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o caso de Maputo
Luís Lage
Luís Lage PRODUÇÃO DE HABITAÇÕES INFORMAIS: O CASO DE MAPUTO
Este estudo teve como base 103 inquéritos realizados ao longo da Avenida V. Lénine, no troço que atravessa
a periferia da cidade.
Como objecto de estudo, seleccionou-se a Av. V. Lénine. Esta avenida, uma das mais longas da cidade,
atravessa-a de Sul a Norte e materializa um corte histórico que abrange toda a história de Maputo.
Posso dizer, sem exagero, que é o ponto focal de todas as tipologias de Maputo. A avenida de todos os tipos
de vida; a avenida de quase todas as imagens urbanas; a avenida dos serviços, do comércio, da habitação; a
avenida dos ricos, dos “remediados” e dos pobres.
Interessava-nos ter uma imagem da arquitectura da cidade de Maputo tão real quanto possível. Uma
imagem que fosse tão rica quanto a sua diversidade; uma imagem que nos permitisse relacionar a arquitectura
de ontem com as tendências de apropriação cultural que hoje se verificam, em particular nas áreas da
cidade com “arquitectura espontânea”.
Com o conceito “espontâneo”, abarcamos toda a construção executada sem licença e sem intervenção
ordenadora das autoridades competentes.
No troço da Avenida V. Lénine que atravessa a cidade de cimento, e que tem o seu primeiro traçado
registado em 1878, foram fichados 63 edifícios seleccionados pelo seu interesse, estilo arquitectónico, tipo
de construção e função Fig. 1.1,1.2, 1.3 e 1.4.
A segunda parte do levantamento efectuou-se ao longo de duas faixas, em cerca de 100 metros de cada um dos
lados do troço que atravessa a periferia da cidade. Para cada um dos objectos de estudo, definiram-se os objectivos
da busca de informação e elaborou-se uma ficha/inquéritoFig. 1.5.
Fichar, fotografar, desenhar e compilar informação proporcionou uma primeira abordagem ao tema que
tínhamos em mão. Mas a escolha da Avenida V. Lénine levou-nos ao estudo do desenvolvimento da
própria avenida e, implicitamente, à história desta cidade.
A arquitectura dos “pobres” foi a que mais me surpreendeu, pelo que ela reflecte de liberdade de acção,
contenção de despesas, entre-ajuda, criatividade e sabedoria no uso dos materiais e das tecnologias apropriadas.
São essas as qualidades que justificam o nascimento de uma nova tipologia formal, de uma nova imagem,
de uma nova linguagem simbólica passível de fazer escola e modelar os elementos “de marca” de um gosto
novo.
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Esta primeira abordagem deu-nos a consciência da necessidade de realizar a pesquisa a tempo: tão
rápidamente como o tempo em que este fenómeno se processa e cresce no espaço urbano.
A autorização de acesso aos espaços e aos edifícios (fotografar, medir o talhão, localizar a árvore, a latrina e
acompanhar o inventário antropológico) permitiu o estabelecimento das relações humanas mais profundas
deste trabalho. Nem sempre as portas se abriram. “O meu marido não está”; “O que vocês querem é
arrancar-me a casa”... No entanto, a maioria disse “Ah!..Querem fazer uma igual?”, “É bonita, não é?”.
Neste contexto, foi possível fichar, desenhar o talhão à escala, a planta da casa com os seus espaços e
funções, a planta da cobertura e os cortes com os pormenores construtivos.
Dos edifícios inquiridos, 82% são habitações, na sua maioria sem licença de construção e sem pagamento
de qualquer tipo de taxa ao Município.
A maioria das ocupações de terreno está numa situação ilegal, quer em termos de documentação, quer na
forma de utilização dos talhões. Os locatários não têm conhecimento sobre os seus direitos legais e sobre os
mecanismos existentes para a consolidação desses direitos. A única e possível documentação em sua posse
não tem, em geral, validade jurídica.
Apesar da margem de insegurança que esta situação significa, os proprietários não se coíbem de construir,
com materiais “modernos”, casas definitivas. Assim se endureceu a “cidade de caniço”, passando a constituir
uma realidade incontornável da paisagem urbana, que se densifica e expande numa malha física e psicológica
de novos valores e relações, de onde emerge uma cultura urbana nova e específica de Maputo.
