da
experiência humana não-acessível ao mundo, exceto através da Igreja.

114
É a palavra de promessa que cria o cor inquietum, a inadequatio rei et
intellectus. Onde a palavra de promessa não for anunciada não existe
esperança e, consequentemente, a história. Em decorrência, a Igreja
tem a função de produzir a história no mundo.

No fim, Moltmann se aproxima de Bultmann e de Barth: o que


torna humana a vida do homem no mundo - ou seja, a transcendência
- é mediado por um ato de consciência que olha para um evento do
passado. O único modo da presença de Deus no mundo seria a pala­
vra da promessa, a palavra que aponta para o seu futuro.

Em última instância, a ação que liga genuinamente o homem à


transcendência consiste na pregação e na audição da palavra. O resul­
tado desta posição quanto à ação segue-se naturalmente: a ação não
nasce da exigência da situação; não consiste no ato criativo que histo-
rifica a negação e a esperança humanas; ela se toma imitação. O ho­
mem, por conseguinte, não é o criador do novo futuro. Ele é, sim,
aquele que age “à luz do futuro prometido, que virá.” {ibid., p. 22.) E
Moltmann se refere inclusive às "coisas que constituem a história e
que ‘correspondem’ a esse tipo de revelação.” {ibid., p. 89.) Assim, a
atuação humana consiste numa ação que expressa obediência ao futu­
ro, mas não o cria. Este conceito de “ação que corresponde ao” futuro
que a revelação apresenta é bastante problemático. Parece-me que a
única atitude política que verdadeiramente “corresponderia" ao futuro
seria o pacifismo. Como dar lugar ao conflito, à luta, se a nossa ação
tem de “corresponder” ao futuro que nos foi dado pela revelação? Este
problema é correlato, em Moltmann, â eliminação da dialética de Deus
por meio da superação da cruz para uma concentração total no pri-
mum movens que arrasta a história.

A principal objeção a esta conclusão de Moltmann, no entanto,


consiste em não ser verdadeira a afirmação de que a Igreja tem sido a
parteira do futuro. E ainda se mostra inverídico dizer que onde a pala­
vra não é pregada não existe história. Com efeito, nossa atual expe­
riência histórica consiste exatamente no oposto. Muitos dos movimen­
tos que hoje exibem um profundo compromisso com a criação de um
novo amanhã para o homem, e que têm assumido o grande risco re­
presentado por tal aventura, operam dentro dos limites de uma con­
cepção puramente humanista e secular da situação. Como é possível

115
dar lugar aos movimentos seculares comprometidos com a tarefa de
criação de um novo futuro para o homem, se tão-só a audição fiel da
palavra de promessa torna histórico o ser humano? Como tal questão
pode ser respondida num mundo que se torna mais e mais seculariza-
do? Como se dizer àqueles cristãos engajados junto com homens se­
culares, ateus, na tarefa de criação de um novo amanhã para a huma­
nidade, que todos esses homens não são verdadeiramente históricos?
Poderiamos afirmar que eles - devido à sua esperança ter nascido do
sofrimento, e não da audiência da palavra, como sugere Moltmann -
não são históricos? O resultado da teologia de Moltmann consistiría na
profanação do secular17, exatamente como encontrado em Bultmann e
no primeiro Barth. Secularização seria, assim, o mesmo que desfazer a
historicidade. E o ato de se tornar algo histórico dependería da atenção
do mundo à palavra da Igreja. Para os que estão optando por posições
que se situam dentro de um quadro de referência secular, à teologia
de Moltmann permanece um ponto de referência bastante problemáti­
co, pois seu conceito tangencial de transcendência, origem do ato que
faz a história, é mediado apenas pela palavra da Igreja.
Pode-se resumir o conflito entre o paradigma de Moltmann e o
do humanismo político desta maneira:
1. O humanismo político afirma que a consciência humana, a par­
tir de sua posição de confronto, de encarnação, de inserção no negati­
vo daquilo que é, mostra-se capaz de negar o inumano do mundo es­
tabelecido. O transcendente no homem, desta forma, está profunda­
mente enraizado em seu presente, já que este consiste na origem da
negação.

17. Poder-se-ia objetar que. de6de que profano e secular são sinônimos, a expressão
"profanação do secular” constitui uma tautologia. Estou reservando o uso da palavra "profano"
não apenas para designar um mundo que se emancipou do templo [profanus: pro, ante; fa-
num, um templo), mas que, por este mesmo fato, é considerado como tendo se tomado mais
pobre. É este o mundo vazio de transcendência, mundo da causalidade da filosofia kantiana,
mundo das estruturas objetivas do existencialismo. A este mundo "profano" opõe-se uma es­
fera de transcendência: o mundo da liberdade, do imperativo categórico (Kant), a esfera do "e-
xistencial" (existencialismo). A palavra "secular", ao contrário, transmitirá a rejeição ao esva­
ziamento do mundo, implicado no "profano". Rejeitará a colocação da transcendência numa
esfera não-mundana. Indicará que o secular é precisamente a expressão da transcendência e,
em decorrência, acabar-se-á a oposição entre sagrado e profano, entre mundo e transcen­
dência. (Cf. Capitulo Seis deste trabalho: "A Teologia como Linguagem da Liberdade.")

116
Para Moltmann não há qualquer transcendência no presente. Por­
tanto, é impossível para o homem secular a negação a partir de seu
sofrimento imediato. Aquilo “que é", em consequência, mostra-se todo-
poderoso em relação ao homem. Tal consciência permanece profana.
2. O humanismo político entende a esperança como expansão da
consciência humana, na medida em que ela olha para além da incon-
clusão daquilo “que é”. O tempo do futuro, assim, brota da transcen­
dência moldada pelo sofrimento. É o presente doloroso que se projeta
em direção a um futuro esperançoso. Em linguagem teológica: a res­
surreição é filha da cruz.
Moltmann, porém, não parte da negação do presente, e sim da
promessa transcendental. Esta consiste na origem de Eros, que põe a
história em movimento. Em linguagem teológica: não é a encarnação a
mãe do futuro, mas é o futuro transcendental que torna o homem
cônscio da encarnação. É o futuro transcendental que faz o homem
ciente da dimensão de sofrimento que a sua situação histórica contém.
A encarnação, destarte, permanece em si mesma profana, pois tão-só
contém a possibilidade do “fim”, da “decadência", da “morte”. Somente
a partir do outro lado o futuro torna-se aberto. Como é óbvio, não há
lugar para que a transcendência e o secular coincidam. A influência
do platonismo e o perigo do docetismo são evidentes.
3. O humanismo político vê o futuro como um horizonte de possi­
bilidades, aberto e a ser preenchido pela criação da liberdade, que se
introduz na história por meio da ação. Desta forma, o homem cria o fu­
turo, futuro este jamais determinado. Por isso a ação é tão importante
para a humanização, pois não existe nada aguardando o homem que
não leve a marca de sua atividade. Moltmann, contudo, vê o futuro
como já estando determinado. Na verdade, ele ainda não está pronto,
mas está, não obstante, determinado. E este futuro atrai o homem
através de Eros: o futuro consiste num objeto, não num horizonte. De­
vido ao futuro postar-se como o primum movens da história, a ação
humana não consiste numa criação, e sim num “movimento" (Barth)
que reflete o objeto da esperança.18

18. Encontra-se uma proposta semelhante na obra de Barth, Community, State and
church, â página 169. Ali é sugerido que o Estado deve ser considerado como uma alegoria do
Reino de Deus, de que fala a Palavra. Em decorrência, o Estado tem de ser moldado segundo

117
O conflito básico entre a linguagem do humanismo político e a
da esperança, sugerida por Moltmann, repousa no fato de a primeira
entender a negação, a esperança e a criação de um novo futuro, basi­
camente a partir da condição do homem em sua inserção na história,
em sua “encarnação”; a segunda, ao contrário, vê tal situação como
profana, como desprovida de possibilidades. A única possibilidade se
toma real quando o homem se defronta com uma realidade não histó­
rica e transcendente, que não possui qualquer dimensão no presente,
sendo tão-só mediada pela palavra. O conflito se dá entre aqueles que
aceitaram o secular como quadro de referência e “ não procuram pri­
meiro por detrás das estrelas por uma razão para se sacrificar, mas se
sacrificam pela Terra", e aqueles que se tornam históricos apenas
quando perscrutam atrás das estrelas e são postos em movimento por
Eros.

IV - Rumo a Uma Nova Linguagem

Os cristãos comprometidos com a libertação histórica há bastan­


te tempo estão cônscios do conflito entre a sua preocupação suprema
e a linguagem que costumam empregar. Descobriram que sua lingua­
gem, ao invés de criar “novas possibilidades de comunicação e de
compreensão da realidade que os aproxima" (Ebeling, Nature o f faith,
p. 188.), tem sido notável por seu efeito paralisante. Ebeling observa
que linguagens são expressões de um certo espírito. É o espírito que
distingue uma linguagem de outra. Isto significa que, para ser verdadei-
raménte comunicado (ibid., p. 188.), o espírito da linguagem deve ex­
primir o espírito do homem que a fala. Mas a experiência desses cris­
tãos tem sido o oposto. Eles se acham presos na contradição entre o
espírito da linguagem da fé, que foram ensinados a falar, por um lado,
e o seu próprio espírito, dominado pela paixão e a visão da libertação
humana, por outro. É verdade que esta linguagem pretende ser a lin­
guagem da liberdade, da libertação e da vida. As palavras contidas em
seu universo de discurso são bem eloqüentes neste sentido. Contudo,

esta relação alegórica ou analógica. A maneira platóniça de pensar é tão evidente que não re­
quer discussão. O problema com este tipo de proposição, incorporada na idéia de "sociedade
responsável", consiste em que ela não nasce de um presente histórico definido. Consequen­
temente, esta visão permanece uma idéia dogmática, incapaz de ser introduzida na história.

118
‘não obtemos a natureza das palavras perguntando o que elas contém,
e sim o que fazem, o que põem em movimento, que futuro desvelam.”
(ibid., p. 187.) Neste ponto torna-se óbvio a muitos que não é mais
possível falar verdadeiramente a linguagem que aprenderam. A situa­
ção constitui um momento crucial de verdade, levantando a questão
da auto-identidade, da autenticidade. Quem sou eu? Serei alguém
primordialmente comprometido com a criação de um novo amanhã, ou
alguém que repete palavras anteriormente aprendidas? Onde está o
meu “espírito”? Para muitos cristãos o conflito entre o espírito da lin­
guagem e o espírito de seu compromisso não parece constituir um
problema sério. Aprenderam a viver ao mesmo tempo em dois mun­
dos, diferentes e opostos, sem se tornarem divididos. Outros, no entan­
to, não conseguem viver num mundo dividido, e precisam necessaria­
mente buscar uma linguagem que seja expressiva daquela pureza de
coração comentada por Kierkegaard, a pureza de coração que somente
existe quando há integridade e unidade, quando o homem deseja ape­
nas uma única coisa. Devido a essa pureza de coração, cristãos, em
grande número, têm se decidido a desaprender a linguagem anterior­
mente aprendida. Chegaram à conclusão de que a fé não pode se tor­
nar uma linguagem expressiva de sua paixão pela libertação humana.
Como poderíam estar livres para a tarefa de se criar um novo futuro
para o homem, se a linguagem da fé não deixa espaço para tal liber­
dade? Como poderíam estar totalmente comprometidos com esta pai­
xão que, como fogo, queima em favor de uma única coisa, se a sua
velha linguagem era falada com “espírito” diferente?
No entanto, outros cristãos têm se recusado obstinadamente a
esquecer a linguagem da fé. A razão para tal recusa consiste em que,
no momento preciso da morte da velha linguagem, descobriu-se oculto
sob o que havia de congelado e de paralisante nela, um espírito muito
parecido com o deles próprios. A morte da velha linguagem, conse-
qüentemente, constitui o fim daquilo que reprimia seu impulso liberta­
dor orientado para o futuro. O evento da morte tornou-se ocasião para
a ressurreição, pois uma nova linguagem começou então a tomar for­
ma.
Assinalou-se anteriormente que uma nova linguagem, por ser ex­
pressiva de um espírito, delimita uma comunidade.’ A criação de uma
nova linguagem, por sua vez, implica a morte de um certo espírito e o

119
triunfo de outro, novo. Isto significa, necessariamente, a criação de
uma nova comunidade. Se se abandona a linguagem expressiva de
um certo espírito que move uma comunidade, necessariamente um
novo espírito e uma nova comunidade separam-se dos velhos. Não se
pode negar que existe uma certa descontinuidade entre eles. Se este é
o caso, porém, como se pode ainda pretender que se pertença à co­
munidade de fé e que se fale a sua linguagem? Não serão a nova lin­
guagem e a nova comunidade algo totalmente diferente, totalmente
novo? Para responder a tal questão temos de nos lembrar de que a
comunidade de fé é uma comunidade de homens que vivem na histó­
ria, entre outras comunidades. Ela fala com a voz dos homens, e não a
partir de um ponto de referência meta-histórico. Isto significa que sua
linguagem, sendo sempre expressão de sua posição histórica, é relati­
va. Consequentemente, como o seu lugar na história se modifica e no­
vos problemas surgem, novas tarefas se apresentam, novas lingua­
gens são empregadas no mundo, assim também a linguagem da co­
munidade de fé se move, responde e se modifica. Sua voz deveria ter
sempre o frescor e a relatividade de todos os sujeitos históricos.
Tal fato significaria que a linguagem da fé consiste simplesmente
num eco de seu meio ambiente? Será ela a linguagem da adaptação?
Neste caso, em que grau se justifica chamá-la de linguagem da fé? A
fé não fornece à sua linguagem um ponto de referência eterno, com
uma estabilidade de rocha entre a relatividade histórica? Tem havido
uma forte tradição na história da Igreja para se interpretar a fé nesses
termos. A fé liberta o homem da história ao retirá-lo dela. Sua lingua­
gem deve então ser a expressão de uma ilha de estabilidade e signifi­
cação em meio à esfera sempre cambiante do tempo e do espaço. As­
sim, considera-se que a fé seja uma “retirada dos ócios e negócios do
mundo e uma volta na direção da quietude e da paz do divino." (ibid.,
p. 21.)
Entretanto, existem elementos na consciência da comunidade de
fé que sugerem não ser apenas possível, mas de fato necessário, en-
tender-se a fé num sentido exatamente oposto, isto é, como um modo
de ser radicalmente histórico, como “a aceitação da verdadeira exis­
tência histórica." [ibid., p. 27. Para uma discussão posterior deste tema
veja-se o item “ Uma Linguagem Histórica", no Capítulo Três.) Se for
este o caso, sua linguagem deve, consequentemente, expressar o es­

120
pírito de liberdade para a história, o gosto pelo futuro, a abertura para o
provisório e o relativo. A linguagem da comunidade de fé, por conse­
guinte, não pode se estabilizar. Se o espírito da fé está permanente­
mente aberto para a história, sua linguagem precisa atravessar conti­
nuamente um processo de morte e ressurreição, deixando o velho e
rumando em direção ao novo. Quando a linguagem da fé se recusa a
morrer e permanece como repetição da linguagem do passado, com
o intuito de se preservar, deixa de ser histórica. Assemelha-se, neste
caso, a um cadáver gelado, a algo que um dia foi vivo, mas que agora,
depois da morte, ainda continua no mundo dos vivos. E, como tal, não
permanece simplesmente gelada, mas também congelando tudo à sua
volta, pois se recusa a permitir que o novo ganhe vida.
A vida da linguagem da fé, portanto, depende de sua capacidade
para negar-se a si mesma, de sua capacidade para mudar e para mor­
rer, de maneira a ganhar nova vida.
Como este processo de morte e ressurreição acontece? Karl Bar-
th, e depois Paul Lehmann, sugeriram que a linguagem da comunida­
de de fé tem de ser entendida como se dando entre a leitura da Bíblia
e a dos jornais. (Barth, The epistle to the Romans, p. 425. Lehmann,
Ethics in a christian context, p. 74.) Não consiste, assim, nem numa
simples descrição do passado que preenche a tela da memória, nem
numa simples descrição do presente que agora confronta o homem.
Ela expressa, sim, uma relação dialética entre os dois. Por um lado, o
presente força o passado a continuar aberto. A comunidade traz, à sua
memória, a sua experiência de sofrimentos e alegrias do presente, sua
negatividade e possibilidades. E ao passado nunca se permite conver­
ter-se numa tela, pois a comunidade que se lembra não pode negar o
presente no qual vive. Por outro lado, o passado também força o pre­
sente a permanecer aberto. O passado assemelha-se a um horizonte
onde os sinais do alvorecer começam a despontar para o homem si­
tuado em meio às trevas do sofrimento e da desesperança do presen­
te. Através da promessa que o passado traz, o homem torna-se livre
para pensar na possibilidade de um novo amanhã. O lembrar-se cons­
titui, assim, uma expressão do amor pelo presente e, somente como
tal, se constitui numa possibilidade libertadora. Ele provê novos fun­
damentos para a negação, novas possibilidades para a esperança, no­
va liberdade para a ação. É esta dialética que mantém a linguagem da

121
fé sempre em permanente movimento. E não deveria ser de outra for­
ma, pois seu presente é histórico e jamais estaciona. E é graças a esta
fluidez que tal linguagem se mostra capaz de expressar a vitalidade de
uma comunidade cujo espírito se direciona para o futuro.
A história da comunidade de fé poderia se escrever através da
história do nascimento, morte e ressurreição de suas linguagens. Ve­
lhas linguagens perecem ao se tomarem congeladas enquanto o mun­
do segue adiante. Quando isso acontece, elas deixam de ser instru­
mentos da libertação e se transformam em estruturas repressivas, o
novo é abortado em favor do velho. Contudo, quando a comunidade
começa outra vez a sentir as dores e os desafios do presente, sua
lembrança produz uma nova liberdade, tanto para desaprender a velha
linguagem, como para criar outra nova. A linguagem da liberdade para
a vida, da justificação pela fé foi criada segundo este modelo. Lutero
andava atormentado pelo medo e pela ansiedade, consciente da impo­
tência do homem para encontrar dentro de si mesmo as bases da li­
bertação . Como se libertar do medo? Será possível para a subjetivi­
dade humana expressar-se como tranqüilo abandono, ao invés dos
cálculos estatísticos ansiosos sobre a sua capacidade de desempe­
nho? No universo de discurso da Igreja todas as saídas pareciam blo­
queadas. Mas, a partir dessa situação de sofrimento, a memória adqui­
re uma importância libertadora. Ela se converte na chama que derrete
a linguagem congelada e que mantinha o homem escravizado, toman­
do assim possível a criação de uma nova linguagem, expressiva tanto
da superação do medo quanto da liberdade para a vida. E um proces­
so semelhante aparece também ligado à linguagem teológica do exis-
tencialismo. O espinho do presente consistiu e consiste tanto na
ameaça do homem perdido nas estruturas massivas do mundo, como
em sua profanação pela razão científica. Assim, como resposta a essa
situação, a memória tomou possível a criação de uma linguagem ex­
pressiva da liberdade humana, apesar do caráter fechado dos horizon­
tes objetivos da história.
Para Barth, o problema da inadequação da linguagem dominante
da fé era outro. Ele havia presenciado o término das esperanças oti­
mistas do século XIX face à eclosão da Primeira Guerra Mundial, bem
como a questão radical por ela levantada, antes e depois de todas as
linguagens que davam por certo o poder humano para libertar a histó­

122
ria de suas contradições. A partir deste presente histórico-crítico, Barth
redescobriu as palavras negativas e críticas do universo de discurso da
Bíblia. Por sua vez, Teilhard de Chardin foi tomado pelo senso de tra­
gédia devido à mesma guerra, acompanhado tanto por uma profunda
ansiedade existencial ante a finitude, quanto pelo seu compromisso
pessoal com o mundo da ciência. Perante esses problemas a lingua­
gem dominante de sua comunidade de fé permaneceu muda, incapaz
de abrir caminho em direção ao futuro. O diálogo entre o seu presente
e os horizontes do passado tomou-se então ocasião para a criação de
uma nova linguagem, na qual tanto o passado foi revivido como o pre­
sente colocado num novo contexto de confiança. Tais casos, selecio­
nados aleatoriamente, demonstram a existência de situações nas
quais os problemas do presente não podem ser resolvidos se a velha
linguagem não for esquecida e criada uma nova. Tal evento de des-
continuidade, em vez de significar o fim da fé, consiste, assim, no úni­
co meio pelo qual ela pode se manter viva.
Esta análise deixa clara a tarefa que os cristãos comprometidos
com a libertação histórica do homem têm pela frente: a criação de
uma nova linguagem, expressiva de sua “preocupação suprema” e a
serviço de sua realização. Mas, três coisas precisam ser lembradas.
1. Essa tarefa somente pode ser compreendida pela comunidade
de fé na medida em que ela se descubra fundamentalmente preocu­
pada com a criação de um novo amanhã para o homem.
2. A comunidade de fé tem de tomar a crítica do humanismo polí­
tico e trazê-la à sua própria linguagem. Só assim serão desmascara­
dos os seus aspectos contrários ao “espírito” expressivo da visão e da
paixão pela libertação humana.
3. A nova linguagem deve acrescentar alguma coisa ao prometi­
do pela linguagem do humanismo político. De outra forma, mostrar-
se-ia supérflua e não poderia pretender-se expressão genuína do espí­
rito da comunidade de fé. Consistiría simplesmente num eco do hu­
manismo político, numa reduplicação de uma linguagem já existente,
ou em sua tradução para um jargão religioso. Isto significa que a nova
linguagem tem de ser julgada: a) pelo seu poder para criticar cada lin­
guagem que, num primeiro momento do processo, negou a linguagem
da comunidade de fé; b) pelo seu poder para oferecer horizontes maio­

123
res e mais amplos para a esperança; e, finalmente, c) pela liberdade
que ela empresta à atividade humana. O método não é imposto de
forma artificial, mas simplesmente segue a dialética da vida da comu­
nidade cristã em sua busca de uma linguagem que expresse o seu
compromisso com a libertação do homem.

124
CAPÍTULO DOIS

A VOCAÇÃO PARA A LIBERDADE

Quando analisamos a linguagem do humanismo político, mos­


tramos que ela fala a partir de sua vocação para a liberdade. Sua ne­
gação do inumano que no presente existe, sua abertura à esperança,
sua preocupação com a transformação tanto da negação quanto da
esperança em história, por meio da ação política, são indícios que ncs
conduzem à descrição dessa consciência como estando determinada
pela liberdade e comprometida com a missão da libertação humana.

Como se poderia explicar tal vocação para a liberdade? Por que


resistir quando todos dizem “adapte-se”? Por que negar quando todos
afirmam? Por que ser livre para o futuro quando todos se encontram
domesticados pelo presente? A vocação para a liberdade se recusa a
ser explicada. Permanece como um protesto, uma contradição, e, as­
sim, coloca-se em descontinuidade com o mundo no qual vive. É esta
vocação para a liberdade que tem levado muitos cristãos a se desco­
brirem como parte da comunidade daqueles que se acham comprome­
tidos com a tarefa de libertação humana. E isto porque o elemento
mais fundamental da consciência da comunidade de fé é uma vocação
semelhante para a liberdade. Como apontou Paul Lehmann, eles se
descobrem unidos na mesma “paixão e visão da libertação humana.”
(Lehmann, Ideology and incarnation, p. 25.) Estão descobrindo que
seus olhos se acham voltados para um futuro comum e suas mãos
comprometidas com a mesma tarefa. Apesar de suas linguagens ge­

125
ralmente serem conflitantes, o fato é que este conflito não elimina a
base para o diálogo, pois o envolvimento de ambos na tarefa de liber­
tação somado à vocação para a liberdade oferecem um contexto his­
tórico no qual uma permanente conversação crítica, no sentido de es­
peranças e tarefas comuns, faz-se tanto possível quanto necessária.
Pode-se muito bem lembrar aos teólogos que a linguagem da fé não
se tem mostrado exemplarmente interessada na libertação do homem,
nem tem sido extraordinário o seu compromisso com a criação de um
novo amanhã. De fato, com a crítica anterior à linguagem de alguns
paradigmas teológicos, tentou-se precisamente tornar a comunidade
de fé cônscia do tom apolítico, a-histórico e mesmo conservador de
sua linguagem. No entanto, é interessante notar-se que, apesar deste
fato, os cristãos vêm se mostrando historicamente mais e mais com­
prometidos com a tarefa da libertação humana. E, ao agir assim, estão
simplesmente recuperando um elemento absolutamente central (ape­
sar de muitas vezes esquecido) da consciência da comunidade de fé,
qual seja, a sua vocação para a liberdade.

Quando os cristãos se descobrem rebeldes, como partes da “Gran­


de Recusa", inadaptáveis e perturbadores da ordem dominante, não es­
tão, por conseguinte, traindo uma tradição de conformismo e passivi­
dade, mas redescobrindo o que de mais fundamental e primordial exis­
te na história e na consciência da comunidade de fé. De fato, os mais
primitivos fragmentos de sua memória já expressam a vocação para a
liberdade. A comunidade de fé entendeu que vivia num mundo de ho­
rizontes em expansão, sempre abertos a possibilidades antes inexis­
tentes. Assim, a vida humana era vista como se dando na história,
num tempo em constante abertura rumo ao futuro. Como assinalado
anteriormente, não há nada que explique o porquê dessa vocação. G.
E. Wright observa: “Nunca saberemos ao certo as verdadeiras razões
para esta visão particular israelita da natureza e da história. Ela consis­
te no dado primordial e irredutível da teologia bíblica, sem anteceden­
tes no meio ambiente a partir dos quais poderia ter evoluído." (G. E.
Wright, God who acts, p. 43.) Essa vocação para a liberdade colocava-
se em aguda oposição a todos os modelos então dominantes de vida
humana e de sociedade, construídos segundo o padrão do tempo natu­
ral e cíclico, compreendendo, consequentemente, a vida do homem em
termos de adaptação às estruturas naturais estabelecidas da vida.

126
É devido a essa vocação para o futuro e para a história que o
Velho Testamento se constitui numa história de conflitos permanentes
entre a comunidade de fé e os paradigmas de humanização que impli­
cavam na des-futurização do homem.
A violenta oposição à adoração de Baal é um desses casos. O
fato de essa adoração ter sido de natureza sexual, ter usado símbolos
sexuais e requerer a cópula como parte de seu ritual, pode confundir
nossa compreensão do significado do conflito. Seria tal oposição uma
reação contra a imoralidade sexual? Para os adoradores de Baal o se­
xo não era algo imoral, e sim divino. Constituía a fonte da vida e o po­
der que tomava a humanização possível. As pessoas haviam recebido
suas vidas como uma dádiva permanente dos campos, campos que
lhes produziam frutos e dependiam sempre do milagre do renascimen­
to da natureza após a sua morte. Como poderíam evitar um sentido de
gratidão face às origens ocultas da fertilidade e da vida? Acreditava-se
que a razão pela qual a natureza se mostrava tão milagrosa, sempre
aumentando as fontes da vida, se encontrava no seu caráter sexual.
“Aparentemente a causa de sua fertilidade jazia escondida nas profun­
dezas do solo. Pois ali... os poderes masculinos e femininos, Baal e'
Baalath, ‘senhor’ e ‘senhora’ copulavam pares incontáveis de deida-
des.” (Martin Buber, The prophetic faith, p. 71.) A natureza sexual da
adoração a Baal não era, portanto, nada imoral, de acordo com os
seus pressupostos. A própria natureza, essa doadora de vida, não se
mostrava sexual em sua estrutura interior? O ato sexual constituía, as­
sim, “um ato de casamento sagrado, no qual homem e mulher imita­
vam as deidades, identificando-se com elas mesmas, por assim dizer.”
Assim podiam “aumentar a força e a potência da fecundidade divina.”
{ibid., p. 72.)
Desta maneira, Baal expressa “a harmonia total do universo...
a identidade fundamental e última de tudo aquilo que é, a unidade de
todos os elementos da vida, humanos, supra-humanos e subumanos,
numa totalidade simples e compreensível.” (A. Th. van Leeuwen, Chris-
tianity in world history, p. 55.) Havendo uma “harmonia total”, na qual
todas as expressões da vida estão unidas numa totalidade simples, o
homem é capaz de ativar a fertilidade através da imitação. A imitação
tem o efeito de acelerar as possibilidades produtivas interiores já exis­
tentes no sistema da natureza. O ato de adoração consistia, então,

127
num ato pelo qual o homem reafirmava e restabelecia a sua solidarie­
dade com a totalidade, fazendo de sua ação uma imitação do modelo
oferecido pelo organismo. O ato sexual constituía uma técnica para
assegurar o funcionamento apropriado do sistema, sem surpresas, in­
terrupções ou novidades. Nessa ação, por conseguinte, o ser humano
não criava nada de novo. Ela era apenas um movimento dentro do
mundo, uma técnica a sustentar o estabelecido. O que este homem
esperava de seu amanhã? Que a natureza não fosse perturbada por
qualquer coisa inesperada e que a sua fertilidade trabalhasse normal e
abundantemente. “A segurança humana era encontrada na maneira
como o homem se colocava nesta harmonia divina", observa Wright.
“O bem supremo do homem consistia em ser apanhado neste ritmo
cósmico da natureza.” (Wright, God who acts, p. 39.)
A humanização, consequentemente, é um resultado da harmonia
do homem com o sistema natural que o contém e do qual ele faz par­
te. Qual é o grande perigo? O novo, o inesperado. Tais elementos
quebram a harmonia e, por isso, interrompem o ciclo normal da vida,
em seu retomo ao começo primeiro e à harmonia primordial. Enquanto
a comunidade de fé buscada um novo amanhã e vivia de maneira er­
rante, sempre a aguardar e a desejar o inesperado, o adorador da natu­
reza aceitava como sua vocação ser domesticado pelos processos na­
turais. Vivia, portanto, num mundo

"...em que a ênfase recaía sobre a ordem, a harmonia e a


integração. O mundo da sociedade, o da natureza e os
deuses se interpenetravam, de forma que o status quo
constituía o foco da atenção. Consequentemente, todos
os politeísmos tendem a ser religiões do status quo, e
nenhum deles jamais produziu uma revolução social...
Revoluções de qualquer espécie são abomináveis para
a natureza íntima das religiões da natureza.” (G. E. Wri­
ght, The Old Testament against its environment, pp. 14-
45.)

Esta conclusão faz-se necessária: se a vida humana fosse uma


dádiva do sistema natural, se a natureza fosse a mãe de cujo útero o
homem tivesse nascido, em cujos seios tivesse se alimentado e para
cujas entranhas voltaria, a segurança humana dependería da estabili­

128
dade materna, que, por sua vez, exigiría conformidade por parte do
filho.
Van Leeuwen nos chama a atenção para uma outra “recusa” pre­
sente na tradição da comunidade de fé, pela qual se expressa também
a sua vocação para o futuro. Tal recusa encontra-se na história do fim
da Torre de Babel. Comenta van Leeuwen:

"O Velho Testamento deve ser lido como um relato ou


um documento único da luta do povo de Israel para pre­
servar seu gênio peculiar ao romper com um modelo de
civilização primitiva. A história da Torre de Babel reflete
o julgamento radical da fé de Israel acerca de uma con­
cepção de totalidade, fundamental à religião e à socie­
dade babilônicas." (Christianity in world history, p. 158.)

