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Osesp Joias
Marcelo A força dos
Lopes está adornos das
‘À Mesa com escravizadas
o Valor’ brasileiras
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NELSON KON/DIVULGAÇÃO
“É impossível imaginar, no Brasil,
um canteiro de obras sem uma caçam-
ba na frente”, diz o arquiteto para-
naense Guilherme Torres. “O país se
habituou a construir e a gerar, ao mes-
mo tempo, uma enorme quantidade
de entulho.” Refere-se, principalmen-
te, à adesão generalizada à alvenaria e
à tradição nacional de abrir talhos em
blocos e tijolos para permitir a passa-
gem de conduítes e tubulações.
“Os métodos construtivos mais dis-
seminados no país se traduzem em
taxas de desperdício que oscilam en-
tre 20% e 30%”, acrescenta Torres, cujo
escritório de arquitetura, fundado em
2001, está localizado no bairro pau-
listano de Pinheiros.
O setor, no país, ainda está longe
dos padrões mais avançados de sus-
tentabilidade. Mas exceções não fal-
tam. É o caso da Jatobá, uma casa de
583 m2 projetada por Torres. Situada
na Fazenda Boa Vista — o incensado
condomínio erguido pela JHSF em
Porto Feliz, a 100 km da capital pau-
lista —, ela foi construída com placas
de madeira entrelaçadas e prensadas
em alta temperatura.
Também chamado de CLT, na sigla
em inglês, o material forma a laje e
toda a estrutura, que foi montada em
duas semanas, com a ajuda de guin-
dastes. Não foi feita uma fundação es-
trutural, só uma base de concreto. “Só
isso diminuiu o tempo de obra em
três meses”, gaba-se o arquiteto. “E re-
duziu os custos em 30%.”
Entregue em 2021, a casa é parcial-
mente cercada por muros feitos de ter-
ra compactada. Torres recorreu à taipa
de pilão, técnica prosaica que está
caindo nas graças de arquitetos bada-
lados, para diminuir o impacto da
obra. Explica-se: o material utilizado é
fruto da terraplanagem. “Foi uma solu-
ção para evitar o transporte de terra
para outro local, o que implicaria o uso
de caminhão e a emissão de mais po-
luentes”, resume o autor do projeto.
Ele afirma que as chamadas cons-
truções a seco, as que quase não fazem
uso de cimento e argamassa, custam
praticamente o mesmo que as tradi-
cionais. “Já houve uma discrepância si-
milar à que existe, hoje em dia, entre
carros a combustão e os elétricos”,
compara. “Mas ela ficou no passado.”
Na Jatobá, ele se preocupou em fa-
vorecer ao máximo a iluminação na-
tural e a ventilação cruzada — pensan-
do, como é de imaginar, no aqueci-
mento global. A casa se resume a cinco
grandes blocos interligados por corre- WESLEY DIEGO EMES/DIVULGAÇÃO
dores praticamente sem paredes. Os retimento de icebergs na Antártida ou À dir., Douglas ck, a temperatura média na capital
dois conjuntos de salas, cada um, dis- em queimadas no Cerrado brasileiro Tolaine, sócio do carioca será de 24,53°C, quase 1°C a
põem só de duas paredes. No lugar das — também impactará, e como, o dia a escritório mais do que hoje em dia — não esta-
que não foram erguidas, ele instalou dia das grandes cidades. americano mos falando, convém lembrar, das
janelões do chão ao teto, de uma pon- Um relatório encomendado pela Perkins&Will, que máximas apocalípticas registradas
projetou o Bambu,
ta à outra, que só costumam ser fecha- Prefeitura de Londres divulgado em nos últimos tempos.
acima. O prédio
dos quando chove muito. janeiro alertou para o risco de a cidade reveste a fachada Segundo o C40, associação de quase
Placas que captam a energia solar estar sujeita a “ondas de calor mais in- com brise-soleils de 100 prefeituras globais unidas para
também foram incluídas no projeto e tensas e frequentes, chuvas mais in- bambu enfrentar a crise climática, 1,6 bilhão
os dois lagos que margeiam a residên- tensas, inundações repentinas e au- de pessoas que residem em cerca de
cia não têm fins meramente estéticos: mento do nível do mar”. mil cidades — ou 40% da população
fazem parte do sistema de reúso de Cidades portuárias urbanas correm mundial — vão enfrentar ondas de ca-
água. “Na arquitetura, soluções em o risco de ficar cada vez mais inunda- lor extremas e regulares em, no máxi-
prol da sustentabilidade sempre fo- das nas próximas décadas. É o que su- mo, 30 anos. Atualmente, calcula a
ram as mais lógicas”, argumenta Tor- gere o ranking da Nestpick, uma pla- mesma entidade, 200 milhões de ha-
res. “Mas elas ainda não são adotadas taforma de aluguel de apartamentos bitantes de mais de 350 cidades convi-
em grande escala no Brasil.” mobiliados, que calcula qual é a pro- vem com temperaturas máximas de
Para um terreno no município de babilidade de grandes metrópoles se- 35°C. Até 2050, cerca de 970 cidades
Camanducaia, em Minas Gerais, ele rem impactadas pelo aumento do ní- vão enfrentar a mesma coisa.
projetou um hotel formado por 60 vel do mar em 2050 e qual deverá ser a Além dos inevitáveis impactos na
“lodges” que remetem a casas nas ár- temperatura média de cada uma, en- saúde da população — mais de 1.300
vores. Também dispensam fundação tre outras projeções. O primeiro lugar pessoas morrem por ano por culpa
estrutural e estão sendo construídos pertence à capital da Tailândia, Bang- do calor extremo nos Estados Unidos
com madeira reflorestada, que con- kok, onde 5 milhões de habitantes, se- —, haverá reflexos econômicos. Um
trasta com as paredes de pedras e as te-
lhas metálicas. Com inauguração pre-
“O grande gundo a OCDE, poderão estar expos-
tos a inundações na década de 2070.
estudo da Organização Internacional
do Trabalho estima que a redução da
vista para este ano, o hotel será chama-
do de Montes Verdes Lodges. desafio é Em seguida, aparecem no ranking
as cidades de Ho Chi Minh (Vietnã),
produtividade provocada pelo calo-
rão deverá representar um prejuízo
convencer os
Com o aquecimento global cada vez Amsterdã (Holanda), Shenzhen (Chi- global de US$ 2 trilhões até 2030. As
mais evidente mundo afora, aumenta na), Melbourne (Austrália), Cardiff inundações e as secas provocadas pe-
a responsabilidade dos arquitetos em (Reino Unido), Seul (Coreia do Sul), lo aquecimento global, estima o C40,
apresentar soluções para melhorar
nosso convívio com as mudanças cli-
clientes” Boston (EUA), Nairobi (Quênia) e
Marrakech (Marrocos). A única cida-
poderão obrigar as principais cidades
do mundo a gastar US$ 194 bilhões
Douglas Tolaine
máticas. Como está ficando claro, o de brasileira da lista é o Rio de Janei- por ano em conjunto.
efeito estufa não resultará só em der- ro, em 83 o. Em 2050, estima a Nestpi- Para diminuir os problemas, a enti-
2 | Valor | Sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024
MARABERTOAOESCRITÓRIO
altamente competitivo, que
testa resiliência, treinamento e
imprevisibilidade do mar, pode
ser comparado à disputa pela
© GETTY IMAGES
liderança no mundo corporativo
No caso da natação no
Ex-atletas de maratona aquática — e hoje mar, estar condicio-
nado a lidar com a dor
executivos — traçam paralelo entre as rotinas e menos momentos de
satisfação imediata.
do esporte e do mundo corporativo Isso no mundo corpo-
rativo também é funda-
A
mental: saber que o
maratona resultado de quase
aquática é Para a ex-atleta Poliana Okimoto, todo tipo de projeto ou
bronze no Rio, em 2016, executivos
um esporte podem aprender com atletas a negociação não vai ser
que exige valorizar pequenos progressos de uma hora para outra.
explosão e resistência Também podemos asso-
ao mesmo tempo. O ciar o contato dentro
atleta também fica d’água com o fato de
refém das condições lidar com pessoas que
e da temperatura da têm o mesmo objetivo
água, do vento, sem que você no mercado.
falar na largada, que Nesse caso, a estraté-
é em massa, com os gia faz a diferença: nem
nadadores muitas vezes sempre a linha mais
se debatendo debaixo reta será a melhor solu-
d’água para encosta- ção”, ensina Pedro.
rem primeiro a mão no
pórtico de chegada. EXPERIÊNCIA
© DIVULGAÇÃO
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4 | Valor | Sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024
A Sagrada
JOANA FRANCA/DIVULGACAO
Família
do Planalto
Igreja Templo inacabado em Brasília já
recebeu vários prêmios de arquitetura.
