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questões geológicas
O SEGREDO DO ABISMO
Por que o Brasil quer explorar minérios nas profundezas do oceano Atlântico
CLAUDIO ANGELO
O braço mecânico do submersível Shinkai 6500 coleta amostra de crosta na Elevação do Rio Grande, chapada gigantesca no
fundo do Atlântico Sul. Embora não haja ali nenhum vestígio de civilizações perdidas, o minicontinente submerso vem sendo
chamado pelos pesquisadores de Atlântida FOTO_JAMSTEC
N
a tela do computador de Paulo Yukio Sumida surge uma imagem
ao mesmo tempo familiar e estranha. No vídeo, faróis potentes
iluminam uma superfície plana e preta, parecida com uma estrada
vazia, que se estende por alguns metros até ser engolida pela treva
circundante. Um coral alaranjado aparece na frente da câmera e lembra o
espectador que ele está olhando o assoalho do oceano Atlântico, a 900
metros de profundidade. “Parece que asfaltaram o fundo do mar”,
observa Sumida. E emenda: “É melhor que as ruas de São Paulo.”
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A
área em questão é a Elevação do Rio Grande, um conjunto de platôs
submarinos localizado a 1 500 quilômetros da costa do Rio de
Janeiro, em águas internacionais. O principal desses platôs,
chamado “área Alfa”, é um chapadão submarino do tamanho da
Inglaterra, cujo ponto mais alto está a 700 metros de profundidade e o
mais baixo, a 5 mil metros. Perto do topo desse colossal monte marinho
foram feitas as imagens da tal estrada submarina.
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Em seu livro The Elements of Power [Os Elementos do Poder], ainda não
traduzido no Brasil, o americano David S. Abraham afirma que esses
“metais menores”, como ele chama, estão para o mundo high-tech como o
fermento está para a pizza: a quantidade necessária é pequena, mas sem
ele a massa não existe. “Rapidamente, o mundo está ficando tão
dependente de metais raros quanto de petróleo”, escreve.
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O
potencial interesse econômico das crostas, a ampla ignorância
científica sobre sua gênese e seu entorno e a experiência na missão
do Yokosuka tornaram a Elevação do Rio Grande o alvo óbvio do
grupo do Instituto Oceanográfico quando a Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e o Conselho Nacional de
Pesquisa Ambiental do Reino Unido abriram o edital SoS Minerals
(Security of Supply of Mineral Resources), de apoio à pesquisa em
minerais críticos, em 2014. Seriam 4,3 milhões de reais em cinco anos, e o
equivalente em libras esterlinas para um grupo do Reino Unido, para
fazer pesquisa de ponta nessa região virtualmente desconhecida do
mundo. Além de elucidar o mistério das tais “rochas vivas”, o grupo
queria entender um pouco mais sobre o ambiente único no qual elas se
formam, as criaturas que ali habitam e como preservar aquele
ecossistema.
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“O tempo fechou”, recorda-se Turra. “Ele quis saber quais eram os termos
da colaboração com Southampton, por que os ingleses e qual era o
interesse deles.” Seguiram-se longas e tensas discussões entre o Instituto
Oceanográfico e a secretaria, que culminaram com o órgão federal
negando diesel da Petrobras para a primeira expedição do navio da
USP Alpha Crucis à Elevação do Rio Grande, em fevereiro deste ano. O
movimento era sem precedentes: o governo federal sempre apoia a
oceanografia doando combustível da estatal para os navios de pesquisa
das universidades públicas brasileiras. Essa gentileza frequentemente é
questão de vida ou morte para um projeto de pesquisa. Encher o tanque
do Alpha Crucis, por exemplo, custa 250 mil reais, dinheiro que faria falta
para as ambições da USP.
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H
avia dois motivos bem concretos para a irritação do comandante
Leite em 2015. Apenas um deles ficou claro para Turra e seus
colegas no primeiro momento.
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Murton diz que seu grupo não está agindo em nome de nenhum objetivo
estratégico do governo britânico para com a Elevação do Rio Grande.
“Não estamos interessados em minerar as crostas ou tentar descobrir qual
é o valor delas como recurso ou commodity. Queremos entender como
elas se formam, quais podem ser os impactos ambientais de sua
mineração, não se trata de um interesse comercial.”
Ele conta que trabalhou num outro projeto, da União Europeia, numa
área onde a França tem um contrato com a isa. “Os franceses não eram
parte do programa, mas ficaram muito felizes em ter os nossos dados,
que evidentemente nós demos a eles, por cortesia. Porque eles não vão
publicar os resultados da pesquisa, vão usá-la para ajudá-los com a
licença de exploração”, afirma o pesquisador de Southampton. “Então
achamos que a CPRM fosse ficar feliz em ter milhões de libras em dados
a custo zero. Mas outra coisa parece ter entrado no caminho.”