A história fala do fracasso do empenho humano para construir


“uma cidade e uma torre com o topo nos céus". (Gen. 11:4) É dito que
tal decisão foi tomada devido aos homens terem medo do futuro. A
torre tinha por fim trazer a integração, a unidade e a estabilidade. Este
mito representa uma visão de mundo familiar aos babilônios da anti­
guidade, na qual o universo era visto como uma totalidade integrada.
Suas torres-templos - os “zigurates” (a que se referem as histórias bí­
blicas, como a da Torre de Babel) - eram estruturas que representa­
vam essa totalidade: as águas, os céus e estrelas, homens e deuses,
tudo estava unido numa totalidade harmônica. Assim, a sociedade dos
homens precisava ser uma expressão do universo, e somente quando
funcionava como parte integrada ao todo o homem encontrava sua
própria integração e harmonia com este todo. O templo, enquanto cen­
tro e mais alta expressão da sociedade humana - de fato, a expressão
de sua atividade conjunta acreditava-se fosse como "a corda que
ata o céu e a Terra.” (ibid., p. 77.) A sociedade humana consistia então
numa parte integral da sociedade dos deuses. Possuía um caráter on-
tocrático, era firmada e estruturada segundo a totalidade que a abran­
gia. Não era histórica, provisória, a seguir na direção de um novo ama­
nhã. E assim, por constituir um elo na estrutura do ser do universo, as
ações humanas pretendiam, como ocorria com os adoradores de Baal,
produzir estabilidade e imitar a ordem total. O movimento das estrelas
constitui, então, a ordem que determina o ritmo das ações hu-

129
manas. Por isso a ciência da astronomia, em suas origens, esteve to­
talmente subordinada ao propósito de se determinar o ritmo da socie­
dade dos homens. Consequentemente, o tempo dos homens não era
horizontal, e sim cíclico. O tempo horizontal, que se movia em direção
ao novo, que não estava sincronizado com o sistema natural, era o
tempo da desordem e da desintegração, tempo no qual o homem se
desarraigava do todo, em que o ser humano perdia o seu domínio so­
bre o futuro, tempo que se dirigia ao caos e à destruição.
A lógica deste paradigma é, a um tempo, precisa e atrativa. Ela
pode ser entendida em dois tempos. O primeiro consiste na observa­
ção científica e na descrição matemática daquilo que é. Esta observa­
ção e descrição fornecem a elucidação do contexto e dos limites do
homem. Qual é o maior pecado? Permanecer numa postura crítica em
relação ao estabelecido. A ordem e a estrutura estabelecidas são ex­
pressões da verdade daquilo que é. A lógica então se move suave­
mente para o segundo movimento: o homem inclina-se ante o poder
da verdade daquilo que é. Renuncia à negação e à criação. Com efei­
to, não há lugar para tais categorias dentro desse sistema. A ação e o
pensamento humanos tornam-se funcionais. O pensamento tem de
descrever o que é. Não pode explorar possibilidades utópicas porque
elas simplesmente não existem. As ações são movimentos harmoni­
zados à totalidade. A meta da vida desse homem: adaptar-se, encai­
xar-se.
A história bíblica faz deste paradigma uma piada. A seriedade
dos homens, sua pretensão em viver sem cortar o cordão umbilical que
une céus e terra, seu paradigma "científico” para a humanização, ter­
minam em confusão. Os homens se vêem dispersos sobre a Terra e
forçados a viver num nível muito mais modesto. O fracasso de sua
empresa, na história bíblica, não se torna um fracasso a ser lamenta­
do. Constitui, antes, um fracasso bem-vindo e até mesmo necessário,
pois torna possível a opção que determina a consciência de Israel: a
opção pela história. “A readaptação da história da Torre de Babel”, ob­
serva van Leeuwen, “faz parte do ataque fatal” que a Bíblia “ lança pre­
cisamente contra aquela concepção de totalidade que o zigurate... re­
presenta." (ibid., p. 78.) Esse ataque, todavia, só tem sentido se visto
como o lado negativo da consciência de uma comunidade que optou
pela história. Com o protesto levantado por Israel “contra a religião da

130
totalidade cósmica, contra a ‘sacralização’ de todos os seres, contra a
supremacia do destino, contra a divinizaçâo de reis e reinados... a his­
tória é descoberta... Nela encontram-se o lugar adequado para o ho­
mem, e também o gosto pela liberdade. O mundo agora se mostra ra­
dicalmente secularizado... movendo-se rumo... à arena da história [e
convertendo-se nela].” {ibid., p. 331.)

No Novo Testamento a mesma polêmica ganha uma outra forma


na rejeição radical da lei como paradigma para a humanização. “ Ne­
nhum ser humano”, afirma Paulo, “será justificado... pelas obras da
lei." (Rom. 3:20) A lei aqui parece relacionar-se com tudo o que seja
anti-humano. Ela se mostra a fonte do medo. Obediência a ela faz
nascer a jactância. A vida sob a lei constitui escravidão. Em última
análise, ela consiste no poder que celebra a morte! (Veja-se Rom.
8:15, 3:27; Gal. 5:1; 2 Cor. 3:7-9.) Por que, no Novo Testamento, a lei,
que era aceita como tendo sido dada por Deus, que pertencia à memó­
ria da comunidade, é agora atacada? Parece que para os escritores do
Novo Testamento a lei sofreu uma perversão histórica. Nas palavras
de Paulo, a intenção dos mandamentos era a vida (Rom. 7:10), mas o
homem não descobriu vida neles. Eles se tornaram a origem do medo,
da escravidão e da morte. Jesus apontou o mesmo problema ao indi­
car que o significado original dos mandamentos se colocava a favor do
homem (Marc. 2:27), mas que tal significado havia se perdido através
de um processo de congelamento que deles fez um poder anti-huma­
no: era o homem que tinha agora de se pôr a serviço dos mandamen­
tos. Era verdade que eles haviam sido ciados por Deus. Contudo, fo­
ram dados no percurso desde um passado de escravidão até um novo
amanhã, do Egito à terra prometida. Foram dados como disciplina para
a vida histórica, em benefício de um novo amanhã que tinha de ser
criado. Desta maneira, a lei estava relacionada a uma experiência pri­
mordial da comunidade, experiência esta radicalmente oposta às op­
ções de adaptação e de conformidade ao status quo. Inversamente,
a lei devia ser vista como um tipo de preparação para o novo, rumo ao
qual se movia a comunidade. Porém, a lei sofreu uma transposição que
lhe roubou o poder para fazer a história, passando a significar “a totali­
dade das exigências legais historicamente dadas." (R. Bultmann,
Theology of the New Testament, p. 260.) Passou a constituir uma pre­
sença do passado, algo congelado que se pretendia fator determinante

131
do comportamento humano. Esse processo de des-historização da lei
e sua transformação em um poder destruidor da história ficaram claros
em relação à questão do sabbath (sábado). Na experiência histórica da
comunidade, o sábado era um dia de descanso, “a caminho”, na dire­
ção de um novo amanhã. Constituía não uma pausa na rotina do tem­
po cíclico, mas um momento de se relaxar no caminho, em direção a
um novo dia. Não se tem o propósito de investigar o seu significado
aqui, e sim o de indicar o caráter totalmente histórico com que o sába­
do foi inicialmente instituído. Originalmente ele se mostrava uma pau­
sa no movimento rumo ao novo. Sua des-historização, entretanto, rou­
bou-lhe esta dimensão, destruiu seu caráter de pausa na expectativa
quanto à criação do novo. Ò tempo do sábado tornou-se semelhante
ao tempo cíclico das religiões da natureza: o homem tinha de se adap­
tar, de se encaixar, de se harmonizar a ele, abdicando da criação de
qualquer coisa nova. O sábado tornou-se o tempo do velho. Cada sá­
bado corrido deveria ser uma repetição daquilo já acontecido. Qualquer
evento humano que exigisse um tipo de ação incomum - como a cura
da doença - consistia numa anormalidade que tinha de ser deixada in­
tocada. O dia libertador transformara-se num dia petrificante. Esta
conclusão a respeito do sábado vale também para toda a lei. Esta foi
des-historizada e transformada num mandamento abstrato do divino,
numa expressão a-histórica daquilo que era verdade eterna, num con­
fronto de valores morais dados ao homem na “epifania do presente
eterno.” (J. Moltmann, Theology o f hope, p. 29.) O paradigma da liber­
tação deixou de ser uma expectativa quanto ao novo, tornando-se con­
formidade com o velho.

O significado do conflito entre o Evangelho e a lei é de máxima


importância, pois parece não haver nenhum conceito com maior in­
fluência sobre a filosofia ocidental e a ética teológica do que o de lei.
Em primeiro lugar, foi o platonismo que sugeriu que a "pólis" humana
tinha de ser construída de acordo com o mundo eterno das idéias. Os
adoradores de Baal, os que estudavam as estrelas e os filósofos gre­
gos possuíam uma convicção comum: a cidade do homem, para ser
um local de humanização, deveria ser construída como parte do todo.
É verdade que os modelos para cada um dos três grupos acima eram
diferentes e mesmo opostos. Porém, todos concordavam que “a epifa­
nia do presente eterno” fornecia os elementos para a construção da

132
ordem social. Uma cidade erigida sobre o acidental, o histórico, e não
segundo o eterno, não poderia evitar a tragédia da desintegração. Qual
é a base da “pólis” grega? Qual a fonte de suas leis? A ordem eterna
ou simplesmente as contingências da história? Este é o drama que
Sófocles descreve em Antígona. E, ademais, o estoicismo também
contribuiu, nessa mesma linha, com sua idéia de lex naturae, a lei in­
trínseca à natureza das coisas. A influência da lei sobre o pensamento
cristão foi tão penetrante que mesmo Deus passou a ser visto essen­
cialmente como lei; a graça passou a ser considerada como um anranjo
a posteriori da parte de Deus, a fim de tornar possível ao homem tanto
ser justo perante a lei de Deus (Teologia Católica Romana), como ser
considerado justo perante o tribunal de Deus, pelos méritos de Cristo
(Calvino). Aqui é a graça que torna o cumprimento da lei possível. O
paradigma da ordem triunfa, pois a graça é vista como um poder adi­
cional ofertado ao homem, a fim de tomar possível a sua adaptação às
estruturas dadas dos valores eternos. Nas palavras da teologia católi­
ca, a graça cura a natureza. Seríamos tentados a dizer que existe uma
interrupção radical, um grande abismo entre a ética de adoração da
sexualidade, ou a visão babilônica de mundo, por um lado, e os valo­
res criados pela idéia de lei no pensamento cristão, por outro; e que,
por isto, não deveriamos colocá-los juntos, como coisas semelhantes.
Todavia, nossa proposta não consiste em estabelecer comparações de
valores, e sim em indicar que, quando a sociedade e o comportamento
humanos são dominados pelo conceito de lei e de legalidade, como
expressões de uma ordem eterna de valores, a historicidade do ho­
mem é destruída. O homem é humano na medida em que se adapta e
se encaixa numa idéia eterna e imutável de homem e de sociedade. A
ação transforma-se em imitação. O homem não marcha rumo a um
novo amanhã, pois a lei e a legalidade, enquanto estabelecidas no
passado, tornam-se modelos para a sua ação no futuro.
Quando a ordem natural ou qualquer outro tipo de ordem toma-
se o contexto que o homem elege para reger a sua vida, a história
chega a um fim. A sua abertura para o futuro se perde, já que ele de­
verá ser a imitação dos valores já estabelecidos no passado.
É precisamente contra isto, o estilo de vida imitativo e a existên­
cia de se amoldar a um mundo de valores eternos, que o Novo Testa­
mento dirige o seu protesto. Ele entende que os esforços do homem

133
para cumprir a lei são expressões de sua servidão, seu medo do futuro,
sua falta de confiança em Deus. O sucesso do homem em realizar o
bem e a falta de liberdade e o medo caminham juntos. Como Bult-
mann indicou, o Novo Testamento confronta esse homem bom -
aquele que observou todos os detalhes da lei desde a sua juventude
(Marc. 10:20) - não com a opção para uma bondade maior, com um
modelo melhor de moralidade, e sim com a exigência de mudança
qualitativa, “uma inversão no sentido que o seu desejo antes possuía”,
o que significa deixar para trás "o passado como ameaça permanente”,
tornando-se “aberto ao futuro genuíno”, “deixando-se determinar pelo
futuro.” (Bultmann, Theology o f the New Testament, pp. 315, 322 e
335.)

Torna-se então evidente porque os cristãos e os homens secula­


res, que falam a linguagem do humanismo político tão frequentemen­
te se encontram lado a lado. O fato é que eles participam da recusa
fundamental de serem absorvidos pelos sistemas que requerem adap­
tação a estruturas estabelecidas. Ambos negam a legitimidade de to­
das as estruturas - as que pretendem se basear na ordem natural, as
que pretendem representar valores transcendentes eternos e as que in­
tentam representar a verdade da eficácia tecnológica - enquanto con­
textos determinantes e finais para a ação humana. Com sua paixão
comum pela liberdade humana e a sua visão, concordam que a inte­
gração nos sistemas consiste numa forma de domesticação, domesti­
cação esta que troca a liberdade pela segurança, a consciência crítica
pela bondade, a visão humana de um novo amanhã pelo estômago
cheio. O problema da humanização, assim, não pode ser equacionado
através da economia ou do desenvolvimento econômico (a grande ten­
tação das nações pobres do mundo!). A humanização não constitui
uma dádiva ofertada, seja pelos deuses da fertilidade, seja pela forma
com que hoje eles ressuscitaram: os bens da tecnologia. Cristãos e
homens seculares comprometidos com essa causa concordam que o
homem não vive apenas de pão. A questão fundamental é se o ho­
mem pode ser livre para criar o seu próprio futuro, para destruir todos
os sistemas domesticadores que se empenham em preservar o velho e
o que se repete, a fim de marchar em direção a um novo amanhã.

134
11

CAPÍTULO TRÊS

O CARÁTER HISTÓRICO DA LIBERDADE

A razão pela qual cristãos e humanistas políticos se encontram


tão freqüentemente unidos em tarefas comuns deve-se ao fato de que
as linguagens por eles empregadas brotaram de uma paixão seme­
lhante e apontam para uma esperança similar. Ambas as linguagens
poderíam ser descritas como expressivas de "uma paixão e uma visão
da liberdade humana” . (R. Lehmann, Ideology and incamation, p. 25.)
O que os separa é a experiência histórica básica em que foram forma­
dos e que determina a compreensão do contexto que torna possível a
transformação de sua visão e de sua paixão em realidade histórica.

I-A Linguagem do Messianismo Humanista: a Humanização


como Tarefa

Na análise precedente da linguagem do humanismo político indi­


cou-se que esta é inteiramente histórica. Ela nasce da experiência das
dores do mundo, de suas contradições e sua negatividade. Aponta um
futuro histórico de humanização, no qual as possibilidades de liberta­
ção humana, impedidas no e pelo presente, poderíam se tornar históri­
cas. E finalmente indicou-se que ela consiste numa linguagem de li­
berdade, por expressar negação e esperança, na medida em que acre­
dita ser o homem livre e poderoso para se libertar daquilo que o man­
tém escravizado. A linguagem do humanismo político, portanto, consti­
tui uma forma de otimismo histórico. Assume o risco de deixar todas
as suas esperanças quanto à libertação humana dependentes da liber­

135
dade do homem para tomar-se livre. A paixão e a visão da libertação
humana tomar-se-ão históricas “apenas pelos poderes do homem.”
(ibid., p. 25.) A humanização é tarefa do homem. Consiste numa forma
de otimismo que combina a confiança na vocação do homem para a
liberdade, sua determinação para criar um novo futuro, e a confiança
na abertura da história para isto que o homem faz. Acredita que “a
humanidade sempre coloca para si os problemas que é capaz de re­
solver: pois, ao olharmos mais de perto, descobrimos que o problema
somente surge quando as condições materiais para a sua solução já
estão presentes ou, ao menos, sendo geradas.” (K. Marx, “Preface to a
contribution to the Karl Marx critique of political economy”, em Erich
Fromm, Marx's concept o f man, p. 218.*) A abertura do homem ao futu­
ro indica, assim, que o futuro lhe está aberto, maduro para a sua ação.
Por conseguinte, a emergêncra da consciência do “devo” coincide com
a possibilidade subjetiva e objetiva do “posso".

O problema que a linguagem do humanismo político apresenta,


todavia, é se é possível permanecer histórica e otimista ao mesmo
tempo. Poderá esse otimismo, acerca do homem como único criador
da história, sobreviver ao se defrontar com o fato brutal do poder no
presente mundo? Não seremos levados a concordar com Marcuse
quando este diz que “nada indica que [possamos confiar em que] o fim
será bom [pois]... as capacidades econômicas e tecnológicas das so­
ciedades estabelecidas são suficientemente amplas para permitir ajus­
tes e concessões aos marginalizados, e suas forças armadas são sufi­
cientemente treinadas e equipadas para cuidar de situações de emer­
gência” ? Marcuse indica muito bem qual é o problema da linguagem
do humanismo político: ela não possui quaisquer “conceitos que pode­
ríam transpor o fosso cavado entre o presente e o futuro; não susten­
tando nenhuma promessa nem mostrando qualquer sucesso, ela con­
tinua negativa". (H. Marcuse, One-dimentional man, p. 257.) Aqui nos
defrontamos com a terrível possibilidade de um mundo sem futuro, no
qual a abertura humana ao porvir seja domesticada pelo poder dos sis­
temas dominantes.

* Traduzido e publicado no Brasil com o título Conceito marxista do homem, pela Zahar
Editora. (N. do T.)

136
Parece-me que esta constitui, de fato, uma avaliação realista de
nossa presente situação. Nada indica que os horizontes estejam se
tomando mais abertos. Pelo contrário: a abertura de nossa consciência
e o seu surgimento na história estão sendo suplantados pelos poderes
repressivos do conservadorismo. Com efeito, vivemos em meio à con­
tradição entre a realidade e a impossibilidade de um novo amanhã.
Esse amanhã é real enquanto dimensão da consciência, mas se mos­
tra impossível devido ao exercício do poder por parte dos sistemas
dominantes. O “messianismo humanista”, com sua paixão e visão da
libertação humana apenas através dos poderes do homem, defronta-se
assim com as alternativas, de um lado, do otimismo à custa de seu ca­
ráter inteiramente histórico, tornando-o, pois, romântico, e, de outro, da
fidelidade à história e abandono da esperança, transformando-o em
presa do cinismo gerado pela frustração.

I I - A Linguagem do Humanismo Messiânico: a Humanização


como Dádiva

A linguagem empregada pela comunidade de fé, apesar de do­


minada pela mesma visão e paixão pela libertação humana, encontra
um contexto diverso para sua negação, esperança e ação, pois “insiste
em que a conquista da humanização se dará através da realidade e do
poder de uma liberdade que ocorre na história a partir do além-história
e se recusa a abandonar a história." (Lehmann, Ideology and incama-
tion, p. 26.) Em outros termos: para o humanismo messiânico, a políti­
ca para um novo amanhã não pode ser avaliada por meio de uma
simples avaliação estatística ou quantitativa dos recursos humanos e
do poder de resistência das estruturas de dominação existentes. Ele
sustenta que a política para um novo amanhã é manifestação de um
poder que, não sendo prisioneiro da história (e, por decorrência, não se
esgotando nas possibilidades estatístico-quantitativas que a história
exibe) está “livre para" a história e, assim, pode criar possibilidades
inimaginadas por qualquer tipo de cálculo.

Uma Linguagem Histórica

O humanismo político critica a linguagem do humanismo mes­


siânico como sendo baseada numa idéia não-histórica e, portanto, dog­

137
mática. O ponto de partida para a tarefa da libertação humana parece
ser uma idéia, uma esperança ou um paradigma não-extraídos da his­
tória, algo que paira sobre ela; algo, portanto, inverificável. Seria uma
ilusão que dissolvería os tons escuros com que a consciência realista
descreve a condição humana. A esperança se salvaria ao preço da efi­
cácia. A eficácia para a transformação da história somente se mostra
possível através de uma análise objetiva daquilo que é possível ou im­
possível numa dada situação. Criando um contexto ilusório para a es­
perança e para a tarefa de libertação, o humanismo messiânico torna­
ria a eficácia impossível, transformando-se, consequentemente, numa
forma de ópio. A esperança tornaria a ação ineficaz ou supérflua devi­
do ao seu afastamento de uma avaliação objetiva das condições histó­
ricas.
Se o humanismo messiânico consiste numa idéia dogmática,
num paradigma não-obtido a partir da história e não-dirigido a ela, é
certo que ele é uma forma de alienação que deve ser descartado por
funcionar como uma forma de realização de desejo ilusória. Entretanto,
não deveriamos ser tão apressados, descartando a linguagem do hu­
manismo messiânico sem primeiro examinar cientificamente o tipo de
experiência histórica que o criou e para o qual ele aponta.
A linguagem é um fenômeno histórico. Não é um rol de símbolos
que se referem a determinados objetos ou ações. Ela expressa a auto-
compreensão de uma comunidade em seu contexto histórico, o seu
relacionamento com o seu mundo e a sua vocação na história. O exa­
me científico da significação de uma linguagem, por conseguinte, não
consiste num simples processo de conferir a relação exata entre as
palavras e as coisas às quais elas se referem. Requer, sim, uma inda­
gação da experiência histórica total que fez nascer essa linguagem.
A linguagem do humanismo messiânico é a expressão de uma certa
experiência histórica. Não se baseia numa idéia dogmática, extraída ou
da esfera das especulações filosóficas ou da experiência de revelação
dos “fundamentos do ser” ou da “epifania do presente eterno”. Ela se
mostra simplesmente descritiva de uma experiência histórica de liber­
tação humana.
Como indicado antes, para o humanismo messiânico o problema
da eficácia na criação de um novo amanhã pode ser resolvido tão-só
no contexto das possibilidades reais imanentes da história, objetiva e

138
subjetivamente. A libertação só é possível quando existe um sujeito
histórico que decide tornar-se livre. E ainda mais: sua decisão subjeti­
va tornar-se-á histórica somente se ele detiver o poder para suplantar a
resistência objetiva que se opõe ao seu projeto. A libertação é uma
criação exclusivamente humana.

A experiência histórica das comunidades bíblicas, no entanto,


apresenta uma discrepância neste ponto. Sua liberdade histórica não
podia ser entendida a partir de uma análise das possibilidades objeti­
vas e subjetivas de seu presente histórico. Por que e como um grupo
de escravos havia se transformado em um povo? A linguagem de Is­
rael indica que a preocupação com a libertação histórica não se devia
à sua vocação para a liberdade. Eles não estavam comprometidos
com uma vocação para serem livres. Pelo contrário: as panelas de car­
ne do Egito eram muito mais atrativas do que a esperança distante de
uma terra de liberdade. Preferiam sobreviver no cativeiro a morrer no
caminho rumo a um novo amanhã. Este era o protesto continuamente
ouvido durante a peregrinação pelo deserto. A partir de uma análise de
sua consciência não se pode vislumbrar qualquer possibilidade de li­
bertação. Os caminhos objetivos pareciam igualmente bloqueados.
O jugo da escravidão era pesado. O opressor era militarmente forte. E
eles, escravos, eram fracos, desarmados, sem disciplina ou determina­
ção. O poder político do Egito, os intransponíveis obstáculos da jorna­
da, a sobrevivência no deserto, o problema da conquista da terra, to­
dos esses elementos da situação apontavam na mesma direção: o fu­
turo estava fechado.

O povo de Israel, consequentemente, não podia ver a libertação


nem como resultado de sua determinação para ser livre, nem como
tendo-se tornado possível pelas circunstâncias. Ele não se fez livre: foi
obrigado a ser livre. A linguagem do humanismo messiânico não é
mais que uma expressão dessa experiência histórica de liberdade e li­
bertação “apesar de” , quando todas as possibilidades subjetivas e ob­
jetivas de liberdade, imanentes da história, haviam sido abortadas.

Assim, tal linguagem é inteiramente histórica, apontando para a


emergência, na história, da eficácia apesar da fraqueza humana, ape­
sar da insuplantável força dos poderes que mantinham o homem cati­
vo. Ela se mostra uma linguagem nascida da experiência da eficácia

139
histórica não como resultado do poder humano, e sim como uma dádi­
va: a eficácia enquanto graça, a eficácia “apesar de”.1
Se o evento libertador não podia nem ser relacionado com a vo­
cação para a liberdade encontrada em meio ao povo, como um efeito
à sua causa, nem explicado como um acidente de circunstâncias histó­
ricas, o povo passou a entendê-lo como um ato de um poder situado
além da história. Os fatos libertadores, foram então proclamados como
atos de Deus. Não eram simplesmente resultado das circunstâncias,
mas expressões de uma liberdade transcendente, que graciosamente
se destinara a um novo homem, a um novo tempo, a uma nova Terra.
Israel, por conseguinte, não tinha uma idéia apriorística de Deus, le­
vando a cabo, a partir dessa idéia dogmática, a sua ação na história.
Pelo contrário: o povo decidiu pela liberdade a despeito de si mesmo.
E esta constitui a sua mais fundamental experiência histórica. A partir
da realidade histórica dos fatos libertadores brota uma nova lingua­
gem, como algo a posteriori e falando de Deus enquanto poder de li­
bertação humana, poder que se expressa nos e através dos eventos
que inauguraram a vida da comunidade.
A linguagem bíblica a respeito de Deus, portanto, não descreve
uma ontologia ou uma metafísica. Ela se refere ao que ocorreu, ocorre
e poderá ocorrer na história. Consequentemente, assinala N.J. Snaith,
“os hebreus não dizem que Jeová é ou que existe, e sim que Ele faz.”
(N. J. Snaith, The distinctive ideas of the Old Testament, p. 48.) É uma
linguagem que enuncia aquilo que é possível na história, da perspecti­
va da experiência política da comunidade com o poder da eficácia “a-
pesar de”. Von Rad indica que “mesmo as primeiras expressões de fé
em Javé eram historicamente determinadas, ou seja, ligavam o nome
desse Deus a alguns relatos sobre uma ação na história.” (Gerhard von
Rad, Old Testament theology, v. I, p. 121.) Para os israelitas, portanto,
“é... a objetividade dos atos históricos de Deus que constitui o foco da
atenção, e não a subjetividade da experiência interior, emocional, difu­
sa e mística." (G. E. Wright, God who acts, p. 55.)1

1. G. E. Wright indica ser esta a experiência central do povo de Israel. "Israel,


quanto um grupo minoritário e oprimido no Egito, foi maravilhosamente libertado, conduzido
através de um ermo e inóspito deserto, e contemplado com uma terra em que habitar... O Êxo­
do ou libertação do Egito, portanto, é o ponto central ou focal da fé e da história israelita.” (The
Old Testament againsl his environment, p. 48.)

140
A linguagem acerca de Deus, desta maneira, consiste numa lin­
guagem a respeito do poder e da promessa dos eventos. Por isso,
quando os israelitas se referem a Deus recontam a história dos even­
tos que, no passado, os haviam transformado num povo livre. A ques­
tão “quem é Deus?", assim, é respondida através de uma história:
“Meu pai era um arameu errante que desceu ao Egito
com uns poucos, e ali viveu como estrangeiro, tomando-
se depois uma nação poderosa e numerosa. Então os
egípcios trataram-nos iniquamente, oprimindo-nos e im-
pondo-nos uma penosa servidão. Clamamos ao Senhor,
Deus de nossos pais, e o Senhor ouviu o nosso clamor,
tomou em consideração a nossa miséria, o nosso tra­
balho e a nossa angústia e tirou-nos do Egito, com Sua
mão poderosa e o vigor do Seu braço, realizando sinais
e prodígios. Introduziu-nos nesta região e deu-nos esta
terra, terra onde corre o leite e o mel." (Dt. 26:5-9) (Ve­
ja-se também Dt. 6:20 e Jos. 24.)
A teologia, linguagem acerca de Deus, consistia assim no mes­
mo que uma recitação dos eventos que, devido ao seu poder libertador
no passado, ofereciam um fundamento de esperança no presente.
“Assim, recontar continua sendo a forma mais legítima de discurso
teológico do Velho Testamento”, sublinha von Rad. (Old Testament
theology, vol. I, p. 121.)2
Devido à consciência das comunidades bíblicas emergir de even­
tos históricos, criou-se uma nova forma de se utilizar os poderes da ra­
zão. A mente grega era dominada pela “exigência de se chegar a uma
compreensão universal do mundo" (von Rad, ob. cit., v. I, p. 116.); ela
buscava encontrar um “princípio natural uniforme” do cosmos, o arché**
no qual todas as contradições de ordem histórica se resolveríam em
unidade e racionalidade. Esse pensamento toma por seus limites a
verdade daquilo "que é”. O que é, é racional; o que é, é verdade. O pen-

2. G.E. Wright sustenta firmemente esta visão do caráter histórico da linguagem das
comunidades de fé bíblicas. “ A teologia bíblica", assinala ele, “ é primeiramente uma teologia
da narração, na qual o homem bíblico confessa a sua fé narrando os eventos formativos da sua
história como a obra redentora de Deus." (God who acts, p. 38.)
* Em grego, no original: "princípio". (N. do T.)

141
sarnento dirige os seus esforços para a tarefa de compreender o mun­
do. Essa maneira de pensar é totalmente estranha à mente hebraica,
dado que esta se recusa a abandonar a história em busca de um prin­
cípio meta-histórico no qual as contradições históricas estejam trans­
cendentalmente reconciliadas. A linguagem teológica consistia, portan­
to, numa linguagem histórica3, engajada “numa reflexão continuamen­
te renovada a respeito do significado dos eventos históricos, reflexão
esta que, por certo, sempre aparece à guisa de interpretações ad hoc."
(ibid., p. 117.) Se o pensamento grego movia-se dialeticamente do
sensível ao inteligível, do contraditório à compreensão racional daquilo
que é, o pensamento hebraico via os eventos libertadores mais como
vetores que tomavam possível uma extrapolação em direção ao futuro.
Porque no passado o povo foi libertado e criado pelo poder de Deus
era possível pensar-se no presente a partir da perspectiva das possibi­
lidades de humanizaçáo que a experiência passada criara. O passado
converteu-se numa pista para a compreensão das possibilidades de li­
bertação no contexto dos acontecimentos presentes. “O olho israelita,
assim, era treinado para ver os eventos humanos de maneira séria",
comenta Wright, "pois neles tinha-se de aprender, com maior clareza
do que em qualquer outro lugar, o que Deus desejava e o que Ele era.”
(God who acts, p. 44.) A linguagem acerca de Deus ou linguagem
teológica consistia então numa tentativa de se ler os sinais dos tem­
pos, de se descobrir a verdade libertadora dos eventos presentes. On­
de os acontecimentos fossem expressões da eficácia libertadora “ape­
sar de”, ali estava o seu Deus.
A consciência das comunidades do Novo Testamento não se
desvia desse contexto. Ela consiste numa nova expressão da cons­
ciência histórica e da linguagem do Velho Testamento. Quando Jesus
começou a pregar que “o tempo se cumpriu, e o Reino de Deus está
próximo; arrependei-vos e crede nesta Boa Notícia" (Marc. 1:14), ele
não falava uma linguagem estranha. Dirigia-se a uma comunidade de­
terminada pela história e detentora de uma esperança histórica. E o
que ele anunciava era a iminência da realidade política do poder, po­
der pelo qual a libertação mostrava-se possível e era oferecida: o Rei­

3. "Do princípio ao fim Israel declaradamente toma como ponto de partida a absoluta
prioridade, na teologia, do evento sobre o togos." (ibid., p. 116.)

