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CASAS BRASILEIRAS - PROJETO DESIGN JUL ‘15 Construir a natureza: uma casa de Paulo Mendes da Rocha

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ACERVO IGNÁCIO E RAQUEL GERBER


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CONSTRUIR

ACERVO PAULO MENDES DA ROCHA


A NATUREZA 3 4

Publicamos nesta edição uma matéria partindo do levantamento de material de


diferente do usual em PROJETOdesign. Se a época (fotos e desenhos pré-executivos)
nossa identidade é a excelência e a atualidade pertencente aos arquivos do arquiteto e dos
da arquitetura brasileira, ou seja, levar ao proprietários, assim como da vivência da

UMA CASA DE leitor projetos e obras recentes e de elevada


qualidade, vale, neste caso, abrir uma exceção
temporal para apresentar uma residência
que há pouco completou quatro décadas de
casa por Pisani. Fotos de Leonardo Finotti
dão suporte à reportagem, atestando a boa
saúde da ediicação mesmo na iminência de
passar por trabalhos de requaliicação, para

PAULO MENDES existência. O seu autor é Paulo Mendes da


Rocha e o local de inserção é o Rio de Janeiro,
na bela costa de Angra dos Reis. O texto do
historiador Daniele Pisani centra esforços na
sanar desgastes normais de uso e da ação da
maresia. O leitor tem, assim, a oportunidade
de conhecer uma casa de 40 anos e inédita,
que se chegou a acreditar demolida por causa

DA ROCHA
análise do diálogo estabelecido pelo projeto - da quase ausência de registros no escritório
e, no geral, pela arquitetura de Mendes da do arquiteto, mas que atesta o vigor e a
Rocha - entre a construção e a natureza, consistência da carreira de Mendes da Rocha.

1 e 2 Fotos da construção da casa, em Angra dos Reis, no biênio 1973/74

3 e 4 Interiores da casa, nos anos 1970 (à mesa, o arquiteto e a proprietária)


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1 A cobertura explicita o projeto


FOTOS LEONARDO FINOTTI
estrutural da edificação: quatro
pilares, próximos entre si,
sustentam os dois pares de vigas
invertidas. Como o usual nos
projetos de Paulo Mendes da
Rocha, a superfície é recoberta por
camada de água que colabora com o
funcionamento do concreto

2 A farta vegetação e o mar


envolvem a residência

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Quando, há alguns anos, comecei a estudar a vez na minha monograia (leia entrevista com Pisani Dalton Macedo Soares, o Montepio Municipal e clientela carioca. Os contratantes de Mendes da
arquitetura de Paulo Mendes da Rocha, um dos em PROJETOdesign 405, novembro de 2013)1. o MAC/USP, este último tendo contado com a Rocha eram paulistas. E assim, além do calculista,
principais problemas que enfrentei foi o de elaborar Trata-se da única obra construída de Mendes participação do próprio Ignácio Gerber, que depois também o desenho dos interiores foi do paulista
um catálogo da sua obra o mais completo possível. da Rocha no estado do Rio de Janeiro e data enveredou pela carreira de psicanalista: é a ele Silvio Oppenheim, artista e arquiteto formado
Tal necessidade se tornou mais aguda quando icou do biênio 1973-1974. Quem a encomendou ao que se deve a publicação de esboços de Mendes na FAU/USP em 1965, atuante nos escritórios de
evidente para mim que, enquanto as publicações arquiteto foi Ignácio Gerber, engenheiro que, da Rocha em um número da Ide, a revista da Croce, Alalo e Gasperini e de Jacob M. Ruchti e,
continuavam a mostrar uma restrita seleção de naquele tempo, era sócio de um dos principais Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. a partir de 1970, titular do seu próprio estúdio.
obras, os tubos e gavetas do seu estúdio atestavam a estúdios de análise do solo e fundação do Brasil, A casa se encontra em Itapirapuã, a alguns A casa se ergue sobre uma grande rocha, a poucos
existência de uma produção de riqueza e variedade a Consultrix Engenheiros Associados (a quem, quilômetros de Angra dos Reis, localidade da metros do mar. O acesso ocorre pela descida em
incomensuravelmente superiores. Eu não acreditava, não por acaso, se deve a consultoria de obras do costa carioca cujo destino foi transformar-se uma trilha sinuosa, imersa em farta vegetação.
contudo, que encontraria obras efetivamente calibre do Edifício Itália, Conjunto Nacional e no porto da primeira indústria siderúrgica Em consequência, nos encontramos a poucos metros
construídas, ainda existentes e inéditas, como Masp). Gerber costumava trabalhar com o calculista brasileira, a Companhia Siderúrgica Nacional de da residência sem ao menos nos darmos conta da sua
é o caso da residência que publicamos agora. Mario Franco, de quem tanto a Consultrix quanto Volta Redonda, em um grande cais da Petrobrás presença. Quase sem querer, já se está no seu interior.
No escritório de Mendes da Rocha, de tal casa se Mendes da Rocha eram usuais parceiros - no caso e na sede de uma central nuclear. O fato de a A única variante no percurso que conduz ao
conservam poucos registros: há apenas fotos de do arquiteto, as colaborações foram particularmente casa se encontrar no estado do Rio de Janeiro, interior da casa mesmo antes que seja possível vê-la
época, algumas das quais publicadas pela primeira frequentes naqueles anos, em obras como a Casa de qualquer modo, não tem relação com uma consiste na subida de alguns degraus para acessar
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A única cópia de três das pranchas de uma versão intermediária do projeto está em mãos dos proprietários da casa.
Por sua generosa colaboração, agradecemos a Raquel e Ignácio Gerber.
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1 e 3 Uma mesa de cerca de


