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Terror à luz

das tochas
CHRISTIE GOLDEN

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Muito bem... exatamente como ensaiamos. Respire fundo, bata os calcanhares
para dar sorte.
“Ora, boa tarde, meu estimado e incomparável mestre espião!” O
Capitão Filinto Belvento marchou até a escrivaninha de Mathias Shaw com
um floreio, seguido por uma mesura que fez seu longo casaco esvoaçar às
costas. “Que coincidência encontrá-lo aqui.”
“Eu trabalho aqui...” O timbre na voz de Shaw era o de quem não sabe
se afirma ou se pergunta.
“É vero! Isso, você faz um bocado. Trabalhar, digo.” Filinto apoiou as
mãos na beirada da escrivaninha de madeira simples, porém bem polida,
“Vocês, marinheiros, são cheios de
superstições com fantasmas e tal. Na
Floresta do Crepúsculo fica um dos
maiores cemitérios de Azeroth, e nem
todos os inquilinos descansam em
paz. Vai ser perigoso.”

tomando cuidado para não amassar nenhum dos pergaminhos com que
Shaw parecia vir erguendo uma fortaleza. Cada um deles fora amarrado
com uma fita e levava o selo do Reino de Ventobravo: uma cabeça de leão
impressa em cera azul.
“Inclusive”, Filinto sorriu e enfiou um mapa nas mãos enluvadas do
outro, “eu vim resgatá-lo do trabalho.”
“Um mapa”, disse Shaw lentamente, erguendo os olhos verdes para
Filinto.
“Que dedução brilhante!”
“Da Floresta do Crepúsculo.”
“Mas vá ser esperto assim!”
“Onde você arranjou isso?”
“Ganhei no carteado.”
“E está me dando por quê?”
Filinto batucou no X enorme que fora rabiscado no mapa. “Para caçar
um tesouro, por que mais? Apesar de esperto, você até que é bem lento.”
Shaw suspirou, encarando os pergaminhos empilhados.
“Vamos logo”, insistiu Filinto, pousando a mão no braço de Shaw. “Eu
mal o vi desde que voltamos de Zandalar. Imagine só, parceiro! Dois
aventureiros intrépidos — um de extraordinária beleza; o outro, você
— cavalgando juntos no ar puro, os tesouros reluzindo, só esperando os
caçadores...”
“Difícil dizer que o ar da Floresta do Crepúsculo seja puro. E a Vigília
Noturna deve ter opiniões fortes quanto à caça de tesouros.”

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“Ah, mas você sabe como é esse pessoal. Você consegue convencê-los
a permitir uma expediçãozinha de caça ao tesouro.” Filinto indicou a
escrivaninha de Shaw com a cabeça. “Aliás, você pode aproveitar o ensejo
para conferir se eles não têm informações sobre... uma coisinha ou outra.”
O olhar de Shaw se voltou para os pergaminhos na escrivaninha. “Que
sentido faz ficar zanzando na Floresta do Crepúsculo atrás de cálices do
arco-da-velha e prataria enferrujada?”
“Diversão, parceiro. Uma coisa que você não tem tido muito
ultimamente. Eu passei um tempão aqui, peguei as manhas das...
diplomacias e tudo mais.” Filinto deu um peteleco no mapa. “Este é o meu
mundo. E... eu quero compartilhá-lo com você.”
Shaw olhou outra vez o mapa carcomido. “Vocês, marinheiros, são
cheios de superstições com fantasmas e tal. Na Floresta do Crepúsculo
fica um dos maiores cemitérios de Azeroth, e nem todos os inquilinos
descansam em paz. Vai ser perigoso.”
“É... bom, não nego, nós temos uma montoeira de superstições. E eu
confesso que prefiro a companhia de gente viva. Ainda mais se for a sua
companhia. Além disso, o rapaz que perdeu o mapa no jogo jurou que era
legítimo.”
Filinto abriu seu sorriso mais charmoso. Ele prometera a Shaw que seria
paciente e, de fato, vinha tentando. Sabia que a confiança de um espião se
conquistava ainda mais lentamente que a de um capitão calejado. Ainda
assim, o silêncio do homem fazia naufragar seu coração. Ele aportara no
escritório como um navio levado pelas ondas do entusiasmo a um porto
seguro, as velas infladas pelos ventos da determinação, e agora...
“Eu ainda tenho muito trabalho a fazer aqui”, disse Shaw.
O coração de Filinto foi descendo e descendo até o fundo do mar,
igualzinho ao naufrágio de...
Shaw apertou o ombro de Filinto e assentiu com a cabeça. “Então...
arrume as provisões e esteja pronto ao pôr do sol”, combinou ele. “Até lá já
vou ter dado um jeito nisso.”