142
no de Deus. O Evangelho constitui assim a anunciação da realidade
histórica da política de Deus em marcha, que se expressava não en­
quanto experiência mística ou filosófica, mas sim como um poder a in­
vadir a história. Jesus era reconhecido pelas comunidades do Novo
Testamento como o “servo” (Jo. 13; Filip. 2:7), obediente até a morte.
(Filip. 2:8) Seu desejo era visto como subordinado à (e como expres­
são da) intenção messiânica dos eventos libertadores do Velho Tes­
tamento. Através dele, a política de libertação de Deus era levada a
cabo. Sua obediência constituía então uma expressão de total identifi­
cação com a atividade messiânica de Deus, e, por conseguinte, ele
podia ser reconhecido como o Messias. Assim, a comunidade cristã
entendeu Jesus a partir do “critério messiânico", como um novo evento
libertador na tradição da intenção messiânica, intenção esta revelada a
partir da libertação e das promessas que a experiência do povo conti­
nha. Assim como os eventos messiânicos de libertação no Velho Tes­
tamento não resultaram da eficácia humana, e sim de uma dádiva, de
um ato de poder que transcendeu as possibilidades dadas da história,
as comunidades cristãs também viram em Jesus um ato da liberdade
de Deus. Não existe, na consciência da comunidade cristã, qualquer
lugar para o messianismo como algo originário .da realidade humana.
(Lehmann, Ideology and incamation, p. 26.)4 O homem não produz o
“logos” e o "poder" para a libertação humana a partir de uma realidade
previamente dada. Pelo contrário: o poder que cria um novo futuro é
algo novo, consiste na liberdade proveniente do além-história que se
torna história; consiste em liberdade que transcende a história e que é
liberdade para a história. Apenas assim o poder messiânico e a espe­
rança para a história se sustentam. “O ‘Logos’ torna-se carne." (Jo.
1:14) "O poder revelador do predicado carne’’, comenta Barth, "susten­
ta-se ou cai com a livre ação do sujeito Logos." (Karl Barth, Church
dogmatics, I/2, p. 137.) Parafraseando-o: a possibilidade de libertação
humana na história se sustenta ou cai com a livre ação na história do
poder messiânico provindo do além-história.

A linguagem da comunidade do Novo Testamento, conseqüen-


temente, continua sendo um relato dos eventos históricos libertadores.

4. ” ... o humanismo messiânico... subordina cada interpretação da encarnação ao cri­


tério messiânico." (Loc. cit. acima.)

143
Ela anunciou acontecimentos históricos, acontecimentos que fizeram o
homem livre, que tornaram possível uma nova auto-compreensão tão
radical a ponto de ser chamada de “novo nascimento" (Cf. Jo. 3:3),
anunciou eventos indicativos de que Deus estava ativamente engajado
numa luta contra os poderes que mantinham o homem cativo. O
Evangelho consistia, assim, num “ato”, numa nova inserção da liber­
dade na história, num ato que abre novos horizontes para a libertação
humana. Por isso a proclamação do Evangelho anuncia a salvação,
uma nova possibilidade de vida humana. A linguagem da teologia
permanece derivada da história e com ela comprometida.

Uma Linguagem de Liberdade

Por terem sido criadas e determinadas por eventos históricos li­


bertadores, as comunidades bíblicas tiveram uma compreensão única
da história, como história da liberdade. Como indicado anteriormente,
a experiência dos eventos históricos, enquanto formativos e libertado­
res, não permite à comunidade de fé vê-los simplesmente como o re­
sultado de um acidente ou de uma circunstância. Eles constituíam
atos, ou seja, acontecimentos determinados pela liberdade, e, portanto,
eventos que carregavam em si a liberdade. Apresentavam novas saí­
das para fora do círculo fechado daquilo “que era”, novas aberturas em
direção a diferentes possibiliddes históricas. O tempo, como conse­
quência, deixava de ser um contínuo do sistema de causalidade natu­
ral, convertendo-se em criação do desejo. A vontade de Deus criou o
tempo, criou “a base primordial para a vida do homem." “Porém, por
sua natureza, o desejo consiste num olhar para o futuro, numa busca
do futuro, numa criação do futuro." (Paul Minear, Eyes o f faith, p. 221.)
O tempo que este desejo voltado para o futuro cria, constitui, assim, o
tempo de um projeto. Mas projeto significa exatamente romper a iden­
tidade com aquilo “que é”. Significa tanto libertar o desejo de poder do
mundo presente quanto sua liberdade para um novo futuro a ser cria­
do. Ser envolvido no tempo de Deus é participar de um presente volta­
do para a criação de um novo amanhã. A vontade de Deus, portanto,
jamais poderia ser invocada a fim de se justificar o status quo. “É a
vontade de Deus”, diz o religioso ajustando-se ao seu cativeiro. A von­
tade de Deus, aqui, justifica aquilo que é. Explica a necessidade da­
quilo que é, relacionando-a à causalidade divina e à reconciliação divi­
na das contradições históricas. No entanto, quando a linguagem do
humanismo messiânico fala sobre a vontade de Deus, ela indica que,
porque o tempo expressa a pressão do espírito e da liberdade, em
busca de sua meta, ele jamais poderá se deter. Cada presente é expe­
rimentado como um tempo-rumo-ao-novo-amanhã.5 Assim, o novo
amanhã mostrá-se a única determinação do presente.
Desta forma, Deus é o nome que se dá à presença do futuro. Ele
é a liberdade na história, que faz transcender sua forma presente em
direção a uma possibilidade de libertação humana. Por conseguinte,
Deus não consiste, como Moltmann o indicou, na presença da eterni­
dade que dissolve a história, na “epifania do presente eterno”. Ele se
mostra, sim, como determinação-para-o-futuro. Todavia, contrariando
Moltmann, as comunidades bíblicas não conheciam um Deus cuja na­
tureza essencial fosse o futuro. O primum movens à frente da história.
O Velho e o Novo Testamento falam do presente histórico de Deus. O
caráter puramente futuro de Deus consiste numa nova forma do doce-
tismo, no qual ele perde a dimensão presente tornando-se assim a-his-
tórico. As possibilidades messiânicas da história, tanto para o Velho
quanto para o Novo Testamento, dependem do fato de Deus possuir
um presente. Para o Velho Testamento pode-se ter esperança porque
“o Senhor, vosso Deus, está em meio a vós” (Dt. 7:21); para o Novo, a
esperança se deriva da historicidade, da encarnação de Deus. Um
Deus que seja sempre futuro é um Deus que não se torna histórico
como poder, permanecendo sempre à frente, atraindo a história para
si por meio de Eros. As comunidades bíblicas, entretanto, demonstra­
vam esperança quanto ao futuro porque Deus estava presente; e em
seu presente, por meio do exercício do poder (sempre histórico), ele
negava histórica e presentemente o poder daquilo “que era", tornando
assim o homem e a história abertos para um novo amanhã. Desta
forma, Deus era experienciado como um presente voltado para o futu­
ro, e os seus atos, consequentemente, criavam um presente no qual o
futuro ia sendo formado.
Isto foi proclamado por Jesus em muitas de suas parábolas: “o
futuro agora trabalha secretamente, como uma semente que germina,

5. "O tempo é uma expressão do espírito; seu momento assinala a pressão do espírito
a buscar sua meta." (ibid., p. 108.)

145
um fermento que se propaga ou uma colheita que amadurece. Como
tal, ele se encontra realmente presente, enquanto fenômeno externo,
tangível, visto e ouvido pelos homens." (ibid., p. 227.) Albert Schweit-
zer indicou ser este o motivo dominante da vida de Jesus. Ele não
somente anunciava a irrupção iminente do futuro, como algo que fosse
puro ato de Deus; seu ministério foi mais que isto: era ação que pre­
tendia forçar o futuro a se tornar presente. (A. Schweitzer, The quest of
the historical Jesus. Cf. cap. 19, pp. 330 e ss.) Ele não podia, portanto,
se comportar em termos do presente, tomando a esfera daquilo “que
é” como contexto para as suas palavras e obras. Comportava-se, sim,
como estando num ínterim, no caminho entre o hoje e o amanhã e, por
conseguinte, a sua ética tanto expressava a presença do futuro como
funcionava como sua parteira. Schweitzer, ao afirmar isto, o faz de
forma crítica: comportar-se como Jesus o fez, só se se viver a-histori-
camente, dentro de uma “história dogmática” (ibid, p. 359), história
esta que torna o homem indiferente às reais possibilidades apresenta­
das pelo contexto real da vida e alienando-o delas, (ibid, p. 353.)6
Contudo, é possível entender-se a vida de Jesus diferentemente, ou
seja, como expressão da obediência a Deus, Deus que consiste na
presença do futuro e que empurra o presente para novas possibilida­
des de juízo e libertação humana. Segundo se tentou indicar, isso não
constitui uma idéia dogmática, e sim uma inferência feita a partir da
experiência histórica do povo.
Quando Jesus afirmou que o Reino de Deus estava próximo,
comportando-se de maneira a forçar a irrupção do futuro, estava sim­
plesmente pensando e se comportando de acordo com a tradição do
humanismo messiânico do Velho Testamento. Há uma ênfase eviden­
te sobre o presente. Agora é o tempo de obediência. Agora “os cegos
vêem, os coxos andam, os leprosos tornam-se limpos, os surdos ou­
vem, os mortos se levantam, os pobres são evangelizados.” (Lc. 7:22)
Porém, tal presente tinha algo de especial. Não consistia na presença
do agora eterno, num presente já esgotado. O futuro não se tornou
presente num agora eterno como na escatologia realizada. Nem per­
maneceu uma idéia dogmática isolada, independente do agora e sem

6. "Sua vida neste perfodo foi dominada por uma ‘idéia dogmática’, que o deixou indi
ferenteatudo mais."

146
relação com ele, um futuro caído dos céus, como na escatologia con­
sistente. O agora era o tempo em que ocorria uma ação libertadora
que se dirigia ao futuro. Por conseguinte, o "já" e o “ainda não” não
eram pontos abstratos na cronologia do tempo objetivo. O “ainda não”
era aquilo que qualificava e determinava o presente. Não era primei­
ramente o ponto de chegada, e sim aquilo que estava sendo engen­
drado no ventre do presente. No agora tem-se a presença do futuro
tornado histórico por meio da ação de Deus. Assim, para a comunida­
de de fé, Deus não é nem o “presente eterno”, nem o “futuro absoluto”.
Ela percebeu, a partir de sua experiência histórica, que a ação de Deus
criava uma qualidade explosiva no presente, qualidade esta que o ne­
gava. Devido à ação de Deus, “cada situação está grávida da possibi­
lidade suprema: cada momento torna-se explosivo pela presença de
um poder infinito.” (P. Minear, Eyes of faith, p. 16.) Diz Paulo: “Sabe­
mos que toda a criação até agora geme e sente dores de parto. E não
somente ela, mas também nós que temos as primícias do Espírito ge­
memos dentro de nós mesmos, aguardando a adoção, a redenção do
nosso corpo. Porque em esperança estamos salvos..." (Rom. 8:22-24)
O homem e a criação estão unidos numa “sinfonia de gemidos", tendo
o "Espírito como regente". (Hoekendijk) O Espírito nos deu os “primei­
ros frutos”, o “aperitivo” (Hoekendijk), que faz a criação e o homem,
juntos, ansiarem pela redenção. Assim, o homem e a criação estão
grávidos, com uma nova vida dentro de si, um novo amanhã, engen­
drado pelo Espírito que, nas palavras de Paulo, "reside em vós”. (8:11)
E devido ao Espírito estar presente, criam-se a realidade da presença
do futuro, o gemido do parto e a realidade da esperança. Temos espe­
ranças, estamos voltados para o futuro, porque estamos grávidos. Es­
tamos "infectados” com a presença do futuro.7

O tempo histórico criado pela atividade messiânica de Deus é,


assim, radicalmente oposto ao tempo orgânico, ao tempo da ordem
natural. No tempo orgânico o presente recebe o passado; não, o pre­
sente emerge do passado por repetição ou evolução. O presente é, en­
tão, a presença do passado. No tempo histórico, contudo, o passado
que estava pronto para determinar o presente é penetrado pela liber­
dade. Através desse ato, o desdobramento das possibilidades imanen-
tes àquilo “que é” se interrompe e o novo se insere no presente. Desta

7. A compreensão de Moltmann da relação entre gravidez e esperança é exatamente o


oposto. É a esperança que cria a gravidez, é a visão do futuro que faz o homem mover-se.

147
forma, o presente torna-se uma gravidez, na qual um novo futuro faz o
presente voltar-se para um amanhã histórico. O futuro, por conseguin­
te, está sendo gerado agora, em meio à história em que vive o ho­
mem, compelindo-o a responder aos vetores dos eventos portadores
da liberdade. A esperança mostra-se possível e real porque agora, no
centro da história, novos acontecimentos históricos libertadores vão
sendo criados. Parafraseando A. V. Pinto, podemos dizer que esta es­
perança não provém da percepção de um padrão anterior à percepção
dos fatos, e por isso um padrão eterno... Tal esperança se infere a par­
tir dos eventos que abrem a história. Ela é, por conseguinte, empírica,
derivando-se da história e somente assim podendo atuar como parteira
do futuro, futuro que agora existe apenas como gravidez. Esta paráfra­
se toma por modelo a linguagem do humanismo político e a sua de­
terminação pela esperança. É notável o paralelismo entre ela e a com­
preensão bíblica da esperança como algo inferido a partir dos aconte­
cimentos históricos. Deste modo, a natureza e as origens da esperan­
ça bíblica não podem ser entendidas "se partirmos da ‘escatologia’, is­
to e, de uma doutrina ou concepção das 'coisas finais”’, observa Buber.
A esperança que não se deriva daquilo que está ocorrendo aqui e ago­
ra e que não se relaciona com esta ocorrência, não tem nada a ver
com as formas históricas bíblicas de pensar; é especulação, “idéia
dogmática”, equivoca-se acerca do "cerne especial, concreto, histórico
[da esperança bíblica, já que esta esperança] não pertence à margem
da história, onde ela se dissolve nos reinos da atemporalidade, mas
sim ao centro, centro que muda sem cessar, ou seja, pertence ao tem­
po da experiência e à sua possibilidade". (M. Buber, The prophetic
faith, p. 142.)

Neste ponto faz-se necessário indicar o caráter problemático das


interpretações do futuro em Barth e Moltmann. Para Barth, o futuro já
está, real e formalmente, à nossa frente. Os eventos históricos do pre­
sente, portanto, não criam um novo futuro. O futuro não nasce do pre­
sente. Ao contrário, o agora e a liberdade humana adquirem a sua sig­
nificação quando são uma limitação do futuro, e uma brincadeira sob a
sua luz. Moltmann tentou corrigir esta interpretação, mas continua
afirmando que o futuro, ainda que não ontologicamente, já está for­
malmente pronto e, assim, faz mover o presente, atraindo-o para si.
Para ambos, no entanto, o presente não cria o futuro.

148
Todavia, nossa investigação até aqui tem-nos conduzido a uma
conclusão diferente: o futuro aparece na história através do presente, é
no presente que o futuro vai sendo formado. A história consiste, assim,
no meio no qual e através do qual Deus cria, para a própria história,
para o homem e para si mesmo, um futuro ainda inexistente, seja real
ou formalmente. A linguagem do humanismo messiânico acerca de
Deus constitui, em decorrência, uma linguagem a respeito de uma ati­
vidade em processo, na qual o presente é aberto na direção ao novo.
Porém, deve-se também notar o outro lado da questão: apenas no con­
texto da política de Deus em marcha é possível falar-se sobre o futuro
e a esperança. A possibilidade subjetiva da esperança é, assim, uma
contrapartida e uma resposta à atividade que torna a história objetiva­
mente aberta para um novo amanhã.

A Linguagem do Humanismo

O Deus a que se refere a linguagem do humanismo messiânico


é, assim, um humanista. Ela fala da “humanidade de Deus". (K. Barth,
"The humanity of God", em God, grace and gospel.) Seu nome é um
símbolo para “aquilo que é preciso fazer para se manter humana a vi­
da do homem no mundo.” A comunidade de fé, portanto, não pode
responder à questão sobre Deus, a não ser contando o que ele tem fei­
to para o homem. A forma de seu Deus é humana, pois a sua atuação
na história consiste na ação que abre espaço para que o homem se
torne humano. Por conseguinte, não é uma linguagem metafísica, lin­
guagem a respeito de um reino para além da história. Ela permanece
histórica. Descreve quando e como o homem foi libertado. E permane­
cendo estritamente histórica, extrapola a experiência passada de liber­
tação humana para o presente e o futuro, encontrando nesse contexto
histórico a resposta para a questão: “o que é preciso fazer para se
manter humana a vida do homem no mundo?”
O que separa o messianismo humanista do humanismo messiâ­
nico, portanto, não é o fato de um ser histórico e o outro não. Históri­
cos são os dois. A diferença entre eles consiste em que o messianis­
mo humanista nasce de uma experiência histórica na qual somente es­
tão disponíveis para a tarefa da libertação os recursos tangíveis e
quantitativamente determináveis, enquanto o humanismo messiânico

149
foi criado pela realidade histórica da libertação a despeito do colapso
de todos os recursos humanos. O messianismo humanista parte do
homem. Porque o homem consiste no único recurso disponível, ele
constitui o objeto de sua confiança e de sua esperança. Tal messia­
nismo, em consequência, sustenta-se ou cai junto com os poderes do
homem. Estes são os poderes - os únicos poderes - disponíveis para
a libertação humana. O humanismo messiânico, ao contrário, a partir
de sua experiência histórica acredita na determinação humanizante do
transcendente. Ao pronunciar o nome “ Deus”, este humanismo se refe­
re ao poder de humanização que está determinado a tornar o homem
historicamente livre, mesmo quando todas as possibilidades (objetivas
e subjetivas) imanentes da história já se mostram esgotadas. As decla­
rações de Feuerbach, de que “o começo, o meio e o fim da religião é o
homem”, e de que “o verdadeiro sentido da Teologia é a Antropologia”
- colocações estas expressivas do otimismo e da esperança do mes­
sianismo humanista quanto ao homem ser o seu próprio libertador -
encontram uma nova formulação no humanismo messiânico. O come­
ço, o meio e o fim da atividade de Deus consistem na libertação do
homem. Falar de Deus é falar sobre os acontecimentos históricos que
o fizeram e o fazem livre.

A comunidade de fé se referia a este fato usando a palavra “gra­


ça”. Ela significa que o Deus de que fala a linguagem da fé é total­
mente determinado para o homem. Esta é a razão porque Lutero recu­
sou-se terminantemente a permitir que a linguagem da teologia se re­
ferisse a um Deus que não se tivesse dado historicamente aos ho­
mens. Falar corretamente de Deus é falar daquele que não possui
qualquer outro modo de determinação exceto aquele de ser para os
homens. Consequentemente, para Lutero, a linguagem da teologia
consistia simplesmente na descrição de uma pessoa histórica que es­
gota a auto-determinação de Deus: Jesus Cristo. “Ele constitui a deci­
são”, ou seja, a auto-determinação “de Deus, ante a qual e fora da
qual Deus não pode fazer quaisquer outras escolhas”, comenta Barth.
Ele "deve ser entendido verdadeiramente como o começo de todos os
caminhos e obras de Deus”. (Karl Barth, Church dogmatics, 11/2, pp. 94,
120.) Assim, na linguagem da comunidade de fé a respeito de Deus
temos a convergência da história, do messianismo e do humanismo. A
linguagem é histórica, descrevendo os eventos que historicamente são

150
portadores da libertação humana. E são portadores dessa libertação,
entretanto, não somente pelos poderes do homem, mas pelo poder de
Deus, que se determina a ser tão-só para o homem por meio da graça
do Messias. Determinado pela liberdade de Deus para o homem e pa­
ra a história, o ser humano encontra a possibilidade de viver livre, na e
para a história. O messianismo consiste, então, na pressuposição do
humanismo. Voltando a Lutero: somente no contexto desse Deus que
se mostra totalmente livre para o homem podemos falar da liberdade
do cristão para com a vida. Todavia, não se deve esquecer que a lin­
guagem da comunidade de fé a respeito de Jesus brota da experiência
histórica daquela atividade messiânica que torna o homem livre. É
neste contexto que Jesus deve ser entendido, como o poder e a norma
da política histórica de Deus para a libertação humana. Assim é que,
ao falar de Jesus, estamos falando sobre a história, sobre uma perma­
nente política de graça e, consequentemente, sobre o triunfo do huma­
no. Indicamos que o messianismo humanista sustenta-se ou cai junto
com sua crença nos poderes transcendentes do homem como sendo
os únicos poderes disponíveis para a libertação humana. Além do
mais, observamos que, devido à domesticação da consciência e ao
poder das estruturas que mantêm o presente cativo, o dilema do mes­
sianismo humanista, hoje, é a história sem esperança, realismo junto
ao cinismo do desespero, de um lado; de outro, a esperança sem his­
tória, romantismo em detrimento de uma avaliação realista da situação
histórica atual. O humanismo messiânico rejeita ambas as alternativas:
nunca a esperança sem história, nem a história sem a esperança. Ele
permanece realista sem desespero, e esperançoso sem ser romântico.
Toma possível ao homem continuar a ser humano na história, sem
perder a esperança, na expectativa de que a política messiânica de
Deus irá trazer um novo futuro e uma nova esperança para o ser hu­
mano e para a história.
CAPITULO QUATRO

A DIALÉTICA DA LIBERDADE

O messianismo humanista e o humanismo messiânico são am­


bos dominados pelo amor e pela visão da libertação humana. No en­
tanto, a liberdade ainda não é histórica, não pode ser encontrada no
presente como algo real. Existe agora apenas como projeto do desejo.
Por conseguinte, só pode ser expressa através da linguagem da espe­
rança, num universo de discurso que trata não do real na história, mas
daquilo que se mostra possível na história. Desta forma, para ambos,
as alternativas “esperança sem história e história sem esperança” são
igualmente abomináveis, pois significam ser a libertação humana im­
possível. Se tais alternativas fossem aceitáveis, o projeto de libertação
humana - juntamente com o messianismo humanista e o humanismo
messiânico - não teria sentido, já que a linguagem da libertação hu­
mana somente se mostra significante ao se referir a um projeto que
nasce da história e que nela é possível. Em outras palavras: a espe­
rança tem de ser a linguagem do possível, se quiser moldar e determi­
nar a ética enquanto ciência e atividade que tem por objetivo tornar a
esperança um fato histórico. Em decorrência, a esperança não pode
ser confundida com fantasia ou ilusão, pois se deriva da história e en­
trevê, a partir da experiência do passado, aquilo que é possível para a
história. Ela consiste na extrapolação, para o futuro, da experiência his­
tórica humana com as políticas de libertação do passado. Na esperan­
ça a razão não desempenha a função de descrever aquilo “que é". Ela
não mais “se conforma com este mundo”, mas mostra-se livre para a
crítica daquilo "que é” , em favor do que poderia ser. Conseqüentemen-

153
te, “apenas a esperança deve ser chamada de ‘realista’", observa Mol-
tmann, “pois somente ela considera seriamente as possibilidades que
habitam o real. A esperança não toma as coisas como se fossem iner­
tes, mas sim como progredindo, movendo-se com possibilidades de
mudanças... [Assim, a esperança constitui] uma maneira realista de se
perceber o alcance de nossas reais possibilidades”. (J. Moltmann,
Theology of hope, p. 25.) A razão, quando dominada pela esperança,
vê o real através da experiência com a atividade libertadora da liber­
dade no mundo, e a vê como uma política que “dá vida aos mortos e
chama à existência as coisas que não existem”. (Rom. 4:17) O real é
aquilo que, por meio da liberdade, pode vir a ser. Para a razão sem
esperança o real consiste na realidade bruta daquilo “que é”. Neste
caso, a razão não dá lugar para a atividade que tem por meta a su-
plantação do caráter inumano daquilo “que é", de forma a criar uma
realidade nova e mais humana. A esperança, consequentemente, ex­
pressa aquilo que é possível para a história e, assim, o que pode ser
tornado histórico através da atividade da liberdade, somente na medi­
da em que esta se derive e seja uma extrapolação do movimento obje­
tivo da política de libertação humana, tal como experimentada na his­
tória. Em outros termos: não basta dizer-se que a liberdade abre cami­
nho na história em direção ao futuro: a esperança emerge apenas
quando somos capazes de ver como a liberdade se movimenta neste
seu caminho. Somente assim ela pode servir à ética. Somente assim
consiste numa maneira realista de se perceber a história.

Por amor à esperança e à libertação humana, portanto, é impor­


tante que se desmascarem as pseudo-esperanças, as visões do futuro
não-derivadas de uma leitura do movimento objetivo da política da li­
berdade na história. As visões do futuro não-obtidas a partir da história
ou que não tomem o movimento da liberdade por base, não podem ser
chamadas de esperança: constituem formas de alienação, ilusões que
não moldam a história, pois não se relacionam com o modo de atua­
ção da liberdade no mundo. Esta é uma das razões pelas quais o
messianismo humanista polemiza com a religião: esta oferece ao ho­
mem uma esperança que não se deriva da história, uma esperança
que paira sobre e para além dela, sem estar mediada pela atividade
histórica da liberdade. Por não ser obtida a partir da história, tal espe­
rança não aponta para aquilo que é historicamente possível. Ao invés

154
de fazer o homem livre para a história, arranca-o dela. A esperança
aqui seria apenas uma compensação para a impotência da liberdade,
e uma expressão do desespero humano quanto às possibilidades da
história. Seria um produto da incapacidade da subjetividade humana
para chegar a um acordo com suas próprias frustrações, e não o resul­
tado de sua experiência com o movimento libertador objetivo da liber­
dade.
O messianismo humanista e o humanismo messiânico também
polemizam com a idéia de progresso e com a esperança que tal idéia
implica. Isso pode soar estranho, pois parece não haver esperança
mais fundada em fatos históricos e mais fiel ao que é possível para a
história do que aquela apresentada pela idéia de progresso. A idéia
moderna de progresso constitui o resultado de uma extrapolação da
experiência e do surgimento da razão na história, tal como o homem
do lluminismo a entendeu. A humanidade havia alcançado um estágio
em que a razão finalmente se desembaraçara do irracional e do instin­
tivo. Livre do irracional, acreditava-se, a razão haveria de ser senhora
da história. Lá estava o futuro do homem, feito um bloco de mármore,
esperando adquirir uma forma de acordo com o que a razão acreditas­
se ser correto. A partir da experiência histórica de libertação da razão,
o ser humano voltou então os seus olhos para o futuro; sendo capaz
de vislumbrar um novo mundo, possível de ser criado. E verdade que
esse otimismo ingênuo foi, em grande medida, destruído pelas expe­
riências históricas do nosso século. Porém, não completamente, pois
agora (1967), como nunca anteriormente, o mesmo espírito otimista
quanto a tudo o que se refere ao progresso, incorporou-se à razão tec­
nológica, sob a forma de um messianismo da tecnologia. Do ponto de
vista desse messianismo o mundo está totalmente aberto diante do
homem, esperando simplesmente que a “técnica" torne suas esperan­
ças em realidades históricas. O messianismo da tecnologia não pode
afirmar que não detém quaisquer “conceitos que possam transpor o
abismo entre o presente e o futuro". Ele sabe como fazê-lo. A escravi­
dão é vencida pelo “know-how”, pela ciência.
O problema com o messianismo da tecnologia e com a idéia de
progresso, segundo a perspectiva da experiência histórica do messia­
nismo humanista e do humanismo messiânico, consiste em que a ra­
cionalidade operativa da tecnologia não se deriva da experiência do

155
movimento libertador da liberdade na história, e sim da racionalidade
da natureza. Ele dá lugar para o quantitativamente diferente, mas não
para o qualitativamente novo. Constitui uma racionalidade que depen­
de de mudanças quantitativas para sobreviver, mas que perece se
ocorrerem mudanças qualitativas. O progresso - ou o desenvolvimento
econômico enquanto criação da tecnologia - , assim, tornar-se-ia um
tipo diferente de ópio, que evitaria mudanças qualitativas criadas pela
liberdade, liberdade que os prodígios e o poder do fator quantitativo se
encarregam de domesticar. E a liberdade é domesticada, deste modo,
por meio de sua destruição. Tal progresso, portanto, faria a esfera da­
quilo que é possível para a história reduzir-se ao que é permitido pelo
sistema tecnológico. Sendo esta visão da esperança não obtida a par­
tir da história da liberdade, e sim do paradigma da natureza, a história,
enquanto história da liberdade, chega ao seu final.
A esperança quanto à libertação humana, quanto ao qualitativa­
mente novo, tem de ser filha da liberdade e somente pode ser conce­
bida quando se descobre como, no passado, a liberdade mediou para
a história o novo e o libertador.
O humanismo messiânico e o messianismo humanista, por con­
seguinte, não podem aceitar qualquer tipo de esperança, exceto
aquela concretamente obtida a partir da visão do “como” da liberdade
na história, ou seja, da visão de como ela é capaz de vencer o velho e
escravizante, dando lugar ao novo e libertador. E a experiência históri­
ca de ambos os movimentos indica uma coisa: a liberdade sempre cria
o novo na história através de um processo dialético. O novo não é ob­
tido diretamente: o velho resiste ao novo e a ele se opõe. Em conse­
quência, o Sim que a liberdade endereça ao novo torna-se histórico
tão-só através e para além do Não com o qual ela confronta, resiste e
sobrepuja o poder do velho que pretende se perpetuar, abortando o
novo. Nietzsche captou o movimento da dialética da libertação na pa­
rábola das três metamorfoses do espírito. (Cf. Nietzsche, Thus spoke
Zarathustra, em W. Kaufmann, ed., The portable Nietzsche, p. 137.) Na
primeira fase, o espírito aparece como um camelo: a besta da servidão
que deseja carga em seu lombo. Ele não sabe dizer "Não”. Está sub­
merso naquilo que é, reconciliado com ele e por ele domesticado. To­
ma o estabelecido sobre si e o carrega. Constitui a consciência não-li-
berta, oprimida, e que se faz una com o mundo que a submerge. A úni­

156
ca palavra que tal consciência se mostra capaz de dizer é “Sim”. Mas
então o espírito converte-se num leão: surge a Liberdade. O leão é a
consciência que aprendeu a dizer “Não” ao senhor que o mantém cati­
vo. Quem é o seu senhor? É o grande dragão "Tu Deves", que se pos­
ta no caminho da liberdade, a reluzir como ouro: um animal recoberto
de escamas “Tu Deves”. “Todos os valores de todas as coisas brilham
em mim”, diz ele. “Todos os valores já foram criados, e eu criei todos
os valores.” Por que o leão se faz necessário? Para a criação da liber­
dade, pois esta não pode existir sem a resistência do Não ao poder
que sustenta o passado, como se este fosse a suprema realidade. O
velho precisa ser destruído, o dragão tem de ser morto, pois de outra
maneira o novo não poderá viver. Ao confrontar o poder do velho, a li­
berdade assume a forma de negação. O leão não é, porém, a expres­
são final da liberdade. O espírito transforma-se depois numa criança.
“ Por que o leão-predador deve se tornar uma criança?", pergunta
Nietzsche. "A criança é inocência e esquecimento, constitui um novo
começo, um jogo, um moto-contínuo, um primeiro movimento, um sa­
grado ‘Sim’... Para o jogo da criação... um ‘Sim’ sagrado é necessário.”
(ibid., p. 139.) Uma vez que o velho esteja desprovido de seu poder pa­
ra escravizar e paralisar, o mundo se abre à experimentação, à criação
do novo amanhã. A liberdade, da mesma forma, não consiste num
movimento que emerge das (ou no interior das) escravidões do siste­
ma estabelecido. Ela consiste, sim, na inserção de uma nova realidade
na história, de forma que o presente fechado se abra ao novo.
A possibilidade de libertação e a forma da esperança se derivam,
assim, da percepção do caráter conflitivo do processo pelo qual a li­
berdade abre caminho rumo ao novo. O movimento pode ser resumido
em três momentos:
Primeiro: a realidade do velho, enquanto poder empregado para a
auto-preservação, empregado contra o novo, sob a forma de violência.
Segundo: a liberdade enquanto poder contra a violência da pre­
servação, enquanto negação do negativo.
Terceiro: a liberdade como poder para a criação do novo, como
poder para a experimentação, como afirmação.
O messianismo humanista e o humanismo messiânico, desta
forma, concordam não apenas em sua paixão e visão comum da liber­

157
tação humana, mas também quanto às dinâmicas pelas quais a liber­
dade introduz essa esperança na história. De novo o que os separa é a
experiência histórica básica que os formou. As esperanças de ambos,
por conseguinte, provêm de avaliações diferentes daquilo que é possí­
vel à liberdade e, portanto, daquilo que é possível à história.