oito metros de comprimento
é um dos elementos distintos
nos interiores

2 A fachada oposta à entrada é


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a que se abre para a paisagem

a cobertura. A julgar pelo que se vê do alto, os Despojada, quase rude como muitas das casas de por uma terceira e uma quarta, que são o parapeito envidraçada, sem nem mesmo o caixilho, de onde
quatro pilares que sustentam os dois pares de vigas férias de Mendes da Rocha, há uma organização e o brise que percorrem a fachada lateral, terminam não se vê senão a superfície do mar pontuada
invertidas estão dispostos a pequena distância um planimétrica o mais clara e simples possível. por se conigurar nos elementos dominantes. por ilhas e embarcações. A clausura, aqui,
do outro, produzindo assim grandes balanços. À direita de quem entra se encontram os quartos e A terceira e principal presença deste espaço é, acaba suscitando total imersão na paisagem.
Como o usual nas casas de Mendes da Rocha, a banheiros, enquanto o restante da casa não possui contudo, a da paisagem, recortada pela fenêtre A medida do diálogo que a casa estabelece com a
cobertura é inteiramente preenchida por uma divisões, com a parcial exceção de um bloco que en longeur disposta ao lado da grande mesa mas natureza, no entanto, é dada pelos quatro pilares
superfície de água, para otimizar a resistência abriga a cozinha, no qual é inserida a lareira. deixada penetrar sem nenhuma moldura pelo lado que, graças a um balanço respeitável, sustentam
do concreto e garantir tanto o isolamento Em consequência de um fundo assim neutro, oposto, onde porém ica mantida a distância pela a laje de cobertura. Para perceber esse diálogo
térmico quanto a perfeita impermeabilização. algumas presenças se distinguem nitidamente. posição dos pilares de modo tal a diicultar o rápido deve-se porém deixar-se seduzir por um convite
Nesta casa de férias, a cobertura subdividida A primeira é uma enorme mesa de mais de oito atravessamento da casa e, consequentemente, do arquiteto, que nos engana propositalmente.
em nove porções dialoga com a extensão metros de comprimento - o foco da vida que se o acesso à frente aberta para o entorno. O bloco dos quartos é interrompido por uma
marinha, pontuada por pequenas ilhas: quase desenvolve na casa. A segunda são os quatro pilares Também a parede que separa o bloco dos quartos estreita issura, pela qual penetra um facho
demonstrativamente, de um lado temos a redondos de cimento armado dispostos a curta e banheiros impede quase totalmente a vista da de luz e de onde parte uma escada em declive.
água - diria o arquiteto - como “fenômeno”, distância entre si, de modo a liberar o ambiente paisagem. Até neste caso se trata, porém, de um A existência mesma de um plano inferior em
empregada por sua própria virtude, e de outro principal da sua interferência; concentradas as artifício retórico: uma vez transpostas suas portas, uma casa como esta (e no geral nas casas de
como puro e simples elemento da “paisagem”. verticais, as horizontais do piso e do teto, reforçadas nos encontramos diante de uma parede totalmente férias de Mendes da Rocha) é por si insólita.
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1 Transposta a parede
cega que divide o bloco
dos dormitórios e
banheiros do restante da
casa, a edificação se abre
para a vista do mar