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“Friozinho aqui, não é?” Filinto abraçou um pouquinho mais o casaco
enquanto eles seguiam o mapa do tesouro apagado pela Floresta do
Crepúsculo. O lugar era deprimente que só. Inclusive a estalagem e
a pracinha da cidade pelas quais tinham passado não eram nem um
pouco convidativas. Lampiões esquisitos pendiam dos postes aqui e ali,
a luzinha entre o laranja e o amarelo pelejando para afastar a escuridão
fria e úmida. Shaw tinha razão quanto ao ar “puro”: tudo ali tinha um leve
cheiro de mofo. Por sorte, o luar era suficiente para que Shaw, um sujeito
supostamente acostumado a fazer coisas como ler mapas no meio da noite
num lugar que não se chamava Floresta do Crepúsculo à toa, seguisse a
trilha sem dificuldades.
Uma luz tênue se acendeu na janela de uma casa antiga muito próxima.
Um vulto passou por ela. “Ainda tem gente acordada”, comentou Filinto.
Um grunhido fantasmagórico veio de dentro.
Shaw fez que não ouviu e seguiu seu caminho. Então, o vulto tapou a
luz tênue que saía da janela. Filinto conseguiu enxergar com clareza as
penas da flecha que havia perfurado a cabeça da criatura. Mais um morto-
vivo.
Qual devia ser a expressão dele, perguntou-se. Seu rosto...
“Marés”, murmurou o homem, e acelerou o ritmo, passando por Shaw.
“A gente vai chegar num lugar bacana em coisa de minutos.”
“Bacana?”
“Os Jardins da Paz, meu bom homem! O perfume das flores vai me fazer
um bem danado uma hora dessas.”
“Filinto, os Jardins da Paz são um cemitério.”
O marinheiro ficou pálido na mesma hora. “Então é por isso que

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aquelas pedras têm cara de lápides...” Ele arrancou o mapa das mãos de
Shaw, examinando-o. “Eu só vi ‘Jardins da Paz’ escrito. Pensei que fosse um
jardim, sabe? Cheio de paz.”
“Essa região inteira já foi muito bonita. Floresta Brilhante, era como se
chamava. A Vila Sombria era Aldeia Grande. Difícil imaginar isso agora.”
Filinto tomou um trago de rum para criar coragem e fez um inventário
rápido de sua bolsa para acalmar os nervos: poções de cura, estrepes, veneno
ameno, rum, bandagens, biscoitos de marinheiro, rum, meias reserva, rum. Ele
ouvia de orelhada Shaw, homem compenetrado que era, contar a história
do lugar. Não sei que lá, não sei que lá, Medivh, não sei que lá, não sei que
lá, foice... Eles passaram por campos de abóboras apodrecidas, vigiadas
por espantalhos que assustavam bem mais do que só os corvos gulosos.
Enquanto seguiam o mapa, que Filinto já começava a ver com cada vez
mais ressentimento, ele bateu de frente com uma teia de aranha.
Shaw puxou uma teia comprida e pegajosa dos cabelos castanhos de
Filinto. “Estamos chegando”, anunciou. “Isso, se o mapa estiver certo.”
“Está, sim, tenho certeza. Sabe, depois dessa palhaçada toda de...”
O aventureiro foi interrompido por um uivo longo e grave de dor. O
som cortou o ar abafado feito uma navalha de barbeiro nas mãos trêmulas
de um aprendiz. Aquele som apavorante só podia ter saído de um lobo.
Tomara que tivesse saído de um lobo. Shaw soergueu a sobrancelha.
Filinto deu meia-volta, procurando os olhos vermelhos, as presas
esbranquiçadas e a pelagem negra que decerto dariam o bote sobre eles.
Já tinha gastado sua cota de bambear-das-pernas, e não seria a Filinto
Belvento que faltaria atitude assim tão cedo. Lobos eram uma coisa;
mortos-vivos já eram outra história. Ele daria conta do recado.
Deu um passo à frente, embrenhando-se no mato, e gritou para Shaw.
“Deixe comigo, pode ficar sossegado! E o tesouro deve estar...”
Então estacou de súbito e levou a mão à boca.
Shaw foi para onde Filinto estava num pulo só. “O que foi?”
Filinto estava ajoelhado ao lado de uma moça, em cujo uniforme escuro