2. Habitações
As habitações das zonas periféricas foram-se construindo em talhões definitivos por um processo intenso
de divisão e sub-divisão, de acordo com as necessidades da família alargada.
Os talhões diminuíram de superfície, o cimento aumentou, mas a habitação manteve o seu esquema básico
com espaços abertos e fechados que caracterizam o viver desta população, com hábitos ainda ligados à vida
no campo.
O quintal não é um espaço que sobra. É, na maioria dos casos, o espaço fulcral da vida diária. É nele que
se localiza a verdadeira sala de estar e de conversa informal; o verdadeiro local de trabalho.
Estes bairros tiveram um incremento populacional da ordem dos 8,5% ao ano, considerado o mais alto
durante os últimos anos na cidade de Maputo. Com isto, alcançou-se a densidade de 130 Hab/ha e uma
taxa de habitabilidade de 250 hab/ha. Em 1985, cerca de 75% das habitações eram em materiais precários.
Hoje, essa realidade está ultrapassada, pois cerca de 90% delas estão construídas com materiais consolidados.
A maioria das casas é composta por uma varanda, geralmente pequena e quase sem outra utilidade que não a de
funcionar como elemento de contacto com o espaço público; uma sala com áreas entre 9 a 12 metros quadrados;
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um número variado de quartos, sendo o tipo mais comum constituído por três quartos. Além destes
compartimentos, sempre localizados na construção principal, um crescente número de casas já têm incorporadas
a cozinha e a casa de banho, mantendo-se no entanto em funcionamento a cozinha exterior e a latrina.
A sala de visitas formal não passa disso: tem quase invariavelmente não mais de 9 metros quadrados; em regra,
está mobilada com um sofá e duas poltronas de napa vermelha, uma mesa de centro e uma cristaleira. É este
relativo “desconforto físico” que alimenta a razão de uma verdadeira sala de estar à sombra da árvore no quintal.
A casa de banho é, quase sempre, a latrina exterior. A casa de banho que muitas vezes existe na habitação
principal vale sobretudo pelo seu carácter simbólico e de status, pois não tem sistema de abastecimento de
água ligado. Ela é, quase sempre, utilizada apenas pelo chefe da família.
Quando existe casa de banho incorporada, o sistema de drenagem é basicamente constituído por uma fossa
séptica e a dissipação das águas faz-se através de um dreno normal vertical, a jusante da fossa. Não existe
perspectiva no tempo para a articulação deste sistema com o de abastecimento de água. A incapacidade
municipal de gestão, as limitações orçamentais e, sobretudo, a orgânica e dinâmica da malha urbana
edificada, não tornam possível vislumbrar a prazo uma futura intervenção por parte do Estado Fig. 2.1, 2.2 e 2.3.
A compartimentação segue um processo de aglutinação dos espaços consoante as necessidades das famílias.
É provável que tenha sido pela combinação da substituição de materiais precários por “modernos” com um
processo de aglutinação de espaços que nasceu e se foi consolidando uma nova tipologia e uma nova
imagem da casa Fig. 2.4 e 2.5.
A observação sistemática e os inquéritos realizados levam a crer que os aspectos simbólicos mais importantes
da imagem da casa sejam a cobertura, as caleiras, os frisos salientes e os “quebra-sóis” horizontais sobre as
aberturas e a laje da varanda.
Durante o levantamento, foi-se tornando mais claro que o modelo de cobertura tinha um significado
particular na imagem da casa. Esta “descoberta” motivou atenções particulares e debates didácticos e
profissionais sobre a natureza das opções dos construtores e utentes. Entre a motivação funcional, a do
aproveitamento dos materiais e a do conceito formal, este último foi tomando forma e consistência. O
formal vai-se sobrepondo ao funcional neste caso específico. Uma confirmação eloquente desta realidade,
da força desta linguagem formal e da imagem que lhe está associada, é claramente expressa na sua aplicação
em casas de materiais precários, nomeadamente em casas de caniçoFig. 2.6.
