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Sombras que incomodam

A tecnologia surpreende cada vez mais seus usuários rompendo


continuamente com as fronteiras primitivas dos seus criadores.
Temos ao alcance dos dedos os sistemas LEDs, flashes embutidos,
celulares com lanternas, lanternas com telefones, lâmpadas com
gases venenosos que ampliam a vida útil da lâmpada, diminuindo a
nossa, dentre outra infinidade de maravilhas da iluminação para as
mais distintas aplicações. Sou um patético apreciador desses
brinquedos que piscam, estouram, hipnotizam, queimam a retina e
até mesmo prestam-se, vez em quando, para suas verdadeiras
finalidades: iluminar.
Toda essa engenharia luminotécnica, “naturalmente”,
transforma nosso modo de ver a vida e também gera novas sombras
por onde passam. Se as sombras antigas estão sempre em
movimento, essas outras, mais modernas e semicontroláveis, agitam-
se freneticamente enquanto possuem energia. São fúteis, portanto,
vou ignorá-las, evitando o deslumbramento que causam e ficarei com
as mais importantes, impiedosas e proféticas: as sombras da
natureza.
Podemos ignorar as façanhas dessas incansáveis e
impertinentes sombras em nosso mundo moderno, mas, com um
pouco de tempo e atenção, perceberemos que são fatais em alguns
casos. Se começarmos apreciando o curioso caso do país do sol
nascente, o Japão, descobriremos que influenciou e impediu um
movimento de expansão imobiliária na construção civil e
conseqüentemente o aquecimento de sua economia. Tudo por causa
das implacáveis leis fiscais sobre as sombras. Um construtor de
arranha-céu residencial deve negociar uma compensação com quem
está à sombra do edifício. Um regulamento anti-sombra que bota
ordem e respeito não só em Tóquio, mas, em várias cidades que
adotaram esse tratado e que condicionam seu plano de
desenvolvimento a essas estranhas regras. Outra jóia rara de
especulação da sombra é em Mahanttan, mais especificamente em
Nova York, onde os prédios geram gráficos de área de sombra
arquitetônica conhecidos como skylines. Os arranha-céus obedecem
um desenho projetado de baixo, do fundo das ruas, da figura das
sombras que os prédios não devem projetar. Um perfil definido pela
sombra e que tem como resultado grandes edifícios em forma de
escadarias, parecidos com pirâmides. Apesar dessa matemática e de
um plano regulador, nem todos os prédios conseguem realizar o
milagre de não produzir sombras em Nova York. E a capital
americana fica cada vez mais a cidade das sombras do que das luzes,
pois seus prédios criam sinistros cânions escuros, mesmo ao meio
dia. Seu potencial artificial luminoso vai surgir bem mais tarde,
quando impera a grande sombra da noite.
No Brasil também temos alguns casos de desrespeito com a
sombra e que naturalmente acabam gerando cidadãos incomodados
ou com medo de perder o seu direito à luz. Comprovei isso com uma
das exóticas e inocentes sondagens publicadas em nossa página de
difusão, no www.clubedasombra.com.br, onde a enquete
questionava “Onde a sombra gera mais problemas?”. Com
modestos vinte votos registrados, mostrou os seguintes resultados:
na beira da praia 25,00%, nos estúdios de TV 20,00%, no
imaginário infantil 15,00%, no urbanismo 10,00%, na ética política
10,00%, nas transmissões de jogos esportivos 10,00%, na
agricultura 5,00%, nos fundamentos teológicos 5,00%, nas
estratégias militares 0,00%. Pois bem, tendo o conhecimento deste
resultado motivei-me a refletir e discorrer mais profundamente sobre
esses contundentes dados. Sem sombra de dúvida é um tema de
interesse duvidoso e está obscurecido pelo seu teor inútil, mas, é
intrigante quando se pesquisa a importância psicossocial da sombra
no cotidiano urbano. Ponto que a sombrologia e a nova concepção de
sombraterapia está atenta e que venho desenvolvendo durante anos.
No meu caso, não conheço de perto os problemas urbanísticos
de Tóquio ou Nova York, pois nunca estive lá, mas, posso falar com
certa categoria de dois casos clássicos brasileiros que presenciei
pessoalmente. O primeiro é o caso da Praia de Boa Viagem, na cidade
do Recife, no estado de Pernambuco. Um verdadeiro centro de agito e
paquera recifense. É toda urbanizada nos seus 7 Km de extensão,
onde é possível encontrar quadras esportivas, pista para caminhadas,
pracinhas, iluminação noturna, bares, restaurantes, prédios
residenciais e hotéis. É protegida por recifes e concentra poluição em
alguns trechos que são impróprios para banho. Existem placas
advertindo os banhistas a não se aventurarem nas suas águas, pois,
já foram registrados diversos casos de ataques de tubarão. Isso é o
de menos comparado com o efeito sombra que se estende em suas
areias douradas e fofas. Presenciei a sombra da rede hoteleira e dos
prédios residências, de mais de 10 andares e a pouco menos de 40
metros da praia, tomando conta da faixa de areia a partir do horário
das 14h30min. Após esse horário, banhos de sol só dentro da água,
junto com os tubarões! A vantagem de tanta sombra? Talvez a
economia com o protetor solar. O outro caso é o da Praia Balneário
Camboriú, no estado de Santa Catarina. Com a mesma extensão,
águas calmas e escuras, areia batida, sem registro de incidência de
tubarões e contornado pela Avenida Atlântica, totalmente urbanizada
e com típicos pontos de poluição que impedem o banho. Na área da
praia central tem aproximadamente 190 edifícios. Segundo um