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A
possibilidade de uma corrida do ouro no fundo do mar acendeu a
luz amarela nas Nações Unidas. Aquela era época de várias
definições sobre direitos territoriais e econômicos nos oceanos e de
negociação de uma convenção internacional sobre o tema. Em 1967, o
embaixador maltês na ONU Arvid Pardo fez um discurso alertando
contra a apropriação dos recursos minerais marinhos por nações
detentoras de tecnologia para explorá-los e qualificou o fundo do mar
como “herança comum da humanidade”. Essa única frase viraria a pedra
angular de todo o desenvolvimento da mineração oceânica.
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A
pesar do nome, terras raras não são propriamente raras: elas
ocorrem em variados tipos de depósito mineral ao redor do mundo.
Seu nome decorre do fato de elas existirem em concentrações baixas.
Isso torna sua extração um processo muito ineficiente: para cada quilo de
terras raras, cerca de 2 toneladas de rejeito são produzidas. A mineração e
o refino também são altamente poluentes, e com frequência os minerais
de terras raras vêm associados a elementos radioativos. A China produz
hoje 95% das terras raras do mundo devido ao baixíssimo custo de
operação de sua mina de Bayan Obo, a maior do planeta, e à vista grossa
de Pequim em relação aos impactos ambientais. Os chineses têm usado
esse trunfo para quebrar a concorrência e levar toda a indústria de alta
tecnologia, dependente desses elementos, a se instalar – e gerar empregos
e tributos – no país. Já o cobalto tem 64% de sua produção concentrada na
instável República Democrática do Congo, onde a Anistia Internacional
denunciou o uso de trabalho forçado e mão de obra infantil para
produzir o minério, uma questão ética que os usuários de iPhone talvez
preferissem ignorar.
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H
oje há 29 contratos de exploração concedidos pela ISA na Área. A
maioria deles, dezessete, é para nódulos em Clarion-Clipperton,
onde a primeira exploração comercial deve ocorrer a partir de 2022.
A Nautilus também tem um contrato na região e espera começar a
produzir tão logo haja um arcabouço legal para isso. “Acreditamos que as
regulações sejam iminentes”, diz Dillane.
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P
or falta de um navio oceanográfico próprio, o Proárea só começou a
fazer dragagens na Elevação em 2011, com um navio alugado da
França. Só que, além das esperadas crostas, as dragagens também
trouxeram para o convés objetos inesperados: granitos e gnaisses – o
mesmo tipo de rocha encontrada pelo Alpha Crucis, da USP, neste ano.
“Eu estava a bordo e pensei: ‘Como isso veio parar aqui?’”, recorda-se
Pessanha, sobre as prospecções feitas em 2011. A razão do espanto é que
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A crosta oceânica é formada por basalto, que nada mais é do que magma
(a popular lava) que extravasa no limite entre duas placas tectônicas que
se afastam e endurece rapidamente. Já o granito e seu filho degenerado, o
gnaisse, formam-se apenas sobre os continentes, pelo resfriamento lento
do magma na crosta terrestre. É a origem, por exemplo, do Pão de
Açúcar. O basalto tem aparência uniforme; o granito possui cristais bem
visíveis, de minerais que tiveram tempo de condensar e crescer no
processo de resfriamento.
Á
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A batalha é por gestão de dados. “Qualquer informação que saia pode ser
a gota d’água para os interesses brasileiros”, afirmou uma fonte
governamental, já prevendo questionamentos sobre os critérios da
incorporação de Rio Grande. A campanha do Alpha Crucis em fevereiro
foi um momento especialmente delicado, e o governo teme publicações
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E
nquanto a corrida por minérios e soberania ocupa os governos do
Brasil e de outros países, pessoas como o americano Matthew
Gianni têm uma recomendação simples a dar sobre mineração nos
abismos marinhos: não façam.
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cometidos por seus antigos colegas. Em 2004, ele fundou a Deep Sea
Conservation Coalition, uma rede de ONGs sediada em Amsterdã, que se
dedica a proteger o lar da horrorosa enguia-pelicano, da lula-vampira-
do-inferno, dos vermes tubulares e de milhares de outras espécies que
estão, como eles dizem, “longe dos olhos e longe do coração” da
sociedade.
Ele diz que, nos anos 70, quando os diplomatas iniciaram as negociações
para a criação do que seria a ISA, achava-se que as planícies abissais não
contivessem nada além de lama e rochas. “Agora nós sabemos muito
mais sobre a zona de Clarion-Clipperton e muitas outras áreas de
interesse para a mineração profunda”, comenta. “Essas não são zonas
mortas. São zonas fantasticamente biodiversas, que nós só estamos
descobrindo agora. E descobrindo que elas já estão sob estresse por
mudança climática, plásticos e poluentes orgânicos persistentes”, afirma.
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Muita água vai rolar nessa discussão nos próximos cinco anos. Mas,
quanto antes as perguntas forem feitas, menor é a chance de mais uma
crise ambiental se abater sobre a humanidade. Suas proporções seriam
abissais – em mais de um sentido.
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