2 Um pedaço de rocha,
à esquerda, foi deixado
à mostra no andar
principal. Ao contrário
do que ocorre em
projetos memoráveis com
presença semelhante,
como a Casa das Canoas,
de Oscar Niemeyer,
a vidraça da casa
intercepta a pedra

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Ao im desta escada estreita se espera, de certo a referência para Mendes da Rocha é, porém, algo natureza e ação humana a relação se revela complexa. superior. Na Casa Gerber encontramos um detalhe
modo, encontrar um ambiente de serviço. Mas ao difícil de dizer; sem dúvida ele não teve pelo arquiteto A casa se abre para a paisagem perturbando-a o que, à primeira vista, parece retomar esta solução:
contrário, descendo a escada, nos achamos de frente americano a mesma admiração que o jovem Artigas. menos possível. Mas não por isso aspira a diluir-se na um pequeno pedaço de rocha, ramiicação daquela
a um muro de pedra quase cego, com dois ambientes De qualquer modo, o aloramento da rocha em sua paisagem. Airma com orgulho sua própria natureza sobre a qual se assenta a casa, alora sobre o nível do
compridos que se estendem para a direita e para a coniguração original revela a função que ela possui diversa: e em particular a inteligência que contém. chão também próximo da vidraça principal. Em vez
esquerda, abertos nas extremidades para o exterior na lógica da Casa Gerber apenas quando se percebe Uma vez imerso na sua inesperada víscera se de incluí-la na casa ou deixá-la fora como um objet
e que, à contraluz, acabam por ficar invisíveis em que a pedra, ela mesma, é onde se apoiam os quatros compreende, assim, a soisticada relação que a casa trouvé, Mendes da Rocha a corta, porém, com o vidro.
quase toda a sua extensão. Enquanto nos esforçamos pilares que consistem na estrutura da casa. Aquilo que à estabelece com o entorno. E se neste momento se Aí está um detalhe demonstrativo. O alorar da pedra,
para focar a vista e enim tocamos o pé no chão, primeira vista aparece como natural é agora, ao mesmo retorna ao andar principal, tem-se os instrumentos evocando a inevitável fricção entre a forma irregular
percebemos algo que resta ainda incompreensível: tempo, a base sobre a qual repousa o artifício criado pelo para perceber as retomadas desse mesmo discurso. da rocha e o plano perfeitamente horizontal da casa,
ao lado da escada não há uma parede, em pedra ou homem. Ao contrário de uma regurgitação nostálgica, Um detalhe resulta particularmente emblemático. atesta a consciência do arquiteto de que a natureza
rebocada que seja, mas o que se vê é a rocha sobre a a exibição da rocha que funciona como suporte da Na Casa das Canoas, de Oscar Niemeyer, externamente não pode ser mantida intocada: a arquitetura é
qual está pousada a casa. A rocha como ela é, bruta. estrutura de concreto armado (construída para um ao vidro que circunda o piso superior mas em parte condenada a construir um mundo que não é dado na
É óbvio que vêm à mente outras casas construídas engenheiro calculista do solo e fundações) mostra o protegido pela cobertura, há uma rocha; trata-se de natureza. O corte da rocha pela vidraça não é, assim,
sobre rochas que atravessam o piso da construção - a descompasso entre aquela presença e a inteligência da uma das várias presenças dispersas que o arquiteto senão um momento inaugural, um dos inumeráveis
Fallingwater, de Wright, sobretudo. Que esta fosse intervenção humana. Entre natureza e artifício, entre carioca demonstra saber unir em uma síntese inícios de um processo sem im. (Por Daniele Pisani)
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TÉRREO
1 Acesso de pedestres
2 Entrada da casa
3 Dormitório
4 Acesso à sala do
8 pavimento inferior
5 Estar
6 Cozinha
7 Varanda
8 Acesso ao bloco de
serviço, do andar inferior

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3 PAVIMENTO INFERIOR
1 Estar
2 Bloco de serviço
3 Píer

1 e 2 Interceptando o bloco
dos dormitórios, uma fresta
contém a escada que conduz ELEVAÇÃO LESTE
ao piso inferior. A existência
desse pavimento é pouco
usual nos projetos de casas de
férias de Mendes da Rocha

3 No pavimento inferior
tem‑se a chave para a
compreensão do tenso
diálogo que o arquiteto
estabelece entre natureza e
artefato humano
ELEVAÇÃO NORTE

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