Por Vivian Oswald, para o Valor,
de Brasília
Como a Sagrada Família, de Barcelona, quentadores da igreja que precisavam uma espécie de boas-vindas a quem che- Paróquia Sagrada no teto, que se mantêm protegidas da
a de Brasília, dos arquitetos Eder Alencar, dar notas aos quesitos determinados ga, com uma construção apropriada. [...] Família tem atraído chuva pela própria estrutura. A prote-
André Velloso e Luciana Saboia, está ina- pela comunidade. O desenho ousado e A beleza da construção e a fé podem an- até alunos de ção acústica — um forro circular como
cabada. Menos monumental, certamen- minimalista daria o que falar, mas esta- dar juntas e atrair pessoas. Isso está arquitetura a o edifício — foi comparada a uma
te, mas também inspirada e inspiradora, va em linha com a cara da Brasília de Os- acontecendo”, diz o padre Américo. Brasília grande hóstia. Só há um ponto bem
a construção já está na lista dos marcos car Niemeyer e Lúcio Costa. Foi também A igreja ainda não foi consagrada. no centro da igreja com eco. Tudo foi
arquitetônicos da capital federal, onde o preferido do padre. Por isso, as missas ainda são realizadas discutido e pensado. E, para isso, os ar-
não faltam marcos arquitetônicos. “Muito da aceitação veio da relação no prédio antigo, uma construção quitetos, que não são particularmente
O projeto recebeu quatro prêmios, do público com Brasília”, disseram acanhada e desinteressante. Mas nada religiosos, tiveram de estudar a litur-
dos quais dois internacionais. Também Alencar e Velloso ao Valor. impede que se realizem casamentos gia para saber traduzi-la no projeto.
foi indicado ao Mies Crown Hall Ameri- Para obra de igreja, até que está an- no premiado edifício do escritório No subsolo, um longo e curvo corre-
cas Prize, concedido à melhor obra ar- dando relativamente depressa. Em Bar- ARQBR. A primeira missa oficial acon- dor percorre a circunferência da igreja.
quitetônica das Américas, e ao Mies celona, a obra homônima de Gaudí está tecerá quando estiver totalmente con- Liga o altar à porta principal. O padre faz
Crown Hall Americas Prize for Emer- em construção há mais de 140 anos. De cluído e com as devidas bençãos, que questão de chegar por ela. Outro corre-
ging Practice, concedido a obra destaca- proporções bem mais modestas, a Paró- farão dele, afinal, uma igreja. dor — este, reto — liga a igreja circular a
da de um escritório emergente na re- quia Sagrada Família em Brasília levou Há quem venha de longe para co- seu anexo. No caminho, também em
gião — considerada a premiação mais 11 meses para sair do papel. Falta ainda nhecer a Sagrada Família de Brasília. concreto aparente, há uma pequena ca-
tradicional das Américas. Ambos são o crucifixo do altar, que será menos mi- De fiéis a alunos de arquitetura e espe- pela subterrânea onde se veem escani-
oferecidos a cada dois anos pela Facul- nimalista, e outros detalhes. cialistas. Gente de outros estados, se- nhos com portas de madeira e respecti-
dade de Arquitetura do Instituto de Tec- A torre de 12 metros em concreto do gundo os arquitetos. O projeto, de vas chaves. É para lá que irão as cinzas de
nologia de Illinois. Os finalistas serão campanário em frente à igreja ainda acordo com Alencar e Velloso, que es- membros da comunidade no futuro.
anunciados no mês que vem. aguarda o sino que dobrará pelos 400 tudaram juntos na Universidade de Para o padre Américo, muitas igre-
A construção brasiliense, que custou fiéis esperados para encher os bancos Brasília antes de se tornarem sócios, é jas de Brasília não têm prédios convi-
cerca de R$ 14 milhões até agora, foi pa- de madeira, também idealizados pelo unir a percepção da horizontalidade e dativos, embora a capital federal tam-
trocinada por doações dos fiéis, dízimo trio de arquitetos. o imponente céu da capital, festejado bém ofereça edifícios modernistas da
e festas da paróquia. Fica no Setor de O anexo, onde estão a sala da cateque- como uma das maiores belezas da ci- época da sua fundação. Entre eles a Ca-
Mansões Park Way, bairro nobre da ca- se, administração e banheiros, espera dade, à natureza e à espiritualidade. tedral Metropolitana Nossa Senhora
pital, logo na entrada da cidade para acabamento. O mesmo vale para a casa O formato em círculo tem por obje- de Aparecida (1958), Igreja Nossa Se-
quem vem do sul, mas fora do Plano Pi- do padre Américo, cuja fachada faz lem- tivo manter o sentido de comunidade. nhora de Fátima (1958) e Santuário
loto, a área planejada por Lúcio Costa. brar o desenho do arquiteto germa- A faixa de vidros que se abrem ao lon- São João Bosco (1970).
Quando foi sondado pela Igreja Cató- no-americano Ludwig Mies van der go de todo o seu diâmetro tem as fun- Em resposta a críticas que poderia re-
lica com o inusitado pedido de projeto Rohe (1886-1969), um dos pioneiros da ções conceituais de preservar a paisa- ceber de a igreja investir tanto em um
para a nova face da Paróquia Sagrada Fa- arquitetura modernista. Aliás, os prê- gem, garantir a relação entre o ser e a novo prédio, o religioso afirma que “ca-
mília em 2012, o arquiteto Eder Alencar mios ao quais o projeto concorre neste natureza e permitir a ventilação cru- da coisa tem o seu devido lugar”. “A nos-
não sabia que se tratava de uma espécie momento são homenagem ao acadêmi- zada. “É também a transformação do sa igreja continua prestando assistência.
de concurso, que acabaria vencendo. co, que nasceu em Aachen, na Alema- espaço com a luz”, diz Velloso. Um projeto como este ajuda a abrir os
Capitaneada pelo sacerdote, a comis- nha, e morreu em Illinois, nos EUA. Não há ar-condicionado. O ar quen- olhos das pessoas, a levá-las a conhecer
são de jurados incluía doadores e fre- “Aqui é a entrada de Brasília. Seria te ainda sai do edifício por aberturas as ações que a igreja tem.” ■
Coluna Social
O
CARVALL
Res Publica
NELSON PROVAZI
6 | Valor | Sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024
Maestro
dos
bastidores
À Mesa com o Valor
Marcelo Lopes
Trompetista que deixou o
palco para se tornar gestor da
Osesp fala sobre as
transformações que fizeram a
orquestra, que celebra 70
anos, se destacar entre as
instituições culturais do país.
Por Hilton Hida, de São Paulo
O diretor executivo da Fundação país, além de ter recebido elogios de di- Como a bilheteria tende a ter maior levou a ter mais contato com a adminis-
Foto: Gabriel Reis/Valor
Osesp, Marcelo Lopes, ainda hoje se re- versos críticos internacionais por seus ál- importância neste modelo, os ingres- tração e com o diretor artístico da or-
corda de uma conversa que teve há vários buns ou turnês. Economicamente, vem sos costumam ser mais caros nos EUA. questra na época, o maestro Eleazar de
anos, pouco depois de assumir o cargo, ano a ano reduzindo a dependência das A Osesp adota um híbrido. A funda- Carvalho (1912-1996).
com Pedro Moreira Salles. O copresiden- verbas do governo, o que a deixa menos ção, instituição sem fins lucrativos que Eram tempos em que a Osesp precisa-
te do conselho do Itaú Unibanco havia li- vulnerável às vicissitudes das finanças se qualificou como organização social va com frequência improvisar para fazer
gado para saber detalhes das tratativas públicas ou aos humores de quem ocupa de cultura, opera como uma entidade seus concertos. Lopes lembra como
para concessão do estacionamento da o Palácio dos Bandeirantes. privada, mas com a qual o governo fir- Eleazar costumava cobrir uma grande
Sala São Paulo. Era uma “coisa comezi- Bons motivos para a orquestra co- ma um contrato de gestão e para a qual mesa em sua casa com um minucioso
nha de gestão”, e justamente por isso Lo- memorar ainda mais seus 70 anos de continua contribuindo. Ela tem 337 planejamento de solistas, regentes, pe-
pes se pegou pensando que, se tivesse de existência, que completa nesta tem- funcionários, além dos 104 músicos fi- ças e cachês para cada apresentação ao
remunerar Moreira Salles pelo tempo porada, programada para começar xos (cujos salários ficam na faixa de R$ longo de toda a temporada, tudo escrito
que ele dedicava a questões como essa, a em 7 de março — nesta semana ela to- 20 mil a R$ 25 mil), 46 cantores do coro e à mão. “Era um ato de fé, porque na ver-
organização gastaria mais do que rece- ca com o Coro da Osesp (que está fa- Cardápio regentes. Possui ainda um braço educa- dade nada daquilo estava sendo cum-
beria anualmente pelo estacionamento. zendo 30 anos) a superpopular canta- La Casserole, São Paulo cional que neste ano deve ter 61 alunos. prido. Ele tinha que mudar toda semana
Não só no caso de Moreira Salles. Lo- ta “Carmina Burana”, de Carl Orff, co- Na criação, 100% de seu orçamento vi- porque ou a secretaria não podia con-
pes diz que todos os conselheiros da en- mo parte da pré-temporada. Água com gás, jarra 330 ml 3 20,70 nha de repasses do setor público. Neste tratar o solista ou não havia dinheiro pa-
tidade que mantém a Orquestra Sinfô- Para este “À Mesa com o Valor”, Lo- Suco de tomate 1 17,90 ano, do orçamento de R$ 140 milhões, ra locação da partitura.”
nica do Estado de São Paulo — nomes do pes escolheu um restaurante que tam- Filet au poivre 3 318,00 R$ 65,5 milhões virão do governo esta- Quando Lopes foi admitido, a orques-
primeiro escalão do mundo dos negó- bém celebra sete décadas em 2024 e Schweppes Citrus 1 8,90 dual (foram R$ 129 milhões e R$ 63,3 tra tocava no Teatro Cultura Artística.
cios como Pedro Parente, Horacio Lafer cuja história já cruzou com a da Osesp Café 2 17,80 milhões, respectivamente, em 2023). A Ele se recorda das longas filas que se for-
Piva, Fábio Barbosa e líderes de outras em diversas ocasiões: o La Casserole, Gorjeta - 49,83 maior parcela do restante virá dos 64 mavam para os ingressos gratuitos, de
áreas como o ex-presidente Fernando no Largo do Arouche, centro de São Total - 433,13 contratos de patrocínio fechados até como seu pai assistia às transmissões ao
Henrique Cardoso — sempre foram bas- Paulo. A dez quadras da Sala São Pau- agora segundo leis de incentivo. vivo dos concertos pela TV Cultura e os
tante devotados a ela. São pessoas, diz, lo, é um local ao qual ele já levou mui- Tal estrutura foi estabelecida em ju- comentava no jantar em seguida e de
que não ficam apenas sentadas dando tos regentes e solistas que visitam a ci- nho de 2005, com o propósito de dar es- como um dia depois seu professor na fa-
palpites. Ao contrário, assumem “a res- dade para tocar com a orquestra. tabilidade jurídica e institucional e ao culdade dizia tê-lo visto tocar. Mesmo
ponsabilidade como conselheiros, pela Lopes chega cedo, cumprimenta os mesmo tempo agilidade à orquestra, não tendo o nível internacional que ho-
vida da instituição, pelo funding da ins- garçons e pede um suco de tomate co- que fica livre de certas amarras típicas je ostenta, diz, era uma orquestra bas-
tituição, buscando mais recursos, bus- mo aperitivo. Elogia o ambiente: “Tem do setor público. Com ela, a Osesp regu- tante presente na vida da cidade.