O messianismo humanista vê a dialética da liberdade como in­


trínseca à dialética das relações materiais da sociedade e exclusiva­
mente determinada por ela. Consequentemente, apenas na medida
em que o homem sofra as contradições das relações materiais e cons­
cientemente se tome sabedor dessas contradições, pode emergir como
um poder que nega, a fim de vencer. Nesse contexto, torna-se dotado
de uma consciência livre e comprometida com o projeto de transformar
sua esperança de libertação em realidade histórica. Mostra-se um re­
volucionário. Assim, a libertação humana consiste numa criação levada
a cabo por meio apenas dos poderes do homem, e a concretização da
esperança na história depende exclusivamente da determinação de
sua vontade. Contudo, a atual sociedade tecnológica confronta o ser
humano com dois novos elementos. Primeiro, com a capacidade dessa
sociedade para vencer suas contradições materiais, se não de forma
real, ao menos virtual. Ela exibe, em decorrência, poder suficiente para
eliminar a oposição, para eliminar a dor das contradições. Os bens que
distribui funcionam como ópio do povo. Assim, tal sociedade torna a
consciência incapaz de dizer “ Não". E, como segundo elemento com o
qual o homem se defronta, o fato de ter concentrado nas mãos dos
senhores uma quantidade maciça de poder, de forma que eles agora
parecem capazes de destruir os poderes negativos da sociedade. O
dragão devora o leão. A esperança do messianismo humanista se de­
fronta então com o perigo do colapso. O messianismo humanista se
confronta assim com opções que se mostram negações de si mesmo:
a esperança sem história ou a história sem esperança. De posse ape­
nas dos poderes humanos o homem espera sem confiança: “nada in­
dica que o fim será bom.” Não há promessa de que a liberdade obte­
nha sucesso em seu doloroso movimento dialético rumo à libertação
humana. Neste contexto, a experiência histórica do humanismo mes­
siânico com a dialética da liberdade oferece uma avaliação diferente
daquilo que se mostra possível para a história, fornecendo assim uma
base diferente para a esperança da libertação humana.

158
I - O Negativo na História: a Política que Faz Abortar o Novo
Amanhã

A linguagem da libertação humana tem suas raízes no presente.


Ela fala a partir das dores de um presente que quer se tornar liberto,
mas ao qual não é permitida a transformação de seu projeto em histó­
ria. Desta forma, o universo de discurso de tal linguagem encontra-se
determinado, por um lado, pela liberdade da consciência que, existen­
cialmente, sente as contradições inumanas do presente e espera por
um novo amanhã no qual elas serão superadas, e, por outro, pela rea­
lidade da frustração e do desespero criados pelas condições objetivas
do poder na história, que aborta as tentativas de libertação humana.
Essa realidade histórica requer uma investigação teológica que nasça
da história, nela permaneça inserida e se lhe mostre fiel, sendo ainda
erigida em favor da libertação humana. A tarefa consiste simplesmente
em se examinar esse fenômeno histórico, qual seja, o exercício do po­
der político que impossibilita a libertação humana, e examiná-lo a par­
tir da perspectiva da experiência histórica da comunidade de fé, visan­
do a criação de um novo amanhã para o ser humano que hoje se man­
tém cativo.
Indicamos anteriormente que a linguagem teológica da comuni­
dade de fé nascera de sua experiência com eventos libertadores que,
vistos em conjunto, podem ser descritos como a história da liberdade.
A história de tal comunidade, porém, apresentava um novo dado, pa­
ralelo à história da liberdade: a história do cativeiro.1 O homem prova­
ra, historicamente, que não era capaz de viver feito um surfista sobre
as ondas dessa dinâmica política que empurra em direção ao futuro. O
que ele fazia não expressava sua liberdade para o futuro, mas antes o
seu medo dele. Suas ações eram tentativas de fugir da liberdade, de
escapar dos horizontes abertos que conduziam a um futuro incerto.
Portanto, a linguagem descritiva daquilo que o homem faz demonstra
a sua rebelião, a sua recusa em agir em resposta à dinâmica liberta-1

1. A antropologia bíblica, assim como a sua linguagem teológica, deriva-se, portanto,


de latos históricos. A resposta à questão: “ o que é o homem?" não é encontrada por meio da
análise do ser humano enquanto uma entidade fechada, e sim a partir daquilo que o homem
(az na história. Em decorrência, a antropologia consiste numa linguagem que descreve a his-
toricidade do homem, isto é, aquilo que ele laz na história.

159
dora da política de Deus. Tal linguagem aponta a sua queda da histó­
ria para a natureza. Os povos que se libertaram, que experienciaram as
alegres possibilidades de uma vida voltada para o futuro, acabaram
trocando a liberdade pela segurança, a abertura dos horizontes históri­
cos pelo aconchego no ventre da natureza. Uma estranha metamorfo­
se então ocorreu: a “noiva” converteu-se numa "meretriz"; a “videira de
semente boa” tomou-se degenerada e selvagem; o filho, objeto do
amor de Deus, curvou-se aos deuses da natureza, transformando-se
num asno selvagem, numa jovem camela no cio. Na jornada rumo ao
futuro ouve-se então a verdadeira voz do homem: são preferíveis as
panelas de carne do Egito ao perigo de uma viagem em direção à terra
prometida. (Ex. 16:3. Veja-se também Jer. 2:2, 20, 21, 24 e Os. 9:1,
11:1.) Tal processo de degeneração da história para a natureza mos­
trou-se tão irresistível que acabou popularizado através do mito da
queda.2 Colocado no contexto provisório e finito da vida humana, o
homem teme o futuro. Teme a vida. É incapaz de agir com fé, de atuar
com desprendimento e confiança. O futuro constitui a possibilidade da
morte. No contexto da confiança em Deus o homem seria capaz de
atuar com liberdade e, por conseguinte, estaria livre para a vida. Po­
rém, como ele não confia, a realidade da insegurança e da morte tor­
nam-se os fatores, os poderes que criam o fato de seu comportamen­
to. Não pode ter esperança, pois a esperança consiste em estar-se li­
vre para o futuro. Mas o futuro que este homem vê não é amistoso e
convidativo, e sim ameaçador. Ele precisa “desaprender a esperança".
(Hoekendijk) Em decorrência, sua atividade toma-se uma luta frenética
“para abortar o futuro... e para preservar, para o futuro, aquilo que exis­
te agora.” (R. Bultmann, Kerygma and myth, p. 242.) Porque o homem
não pode confiar no amor libertador de Deus, ele se encontra agora
com a titânica tarefa de evitar um futuro sobre o qual não tem controle,
através da absolutização de seu passado e de seu presente, e promo­
vendo aquilo que faz no fundamento último de sua própria humanização.3

2. Parece-me que este mito, no contexto da experiência radicalmente histórica da co­


munidade de fé, deve ser entendido como uma generalização simbólióa da experiência históri­
ca. Constitui uma tentativa de expressar e interpretar o que ocorrera na história.

3. R. Niebuhr observa que "por isso a ortodoxia cristã tem consistentemente detinido
a falta de fé como a raiz do pecado, ou como o pecado que prececje o orgulho. Lutero, em
conformidade com a tradição cristã geral e citando Sirac. 10:14, escreveu em seu Tratado s »

160
Por mostrar-se incapaz de ser livre para o futuro, e devido à sua falta
de confiança, quer libertar-se da história. Quer ser como Deus, ser o
criador de sua própria história, o único centro determinante das condi­
ções de humanização. Sua falta de fé o conduz então ao orgulho da
auto-afirmação e ele se torna o seu próprio messias. Sua subjetivida­
de, dominada pelo medo do futuro, projeta-se assim em direção ao
mundo do tempo e do espaço. Torna-se história. Cria a história. Mas a
história assim criada carrega a marca da não-liberdade. É filha do po­
der do orgulho, criada à imagem e semelhança desse homem que te­
me a liberdade e, consequentemente, carece de esperança.
Como apontou Agostinho, temos uma nova realidade política: a
“cidade do homem", que é a contrapartida objetiva da decisão humana
de não se determinar para a história, para os outros, e sim, segundo
seu amor sui**, para si mesmo. A história constitui o campo de sua au­
to-afirmação. As estruturas objetivas por ele criadas no mundo, então,
são projeções de seu próprio medo e de seu cativeiro e, desta manei­
ra, pretendem constituir defesas contra a liberdade e o futuro. Em vez
de serem o ponto de partida para a experimentação, para a liberdade e
o futuro, passam a ser o fim da experimentação. A tendência das insti­
tuições humanas, por conseguinte, é deixar para trás a abertura de on­
de partiram, tornando-se fechadas, congeladas, terminadas, “ontocráti-
cas". (van Leeuwen)4 Parece-me que esse processo de queda da histó­

bre a liberdade cristã: 'O homem sábio afirmou: o princípio de Iodos os pecados consiste em
afastar-se de Deus e em não confiar Nele’." (The nature and destiny ofman, p. 183.)
* Em latim, no original: "amor a si". (N. do T.)
4. Tal processo expressou-se de várias maneiras na história das comunidades bíbli­
cas. Por um lado, a arca, que uma vez foi símbolo do Deus dinâmico que olhava para o futuro,
acabou estacionando no templo. Buber observa que nesta "relação polar entre a arca (o mó­
vel) e o templo (o estacionário) encontramos a expressão clássica das tensões entre o Deus
histórico livre e as deidades acorrentadas às coisas naturais". (M. Buber, The prophetic faith,
p. 83.) Parece que o mesmo processo esteve envolvido na mudança das instituições políticas
de Israel. A busca de um rei pelo povo (1 Sam. 8:5,20) soava ao profeta como uma rejeição da
experiência do Êxodo enquanto normaiiva de suas vidas agora estabilizadas e como uma op­
ção pelos caminhos das "nações", ou seja, pelos caminhos da natureza. (Cf. 1 Sam. 8:7-8.) O
rei significaria o fim do caráter aberto de sua sociedade, que passaria então a ser dominada
pela "organização" e pelos requisitos de defesa. (8:11-18.) A lei e a liturgia também sofreram
uma metamorfose semelhante. Se a lei constituía um tipo de disciplina no caminho rumo ao
futuro, a liturgia pretendia forçar Israel a reviver os eventos históricos que o tornaram livre.
Contudo, tanto a lei quanto a liturgia tornaram-se petrificadas e passaram a ter para Israel a

161
ria para a natureza é bastante instrutivo para o nosso entendimento
daquilo que aconteceu com a tecnologia. Primeiramente a tecnologia
consistia numa ferramenta, um instrumento colocado na mão do ho­
mem para a construção de um mundo novo e diferente. Era um ins­
trumento revolucionário, portador do futuro. Todavia, ele se transfor­
mou num sistema: a sociedade tecnológica. E tal transição, de instru­
mento nas mãos da liberdade humana para um sistema que agora
provê as regras a serem obedecidas pela liberdade, explica porque
aquilo que ontem era ferramenta de libertação hoje se tornou criador
do homem unidimensional e de todos os tipos de exploração, opressão
e repressão internacionais.
Agostinho chamou ao amor pelo poder e a esse sistema cons­
truído pelo amor sui de “formas particulares de bem". Elas seduzem o
homem na medida em que são capazes de oferecer-lhe algo de bom.
Os “filhos das trevas” exibem uma notável capacidade para produzir
“grandes" ou “utópicas sociedades”. Quem poderia sonhar com algo ou
com algum sistema que pudesse prometer e oferecer mais do que o
sistema tecnológico faz? Examinado a partir do ponto de vista de seu
desempenho quantitativo, as formas particulares de bem parecem in­
superáveis em sua produção de mercadorias. A natureza parece triun­
far sobre a história. A fim de chegar-se a entender o verdadeiro signifi­
cado dessas formas particulares de bem não se pode, no entanto,
permitir que sejamos colocados sob o fascínio da produção e distribui­
ção de suas mercadorias. Deve-se prestar atenção ao fato de elas
constituírem formas particulares de bem. Seu próprio bem é o seu úni­
co interesse. O que determina todas as decisões é o interesse nacio­
nal ou da classe. Os interesses do grupo ou da nação tomam-se o cri­
tério último para o julgamento de tudo o que acontece no mundo. Rei-
nhold Niebuhr, em seu Moral man and immoral society (O homem mo­
ral e a sociedade imoral), indicou que grupos e nações não agem a
partir do amor e da justiça, mas fundamentalmente em termos de
egoísmo. A justiça põe-se assim a serviço dos interesses econômicos,
militares e políticos da nação.

função que tinham os rituais para as sociedades primitivas, isto é, uma série de regras e ações
que têm de ser obedecidas ou desempenhadas a fim de se preservar a sociedade livre do novo
e do inesperado.

162
No que consiste o economicamente justo e verdadeiro? Naquilo
que torna o senhor mais rico e as nações por ele exploradas mais de­
pendentes e dominadas. No que consiste o politicamente justo e ver­
dadeiro? No uso do poder para destruir tudo o que seja “perigoso à
paz e à segurança” do senhor, tudo o que constitua "manifestação de
uma disposição inamistosa contra ele”, tudo o que "ponha em perigo a
sua paz e felicidade”.5 6 O “princípio da auto-preservação”, do auto-en-
grandecimento e da expansão são as leis do senhor, não importa o
quanto ele tente justificar-se. “As atitudes morais dos grupos dominan­
tes e privilegiados”, nota R. Niebuhr, “caracterizam-se pelo auto-enga-
no e hipocrisia universais... A inteligência dos grupos privilegiados é
costumeiramente aplicada à tarefa de inventar provas para a teoria
que afirma que os valores universais brotam dos privilégios especiais
que desfrutam e são por eles servidos". (Niebuhr, ob. cit., p. 117.) Foi
Agostinho quem primeiro percebeu que aquilo a que os grupos políti­
cos dominantes chamam de direito ou legalidade não é justiça, mas
antes a transformação de sua vontade de poder e das normas egoís­
tas e saqueadoras de seu comportamento numa lei que é imposta à
força àqueles por eles dominados. A lei, consequentemente, não é
uma expressão do divino mundo dos valores eternos, como acredita­
vam os gregos e romanos, mas sim uma criação histórica da política
da cidade do homem, dominada pelo am orsui, pelo orgulho e pelo de­
sejo de poder.6
Elevando seu desejo de poder ao estatuto de lei, a nação ou
classe se absolutiza. “Tu és o meu Deus”. Esta se torna a confissão de
fé que o homem que teme a liberdade dirige às estruturas políticas
e legais criadas pelo seu cativeiro. Mediante tal pretensão, “o orgulho

5. Esta é uma paráfrase da justificativa de Reuben Clark para a Doutrina Monroe. Veja-
se R.A. Goldwin, ed., Readings in american (oreign policy, p. 193.

6. "A justiça sendo roubada, no que consistem então os reinados senão em grandes
bandos de ladrões? Pois o que são os bandos de ladrões em si mesmos, senão pequenos rei­
nados? Eles próprios são compostos por homens; são regidos pela autoridade de um príncipe
e ligados pelo pacto da conspiração; o motim é dividido segundo um acordo prévio. Se através
da permissão dos derrotados esse mal cresce ao ponto de se apoderar de lugares, fundar vi­
las, tomar posse de cidades e subjugar povos, ele assume mais plenamente o nome de reina­
do, pois a realidade agora é-lhe manifestamente conferida não pela remoção da cobiça, mas
pela adição da impunidade". (Agostinho, The City of God, IV;4. Para a discussão da relação
entre a justiça e a República Romana, veja-se XIX:21.)

163
e a auto-afirmação humanas alcançam sua forma suprema e procuram
romper todos os limites da finitude." (R. Niebuhr, The nature and des-
tiny o f man, p. 212.) A classe e a nação passam então a se comportar
como se fossem a corporificação da verdade e da justiça e, por isso,
destinadas à eternidade. Consequentemente, sua prioridade consiste
na auto-preservação, por meio da destruição dos poderes que amea­
çam seu projeto de auto-perpetuação. Como assinala Niebuhr, sua
primeira preocupação é com a preservação de seu poder - estabilida­
de - e não com a justiça. O medo da liberdade, que havia criado estru­
turas para a defesa contra a ameaça do futuro, assume agora uma
forma diferente: ele se utiliza das estruturas criadas para se afirmar
como senhor daqueles não-incluídos nos limites da sua forma particu­
lar de bem, da qual ele constitui o centro. O mundo do homem livre dá
lugar ao mundo dos senhores e escravos. O senhor, como Berdyaev
assinalou, não é livre. Ele teme o futuro e, por isso, deseja dominar.
Devido ao medo, não quer ver seu companheiro livre. A liberdade de
outro homem constitui uma ameaça ao seu próprio desejo de poder. A
“ordem da vida na qual todas as coisas criadas são instrumentos da
possibilidade e do poder dado ao homem - através da comunhão com
Deus - para ser ele mesmo através de sua relação com seu próximo,
foi invertida pelo desejo de poder, pelo qual o homem subjuga o seu
ambiente e o seu irmão", assinala Lehmann (P. Lehmann, Ethics in a
christian context, p. 97.) O poder do homem não é mais uma expres­
são da liberdade, e sim uma projeção de sua ansiedade em se guardar
para o futuro, mesmo se isso for algo que requeira negar-se ao próxi­
mo o direito ao próprio futuro. O poder aqui consiste numa expressão
não do amor e da justiça, mas do orgulho que brota do homem cativo.
A “arrogância do poder” (para utilizar-se um termo do senador William
Fullbright) transforma então o próximo, seja ele um ser humano ou
uma nação, num meio para os fins que o amor sui se coloca, como
único centro do mundo.

O medo do futuro faz, então, nascer a violência. O que é a vio­


lência? Facilmente se compreende que duas respostas completamente
diferentes podem ser dadas a esta questão. Do ponto de vista do ho­
mem temeroso do futuro e que, portanto, construiu estruturas para de­
fender-se dele, a violência consiste em tudo aquilo que perturba ou
ameaça o mundo erigido pelo seu medo. Tudo o que tende a introduzir

164
o novo, que se encaminha para uma mudança, tudo o que se opõe às
estruturas que se pretendem destinadas à eternidade, constitui uma
violência. O poder exercido por este homem, contra outros homens ou
nações, não é violência, pois é exercido com o intuito de preservar-se.
E já que sua única preocupação é a sua auto-preservação, as dores e
sofrimentos dos outros não entram em seus cáculos de como utilizar o
seu poder.
Do ponto de vista do homem livre para o futuro, a violência con­
siste numa realidade totalmente diferente. Ela é tudo aquilo que lhe
nega um futuro, tudo o que aborta seu projeto de criar um novo ama­
nhã; é o poder que o mantém prisioneiro das estruturas sem futuro de
um mundo sem futuro. A violência consiste no poder que destrói o fu
turo, que procura fechar a consciência humana ao futuro e o futuro à
consciência humana. A violência é o poder que nega ao homem a
possibilidade de exercer sua liberdade para si próprio, tornando-a uma
função do projeto do senhor. Ele deseja construir um novo futuro. Mas,
como seu senhor o domina, tudo o que ele faz, em vez de criar o futu­
ro pelo qual anseia, torna mais tirânica a presença de seu senhor. As­
sim, ele torna-se impotente para criar a sua história. Transforma-se
num objeto que não cria, e, sim, reage aos estímulos que lhe chegam
de seu senhor.
A situação das nações do Terceiro Mundo, submetidas à domi­
nação colonial ou neo-colonial dos poderes ocidentais opulentos, é
uma dolorosa ilustração do que produz a violência. Geralmente se
pensa que a violência do colonialismo consiste na exploração e resulta
na pobreza e no subdesenvolvimento. Isso é verdade, mas não toda a
verdade. A forma mais fundamental de violência do colonialismo está
em que ela rouba o futuro das nações a ele submetidas. A tais nações
foi e é negada a liberdade para planejar o seu próprio futuro. Obrigou-
se-lhes a funcionar como sub-sistemas das “formas particulares de
bem" coloniais, transformando-as, em decorrência, no proletariado
mundial. As vidas de suas populações, ao invés de serem planejadas
segundo exigências humanas, foram forçadas a reagir reflexamente às
exigências da economia dos senhores. O futuro era monopólio do se­
nhor, e nenhum futuro que ameaçasse o seu projeto seria permitido.
Hoje, os senhores mostram-se dispostos a fazer concessões.
Permitem que os negros se “ integrem” e participem dos bens produzi­

165
dos no mundo do senhor. Permitem que as nações pobres participem
de alguns dos frutos - as sobras - da economia das grandes socieda­
des. Estão se permitindo até mesmo oferecer programas de ajuda para
o desenvolvimento econômico. Todas essas concessões, entretanto,
são feitas com uma condição bem definida: os escravos devem per­
manecer escravos, não podendo se libertar nem dizer não aos senho­
res. Os senhores são capazes de melhorar as condições dos escravos,
dando-lhes mais da “natureza”; porém se recusam a dar-lhes liberdade.
As relações econômicas do comércio internacional entre países ricos e
pobres indicam que estes últimos estão se tornando mais e mais de­
pendentes, mais e mais dominados pela violência da destruição do fu­
turo. O Egito promete panelas mais fartas aos escravos, contanto que
eles esqueçam seu projeto de libertação.
A violência das formas particulares de bem, perpetrada em bene­
fício da auto-perpetuação, triunfa na medida em que obtém sucesso
em tornar o futuro fechado à consciência e a consciência fechada ao
futuro. Ao celebrar seu triunfo, então, uma coisa estranha ocorre: passa
a ser quase impossível encontrar-se a violência, pois seu triunfo total
adquire a forma da paz total. Os homens e nações temerosos do futu­
ro não desejam mais do que a paz, entendendo-a segundo os seus
próprios termos: a paz dos escravos que desistiram da esperança. Sim,
existe paz na desesperança; quando um homem perde a esperança,
não vive mais, não pode mais projetar. Sua razão não possui aquelas
condições sob as quais pode-se pensar num novo amanhã, nem sua
vontade tem a determinação para tentar aquilo que a esperança aban­
donou. A história chega ao fim. O senhor permanece senhor: o escra­
vo, escravo. Há paz.
Esta é a política do medo do futuro, a política da preservação do
ontem e do aborto do amanhã. E já indicou-se aqui que Deus é o no­
me que se dá à presença do futuro. A presença do passado e a do fu­
turo não podem coexistir. A encarnação, por conseguinte, possui as
marcas de confronto. “O encontro da graça divina e do pecado humano
tem a natureza de uma colisão”, observa G. Hendry. (The gospel of the
incarnation, p. 142.) Dessa perspectiva, a cruz assume um caráter
eminentemente político. Ela não se coloca simplesmente como a tra­
gédia da morte ou da finitude, que são fenômenos naturais. Cristo não
morreu, simplesmente. “Os homens o mataram. Rejeitaram-no e o ma­

166
taram porque o odiaram." (ibid., p. 139.) A finitude e a morte, cat
rias da natureza, são colocadas aqui no contexto histórico da pol '
que destrói o futuro do homem. Cristo foi morto como subversivo,
denado como criminoso, como uma ameaça à ordem da socied
pelos poderes que representavam, por um lado, o ápice da lei e dí |
dem política, e, por outro, a lei e a piedade. Ele foi crucificado
Roma aeterna7, que estabeleceu a sua pax sobre a totalidade
oikoumene.** E a sua condenação foi buscada pela religião e del<
cebeu a aprovação. A lei e a ordem encaram a liberdade como i|
presença ameaçadora, como subversão de seu caráter sagrado e f
A lei e a ordem desejam fechar; a liberdade, abrir. A lei e a ordem <
rem preservar o velho; a liberdade, criar o novo. Portanto, a prese
do futuro mostra-se objeto de ódio, pois relativiza, dessacraliza, ji
e, finalmente, abole a supremacia e as pretensões messiânicas
poderes que dominam a ordem estabelecida. Quando a lei e a piec
matam a presença do futuro, revelam assim o que são: a violênci;
velho que destrói o novo, dando fim à história. Elas corporificam ;
nâmica da polítLa do Anticristo, aquele que quer matar o Messias,
tar a presença do futuro.
A história, desta maneira, não consiste num processo aberto
qual a consciência, livre para o futuro, encontra um futuro que se n
tra liberto para ela. Pelo contrário: o caminho está bloqueado pela i
tica da violência que torna a concretização da liberdade human?
história algo impossível.

II - A Negação do Negativo: o Deus que Sofre

A visão do caráter violento e repressivo da política que de


abortar o futuro, a fim de preservar um mundo de senhores e escra
leva-nos a uma conclusão que parece contraditória: os escravos
miseráveis da terra, os párias e marginais, aqueles que não estão <
tro mas sob as formas particulares de bem, são os que podem en
der a linguagem da esperança, da liberdade e da libertação. O escí

7. Cullmann sugere que "Jesus, como Barrabás, foi condenado pelos romanos, <
pelos judeus, de fato como um zelote." (Veja-se The State in the New Testament, p. 48.)
* Em grego, no original: "mundo habitável". (N. do T.)
é aquele que sofre na própria carne a destruição do futuro que as es­
truturas de dominação do senhor lhe impõem. Ele é aquele que co­
nhece a morte, pois em sua vida experimenta a morte da desesperan­
ça. Porque o seu presente é vivido no sofrimento da ausência de futuro,
o escravo é libertado para o risco de um novo futuro que promete vida.
Contra o desejo de poder do senhor, ele extrai de sua escravidão o de­
sejo de liberdade. Assim, em meio ao sofrimento e à impotência do
escravo, cujo futuro é roubado pelo seu amo, nascem a negação do
presente e a esperança do novo. Talvez por isso o Evangelho seja tão
cético quanto aos ricos e poderosos, a ponto de exclamar: quão difícil
é para um rico entrar no reino de Deus! O rico e o poderoso desejam
preservar o seu “agora”. O reino, ao contrário, consiste na presença do
futuro, a forçar os homens para fora de cada “agora", rumo a um novo
amanhã. Contudo, o sofrimento do escravo não consiste numa virtude.
Se assim fosse, o escravo encontraria a felicidade no ato de sofrer.
Não teria o direito de esperar suplantá-lo. O sofrimento constitui o pon­
to de partida para a dialética da libertação, que nega o velho e se es­
tende, na esperança, em direção ao novo. Tal processo mostra-se a
negação do negativo. Porque as estruturas que destroem o futuro fa­
zem o homem sofrer, fazendo dele um ser sem esperança, seu caráter
negativo e anti-humano é revelaao. E devido ao sofrimento humano, o
negativo é negado, rejeitado, no ato mesmo do sofrimento.

O messianismo humanista confia em que a consciência que so­


fre permanecerá negativa, protestando, como uma presença contraditó­
ria e subversiva. Obtém tal esperança a partir de sua certeza de que o
escravo nunca será domesticado por sua escravidão. Se o escravo ig­
norar a morte que mora em seu presente e for capaz de nele encontrar
alegria e felicidade, deixará de ser o poder libertador da história. Com
o escravo feliz a história da libertação chega ao fim, já que o seu de­
sejo de liberdade não mais se opõe ao desejo de poder do senhor. O
que horroriza, na sociedade tecnológica, é justamente isto: sua capaci­
dade para unificar os opostos, tornando o escravo grato a seu senhor
pelos bens que este lhe permitiu conseguir no cativeiro. O amo deixa
de ser um poder a que se deve resistir, tornando-se “doador" da vida
do escravo. Ao negro se permite obter os frutos da sociedade branca
que o tem feito sofrer. Às nações que têm estado sob o poder dos paí­
ses opulentos promete-se uma participação nos frutos das formas par-

168
liculares de bem, construídas pelo desejo de poder daqueles países.
Sua escravidão se transforma na origem da sua libertação, pois então
são dispensados da tarefa de construir seu próprio futuro, aceitando o
presente que os senhores prometem. Imerso nos bens da opulência, o
escravo encontra uma felicidade que o faz esquecer a miséria de sua
falta de futuro.
Por isso o humanismo messiânico se recusa a derivar sua espe­
rança da fidelidade do escravo ao protesto que pertence à sua condi­
ção de escravo. A história mostra que aqueles que foram escravos ne­
gativos uma vez e, portanto, portadores da liberdade, logo que a con­
quistam deixam-se obcecar pela preservação de seu presente, infec­
tando-se com o pecado de seus senhores: agora são eles os que de­
sejam monopolizar o futuro. Foi esse fenômeno que levou André Gide
a comentar que “não existe maior conservador do que um revolucioná­
rio no poder'’. E mais do que isso: o humanismo messiânico sabe, a
partir de sua experiência histórica, que o escravo frequentemente en­
contra a felicidade na escravidão. Sabe que o poder das estruturas
opressivas de dominação cria uma consciência oprimida que desa­
prende a esperança, que esquece o futuro, ao comer das panelas do
Egito. A estrutura de opressão, por conseguinte, é capaz de criar um
homem à sua imagem e semelhança, um homem cuja consciência
mostra-se tão encarcerada quanto a de seu senhor. Ele é o escravo
que não quer ser livre. Seu desejo de liberdade converte-se em desejo
de domesticação.
Portanto, a história da liberdade não pode se basear apenas nos
poderes do homem. Se existe uma história da liberdade que nega o
presente e, assim, cria a possibilidade de um novo amanhã, um histó­
ria dependente do poder da liberdade, que transcende a história e se
volta para ser na e pela história, isso se deve a este poder, Deus, que
não permite que o sofrimento da falta de futuro seja dissolvido no es­
quecimento proporcionado pela felicidade em sofrer. O escravo pode
esquecer o seu sofrimento, mas não Deus. Deus é o Deus sofredor, o
Deus que jamais permite que as dores da história sejam ignoradas e
curadas pelo poder hipnótico da política de preservação. Porque Deus,
como presença do futuro, é um Deus na história, e já que a sua espe­
rança na história é sempre resistida pelos poderes do velho, Deus é
um Deus que sofre. Não há teodicéia possível, nenhuma justificação

169
possível para aquilo que é, através de referências a Deus. Deus não é
uma explicação para as dores do mundo. Pelo contrário: consiste no
poder permanente que nega a justiça e o direito do sofrimento nc his­
tória, sendo ele próprio o Deus que sofre, permanecendo o Servo So­
fredor {doutos* - Fil. 2:7). Como pode a história ser explicada, como
pode o sofrimento ser justificado se Deus não o explica ou justifica?
Ele simplesmente sofre. "A Bíblia", comenta Bonhoeffer, "conduz [o
homem] a um Deus impotente e sofredor. [Ele] é fraco e impotente no
mundo, e esta é exatamente a maneira, a única maneira pela qual ele
pode estar conosco e nos ajudar." (D. Bonhoeffer, Letters and papers
from prison, pp. 219-220.) É só porque Deus participa da fraqueza e do
sofrimento do escravo que se esqueceu de sua impotência e da sua
dor, que pode haver para ele a esperança da libertação. Os sofrimen­
tos de Deus, então, constituem o fundamento da esperança para os
desesperados.

