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09/03/2020 O segredo do abismo

EDIÇÃO 142 | JULHO_2018

questões geológicas

O SEGREDO DO ABISMO
Por que o Brasil quer explorar minérios nas profundezas do oceano Atlântico
CLAUDIO ANGELO

O braço mecânico do submersível Shinkai 6500 coleta amostra de crosta na Elevação do Rio Grande, chapada gigantesca no
fundo do Atlântico Sul. Embora não haja ali nenhum vestígio de civilizações perdidas, o minicontinente submerso vem sendo
chamado pelos pesquisadores de Atlântida FOTO_JAMSTEC

N
a tela do computador de Paulo Yukio Sumida surge uma imagem
ao mesmo tempo familiar e estranha. No vídeo, faróis potentes
iluminam uma superfície plana e preta, parecida com uma estrada
vazia, que se estende por alguns metros até ser engolida pela treva
circundante. Um coral alaranjado aparece na frente da câmera e lembra o
espectador que ele está olhando o assoalho do oceano Atlântico, a 900
metros de profundidade. “Parece que asfaltaram o fundo do mar”,
observa Sumida. E emenda: “É melhor que as ruas de São Paulo.”

As imagens foram feitas em maio de 2013 pelo minissubmarino japonês


Shinkai 6500, durante uma expedição nipo-brasileira a bordo do navio
oceanográfico Yokosuka, da Jamstec (Agência Japonesa de Ciência e
Tecnologia da Terra e do Mar), cujo objetivo era explorar o Atlântico Sul.
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Professor de oceanografia biológica da Universidade de São Paulo (USP),


Sumida tornou-se naquele cruzeiro o primeiro brasileiro a atingir a
planície abissal sul-atlântica, a 4 200 metros de profundidade. Ele
embarcou no Shinkai (“mar profundo”, em japonês) às oito da manhã do
dia 23 de abril, para uma missão com o objetivo de coletar amostras da
fauna e da geologia do local até então jamais visitado por seres humanos.
Palmeirense fanático, fez questão de bater o recorde trajando uma
camiseta do time, mas não contou para ninguém no Parque Antártica: na
época, a equipe alviverde lutava para emergir da segunda divisão do
Campeonato Brasileiro, e o cientista quis evitar piadas sobre o assunto.

O Shinkai 6500 é um submersível, como são chamados os submarinos de


sua categoria. Há pouquíssimos do mesmo tipo em operação no mundo.
Sua cabine é uma esfera perfeita de titânio feita para resistir à pressão da
água em profundidades de até 6 500 metros, o que permite a seus
tripulantes, dois pilotos e um cientista, explorar as regiões mais inóspitas
e desconhecidas da Terra, os abismos marinhos. O preço da segurança é o
desconforto: naquele mergulho, foram nove horas dividindo um espaço
de 2 metros de diâmetro com uma parafernália eletrônica e os pilotos
japoneses Masaya Katagiri e Kazuki Iijima – sem direito a ir ao banheiro
ou dar uma voltinha lá fora.

Para quebrar o tédio da descida, de duas horas e meia e feita às escuras,


os pilotos piscavam os faróis do Shinkai para receber, como resposta,
uma piscadela de reflexo dos organismos abissais, que produzem a
própria luminescência. São criaturas que parecem oriundas da ficção
científica, como o peixe-pescador, que tem um tentáculo luminoso na
frente da cara; a bocuda enguia-pelicano; e o molusco com o nome nada
sutil de Vampyroteuthis infernalis, ou lula-vampira-do-inferno. Sumida
compara a experiência a uma viagem ao espaço. Uma jornada e tanto
para o filho temporão de um tintureiro e de uma dona de casa, que
nasceu num quarto e sala no bairro operário da Mooca, na Zona Leste de
São Paulo, e até os 21 anos só conhecia o fundo do mar pelos filmes de
Jacques Cousteau na tevê.

Em duas décadas e meia de carreira, o pesquisador do Instituto


Oceanográfico da USP já rodou o mundo, mergulhou em submersíveis –
incluindo o lendário Alvin, no qual americanos exploraram os restos do

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Titanic, em 1986 – e descreveu espécies novas para a ciência. Mas a


expedição do Shinkai acabaria por conduzi-lo, juntamente com cinco
colegas da universidade, a um abismo que nenhum deles estava
preparado para enfrentar: o da geopolítica. Um projeto do grupo para
pesquisar uma das áreas visitadas pelo submersível esbarrou em planos
que o governo brasileiro já vinha executando para aquela mesma região,
envolvendo soberania nacional, acordos internacionais, um continente
perdido e, potencialmente, os recursos que definirão a economia do
século XXI.

A
área em questão é a Elevação do Rio Grande, um conjunto de platôs
submarinos localizado a 1 500 quilômetros da costa do Rio de
Janeiro, em águas internacionais. O principal desses platôs,
chamado “área Alfa”, é um chapadão submarino do tamanho da
Inglaterra, cujo ponto mais alto está a 700 metros de profundidade e o
mais baixo, a 5 mil metros. Perto do topo desse colossal monte marinho
foram feitas as imagens da tal estrada submarina.

Aquele pavimento submerso é um tipo de formação geológica conhecido


como “crosta ferromanganesífera rica em cobalto” – ou crosta, para os
íntimos. Ele ocorre entre 700 e 2 mil metros de profundidade na Elevação
do Rio Grande. Tem poucos centímetros de espessura, o equivalente
talvez a uma boa camada de asfalto numa via urbana. Sua idade é
desconhecida e sua origem é um mistério para a ciência. Alguns geólogos
acham que as crostas são “rochas vivas”, produto da ação de estranhas
bactérias magnéticas que habitam zonas pobres em oxigênio dos abismos
marinhos. Outros teorizam que elas se formam naturalmente sobre
rochas calcárias, pela deposição de minérios dissolvidos na água.