O debate sobre este assunto permitiu enriquecer a perspectiva quanto ao processo de elaboração do gosto
e as opções construtivas nos bairros periurbanos de Maputo.
2.1. As coberturas
A metáfora formal da “ventoínha” pareceu-me a mais adequada para exprimir este facto, pelo que passei a
classificá-lo como “coberturas em ventoínha”Fig.2.7.
Genericamente, o princípio é o de que a cada espaço ou conjunto de espaços afins corresponde uma
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cobertura independente: uma água que faz empena com outra cobertura de uma água em direcção diferente.
Verificámos que a cobertura de múltiplas inclinações tem vindo a resultar, nos últimos tempos, de construção
de raíz, independentemente da distribuição dos espaços. Isto descarta a hipótese de ela existir hoje apenas
como resultado de um processo evolutivo de adicionamento de espaços. Na realidade, a casa é concebida deste
modo à partida, como se a multiplicação das águas de cobertura constituísse um imperativo de imagem.
Segundo os inquéritos, existiam já, antes da afirmação desta tipologia, edificações a uma ou duas águas. A
introdução das “coberturas em ventoínha” levou a que elas fossem removidas e casa passasse a configurar a
nova tipologia de quatro águas e varanda, em laje de betão, sem que se alterassem os espaços internos
existentesFig.2.6.
2.2. As caleiras
Quase todas as casas apresentam caleiras em betão como remate de todas as águas.
Embora constituam um elemento de recolha das águas pluviais, o que mais parece importar é impedir que
as chapas zincadas onduladas sejam visíveis. As caleiras escondem-nas e, ao mesmo tempo, caracterizam as
fachadas com o seu volume horizontal. A sua importância como linguagem formal ficou registada ao longo
não só dos inquéritos à habitação como, e sobretudo, no inquérito aos construtores. A imagem é claramente
conseguida com chapa de pouca inclinação, assente sobre barrotes, exprimindo no exterior as superfícies
modeladas em betão. Outra interpretação que complementa a anterior é a de fazer supor que a casa é
coberta com laje de betão, tornando-se assim mais “rica” Fig 2.11.
2.3. As varandas
A casa, para ser “bonita”, tem que ter varanda coberta com laje plana de betão. “Uma casa sem varanda é
como cara sem nariz”. Esta frase foi-me repetida várias vezes e marca a importância simbólica da sua
existência. No entanto, ela foi perdendo ao longo do tempo a sua funcionalidade, pois o verdadeiro sítio de
estar, em família, é o quintal. A varanda apenas marca a entrada Fig 2.12.
3. O processo de construção
Estas casas são construídas sem projecto desenhado. A sua execução mantém os princípios de liberdade dos
métodos da construção tradicionais, apesar de aparentarem as formas típicas de processos de construção
convencionais.
As alterações que se processam dentro da tipologia são efectuadas por acordo entre cliente e construtor e
estão estritamente ligadas ao gosto e à capacidade financeira do proprietário.
As casas são geralmente encomendadas a construtores individuais privados que não trabalham dentro do
mercado formal de construção.
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O bloco de cimento, as portas, as janelas, as chapas de cobertura e os barrotes são os elementos mais
transaccionados nos mercados da cidade que abastecem este tipo de construção.
Foram entrevistados vinte e três destes construtores independentes, que já construíram trezentas e vinte
casas na zona de estudo. Neste inquérito, tivemos como objectivo identificar os factores que explicassem a
construção, dentro do conceito formal aparente que fomos caracterizando.
Que explicação para a “ventoínha”, a varanda em laje plana, as caleiras em betão e os restantes elementos
construtivos? Fomos confirmando, no contacto com os construtores, que as opções formais dos clientes
conduzem-nos à construção desta tipologia, pois é nela que se encontra a imagem da verdadeira casa,
enquadrada no meio sócio-económico e cultural desta zona urbana.
Os construtores são, na maioria, ex-assalariados, mestres pedreiros ou carpinteiros, das empresas de construção
da cidade. Eles contam com dois ou três ajudantes, de preferência da família, para a construção das casas.
- o cliente é responsável pela aquisição dos materiais de construção e o construtor executa a obra; ou
- o cliente paga o fornecimento dos materiais e a sua execução.