cando a participação das pessoas, ou- uma curadoria musical muito boa. larizou os contratos de todos os funcio- A deterioração das finanças públicas
vindo a sociedade e cobrando a gestão”. Bom jazz, boa música brasileira”. De- nários — alguns eram empregados da naqueles tempos de hiperinflação tor-
Mesmo depois de quase duas décadas pois, escolhe um dos carros-chefes do Fundação Padre Anchieta, outros da Se- nou inviável o pagamento do aluguel do
à frente da fundação — “talvez eu seja o restaurante, o filé au poivre acompa- cretaria de Cultura, outros tinham con- teatro, o que obrigou a Osesp a peram-
gestor de orquestra mais longevo na his- nhado de batatas “à la crème”. Para be- tratos temporários — e completou uma bular por outros espaços controlados
tória do país” —, Lopes diz que as de- ber, uma Schweppes Citrus. transformação iniciada na década ante- pelo governo estadual, como o Teatro
mandas não diminuíram. “Sou cobrado Ele observa que há dois modelos de rior. Lopes, que assumiu oficialmente Sérgio Cardoso, o Memorial da América
diariamente. Era assim com o Fernando gestão que orquestras costumam con- como diretor executivo em setembro Latina e o Theatro São Pedro. Um cartaz
Henrique, com o Fábio Barbosa, é com o siderar. Em nenhum deles a receita de daquele ano, foi um participante ativo na parede do La Casserole, aliás, é justa-
Pedro Parente agora. São pessoas que es- bilheteria é suficiente para manter a de todo o processo. mente de uma montagem do São Pedro
tão acostumadas com gestores que en- organização — assim como não é para Ele próprio tem uma efeméride em de “La Cenerentola”, ópera de Rossini, da
tregam resultado. Resultado financeiro, museus ou outras entidades dedicadas 2024: completa 40 anos na Osesp. Tinha qual a Osesp participou. “Eu toquei nes-
resultado na atividade, de impacto.” às artes. No modelo europeu, a institui- apenas 19 anos quando se juntou a ela sa montagem”, diz Lopes.
Ele diz que tais comprometimentos ção é financiada e gerida pelo Estado. como trompetista estagiário, em 1984. O cartaz menciona uma “Nova Or-
ajudaram a deixar a Osesp em situação No americano, a administração é de al- Conciliava o trabalho na orquestra com questra Sinfônica do Estado de São Pau-
privilegiada entre as instituições cultu- guma entidade privada e o grosso da a faculdade de economia. Não demorou lo”. Era 1998, o início da reformulação
rais do Brasil. Artisticamente, ela é reco- receita vem de patrocínios (que se va- muito para ser efetivado e passar a inte- que elevaria a Osesp a um novo patamar.
nhecida como a melhor orquestra do lem de dedução no imposto de renda). grar a associação dos músicos, o que o Foi Eleazar, conta Lopes, quem elabo-
Sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024 | Valor | 7
GABRIEL REIS/VALOR
rou alguns anos antes o plano para a re- “Muita gente não
forma da orquestra. Sofrendo de câncer, vai à Sala São Paulo,
ele sabia que não conseguiria colocá-lo mas eles me dizem:
em prática. Lopes diz que o maestro o ‘Isso precisa existir,
chamou um dia em 1995 e lhe disse: senão São Paulo não
“Nós precisamos resgatar o orgulho de vai ser o que é’”, diz
Marcelo Lopes
ser músico de orquestra, de se fazer mú-
sica clássica neste país. Eu não posso
mais. Daqui para a frente, transfiro para
você, para vocês [da associação de pro-
fissionais da orquestra], a responsabili-
dade por essa tarefa”.
O plano foi entregue ao então secretá-
rio estadual de Cultura, Marcos Men-
donça, e acabou sendo implementado
por John Neschling, que assumiu como
regente titular em 1997. “Neschling foi
brilhante nessa grande reformulação
artística”, diz Lopes. “Requalificando os
músicos, fazendo novas audições, bus-
cando músicos também no exterior pa-
ra complementar a orquestra.”
O grande salto seguinte foi a inau-
guração da Sala São Paulo, em 1999,
parte de uma tentativa do governo de
reverter a degradação dos arredores da
Estação da Luz com o fluxo de pessoas
para equipamentos culturais. A nova
sala de concertos, construída no pátio
da antiga estação ferroviária Júlio Pres-
tes, fez com que a Osesp tivesse não
apenas uma casa própria, mas uma ca-
sa com ótima acústica e uma arquite-
tura que a tornou atração turística.
Hoje a Sala São Paulo continua sen-
do motivo de orgulho (e receita, já que
é bastante requisitada por terceiros)
para a Fundação Osesp, mas seu entor- RICARDO MIGLIORINI/DIVULGAÇÃO
no nunca teve a transformação que o trato de gestão estabelece uma série de jeto do Eleazar que foi implementado
governo esperava. Ao contrário, a vizi- metas, uma delas de venda de 70% dos pelo Neschling com bastante mérito.”
nhança da cracolândia é um reconhe- ingressos. Em 2023, a ocupação média Neschling acabou saindo antes do
cido empecilho. nos concertos da Fundação Osesp — que término de seu contrato, no fim de
Lopes observa por exemplo que a também incluem recitais de solistas, 2010, por fazer queixas públicas que
quantidade de pessoas que não com- apresentações da Jazz Sinfônica e outros levaram o conselho a demiti-lo no iní-
parecem a concertos para os quais têm — foi de 72%. Neste ano, ela vendeu até cio de 2009.
ingressos é bem maior nas quintas e agora mais de 60 mil ingressos em Isso atropelou o planejamento da
sextas à noite do que nos sábados à 16.500 assinaturas, o que garante ocu- Osesp. Para cobrir a lacuna, ela passou
tarde — esses são os dias regulares de pação de 68%. Em 2023 foram pouco a ter um diretor artístico separado do
apresentação da orquestra. Tal com- menos de 54 mil em 14.700 assinaturas musical, na figura de Arthur Nestrovs-
portamento sugere um impacto de (a receita com bilheteria, incluindo ven- ki, que ficou até 2022, e contratou o
preocupações com a segurança. das avulsas, foi de R$ 4,8 milhões). francês Yan Pascal Tortelier enquanto
É algo que não vai mudar rapidamen- Lopes acredita que a Osesp conseguiu buscava alguém para assumir a dire-
te, reconhece. “Essa questão é muito tornar-se “grande demais para que- ção musical por um prazo mais longo.
mais complexa do que a oferta de pro- brar”. Ele diz que nas muitas conversas A americana Marin Alsop assumiu co-
dutos culturais de qualidade. Por uma que tem — por exemplo com potenciais mo nova regente titular em 2012.
questão social, de segurança pública, de patrocinadores na Faria Lima — fica cla- A Osesp já havia conquistado algum
saúde pública. Então, de certa maneira, ra a importância simbólica da orques- prestígio fora do Brasil com gravações
viramos reféns dessa ocupação”, diz. tra. “Muita gente não vai à Sala São Pau- para o selo sueco BIS e uma menção es-
Mas ele faz o contraponto: “Imagine o lo, mas eles me dizem: ‘Isso precisa exis- pecial da revista britânica “Gramopho-
centro de São Paulo ou aquela região do tir, senão São Paulo não vai ser o que é’.” A cerimônia de Gerry Mulligan e Astor Piazzolla que seu ne” em edição de 2010 sobre as melhores
Bom Retiro sem a Sala São Paulo, sem a É um contraste para os anos 90, o criação da Fundação pai levava para ouvir em casa, ele quis orquestras do mundo. Alsop ajudou a
Pinacoteca, sem o Museu de Arte Sacra, período pré-reformulação, quando, Osesp, em 22 de tocar saxofone. O instrumento, porém, dar ainda mais projeção internacional à
sem a Estação Pinacoteca ou a Pina Con- diz, um eventual fim da orquestra pro- junho de 2005. era grande demais, da altura dele, e o orquestra, levando-a aos Proms, o gran-
temporânea, o Museu da Língua Portu- vavelmente não causaria grande co- Fernando Henrique maestro da banda lhe ofereceu um de festival de verão que a BBC promove
Cardoso, ao centro,
guesa. Ou seja, nós somos como grupo a moção na cidade. E isso mesmo com a trompete como alternativa. “O trompe- em Londres. Sua sucessão seguiu o pro-
foi o primeiro
primeira frente de resistência da cidade. música clássica estando hoje menos presidente do te encaixava na mão e, por uma dessas cesso previsto: o atual diretor musical, o
Ainda que o lugar seja problemático, a presente no dia a dia das pessoas, sem conselho da questões da vida, talento, não sei, colo- suíço Thierry Fischer, foi escolhido em
nossa programação atrai pessoas que o espaço que tinha na TV e no noticiá- entidade. Marcelo quei na boca e começou a sair som”, con- 2019 depois de uma busca de dois anos.