Consensos sobre as crostas só há dois: elas crescem muito devagar, à


razão de 1 ou 2 milímetros por milhão de anos ou mais; e são uma
potencial mina de ouro. Quer dizer, não exatamente de ouro, mas de
mais de duas dezenas de outros metais raros, que são a alma da indústria
de alta tecnologia e cuja demanda deverá se multiplicar nos próximos
anos, na esteira dos esforços para livrar a economia global dos
combustíveis fósseis.

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Nesses depósitos submarinos encontram-se, em quantidades e


concentrações até milhares de vezes maiores que em terra firme,
elementos químicos como o cobalto, o manganês, o lítio e uma família de
dezessete metais conhecidos pela designação “terras raras”, um tanto
genérica e enganosa. Os elementos de terras raras atendem por nomes
estranhos, como telúrio, samário, ítrio, praseodímio e disprósio. Você
provavelmente cruzou com eles no ensino médio e não os reconheceria
na rua hoje. No entanto, a chance é alta de que, neste exato momento,
esteja carregando alguns gramas deles na mão, no bolso ou nas orelhas.
Seus fones de ouvido são feitos com ímãs de neodímio. A tela de vidro do
seu smartphone é polida com cério, e as cores vibrantes da imagem são
cortesia de umas pitadas de térbio. Todos os apetrechos da vida digital,
das câmeras fotográficas ao iPad, dos laptops às caixas de som portáteis,
levam generosas pitadas de terras raras e outros metais exóticos em sua
fabricação.

Em seu livro The Elements of Power [Os Elementos do Poder], ainda não
traduzido no Brasil, o americano David S. Abraham afirma que esses
“metais menores”, como ele chama, estão para o mundo high-tech como o
fermento está para a pizza: a quantidade necessária é pequena, mas sem
ele a massa não existe. “Rapidamente, o mundo está ficando tão
dependente de metais raros quanto de petróleo”, escreve.

Essa dependência deve crescer acentuadamente na esteira do Acordo de


Paris contra as mudanças climáticas, que entrou em vigor em 2016.
Cumprir a meta mais modesta do tratado, de limitar o aquecimento
global a menos de 2oC neste século, exigirá eliminar os combustíveis
fósseis até 2050, no máximo. Só que a produção, a transmissão e o
armazenamento de energia limpa são totalmente movidos a metais raros.
Turbinas eólicas giram tão livremente por causa de ímãs de disprósio ou
neodímio; painéis solares são recobertos com telúrio; e o carro elétrico da
Tesla tem terras raras em dezenas de componentes e deve sua autonomia
espetacular a uma bateria de íons de lítio que leva cobalto em sua
composição. Para Abraham, “não é exagero dizer que nosso uso de
metais raros determinará o futuro do planeta”.

O Departamento de Energia dos Estados Unidos (DOE) parece


concordar. Segundo um documento do órgão, de 2011, há risco de

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desabastecimento de cinco minerais essenciais para a indústria de


energias renováveis – ítrio, európio, térbio, disprósio e neodímio –, o que
pode retardar o ganho de escala dessas fontes substitutas dos
combustíveis fósseis. O DOE estima que a demanda por cobalto e
neodímio deve triplicar até 2025 em relação a 2010, e a demanda por
disprósio deve quadruplicar. Em 2017, a União Europeia classificou o
cobalto e as terras raras entre os 27 produtos minerais críticos para sua
economia. O petróleo não aparece na lista.

O
potencial interesse econômico das crostas, a ampla ignorância
científica sobre sua gênese e seu entorno e a experiência na missão
do Yokosuka tornaram a Elevação do Rio Grande o alvo óbvio do
grupo do Instituto Oceanográfico quando a Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e o Conselho Nacional de
Pesquisa Ambiental do Reino Unido abriram o edital SoS Minerals
(Security of Supply of Mineral Resources), de apoio à pesquisa em
minerais críticos, em 2014. Seriam 4,3 milhões de reais em cinco anos, e o
equivalente em libras esterlinas para um grupo do Reino Unido, para
fazer pesquisa de ponta nessa região virtualmente desconhecida do
mundo. Além de elucidar o mistério das tais “rochas vivas”, o grupo
queria entender um pouco mais sobre o ambiente único no qual elas se
formam, as criaturas que ali habitam e como preservar aquele
ecossistema.

Os paulistas seriam coordenados pelo oceanógrafo Frederico Brandini,


um veterano com mais de trinta anos de experiência. E também já sabiam
quem seria o parceiro britânico: o grupo liderado pelo oceanógrafo
Bramley Murton, da Universidade de Southampton, onde um dos
membros da equipe de Brandini, o geólogo italiano Luigi Jovane, havia
trabalhado antes de se mudar para a USP. Murton e seus colegas tinham
interesse em estudar crostas que ocorrem no Tropic Seamount, um monte
marinho perto das ilhas Canárias. A parceria com os brasileiros
permitiria estudar duas regiões distintas de crostas e compará-las, para
tentar elucidar sua formação. O plano parecia perfeito. Mas faltou
combinar com Brasília.

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Que a pesquisa com britânicos na Elevação do Rio Grande era assunto


politicamente sensível foi algo que só ficou claro no começo de 2015, e
por acaso. No coffee break de um evento em Brasília, o biólogo
Alexander Turra, também professor do Instituto Oceanográfico e
integrante do grupo de Brandini, abordou o capitão de mar e guerra
Carlos Leite, da Marinha, e comentou sobre a verba recém-conquistada.
Leite era representante da Secretaria da Comissão Interministerial para os
Recursos do Mar, o órgão que cuida dos principais programas federais de
oceanografia, e não gostou da novidade.