Portanto, Deus tem de ser encontrado não entre os poderosos,


mas entre os dominados, que sofrem, a quem um futuro não foi dado.
Nas palavras de Isaías, o poder de Deus se corporifica no Servo mais
humilde, mais fraco, mais oprimido. Ele “se parece com uma raiz ar­
rancada da terra seca, desfigurado além de toda semelhança humana."
Não possuía "nem forma, nem graça, nem beleza, pelas quais o dese­
jássemos". (Is. 52:14, 53:2) Não brilha com a glória do amanhã, mas
carrega a marca das dores de hoje. E não pode ser de outra maneira,
pois ele sofre com e para o povo que ama. É portador das aflições e
carrega as tristezas do homem (v.4). Como o escravo que está sob os
que têm poder, “ele foi oprimido”, afligido, como um cordeiro conduzi­
do ao matadouro (v.7). E não sofre devido a tendências masoquistas;
não há a glorificação do sofrimento como algo bom. Ele sofre por par­
ticipar das dores daqueles que são oprimidos e não têm esperança. É
a violência dos que detêm o poder que o torna o “Servo Sofredor”.
“Seu sofrimento tem um significado supra-pessoal" porque é "Deus
quem sofre com ele... para a redenção do mundo." (M. Friedmann,
Martin Buber, p. 225.) O Deus de quem fala a linguagem da comuni­
dade de fé, consequentemente, mostra uma parcialidade total pelos
pobres e oprimidos da Terra. (Ex. 22:25) Os sofrimentos dos pobres e
fracos constituem seus próprios sofrimentos. Em consequência, "não

* Em grego, no original: "servo” . (N. do T.)

170
julga [os homens] por sua iniquidade contra Ele, mas por sua iniqüida-
de contra os outros". (Buber, The prophetic faith, p. 97.) Os sofrimentos
dos oprimidos não são, desta forma, simplesmente sofrimentos huma­
nos, e sim de Deus. “Quando sois hostis uns aos outros, estais me
perseguindo. Quando tramais o mal uns contra os outros, atormentais-
me. Quando caluniais uns aos outros, negais-me. Cada vez que exilar­
des seus companheiros, junto exilais-me... Não sonheis que minha
fronte irradia raios de luz celestiais. A glória permanece acima. Minha
face é a do ser criado.” (M. Buber, citado por M. Friedmann, Martin Bu­
ber, p. 155.) A maneira poética de Buber expressar a visão bíblica da
identificação de Deus com o sofrimento humano soa como uma pará­
frase do mesmo motivo, na linguagem de Jesus:
“Tive fome e destes-me de comer;
tive sede e destes-me de beber;
estava nu e destes-me de vestir;
adoeci e visitastes-me;
estive na prisão e fostes ter comigo." (Mt. 25:35, 36)
À pergunta dos discípulos, que não se lembravam quando tudo
aquilo havia acontecido, a explicação de Jesus foi que “sempre que fi­
zestes isso a um desses meus irmãos pequeninos, a mim mesmo o fi­
zestes". (Mt. 25:40) O “eu" que é sujeito, na verdade, não está só.
Constitui a unidade “eu-eles", na qual a face do “eu" se parece com a
face do “eles". Tal identificação é intrínseca à historicidade de Deus. O
Deus que se volta para a história, ao mesmo tempo se decide a parti­
cipar dos sofrimentos humanos. E somente por isso pode ajudar. A
comunidade cristã, consequentemente, chega a identificar o Servo So­
fredor com o Messias: aquele que sofre os sofrimentos dos homens é
Aquele que tem a paixão, a visão e o poder de libertação humana. A
cruz, então, que consiste fundamentalmente no símbolo da falta de
esperança e de futuro criado pela ordem e a religião, passou a ser vis­
ta como o começo de uma nova possibilidade para a história. Se Deus
sofre com e para o homem, este compreende que a sua negação pes­
soal do negativo na história não constitui uma voz isolada. Deus nega
com seu próprio sofrimento.
Porque Deus sofre com o homem, negando o cativeiro do hoje, é
possível ter-se esperança quanto a um amanhã no qual o homem será
feito livre.

171
Mas o Deus sofredor sofre um outro tipo de sofrimento: ele sofre
também quando o escravo deveria sofrer, mas não o faz. A incapaci­
dade do escravo para sofrer é resultado de sua domesticação. Ele tor­
nou-se a-histórico, incapaz de sofrer, impotente para pensar no futuro
em que será livre. Está feliz devido à sua alienação: tornou-se incapaz
de sentir dor, quando sua situação histórica de escravidão é dolorosa.
Sua consciência tomou-se fechada ao futuro. E quando tal acontece,
"chegou o tempo em que o homem tornou-se incapaz de dar á luz
uma estrela”. (Nietzsche) Tornou-se infecundo e estéril, na medida em
que se converteu em presa do poder dos fatos da situação de escravi­
dão na qual se encontra. Deus sofre, então, porque o homem não é
mais seu companheiro na política da liberdade. O pacto entre Deus e o
homem, firmado em virtude de uma visão e uma paixão comuns pelo
futuro da libertação, foi rompido. Deus está só. Seu sofrimento agora é
o sofrimento da solidão. Sua política de libertação fez o homem provar
os primeiros frutos da liberdade, o “aperitivo” de um novo amanhã.
Contudo, ele “desaprendeu a esperança”, esqueceu o futuro e optou
pela segurança do presente. Curva-se aos ídolos. A esposa de Deus
converteu-se numa meretriz (Os. 3:1), o filho de Deus optou por uma
estranha aventura de não-liberdade. (Lc. 15:11-24)
Mas onde o homem se mostra infiel à dádiva da vocação pelo fu­
turo, Deus permanece fiel. A linguagem da comunidade de fé é a da fi­
delidade de Deus à sua visão e paixão pela liberdade humana, apesar do
fato de o homem rebelar-se contra o futuro e preferir a segurança do
cativeiro. A opção de Deus, de si mesmo e do homem para o futuro,
permanece inabalável, mesmo quando o homem opta pelo velho. Nisto
consiste a graça: na persistência da presença do futuro, mesmo quan­
do o homem tenha se deixado hipnotizar pelo poder do velho. O sofri­
mento de Deus é a negação do negativo da consciência humana; ele
não permite que ela pronuncie o veredicto final sobre o futuro do ho­
mem e da história.
A cruz corporifica ambas as formas de sofrimento. Cristo sofre
devido à violência dos poderes políticos que enclausuram o presente, e
também devido ao medo do homem quanto à presença do futuro. As­
sim, a cruz permanece entre a rejeição objetiva e subjetiva da espe­
rança. Porém, a cruz não deve ser entendida como um evento isolado.
Ela constitui a culminância do sofrimento que determinou a vida inteira

172
de Cristo. Desta forma, não devemos pensar que a sua morte “é... a
única coisa que importa. [Ela] não pode ser separada de sua vida”.
(G.S. Hendry, The gospel of the incarnation, p. 140.) Cristo sofreu a vi­
da inteira sob o poder das estruturas legais e religiosas que tornam o
homem cativo. Portanto, encontra-se identificado com as vítimas de
tais poderes: os párias, as prostitutas, os desvalidos, os pobres, os
doentes, os leprosos, os pecadores, o inimigo, o herético. E ele sofre,
ainda, devido àqueles cuja consciência está fechada para o futuro e
que, por conseguinte, representam os poderes da opressão. Deste mo­
do, coloca-se contra os que encarnam a santidade das estruturas polí­
ticas e religiosas.
Se os poderes subjetivos e objetivos que mantêm o homem na
escravidão são aqueles que o fazem sofrer, “aquilo que é não pode ser
verdade”. (E. Bloch, Philosophische grundfragen I, p. 65.) Se Deus, que
constitui a presença do futuro, sofre com a história, através de seu so­
frimento ele declara a inumanidade e a falsidade dos poderes que do­
minam o presente. Tal conclusão, no entanto, para a linguagem de fé,
não depende do veredicto da consciência humana. Sua validade é ab­
soluta mesmo quando o homem tenha se tornado incapaz de perce-
bê-la devido à sua domesticação sob a escravidão. Consequentemen­
te, a cruz não é nem a absolutização e nem a justificação do sofrimen­
to, e nem ainda o anúncio do triunfo final das ambiguidades da histó­
ria.8 Ela se mostra uma negação concreta daquilo que é. “A esperança
encontra em Cristo não apenas um consolo para o sofrimento", obser­
va Moltmann, “mas também o protesto da divina promessa contra o
sofrimento.” (J. Moltmann, Theology of hope, p. 21.) Por uma radical
negação daquilo que é, devido ao sofrimento que ele causa, a história
é forçada a procurar um novo amanhã.

8. Parece-me estar aqui uma das razões porque a teologia de Niebuhr, de outro modo
tão rica em recursos críticos, manifestou tendências para assumir posições mais conservado­
ras. Sua teologia não vê a cruz primeiramente como uma negação radical endereçada pela
presença de Deus na história aos poderes que, numa situação concreta, conduzem a um mo­
vimento rumo ao futuro, e sim como a relativização total de tudo na história, o que resulta na
eliminação do senso de direção. É verdade que tudo é relativo. Mas se a cruz não provê uma
direção, e sim uma relativização de todas as direções, como é possível comportar-se de modo
a produzir um novo amanhã? Devo ao prof. Richard Shaull esta observação. Ele demonstra
que o problema com a teologia de Niebuhr consiste em que ela se concentra no aspecto antro­
pológico da questão, sem dar lugar para a confiança na atividade de Deus. Para o argumento
total veja-se “ Theology and the transformation of society", em Theology today, n9 25, p. 23.

173
O sofrimento é, assim, a mãe da esperança. Ao engendrar a ne­
gação daquilo que é, prepara o caminho para um novo dia. É o sofri­
mento histórico que faz a esperança manter-se radicalmente histórica,
enquanto superação daquilo que hoje impede o homem de ser livre pa­
ra o futuro e a vida. Se não fosse assim, a esperança se desvanecería
na indefinição de um futuro abstrato, sendo incapaz de servir ao ho­
mem em sua tarefa de criar o novo amanhã.
A comunidade de fé, consequentemente, chegou a perceber que,
a fim de participar da política para um novo amanhã, é necessário par­
ticipar dos sofrimentos do hoje. A vida da comunidade no presente,
portanto, não se compreende como um triunfo, e sim como participa­
ção nos sofrimentos atuais de Cristo no e para o mundo. (Cf. Rom.
8:17, 2 Cor. 1:5, Gal. 6:17, Fil. 3:11 e Pe. 4:13.) Por Deus ter-se deter­
minado para a história e para o homem, o seu sofrimento continuará,
com o homem e a história, até o fim do mundo. O que faz um cristão,
comenta Bonhoeffer, é a sua “participação no sofrimento de Deus na
vida do mundo". (D. Bonhoeffer, ob. cit., p. 223.) A comunidade do futu­
ro, assim, não se constitui a partir de um conhecimento esotérico do
futuro mas, antes, a partir de sua identificação com o sofrimento dos
escravos, dos párias, do homem sem esperança e sem futuro, fraco
e impotente: dos miseráveis da terra. É o Servo Sofredor, presente no
sofrimento de todos os escravos do mundo que, a partir do sofrimento
de Cristo, encontra o segredo da libertação e o poder do homem para
tal. “Somente nas profundezas do sofrimento e do desespero", coloca
Buber, “os homens chegam a conhecer a graça”. (Citado por M. Fried-
mann, Martin Buber, p. 155.)
A história, assim, move-se em direção ao futuro através do sofri­
mento do escravo. Ela geme em trabalho de parto. Tão-só por meio
desse sofrimento da história nascerá o novo homem. O Deus da histó­
ria, por conseguinte, ainda não chegou. Feito o ser humano, ele tam­
bém vive com esperança, na espera de uma consumação terrena com
o homem. Na medida em que o sofrimento continua, não há reconci­
liação. O sofrimento atual de Deus indica sua irreconciliação com
aquilo que é, bem como o seu compromisso com a transformação. A
reconciliação não descreve uma realidade. Ela pertence ao universo de
discurso da esperança, e existe apenas como aquilo que é possível,
através da liberdade do Deus sofredor. Assinala o Dr. Christian Beker:

174
“O chamado centro bíblico de reconciliação pode não ser
tão central ao Novo Testamento quanto assegura a
teologia mais recente. A reconciliação precisa passar
pela revolução da cruz; e mesmo sem o auxílio das vi­
sões bíblicas, ela não pode ser uma palavra-chave em
nosso tempo, já que uma Igreja burguesa e opulenta in­
terpreta-a inevitavelmente como ratificação do status-
quo. A reconciliação, na fronteira da segregação racial,
foi simplesmente traduzida por integração. Enquanto o
que a Igreja deveria ter reconhecido é que a integração
que ignora as exigências do Poder Negro (‘Black Power')
significa uma ressurreição sem a cruz.” (Biblical theo-
logy today, 21/02/68, pp. 9-10.)
É verdade que o Novo Testamento declara estarmos reconcilia­
dos com Deus (Rom. 5:1), mas só através de nossa participação “em
Cristo", em seus sofrimentos com e para o mundo. Estamos reconci­
liados com Deus na medida em que compartilhamos da sua irreconci-
liação com o mundo, irreconciliação que faz com que ele e os homens
sofram. Por isso a paz com Deus significa uma “espada” para o mun­
do: o julgamento permanente e a rejeição da inverdade daquilo que é,
em favor de um novo amanhã de reconciliação e libertação.9

III - A Política da Libertação: os Horizontes Históricos são Abertos


ao Positivo

A experiência histórica de libertação da comunidade de fé não


pode ser entendida, por conseguinte, como uma revelação natural das
possibilidades imanentes da história. A partir da política de preserva­
ção do velho, o novo não pode evoluir. O poder não abandona o poder.
A vontade de poder não se converte em vontade de libertação. A cons­

9. Quer-me parecer que a idéia de reconciliação, enquanto realidade ontológica, per­


manece na teologia protestante como uma "idéia dogmática", algo não relacionado à história,
e que antes a ultrapassa. O caráter radicalmente histórico da linguagem de té, parece-me, não
nos permite utilizar o evento histórico de Jesus Cristo como o ponto de decolagem no qual nos­
sa linguagem abandona sua relação com a história. A realidade ontológica da reconciliação
poderia facilmente tomar-se uma versão moderna do hegelianismo, em que a negatividade da
história é transcendida no reino do divino. Como é possível falar-se de reconciliação se o fato
brutal da história consiste na cruz?

175
ciência domesticada do escravo feliz não evolui para o desejo de liber­
dade. O desenvolvimento natural do processo histórico, de acordo com
o que lhe é possível, não constitui mais do que variações sobre o tema
“Senhores-Escravos". Ele se modifica para o quantitativamente dife­
rente, mas é incapaz de negar-se de modo a fazer nascer o novo.
O evento da libertação implica uma interrupção do curso normal
dos acontecimentos. A realidade tem de ser negada e resistida. Não
se lhe dá o direito de prosseguir no curso já determinado. Mas, para
que isto aconteça é preciso que, de alguma forma, não sejamos prisio­
neiros dela. Não sendo assim, cada coisa nova nada mais é que a re­
petição das coisas velhas, sob uma nova máscara. É preciso ser-se li­
vre da história para se ser livre para ela. Por outro lado esta liberdade
face à história só pode produzir libertação se for liberdade para a histó­
ria. Em si mesma a liberdade face à história pode ser nada mais que
alienação. Foi em nome da transcendência de Deus sobre a história
que a teologia abriu mão da possibilidade de proclamar o evento histó­
rico da libertação. Deus não era o início de um novo dia, mas antes o
seu final, um Não radical e definitivo endereçado à totalidade da reali­
dade histórica. A negação da história não se daria em benefício de um
novo amanhã e sim implicaria a renúncia da esperança. O advento do
novo, entretanto, indica o compromisso da liberdade para com a histó­
ria. Somente assim pode-se converter num poder histórico que trans­
cende tanto as estruturas objetivas de dominação do senhor, quanto o
desejo de domesticação do escravo. O evento da libertação sugere
que um poder subversivo se introduziu na história, um poder que nega
e interrompe o velho, a fim de dar lugar para a criação do novo. So­
mente quando a liberdade se torna histórica por meio do poder, por
meio de uma atividade que modifica concretamente as condições
subjetivas e objetivas de vida, dá-se um fim à história da escravidão,
nascendo assim a possibilidade da libertação. Através dessa atividade,
a transcendência vem para o meio da vida. E somente assim, como
uma realidade em meio à vida, é a transcendência um elemento da
linguagem da comunidade de fé, na medida em que ela é determinada
pela experiência histórica de libertação.
O ponto de partida dessa atividade dialética de negação do velho
em favor do novo, como anteriormente indicado, era o fato de Deus ser
o “ Escravo Sofredor'’. O escravo é o corpo que experimenta a inumani-

176
dade da história. É um homem sem futuro, alguém que não tem o di­
reito de ter esperança. A condição do escravo, conseqüentemente,
possui em si mesma o segredo da liberdade. O senhor não deseja ne­
gar a realidade. Todo o seu poder é dedicado à tarefa de sua preser­
vação. O escravo, esteja ele cônscio deste fato ou não, é a negação
daquilo “que é”, é um expandir-se em direção ao novo. O segredo da
liberdade que a condição do escravo contém é que aquilo "que é” pre­
cisa ser negado por amor à libertação.

Muito embora a condição do escravo contenha o segredo da li­


berdade, ele nem sempre possui o desejo e o poder para conquistá-la.
Ao identificar o seu Deus com o escravo, a comunidade de fé afirmava
que o segredo da liberdade contido na condição do escravo, em Deus
está unido ao desejo e ao poder de libertação. A libertação não se sus­
tenta ou cai com a consciência e o poder humanos. Ela não consiste
em algo que dependa apenas dos poderes do homem, mas constitui a
única determinação de Deus, o Escravo Sofredor.

Porém, para libertar o oprimido, o cordeiro tem de se transformar


num leão, o escravo deve converter-se num guerreiro. O desejo de li­
bertação se expressa como poder contra aqueles que tomam a liberta­
ção impossível. O amor pelo oprimido consiste em ira contra os opres­
sores. O processo de libertação, assim, constitui o julgamento do se­
nhor. Para que o escravo seja liberto os poderes e instrumentos de
opressão precisam ser destruídos. Os instrumentos do opressor, suas
ferramentas de dominação, a canga que ele coloca no pescoço do
homem, o açoite com que fere o escravo (Is. 9:4), as botas de marcha
dos guerreiros, os trajes ensanguentados, as espadas e lanças daque­
les que fazem a guerra (Is. 9:15, 11:14) têm de ser destruídos, devem
ser transformados em combustível para o fogo. O poder de Deus para
a libertação do escravo exalta os que estão por baixo e derruba os po­
derosos de seus troncos: cumula de bens os famintos e despede os ri­
cos com as mãos vazias. (Lc. 1:51-53) A vida do Messias, portanto,
mostra-se um conflito político com os poderes da dominação. Por
Deus viver na história, “ele não fixa a história a partir de um outro
mundo acima deste e estranho a ele”, comenta Buber. “Ele não permi­
te que a história se desenrole como um pergaminho: Ele mesmo a pe­
netra e a conquista por meio da batalha." (M. Buber, The prophetic

177
faith, p. 140. Cf. também p. 221.) O Messias, em consequência, não
consiste “num ‘anti-rei’ espiritual”; sua ocupação - a libertação do ho­
mem sob a escravidão - dá à sua atividade e ao seu reino um caráter
político, ou melhor “teopolítico". A atividade do Messias, por conse­
guinte, é semelhante a entrar-se na casa de um homem forte para pi­
lhar os seus bens. Para tanto, porém, este homem precisa primeiro ser
amarrado e reduzido à impotência. (Mt. 12:29) A historicidade de Deus,
a revelação, ganha forma enquanto poder para a salvação. E isso sig­
nifica, num primeiro estágio, poder contra a política do Anticristo, a po­
lítica da escravidão. Por meio do desejo de libertação de Deus, os po­
deres que mantêm o mundo cativo - os principados, os poderes mun­
diais desta presente escuridão, as perversas hostes espirituais (Ef.
6:12) - são reduzidos a nada. A presença de Deus no mundo asse­
melha-se a uma bomba que tem de ser colocada exatamente sob os
poderes do velho. Tais poderes precisam ser objetiva e subjetivamente
explodidos. Assim, a política de Deus mostra-se subversiva para a es­
tabilidade criada pela violência do velho. A falsa paz do cativeiro é de­
sequilibrada e suas muralhas defensivas são derrubadas.

Por certo, há violência envolvida nesse processo. Deus não espe­


ra o dragão converter-se em cordeiro, pois sabe que o dragão devorará
o cordeiro. O dragão tem de sofrer a oposição do poder do leão e ser
por ele derrotado. Deus não espera que os guerreiros cheguem à con­
clusão de que a paz seria desejável: ele queima as suas armas. Não
espera o senhor decidir-se voluntariamente pela libertação do escravo,
pois sabe que ele nunca fará isso. Assim ele parte-lhe a canga e o se­
nhor não pode mais dominar. O poder de Deus, então, destrói aquilo
que torna o mundo cativo. Este uso do poder pode parecer violência, já
que destrói o equilíbrio e a paz do sistema de dominação. Porém, co­
mo indicado anteriormente, essa paz do sistema é, na verdade, um
triunfo da violência da opressão. Por conseguinte, aquilo que parece
violência do leão constitui realmente o poder da contra-violência, ou
seja, um poder usado contra os que geram, sustentam e defendem a
violência de um mundo de senhores e escravos. A violência é o poder
que oprime e torna o homem cativo. A contra-violência é o poder que
se opõe ao velho que escraviza, a fim de tornar o homem livre. A vio­
lência é o poder que visa a paralisia. A contra-violência é o poder que
visa tornar o homem livre para a experimentação.

178
Na política do Messias, o uso da violência consiste num instru­
mento para libertar inclusive o senhor contra o qual ela é utilizada.
O leão arranca de suas mãos a espada e a canga, instrumentos que o
defendem do futuro. Ele se vê forçado, involuntariamente, a defrontar-
se com a realidade da história e do futuro, vendo passarem o passado
e o presente. É então atirado na esfera da “santa insegurança”, defron­
tando-se com uma nova possibilidade de revelação, com uma nova au-
to-compreensão. É forçado, assim, a ver os pés de barro de seus ído­
los, e quando os ídolos desmoronam, eles perdem o poder que tinham
para dominar o senhor.

No entanto, a política de libertação não explode apenas os pode­


res políticos da escravidão. Antes, dirige-se contra todos os poderes e
estruturas que não deixam o homem livre para o futuro, para a história.
É possível ver-se tal dinâmica operando também no processo de se-
cularização, processo pelo qual o homem está sendo novamente for­
çado a sair do ventre da religião, das certezas meta-históricas, para
voltar aos horizontes provisórios da vida. A política de Deus dirige o
seu ataque contra a Torre de Babel e contra o Templo, enquanto estru­
turas que separam o homem de um futuro histórico.

O “escravo feliz”, ao se quebrarem as estruturas que o manti­


nham tranquilamente a salvo na escravidão (seja escravidão política,
opressão religiosa ou qualquer outro tipo de poder que não deixa o
homem livre para o futuro) se vê forçado à maioridade. Deixa de ser
tutelado e é obrigado a ser livre, encarando as responsabilidades im­
plícitas na tarefa de se construir a terra.

Dentro desse contexto torna-se óbvio que o amor não pode con­
sistir num princípio para o comportamento. Quando o amor se trans­
forma num princípio, torna-se desconectado da dialética histórica da
política de Libertação, que é a única forma pela qual ele verdadeira­
mente existe. O amor descreve a identificação do Servo Sofredor com
a sorte dos oprimidos e aponta na direção libertadora da sua atividade.
Todavia, ele não pode se converter numa fotografia daquilo que ele
faz. Transformar o amor num princípio é retirar dele o seu caráter histó­
rico, é transformá-lo numa “ idéia dogmática". Do ponto de vista da ex­
periência histórica da comunidade de fé, amor é o nome que se dá à
dialética da libertação na história. O amor é aquilo que Deus faz a fim

179
de tomar o homem livre. Porque, em grande medida, as nossas formas
teológicas de pensar têm ignorado o conteúdo histórico e dialético da
linguagem da comunidade de fé, a linguagem do amor, em vez de se
mostrar uma ajuda para a compreensão da política de libertação do
mundo, transformou-se num problema. O uso do poder passou a ser
visto não como expressão do amor, e sim como uma concessão que o
amor faz às contingências e imperfeições da vida histórica. Entretanto,
pela perspectiva da dialética, já que o homem que teme o futuro é in­
capaz de se libertar, o amor adquire a forma de uma atividade que visa
a destruição das condições objetivas e subjetivas da escravidão. Este
é o lado sombrio da política de libertação: o “ Não”, o amor como um
poder que se contrapõe, como ira, como o opus alienum Dei*. É um
Não, mas um Não que continua sendo uma obra de amor, atividade
que visa a libertação tanto dos senhores quanto dos escravos, pois,
através da destruição das estruturas objetivas e subjetivas que inten­
tavam abortar o futuro, ambos se vêem obrigados a rumar em direção
ao porvir. Tornam-se, assim, libertos do passado, na medida em que o
passado, por meio desta ação, perdeu o seu poder político e hipnótico
sobre eles.
Mas o opus alienum Dei é exercido por amor ao opus proprium
Dei**, o Não em favor do Sim, a destruição em favor da construção,
a libertação do passado em favor da libertação para o futuro. O deses­
pero que se segue à destruição dos ídolos é sucedido pela esperança
e pela expectativa, pois a atividade que esfacela o velho promete algo
novo. “ Não se lembre das coisas passadas e nem considere as ve­
lhas", diz o Libertador. “Veja: estou fazendo algo novo." “ Far-te-ei ouvir
coisas novas, coisas ocultas das quais não sabias. Elas estão sendo
criadas agora, e não no passado”. (Is. 43:15-19; 48:6-7) A política de li­
bertação anuncia, portanto, que, como resultado da atividade messiâ­
nica de Deus, “o velho se foi e o novo é chegado". (2 Cor. 5:17) O de­
senrolar normal da política do velho não pode fazer nascer o novo.
Quando isso ocorre, o novo não constitui mais que o velho sob uma
forma diferente, com uma máscara diversa. Ele se regenera, perpe­
tuando assim o velho mundo do cativeiro sob um diferente disfarce.

* Em latim, no original: "a obra estranha de Deus” . (N. do T.)


** Em latim, no original: "a obra própria de Deus” . (N. do T.)

180
Mas porque a política de Deus nega o desdobramento natural do ve­
lho, abre-se espaço para o novo. E podemos verdadeiramente dizer
que este novo é criado ex nihilo, pois ele não pode ser explicado em
termos da lógica da causalidade natural. Um novo sujeito emerge na
história: o senhor e o escravo feliz não são mais os mesmos. O ho­
mem que uma vez foi objeto da história, impotente, um escravo sofre­
dor, toma-se agora um sujeito. Torna-se livre para inserir sua liberdade
na história a fim de construir um novo amanhã de acordo com o seu
amor e a sua criatividade. E mais do que isso: a face da terra pode
agora ser modificada. Ela está livre para transformar-se numa nova ter­
ra, um lugar de recuperação, não mais sob a vontade de poder que a
fazia hostil ao homem.

Parece ser nesse contexto que a linguagem da ressurreição de


Cristo se torna significativa. É irônico que a linguagem que, para os
primeiros cristãos, consistia numa expressão de liberdade, tenha se
tornado para nós um problema a ser resolvido. E ela se tornou um pro­
blema por estarmos vivendo num tempo em que a ordem natural é
considerada o limite da história. A idéia da ressurreição, que é basica­
mente uma metáfora para a liberdade recriando a natureza, não pode,
por conseguinte, ser colocada entre os outros fenômenos com que lida
a história normal. Não possuímos analogias fatuais que possam forne­
cer as categorias necessárias para se colocar a ressurreição entre ou­
tros fatos históricos. Mas ao mesmo tempo não podemos simplesmen­
te ignorar o lugar absolutamente central ocupado pela ressurreição na
linguagem da fé, já que ela faz parte das experiências históricas que
moldaram a primitiva comunidade cristã. A saída para o impasse, ar­
gumenta-se desde então, consiste em internalizar a linguagem da res­
surreição. Ela não teria qualquer relação com a história objetiva, com o
tempo objetivo, com as estruturas objetivas. A ressurreição referir-se-ia
à esfera da subjetividade, onde a liberdade é possível. Representaria
uma nova auto-compreensão, a libertação do eu, que se livrou do pas­
sado e do medo da morte, para o futuro. Desta maneira, a ressurreição
ganharia um lugar no universo de discurso da liberdade subjetiva. Ob­
viamente, isso significa não constituir ela uma categoria válida para a
história objetiva. Esta permanece determinada e limitada pela causali­
dade e pela não-liberdade. O evento da liberdade ou o da ressurreição,
assim, significaria que o homem é retirado da história. O ser humano

181
encontraria esperança e a libertação na medida em que não fosse
mais determinado pelas estruturas objetivas da história. A ressurreição,
então, significaria, ao mesmo tempo, a esperança sem história e a his­
tória sem esperança. Emprestando de Kant a sua distinção entre o
mundo da causalidade e o da liberdade, é possível resgatar-se a idéia
da ressurreição da obsolescência, fazendo dela um evento da Geschi-
chte, ou seja, da história existencial, ao passo que a Historie permane­
cería intocada. Essa distinção possibilitaria uma grande contradição: o
indivíduo ser revolucionário no mundo subjetivo e conformista e con­
servador no objetivo: falar a linguagem da liberdade nos domínios do
existencial e, ao mesmo tempo, a do pragmatismo calculista na esfera
da política e da ciência.
Contudo, parece que o universo de dicurso do messianismo bíbli­
co não permite tal separação. Dentro desse contexto, a esperança
subjetiva se deriva e depende daquilo que Deus objetivamente faz na
história. Porque Deus torna o futuro aberto, a consciência se abre. Não
há lugar para a ficção: o ser humano não tem esperança como se o
seu futuro estivesse aberto, sabendo objetivamente que ele se encon­
tra fechado. Deus dá esperança porque dá um futuro. (Jer. 29:11) O
messianismo bíblico constitui, assim, uma maneira diferente de se en­
tender a vida, maneira esta derivada das experiências com o Deus da
libertação. Quando a vida é percebida como história da liberdade, da
política da liberdade em processo e abrindo caminho rumo à liberta­
ção, a ordem natural não pode ser vista como limite para a liberdade;
trata-se precisamente do contrário: a liberdade, sim, explode os limites
da ordem da natureza. Que isso foi assim para a comunidade de fé pa­
rece óbvio, pelo fato de para ela a idéia da criação ter constituído uma
reflexão tardia, totalmente determinada pelas experiências históricas
da libertação. O Deus que faz a história é o mesmo que criou o mun­
do. Consequentemente, a criação não é para ser compreendida como
porta da natureza: ela é parte da própria história. Ela consistiu numa
creatio ex nihilo, numa dádiva da determinação de Deus para fazer um
futuro. A idéia da criação, desta forma, faz parte da mesma linguagem
da ressurreição, que vê a liberdade como algo que determina as possi­
bilidades objetivas e subjetivas da história.
Se esta idéia da liberdade enquanto poder formador, doador de
vida e voltado para o futuro, tem importância central para o messia­

182
nismo bíblico, parece ser nesse contexto que deveriamos entender a
função da linguagem da ressurreição para a comunidade de fé. Ob­
viamente isso significa que não se atinge o cerne da questão ao se
compreender a ressurreição simplesmente em termos subjetivos, pois
tal fato implica na liberdade ser incapaz de moldar a vida. E também
não se entende o seu significado ao se tomá-la como um simples fato,
como um evento objetivo, terminado, pois a partir de um fato não se
pode generalizar para a atividade universal do poder de libertação na
história.
As referências que o Novo Testamento faz à ressurreição pare­
cem não descrevê-la simplesmente como um fato dado. A ressurreição
é, antes, parte do universo de discurso da fé. As “aparições do Senhor”
não ocorrem fora do evento da fé. Uma não existe sem a outra. Eram
testemunhos da experiência de seu poder. Significavam a posse do
mesmo Espírito que o ressuscitou dos mortos.(Rom. 8:11) Estavam li­
vres do medo (Rom. 8:15), viviam com a liberdade gloriosa dos filhos
de Deus. (Rom. 8:21) A linguagem sobre a ressurreição, portanto, não
a trata como um fato que possa ser visto com objetividade, fora do
contexto dessa nova liberdade.
Mas o outro lado também precisa ser enfatizado. A ressurreição
não se identifica com esta nova auto-compreensão nem se esgota
nela. Ao contrário, implica na unidade entre o subjetivo e o objetivo.
Ela indica que o mesmo Espírito que faz o homem se abrir para o futu­
ro, também liberta a história e a criação. Assim, a liberdade e a espe­
rança humanas estão relacionadas com as possibilidades objetivas de
libertação no mundo do tempo e do espaço. Ao menos, é dessa ma­
neira que Paulo a entende. O Espírito que ressuscitou Jesus dos mor­
tos, que nos tornou livres para o futuro, é o rr jsmo que engravidou to­
da a criação. Inconscientemente, a criação também tem esperança; ela
“geme em trabalho de parto", na expectativa de sua própria redenção.
(Rom. 8:19-23) E o seu mover-se rumo ao futuro não está apenas de­
terminado pelo mesmo Espírito que ressuscitou Jesus dos mortos, co­
mo também ocorre paralelamente ao movimento de libertação humana
em processo na história (Rom. 8:21), concorrendo com ele: a criação
será libertada de sua escravidão... e obterá a liberdade gloriosa dos fi­
lhos de Deus! Quando Paulo discute novamente a importância da res­
surreição em I Cor. 15, relaciona-a ao triunfo da liberdade sobre os po­

183
deres que objetivamente mantêm o homem cativo, sendo a morte o úl­
timo deles. (w. 24-26) Portanto, a ressurreição não descreve nem um
fato objetivo isolado, nem um evento subjetivo isolado. Ela aponta a
unidade de ambos, o poder da liberdade sobre a história e, em decor­
rência, a possibilidade de a esperança ocorrer na história, a partir dela
e por ela.