admiram e que gostam do centro. Isso rio nos tempos em que ele resolveu Lopes é o primeiro à ta. “Me afeiçoei ao instrumento.” Torcedor do São Paulo, Lopes com-
pelo menos mantém a região com um abraçar a carreira de trompetista. esquerda A afeição tornou-se obsessão nos para o regente de orquestra ao técnico
fio de esperança”. Não foi por escolha própria que o anos seguintes. Lopes diz que sempre te- de futebol. Para funcionar com o time,
A Osesp tem a vantagem de contar trompete primeiro entrou em sua vida. ve desempenho muito bom na escola, não basta ter conhecimento e talento,
com o estacionamento sobre o qual Lo- Lopes nasceu e cresceu em São Bernardo mas não sentia que ia tão bem no instru- é preciso que haja química.
pes havia conversado com Moreira Sal- do Campo, onde os pais, Manoel e Ama- mento: “Foi a primeira coisa que eu fiz Ele diz que uma grande virtude de Fis-
les tempos atrás. Com 600 vagas, ele per- ra, migrantes de Pernambuco, se estabe- em que me senti deficiente”. A vontade cher é combinar enorme conhecimento
mite que muitos espectadores não pre- leceram. O pai trabalhava como progra- de corrigir isso o fez entrar aos 15 anos técnico e ouvido apurado com uma ou-
cisem andar na região. A abertura há mador de produção na Volkswagen, on- na Escola Municipal de Música de São sadia interpretativa. “Ele tira os músicos
dois anos do Boulevard João Carlos Mar- de ficou 26 anos, e tinha uma vida social Paulo. Como seu professor tocava no da zona de conforto, mas de uma ma-
tins, uma passagem coberta que liga a bastante ativa, sendo presidente da as- Theatro Municipal, passou a frequen- neira boa. Não é exigindo aquilo que o
Estação da Luz diretamente à Sala São sociação de bairro. Quando Lopes tinha tá-lo. Os concertos que via o encanta- músico não sabe, mas tirando dele o me-
Paulo, também ajuda. Ou seja, a sala de 7 anos, o pai decidiu montar uma banda vam, a ponto de fazê-lo pensar: “Quero lhor que tem para dar, dando a ele con-
concertos tornou-se uma espécie de ilha para ocupar as crianças que passavam fazer isso da vida”. fiança para ir com um pé na ponta do
segura numa área da cidade que muitos todo o tempo brincando na rua. O meni- “Eu estudava música de manhã, de precipício. É ali que a beleza acontece.”
de seu público frequentador temem. no Marcelo não quis ficar de fora. tarde e de noite, chegava a dormir com a Ele lamenta que não seja fácil levar es-
Felizmente, esse público frequenta- Primeiro, deram-lhe uma escaleta. roupa que tinha acordado”, conta, para sa beleza a mais lugares do país. A Osesp
dor não é pequeno. Lopes diz que o con- Em seguida, inspirado pelos discos de acrescentar: “E cada dia me achava pior. esteve ano passado em Nova York e nes-
ARQUIVO PESSOAL
Porque a sua percepção de excelência se te ano irá à Europa, mas não tem o hábi-
desenvolve mais rápido do que a sua ca- to de visitar outros estados brasileiros.
pacidade de performance”. Faz concertos em algumas cidades pau-
Mesmo assim, conseguiu o que ambi- listas, mas enfrenta deficiências logísti-
cionava, ingressando na Osesp. Mas não cas e falta de teatros adequados. Lopes
foi só isso que fez da vida. Além de ter es- diz que é mais barato fazer uma turnê na
tudado economia, Lopes fez um mestra- Europa do que no Brasil. Mesmo na ci-
do em administração pública na Funda- dade de São Paulo há uma falta de espa-
ção Getulio Vargas e também se formou ços que propiciem o impacto sonoro
em direito. Atuou vários anos como ad- próprio da sala de concerto.
vogado, sócio de sua irmã num escritó- Por isso, quando há discussões so-
Marcelo Lopes rio de São Bernardo dedicado à área civil bre a democratização do acesso à mú-
(flecha apontando) e trabalhista, sem deixar o trompete de sica clássica, ele acredita que o melhor
com a Banda lado. Como conseguiu conciliar tudo? que pode ser feito não é levar a Osesp a
Municipal “Eu durmo muito pouco”, diz. regiões mais pobres, mas tentar mos-
Infanto-Juvenil Ele garante que suas eventuais prá- trar para a sociedade que a Sala São
Rudge Ramos, em
ticas noturnas de trompete, usando Paulo é um local “para todo mundo,
1981. Abaixo,
tocando trompete surdina, não incomodam os vizinhos não só para a elite branca”. A tempora-
na Osesp (ele está ou mesmo sua mulher, a contadora da que está começando tem nove con-
ao lado da Márcia Tai, com quem está desde a certos a preços populares, de R$ 39,60.
percussão) adolescência e teve três filhas. Quanto à diversificação da própria
DIVULGAÇÃO
“É muito saudável fazer outras coi- orquestra, há um esforço na progra-
sas”, afirma. Os vários cursos de fato se mação que se reflete na presença nesta
provaram úteis quando teve a oportuni- temporada de obras de 23 composito-
dade de trocar o palco pelos bastidores, ras e 15 mulheres convidadas, entre as
assumindo a direção da Osesp. Ele era quais 5 regentes. No ano passado, em
presidente da associação dos músicos várias ocasiões a Osesp teve violinistas
quando a Fundação Osesp foi criada e mulheres como spallas convidadas.
recebeu o convite para atuar como ges- Lopes diz que gostaria de ver a com-
tor porque os conselheiros achavam posição da orquestra refletindo a socie-
que a experiência de alguém vindo do dade brasileira e acredita que isso vai
“chão de fábrica” seria proveitosa. acontecer em algum momento, mas an-
“Quando eu olhava para a associação tes é preciso que a diversidade chegue à
dos músicos da Osesp, da qual fui presi- educação musical. Ele observa que o
“Aorquestraéuma dente muitos anos, eu não via uma fer- processo de seleção, quando surgem va-
ramenta de negociação salarial, de bar- gas, é feito em audições em que o comitê
instituiçãode ganha de condições de trabalho. Eu via não vê quem toca atrás do biombo — “e
excelência,agente aquilo como oportunidade de inserir o
músico na discussão da construção ins-
o que está atrás do biombo ainda é algo
bastante desigual”. Ele ressalta: “A or-
nãoabremãoda titucional”, diz. “Acho que tivemos su-
cesso. Nada disso teria acontecido sem o
questra é uma instituição de excelência,
a gente não abre mão da excelência por
excelência” apoio dos músicos da orquestra ao pro- outros valores”. ■
8 | Valor | Sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024
Despedida em
DIVULGAÇÃO
alto volume
Música Turnê que marcará o adeus da
banda Sepultura vai rodar o mundo em
18 meses. Por Carlos Eduardo Oliveira,
para o Valor, de São Paulo
Vinho
Janeiro seco
CONGERDESIGN POR PIXABAY
O novo ano sempre vem acompa- mudar antes que as questões ambien- Uma vez colhidas as uvas, as opções
nhado de expectativas, planos e metas tais virassem assunto da hora. para reduzir o álcool se baseiam em ar-
a serem cumpridas. Para alguns, isso in- Isso tem a ver com colher as uvas mais tificialismos que tendem sempre a alte-
DIVULGAÇÃO
Ele também oferece vieiras com pu-
rê de berinjela; quesadillas recheadas
com cordeiro refogado; lulas sobre
tortilhas de trigo feitas no forno a le-
nha, numa área aberta ao público que
atrai observação. Vibrantes ramos de
brócolis defumados com óleo de ger-
gelim preto e pimenta são parte da
amostra vegana e vegetariana do car-
dápio, que acolhe com eficiência qual-
quer tipo de restrição alimentar.
Também surge em sintonia com car-
dápio a carta de vinhos, quase toda
com rótulos mexicanos — e aí se revela
outro atrativo. O Fauna integra o Bru-
ma, um complexo de enoturismo,
com fazenda, vinícola, hotéis bouti-
que, mercearias e restaurantes distri-
buídos em poucos hectares.
De vinhas orgânicas, faz-se 70% de
brancos e rosés e 30% de tintos, inver-
tendo a lógica mexicana.
“A paisagem, o clima e a comida
prestam-se muito mais aos brancos e
aos rosés. Faço um trabalho coerente,
também para respeitar o meio ambien-
te”, diz a enóloga Lourdes Martínez
David Castro Hussong e Maribel Aldaco comandam a cozinha do Fauna, eleito o melhor restaurante do México pelo Latin America’s 50 Best Ojeda, a Lulú, com formação clássica
francesa e anos de experiência no caste-
lo de Henri Lurton, proprietário do
Alta-cozinha
Grand Cru Classé Château Brane-Cante-
nac, em Bordeaux. “Em Bordeaux, 90%
dos vinhos são tintos porque é frio,
chove e são combinados com pato,
com foie gras. Aqui é diferente.”
Lulú retorna à Baja California, onde
nasceu, para revolucionar os vinhos
mexicanos. “Muitos pensam que o ter-
descontraída
roir se refere somente à terra e ao cli-
ma, mas há um terceiro elemento mui-
to importante que é o trabalho huma-
no. Fazer vinho envolve um processo,
há a intervenção externa e só as pes-
soas que dão o caráter único ao terroir,
tal como um chef num restaurante.”
Ano a ano, ela experimenta varieda-
des e técnicas diferentes com o mínimo
Gastronomia Pratos provocativos e novos vinhos em mesas de intervenção possível. Do trabalho de
inovação resultam exemplares como o
compartilhadas levaram Fauna ao topo do ranking de Plan B, um vinho branco com uvas
chardonnay com um amplo perfil aro-
mático, notas cítricas, paladar fresco,
melhores restaurantes mexicanos. Por Luiza Fecarotta, para o limpo e mineral com elegante acidez.
“Temos de lembrar que fazer vinho é
Valor, de Ensenada, México agricultura, exige ética e sustentabili-
dade. Não basta apenas fazer vinho.”