“O tempo fechou”, recorda-se Turra. “Ele quis saber quais eram os termos
da colaboração com Southampton, por que os ingleses e qual era o
interesse deles.” Seguiram-se longas e tensas discussões entre o Instituto
Oceanográfico e a secretaria, que culminaram com o órgão federal
negando diesel da Petrobras para a primeira expedição do navio da
USP Alpha Crucis à Elevação do Rio Grande, em fevereiro deste ano. O
movimento era sem precedentes: o governo federal sempre apoia a
oceanografia doando combustível da estatal para os navios de pesquisa
das universidades públicas brasileiras. Essa gentileza frequentemente é
questão de vida ou morte para um projeto de pesquisa. Encher o tanque
do Alpha Crucis, por exemplo, custa 250 mil reais, dinheiro que faria falta
para as ambições da USP.

E fez: o grupo do Instituto Oceanográfico teve de usar dinheiro do


projeto para bancar o cruzeiro, mas isso impactou o andamento da
pesquisa. Em outubro de 2018, os britânicos mandariam da África do Sul
seu navio oceanográfico Discovery, equipado com robôs submarinos,
para um segundo cruzeiro do projeto binacional na Elevação do Rio
Grande. Segundo Murton, a pernada custaria 1 milhão de libras, um
custo extra que o Conselho Nacional de Pesquisa Ambiental, do Reino
Unido, se ofereceu para pagar, para espanto do cientista inglês. Com os
veículos robóticos – tecnologia de que a USP não dispõe –, seria possível
fazer em Rio Grande os mesmos tipos de análise que os britânicos já
haviam feito nas Canárias. “O problema é que, como a USP teve de gastar
no combustível, não teve mais dinheiro para pagar os técnicos dos
robôs”, disse Murton. Não se sabe que destino terá a expedição.

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A Marinha confirmou à piauí, por meio de seu Centro de Comunicação


Social, não ter liberado o diesel, mas porque não teria recebido a
solicitação da USP a tempo.

H
avia dois motivos bem concretos para a irritação do comandante
Leite em 2015. Apenas um deles ficou claro para Turra e seus
colegas no primeiro momento.

Naquele mesmo ano, o Brasil havia fechado um contrato com a


Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos (ISA) – um órgão ligado
à Organização das Nações Unidas – para explorar uma área de 3 mil
quilômetros quadrados na Elevação do Rio Grande com potencial de
ocorrência de crostas. O contrato tem prazo de quinze anos e é executado
sob um plano de trabalho sigiloso. Caso as pesquisas demonstrem
viabilidade econômica e segurança ambiental, o país poderá, a partir de
2030, reivindicar direitos exclusivos sobre 150 blocos de 20 quilômetros
quadrados cada e minerar metais raros naquela área internacional. As
pesquisas são executadas pela Companhia de Pesquisa de Recursos
Minerais (CPRM) – uma autarquia vinculada ao Ministério de Minas e
Energia –, que desde 2009 vem realizando missões na elevação, no
programa chamado Proárea.

A presença de uma potência estrangeira na zona de crostas, mesmo que


pesquisando em locais fora da área do contrato, era problemática para a
Marinha e para a CPRM. O governo brasileiro não quer compartilhar
dados ou amostras geológicas com outros países, por medo de
concorrência. Embora Rio Grande esteja em águas internacionais – e,
portanto, pesquisa ali quem quiser, quando bem entender –, o Brasil não
gostaria de ver informações sobre os recursos da região estampadas em
periódicos internacionais para qualquer nação rica com mais tecnologia
avaliar e eventualmente se aboletar ali. Especialmente quando a nação
rica em questão é o Reino Unido.

A política externa brasileira tem sentimentos ambivalentes sobre o país


europeu. Embora o Reino Unido seja um grande parceiro, o Brasil
enxerga como uma ameaça estratégica a presença britânica no Atlântico

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Sul, em ilhas como as Malvinas/Falkland, as Sandwich do Sul e a


Geórgia do Sul, perto da Antártida. A chamada “linha de ilhas” dos
britânicos é um lembrete constante da incompletude da soberania sul-
americana sobre o oceano que o Brasil e os países vizinhos consideram
seu quintal. A Elevação do Rio Grande é considerada um ponto crucial
nessa disputa.

“A chamada SoS Minerals é um plano estratégico do Reino Unido para


avançar no conhecimento do oceano profundo e desenvolver a indústria
mineral inglesa”, diz o oceanógrafo Ivo Pessanha, que até maio era chefe
da Divisão de Geologia Marinha da CPRM e coordenador do Proárea.
“Não podemos nos dar o privilégio da inocência científica, de achar que o
interesse científico está descolado dos interesses estratégicos dos
Estados.”

O diretor científico da Fapesp, Carlos Henrique de Brito Cruz, minimiza


as rusgas com o governo. Diz que a chamada SoS Minerals foi uma ideia
rigorosamente bilateral, que integra uma série de acordos que a fundação
tem com outros países e que já resultou em 52 projetos temáticos – os
financiamentos mais caros e de maior longo prazo concedidos pelo órgão
de fomento paulista. “São projetos concebidos, escritos e realizados em
conjunto pelas instituições dos dois países”, afirma.

