Você está na página 1de 3

14/03/24, 11:51 O Bairro das Estacas: casas para a classe média – Observador

768kWh poupados com a i

Margarida Bentes Penedo Seguir

Arquitecta e deputada municipal

O Bairro das Estacas: casas


para a classe média
O Bairro das Estacas é um óptimo exemplo de boa qualidade e
construção acessível à classe média. Hoje as regras não o
deixariam construir.

14 mar. 2024, 00:17 5 Oferecer

Quando se aborda o assunto das casas para a classe média é difícil


puxar pela imaginação das pessoas para que elas atravessem a
sopa turva de clichés e modelos errados que os sábios lhes
plantaram nas cabeças. Convém mostrar-lhes um caso diferente. O
Bairro das Estacas, em Lisboa, fica perto da Avenida de Roma,
junto à linha do combóio, onde era o antigo cinema King e onde
ainda hoje existe o Teatro Maria Matos. Freguesia de Alvalade.
Concentra uma série de exemplos do que se fez bem e do que não
se deve fazer. É um bairro especial de arquitectura modernista,
formado por blocos paralelos de edifícios perpendiculares à
estrada, de modo a abrir o quarteirão e construir jardins entre os
blocos. Esta ideia veio contrariar o costume de implantar os
edifícios ao longo do perímetro do lote, deixando logradouros
privativos encerrados na parte central. Além disso, os edifícios do
Bairro das Estacas são elevados em pilotis, ou seja, assentes numa
https://observador.pt/opiniao/o-bairro-das-estacas-casas-para-a-classe-media/ 1/3
14/03/24, 11:51 O Bairro das Estacas: casas para a classe média – Observador

grelha de pilares intercalados com lojas e com os acessos ao


interior dos prédios. O piso térreo maioritariamente vazado liberta
o solo e dá ao bairro uma grande permeabilidade pedonal. A
arquitectura do conjunto é de Ruy Athouguia e Sebastião
Formozinho Sanchez, e os jardins são um dos primeiros projectos
de Gonçalo Ribeiro Telles. Foi considerado concluído em 1951 e
recebeu o Prémio Municipal de Arquitectura em 1954.

Sobre ele ainda não apontei o mais importante: o Bairro das


Estacas foi construído para a classe média, como habitação
económica de promoção pública estatal. Chamava-se, naquela
altura, Bairro de Habitações Económicas de São João de Deus. Se
fosse hoje, não era possível aquela construção pela quantidade de
regras a que desobedece. É o regulamento acústico, já que se
ouvem nitidamente as conversas nos outros apartamentos; são as
acessibilidades, e as medidas das zonas comuns, as larguras dos
acessos e das bombas das escadas; é a sacrossanta eficiência
energética, apesar do desenho original já incluir quebra-luzes na
fachadas poente para controlar a incidência solar, e prever outros
sistemas passivos que a lei actual praticamente impede de
introduzir nos cálculos, como a própria massa das paredes. Em
todos estes capítulos da nossa infernal regulamentação, o Bairro
das Estacas desobedece às regras e ainda bem. Só assim é possível
construir mais barato. Com tal qualidade que hoje toda a gente
quer lá viver, sobretudo os arquitectos. E agora o conjunto está em
vias de classificação – por iniciativa da Direcção Geral do
Património Cultural. Mas o mais relevante é isto: hoje as regras
não deixariam construir o Bairro das Estacas, pelo menos tal como
está e para aquelas pessoas. Hoje as regras obrigatórias encarecem
brutalmente a construção. Só permitem construir casas de luxo.

Por estar em vias de classificação, começaram os problemas. Um


edifício classificado traz obrigações e reduz os direitos de
propriedade (que as pseudo compensações fiscais não
compensam). De maneira que apareceram por ali romagens de
puristas, câmara fotográfica pendurada ao pescoço, e camisa
abotoada até à garganta, apostados em obrigar as pessoas a fazer
https://observador.pt/opiniao/o-bairro-das-estacas-casas-para-a-classe-media/ 2/3
14/03/24, 11:51 O Bairro das Estacas: casas para a classe média – Observador

obras para voltar ao desenho original. São mais de 240


apartamentos. Com o tempo, as casas foram sendo vendidas e
alugadas. Desde 1951, a vida mudou e as pessoas foram adaptando
as casas ao seu modo de vida. Algumas fecharam as varandas, ou
parte delas, para ganhar espaço. São as famosas marquises. Muitas
destas pessoas (a maior parte?) já compraram as casas com as
marquises fechadas. O que não constitui uma tragédia, sobretudo
naquele tipo de arquitectura, que suporta bem um traçado de
painéis abertos e outros fechados. O importante é serem bem
feitas. E os poderes públicos, em vez de massacrarem as pessoas à
mais pequena mudança, à mais compreensível e legítima
adaptação, podem e devem ajudá-las a desenhar e legalizar as
marquises.

De resto, é importante que os governantes decidam sobre quem


deve morar ali: querem ter famílias ou querem diletantes? Porque
transformar aquele bairro em habitat exclusivo para diletantes é
uma perversão da natureza original do conjunto, pensado e
construído para famílias da classe média. Ficam com o desenho de
origem, mas mudam a composição social. Parece que aquelas
pessoas afinal já não servem. A moral desta história é que o Bairro
das Estacas mostra um exemplo de boa qualidade e construção
mais barata, acessível aos orçamentos da classe média. E com a
falta de casas em Lisboa para a classe média, os poderes públicos
não se podem dar ao luxo de infernizar a vida a quem mora ali.

Receba um alerta sempre que Margarida Bentes


Seguir
Penedo publique um novo artigo.

HABITAÇÃO E URBANISMO PAÍS

Proponha uma correção, sugira uma


5 pista: leitor@observador.pt
Oferecer

https://observador.pt/opiniao/o-bairro-das-estacas-casas-para-a-classe-media/ 3/3

Você também pode gostar