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uma mancha se alastrava. “Segure a cabeça dela”, instruiu, abrindo a bolsa.
Sacou a rolha de um frasco e derramou o líquido na boca da mulher. Ela
engoliu por reflexo e, por um momento, pareceu que ia se recuperar, mas
logo depois recostou a cabeça no peito de Shaw.
“Você a conhece?”, perguntou Filinto.
Com uma expressão soturna, Shaw tomou o corpo inerte nos braços.

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“Sarah Ladimore. Comandante da Vigília Noturna.”

“Shaw... não era para a comandante da Vigília Noturna conseguir se virar


contra os perigos da região?”
“Ela consegue”, respondeu Shaw, sem dar mais explicações.
“Graças à poção, o pior já passou, mas ela não está bem”, diagnosticou a
voz rouca do Vigia Cortavau, um homem alto e velho, de cabelos brancos
e olhos bravios, pela porta aberta das instalações modestas da Vigília
Noturna. “Queiram me acompanhar. Ela está sofrendo desmaios.”
Ladimore encontrava-se num estado lastimável. Tiveram que cortar
suas roupas para enfaixar as feridas, e o cabelo — nas partes que não
estavam cobertas de bandagens — estava emplastrado de sangue.
Filinto tinha desembolsado um cobre na poção mais potente da loja, nos
preparativos da caça ao tesouro dele e de Shaw. Era para a comandante
estar bem melhor com aquele negócio correndo nas veias.
Shaw foi direto para a cabeceira da cama. “Ladimore?”
Ela entreabriu os olhos por um momento. “Sh-Shaw”, sussurrou ela.
“A Tocha da... da... Ch-Chama Sagrada. Sumiu. Um relatório... tinha que
conferir. Minha res-responsabilidade...”
Filinto não tinha nascido ontem. Ele sabia que um negócio descrito
pelas palavras “chama” e “sagrada” era o tipo de objeto que não podia
sumir por nada em um lugar como a Floresta do Crepúsculo.
“Onde ela ficava?” Shaw não estava mais para brincadeira — cruzou os

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“‘Vamos ter que achar essa
tocha, não vamos?’, perguntou
Filinto, suspirando.”

braços, ficou todo sério. Que baita homem! Nem piscar, ele piscava.
“No Morro dos Esquecidos”, respondeu um dos vigias ao ver que a
comandante tinha apagado outra vez. “Depois de Morbídio Vil ter sido
derrotado pela tocha, a comandante Ladimore colocou-a bem na frente da
antiga casa do lazarento, diante do cemitério.”
“Quem é esse tal de Morbídio Vil na fila do pão?”, perguntou Filinto.
“Um necromante. E lich também”, acrescentou o vigia. “Devemos muito
aos heróis que tomaram conta dele, já faz um tempinho. A tocha foi feita
com ferro da forja de luz. No último par de anos, ela cumpriu bem seu
papel, dissipando encantamentos macabros e deixando mansinhos os
mortos-vivos.”
“Então a ausência dela seria uma oportunidade perfeita para pegar a
Floresta do Crepúsculo desprevenida”, teorizou Shaw.
Filinto sentiu o coração acelerar. Sem algo para restringir os mortos-
vivos, eles vagariam livremente pela Floresta do Crepúsculo. E se a tocha
por acaso fosse roubada por alguém poderoso e que não fosse a pessoa
mais escrupulosa do mundo, só as Marés sabiam que catástrofe seria.
A porta se escancarou. Outros vigias entraram, trôpegos, carregando
camaradas feridos. A comandante não tinha sido a única atacada naquela
noite.
“Monte Corvo”, sussurrou um dos feridos. “Fantasmas, esqueletos,
cadáveres ambulantes... tem um monte vindo para cá.”
Filinto sentiu um frio na barriga. Porcaria de tesouro idiota. O que ele
não daria para estar de volta em Ventobravo, afogando-se em cerveja
e emburrado, porque Shaw preferia ficar rabiscando pergaminhos à
acompanhá-lo.
O rosto de Ladimore se contorceu de dor, mas no lugar do grito só