Murton diz que seu grupo não está agindo em nome de nenhum objetivo
estratégico do governo britânico para com a Elevação do Rio Grande.
“Não estamos interessados em minerar as crostas ou tentar descobrir qual
é o valor delas como recurso ou commodity. Queremos entender como
elas se formam, quais podem ser os impactos ambientais de sua
mineração, não se trata de um interesse comercial.”

Ele conta que trabalhou num outro projeto, da União Europeia, numa
área onde a França tem um contrato com a isa. “Os franceses não eram
parte do programa, mas ficaram muito felizes em ter os nossos dados,
que evidentemente nós demos a eles, por cortesia. Porque eles não vão
publicar os resultados da pesquisa, vão usá-la para ajudá-los com a
licença de exploração”, afirma o pesquisador de Southampton. “Então
achamos que a CPRM fosse ficar feliz em ter milhões de libras em dados
a custo zero. Mas outra coisa parece ter entrado no caminho.”

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O que entrou no caminho e ajudou a alimentar a preocupação do


comandante Carlos Leite naquele coffee break em Brasília foi, com o
perdão do poeta, uma pedra.

Luigi Jovane a retira de uma caixa de amostras geológicas em seu


laboratório no Instituto Oceanográfico e me entrega. Ela foi coletada em
fevereiro deste ano pelo Alpha Crucis na Elevação do Rio Grande. Tem o
diâmetro de um limão-cravo e é cinza-claro com faixas pretas no meio.
Diferentemente dos elementos de terras raras, você vê rochas desse
mesmo tipo todos os dias, em qualquer lugar de qualquer cidade
brasileira, e seria capaz de reconhecê-la instantaneamente, embora talvez
não saiba seu nome. “É um gnaisse”, diz Jovane, sem empolgação.

Os gnaisses são rochas metamórficas, formadas a partir de granitos


submetidos à ação do tempo, das altas temperaturas e da pressão no
interior da Terra. São muito antigos e tão comuns no território brasileiro
que frequentemente são usados como piso em calçadas ou como brita na
construção civil. Não havia nada extraordinário sobre aquele gnaisse
coletado no fundo do mar, exceto uma coisa: “Ele não deveria estar ali”,
afirma o geólogo, um romano de 41 anos precocemente grisalho em cuja
sala uma profusão de amostras de rocha divide espaço com uma foto do
papa.

Se os pesquisadores da CPRM estiverem certos, pedras como aquela, que


vêm sendo encontradas por vários cruzeiros de pesquisa na Elevação do
Rio Grande, são partes do continente submerso da Atlântida. Ou, para
sermos mais justos: de um minicontinente submerso que, à falta de algo
mais criativo, vem sendo apelidado de Atlântida. Embora não haja ali
nenhum vestígio de uma civilização perdida, as implicações potenciais
do achado são amplas o bastante para merecer o zelo das autoridades.
Para entendê-las, porém, convém dar um passo atrás, até o século xix,
quando um erro cometido por um amigo de Charles Darwin em sua
busca pela origem da vida ajudou a abrir os portões de Netuno para a
mineração.

Em 1868, o naturalista Thomas Henry Huxley, conhecido como o


“buldogue de Darwin” por sua defesa aguerrida da teoria da evolução,
publicou um artigo científico que sacudiu a academia britânica. Nele

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afirmava ter identificado em amostras de lama coletadas no fundo do


mar dez anos antes uma substância gelatinosa com grânulos contendo
“protoplasma” em estado primitivo de organização.

Parecia ser uma evidência em favor de uma descoberta, anunciada pouco


tempo antes por outro amigo de Darwin, o alemão Ernst Haeckel, de um
grupo de microrganismos muito primitivos que aparentemente
evoluíram a partir de matéria inorgânica. Haeckel teorizou que essa
matéria inorgânica seria uma “geleca” no fundo do mar, que ele chamou
de Urschleim, ou “gosma primordial”.

Huxley achou que tivesse identificado em suas amostras uma criatura


que provinha diretamente de tal gosma. Chamou-a de Bathybius
haeckelii, ou “coisa viva das profundezas de Haeckel”. A descoberta
amarrava as duas pontas da teoria darwinista: a vida surgira a partir de
matéria inorgânica – no caso, a gelatina marinha – e evoluíra por seleção
natural. Caso encerrado. Ou não.

Em 1872, o almirantado britânico lançou uma grande expedição a bordo


do navio Challenger para investigar três bacias oceânicas. Um dos
objetivos da pesquisa era coletar amostras frescas da gosma primordial e
saber quão disseminada ela era nos mares do planeta. Para vergonha de
Huxley, porém, o químico a bordo descobriu que o Bathybius nada mais
era do que a reação entre o lodo marinho e o álcool usado para preservar
as amostras. Mas não foi só meleca que o Challenger dragou do fundo do
mar: também caíram no convés vários pedregulhos escuros mais ou
menos do tamanho de batatas, que a análise revelou serem feitos de
óxido de manganês puro. Estudos posteriores identificaram nesses
nódulos outros metais, como cobre, níquel e cobalto.

Os chamados nódulos polimetálicos recobrem o assoalho marinho em


muitos lugares do mundo, por áreas de vários quilômetros quadrados.
São parecidos com as crostas na composição e, possivelmente, na
formação, que também pode envolver bactérias magnéticas. Eles
permaneceram praticamente uma curiosidade acadêmica até 1965,
quando pesquisadores americanos identificaram seu potencial comercial
e previram que sua mineração seria viável em vinte anos.