Na Bruma são produzidas 25 mil cai-
DIVULGAÇÃO
xas de 12 garrafas por ano, das quais 40%
Eleito o melhor restaurante do Méxi- são escoadas para os Estados Unidos e
co pelo Latin America’s 50 Best, o Fauna, 30% ficam no complexo — outros 30%
na Baja California, desafia os protoco- atendem o resto do país. Quando inau-
los de um fine dining clássico. Isolado gurou, em 2017, produzia 500 caixas.
no árido Vale de Guadalupe, longe de Em função do tempo árido, as vinhas
centros urbanos, ele dispõe de serviço, têm de ser irrigadas para render mais e
comida e louças de primeira linha, mas não produzir uvas murchas, sem polpa.
serve pratos a serem compartilhados ao A falta de chuva, por outro lado, be-
centro de mesas coletivas, num am- neficia o Wine Garden, outro restau-
biente rústico, integrado com a nature- rante do complexo, inteiro ao ar livre,
za semidesértica do entorno. que recebe mais de 400 pessoas por
Sua cozinha está sob a regência do chef fim de semana. Grandes mesas coleti-
David Castro Hussong, que antes de se de- vas são dispostas em chão de terra ba-
dicar a essa cozinha mexicana local e ele- tida sob a sombra de árvores, num ce-
gantemente condimentada, que faz com nário composto por oliveiras centená-
liberdade e ousadia no Fauna, criou reper- rias. O cardápio, sem amarras e tam-
tório pelo mundo. Foi aprendiz no Noma, bém sob o guarda-chuva de David Cas-
naDinamarca,eleitorepetidasvezesome- tro Hussong, convive bem com o espa-
lhor restaurante do mundo, e trabalhou ço. Não se sabe onde começa e onde
em dois dos mais prósperos restaurantes termina, em suas palavras. “O conceito
de Nova York: o Eleven Madison Park, do da comida aqui é como o MMA. Vale
chef Daniel Humm, e o Blue Hill at Stone tudo. Não há regras. Se é época de tru-
Barns, em uma fazenda nas cercanias da fas, de caviar, podemos servir, mas
cidade, do chef Dan Barber. Mesas coletivas e pratos compartilhados em ambiente rústico são uma característica do restaurante também temos pratos mexicanos.”
Quem o escolta é sua mulher, Mari- DIVULGAÇÃO
O molho que besunta a massa da pi-
bel Aldaco, recém-eleita melhor con- ção própria. Todos estão restritos ao mu- zza surge à semelhança de um molho
feiteira da América Latina. Ela tam- nicípio de Ensenada, cuja cidade grande mexicano. Mas, sem a pimenta, ele é
bém passou por esse último restau- mais próxima é Tijuana, que marca a preparado a partir do tomate queima-
rante nos EUA e trabalhou na Espa- fronteira com San Diego, na Califórnia. do. O chef faz bases brancas, como a
nha com Martín Berasategui, uma re- “Temos a sorte de ter muita terra e que combina alho e cebola confitados,
ferência da cozinha basca. muito mar.” O mar é do Pacífico, géli- batidos como um creme. A massa, com
“Faço sobremesas só com produtos do e provedor do suprassumo dos pei- umidade alta e fermentação natural,
regionais. Parto de sabores familiares xes e frutos do mar, firmes e carnudos, de difícil manuseio, é de responsabili-
e os recrio com diferentes texturas. que atraem chefs de todo o país. dade da equipe de Maribel.
Gosto de torná-los equilibrados, sim- No Fauna, Castro serve, por exem- “São pizzas um pouco sem regras.
ples e com pouco açúcar. Sempre colo- plo, uma barbatana de atum, rara de Não são italianas, nem americanas,
co um toque de sal”, diz Aldaco, que encontrar. “Não dá para experimentar nem mexicanas, são apenas diferen-
assina um semifreddo de mel e milho em nenhuma parte do mundo onde “Estamosnomeiodo tes”, diz o chef. Embora pertença a
criolo com sorvete de leite, caramelo não haja dedicação à pesca do atum, uma família tradicional na Baja Cali-
salgado e corn flakes, inspirado nos como aqui ou talvez no Japão”, expli- nada.Écomoentrar fornia — é bisneto da fundadora de
cereais matinais que comia quando
pequena. Ela mantém nos doces a
ca. “Trabalhamos com os mergulhado-
res para que, na hora de abater o peixe,
emumafestaparase uma das cantinas mais antigas
do país, em operação ininterrupta
mesma tônica dos pratos salgados.
Um símbolo da cozinha é o ceviche
eles retirem a barbatana e nos ven-
dam. É como se fosse um tutano, mas é
divertir,comere há 130 anos —, Castro arejou a gas-
tronomia mexicana e a projetou sem
com chiles toreados, com sabores singu- do mar, é uma loucura, uma delícia.” beberbem” lhe roubar a identidade. ■
lares do norte da Baja California, que
DIVULGAÇÃO DIVULGAÇÃO
aceita diferentes pescados, variados de
acordo com o que o pescador encontra.
O eixo do prato é o molho escuro, que
combina amargor, acidez e picância. Pi-
mentas, pepino e cebola são queimados
em uma churrasqueira gigante, que assa
até três cordeiros simultaneamente. “É
diferente do tradicional, quase um des-
respeito ao ceviche”, brinca Castro.
Com um tom provocativo — pratos
simples que fogem do óbvio e causam
certo incômodo e novos vinhos mexi-
O cardápio do Fauna
canos, que surpreendem os clientes —,
é construído com os
o Fauna é uma celebração festiva da produtos locais à
cozinha mexicana. “Estamos no meio disposição, como
do nada. É como entrar em uma festa frutos do mar e
para se divertir, comer e beber bem. brócolis defumados
Para o bem ou para o mal, criamos
uma experiência memorável.”
O cardápio é construído diariamente
com os produtos locais à disposição. São
elementos como cordeiro, ovelha, co-
dorna, frutos do mar, queijos, baunilha,
café e cacau — o chocolate é de fabrica- O Fauna fica isolado no árido Vale de Guadalupe, na Baja California
10 | Valor | Sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024
Os dilemas éticos
tros países, como os EUA, não ocorre.
“A melhor coisa sobre a IA é também
a pior: ela pode nos ajudar a conseguir
o que queremos sem ter que pedir aju-
da a outras pessoas. Quando me mudei
para a Holanda, consegui me virar sem
saber holandês com a ajuda do Google
da tecnologia
Tradutor. Mas essa ajuda é também o
motivo pelo qual tem sido tão difícil
para mim aprender a língua, e o Goo-
gle Tradutor se tornou algo de que de-
pendo como uma muleta.”
Na Universidade de Twente, Gertz
diz que procura ensinar seus alunos a
ler a história da filosofia e entender
como ela pode ser aplicável para aju-
dar a levantar questões sobre os pro-
blemas enfrentados hoje. Segundo
Filosofia ‘Estamos perdendo oportunidades de ele, a filosofia é muito útil para prever
por que temos que entender a relação
autoconhecimento e crescimento pessoal’, diz americano entre o passado e o presente para ten-
tar passar do presente para o futuro.
“Os filósofos são bons em fazer per-
Nolan Gertz. Por Claudia Penteado, para o Valor, do Rio guntas, especialmente quando se trata
de tentar pensar em como os avanços
tecnológicos podem dar errado ou pelo
menos não acontecer como esperado.”
DIVULGAÇÃO
O existencialismo, a fenomenologia
O professor de filosofia e pesquisa- e a teoria crítica são escolas da filosofia
dor americano Nolan Gertz, que lecio- que ele considera mais importantes
na na Universidade de Twente, na Ho- para abordar a tecnologia. Para ele, a
landa, costuma dizer que quando as pergunta mais importante a ser feita
pessoas olham para o smartphone, não sobre IA é simplesmente “o que é is-
enxergam apenas um objeto, mas um so?”. Esta pergunta, diz, leva inevitavel-
portal para o mundo. Na medida em mente ao exército invisível de trabalho
que oferece respostas sobre o clima, co- humano em lugares como África
necta amigos e até “diz verdades” sobre Oriental, que fazem a IA parecer “inte-
seu usuário (com base em selfies e ras- ligente”, e ao mesmo tempo à gigan-
treamento de saúde), o aparelho se tor- tesca e desastrosa pegada de carbono
na um modo de fazê-lo enxergar a si dos centros de dados usados pelas em-
próprio e o mundo ao redor. presas de tecnologia que tentam de-
É aí que as coisas começam a se com- senvolver a IA no mundo. Fala-se mui-
plicar, porque embora a tecnologia pa- to pouco sobre esse custo ambiental
reça ser essencialmente amoral, ape- embarcado na tecnologia ChatGPT.
nas uma ferramenta que pode ser usa- Sobre o futuro das Big Techs e os
da para o bem e para o mal, quando ela possíveis efeitos positivos da regula-
tem a capacidade de moldar como ve- mentação, Gertz parece um pouco de-
mos o mundo, passa a ter implicações sanimado. “É difícil regular empresas
éticas intrínsecas, que é preciso reco- de tecnologia porque apenas as pes-
nhecer — e abordar. Neste sentido, de- soas que trabalham nelas parecem ca-
manda maior reflexão e pensamento pazes de entender o que elas estão fa-
crítico no seu uso — e é justamente aí zendo. Portanto, pedir ajuda a elas na
que entra a filosofia, com seu papel de elaboração de regulamentações, co-
ajudar a pensar o mundo e a vida. mo os EUA e o Reino Unido fizeram,
Fascinado por computação, Gertz se vai, é claro, enviesar a regulamentação
apaixonou por filosofia na graduação a favor das empresas de tecnologia.”