Assim, a palavra ressurreição, no universo de discurso da comu­


nidade de fé, não descreve um processo orgânico. Não indica nem que
um corpo morto foi trazido à vida outra vez, nem como isso aconte­
ceu. Conforme assinala Moltmann, há um abismo entre a cruz e a res­
surreição. Aquele que estava morto foi experienciado pela comunidade
de fé como vivo novamente. Porém, não se diz nada sobre o “como",
sobre o que teria acontecido entre os dois eventos. A ressurreição, da
mesma forma que a criação, consistiu numa expressão do poder da li­
berdade para criar ex nihilo, para dar vida aos mortos e trazer à exis­
tência as coisas que não existem. (Rom. 4:17) A palavra ressurreição
foi tomada de empréstimo do apocalipse judeu para expressar a expe­
riência da comunidade de que Aquele que havia sido crucificado esta­
va vivo, enquanto poder de libertação. Através dessa linguagem não se
podia mais referir a Jesus somente como um fato terminado, submerso
no passado, na esfera do já ocorrido. Não podia ser descrito apenas
em termos biográficos. Ele não era um fato, simplesmente, mas sim
o fator da história, o poder da liberdade que cria os fatos da libertação.
Jesus passou então a ser experienciado como um poder modelador da
história. Porém, enquanto fator ele não aconteceu; não era algo que
pertencia ao passado; ainda estava acontecendo. Como um fato, po-
der-se-ia descrevê-lo como um homem que tinha sido livre; ressurreto,
era experienciado como Aquele que estava libertando a vida. Ele é,
portanto, o Senhor da história. A cruz torna-se assim o ponto central
para a compreensão das possibilidades de libertação na história, não
como a relativização total de todas as direções e opções, e sim en­
quanto o poder que, em cada situação, nega o poder daquilo que é, a
fim de tornar possível a criação do novo. Desta forma, o ressuscitado
era o “espírito doador de vida” (I Cor. 15:45), Aquele que fazia os ho­
mens e o mundo viverem de novo para a esperança e o futuro. A res­
surreição, por conseguinte, não expressa o fato final sobre Deus, pois
que ela não constitui a linha de chegada. Deus não atinge a sua meta
por meio dela. Ele se mostra um Deus em processo, e a ressurreição
descreve sua atividade em marcha que, através da negação do Servo
Sofredor, liberta a história para o futuro.

A ressurreição, em decorrência, é um jeito de falar sobre a políti­


ca de Deus em andamento na história. "Nessa esperança fomos sal­
vos", afirma Paulo. (Rom. 8:24) Enquanto esperança, a ressurreição
não pode ser verificada pela manipulação dos eventos que se toma­
ram passado. Os acontecimentos passados podem servir de “aperiti­
vo": contudo, não oferecem qualquer base para confirmação. Por isso
nenhuma pesquisa histórica é capaz de “provar" a ressurreição. Uma
pesquisa poderia apenas provar um fato, não um fator. Por conseguin­
te, o campo para a confirmação da esperança não é o passado, e sim
o futuro. A esperança se comprova na medida em que o homem se
abre ao futuro, em que as estruturas de opressão se partem e o futuro
se torna aberto ao homem. E cada um desses acontecimentos consti­
tui uma nova celebração da esperança, um novo usufruir do "aperitivo”
da libertação.

A linguagem da ressurreição, portanto, refere-se àquilo que po­


demos esperar da história, ao ser penetrada, libertada, tornada viva
pela liberdade de Deus para com ela. Tal linguagem aponta a possibi­
lidade da ocorrência do novum, da criação do novo. Nesse contexto, a
esperança mostra-se possível. Viver na luz da ressurreição é viver em
tensão escatológica, na expectativa do evento do novo sujeito e do
novo amanhã. Mas é preciso dizer-se que a ressurreição se opõe radi­
calmente a qualquer tipo de triunfalismo, pois seu poder consiste na
dinâmica da cruz. Desta maneira, o homem é compelido a participar
do sofrimento de Deus no mundo. Sempre que o homem esteja sendo
oprimido e destruído, Deus está sendo crucificado e morto. Porém, no
contexto da esperança, o sofrimento perde o seu poder de levar o ho­
mem ao desespero, tornando-se o Não fertilizante a partir do qual os
poderes da escravidão são destruídos em benefício de um novo ama­
nhã de libertação.
CAPÍTULO CINCO

A DÁDIVA DA LIBERDADE: A LIBERDADE PARA A VIDA

A discussão da vocação, da historicidade e da dialética da liber­


dade poderia dar a impressão de que ela consiste no substantivo do­
minante da linguagem do humanismo messiânico. Todavia, não é esse
o caso. A partir de sua experiência histórica, a liberdade está sempre
voltada para o homem, consistindo num instrumental humano. Em sua
linguagem, portanto, ela desempenha o papel dos verbos, do julga­
mento, do movimento, enquanto os substantivos e adjetivos apontam
para a vida que a sua dinâmica dá ao homem. Estes não têm qualquer
significado sem aquele, e vice-versa. A liberdade, enquanto simples­
mente liberdade de, seria a negação da vida. A vida, por sua vez, fora
do contexto da liberdade, tornaria o homem semelhante a um animal,
prisioneiro do tempo orgânico, como se estivesse nas religiões da na­
tureza. A unidade da liberdade e da vida num único e mesmo universo
de discurso indica que esta última, para ser humana, precisa ser histó­
rica, determinada pela liberdade; e que a liberdade, para ser humana,
deve ser portadora e doadora de vida.
A comunidade bíblica expressou tal idéia através do conceito de
pacto. Como indicou-se acima, a experiência histórica da comunidade
consistia tanto na realidade de sua libertação quanto na dádiva da ter­
ra, cujos frutos eram vistos não como resultado de seu poder para ser
livre enquanto povo, e sim como produtos da política de libertação na
qual foram apanhados. Tanto o seu movimento quanto o usufruir da-,
coisas boas da vida eram entendidos como tendo sido possíveis pulo
fato de que havia um pacto, um vínculo de fidelidade unindo-os com
aquele poder que estava libertando a história. Entretanto, seu acordo

1§7
não era do tipo do utdes*. Pelo contrário: eles eram apenas recipien­
tes, e, como tais, sua liberdade e o conteúdo total de sua vida consis­
tiam em dádivas da graça. A vida em liberdade e a liberdade na vida:
este era o projeto da dinâmica da política de Deus. A liberdade na vida
e a vida em liberdade, assim, tinham de ser encontradas enquanto a
comunidade se movia com fé e confiança no poder do amor do Servo
Sofredor, por um lado, e com responsável obediência à sua política de
libertação em processo, por outro. A participação na política de Deus
produziu, por conseguinte, a realidade da libertação para a vida. Os si­
nais da atividade de Deus, consequentemente, foram entendidos como
sinais do humano. A liberdade de Deus para o homem é historicamen­
te visível ao tornar possível a liberdade do homem para a vida. Essa
maneira de se relacionar a liberdade de Deus para o homem e a liber­
dade deste para a vida, foi sugerida por Bonhoeffer, através de sua
imagem da polifonia da vida. (Cf. D. Bonhoeffer, Letters and papers
from prison, p. 175.) Onde o baixo (a política divina de libertação) é
firme e claro a vida explode numa melodia polifônica na qual todos os
afetos terrenos, prazeres e alegrias do mundo encontram sua verdade
e autonomia. Uma não possui qualquer realidade sem a outra; mas
também não podem ser confundidas.*1 A linguagem da liberdade, por­
tanto, não engolfa os substantivos em favor dos verbos, e sim vê a
ambos como estando relacionados, de forma que não se lhes pode
separar sem destruí-los. A liberdade e a vida estão juntas de tal manei­
ra que a “carne" da liberdade de Deus para o homem é a liberdade
humana para a vida. O movimento da linguagem djt liberdade, em de­
corrência, faz nossos olhos se voltarem para a dádiva que esta lingua­
gem nos promete e nos traz: a vida, em toda a sua plenitude, alegrias
e virtudes.

I - A Liberdade Humana para o Futuro

Esta liberdade para a vida toma-se possível porque no contexto


da política de Deus o futuro perde os seus aspectos ameaçadores.

* Em latim, no original: “dou para que dês” . (N. do T.)


1. Bonhoeffer sugere que “ talvez a importância da polifonia na música repouse no fato
de ser ela uma reflexão da verdade cristológica, consistindo, desta forma, num elemento es­
sencial da vida cristã." (ibid., p. 175.)

188
Quando o futuro se mostra um símbolo da morte, uma ameaça que
destruirá o homem e que deve ser evitada por todos os meios, a vida
deixa de ser vida e se transforma na presença viva da morte. O aban­
dono e a alegria da vida são impossíveis, pois esta vida que o homem
tanto ama carrega em si a morte que o destruirá. O futuro não pode
ser ocasião de libertação se for temido como possibilidade do fim. No
contexto da confiança, da fé no amor e na política de libertação de
Deus, todavia, o futuro é transfigurado. Deixa de ser ocasião de amea­
ça e se transforma no objeto de uma alegre antecipação. Não constitui
mais um tempo no qual o homem se perderá, e sim aquele que trará
novas possibilidades de ser-se autenticamente livre e vivo. A mente
humana experiencia a metanóia. Não é mais determinada pelos pode­
res paralisantes da escravidão e da morte, e sim por sua experiência
com o poder da ressurreição, poder este que “dá vida aos mortos e
traz à existência as coisas que não existem.” O futuro opera de acordo
com a “misericórdia de Deus” (Rom. 12:1), que faz dele o portador de
uma nova possibilidade de vida. A vida humana deixou de estar volta­
da para trás para olhar adiante. O homem se mostra livre, pois a liber­
dade consiste, segundo aponta Bultmann, “em nada mais que estar-se
aberto ao futuro genuíno, deixando-se o eu ser determinado pelo futu­
ro.” (Cf. R. Bultmann, Kerygma and myth, pp. 348 e 335.)

A nova orientação da consciência humana significa uma nova di­


reção para a ação. O homem que teme o futuro age de forma a evitar
que ele aconteça, afirmando neuroticamente o presente, presente em
que ele se preserva como é. Se, ao contrário, ele se mostra aberto
e voltado para o futuro, sua ação se converte em coisa de parteira,
ajudar a dar à luz. Esta ação procura ajudar a história a dar vida a um
novo amanhã, amanhã que agora a faz gemer, sofrer e ter esperança,
feito uma mulher com dores de parto. No primeiro caso o homem te­
me, e, portanto, age. No segundo, no contexto da política de Deus, ele
demonstra ter esperança e, por conseguinte, age. Sua ação é filha de
sua esperança, carregando as marcas de seu amor e de sua liberdade
para um novo futuro. A linguagem da esperança, enquanto linguagem
daquilo que é possível para a história e a partir da perspectiva da polí­
tica de Deus para a libertação humana, torna-se então parte intrínseca
da ética, como ciência e atividade que visa a tornar histórica a espe­
rança.

189
Se o homem atua por ter esperança, obviamente o sim se mos­
trará primordial na ação humana. O homem nega tão-só em benefício
do novo, que precisa ser afirmado. Sua atividade orientada pela espe­
rança, assim, consiste em fazer com que se realize o positivo, positivo
este oculto na ação que negava aquilo que fazia o homem sofrer.
A esperança implica no homem ter se libertado do passado como
de uma prisão. Isso não significa que o passado seja esquecido, e sim
que deixou de ser o fator dominante no comportamento humano. O ser
humano se recorda do passado e é grato por ele, mas sua lembrança
desse passado torna-o cônscio de uma política que se acha em pro­
cesso. O passado, assim, não pode esgotar as possibilidades da vida
humana. Desta maneira, o homem se liberta daquele estilo “fotoelétri-
co" de vida que sempre lê retroativamente e o incapacita a mover-se.
(Lehmann) No futuro, e não no passado, é que se tem de encontrar a
possibilidade libertadora para o hoje. Isso quer dizer que o homem es­
tá livre da ética da lei e daqueles princípios que implicam em descon­
fiança na liberdade e na responsabilidade humanas, já que eles limi­
tam rigidamente o desenvolvimento futuro da polifonia da vida. O pas­
sado estabelece um padrão para o futuro. Como a lei e os princípios
se aferram a valores já estabelecidos que supostamente fornecem a
estrutura do futuro, eles acabam com a experimentação. Não permitem
que o homem assuma o risco de um novo futuro. No contexto do hu­
manismo messiânico, entretanto, a liberdade humana escolhe como
ponto de referência uma política de libertação que segue avançando
para o futuro, tornando possível a expectativa e a saudação do novo,
bem como o destemor para agir de maneiras não previamente previs­
tas no passado.
Se a ação consiste na parteira do futuro, então a atividade hu­
mana pode acrescentar o novo ao mundo. Pode constituir, com efeito,
um ato de criação. A graça de Deus, ao invés de tornar a criatividade
humana supérflua ou impossível, é a política que a torna possível e
necessária. Tal se dá porque no contexto da política de libertação hu­
mana o homem encontra um Deus que continua aberto, que ainda não
chegou, qué está voltado para a atividada humana e é por ela auxilia­
do. Deus precisa do homem para a criação de seu futuro. “Se Deus
não precisasse do homem", assinala Friedmann, “se o homem fosse
simplesmente dependente, e nada mais, não haveria sentido para a

190
vida humana no mundo. ‘O mundo não é um esporte divino, e sim un,
destino divino’.” (M. Friedmann, Martin Buber, p. 71.) Assim, a criação
de um novo futuro faz parte do pacto de fidelidade mútua para com a
libertação humana, unindo Deus e o homem. Da mesma forma como a
liberdade de Deus foi apreendida pela comunidade de fé a partir da
atividade que possibilitou a liberdade e a vida, também a liberdade
humana consiste em tomar-se práxis, ou seja, uma atividade que mo­
difica o mundo. A liberdade humana, portanto, não constitui apenas
uma dimensão da subjetividade, mas um poder para transformar o
mundo, para criar um novo futuro.

A atividade criadora do homem, assim, mostra ser o instrumento


pelo qual este recria e recupera a natureza. Antes de ser penetrada
pela liberdade humana talvez a natureza fosse apenas uma “coisa"
unida ao homem no mundo impessoal dos contatos, uma coisa que
servia de instrumento de dominação para os senhores. A natureza
mostrava-se tanto estranha e impessoal quanto hostil e agressiva. No
entanto, a criatividade humana pode dar-lhe uma nova face. A criativi­
dade é a atividade pela qual o existencial, as esperanças e as paixões
humanas exteriorizam-se no objeto criado. O homem cria o mundo à
sua própria imagem. Ele é mesmo capaz de comungar com o mundo
(e não meramente contatá-lo), pois este não constitui mais um fato
bruto, e sim um mundo fertilizado e transformado pela criatividade e o
suor humanos. O mundo se converte, consequentemente, no espelho
em que o ser humano pode ver o reflexo de si mesmo e de seu próxi­
mo. Desta forma, a natureza é humanizada, tornada histórica. Através
da criatividade humana há esperança para a terra, terra que pode ser
transformada num lar e num lugar de redenção para a humanidade.

Porém, não apenas a natureza é recriada por meio da atividade


humana. O próprio homem se torna diferente neste processo. Sua
ação consiste em criar um novo futuro, em expressar o seu amor por
um novo amanhã. No entanto, este novo amanhã somente pode ser
construído a partir do hoje. A eficácia na criação do novo mostra-se
impossível se a ação não toma como ponto de partida as possibilida­
des concretas oferecidas pelo presente. O amor pelo novo amanhã e a
exigência da eficácia, portanto, demandam uma abertura permanente
do homem ao seu mundo presente. Ele se recorda de sua experiência

191
passada. Prova o seu mundo. Relaciona sua lembrança e seus expe­
rimentos à necessidade de ação em seu agora. Faz escolhas, assume
riscos, comete erros, retrai-se, reorganiza a sua ação e, com ela, a si
mesmo. Nesta e com esta ação recíproca com a história, ele se modi­
fica e se faz diferente. Torna-se tão aberto e voltado para o futuro
quanto o contexto histórico em que se encontra. Descobre não ser
uma mônada, e sim um horizonte. Mostra ser experimentação. A ne­
gação e a esperança, e consequentemente a ação que elas moldam,
não podem, por conseguinte, ser definidas a priori, pois são obtidas e
constituem uma resposta à compreensão humana daquilo que é preci­
so para se tornar o mundo humano, no e a partir do contexto histórico
do homem. Por isso “a humanização não é... um processo que possa
ser previsto em sua totalidade, um processo através do qual nos tor­
namos mais e mais semelhantes a uma idéia de homem", comenta
Esdras B. Costa. “Ela consiste num experimento em que os critérios
de humanidade são descobertos e transcendidos por outros critérios
melhores, sendo aplicados à vida por homens e mulheres livres, fiéis à
sua vocação de seres humanos." (Esdras Borges Costa, “Oportunida­
des de humanización que presenta Ia situación actual", em Hombre,
ideologia e revolución en América Latina, p. 16.)

Mencionou-se que a liberdade para o futuro consiste em sua li­


bertação enquanto uma possibilidade ameaçadora. No entanto, essa
liberdade apenas se faz carne ao ser entendida no contexto da possi­
bilidade de se criar uma nova Terra. Quando a esperança do homem
modela a sua ação, ele se atira ao mundo como poder. Deseja supe­
rar, por meio de sua negação, aquilo que faz o ser humano sofrer,
criando um novo amanhã segundo a esperança extraída da negação.
Todavia, todas as relações de poder envolvem um risco. Opor-se a
uma realidade dada pelo poder é ser resistido por ela, pelo poder. O
homem descobre então que o mundo não está simplesmente aí, pas­
sivo feito um pedaço de mármore, pronto para receber uma nova for­
ma. O mundo reage devido aos poderes políticos existentes em sua
presente forma. Ele resiste ao homem e se toma ameaçador. Assim, o
ser humano assume conscientemente o risco de ser derrotado. Assu­
me o risco da morte. Porém, devido à esperança de que, por meio de
seu risco o mundo possa ser transformado num lugar de redenção, ele
aceita a possibilidade de morrer em favor do mundo.

192
É possível entender-se o significado inteiro dessa nova liberdade
para a morte comparando-a com uma abordagem diferente sugerida
por Heidegger. O homem, indica ele, consiste existencialmente num
ser-para-a-morte. Sabe existir agora, mas sabe também que no futuro
não estará mais vivo. Na medida em que sua existência seja condicio­
nada pelo medo da morte, sua vida não será mais do que morte em
vida. O medo torna-o prisioneiro e o impossibilita de ser aquilo que on-
tologicamente deveria ser. Ele trai então a vocação de sua consciência
para uma vida de liberdade e passa a viver para se defender. Como
poderia tomar-se livre para a vida? Somente através da coragem de
ser livre para a morte, aceitando-a como limite de sua existência e dei­
xando de lutar contra esta realidade que se aproxima. A liberdade para
a vida se encontra na liberdade para morte. Norman O. Brown interpre­
ta o problema de forma semelhante. Comentando o significado da es­
perança cristã na ressurreição do corpo, ele indica que sua real impli­
cação consiste em que o corpo deve se reconciliar com a morte. Acei­
tar a morte constitui pré-condição para a libertação do corpo para as
possibilidades que lhe são dadas. E Brown então acrescenta que a
teologia cristã “tem de, ou aceitar a morte como parte da vida, ou
abandonar o corpo.” (N. O. Brown, Life against death, p. 309.*) Como
em Heidegger, a aceitação da morte consiste na pré-condição, no início
da ressurreição do corpo para a vida de liberdade que este poderia ter.
No contexto da política de Deus, entretanto, a solução assume
uma forma diferente. O homem se faz livre para a vida e, em decor­
rência, permanece tenazmente irreconciliado com a morte enquanto fa­
tor da história. Tal irreconciliação toma o homem desejoso de assumir
livremente o risco do fato da morte, sabendo que precisamente neste
ato a sua liberdade para a vida triunfa sobre o poder da morte. Encon­
tra sua vida autêntica não pela aceitação da morte através de uma de­
cisão puramente formal ou subjetiva, mas sim como um desejo-de-ser-
para-a-morte-em-favor-do-mundo. A morte se converte num risco que
precisa ser livremente assumido, de forma a tomar possível ao mundo
transformar-se num lugar de redenção para o homem. Este, então,
descobre literalmente que quem tenta conservar sua vida a perde, e
quem voluntariamente a arrisca, encontra-a. (Mt. 10:39) O triunfo da

* Traduzido e publicado no Brasil com o título Vida contra a morte, pela Editora Vozes.

193
vida sobre a morte, portanto, não resulta da reconciliação humana com
ela. Este triunfo emerge, sim, da irreconciliação do homem com a mor­
te, irreconciliação esta que, devido ao seu amor pela vida, assume a
forma de um desejo-de-ser-para-a-morte-em-favor-do-mundo, mundo
que tem de ser recriado em benefício do homem e de sua vida. Esta
diferença se esclarece por meio de um exemplo simples. Uma mulher
não deseja dar à luz um filho porque sabe e reconhece a possibilidade
de morrer nesse ato. A verdade é o oposto: porque ela ama e está de­
terminada em favor do filho, ela está pronta a encarar livremente a
morte. Não é a liberdade para a morte que torna o homem livre para o
amor e para o sacrifício, mas antes é o seu amor pelos companheiros
que sofrem que o torna pronto a aceitar o risco da morte presente na
ação sacrificial. “Quando uma mulher está em trabalho de parto", disse
Jesus explicando sua liberdade para a morte, “ela sente-se triste por
ter chegado a sua hora: porém, quando já deu à luz o seu filho, não
mais se recorda da angústia, devido à alegria que sente por uma
criança ter vindo ao mundo." (Jo. 26:21) A angústia e a tristeza envol­
vidas na luta por um novo mundo, são, assim, superadas pela alegre
antecipação da aurora de um novo dia. Assim como o medo da morte
congela a liberdade ao criar uma ética de defesa e sobrevivência que
orienta a atividade para a auto-preservação, também a confiança no
futuro prometido pelo Messias deixa o homem livre para expressar o
seu amor, sem estar preso a cálculos. “Por meio de Jesus Cristo, por
meio de sua vida, de sua morte, ressurreição e reino de poder”, assi­
nala H. R. Niebuhr, “fomos e estamos sendo conduzidos à... reinterpre-
taçáo de todas as nossas interpretações da vida e da morte. A morte,
não menos que a vida, aparece-nos como um ato de misericórdia. A
ética da morte é substituída pela ética da vida, do futuro aberto, da so­
ciedade aberta." (H. R. Niebuhr, The responsible self: an essay in chris-
tian moral philosophy, p. 143.)

A participação nessa aventura da criação de um novo mundo, as­


sim, é de suma importância, pois está relacionada à possibilidade de
uma vida autêntica, livre da dominação da morte. A vida autêntica não
pode ser separada da possibilidade objetiva de transformação da Ter­
ra. A análise que Marx faz da tragédia do trabalhador está curiosamen­
te próxima disto que notamos. A tragédia do trabalhador, observou ele,
não se baseia no fato de ele ser um operário ou de ser pobre, e sim no

194
fato de ser colocado numa estrutura de produção que o separa do
mundo. Sua dimensão existencial se separa do objetivo. Sua criativi­
dade é incapaz de criar a terra. O que faz não consiste em criação,
mas em trabalho alienado: trabalho que não constitui um instrumento
por meio do qual o trabalhador possa penetrar, fertilizar e modificar o
seu mundo. Ele produz algo, mas este produto de seu trabalho se
volta contra ele. Não contribui para tomar o novo amanhã uma realida­
de, e sim para perpetuar o seu hoje. No final do processo o trabalhador
não se mostra enriquecido pela auto-expressão; não há lugar para tal.
Ao contrário, ele está mais pobre, por ter perdido parte de sua vida
sem comunicar ao mundo algo de si mesmo. “O trabalho... não faz par­
te da natureza [do trabalhador]; este não se realiza, mas se nega atra­
vés de seu trabalho. Desta forma, o trabalhador apenas se sente à
vontade durante o seu tempo de ócio. Seu trabalho não consiste na
satisfação de uma necessidade, mas tão-só num meio para a satisfa­
ção de outras necessidades." (E. Fromm, Marx’s concept of man, p.
98.) O ato de criar (que neste caso não consiste realmente numa cria­
ção) transforma-se então num peso. Sua vida encontra-se fora do tra­
balho; este, em decorrência, passa a ser aquilo que ameaça a vida. O
trabalho converte-se numa forma de ascetismo, numa disciplina à qual
o operário tem de se submeter, a fim de ser capaz de desfrutar daquilo
que realmente lhe importa. O trabalho, assim, mostra-se uma radical
negação do corpo e da vida: uma morte-em-vida. O trabalhador então
é levado a acreditar, incorretamente, que a liberdade para a vida con­
siste na libertação do trabalho, no ócio, no tempo livre para o desfrute
de algo para o qual o trabalho somente fornece os meios econômicos.
Parece ser este o ideal que os profetas da era cibernético-cultural an­
dam proclamando como a dádiva libertadora da automação e da renda
assegurada: liberdade do trabalho, do labor e da fome, da ansiedade
quanto à futura segurança econômica e tempo livre para tudo aquilo
que realmente importa ao ser humano. Contudo, tal solução (que é
precisamente a sonhada pelo trabalhador alienado) não elimina a alie­
nação básica, e sim a perpetua. A criatividade do homem continua a
mostrar-se impotente para criar o seu mundo. No primeiro caso, ele
não podia criar o mundo devido ao seu poder ter sido absorvido pelos
detentores dos meios de produção. Já agora, não pode criar a história
porque seu poder não se mostra mais necessário àqueles que detêm
os meios de produção. No primeiro caso, são os proprietários que de­

195
terminam a direção da história: agora, são as elites tecno-burocráticas
que definem a forma do futuro.
O problema da humanização, portanto, não deve ser entendido
como libertação do trabalho, o que significaria perpetuação do fosso
existente entre o subjetivo, o existencial, e o mundo objetivo das coi­
sas e estruturas. A tarefa, sim, tem a ver com a liberdade para traba­
lhar e com o trabalho em liberdade, de maneira que este se mostre o
meio pelo qual o homem traga a sua liberdade, o seu amor, a sua de­
terminação, para a vida, para a Terra em que vive, de forma a fazer
dela uma nova Terra.
O humanismo messiânico, assim, vê a solução com grande cla­
reza: só enquanto criador da história o homem pode encontrar sua vida
autêntica; apenas mostrando-se criador da história pode haver espe­
rança para o mundo.
As reflexões acima mostram o quão semelhantes são o huma­
nismo messiânico e o messianismo humanista, mas também o quão
diferentes são. O messianismo humanista acredita, junto com o huma­
nismo messiânico, ser a vocação humana a criação da história, de
uma ou de outra forma. Porém, contrariamente ao humanismo mes­
siânico, que age por causa da esperança, o messianismo humanista
tem esperança porque age: a libertação se conseguirá apenas através
dos poderes do homem.
A teologia protestante, parece, tem criticado radicalmente todos
os movimentos que se acham dominados pela obsessão messiânica
quanto ao que o homem possa fazer por meio de sua atividade. Histo­
ricamente, tal teologia começou como um protesto contra a ilusão do
homem a respeito de seus próprios poderes, e contra a ansiedade, o
medo e a frustração a que tal ilusão conduz. A fim de libertar o ser
humano do peso de ter de criar a sua própria salvação, o protestantis­
mo proclamou aquilo que é absolutamente central para o humanismo
messiânico: a humanização consiste numa dádiva da graça; o homem
pode ficar tranquilo, pois seu futuro não cabe apenas a ele. Assim, a
teologia protestante pôde declarar que, no contexto da graça de Deus,
o futuro não deve ser causa de ansiedade para o homem, e sim objeto
de sua alegre expectativa. Desta forma, seu princípio consistiu numa
expressão da paixão pela libertação humana através dos poderes do

196
Messias, poderes estes que libertam o homem tanto da ansiedade e
da obsessão messiânica, causada por sua ilusão, quanto às responsa­
bilidades e possibilidades.
Entretanto, o resto de tal percepção toi estranho. Pois a teologia
protestante, ao afirmar que a única possibilidade de libertação do ho­
mem, tanto de suas obsessões messiânicas a respeito de seu poder
para se fazer livre, quanto da ansiedade e do medo que inevitavelmen­
te se seguiam, foi levada a concluir que não havia lugar para a criativi­
dade humana na história. Desta maneira, em vez de libertar o homem
para a criatividade, a graça toma-a supérflua ou impossível. Em decor­
rência, o trabalho não constitui uma ferramenta a ser utilizada na cria­
ção do novo, e sim uma expressão de obediência ao comando Da­
quele que é o único criador. Tal tendência torna-se evidente em várias
instâncias. Aparece em Lutero, na sua interpretação do trabalho como
sendo a disciplina do mosteiro trazida para o centro da vida, como
mortificação e preparatio mortis*. No calvinismo, segundo Weber, tal
tendência desempenha um papel crucial. O trabalho constitui uma ex­
pressão do “ascetismo intra-mundano", por meio do qual o homem
domina o mundo para demonstrar historicamente a sua predestinação
eterna. Em Hamack o trabalho alcança uma posição ainda inferior,
sendo considerado nada mais que uma útil “válvula de segurança” a
ser “empregada para evitar-se males maiores” e que se acha totalmen­
te separada do espírito humano. (A. von Harnack, What is christianity?,
p. 121.) A teologia de Barth não nos oferece uma reavaliação da im-
portântíia do trabalho. Ela segue a linha traçada pela Reforma. Porque
aquilo que Deus faz esgota as possibilidades da história, o trabalho se
converte “num pré-requisito incidental mas necessário ao seu serviço”,
“numa realização da lei da natureza humana", “num movimento dentro
do mundo criado”, em resumo, transforma-se num “jogo". “ Por esta ra­
zão”, assinala Barth, “uma participação nele pode não ter nada a ver
com a participação na obra de Deus.” (K. Barth, Church dogmatics,
III/4, pp. 519-520 e 522.) A graça não toma a criatividade possível; con­
sidera-a desnecessária. Consequentemente, o homem permanece sob
a ordem de mover-se, mas é incapaz de criar. Assim, não é estranho
que o messianismo humanista se oponha à teologia protestante. Sua

* Em latim, no original: “ preparação para a morte". (N. do T.)