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A
possibilidade de uma corrida do ouro no fundo do mar acendeu a
luz amarela nas Nações Unidas. Aquela era época de várias
definições sobre direitos territoriais e econômicos nos oceanos e de
negociação de uma convenção internacional sobre o tema. Em 1967, o
embaixador maltês na ONU Arvid Pardo fez um discurso alertando
contra a apropriação dos recursos minerais marinhos por nações
detentoras de tecnologia para explorá-los e qualificou o fundo do mar
como “herança comum da humanidade”. Essa única frase viraria a pedra
angular de todo o desenvolvimento da mineração oceânica.

Em 1982, na Jamaica, o mundo adotou a Convenção das Nações Unidas


sobre o Direito do Mar, conhecida pela sigla inglesa Unclos. Ela
classificava os oceanos globais em três zonas distintas: o mar territorial,
que compreende as 12 milhas náuticas (em torno de 22 quilômetros) além
do litoral de um país; a zona econômica exclusiva, ou ZEE, que se estende
por 200 milhas náuticas (aproximadamente 370 quilômetros); e o alto-
mar, ou zona além da jurisdição nacional. Na ZEE, o trânsito de
embarcações é livre, mas só o país detentor pode explorar recursos
minerais e pesqueiros. Ela pode ser ampliada até 350 milhas náuticas
(cerca de 650 quilômetros), caso o país demonstre que a área adicional
integra sua plataforma continental, ou a extensão marinha do continente.
Guarde esta informação.

A regulação da atividade econômica no leito oceânico sob o alto-mar –


chamado no jargão diplomático de “a Área” – ficou a cargo de um
organismo criado no âmbito da Unclos, a Autoridade Internacional dos
Fundos Marinhos (International Seabed Authority ou ISA). Ela
funcionaria para assegurar que a Área fosse de fato uma “herança
comum da humanidade” e produzisse riquezas “para o benefício da
humanidade”. Distribuiria contratos de exploração (prospecção) de
quinze anos mediante o cumprimento de uma série de exigências, entre
elas a pesquisa científica e a preservação ambiental. Os contratos são
feitos com países que podem executá-los em parcerias público-privadas
ou não (no caso do contrato brasileiro, firmado em 2015, o executor é a
CPRM, um órgão do próprio governo). Três tipos de depósitos minerais
oceânicos podem ser objeto de contrato: além dos nódulos polimetálicos,

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estão sob possibilidade de mineração os sulfetos maciços de fundo do


mar, produzidos por atividade vulcânica e ricos em cobre, ouro e
minerais do grupo da platina; e as crostas ferromanganesíferas.

Quando foi criada, em 1994, a ISA parecia apenas um grande exercício de


precaução: afinal, não havia tecnologia desenvolvida para explorar esses
metais, não se conheciam bem as reservas, e ninguém tinha a menor ideia
de que lei regeria uma futura eventual atividade minerária depois que os
primeiros contratos de quinze anos expirassem. A preocupação constante
dos países em desenvolvimento era, claro, não serem passados para trás
pelos ricos, daí a importância de um marco legal muito bem traçado.
Mas, no fim do século XX, o declínio do preço do cobalto e de outros
metais fez despencar o interesse pela mineração oceânica.

O interesse se reacendeu sobretudo nesta década. As razões vão desde a


explosão de demanda pelos produtos da revolução digital até um choque
de preço causado pela China em 2010, ao cortar o fornecimento de terras
raras ao Japão devido a uma rusga territorial.

A
pesar do nome, terras raras não são propriamente raras: elas
ocorrem em variados tipos de depósito mineral ao redor do mundo.
Seu nome decorre do fato de elas existirem em concentrações baixas.
Isso torna sua extração um processo muito ineficiente: para cada quilo de
terras raras, cerca de 2 toneladas de rejeito são produzidas. A mineração e
o refino também são altamente poluentes, e com frequência os minerais
de terras raras vêm associados a elementos radioativos. A China produz
hoje 95% das terras raras do mundo devido ao baixíssimo custo de
operação de sua mina de Bayan Obo, a maior do planeta, e à vista grossa
de Pequim em relação aos impactos ambientais. Os chineses têm usado
esse trunfo para quebrar a concorrência e levar toda a indústria de alta
tecnologia, dependente desses elementos, a se instalar – e gerar empregos
e tributos – no país. Já o cobalto tem 64% de sua produção concentrada na
instável República Democrática do Congo, onde a Anistia Internacional
denunciou o uso de trabalho forçado e mão de obra infantil para
produzir o minério, uma questão ética que os usuários de iPhone talvez
preferissem ignorar.

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A mineração no fundo do mar vem sendo apontada como uma


alternativa ao controle chinês quase absoluto sobre as terras raras e aos
problemas políticos do Congo. Mas o oceano também é visto como uma
boia de salvação por causa do declínio do teor de minerais raros nos
depósitos terrestres. “A maior parte das jazidas em terra que podem ser
exploradas com vantagens econômicas estão esgotadas ou com seu teor
reduzido”, diz Jim Hein, pesquisador do USGS, o Serviço Geológico dos
Estados Unidos, e um dos maiores especialistas em minérios oceânicos do
mundo. “É preciso cavar mais, mais fundo e remover mais rocha estéril
para chegar a veios que estão com um teor cada vez menor”, prossegue.