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saiu um gorgolejo estrangulado. Sangue e saliva escorriam-lhe pelo
canto da boca. Enquanto Shaw discutia questões urgentes com os vigias,
Filinto apanhou um pano úmido. O rosto e o pescoço da comandante
continuavam cobertos de sangue. Os anos no mar haviam lhe ensinado
a manter sempre limpos os doentes e desvalidos. E a mais pura verdade
é que ele sentia uma pena tremenda dela. Filinto afastou o cobertor para
limpar as mãos de Ladimore e, então, soltou um arquejo de susto.
Erupções esbranquiçadas se espalhavam por todo o braço, do dorso das
mãos até os ombros. Algumas das pústulas estavam a ponto de explodir,
outras já tinham se rompido e soltavam pus. Doença, ferimentos e até
mesmo a morte não eram novidade para Filinto. Não lhe provocavam
medo. Era o que podia acontecer com a pessoa depois do desfecho daquele
trio trágico que o alarmava. Um abcesso estourou, e um fedor terrível
invadiu-lhe as narinas.
“Marés!”, sussurrou Filinto, tossindo. Enquanto os vigias conversavam
entre si, ele fez um gesto para que Shaw se aproximasse, murmurando no
seu ouvido: “É como se ela estivesse... em decomposição. E nem morreu
ainda.”
Shaw ficou sério e apertou as luvas.
“Vamos ter que achar essa tocha, não vamos?”, perguntou Filinto,

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suspirando.

“Vou dizer que a noite ficou um pouquinho mais gostosa.”


“Ficou mesmo”, concordou Shaw.
Os dois montavam no mesmo grifo, que voava rumo ao Monte Corvo.
Filinto ia com os braços em torno da cintura de Shaw e o queixo apoiado
no ombro do mestre espião. Sua mochila estava abarrotada de armadilhas,
venenos, bombas e estrepes os mais variados. Ele apertou o talabarte que
envolvia a lâmina nova que levava na cintura. “Estou doido para estrear

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meu Alfanje Enxotador de Mortos-vivos Extraordinário.”
“Não é esse o nome do...”
“Agora é, tarde demais.”
“Só não vá confundir as poções com o seu cantil”, alertou Shaw.
“Sei não, parceiro, não me parece má ideia. É a famosa ‘coragem
líquida’”.
O tom de Shaw foi mais carinhoso do que de costume. “Acho que você
não vai precisar.”
Filinto piscou. Shaw tinha mesmo...
Mas um segundo depois o mestre espião já estava seríssimo de novo. “É
verdade que estamos bem protegidos, mas vai ter um monte de mortos-
vivos ensandecidos por aí. E muitos deles não se deixarão deter pela sua
lâmina — nem pela sua língua afiada.”
Sorrateiro, Filinto levou à mão ao cantil, e acabou olhando para baixo
sem querer. O dossel espesso das árvores da Floresta do Crepúsculo
escondia uma grande porção do que acontecia ao longo da estrada. Mas
não tudo. A estrada estava se mexendo.
Era como se uma represa tivesse se rompido. À luz suave da lua, corpos
grotescos avançavam rumo à Vila Sombria. Aqui e ali viam-se feixes de luz,
que, no entanto, não traziam consolo algum. Se aquele fluxo fosse mesmo
composto por cadáveres reanimados, só um milagre para a maré virar.
“Nós temos mesmo que seguir a estrada?”, perguntou ele a Shaw como
quem não quer nada, porém a voz trêmula o entregava.
“Vamos um pouco para o norte”, respondeu Shaw. Aparentemente,
ele não tinha notado a fraquejada de Filinto, o que deixou o aventureiro
grato. O grifo galgou ainda mais o céu, adernando ao passar por um grupo
de árvores bem mais agitadas do que o resto. Desta vez, ao olhar para
baixo, Filinto avistou um brilho azulado que não tinha nada a ver com
os espectros bruxuleantes. Uma estrada de pedras brancas iluminadas
pela luz da lua conduzia ao lugar, o que reduziu a apreensão de Filinto
ligeiramente.