197
teologia do trabalho se mostra quase uma teologia (ou ideologia) do
trabalho alienado, ou seja, uma justificação para o trabalho que não
cria o novo.
A partir de sua experiência histórica, o humanismo messiânico
considera necessário preservar-se tanto a graça quanto a criatividade.
Desta forma, ele rejeita tanto o messianismo que crê a libertação seja
somente criada pelos poderes do homem, quanto a destruição protes­
tante do trabalho enquanto instrumento de criação da história. Proce­
dendo assim, preserva tanto o elemento crítico do protestantismo
quanto a confiança criativa do messianismo humanista. Como isso é
possível? No contexto da política de Deus para a libertação do ho­
mem, a graça cria a possibilidade e a necessidade da ação humana. O
homem consiste num co-criador. O pacto entre Deus e o ser humano
significa que o primeiro espera por aquilo que o segundo pode oferecer
para o novo amanhã. O pacto significa que Deus, na plenitude de sua
eternidade, necessita, anseia e espera pelo homem. No futuro de Deus
“existe algo de essencial que precisa vir do homem”, comenta Fried-
mann. Ele “aguarda uma consumação terrena, uma consumação na e
com a humanidade”. (M. Friedmann, Martin Buber, p. 252.)2 Na política
divina “a ação humana está incluída na de Deus. Uma não é menos
real do que a outra, nem se mostra uma causa à parte”. (M. Fried­
mann, ob. cit., p. 133, citando Buber.) Neste contexto, as palavras do
apóstolo, que de outra maneira poderíam soar confusas, adquirem um
novo significado: ‘Trabalhai por vossa própria salvação com temor e
tremor; pois Deus opera em vós tanto o querer quanto o agir segundo
Seu beneplácido.” (Fil. 2:13 e ss.)
A autonomia da atividade humana, que para o humanismo mes­
siânico constitui a base da esperança, é rejeitada. Porém, o isolamento
de um Deus que faz a história sem os homens, que segue em frente
sozinho e auto-suficiente, um Deus que talvez já tenha chegado, tam­
bém é rejeitado. A salvação se consegue através de uma política pela
qual Deus deixa o homem livre para criar. A criação, portanto, está

2. "Em teu coração sempre sabes que precisas de Deus mais do que tudo; mas não
sabes também que Deus precisa de ti, que na plenitude de sua eternidade precisa de ti?”
(Martin Buber, land Thou, p. 82.)
Esta obra de Buber encontra-se traduzida e publicada no Brasil com o titulo Eu e tu pela
Editora Cortez e Morais. (N. do T.)

198
ainda inconclusa. Está adiante do homem, como um horizonte que vai
sendo aberto, se oferece ao ser humano como um convite. “Talvez
possamos imaginar que a criação há muito tenha terminado”, escreve
Teilhard de Chardin. “ Isso não é verdade. Ela continua, mais gracio­
samente do que nunca... e nós servimos para completá-la, mesmo com
o trabalho mais modesto de nossas mãos... Em cada uma de nossas
obras trabalhamos um pouco, mas de forma real, para construir o Ple-
roma... Na ação me ligo ao poder criativo de Deus, coincido com ele."
(C. F. Mooney, Teilhard de Chardin and the mystery of Christ, pp. 151-
152.) Num sentido verdadeiro, o homem está realmente ajudando a
Deus quando, por amor ao seu companheiro e inspirado pela visão de
uma nova Terra, através de sua ação, ele se envolve com a tarefa de
transformar o mundo de hoje na Tenra nova de amanhã.3
Se a criação consiste num empreendimento conjunto, o Deus en­
volvido com a política de libertação continua aberto. Ele não olha a
história a partir de seu futuro, nem a arrasta desde lá. É na história que
Deus e o homem engendram um futuro comum. Este não é simples­
mente um futuro que Deus cria para o homem, mas ele é criado por
ambos, numa histórica cooperação dialógica. Esta é a implicação ne­
cessária de sua encarnação: ele continua aberto ao homem. Mas aber­
tura implica inconclusão, em que ainda se esteja num estágio experi­
mental. A encarnação de Deus significa, assim, que ele permanece
histórico e acrescentando a si tudo o que seja humano. No Messias,
todas as coisas do céu e da Terra estão redimidas e unidas. (Ef. 1:10)
“ Deus já não pode fazer nada sem os muitos em meio aos quais está
imerso", observa Chardin, e, portanto, mesmo aquilo que parece perdi­
do é novamente aproveitado por Deus. Sua encarnação, então, não
pode se transformar num “ponto de decolagem” a partir do qual Deus
construa uma realidade ontológica apartado do que acontece aqui e
agora. Ele continua histórico. Ele ainda não chegou.
Por essa perspectiva a história mostra ser a história da liberdade.
De fato, ela constitui um processo em marcha e de natureza política,
que liberta o presente para o futuro e o homem para a vida. O foco da
atenção não é aquilo que se tornou passado, e sim o futuro que pode

3. “ O verdadeiro significado da ética consiste em 'ajudar Deus amando a sua criação


em suas criaturas...” ’ (M. Friedmann, ob. cit, p. 138, citando Buber.)

199
ser criado. Nesse processo de criação e recriação a criatividade de
Deus sustenta a criatividade humana, formando uma atividade conjun­
ta na qual criador e co-criador, juntos, constroem um novo futuro. Se
nisto consiste a história, a historicidade do homen não pode ser enten­
dida simplesmente em termos de sua capacidade para compreender,
recordar, reviver e interpretar a história, mas sim em termos de sua vo­
cação e de seu poder para co-operar na criação de um novo amanhã.
Concluímos, então, com Marx: “os filósofos têm apenas interpretado o
mundo de diversas maneiras; a questão, porém, é transformá-lo.” (Cf.
Marx, “Theses on Feuerbach”, n9 XI, em On religion, p. 72.)

II - A Liberdade Humana para o Presente

Observamos anteriormente que a linguagem da comunidade de


fé está marcada por uma profunda sensibilidade para com o sentido
trágico da vida. O sofrimento aí é de tal forma central que esta não se
lhe refere simplesmente como uma realidade do mundo e da história,
mas como uma dimensão de Deus, que aparece como um Servo So­
fredor. Este sentido trágico da vida mais tarde foi traduzido pela
Igreja Cristã num impulso em direção ao ascetismo. Se Deus sofre por
causa do mundo, este, em benefício de Deus, deve ser negado, não
existindo caminho mais correto para se conseguir tal negação do que a
transformação do mundo num espinho que faz o homem sofrer. Tal ex­
trapolação, contudo, é totalmente ausente da linguagem da comunida­
de bíblica. Nela não se encontra esta conjunção entre o sentido trágico
da vida e o ascetismo. Pelo contrário: o Velho Testamento, especial­
mente, está cheio de um tremendo gosto pela vida, de uma exaltação
do mundo dos sentidos e uma liberdade para encontrar a alegria nas
coisas boas que a vida dá ao homem. Como é possível explicar-se a
ligação desses dois elementos, o sentido trágico da vida e o gosto por
ela? Pensadores e pregadores cristãos gostam de dizer que as comu­
nidades bíbljcas podiam ser alegres, apesar do mundo, porque sua fé
as colocava em contato com uma realidade de um outro mundo, na
qual o sofrimento é superado. Desta forma, elas experimentavam um
tipo de alegria espiritual que existe associada ao sofrimento. Psicolo­
gicamente, a comunidade de fé poderia ser classificada como estando
dominada pelo masoquismo, já que o seu sofrimento constituía oca­
sião para a sua alegria. O problema com esta interpretação não diz

200
respeito apenas à sua desumanidade, mas também ao fato de a lin­
guagem da comunidade de fé contar uma história totalmente diferente.
Ela fala do amor pela vida, por este mundo, e não de uma alegria si­
tuada além da vida e do mundo. Os objetos e ocasiões desta alegria
são bastante mundanos: o pão que fortalece o coração, o azeite que
faz o rosto brilhar, o bom vinho que invoca a alegria (SI. 104:15), a pre­
sença material de um amigo, o prazer do sexo, a tranqüilidade do re­
pouso. E isto é alegria no mundo e no presente, devido ao próprio
mundo e ao presente. É uma linguagem transbordante de um dionisía­
co sentido erótico de vida, e que jamais procura se desculpar por isso.
As palavras proferidas pelo Criador no mito da criação constituem, na
verdade, as mesmas palavras que a comunidade endereçava ao mun­
do, na alegria do gozo: “É muito bom!"
No entanto, há uma fundamental diferença entre o deleite com o
mundo encontrado na comunidade de fé e o mesmo fenômeno tal co­
mo ele ocorre nas religiões da natureza. Para estas, a natureza era
doadora de vida, e, portanto, tinha de ser tanto desfrutada quanto res­
peitada como o limite sagrado do homem. O gozo aqui requer adapta­
ção, domesticação. O homem existe na natureza e em seu benefício.
Com a comunidade de fé, porém, isso se dava de maneira diferente.
Sua experiência com a natureza estava condicionada pela sua visão
da história, da liberdade libertadora que havia aberto caminho em dire­
ção a um novo futuro. Consequentemente, a natureza era experiencia-
da enquanto dádiva da liberdade, liberdade que se determina em favor
do homem. A idéia da criação, por conseguinte, não carrega uma teo­
ria cosmológica, mas uma percepção histórica do caráter em-favor-do-
homem da terra e de tudo o que existe. A política graciosa da liberta­
ção que segue em frente apesar do homem, política do agape, produz
e entrega-lhe uma realidade que possui beleza, alegria, permissão e
que toma Eros possível e necessário. O homem não pode expressar a
sua gratidão pela dádiva de Deus a não ser por meio da aceitação
alegre e erótica desta dádiva. O telos* do agape, assim, consiste em
Eros. E não poderia ser de outra forma. A teologia protestante tem es­
tado absolutamente determinada a manter a centralidade do agape.
Este termo descreve o “ Deus para o homem”, o Messias que gracio­

* Em grego, no original: “ objetivo", “ meta". (N. do T.)

201
samente liberta o ser humano, apesar da resistência e da impotência
humanas. Através desta opção a teologia protestante colocou-se deci­
sivamente ao lado da história. No entanto, se o agape preenche o ho­
rizonte, se a linguagem está dominada pelo verbo, estaremos perigo­
samente nos acercando de uma maneira gnóstica de ver o mundo,
maneira que postula não haver nada nele que possa ser amado. O
amor se daria sempre “apesar de” . Se a dinâmica do agape for levada
a sério, tem-se também de considerar Eros com seriedade. Talvez de­
véssemos recuperar a verdade da afirmação de Aquino, de que “ Deus
ama todas as coisas existentes, pois elas todas, por serem existentes,
são boas." (Tomás de Aquino, Summa theologica I, q.4, a.9.) E são
boas porquanto se mostram elementos necessários à reconstrução da
criação e de sua importância erótica enquanto parte da liberdade hu­
mana para com a vida.

Devido às boas dádivas da terra existirem em benefício do ho­


mem, um substantivo da linguagem da comunidade de fé adquire im­
portância central: o corpo. Somente através de seu corpo o homem é
capaz de receber a dádiva. É o corpo humano que estabelece a solida­
riedade do homem com o mundo e a solidariedade deste com ele. Por
meio do corpo o homem se descobre filho da terra. O ser humano é
feito “do pó do chão”. (Gen. 2:7) A natureza constitui o seu corpo e, por
conseguinte, o seu pão. Por isso ela é aquela “com a qual temos de
permanecer num contínuo intercâmbio, a fim de não morrer.” (K. Marx,
Alienated labor, em E. Fromm, Marx’s concept o f man, p. 101.) Por
meio de seu corpo o homem descobre a natureza como seu corpo.
Portanto, o corpo não consiste numa entidade estranha. É, sim, ami­
gável, carinhoso, um lugar de alegria e felicidade: o seu lar. Através de
seus sentidos corporais, o ser humano é capaz de se deleitar na natu­
reza. Descobre-se num jardim, num lugar de gozo estético. Um jardim é
uma combinação de cores, formas, odores, movimentos, ritmos e sons.
Num jardim as possibilidades sensoriais do homem são estimuladas
ao máximo. Ele se vê forçado a refletir sobre si mesmo e se torna
aberto como um horizonte para o que lhe vem do exterior. Aquele
mundo que se encontrava lá fora, através do corpo humano, converte-
se numa parte do homem. E mais que isso: é o corpo que se coloca
entre a dimensão existencial do homem (sua liberdade e seu amor) e o
mundo que o convida. Através do trabalho de seu corpo ele é capaz de

202
fertilizar e transformar o mundo. Deste modo, é o corpo que capacita o
homem a receber a dádiva como algo em benefício de sua criativida­
de. A dádiva assume então outro aspecto: ela está dada, está lá, go­
zando sua própria solidez e autonomia. O homem pode tomá-la, domi­
ná-la, explorá-la. É capaz então, devido ao seu corpo, que o põe em
relação com a dádiva do mundo, de construir uma ciência da natureza,
pois a dádiva não possui buracos, espaços vazios em que Deus se
oculte. O homem pode confiantemente explorar a natureza como algo
realmente dado. E através de seu corpo o homem pensa. Não pode ar­
rancar os seus olhos a fim de ver melhor. Seu pensamento requer os
sentidos. O ser humano não gera o objeto a partir do pensamento,
mas sim o pensamento a partir do objeto. Ele nomeia, e ao fazer isso,
não está simplesmente criando símbolos para aquilo que é objetivo, e
sim expressando o relacionamento entre este objetivo e ele próprio. O
nome descreve a sua percepção do mundo, enquanto algo que ali exis­
te em seu favor o mundo como uma dádiva. (Cf. L. Feuerbach, Tho
essence of christianity, p. XXXIV.)

É o corpo do homem que o torna uma pessoa. “Somente o corpo


consiste na força que nega, limita, circunscreve, concentra, e sem ele
nenhuma personalidade é concebível. A personalidade, a individuali­
dade, a consciência, sem a natureza, é nada." (ibid., p. 91.) Por meio
do corpo o homem se descobre uma pessoa, uma individualidade, e
tão-só através dele é possível criar-se o sentido da contradição e da
singularidade. Isso significa que o corpo é pré-condição para a comu­
nhão. Através dele o homem alcança a consciência de si enquanto um
“eu”, na experiência de encontrar outro corpo, o “tu”, que é a sua con­
trapartida. Através do corpo, portanto, o ser humano descobre que não
existe como uma mônada. O homem recebe o seu ser do “Outro".
Mostra-se social. Sexual. Seu corpo o conduz ao outro. O ser humano
não é primeiramente atraído pelo agape, ou seja, pelo amor ao outro,
independentemente do que este outro seja. É Eros quem conduz o
homem para a mulher e a mulher para o homem. Masculinidade e fo-
minilidade: este fato faz parte da bondade da criação e constitui umn
realidade que condiciona e torna necessário o sentido erótico da vida
O eu, centro primordial da consciência, a que os filósofos podem ch«»
gar por meio da abstração, que não é materialmente condicionado,
materialmente determinado e dependente do corpo, não possui qual
quer realidade para o gosto bíblico pela vida. De fato, quando o ho­
mem descobre o outro, reconhece o mundo como uma dádiva. Feuer-
bach observa:

“Sem os outros homens o mundo seria para mim não


apenas morto e vazio, mas sem sentido. Somente atra­
vés de seu companheiro o homem se faz claro para si e
sua auto-consciência; mas tão-só quando me faço claro
para mim mesmo o mundo se clarifica. (...) Um homem
que existisse absolutamente só perder-se-ia, sem qual­
quer senso de sua individualidade, no oceano da Natu­
reza; ele nem se compreendería enquanto homem, nem
a Natureza enquanto natureza. (...) O sentido da Nature­
za, que nos abre a consciência do mundo como mun­
do... surge primeiro através da distinção do homem a
partir de si mesmo/’ (Ibid., pp. 82-83.)

Assim, a percepção da natureza, enquanto dádiva da liberdade


ao homem, está mediada pela descoberta humana da liberdade por
meio do amor e da comunhão com o próximo. Ademais, através dessa
comunhão e da liberdade que ela implica, o homem descobre o tempo
histórico. Sem a liberdade o homem estaria simplesmente imerso na
natureza, faria parte dela. Por meio da comunhão ele descobre a von­
tade, o poder de projetar a sua transcendência sobre a natureza. O es­
pírito é uma dimensão do corpo, o “poder de estar-se voltado para o fu­
turo” que determina o corpo. (Bultmann, Kerygma and myth, p. 335.)
Por isso a linguagem da comunidade de fé se opõe definitivamente à
negação platônica do corpo. O futuro do homem está na ressurreição
do corpo.

Não se pode encontrar nessa linguagem, consequentemente,


qualquer lugar para uma transcendência além do mundo ou além do
corpo. A libertação do ser humano não tem nada a ver com a negação
do corpo, e sim com a sua libertação de tudo aquilo que o reprime, que
não o deixa livre para o mundo ou o mundo livre para ele. Defrontamo-
nos aqui com a mais materialista de todas as religiões, comenta Wil-
liam Temple. (W. Temple, Nature, man and God, p.478.) Evidentemen­
te este não consiste num materialismo do tipo daquele inaugurado por
Demócrito, que, basicamente, reduzia tudo a um jogo de átomos, e

204
sim numa visão do mundo material, a terra, o corpo, os sentidos, en­
quanto criação e expressão da liberdade, e como o único meio pelo
qual a liberdade conduz sua política de libertação. O Messias, o poder
da liberdade libertadora, é “carne”. Não há lugar para um Deus que se
dá ao homem ou que opera fora das condições materiais da vida. Não
há lugar para um templo no Jardim do Éden. Deus é encontrado em
meio às coisas que ele dá ao homem. Lutero mostrava-se profunda­
mente cônscio deste elemento da linguagem da comunidade de fé. A
liberdade de Deus para o homem, indicou ele, adquire forma objetiva,
concreta, no mundo. Tal conclusão derivou-se de sua cristologia. Se
Deus se determinou a ser sempre para o homem, numa forma material
e por meio dela, era preciso falar-se da onipresença, da ubiquidade do
corpo de Cristo, preenchendo todo o universo. O corpo de Cristo "deve
estar essencialmente presente em todos os lugares, mesmo na mais
ínfima folha de árvore,... em cada criatura, em seu ser mais interior e
mais exterior, em todos os lados, do princípio ao fim, acima e embaixo,
na frente e atrás, de forma que nada possa estar mais verdadeiramen­
te presente e dentro das criaturas que o próprio Deus e o seu poder."
(M. Lutero, That these words “This Is My Body, etc.", em Luther's
works, pp. 57-58.)

Não temos aqui uma interpretação cósmica de Cristo, um “Cristo


cósmico”, e sim uma interpretação cristológica do cosmos, o cosmos
visto da perspectiva da história messiânica da libertação, um “cosmos
crístico”. A transcendência, portanto, constitui a mais profunda dimen­
são do mundo, das coisas visíveis em que vivemos. Baillie interpretou
a visão de Lutero como uma “ imediatez mediada” (Cf. J. Baillie, Our
knowledge of God, pp. 80, 104 e 113): a presença de Deus no e atra­
vés do visível e sensorial. Desta forma, o sensorial não consiste num
trampolim que catapulta os nossos pensamentos para além do senso­
rial, em busca do Deus que criou mas que não se dá na e através da
criação, segundo a teologia tomista o concebia. O sensorial não consti­
tui simplesmente um instrumento, uma via, um caminho que nos con­
duz ao mundo da eternidade, mas sim o local, o único local da trans­
cendência, a única forma pela qual a encontramos. Por isso em Lutero
é possível encontrar-se um profundo gosto pela vida e uma apreciação
da bondade de todas as coisas criadas que, por meio da consciência
histórica da comunidade de fé, podem e devem ser aceitas como a

205
criação erótica do agape de Deus. Teilhard de Chardin emprega uma
linguagem semelhante: “Cristo se dá para nós através do mundo,
mundo que tem de ser consumado na relação com Ele. Por meio de
todas as coisas criadas, sem exceção, o divino nos invade, penetra e
molda. Nós o imaginávamos distante e inacessível, ao passo que, de
fato, vivemos mergulhados em seu seio ardente.” Ao encontrarmos o
cosmos estamos realmente face ao “sorriso universal” que cria aquele
"gosto pelo ser", pois através do mundo, “o ser... se torna, de alguma
maneira, tangível e saboroso” para nós. (P. Teilhard de Chardin, The
divine milieu, pp. 66, 89, 108-109.)

Assim, o corpo e o cosmos se tomam, segundo a maneira como


são vistos da perspectiva da história da liberdade, a ocasião para uma
exuberância erótica, a possibilidade do triunfo do estilo dionisíaco de
vida sobre o apolíneo, a permissão para um transbordamento de vitali­
dade, de deleite, de prazer e de alegria na e através da vida dos senti­
dos. A dádiva é muito boa. Não se pode recebê-la sem sentir o seu
delicioso gosto na boca, que estimula o apetite por mais: a dádiva
consiste no "aperitivo” que faz o homem feliz, em deixá-lo bêbado de
felicidade. Ele anseia por mais, pela realização, pela ressurreição do
corpo, pela plenitude da vida de que nossa presente situação é apenas
um deleite antecipado.

Devido à vida ser tão boa, o corpo tão cheio de possibilidades, o


mundo tão convidativo, o sofrimento se mostra tão doloroso. O sofri­
mento emerge quando se experiencia a repressão imposta à vida, que
não permite ao corpo humano ser livre para o mundo, nem o mundo
ser livre para o homem. Ele emerge como resultado e como protesto
contra tudo aquilo que, em nossa presente realidade histórica, impos­
sibilita a realização do sentido erótico da vida e, portanto, aborta o
projeto do agape, da política do Messias. O sofrimento, em decorrên­
cia, não brota nem da morbidez subjetiva, nem de uma avaliação pes­
simista do mundo e de suas possibilidades. Sofre-se quando os brotos
que prometem a chegada da primavera são mortos pela volta do in­
verno. Sofre-se porque a explosão da alegre expectativa criada pelo
"aperitivo” é frustrada pelos poderes que mantêm o homem reprimido.
Uma canção expressa com beleza como o sofrimento brota desse
senso erótico da vida:

206
‘'Como dois e dois são quatro
Sei que a vida vale a pena,
Embora o pão seja pouco
E a liberdade pequena.
Como teus olhos são claros
E a tua pele morena,
Como é azul o oceano
E a lagoa serena,
Como um tempo de alegria
Por trás do terror me acena,
E a noite carrega o dia
No seu seio de açucena,
Como dois e dois são quatro
Sei que a vida vale a pena."

(Denoy de Oliveira e Ferreira Gullar,


"Como dois e dois são quatro".)

Os olhos claros, a pele morena, o oceano azul e a lagoa serena,


a noite que carrega o dia em seu seio de açucena: este é o “aperitivo”
que, no hoje da repressão, do sofrimento, do pão escasso, da liberdade
pouca e do muito terror, cria o gosto erótico pela vida e o anseio por
um novo amanhã de libertação. A permanência dessa alegria, apesar
do sofrimento, é o que mantém vivas a visão e a esperança de um novo
tempo de alegria. Por conseguinte, a dialética não ocorre entre um
presente totalmente negativo e que deve ser negado em sua totalida­
de, e um futuro que elimine idealmente esse sofrimento, tornando-se
assim pura positividade. Isso configuraria uma nova forma de docetis-
mo, que nega totalmente o presente em favor do futuro. O sofrimento
e a negação existem historicamente apenas em benefício da e devido
à libertação do bom e do alegre que o mundo apresenta ao homem.
Comenta Bonhoeffer: “pode-se acreditar na ressurreição e num mundo
novo” somente quando “se ama a vida e o mundo com tal intensidade
que, sem eles, tudo estaria perdido.” (Bonhoeffer, Letters and papers
from prison, p. 103.)

O messianismo humanista, bem como o humanismo messiânico,


mostra-se definitivamente comprometido com a libertação do corpo.
Ele parte do corpo; em nome do corpo nega tudo o que o faz sofrer,

207
tudo o que signifique violência e repressão, tudo o que cause a fome e
a morte. A bem do corpo, demonstra ter esperança quanto a um novo
amanhã, um amanhã no qual a repressão findará. E através do corpo
planeja libertar o homem para o mundo e o mundo para o homem. Em
favor do corpo, rejeitou a religião. Feuerbach achou necessário se
“des-teologizaf a fé cristã, a fim de recuperar o verdadeiro objeto da
linguagem religiosa: o homem. E a eliminação de Deus significava,
basicamente, a libertação do homem do mundo não-sensorial, mundo
das idéias e realidades metafísicas, bem como a sua libertação para
este mundo no qual tinha o seu verdadeiro ser, o mundo dos sentidos
e da natureza. As palavras com as quais Feuerbach encerra o seu A
essência do cristianismo constituem um resumo de sua compreensão
daquilo que é necessário para o homem ser humano. "Desta forma,
deixemos que o pão nos seja sagrado, que o vinho nos seja sagrado, e
também que a água nos seja sagrada! Amém.” (Feuerbach, ob. cit.,
p.278.) Através da dissolução da religião, Feuerbach proclama a liber­
dade do homem para a natureza e a da natureza para o homem. Esta
mesma nota também soa nos escritos de Nietzsche. Nietzsche investe
contra o cristianismo por ver nele a negação total da vida dos sentidos,
do corpo, do mundo, em favor de Deus. O cristianismo consiste num
“ódio contra tudo o que é humano, animal, material”, “um desgosto pa­
ra com os sentidos”, um “medo da felicidade e da beleza”, uma "von­
tade do nada., que vai contra a vida, uma revolta contra os pressupos­
tos mais fundamentais da vida.” (F. Nietzsche, Towards a genealogy of
morais, em The portable Nietzsche, p. 452.) A fim de fazer lugar para
Deus, o cristianismo tem de matar o homem. O ataque contra os pode­
res anti-corpo assume uma forma diferente em Marx. O inimigo aqui é
a propriedade privada, sobre a qual escreve:

“A propriedade privada nos tomou tão estúpidos e par­


ciais que um objeto somente é nosso quando o possuí­
mos, quando existe para nós enquanto capital ou quan­
do é diretamente comido, bebido, vestido, habitado, etc.,
ou seja, utilizado de alguma maneira. Assim, todos os
sentidos físicos e intelectuais têm sido substituídos pela
simples alienação de todos esses sentidos: o sentido de
posse. (...) Quanto menos você coma, beba, compre li­
vros, vá ao teatro, a bailes ou a espetáculos, e quanto

208
menos você pense, ame, teorize, cante, pinte, discuta,
etc., mais será capaz de economizar, e maior será o seu
tesouro, tesouro esse que nem a traça nem a ferrugem
poderão corromper: o seu capital. Quanto menos você
for, quanto menos expressar a sua vida, mais possuirá,
maior será a sua vida alienada.” (Citado por E. Fromm,
ob. cit., pp. 132 e 144.)
A predominância do sentido de posse consiste, portanto, na total
alienação da vida, pois ele reprime o sentido erótico da vida e o subli­
ma através do poder da propriedade.
A paixão e a visão da libertação humana do messianismo huma­
nista e do humanismo messiânico, assim, concordam num ponto: am­
bos esperam a ressurreição do corpo, a ressurreição da natureza, a
eliminação da repressão, o triunfo do sentido erótico da vida. Norman
O. Brown resume muito bem esse futuro esperado:
“A questão que a humanidade enfrenta é a abolição da
repressão - em linguagem cristã tradicional, a ressurrei­
ção do corpo. A ressurreição do corpo consiste num
projeto social que encara a humanidade como um todo,
e que se converterá num problema político prático
quando aos estadistas do mundo se pedir que dêem fe­
licidade em vez de poder.” (N. O. Brown, Life against
death, pp. 307 e 317.)
Apesar da repressão do corpo e do medo do erótico poderem ser
expressos como uma dimensão da subjetividade, seria um erro pensar-
se que o projeto social da ressurreição do corpo pudesse ser realizado
mediante processos terapêuticos ou qualquer técnica de libertação in­
dividual. Não devemos nos esquecer que a repressão assume uma
forma política e econômica, enquanto estruturas, enquanto poderes de
repressão. O problema, portanto, não consiste apenas em que a subje­
tividade não esteja livre para a vida, e sim na articulação total da re­
pressão, que torna o sentido erótico da vida impossível, mesmo quan­
do o homem se mostra subjetivamente livre para ele. Por isso Marx cri­
ticou Feuerbach duramente: por acreditar que o simples fato de se
desmascarar a ilusão subjetiva traria a libertação necessária. A mesma
crítica poder-se-ia dirigir contra Norman O. Brown. O que se mostra

209
necessário, por conseguinte, é uma prática que liberte a sociedade das
estruturas da repressão.
O humanismo messiânico está profundamente cônscio desse fa­
to. A libertação do sentido erótico da vida constitui uma dádiva da polí­
tica messiânica de libertação. Tal dádiva, deste modo, somente será
restituída ao homem se ele participar da política de Deus através do
sofrimento, da negação, da esperança e da ação obediente.
A comunidade de fé, consequentemente, encontra-se num confli­
to permanente com o sentido erótico da vida do indivíduo conservador,
pois tal sentido nunca ocorre “no caminho” . Para o conservador, o seu
gozo da vida faz a história chegar ao fim. Ao beber a vida ele elimina
de sua xícara, cuidadosamente, qualquer coisa amarga. É incapaz de
sofrer com aqueles que sofrem. Seu próprio deleite torna-o bêbado e
ocupa todo o horizonte de suas preocupações. Por conseguinte, procu­
ra eliminar tudo o que desafie o seu prazer na vida. É incapaz de ver
que o seu deleite constitui tanto uma contradição no mundo como uma
causa da contradição do mundo. É uma contradição no mundo por ig­
norar voluntariamente as dores dos pobres e fracos, e por derivar pra­
zer do sofrimento dos oprimidos. Seu gozo, assim, faz nascer estrutu­
ras de repressão, que tanto destroem o corpo do homem como tornam-
lhe inacessíveis as boas coisas da vida. O sentido erótico da vida do
conservador perde o seu espírito, o seu caráter de “aperitivo", a sua
orientação para o futuro. Em vez de tornar o homem mais desejoso de
produzir novas formas de liberdade para a vida no mundo, transforma-
se no instrumento para a sua própria domesticação. Torna-se gordo
e incapaz de se mover.
No contexto da política messiânica de Deus para a libertação, o
sentido erótico da vida existe somente enquanto mantém o ser huma­
no aberto a um novo futuro. Lá está a vida, para ser comida, mas o
homem tem de comê-la com ervas amargas, com o dorso cingido, com
sandálias nos pés e apressadamente, (ver Ex. 12:8-11.) O gosto amar­
go do sofrimento não pode nunca ser eliminado do “aperitivo”, de for­
ma que o homem jamais se amolde a ele.
Mas o humanismo messiânico também rejeita o pecado oposto
dos revolucionários. O revolucionário, por acreditar que a eliminação
da repressão e a restauração do sentido erótico da vida dependem

210
lAosó dos poderes do homem, conclui ser necessário disciplinar to-
i.ilmente o seu presente, a fim de juntar suas energias para a tarefa da
libertação. A fim de destruir a repressão imposta à sociedade, acha ser
necessário impor ao seu presente uma estrutura de repressão similar.
O presente então se perde, passando a existir apenas em favor do fu-
Iwro. Consiste num tempo de transição, de ascetismo. O futuro - e não
o presente - constitui o tempo da libertação do sentido erótico da vida,
das garras da repressão. Desta maneira, o presente se transforma no
negativo absoluto. E o futuro a ser liberto pela ação revolucionária, ao
contrário, converte-se no positivo absoluto. Assim como a metafísica e
a religião negam a terra em favor do céu, o presente é aqui negado em
lavor do futuro. O homem é absolvido da desumanidade e da brutali­
dade do presente, por ser este um tempo de transição, um tempo que
não conta. E o futuro, ao ser produzido pelos revolucionários, tende a
se tornar fechado, pois se acredita que ele constitua a presença da
"eschaton”. Por isso as revoluções que uma vez foram portadoras de
novas esperanças logo se tornaram cristalizadas, rígidas e dogmáticas:
uma verdadeira ressurreição dos pecados dos conservadores. Por outro
lado, se falha o projeto de libertação pelos poderes apenas do homem,
o homem não encontra formas de sobreviver no meio do cativeiro. A
chama do gosto pela vida se extingue pela frustração e pela amargura.
Foi com semelhante ânimo que o poeta escreveu o Salmo 137:

"Sentados às margens dos rios de Babilônia


ali chorávamos,
com saudades de Sião.
Nossas harpas,
nós já não as carregávamos em nossas mãos:
nós as penduramos, chorosos, nos galhos dos chorões...
Pois aqueles que nos haviam levado cativos exigiam
que cantássemos,
ordenavam que estivéssemos alegres:
'Cantai-nos canções da sua terra!’
Mas como poderiamos cantaras canções do nosso Deus,
em terra de exílio?
Babilônia,
destruidora,
feliz aquele que se vingar por tudo o que nos fizosto!