em ciências políticas, quando entrou É preciso, na sua visão, que as pessoas
em contato com o pensamento de Jo- em geral se levantem e rejeitem as “ino-
seph Wittgenstein (1889-1951) — filó- vações”, para forçar as empresas de tec-
sofo austríaco, naturalizado britânico, nologia a fazerem mudanças reais que
que teve importantes contribuições beneficiem a humanidade, e não apenas
nos campos da lógica e da filosofia da a si mesmas — como ocorreu com o lan-
linguagem. Acabou unindo as duas çamento do Google Glass, exemplifica.
paixões e se especializou em analisar Um de seus ex-alunos de Twente é
os impactos da tecnologia na humani- Leonardo Werner, advogado que cur-
dade pelo viés da filosofia. sou por lá o mestrado em filosofia da
Na Holanda, Gertz é pesquisador sê- ciência, tecnologia e sociedade e se
nior do Centro de Ética e Tecnologia tornou, agora de volta ao Brasil, con-
da Universidade de Twente, que fica sultor associado da Principia Advisory
na cidade de Enschede, na fronteira e também articulista da FreedomLab,
com a Alemanha. Sua pesquisa se con- um think tank baseado em Amsterdã.
centra na interseção entre filosofia po- Sabendo que estava se arriscando a
lítica, fenomenologia existencial e fi- estudar filosofia em uma “sociedade
losofia da tecnologia. Ele se declara técnica” movida a dados, que valoriza
um heavy user de celular e redes so- pessoas multitarefas e ama inovação,
ciais e confessa que se inspirou nos Werner acabou descobrindo que esta
próprios maus hábitos e excessos para sociedade que busca os “comos” parou
enxergá-los nos outros. de pensar nos “porquês”. Estudar criti-
Em seu livro “Nihilism and Techno- camente textos difíceis e ideias com-
logy” (Niilismo e tecnologia, 2018), plexas e mergulhar fundo na subjetivi-
Gertz afirma que a tecnologia exacer- dade alargou sua visão de mundo e a
ba o niilismo do ser humano: ao usar a compreensão sobre valores humanos.
tecnologia para evitar o tédio, o ser “Se a nossa medida para tudo na vi-
humano evita questionar a razão do da for a capacidade de executar tarefas
seu tédio, e com isso acaba por se afas- eficientemente, então a IA certamente
tar de questões muito maiores, como sairá vencedora. Precisamos nos per-
o significado e o propósito da vida. guntar, então, quais valores podem
Gertz chama de niilismo a tentativa resgatar, ressignificar, preservar e pro-
de escapar do confronto com a reali- mover a nossa humanidade”, diz.
dade, imaginando “mundos melho- Foi Gertz quem lhe apresentou
res” que a tecnologia poderia tornar Martin Heidegger e Jacques Ellul, dois
possível, como escapar da morte “fa- filósofos que ele considera essenciais
zendo upload da consciência para a para quem quer compreender o fenô-
nuvem”, o que ele define como uma meno tecnológico.
versão tecnológica do niilismo reli- “Em 1954, Heidegger escreve um ar-
gioso, que trata da vida após a morte
nas nuvens do céu.
tédio nos impede de enfrentar e en-
tendê-lo. O tédio não é apenas uma
gia na educação, também consideremos
cuidadosamente quais valores quere- “Écrucialque tigo chamado ‘A questão da técnica’.
Também no mesmo ano, Ellul publica
Enquanto a tecnologia nos dá robôs
para limpar as casas, drones para en-
falta de estímulo. É uma oportunidade
para reflexão e questionamento sobre
mos promover e como podemos usar a
tecnologia para apoiar esses valores.”
façamosescolhas o livro ‘La Téchnique’, traduzido para o
português como ‘A sociedade tecnoló-
tregar pacotes, aplicativos que aju- nossas vidas e valores. Estamos per- Para Gertz, a inteligência artificial conscientessobreo gica’. São duas leituras reveladoras e
dam a encontrar empregos, carros que dendo oportunidades de autoconhe- tem o potencial de revolucionar o traba- fascinantes”, indica.
dirigem sozinhos e algoritmos que cimento e crescimento pessoal.” lho, automatizando tarefas rotineiras e tipodefuturoque Werner também é leitor assíduo de
nos dizem o que gostamos e o que de-
veríamos fazer, nos dá também uma
O problema é grave e tende a piorar,
uma vez que a interação humana com
abrindo novas possibilidades para a
criatividade humana. No entanto, teme
queremoscriar” outro filósofo, este bem contemporâ-
neo, o sul-coreano naturalizado alemão
falsa sensação de liberdade, que nos
leva a uma inércia, que faz com que
a tecnologia se tornará cada vez mais
íntima e onipresente.
que a crescente automatização da eco-
nomia leve a desigualdades cada vez
Nolan Gertz Byung-Chul Han, autor de “A sociedade
do cansaço”. Ele comenta que em um li-
não estejamos, como humanidade, “O futuro dessa interação depende- maiores e ao desemprego em massa. vro recente, intitulado “Não-coisas”,
pensando e agindo de maneira mais rá em grande parte de como escolhe- Desenhar esse futuro do trabalho Han discorre sobre a digitalização do
efetiva diante da iminente catástrofe mos moldá-la. Podemos projetar tec- mais justo e gratificante para todos é mundo como uma ameaça à ordem ter-
climática, das crises de refugiados e nologias que promovam a conexão algo que demanda o cuidado propor- rena, à ordem das coisas materiais, que
das ameaças fascistas. É uma espécie genuína, o crescimento pessoal e o cionado pelo pensamento crítico, pe- são fundamentais para nos dar o senso
de desumanização, embora se acredi- bem-estar coletivo ou podemos per- la reflexão e compreensão profunda de um mundo habitável.
te exatamente no contrário. mitir que as tecnologias nos manipu- dos problemas. Neste sentido, a filo- “Ele afirma que não vivemos mais en-
“O problema do modelo de design lem e nos isolem. O futuro da nossa sofia se apresenta como um campo tre o céu e a terra, mas entre o Google
tecnológico ‘lazer como libertação’ é o interação com a tecnologia está nas vasto e diversificado para pensar a Cloud e o Google Earth. Não é um mun-
defeito que o filósofo Friedrich Nietzs- nossas mãos, e é crucial que façamos tecnologia, contribuindo com novas do mais palpável e nem tangível. Isso
che identificou pela primeira vez há escolhas conscientes sobre o tipo de perspectivas e insights. nos gera a ilusão de que somos seres in-
mais de 100 anos como a doença do futuro que queremos criar”, observa. Com seu trabalho de pesquisador, condicionados e separados da natureza,
niilismo. É o abraço do nada, de não se Para Gertz, a tecnologia tem o po- escritor e palestrante, Gertz tem pro- podendo alcançar técnicas cada vez
importar, a crença de que nada impor- tencial de transformar radicalmente a curado fazer provocações, na tentativa mais eficientes para postergar a vida,
ta”, diz Gertz ao Valor. educação, tornando-a mais acessível e de inspirar e engajar as pessoas para torná-la mais cômoda e cada vez mais
Isso faz com que, diante dos pro- personalizada. No entanto, também que elas tentem fazer mais perguntas conveniente. Mas esse mundo digital
blemas que se apresentam, muitas existe o risco de que ela leve a uma ên- e não se contentem com as respostas não nos traz nenhuma orientação sobre
pessoas prefiram simplesmente não fase excessiva em resultados quantifi- que vem sendo dadas. como viver uma vida boa e significativa.
pensar a respeito, sentar diante de cáveis e em aprendizagem superficial, Na Holanda, falar de filosofia para Na ausência de um norte, optamos sim-
uma tela e assistir a uma nova tempo- em detrimento do pensamento crítico tecnólogos é mais fácil, pois segundo ele plesmente por viver mais. Mas essa é
rada de sua série favorita. e da compreensão profunda. trata-se de um saber respeitado “por uma vida sem vivacidade, esvaziada de
“Usar a tecnologia para combater o “É crucial que, ao integrar a tecnolo- quem está no poder”, algo que em ou- significados e de sentido.” ■
Sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024 | Valor | 11
À esq., obra de
Nádia Taquary em
exposição no MAR.
À dir., bracelete de
copo, joia de matriz
africana, com efígie
central de mulher
europeia, parte da
coleção do
antiquário Rafael
Moraes
12 | Valor | Sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024
O apelo do enigma
DIVULGAÇÃO
“Minha mãe sempre disse: não crio fi- e francês. “Também me viro bem no es- aula em qualquer universidade do mun-
lhas para se casarem, crio filhas para se- panhol, como todo o brasileiro, falo do. Mas tá lá na Bahia e quer ficar.”
rem independentes”, lembra Laura de um patuá”, diz rindo. Aos 19 anos in- Outra explicação que ela dá para a
Mello e Souza, de 71 anos, a primeira mu- gressou no Departamento de História visibilidade internacional da historio-
lher e a primeira pessoa do continente da Faculdade de Filosofia, Letras e grafia brasileira é o fato de o Brasil ser
americano a receber o Prêmio Interna- Ciências Humanas da Universidade de um enigma: um país riquíssimo e com
cional de História. A distinção criada em São Paulo e está lá até hoje, onde atua um dos maiores índices de desigual-
2015, concedida pelo Comitê Internacio- como professora aposentada. dade do planeta. “É um país que des-
nal de Ciências Históricas (fundado em “Minha alma mater, sempre digo, é a perta muita curiosidade, que tem con-
Genebra em 1926), será entregue numa USP.” E foi esse caminho que a permitiu tingentes populacionais muito varia-
cerimônia em Tóquio, em outubro. percorrer o mundo como professora dos. Desde ascendência europeia, ára-
“Recebi a notícia do prêmio sentada convidada dando cursos breves e semi- be, japonesa, até as populações origi-
naquela cadeira [aponta para a janela] nários. Professora para valer, de gradua- nárias, que ainda estão aí falando e
e quase desmaiei. Fiquei dois dias ção, foi em Paris e na Universidade do que agora começamos a enxergá-las.”