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“O que é aquilo?”, perguntou ele, o dedo em riste.
“O Bosque do Crepúsculo”, respondeu Shaw. “Eu achei que nos faria
bem admirar um lugar sossegado antes de nos lançarmos ao combate.”
Enquanto registrava o sentimento, Filinto entreviu no meio do matagal
um reflexo azulado e cintilante. A luz irradiava de um lugar sereno, parecia
um poço. “Eu acho que já vi um negócio desses... é um poço lunar, não é? É
coisa de elfo noturno?”
“Isso. Os poços lunares são sagrados para a deusa deles, Eluna. Suas
águas têm propriedades medicinais. São lugares muito relaxantes.”
“Relaxar é uma ideia brilhante. Eu voto nisso: na próxima aventura, a
gente pode pular a parte de se aventurar e ir direto para o poço lunar.”
“Eu prometi que iríamos para um lugar tranquilo depois da nossa última
presepada, não prometi?”
“Prometeu, mas tecnicamente a culpa desta presepada foi toda minha.”
Shaw exibiu um de seus raros sorrisos. “Então está decidido, poço
lunar na próxima aventura. Mas agora”, retomou, voltando ao tom frio de
sempre, “já estamos quase no Monte Corvo.”
“Pode ficar sossegado, parceiro”, tranquilizou-o Filinto, enquanto o

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grifo descia. “Eu estou mais do que preparado”.

As Marés me ajudem, eu não estou preparado para isso.


Shaw considerava que haviam pousado a uma distância segura do
cemitério. Já Filinto acreditava que Kul Tiraz talvez fosse uma definição
melhor de “distância segura”, mas não disse nada. Shaw liberou o grifo
para que voltasse à Vila Sombria. Filinto invejou o bicho.
Vislumbrar os mortos-vivos da garupa do grifo já tinha sido ruim que
chega, mas a multidão ao longo da estrada não passava de uma reunião
mixuruca comparada ao cemitério.
“Lembre-se”, alertou Shaw, “esses mortos-vivos são selvagens. São