SM I
Feliz aquele que tomar os teus filhos
e os despedaçar sobre as rochas.”
Este é o canto da ausência de futuro, da ausência de alegria, do
tempo perdido, do tempo de sofrimento, apenas; do tempo contra o
homem; do tempo do fim do homem.
E mais do que isso: a libertação do sentido erótico da vida ape­
nas pelos poderes do homem implica em que apenas aqueles que de­
têm o poder para realizá-la terão algo por que esperar. Os fracos, os
doentes, os cegos, os incapazes de desfrutar o sexo, aqueles que con­
tinuam prisioneiros do medo do mundo, esses continuarão marginais,
anormais, pessoas para quem a linguagem do sentido erótico da vida
não tem qualquer significado. A nova sociedade, na verdade, consiste
num novo tipo de elitismo: a sociedade para os fortes, saudáveis e bo­
nitos.
A comunidade de fé, entretanto, não coloca o sentido erótico da
vida no final da práxis de libertação, e sim no meio dela. No caminho
rumo ao novo amanhã o homem recebe a dádiva do presente, o tempo
de deleite, o tempo que não existe como meio para qualquer outro. Há
um tempo de descanso, de contemplação, de pura alegria. No cami­
nho rumo à terra prometida o homem aprendeu que há um tempo em
que tem de parar, de abdicar a todos os intentos de construir o futuro,
para permanecer em receptividade pura e no total abandono do cálcu­
lo. Seu hoje era uma dádiva de Deus. Ele podia descansar porque a
política da libertação não era conduzida somente pelos seus poderes e
sim pela paixão e pela atividade de Deus. Portanto, não era apenas
possível repousar no presente sem perder o futuro, mas também ne­
cessário repousar no presente a fim de não perder o futuro. No Novo
Testamento encontra-se o mesmo. Aquele que é reconhecido como
presença do futuro e que atua afim de produzi-lo, constitui exatamente
Aquele que comanda a aceitação do hoje em total abandono e liberto
da ansiedade:
“ Não vos inquieteis quanto à vossa vida, com o que haveis
de comer ou de beber, nem quanto ao vosso corpo, com o
que haveis de vestir...Olhai as aves do céu...Olhai os lírios
do campo...Não vos inquieteis, portanto, com o dia de
amanhã. Procurai primeiro o Seu reino■e a Sua justiça, e
tudo o mais se vos dará por acréscimo.” (Mt.6:25-33.)

212
No contexto da política do reino, assim, o homem descobre que
todo o mundo se abre ante ele como uma dádiva para o seu deleite. O
ser humano toma-se então livre como uma criança que aceita o hoje
totalmente liberta da ansiedade quanto ao amanhã. O homem está li­
vre para as coisas simples da vida, coisas que não produzem manche­
tes nem mudam o mundo. Livre para conversar, para beber e comer,
para fazer nada. em pura contemplação, para desfrutar o jogo do sexo,
para brincar. Está liberto para o humor, que tão-só existe quando o ser
humano não se leva muito a sério, quando não está dominado pelas
obsessões messiânicas quanto ao seu poder para criar a história. Está
livre para a piada, para a arte, para a contemplação da natureza. Devi­
do à vida humana ser sustentada pela política de Deus, que deixa o
hoje aberto para um novo amanhã, o presente se toma livre para o
homem. O presente consiste verdadeiramente numa dádiva boa que
deve ser aceita e desfrutada com gratidão. O homem está livre até
mesmo para viver em cativeiro, sem perder o sentido erótico da vida
devido à frustração de um futuro fechado, e sem embebedar-se do ero­
tismo como uma compensação para a perda do futuro. Parece ser este
o significado da carta de Jeremias aos exilados na Babilônia:

“Edificai casas e habitai-as; plantai pomares e comei os


seus frutos. Tomai mulheres, gerai filhos e filhas, dai mu­
lheres aos vossos filhos e dai maridos a vossas filhas, para
que tenham filhos e filhas...” (Jer. 29:5-6)

Que conselho mais terrível poderia o profeta dar aos revolucioná­


rios? Como podiam eles plantar árvores e esperar pelos frutos? Como
podiam construir casas na terra do cativeiro e nelas viver? Além disso,
como poderíam esperar pelo nascimento de seus netos? O fato, con­
tudo, é que para o profeta, mesmo no tempo de cativeiro, é possível
permanecer-se humano, contanto que não se seja nem dominado pela
amargura do desespero, pela perda da esperança e do sentido erótico
da vida, nem domesticado pelas panelas cheias que os senhores lhes
oferecem e que criam o escravo feliz. No cativeiro permanece-se hu­
mano quando se tem "esperança contra toda a esperança”. Mas isto
apenas é possível no contexto da confiança na política de Deus, políti­
ca esta que faz até mesmo o tempo de cativeiro ser o da gravidez de
um novo amanhã: tempo para o qual “um novo futuro e uma esperan­

213
ça" são dadas. (Jer. 29:11) Nesse contexto, o homem encontra inclusi­
ve a Libertação da obsessão pela liberdade. (Hoekendijk) Aqui, o proje­
to social de ressurreição do corpo deixa de ser somente uma esperan­
ça dada aos fortes e vivos, tomando-se o projeto universal de ressur­
reição dos mortos: a libertação universal do corpo para o sentido eróti­
co da vida, num mundo dado ao homem para o seu deleite e felicidade.
CAPÍTULO SEIS

A TEOLOGIA COMO LINGUAGEM DA LIBERDADE

Iniciamos estas reflexões teológicas perguntando-nos acerca da


possibilidade de uma nova linguagem de fé que pudesse exprimir a vi­
são e a paixão pela libertação humana. Indicamos que a necessidade
dessa nova linguagem se derivava do compromisso concreto de mui­
tos cristãos com a tarefa de tornar o homem historicamente liberto dos
poderes que o mantêm escravizado. Além disto, sugerimos que em
meio a esse processo os cristãos eram confrontados com a linguagem
do humanismo político, linguagem esta que, a partir de sólidas bases,
critica de maneira radical qualquer outra que fale de theos, qualquer
linguagem teológica. Acreditamos que tal encontro provê a ocasião pa­
ra a morte e a ressurreição tanto da linguagem de fé quanto da lingua­
gem do humanismo político. Foi isto que tentamos indicar nos capítu­
los precedentes.
Neste ponto, parece ser possível apresentar um resumo dos prin­
cipais elementos dessa nova linguagem de fé, tomada aqui objeto de
investigação.
I.E Ia consiste numa linguagem totalmente histórica. Seus ver­
bos e substantivos referem-se à revelação enquanto história. Tais ver­
bos descrevem e apontam para a dialética política que, no passado,
criou o evento da libertação humana da escravidão, tornando assim
possível a esperança. Os substantivos, por sua vez, não se referem a
objetos meta-históricos. Pelo contrário: possuem a solidez, a cor, o
odor e a forma das coisas terrenas. Referem-se ao mundo bom que,

215
enquanto dádiva da dialética da libertação, é continuamente penetra­
do, recriado e ressuscitado pela ação da liberdade. Estes substantivos
falam dos sofrimentos, alegrias e esperanças do homem. Ela é, portan­
to, uma linguagem humana que rejeita tudo o que não se refira ao
mundo do homem e que incorpora em seu universo de discurso tudo o
que evoque o mundo dos homens e a sua esperança de libertação. Pa­
rafraseando Feuerbach, dir-se-ia que a linguagem da fé “repudia in­
condicionalmente a especulação absoluta, imaterial e auto-suficiente:
aquela especulação que extrai seu material do interior."

Os que empregam esta linguagem diferem totalmente daqueles


“que arrancam os olhos para enxergar melhor", pois a sua maneira de
falar requer “os sentidos, especialmente a visão": tal linguagem encon­
tra suas idéias naqueles materiais que podem ser conseguidos apenas
através da atividade dos sentidos. Ela não “gera o objeto a partir do
pensamento, mas o pensamento a partir do objeto". Suas “idéias” não
são entidades que subsistam por si mesmas: constituem apenas “fé
num futuro histórico”. (L. Feuerbach, The essence of christianity, p.
XXXIV.) Tal linguagem não se alimenta nos buracos, limites e cantos
da vida humana. A palavra “Deus”, assim, não é “um tapa-buracos pa­
ra a incompletude de nosso conhecimento."(D. Bonhoeffer, Lettersand
papers from prison, p. 190.) Se esse fosse o caso, a linguagem teoló­
gica seria um parasita cuja força seria proporcional à sua capacidade
para explorar a fraqueza humana. Onde o homem estivesse atormen­
tado pela culpa, lá ela falaria do perdão: onde o homem tivesse medo
da morte, lá ela pronunciaria a palavra vida; onde o homem estivesse
desesperado, lá ela diria “esperança”. Não há jeito de se defender tal
linguagem da acusação de Freud de que ela nada mais é que “reali­
zação de desejo." (S. Freud, The future o f an illusion, pp. 47-49,
69-71.)* A linguagem da fé, enquanto determinada pela história e para
ela voltada, não fala de um reino meta-histórico e meta-mundano, no
qual a esperança se realiza e os sofrimentos terminam. Antes, perma­
nece histórica em seus verbos e substantivos, e neste contexto e com
este conteúdo histórico e terreno, fala da realidade e da possibilidade

* Traduzido e publicado no Brasil com o tftulo O futuro de uma ilusão. O mal-estar da


civilização e Outros ensaios, pela Imago Editora. (N. do T.)

216
de libertação humana, da realidade e da possibilidade da liberdade pa­
ra a vida.
2. A intenção desta linguagem é apenas a libertação histórica dos
homens; por isto, em si mesma, ela possui apenas importância se­
cundária. O elemento primário, do qual ela nasce e para o qual aponta,
consiste na política da liberdade em processo, na qual a liberdade para
o futuro e a liberdade para a vida devem ser encontradas. Sua signifi­
cação ó profética. Quando os profetas diziam “assim fala o Senhor” ,
eles estavam simplesmente “explicando a intenção de Deus e o signi­
ficado dos eventos de seus dias." (G. E. Whght, God who acts, p. 83.)
É nos eventos carregados da dinâmica libertadora da liberdade (e de­
vido a eles) que o homem encontra sua humanidade. Os acontecimen­
tos históricos, por conseguinte, constituíam a revelação e o poder da
vontade de Deus. “A Palavra não nos conduz para longe da história,
mas para a história e para a participação responsável nela." (ibid., p.
107.) A linguagem, assim, constitui nada mais nada menos que uma
nota de rodapé aos acontecimentos que, num momento específico,
forneceram o vetor e a confiança quanto às possibilidades de liberta­
ção humana em meio à história. Em decorrência, ela não serve de
trampolim para uma realidade transcendental, mas fornece uma leitura
crítica dos “jornais” , convidando, ou melhor, chamando o ser humano à
participação responsável na arena da história. Esta função secundária
da linguagem, de simples nota de rodapé, mostra-se da maior impor
tância para a compreensão de como o passado, o presente e o futuro
estão articulados no seu universo de discurso.
O passado traz à comunidade de fé a memória daquilo que uma
vez foi conseguido pela política de libertação. “Quando o profeta olha
para trás”, comenta Minear, “a história do passado toma-se uma pará­
bola e um signo do propósito contínuo de Deus." (P. Minear, Eyes ot
faith, p. 216.) Recordar o passado consiste, portanto, em se ver aquilo
que é possível ao presente, através da perspectiva do movimento da
liberdade em marcha. Em decorrência, o homem é remetido ao seu
presente, é confrontado com o caráter provisório dos poderes que hoje
o fazem cativo, tornando o futuro aberto para a esperança. O passado
não é, jamais, uma tela. Não fornece qualquer justificativa para a lin­
guagem fotoelétrica que tem como propósito manter vivo o passado no
presente, como se isso fosse possível. Porque a memória da comunl-

21 /
dade de fé se recorda de um passado de liberdade, a linguagem a li­
berta da servidão do passado. A liberdade da qual este passado fala
pode não se ter esgotado, pois de outra forma não seria mais liberda­
de no presente. Ela permanece como fator da história. “O passado é
sempre mediado”, observa R. Kroner. “ Ele não consiste mais em vida,
mas tão-só na imagem de uma vida que já foi." (Citado por P. Minear,
ob. cit., p. 60, de R. Kroner, How do we know God?, p. 111.) O passa­
do, quando foi presente, constituiu a arena para a política da liberdade.
Porém, uma vez tornado passado, não pode mais conter a liberdade. O
passado está terminado, está definitivamente além do alcance da li­
berdade, liberdade esta que consiste na presença do futuro nesse
tempo que agora é o hoje. A linguagem da comunidade de fé, desta
forma, ignora total mente o problema de como tomar-se contemporâ­
neo do tempo consumado da revelação passada. Ignora tanto o pro­
blema quanto a possibilidade de transtemporização, possibilidade que
tem sido central para a teologia protestante. A contemporaneidade não
pode ser um problema para a linguagem que fala de Deus como a
presença do futuro.
Assinala Moltmann: “Recordar a promessa feita anteriormente
significa perguntar ao passado acerca do futuro.” A memória da comu­
nidade de fé, por conseguinte, mostra-se formadora do futuro. É óbvio
que a capacidade de se ter esperança quanto ao futuro não constitui
um monopólio daqueles que detêm a memória da comunidade de fé.
O poder de projetar é intrínseco à vontade. Consiste numa expressão
intrínseca ao espírito do homem. Este poder de transcendência sobre a
garra hipnótica dos fatos dados do presente, todavia, pode ser nada
mais que uma realização do desejo ou uma fonte de planos dogmáti­
cos utópicos para uma sociedade perfeita. Para a linguagem da fé, o
poder de projetar é controlado pela memória da dialética histórica da
libertação; é a linguagem da esperança sobre o que é possível para a
história e para o seu futuro. O futuro e a esperança a que ela se refere
permanecem, assim, radicalmente históricos. Como a memória é a pro­
fecia ao contrário, a esperança constitui a memória projetada no futuro.1

1. “ Na visáo hebraica e cristá da história, o passado é uma promessa para o futuro;


consequentemente, a interpretação do passado torna-se uma profecia ao contrário." (K. Lõ-
with, Meaning in hislory, p. 6.)

218
O passado e o futuro não permanecem, entretanto, dimensões
abstratas do tempo. O passado é lembrado e o futuro esperado a partir
de um presente histórico e em seu benefício. É quando o homem sen­
te as dores e contradições do presente e se mostra comprometido com
a sua libertação que o passado adquire a determinação em-favor-do-
presente e, assim, fornece-lhe uma nova dimensão de negação e uma
nova possibilidade de esperança. É somente no sujeito que está inse­
rido no presente que “o passado e o futuro são fundidos pela forja da
vida, com seus laços e lealdades entre os homens.” (F. Kaufmann, em
Philosophy and phenomenological research, n3 *9 4, p. 296.) O presente
constitui o tempo em que o homem vive, sofrendo e tendo alegrias. É
a ocasião em que a negação e a esperança podem se tornar história
através da sua ação obediente. As dores e alegrias do presente são,
assim, os elementos que mantêm o passado aberto. A fusão do pas­
sado e do futuro, em decorrência, ocorre tão-só na e através da inteli­
gência engajada, que tem nas condições históricas concretas do pre­
sente o seu ponto de referência permanente, condições estas em favor
das quais todo o processo de pensamento é empreendido. “O veredic­
to do passado é sempre um oráculo”, observa Nietzsche. Portanfo, “a-
penas como arquitetos do futuro e conhecedores do presente o com­
preendereis.” (Citado por Minear, ob. cit., p. 203.) Os atos de lembran­
ça e de esperança que determinam a linguagem da comunidade de fé,
desta forma, não têm qualquer realidade em si mesmos, mas a adqui­
rem através do engajamento na política de libertação em processo,
política que constitui a situação e a condição de inteligibilidade teoló­
gica, ou seja, a situação e a condição dentro das quais esta linguagem
pode ser falada.

3. Quando a comunidade de fé fala, ela expressa uma experiên­


cia histórica na qual nenhum presente é final. Sua inteligência engaja­
da sofre com as dores do presente, indicando o elemento de inverdade
nele existente. Quando ela se recorda, defronta-se com a história de
uma política de libertação em marcha que, para libertar as boas dádi­
vas do presente (daquilo que hoje as reprimem) num novo amanhã,
precisa ser negativa. Tal memória, apesar de não ser a origem da ati­
tude crítica para com o presente (pois que esta atitude se deriva da in­
serção de alguém em suas dores), informa tanto a atitude crítica face
ao presente como a esperança quanto a um novo futuro. A presença

219
dos poderes repressivos e negativos da política de preservação, assim,
indica que apesar de a revelação ser história, a história não é revela­
ção. Ela não constitui um processo divino. Por conseguinte, a lingua­
gem da comunidade de fé não explica nem interpreta o enigma da his­
tória a partir de um ponto de vista privilegiado de referência transcen­
dental. Ela não transforma “fatos em valores". (L. Kolakowski, The
priest and the jester, em M. Kuncewicz, ed., The modem polish mind,
p. 306.) Pelo contrário: expressa a negação permanente e a esperança
que relativiza e dessacraliza cada presente.
Se a linguagem da comunidade de fé se mostra, por um lado, to­
talmente histórica, mas, por outro, não se refere à história como um
processo divino, ela é uma linguagem de um mundo secular. Um mun­
do secular significa duas coisas. Primeiro, ele é totalmente histórico.
Ele não procura pontos meta-históricos de referência ou valores de ou­
tro mundo para se organizar. “ Não olha primeiro atrás das estrelas a
fim de encontrar um significado para a terra depois.” Seus horizontes
são temporais. Desta maneira, a linguagem da comunidade de fé ex­
pressa a coragem do homem para permanecer histórico. Segundo, um
mundo secular é um mundo experimental, desprovido de um centro,
mundo que deixa para trás as possibilidades negadas e que marcha
rumo a horizontes ainda abertos. Luta constantemente contra absolu­
tos, pois todos os absolutos são ídolos. Linguagem secular e seculari-
zante. Seu poder secularizante provém da direção secularizante do ve­
tor da política de Deus. Somente continuando secular a vida humana
não se transformará em prisioneira do passado. Somente permane­
cendo secular cada novo amanhã continuará um novo ponto de parti­
da, um experimento permanente, uma exploração constante das novas
possibilidades.
Portanto, a linguagem da comunidade de fé, enquanto expressiva
de uma história em constante secularização, não aponta qualquer nú­
cleo eterno e absoluto. É linguagem que flutua no fluxo sempre mutá­
vel do tempo. Pode-se perguntar se tal linguagem não expressa real­
mente o fim do homem! Não precisamos, por acaso, de lampejos da
eternidade e estabilidade a fim de sobreviver? Não necessitamos de
uma experiência emocional com o ‘Totalmente Outro”, o “Agora Eter­
no”, ou o conhecimento de verdades absolutas, para não sermos en­
golidos pela temporalidade? A resposta da linguagem da comunidade

220
de fé afirma que o permanente, o agora eterno, o absoluto no tempo,
são os verdadeiros inimigos do homem, destruidores do seu espírito. A
transcendência em meio à vida toma forma exatamente na relativiza-
ção permanente do presente, que o torna aberto àquelas possibilida­
des agora interrompidas. A transcendência triunfa quando todos os ab­
solutos desaparecem e quando o homem tem de viver na “santa inse­
gurança" de um mundo totalmente secular. Mas secularização não
quer dizer profanação. Um mundo profano é um mundo vazio de trans­
cendência, dela separado e a ela se opondo. Se isto ocorrer não é
possível viver neste mundo como um lar. No contexto da política de
Deus, todavia, o mundo se mostra secular devido ao ímpeto seculari-
zador da liberdade que vive em seu meio. Desta forma, a seculariza­
ção é a criação positiva da política de libertação. A dialética da política
de libertação e o mundo secular, assim, caminham lado a lado. Con­
sequentemente, o homem está livre da preocupação com o absoluto,
com a religião, com o inamovível, e ainda liberto para viver como um
experimento permanente. Por isso a linguagem da comunidade de fé
encontra-se em luta permanente contra o secularismo. O secularismo
consiste numa troca de ídolos: o abandono dos absolutos metafísicos,
religiosos e eclesiásticos e a opção por absolutos históricos. Esta ab-
solutização da história é descrita por Leszek Kolakowski no ensaio “O
sacerdote e o bufão”. "Uma chuva de deuses cai dos céus nos ritos fu­
nerais do único Deus que sobreviveu. Os ateus têm os seus santos, e
os blasfemos erigem capelas.” (ibid., p. 325.)

É este “desejo do absoluto” que cria o “sacerdote secular", que


absolutiza uma nova ordem. Tal desejo faz nascer o sacerdócio en­
quanto categoria histórica e política. “O sacerdócio não consiste me
ramente no culto do passado visto através de oinos contemporâneos”,
declara Kolakowski, “e sim na sobrevivência do passado numa forma
não-transfigurada. Assim, ele não é apenas uma certa atitude intelec­
tual para com o mundo, mas, de fato, uma forma de existência do
mundo, ou seja, uma continuação fatual de uma realidade que não
existe mais.” (ibid., p. 326.) Os ídolos históricos não deixam de ser
ídolos ao se tomarem históricos. Seu caráter de ídolos deriva-so do
seu poder para monopolizar o futuro, para transformar uma ceda ex­
pressão histórica no centro do mundo. São ídolos por serem uma pre­
sença do passado que não permite o nascimento do futuro e do novo.

221
A linguagem da comunidade de fé, consequentemente, é icono­
clasta por natureza. Ela participa não só daquela “atitude de vigilância
negativa face a qualquer absoluto”, encontrada na filosofia do bufão
que Kolakowski advoga, mas também do seu humor, humor que des-
sacraliza por meio do ridículo as cômicas pretensões dos “sacerdotes”.
E os que empregam a linguagem da fé com o espírito do bufão não
devem se esquecer de que não existe humor quando não se está pron­
to para rir da própria voz. O caráter iconoclasta, subversivo e humorís­
tico da linguagem de fé, no entanto, brota da participação do sujeito
que a fala na política, que expressa a paixão e a visão da libertação
humana. Ela mantém seu caráter secundário, sua qualidade de nota
de rodapé, sua referência permanente à “práxis”, que introduz na histó­
ria uma nova possibilidade da vida humana.
4. A linguagem da comunidade de fé, por tudo isto, é expressão
da imaginação. Ela não é puramente descritiva. Uma linguagem pura­
mente descritiva transforma fatos em valores. A imaginação, ao rejeitar
os fatos como seu limite, exprime a transcendência da razão sobre o
mundo estabelecido. A imaginação é uma forma de crítica àquilo que
é, uma expressão da negação, uma função da razão que depende do
espírito do homem, de seu poder para mover-se para além do mundo
fechado dos fatos. Uma linguagem puramente descritiva é capaz tão-
somente de nomear as coisas presentes e, em decorrência, coloca-as
como limite para a liberdade humana. Já uma linguagem criada pela
imaginação é capaz de “ nomear as coisas ausentes”, e, fazendo isso,
quebra o feitiço das coisas presentes.
Tanto o cientista quanto o humanista político poderíam, não obs­
tante, levantar a questão da possibilidade de ser esta linguagem da
imaginação uma forma de alienação. Não há maneira de se provar
cientificamente a verdade de tal linguagem, poderíam dizer. Tudo indi­
ca não ser ela comprovável, falsificável, e, consequentemente, carecer
de sentido, constituindo um tipo de ficção que não faz justiça aos fa­
tos, tais como eles são. Pode ser. Em todo compromisso histórico com
algo ausente está envolvido um risco. Porém, quero perguntar: não é
através de um risco por algo ausente que a linguagem da ciência se
mostra capaz de abrir novos caminhos em direção ao futuro? Não será
verdade que sua forma de operar é, em muitos aspectos, semelhante à
linguagem da fé? Thomas S. Kuhn, em sua obra A estrutura das revo­

222
luções científicas, indica ser um erro acreditar-se que a descoberta
científica ocorre por meio de um processo simples de acumulação de
fatos descritos objetivamente, sem o auxílio da imaginação. Kuhn su­
gere que o jogo da ciência se assemelha à montagem de todas as pe­
ças de um gigantesco quebra-cabeça, sem que se tivesse, entretanto,
o modelo da figura pronta. Para que as peças se organizem em pa­
drões é preciso que a partir de pistas oferecidas por algumas peças
isoladas se invente um modelo operativo, um paradigma que, proviso­
riamente, irá fornecer as regras para todo o jogo. Para se chegar às
teorias científicas não basta somar fatos; é necessário um salto criador
da imaginação, que sugere um padrão possível para as muitas peças
ainda dispersas. No início, portanto, o cientista não possui qualquer ga­
rantia fatual de que a sua conjectura seja correta. Ele apenas tem es­
perança, apenas acredita. Não segue em frente sustentado por provas
objetivas. A comprovação, assim, mesmo para a ciência, não repousa
no passado, e sim no futuro. Apenas quando o cientista é capaz de
assumir o risco de ter fé em sua imaginação, procedendo como se o
modelo por ela fornecido fosse verdadeiro, é capaz de verificar se seu
paradigma é bom. Depois de trabalhar por algum tempo com um certo
paradigma, o cientista descobrirá que muitas peças não se encaixam
no modelo. Sob a perspectiva do modelo que ele está usando, tais pe­
ças são anomalias. Ele tem então de pôr sua imaginação para traba­
lhar novamente, na tentativa de encontrar um novo paradigma que
seja capaz de integrar tanto as aquisições passadas, como abrir cami­
nho para outras novas. Deste modo, a ciência não segue em frente
simplesmente somando fatos. É necessário a imaginação. Porém, esta
não vagueia livremente, sem limites. Ela funciona somente quando le­
va em consideração, com absoluta seriedade, as pistas fornecidas pe­
los fatos.

A imaginação, na linguagem da fé, opera de maneira semelhan­


te. Ela oferece paradigmas que, se supõe, abrirão caminhos rumo ao
futuro. Porque seu objetivo é o futuro, como acontece com a ciência,
tão-só o futuro consiste no campo de provas. A diferença entre a lin­
guagem da ciência e a linguagem da fé não repousa no fato de uma
poder ser comprovada e a outra não, mas sim no fato de a ciência ser
confirmada através do poder de sua linguagem para juntar as peças
dadas de um jogo. Ela opera exclusivamente dentro dos limites do da-

223
do. A linguagem da fé, ao contrário, é radicalmente crítica. Não aceita
os fatos como valores. Busca destruir os fatos que escravizam o ho­
mem, criando fatos novos, agora ausentes, que poderíam trazer a li­
berdade. Enquanto a razão científica apenas descreve, a teológica de­
seja criar. A comprovação da linguagem da comunidade de fé, assim,
está relacionada à sua capacidade para tornar o homem livre para a
vida, livre pqra o futuro, livre para negar o velho e criar o novo, livre pa­
ra permanecer livre, em oposição à inverdade dos fatos que não dei­
xam lugar para a liberdade. Contudo, como acontece com a linguagem
da ciência, tal função somente é possível quando a imaginação per­
manece inserida nos fatos, como uma inteligência engajada. É somen­
te quando a imaginação tem suas raízes mergulhadas nos fatos que a
esperança, na qual ela é capaz de pensar, permanece como expressão
daquilo que é possível para a história. A transformação da história de
acordo com a esperança exige, assim, que a imaginação continue fiel
à terra.

O caráter histórico da linguagem de fé e sua possibilidade de ser


comprovável significa, necessariamente, que ela pode ser falsificá-
vel. Há situações que podem provar que nós nos enganamos. Neste
caso a nossa avaliação das condições e do poder para a libertáção
humana não passa de um equívoco. O campo de prova e os critérios
de falsificabilidade estão relacionados à liberdade do homem para a
história e à liberdade da história para o homem. Se a história se toma
definitivamente fechada ao homem, ou este definitivamente fechado
ao futuro, se a repressão se converte no fato supremo e a domestica­
ção na suprema determinação da subjetividade humana, então pode­
mos dizer que a linguagem da liberdade não pode mais ser empregada.

A linguagem da liberdade, portanto, corre sempre o risco de se


perder. Mas esta é a única forma de sermos fiéis à nossa condição de
seres humanos e ao inevitável risco envolvido na aventura da fé.

224
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SÃO BERNARDO DO CAMPO í a ^ M 7 r o ^ S p T e L : 4 , M 2 0 °


a linguagem emerge que com a sua
gramática. Para aqueles que se interes­
sam pelo muito louvado diálogo entre
cristãos e marxistas, ele é de fato uma
personificação dos seus melhores fru­
tos. Tanto no seu uso crítico de algu­
mas das categorias marxistas como na
afirmação de que teologia tem de ser
uma teoria da práxis. ele demonstra as
contribuições que aquele diálogo pode
fazer para a teologia."
"Alves conclui o seu livro com um
apelo ao papel indispensável da imagi­
nação na política... Ele pede uma nova
fusão dos elementos Dionisíacos e Apo-
líneos. uma alegre celebração do cor­
po. uma gostosa combinação de eros e
agape na batalha para libertar o ho­
mem tanto da opressão quanto da re­
pressão. O livro não poderia ter termi­
nado de forma mais bem-vinda e neces­
sária. Estou convencido de que aque­
les que se dedicam à batalha para
as mudanças sociais fundamentais não
precisam ser ascetas vazios de alegria,
e que aqueles que encontram prazer
nos gostos e odores do presente não
estão destinados a se tornarem gordos
e moles. Alves acrescentou aos nossos
esforços de fazer uma teologia da re­
volução algo que talvez somente um
latino-americano poderia: uma genero­
sa porção de pura felicidade. A sua
teologia revolucionária é escrita para
ser tocada não somente vivace, mas
con brio. Alves não se satisfaz em sim­
plesmente falar sobre a esperança hu­
mana. Ele a acende e a alimenta."

Harvey Cox
(Roxbury, Massachusetts)

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