meio atordoada. Não é um prêmio Texas, em Austin, nos Estados Unidos. Outro componente nesse variado
que você saiba alguma coisa a respeito “Aprendi muito no Texas. É a maior uni- caldo cultural é a imensa presença
dele como o Jabuti, por exemplo, que versidade pública dos EUA. O fato de ser africana — é a maior população africa-
tua editora te inscreve. Há imensos pública não quer dizer que seja gratuita, na fora da África. “Tudo isso, durante
historiadores vivos. E muitos deles te- mas é muito mais barata do que as ou- muito tempo, fez do Brasil uma espé-
riam 30 vezes mais possibilidade de tras. E lá é o maior centro de estudos lati- cie de exemplo de concórdia racial e
ganhar do que eu”, conta, vestida de no-americanos do mundo. Tem uma bi- hoje em dia nós estamos vendo que
forma clássica, em seu apartamento blioteca absolutamente extraordinária, não é nada disso. A historiografia tam-
no bairro dos Jardins, em São Paulo. muito dinheiro, e é uma das universida- bém deu uma guinada nesse sentido,
Aqui é sua base, a cidade onde nas- des norte-americanas que têm uma ver- por mais importante que eu ache que
ceu e viveu sempre e para a qual voltou ba especial para contratar professores o Gilberto Freyre tenha sido.”
em meados de 2022, depois de lecio- latino-americanos.” O perfil dos alunos, A contribuição de Mello e Souza pa- “Minha experiência décadas pra entender que você vira
nar durante oito anos na Universidade relata, é muito misturado, com muitos ra a historiografia é vasta. Passa pelo prova que o grande outra pessoa quando entra na sala de
de Paris IV — a Sorbonne. “São Paulo é hispânicos bilíngues. período colonial, pelo império, por es- meio de ascensão aula. Encarna outra persona, age e diz
minha cidade preferida. Adoro morar A historiografia brasileira, segundo tudos sobre religiosidade. Entre os li- social é o coisas que normalmente não diz as-
aqui. É uma falsa cidade horrorosa. Mello e Souza, hoje é fortíssima e cada vros que publicou estão “O diabo e a conhecimento”, sim conversando. Tem sempre um
diz Laura de
Claro que quando passo na Amaral vez mais reconhecida internacional- terra de Santa Cruz” (1986) e “Inferno pouco de ator no professor. Naquele
Mello e Souza
Gurgel, o cenário é terrível. Mas o Brasil mente. “Sou suspeita para falar, mas, Atlântico” (1993), ambos pela Compa- que se investe de verdade.”
inteiro tem aspectos medonhos. Ou é dentro das ciências humanas, acho que é nhia das Letras. Apaixonada pelo ro- Nessa qualidade, afirma que o edu-
uma coisa radiosa ou uma ignomínia”, a disciplina que tem mais impacto.” Isso mance histórico, revela que leu “Guer- cador não tem o direito de ser pessi-
diz, antes de elogiar a vida cultural da se deve à qualidade dos profissionais e ra e paz”, de Liev Tolstói, cinco vezes. mista. Ainda que, pessoalmente, ela
grande metrópole. “Tem exposições ao fato de o Brasil ter uma historiografia Em inglês, francês e duas vezes em seja. “Otimista com o Brasil? Não sou,
incríveis e a cena musical é maravilho- de inserção internacional em função dos português, “muitíssimo bem traduzi- infelizmente. Mas acho que a gente
sa. No Theatro São Pedro, no Municipal cursos de intercâmbio. “Os grandes his- do pelo Rubens Figueiredo”. tem que agir com otimismo e fazer tu-
e na Sala São Paulo. Algumas das mon- toriadores do mundo já deram cursos “‘Guerra e Paz’ é um romance de his- do para que o Brasil se transforme. Se a
tagens de óperas mais incríveis vi aqui, aqui.” E cita o francês Michel Foucault toriador. Muitos desses romances tra- gente lutar contra a desigualdade e
inclusive ‘O Guarani’, no ano passado.” (1926-1984), com quem fez um curso na tam de certos períodos melhor do que pela liberdade, a gente vai construir
Ela cresceu num meio intelectual USP que foi interrompido em função do qualquer historiador. Sempre leio a li- uma sociedade mais justa do ponto de
privilegiado, filha do sociólogo e críti- assassinato do jornalista Vladimir Her- teratura com olho de historiadora e vista dos gêneros, das etnias, de tudo.”
co literário Antonio Candido de Mello zog, durante a ditadura militar. seleciono alguns parágrafos para A colonização foi um dos nossos ma-
e Souza e da crítica de arte e filósofa Por outro lado, afirma que a historio- meus alunos.” les, mas não pode ser uma desculpa infi-
Gilda de Mello e Souza. As origens da grafia brasileira no que diz respeito à es- No início, Mello e Souza resistiu a le- nita. “Teria dado tempo da gente refazer
família misturavam cidades do Rio, de cravidão é, ao lado da americana, a mais cionar, queria ser pesquisadora ape- esse percurso se tivesse a coisa mais ele-
São Paulo e de Minas Gerais. Nessa forte do mundo. “Temos historiadores nas. Divorciada e com duas filhas, não mentar que todo o mundo sabe que tem
mescla havia alguns acadêmicos e com nome internacional como o João Jo- teve saída. A terceira filha, de outro ca- que ter: educação. Uma educação de
profissionais liberais, mas a maioria sé Reis. Ele é um dos responsáveis pela samento, veio mais tarde, quando ela qualidade que permitisse o desenvolvi-
era composta por fazendeiros, que se guinada no estudo da escravidão e talvez já começava a descobrir sua paixão pe- mento do pensamento crítico. Minha
dedicavam à criação de gado. seja o mais importante de todos. O João é lo ensino. “Eu morria de medo da sala experiência prova que o grande meio de
Aluna do Colégio Dante Alighieri, traduzido nos Estados Unidos e não dá de aula. Ia com taquicardia e demorei ascensão social é o conhecimento. É o
Mello e Souza estudou italiano, inglês aula lá porque não quer. Ele podia dar anos pra me sentir à vontade. Demorei elevador social, como se chama.” ■
DIVULGAÇÃO
DIVULGAÇÃO
A evolução de
de entrar na cabeça da Celie permitiria
ver e sentir tudo o que acontecia com a
personagem”, comenta Oprah.
Bazawule é um artista multimídia de
Gana, mais lembrado por ter codirigi-
do “Black Is King”, em 2020, com
‘A Cor Púrpura’
Beyoncé. “Foi importante entender que
‘A Cor Púrpura’ era um texto sagrado e,
como Oprah costuma dizer, uma fonte
de cura para muitos”, conta o cineasta,
que também participou do evento onli-
ne. “Estava claro para mim que, se eu
não tivesse nada de novo para trazer,
era melhor abandonar o projeto. Levei
Cinema Versão musical dá vida ao um tempo para perceber o que pode-
ríamos acrescentar. Voltei ao livro de
mundo interior da protagonista Celie. Alice e a resposta estava logo na pri-
meira página, nas primeiras palavras,
assim que li ‘Querido Deus’”, completa
Por Elaine Guerini, para o Valor, de ele, lembrando que a narrativa é estru-
turada com cartas de Celie para Deus e
São Paulo também para a irmã, Nettie.
“Alguém que escreve sobre a sua
condição para Deus só pode ter uma
forte imaginação. E se pudéssemos ex-
pandir, dando voz a essa imaginação,
Oprah Winfrey tinha 30 anos quan- de uma nova versão cinematográfica estaríamos contribuindo com a obra,
do recebeu o telefonema de Steven do enredo, calcado no racismo, no pa- com esse multiverso que é ‘A Cor Púr-
Spielberg confirmando que ela encar- triarcado, no sexismo e na violência do- pura’”, diz o diretor, de 41 anos. “Ainda
naria Sofia em “A Cor Púrpura” (1985). méstica no sul dos EUA. O longa-metra- que o mundo tenha mudado, há uma
“Nunca quis algo tão intensamente na gem que chega agora ao Brasil é, mais nova geração que infelizmente conti-
minha vida”, diz a apresentadora, es- precisamente, uma adaptação do mu- nua lidando com as mesmas questões
critora, produtora e atriz, que foi esco- sical da Broadway, que estreou nos pal- pesadas. Precisávamos então encon-
lhida na época mesmo sem ter expe- cos em 2005, baseado tanto no livro trar um jeito novo para reapresentar
riência em artes dramáticas. quanto no filme de Spielberg, indicado os problemas e tentar solucioná-los,
Diante da câmera, ela até então só ti- a 11 Oscars em 1986. Fantasia Barrino e menos tolerado, considerado mais como violência baseada em gênero ou
nha apresentado um programa matinal Entre as categorias, Oprah concorreu Taraji P. Henson em uma exploração perversa. discriminação por orientação sexual
de baixa audiência chamado “AM Chica- à estatueta de melhor atriz coadjuvante cena do novo “A Cor A evolução a que Oprah se refere diz ou racial”, acrescenta Bazawule.
go”. “Foi o momento que mudou tudo daquele ano, pelo desempenho como Púrpura”, baseado respeito à aura de superprodução dada Para Brooks, não importa o tama-
na minha trajetória, abrindo as portas Sofia, a destemida enteada de Celie. E a no musical da aqui à jornada emocional da protago- nho do tombo, referindo-se a mulhe-
Broadway
para o ‘The Oprah Winfrey Show’, que história se repete agora, com a indica- nista, que ganha ainda mais ecos com a res negras que a vida insiste em derru-
veio logo depois”, conta, referindo-se ao ção de Danielle Brooks ao Oscar (a úni- inserção de números musicais, fazendo bar, como Celie ou Sofia. “No final, vo-
talk show exibido de 1986 a 2011, que ca que a produção recebeu), também aflorar os sentimentos. Celie (interpre- cê sempre pode se levantar e dizer o
fez dela uma celebridade. por Sofia, responsável por um dos me- tada agora por Fantasia Barrino, que fez seu ‘Nem no inferno’”, afirma a atriz de
Quando soube que Spielberg adapta- lhores momentos da obra. A certa altu- o mesmo papel na montagem teatral) 34 anos, que reprisa o papel desempe-
ria para as telas o livro de Alice Walker, ra, Millie, a mulher do prefeito, vê Sofia também não precisa esconder a atração nhado no revival do musical “A Cor
publicado em 1982 e vencedor do Prê- nas ruas e, após elogiar a limpeza de que passa a sentir por Shug Avery (Taraji Púrpura”, na Broadway, em 2015. “Na
mio Pulitzer de ficção, Oprah simples- suas crianças, pergunta se ela não quer P. Henson), a cantora amante de seu ma- época, dizer ‘Nem no inferno’ todas as
mente pôs na cabeça que participaria da trabalhar em sua casa, como emprega- rido, deixando que o romance floresça noites no palco foi dizer ‘Nem no in-
empreitada. Em parte, por ter sentido da. Sofia solta um “Nem no inferno!”, — diferentemente do ocorrido no filme ferno’ para os meus medos. E hoje isso
uma profunda conexão com o material. ainda que ela acabe levando uma bofe- anterior, mais contido nesse aspecto. é um hino para mim.”