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conduzidos pelo instinto, não pelo intelecto.”
Filinto se empertigou todo. “Dois ladinos que nem nós vão passar no
sapatinho! E... para onde que os nossos sapatinhos estão indo mesmo?”
“Para o Morro dos Esquecidos, onde a tocha foi vista pela última vez.
Pode ser que encontremos alguma pista do que aconteceu.”
Filinto viu Shaw escolher a dedo um esconderijo e sumir de vista.
Então imitou o gesto com a habilidade e malícia de uma criança que se
esconde dos pais depois de surrupiar a sobremesa. Devagarinho, ele seguia
o mestre espião, ambos andando com tanto cuidado que nem a grama
dobrava sob seus pés. De perto, os mortos-vivos selvagens eram ainda
piores do que Filinto imaginava. Tudo nele gritava o quanto era errado
contemplar aqueles órgãos molengos e podres, os ossos projetando-se
para fora da pele; o fedor de podridão fazia revirar seu estômago. Mas ele
manteve o foco — e o café da manhã dentro do bucho. Tinha que dar o
melhor de si por Shaw, então era isso que ia fazer.
“Pardieiro” era a forma mais educada de se referir àquela casa, que
parecia mesmo, nos mínimos detalhes, já ter servido de lar a um lich. Shaw
apontou uma estaca, perto da porta, arrodeada por uma espécie de círculo
ritualístico. A borda protetora fora rompida, conforme evidenciado pelas...
“Pegadas”, sussurrou Shaw. “Mas não são quaisquer pegadas. Você viu
que a grama murchou?”
Porém Filinto não conseguia se concentrar nas pegadas. Ou sequer em
Shaw. Ele já havia encontrado o cramulhão que fazia o chão apodrecer sob
os pés.
Era uma mulher humana... ou já tinha sido, pelo menos. Vestia um
manto cinza, sujo de poeira, sangue e outras coisas inquietantes demais
para ficar reparando. O capuz arriado revelava cabelos pretos como que
alvoraçados por uma ventania. Seu rosto era cavado e pálido, como se ela
também estivesse morta. Mas por algum motivo, Filinto achou que não
fosse o caso. Seus olhos emitiam um brilho esverdeado e nauseabundo, e o
homem notou que, onde quer que ela pisasse, a grama estalava e escurecia.

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“Tentáculos de puro breu serpenteavam
em torno do cabo prateado do artefato,
e a chama tremulava ensandecidamente,
passando de uma tonalidade dourada bem
clara e reconfortante para um roxo quase
preto, como a mancha de uma contusão. ”

Bom, é um mistério a menos.


Dois fantasmas a escoltavam, girando ao seu redor, formando uma
espécie de barreira protetora. Tinham os rostos inchados como o cadáver
dos afogados que boiam na superfície antes de desaparecerem sob as
águas inclementes; uma cena que Filinto estava acostumado a ver. Outras
criaturas sobrenaturais formavam fila atrás dela, como que seguindo a uma
ordem tácita. O resto continuava a vagar sem rumo, sem quê nem porquê.
Tinha só mais uma coisinha, uma coisa humilhante, de partir o coração,
na imagem à sua frente: a feiticeira — ou necromante, ou seja lá que
carniça de classe fosse — portava uma relíquia comprida, com cabo de
prata e um halo de metal envolvendo um fogo branco. Só podia ser a Tocha
da Chama Sagrada.
Uma mão pousou sobre o ombro de Filinto.
A alma dele quase saiu do corpo, mas era só Shaw. “Ela não sente nossa
presença”, sussurrou o espião. “Se sentisse... nós já saberíamos. Temos
que segui-la para descobrir o que ela quer com a tocha. Está vendo aquele
pano em volta do cabo? Parece que ela não pode tocá-lo, é uma boa notícia
para a gente.”
A presa deles dirigia-se a uma grande estrutura de pedra branca
entalhada. Ela parou diante da entrada por um momento, depois desceu os
degraus de pedra, adentrando as profundezas sepulcrais.
“Será que eu quero saber aonde ela está indo?”