No mar, em compensação, as reservas são uma cornucópia. Hein estimou


em 21 bilhões de toneladas o peso total dos nódulos apenas na Zona de
Fratura de Clarion-Clipperton, uma planície abissal de 7 240 quilômetros
de extensão entre o Havaí e o México, em águas internacionais. Uma
única região de crostas no Pacífico Norte contém, ainda segundo cálculos
do americano, quatro vezes mais cobalto, nove vezes mais térbio, três
vezes mais ítrio e 1 700 vezes mais telúrio do que todas as reservas
terrestres somadas. E o teor de terras raras pesadas, o subgrupo mais
valioso da família, também é mais alto no oceano do que nas jazidas
terrestres: 2500% maior nos nódulos e 1700% maior nas crostas do
Pacífico. O tamanho do mercado eventual é difícil de estimar, mas um
cálculo feito a pedido da ISA por um grupo do Instituto de Tecnologia de
Massachusetts, nos Estados Unidos, estimou o lucro líquido anual da
mineração de nódulos na zona de Clarion-Clipperton em 800 milhões de
dólares por ano, por contrato. E isso considerando apenas o valor do
cobre, do manganês, do níquel e do cobalto – excluindo, portanto, terras
raras e outros metais, muito mais valiosos.

“Há uma grande oportunidade em explorar os 70% da superfície do


planeta que ainda não foram explorados de forma significativa em vez de
ficar olhando para os 30% restantes, que se esgotam cada vez mais
rápido”, diz Noreen Dillane, diretora de Comunicação Corporativa da
empresa Nautilus Minerals, sediada no Canadá.

A Nautilus espera tornar-se no ano que vem a primeira companhia do


mundo a minerar em águas profundas, num projeto de extração de ouro
e cobre a 1 600 metros de profundidade, na Papua-Nova Guiné. Segundo

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Dillane, o teor de ouro do projeto Solwara I é “excelente”: 6 gramas por


tonelada, semelhante ao das melhores minas do mundo, na África do Sul.
O de cobre é dez vezes maior que o das melhores minas em terra. O Japão
também deve começar a minerar sulfetos em sua Zona Econômica
Exclusiva em 2020.

H
oje há 29 contratos de exploração concedidos pela ISA na Área. A
maioria deles, dezessete, é para nódulos em Clarion-Clipperton,
onde a primeira exploração comercial deve ocorrer a partir de 2022.
A Nautilus também tem um contrato na região e espera começar a
produzir tão logo haja um arcabouço legal para isso. “Acreditamos que as
regulações sejam iminentes”, diz Dillane.

Um rascunho de um código de mineração oceânica foi proposto em


agosto de 2017 pelo secretário-geral da ISA, o britânico Michael Lodge, e
deve entrar em vigor em 2020. Em março deste ano, o Brasil fez críticas ao
texto, que permite que países com tecnologia possam “pular” a fase de
quinze anos de exploração e passar direto à extração de minérios. O
Itamaraty enxerga o dispositivo como uma encomenda dos países ricos.

Detentor do único contrato para crostas concedido até agora no Atlântico


Sul, o Brasil pretende se valer da vantagem de ser o primeiro a avançar
nesse front. Tal liderança se deve a uma dessas ocasiões raras no Brasil
em que uma necessidade estratégica é identificada por pesquisadores e se
transforma num programa de governo pouco tempo depois.

O país desenvolveu a capacidade de olhar para os recursos marinhos


além da linha da costa nas décadas de 50 e 60. Em 1974, descobriu seu
primeiro campo de petróleo offshore com volume comercial, o de
Garoupa, na Bacia de Campos. Em 1997, já depois de o Brasil aderir à
ISA, a Secretaria da Comissão Interministerial para os Recursos do Mar
iniciou o primeiro grande levantamento do potencial mineral da
plataforma continental brasileira.

Em 2004, o Brasil conhecia o fundo de suas águas o suficiente para


propor à Comissão de Limites da Unclos – a convenção da ONU que

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09/03/2020 O segredo do abismo

regula o direito do mar – uma proposta de extensão de sua Zona


Econômica Exclusiva para 350 milhas, com base em um levantamento
que mostrava que a plataforma continental brasileira era maior. A
proposta ampliava em 963 mil quilômetros quadrados – de cerca de 3,5
milhões para 4,5 milhões – o espaço marinho brasileiro, que os militares,
com pendor poético característico, chamaram de “Amazônia Azul” por
ter as mesmas dimensões daquele bioma. A ideia era incorporar à
soberania nacional eventuais recursos minerais e jazidas de óleo e gás
que se suspeitava haver na Área. O levantamento brasileiro foi
questionado e parcialmente indeferido pela comissão em 2007, mesmo
ano em que a descoberta do pré-sal foi anunciada. Do total solicitado, 773
mil quilômetros quadrados foram concedidos. O país ficou de voltar à
prancheta e submeter uma nova proposta para os 190 mil quilômetros
quadrados restantes.

No mesmo ano em que o Brasil levou o balde de água fria da Unclos, um


documento trouxe os minérios do fundo do mar à análise do poder
público. O Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), uma
organização social criada no governo Fernando Henrique Cardoso para
produzir análises estratégicas para o desenvolvimento do país – e cujas
recomendações frequentemente são ignoradas pelo governo federal –,
publicou um documento alertando para a necessidade de investir em
pesquisa dos recursos minerais marinhos. A Elevação do Rio Grande era
citada como uma das áreas prioritárias. O trabalho tinha como autor
principal o geólogo Kaiser de Souza, que coordenara o levantamento do
potencial mineral da plataforma continental brasileira. O governo
mordeu a isca e, em 2009, criou o Proárea.

P
or falta de um navio oceanográfico próprio, o Proárea só começou a
fazer dragagens na Elevação em 2011, com um navio alugado da
França. Só que, além das esperadas crostas, as dragagens também
trouxeram para o convés objetos inesperados: granitos e gnaisses – o
mesmo tipo de rocha encontrada pelo Alpha Crucis, da USP, neste ano.
“Eu estava a bordo e pensei: ‘Como isso veio parar aqui?’”, recorda-se
Pessanha, sobre as prospecções feitas em 2011. A razão do espanto é que

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09/03/2020 O segredo do abismo

aqueles tipos de rocha desafiam tudo o que o cânone científico prega


sobre a formação de montes marinhos.