O que mais nos surpreendeu neste processo de construção foi a escolha do projecto. Ela é feita a partir de
modelos à escala 1/1 analisados num percurso pelas casas já construídas pelo projectista/construtor. É
assim que, de uma forma viva e dinâmica, se discutem as intenções e os pormenores a partir do já executado,
transformando-se este percurso num grande catálogo à escala real.
Em todo este processo de construção, creio que a imagem da casa se vai formando a partir de critérios cada vez
mais exigentes. Estes critérios têm origem em sugestões visuais provenientes simultaneamente da construção
tradicional e do desenvolvimento da cidade de cimento, rica em leituras de elementos herdados dos anos de
grande construção (1960 e 1970), e que foram executados maioritariamente por técnicos de construção e por
empreiteiros responsáveis por projectos, vulgarmente conhecidos por “patos bravos”, e cuja acção teve grande
impacto na cidade.
Fica o perigo de que estes critérios rígidos possam conduzir a processos e elementos construtivos que,
tendo surgido do desenvolvimento de experiências de busca de maior funcionalidade, passem apenas a ter
um carácter decorativo, a ser meros sinais e símbolos.
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1.1, 1.2, 1.3 e 1.4- Quatro exemplos das 63 fichas de levantamentos realizados no troço da Avenida V. Lénine, partindo da capitania do porto
até à praça da OMM, na zona da cidade consolidada, onde foram seleccionados edifícios pelo seu interesse, estilo arquitectónico, tipo de construção
e função. Este levantamento permitiu registar elementos formais da linguagem arquitectónica “erudita” expressos na habitação espontânea.
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2.1- Três exemplos de habitações que têm no seu interior
casas de banho e cozinha mantendo, no entanto, essas
mesmas funções em espaços construídos no exterior. Do
total dos inquiridos, 85% cozinham fora da casa (utilizam
carvão vegetal e lenha como combustível) e 90% utilizam
a latrina como sanitário. As casas de banho e cozinhas
formais incorporadas na construção principal são apenas
para utilização esporádica.
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2.6- Nestas axonometrias, pode observar-se a relação dos espaços interiores com a cobertura. O levantamento deu a conhecer que a média
de águas das coberturas por habitação é de três, existindo habitações com uma área coberta de cerca de 70 m2 com seis águas.
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2.12- Casa com cobertura em “ventoínha” sem varanda frontal. 2.13- Casa com cobertura em “ventoínha”. A varanda de acesso é
Destacam-se, na fachada, a forte presença do volume horizontal da gradeada. Nota-se claramente um duplo “quebra-sol” sobre a janela
caleira em betão, o quebra-sol sobre a janela frontal e os elementos frontal.
de ventilação do interior da casa. O realce destes elementos é marcado
por um efeito de contraste na pintura.
2.14- Idem, com uma variação do recorte da cobertura. 2.15- Idem, mantendo a linguagem simples desta tipologia.
2.16- Idem, com varanda à direita do observador. 2.17- Idem, destacando-se, em primeiro plano, o muro gradeado.
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2.18- A cor é também um importante elemento de afirmação da 2.19- Idem, com varanda na posição normal.
imagem. Neste caso, a varanda é o elemento central da fachada.
2.20- Idem, com uma banca de comércio informal dos proprietários. 2.21- O nível económico dos proprietários reflecte-se, neste caso,
através de um muro mais elaborado e da parabólica.
2.22- O modelo “clássico”, com varanda encaixada. 2.23- Os dispositivos de segurança multiplicam-se, por vezes, como
neste caso, em dois planos de protecção, sendo um deles constituído
pelo muro comum e o outro por uma sequência de pneus usados.
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2.24- O modelo “clássico”, com varanda projectada. Este é que é o 2.25- Idem, com varanda encaixada e garagem.
tipo básico desta tipologia.
2.26- Idem, apenas com varanda encaixada. 2.27- A multiplicidade de águas da cobertura dá a esta casa um
aparente dinamismo, bem ao gosto dos proprietários. A cor é mais
uma vez, um importante elemento de realce dos volumes das caleiras.
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