estudo de simulação de sombras, um skyline, feito pela arquiteta e
urbanista Flavia Caldeira De Domenico, juntamente com o acadêmico
Carlos Eduardo de Souza e o Professor da UNIVALI Jânio Vicente
Rech, “o Balneário Camboriú é um dos maiores distritos turísticos do
país. A faixa de areia existente torna-se, por inúmeras vezes,
insuficiente para atender a demanda de turistas que se apresenta. O
resultado é um aglomerado de pessoas, tornando momentos de lazer
em algo desconfortável e muitas vezes até perigoso.” Sem dúvida
eles devem ter razão nesse alerta, pois, segundo cálculos e
estatísticas, nos meses de dezembro e janeiro a população
quadriplica. O estudo verifica um gabarito da altura das edificações
da orla e a largura média da faixa de areia existente da praia,
visando à simulação gráfica das sombras para a construção de um
“engordamento” proposto para a praia e identifica se a dimensão
proposta,além de aliviar a ocupação na praia, é atingida pelo sol até
um horário dito “satisfatório” ao turista. Segundo a pesquisa “O foco
do problema é a ínfima insolação na areia da praia na alta
temporada, principalmente após as 13 horas, caracterizando, além da
pouca capacidade de carga da praia central, uma densa aglomeração
de pessoas nas réstias de sol que a atinge.” Além do cenário ridículo
e decadente que pode-se imaginar desta descrição praiana, as
conclusões da pesquisa são assustadoras!
Segundo o laudo técnico destes profissionais “A necessidade do
engordamento da faixa de areia da praia central é algo essencial ao
desenvolvimento turístico e econômico do município. São incontáveis
os benefícios desse aterro. No entanto, este alargamento deve ser
pensado de maneira minuciosa, de forma que atenda os objetivos
para o qual será proposto. Nessa pesquisa, desenvolvida através de
análises da faixa de sombreamento na areia da praia, constatou-se
que o aterro deve ser pensado diferentemente para cada trecho da
orla; considerando-se a curvatura da praia, sua posição solar e as
diferentes larguras apresentadas. Deve-se pensar, não somente
ciclovias, áreas de esporte, de lazer; em vias de tráfego de veículos e
bolsões de estacionamento. O aterro deve atender a premissa
essencial de todos os freqüentadores da praia, qual seja, o sol, com
conforto para o veraneio e áreas ensolaradas durante todo o período
do dia. Atualmente, devido a especulação imobiliária alentada por
períodos com ausência de legislação urbanística, os edifícios da Av.
Atlântica, com alturas incoerentes para uma orla de praia, bloqueiam
o sol em vários pontos da faixa de areia a partir das 14:00h. No
entanto, os usuários não podem aproveitar o sol até 20:00 horas, no
horário de verão. Este é apenas um dos motivos que se faz
necessária a ampliação da faixa de areia: para que as pessoas
possam usufruir mais horas de sol na praia.”
A conclusão que nós, leigos que não veraneiam lá, podemos
chegar é que quando se trata de sombras, as coisas podem ficar
pretas. Nestes dois casos, perdemos a essencial e imensurável luz do
sol. Coisa gratuita, indispensável, sagrada, saudável e obstruída pelo
concreto que se ergue e empilha os veranistas. Talvez, como
alternativa para o aterro, mais concreto se estenda pelo mar afora,
fazendo um “engordamento” necessário para o bom uso da praia. No
mínimo impressionantemente desnecessário e estúpido. Tenho
vergonha só de imaginar passear sobreo “engordamento”.
Outros casos surpreendem pelas verdadeiras engenharias
metafísicas com a sombra. Como a descoberta para solucionar o
imposto do tratado anti-sombra na construção de arranha-céus. Veja
bem: uma casinha está ao sol até o dia em que um especulador
começa a construir dois arranha-céus, um grande e outro pequeno. O
especulador faz com que o teto do grande, o do pequeno e o da
casinha fiquem alinhados com relação ao sol. Assim dribla o
regulamento: o grande não faz sombra à casinha, porque não pode
fazer sombra através do pequeno; o pequeno não faz sombra à
casinha, porque não recebe luz. O proprietário da casinha não recebe
nenhuma compensação. Resumindo: para escapar das leis anti-
sombra, convém construir dois arranha-céus em vez de um e para se
bronzear em algumas praias brasileiras, convém acordar mais cedo.

Se tu conheces algum caso de sombras desembestadas ou projetos


urbanísticos assombrosos, envia para clube@clubedasombra.com.br

Difunda o fundo do poço e te serve da paz que la teja!

Alexandre Fávero
Pesquisador, sombrólogo e sombrista

Agradeço ao amigo das sombras Roberto Casati pela pesquisa no


campo da psicologia cognitiva junto ao Instituto Jean Nicod; a
arquiteta Flavia Caldeira De Domenico, ao urbanista Carlos Eduardo
de Souza e ao Professor da UNIVALI Jânio Vicente Rech pela
importante pesquisa e levantamento de dados no projeto de
melhorias da urbanização litorânea do estado de Santa Catarina; ao
colega Roger Lisboa Mothcy pela dedicação ao Clube da Sombra e
pela colaboração prática oferecida pala ferramenta de sondagem; à
colega e psicóloga Fabiana Mesquita Bigarella pelo incentivo aos
estudos avançados no campo da sombrologia aplicada às artes
cênicas e na colaboração dos novos conceitos da sombraterapia.

Para saber mais detalhes sobre o estudo urbanístico de Balneário


Camboriu, acesse:
http://geodesia.ufsc.br/Geodesia-online/arquivo/cobrac_2004/109.pdf

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