A crosta oceânica é formada por basalto, que nada mais é do que magma
(a popular lava) que extravasa no limite entre duas placas tectônicas que
se afastam e endurece rapidamente. Já o granito e seu filho degenerado, o
gnaisse, formam-se apenas sobre os continentes, pelo resfriamento lento
do magma na crosta terrestre. É a origem, por exemplo, do Pão de
Açúcar. O basalto tem aparência uniforme; o granito possui cristais bem
visíveis, de minerais que tiveram tempo de condensar e crescer no
processo de resfriamento.

Achava-se que montes marinhos como a Elevação do Rio Grande


tivessem sua gênese em processos semelhantes aos que formam o leito
oceânico, e fossem mais espessos devido a alguma acumulação anormal
de basalto ou ao surgimento de vulcões. As rochas claramente
continentais que apareceram a bordo do navio do Proárea em 2011
poderiam ser pedaços de lastro de outras embarcações despejados ali, ou
detritos que vieram na barriga de icebergs que coalhavam o Atlântico
periodicamente durante a última Era Glacial, encerrada 12 mil anos atrás.

Estudos publicados ao longo desta década, porém, sugerem que a


história pode não ser sempre essa. Em alguns casos, como nas ilhas
Kerguelen, no entorno da Antártida, foram detectadas rochas
continentais envoltas em basalto. Essas formações foram batizadas
“microcontinentes”.

Em 2013, na missão nipo-brasileira do Yokosuka, mais rochas graníticas


foram coletadas na Elevação do Rio Grande. Um dos mergulhos do
Shinkai permitiu visualizar ali uma “formação estranha”, cuja dureza
impediu que o braço robótico do submersível conseguisse extrair uma
amostra.

O geocronólogo Roberto Ventura, antecessor de Pessanha no Proárea e


participante da missão nipo-brasileira, anunciou os achados do Shinkai
com pompa e circunstância à imprensa em maio daquele ano: disse que a
“Atlântida brasileira” havia sido descoberta. A Elevação do Rio Grande
possivelmente seria uma ilha que ficou pelo caminho entre o Brasil e a

Á
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09/03/2020 O segredo do abismo

África quando o supercontinente Gondwana se partiu e o Atlântico Sul


começou a se abrir, durante a era dos dinossauros.

A tese tem implicações diretas para o pedido de ampliação da Zona


Econômica Exclusiva do Brasil. Se Rio Grande tem crosta continental,
então pode haver uma ligação entre essa elevação e a plataforma
continental brasileira. Isso permitiria ao Brasil reivindicar soberania sobre
um pedaço da Elevação e todos os recursos existentes em volta. Estes
incluem, além das crostas, áreas de pesca e, principalmente, reservas de
óleo e gás mapeadas e ainda não exploradas. Em resumo, o país mantém
um olho no peixe e outro no gato: faz um movimento em direção ao
futuro (crostas) ao mesmo tempo que tenta agarrar o presente (peixe e
petróleo).

O Brasil apresentará à Comissão de Limites da Unclos, a qualquer


momento, uma nova proposta de levantamento da plataforma
continental, para encaçapar os 190 mil quilômetros quadrados da
Amazônia Azul que lhe escaparam há uma década. O novo levantamento
foi fatiado em três partes: uma foi submetida em 2015, outra em fevereiro
deste ano e uma terceira está sendo construída pelo governo e será,
possivelmente, apresentada em breve. Esta última deverá se apoiar na
hipótese do microcontinente. Questionada, a Marinha informou que
“estão sendo realizados estudos para verificar a possibilidade de inclusão
da Elevação do Rio Grande na última proposta a ser apresentada”.

A partir do momento em que a proposta dá entrada na Comissão de


Limites, o território em questão fica “congelado” e sob a soberania do
país solicitante, um ganho potencial do qual as autoridades brasileiras
não querem abrir mão. Mais até do que o contrato de exploração com a
ISA, este foi o grande motivo de pânico no governo quando Alexander
Turra deu a notícia sobre o projeto de pesquisa com os ingleses, em 2015.

A batalha é por gestão de dados. “Qualquer informação que saia pode ser
a gota d’água para os interesses brasileiros”, afirmou uma fonte
governamental, já prevendo questionamentos sobre os critérios da
incorporação de Rio Grande. A campanha do Alpha Crucis em fevereiro
foi um momento especialmente delicado, e o governo teme publicações

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09/03/2020 O segredo do abismo

resultantes da missão e compartilhamento de amostras com os britânicos


que possam jogar areia na reivindicação brasileira.

“O governo está muito preocupado com informações sensíveis, mas a


universidade tem de publicar”, afirma Turra, encarregado de fazer a
intermediação com Brasília. “Não dá para não interagir com os colegas
ingleses e não publicar, mas podemos achar o melhor arranjo entre essas
duas contingências. Nossa postura nunca foi de pirata, vilão ou espião.”

As duas instituições sabem que precisam trabalhar em conjunto. A CPRM


tem poucos recursos humanos para fazer pesquisas nos 3 mil quilômetros
quadrados da Elevação que estão sob contrato, uma área duas vezes
maior que a da cidade de São Paulo. E, se não justificar anualmente à ISA
que faz pesquisas nos blocos contratados, perde os direitos. O Proárea
tampouco foi poupado dos cortes orçamentários impostos à ciência a
partir de 2015: segundo informações da CPRM, o orçamento para
levantamentos geológicos marinhos, que incluem o Proárea, caiu de 26,8
milhões de reais em 2012, para 5,2 milhões de reais em 2018.