Oprah foi abusada física e sexualmente tada do prefeito pela resposta. Outra novidade é o mundo interior E não é necessariamente preciso
quando era jovem, assim como a prota- “O que experimentamos agora é de Celie, que ganha vida aqui, com ce- que essas mulheres perdoem aqueles
gonista da obra literária, Celie. uma evolução de ‘A Cor Púrpura’”, con- nas que conferem um toque quase de que lhe fizeram mal, segundo Oprah.
Trata-se de uma garota negra da zo- ta Oprah, em encontro virtual com realismo mágico à narrativa. “Quando “Não é essa a mensagem do filme. Há
na rural da Geórgia, do início do sécu- jornalistas, do qual o Valor partici- começamos a conversar com Blitz [o uma fala maravilhosa que eu lutei pa-
lo XX, que é estuprada pelo padrasto, pou. Embora a releitura seja fiel à tra- cineasta Blitz Bazawule], já tínhamos ra manter no roteiro, no final da histó-
obrigada a entregar os dois filhos que ma e à mensagem do original, que ce- entrevistado uns quatro ou cinco can- ria. Mister pede desculpa a Celie, di-
teve com ele à adoção e ainda forçada lebra a resiliência, a superação e a ir- didatos”, recorda Oprah, que produz o zendo que ela está bonita e que quer
a se casar com um homem violento, mandade, o último desdobramento filme em parceria com Steven Spiel- sair com ela. Mas Celie é clara: ‘Vamos
chamado apenas de Mister, sofrendo no cinema não é tão calcado na cruel- berg, Scott Sanders e Quincy Jones. ser apenas amigos’. Isso significa que,
todo tipo de agressão em suas mãos. dade e na violência. Este foi o caso do “Decidimos que seria Blitz no mo- quando você perdoa o outro, você faz
“‘A Cor Púrpura’ é um projeto inspi- primeiro filme, que possivelmente es- mento em que ele apareceu no vídeo, isso por si mesmo, para seguir em
rador. Alice Walker é apenas uma, mas cancarou o sofrimento da protagonis- em nosso encontro virtual, durante a frente. E não para ter o outro de volta
ela fala por 10 mil”, afirma Oprah, de 70 ta para acentuar o caráter de denúncia pandemia, com a sua apresentação do na sua vida, comendo na mesma mesa
anos, agora responsável pela produção da obra, o que nos dias de hoje seria filme em storyboard. Sua brilhante ideia com você”, comenta ela. ■
É Tudo Verdade
Robert
SCOTT GRIES/GETTY IMAGES
Neste dia 15 comemora-se o cente- que eu compreendi foi que algo esta-
nário de nascimento de um dos gran- va definitivamente errado — e era o
des revolucionários do cinema docu- fato de que o filme documental era
LAYRA GUIMARÃES/DIVULGAÇÃO
Outros Escritos
Arte como
CRIS BIERRENBACH
De passagem pelo Rio de Janeiro, célebre frase: “Nunca mais”.
assisti a uma peça e a um filme que, E no entanto... estamos aqui, cheio
por coincidência, dialogam muito de guerras ao nosso redor, pessoas
O resgate de
AP PHOTO/BOSTON GLOBE
mos). A seleção e a apresentação da co- “Se você nunca leu a obra de Anne
letânea ficaram a cargo de sua filha e Sexton, agora conhecerá uma poeta
uma poeta
executora literária, Linda Gray Sexton, que fala com uma coragem extraordi-
o que dá inegável autoridade à forma nária e que se aprofunda em assuntos
como a edição foi pensada. Bilíngue, o que eram considerados inadmissíveis
essencial livro, que tem tradução de Bruna Beber,
oferece a oportunidade de se percorrer
em sua época: traumas de infância e
incesto; dependência de drogas e de
também os textos como foram origi- álcool; loucura e depressão; masturba-
nalmente concebidos, o que sempre é ção e menstruação; casamento e adul-
Coletânea apresenta relevante quando se trata de poesia. tério; maternidade, filhos e amizade; o
obra de Anne Sexton Em meados da década de 1950, casa- desejo de viver e o desejo de morrer.
da e mãe de duas filhas, Sexton foi diag- Esses são apenas alguns dos temas que
pela primeira vez no nosticada com depressão e recebeu o ela abordou, cada qual com ardor, fú-
conselho de seu psiquiatra para que ria e, ao mesmo tempo, uma clareza
país. Por Fabricio Vieira, tentasse começar a escrever, poemas contundente”, diz Linda Gray.
talvez, como uma ferramenta de apoio Somando-se a isso uma vida de peque-
de São Paulo terapêutico. E foi assim que nasceu o nas tragédias cotidianas — as crises fami-
trabalho de uma das escritoras mais ce- liares, as internações psiquiátricas, os
Compaixão lebradas de sua geração. Sexton desco- problemas com o álcool, o desfecho com
Anne Sexton briu na escrita uma nova forma de viver o suicídio —, o mito artístico, com seu in-
Trad.: Bruna Beber seus dias e não tardou para que a poe- teresse perene, estava criado. Mas o que
Relicário sia tomasse conta de seu cotidiano. torna sua obra ainda potente e relevante
376 págs., “Debruçada sobre sua máquina de é seu original e esmerado labor poético.
R$ 89,90 escrever enquanto o tempo corria — “Já que perguntou, em geral não
às vezes, até tarde da noite, depois que consigo lembrar./ Chego vestida, sem
todos já estavam dormindo —, ela re- impressões da tal jornada./ Aí a luxúria
visava e tornava a revisar cada poema. quase inominável regressa./ No entan-
Logo, tinha-os em número suficiente to, nada tenho contra a vida./ Conheço
para encher uma pasta”, conta Linda bem as lamelas de grama de que fa-
Cinco décadas se passaram desde a Gray no prefácio. De seu primeiro li- lou,/ os móveis que você colocou no
morte da poeta americana Anne Sex- vro, “Alta parcial do manicômio” sol./ Mas suicidas têm uma linguagem
ton (1928-1974) até que sua obra ga- (1960), até a consagração com o Prê- específica./ Feito marceneiros, querem
nhasse pela primeira vez uma edição A escritora americana Anne Sexton recebeu o Prêmio Pulitzer de poesia em 1967 mio Pulitzer, recebido em 1967, se saber quais ferramentas/ Nunca ques-
no Brasil. Apenas agora, com a coletâ- passariam poucos anos. tionam a mão de obra (...)”, escreve ela
nea “Compaixão”, sua premiada poesia de as editoras brasileiras a terem igno- tação do trabalho de escritoras funda- A temática íntima e pessoal que fez a no poema “Vontade de morrer”.
é vertida ao nosso português. Como rado até o momento. É curioso que mentais até então deixadas em segundo fama de sua obra, enquadrada à época É possível encontrar no YouTube ví-
nunca é tarde para a grande literatura, uma biografia dedicada a ela — “Anne plano por aqui — alguns anos atrás, ha- em uma prateleira que chamavam de deos de Sexton lendo este e outros
não deixa de ser um evento a se come- Sexton: A morte não é a vida” (Siciliano, via sido a vez de a poeta argentina Ale- “poesia confessional”, ao lado de no- poemas seus, o que dá uma ideia mais
morar — finalmente sua força poética, 1994) — tenha sido publicada no Brasil jandra Pizarnik (1936-1972) ter sua obra mes como Robert Lowell (1917-1977), clara de como ela entendia a particular
intocada mesmo com o passar do tem- três décadas atrás, mas sua poesia, per- publicada pela mesma editora. John Berryman (1914-1972) e de sua musicalidade dessas peças. A poesia de
po, poderá chegar a mais leitores. manecido à margem. Talvez o fato de “Compaixão” reúne textos escritos amiga Sylvia Plath (1932-1963) — que Sexton é um marco indiscutível na lite-
Sexton nunca foi uma escritora obs- ser mais fácil vender biografias que li- por Sexton durante toda sua relativa- recebeu de Sexton uma homenagem ratura americana da segunda metade
cura. Ela sempre permaneceu como um vros de poesia explique tal anomalia. mente breve carreira literária, com com o poema “A morte de Sylvia”, pre- do século XX e uma lacuna no merca-
nome de relevo no mundo literário, o A Relicário, ao trazer Sexton ao país, poemas extraídos dos sete livros que sente nesta edição —, ainda é um dos do editorial brasileiro é sanada agora
que torna difícil de entender o porquê dá uma importante sequência à apresen- publicou em vida (mais alguns póstu- pontos que atrai novos leitores. com o lançamento de “Compaixão”. ■
música crianças
crianças