O grupo do Instituto Oceanográfico e da Universidade de Southampton


também gostaria de poder contar com os dados já obtidos pela equipe da
CPRM e com o navio oceanográfico Vital de Oliveira, comprado pelo
governo em 2011 e que fez sua estreia na Elevação do Rio Grande em
abril deste ano. “Não dá para considerar que só com o nosso navio e o
nosso pessoal nós vamos conseguir conhecer a Elevação. O governo
também não vai”, diz Turra. “A gente não está necessariamente no
caminho de perde-ganha.”

E
nquanto a corrida por minérios e soberania ocupa os governos do
Brasil e de outros países, pessoas como o americano Matthew
Gianni têm uma recomendação simples a dar sobre mineração nos
abismos marinhos: não façam.

Gianni é um nativo da Pensilvânia de 60 anos, dez deles trabalhando em


navios pesqueiros na Costa Oeste dos Estados Unidos. Em 1989, juntou-
se ao Greenpeace para salvar seu ganha-pão – o mar – de abusos

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09/03/2020 O segredo do abismo

cometidos por seus antigos colegas. Em 2004, ele fundou a Deep Sea
Conservation Coalition, uma rede de ONGs sediada em Amsterdã, que se
dedica a proteger o lar da horrorosa enguia-pelicano, da lula-vampira-
do-inferno, dos vermes tubulares e de milhares de outras espécies que
estão, como eles dizem, “longe dos olhos e longe do coração” da
sociedade.

Nos últimos cinco anos, o ex-pescador vem acompanhando de perto as


movimentações dos países detentores de contratos com a ISA e, ao
mesmo tempo, o trabalho de cientistas que estudam os ambientes abissais
que poderão receber mineração, como a zona de Clarion-Clipperton.
Gianni afirma que um número cada vez maior de estudos vem
mostrando que talvez o melhor a fazer para assegurar a “herança comum
da humanidade” seja deixar o fundo do mar quieto.

Ele diz que, nos anos 70, quando os diplomatas iniciaram as negociações
para a criação do que seria a ISA, achava-se que as planícies abissais não
contivessem nada além de lama e rochas. “Agora nós sabemos muito
mais sobre a zona de Clarion-Clipperton e muitas outras áreas de
interesse para a mineração profunda”, comenta. “Essas não são zonas
mortas. São zonas fantasticamente biodiversas, que nós só estamos
descobrindo agora. E descobrindo que elas já estão sob estresse por
mudança climática, plásticos e poluentes orgânicos persistentes”, afirma.

Embora uma das exigências da isa para os contratos de exploração seja a


proteção ambiental e a definição de critérios para avaliar e mitigar o
impacto da atividade, Gianni diz que mineração oceânica e proteção
ambiental podem não ser compatíveis.

A extração de nódulos, por exemplo, será feita por equipamentos


robóticos que “varrem” o fundo do mar, jogando jatos de água que
levantam os pedregulhos, separando-os da lama. Isso deve obliterar
completamente organismos como esponjas que aderem aos nódulos, mas
também levantar uma pluma de sedimento que se espalhará por até 20
mil quilômetros quadrados além dos locais de mineração, sufocando
espécies que vivem no fundo. “Estamos abrindo uma nova fronteira do
planeta a uma atividade industrial sem saber quais serão as
consequências”, afirma Gianni.

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09/03/2020 O segredo do abismo

Na Elevação do Rio Grande, a situação é ainda mais grave porque não se


conhece virtualmente nada sobre o ambiente do local, nem sobre o
método que será usado para minerar as crostas.

Os pesquisadores da USP fazem um prognóstico devastador dos


impactos ambientais de uma eventual mineração nessa chapada
submersa. Para começar, a quantidade de material a ser minerado e a
área afetada são enormes: seria necessário retirar 1 milhão de toneladas
de material por ano, de uma área total de 600 quilômetros quadrados. A
biodiversidade do fundo do mar será arrasada no local de mineração e
afugentada dos arredores, prejudicando o funcionamento do ecossistema
por décadas – ou séculos. “Como no mar profundo os organismos têm
metabolismo mais lento, a recolonização de áreas impactadas é menor, se
é que vai ocorrer”, diz Paulo Sumida.

Um segundo problema são os metais extraídos, que serão liberados em


concentrações tóxicas na água durante o processo de enxágue das crostas.
Por fim, há a questão das escórias. Embora não seja preciso construir
barragens para abrigá-las, o grupo da USP estima que 60% de todo o
material, ou 600 mil toneladas por ano, vá ser depositado no fundo do
mar como rejeito da mineração, impedindo a recuperação da fauna. “O
ideal seria não explorar, mas, se isso não for possível, é melhor
salvaguardar áreas grandes e impedir a mineração nelas, para salvar
hábitats que são únicos”, afirma o oceanógrafo.

Esse cabo de guerra traduz um paradoxo do nosso tempo. O século XXI


nasceu sob a ameaça das mudanças climáticas causadas pelo uso de
recursos minerais (os combustíveis fósseis) cujo impacto sobre a
atmosfera só ficou claro cem anos depois da Revolução Industrial. Agora,
vê-se na iminência de ter de recorrer a mais recursos minerais para
resolver o problema.

Muita água vai rolar nessa discussão nos próximos cinco anos. Mas,
quanto antes as perguntas forem feitas, menor é a chance de mais uma
crise ambiental se abater sobre a humanidade. Suas proporções seriam
abissais – em mais de um sentido.

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