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Shaw não respondeu de imediato. Em vez disso, virou-se para Filinto,
olhando-o nos olhos. “Para as catacumbas”, respondeu ele, num tom firme
e calmo. “Ela deve ficar mais forte lá dentro. É sensato da parte dela ir para
um lugar onde terá acesso a muitos corpos.”
Filinto percebeu que estava tremendo. Ele queria se dar uma bica.
Vinha se saindo tão bem, dono de si, todo corajoso na frente de Shaw. E
agora, aquela palhaçada.
“Parceiro... não está ajudando”, disse ele, com uma risadinha frouxa.
“Você não precisa de ajuda, Belvento”, assegurou-o Shaw. “Você já
suportou tudo de ruim que há nesse lugar abandonado pela Luz e, ainda
assim, cá está você. Eu sei que são muitos. Mas isso não importa. Só temos
que fazer uma coisa: recuperar a tocha. Eu quero que saiba que eu vou
protegê-lo. E... eu sei que você vai me proteger também”
Sem palavras, Filinto aquiesceu. É lógico que protegeria Shaw.
Enfrentaria um dragão por ele. O que era um reles punhado — bocado? —
de criaturas que nem vivas estavam?
“Pode deixar, parceiro”, balbuciou. “Essa tocha já está na mão. Vamos
dar uma surra nessas caveiras.”
E foi ele, Filinto Belvento, quem adentrou as catacumbas primeiro.
Passaram de fininho pelo andar superior, sem despertar a atenção dos
mortos-vivos. Uns vinte e poucos, contou Filinto. Continue assim, parceiro. E
então mais um andar. Aos poucos, foram se embrenhando nas profundezas
tortuosas e emboloradas da tumba. A luz que irradiava do fundo da
escadaria, no nível mais profundo, já dizia tudo. Desceram com tanto
cuidado que as chamas dos braseiros nem se mexiam quando passavam.
A feiticeira estava de costas, sussurrando palavras desconhecidas
e inquietantes, no centro de um círculo desenhado com um pó
esbranquiçado. Ossos, pensou Filinto. Com a sorte que eu tenho, aposto que
isso é osso moído.
A Tocha da Chama Sagrada pairava sobre ela. Ao observar a cena, ficou
claro que ela tentava dobrar a tocha à sua vontade. Tentáculos de puro

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breu serpenteavam em torno do cabo prateado do artefato, e a chama
tremulava ensandecidamente, passando de uma tonalidade dourada bem
clara e reconfortante para um roxo quase preto, como a mancha de uma
contusão. Filinto se deu conta de que assistia ao desenrolar de uma batalha
entre o sagrado e o profano — uma batalha que definiria o futuro das
terras atormentadas da Floresta do Crepúsculo, e talvez até das terras
além.
Como se tivesse lido o pensamento deles, a feiticeira cessou o cântico.
Sua cabeça foi se voltando lentamente para a esquerda, e um sorriso
repulsivo se abriu no que restava dos seus lábios.
“Eu sei que vocês estão aí”, anunciou, num tom fantasmagórico.
Shaw olhou para Filinto e fez um sinal discreto com a cabeça: fique
escondido. Então se pôs de pé, de modo que a necromante pudesse vê-lo. O
mestre espião tinha suas adagas envenenadas em punho.
“Qual é o seu propósito?”, interrogou-a Shaw. “Você trouxe Morbídio
Vil de volta para atormentar o povo da Floresta do Crepúsculo?”
A mulher gargalhou com gosto. “Ah, Morbídio Vil! Que graça. Não,
mestre espião, não tenho interesse algum naquele saco de estrume. Minha
visão não é tão estreita assim.”
Sem fazer barulho, Filinto levou a mão ao bolso lateral da mochila,
torcendo para que o palpite do osso moído estivesse certo. Com muito
cuidado, ajoelhou-se ao lado do círculo e, bem devagarinho, sacou o
cantil. Com um pedido de desculpas sussurrado àquele delicioso rum, ele
emborcou o vidro, deixando que o líquido desmanchasse o círculo.
“Visão?”, zombou Shaw. “Então, além de perigosa, você é maluca.”
Filinto tornou a olhar para a tocha. Uma necromante... um artefato
corrompido... Ah, aquilo não estava com uma cara boa.
A necromante só fez sorrir. “Eu vi as coisas mudarem, mestre espião.
Visões na podridão. A decomposição trouxe a verdade à tona. Quem é
próximo da vida e da morte-viva sente isso no tutano dos ossos. A morte
vem buscar a alma desse mundo, e minha intenção é prepará-lo para a

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chegada dela. Eu estou de olho em
cidades melhores do que a Vila
Sombria, mas não deixa de ser
divertido visitar os lugares que já
assombramos.” Ela fez um gesto,
e os espíritos rodopiaram à sua
volta como marionetes. “São tantas
coisas mortas para se brincar.
Quem sabe eu não levo o mestre
espião do rei comigo quando for
à Ventobravo? Vou voltá-lo contra
tudo e todos que você mais ama.
Matar não é novidade para você,
não é, Mestre Espião Shaw? Você
vai se adaptar com facilidade.”
O restinho que faltava do
osso em pó cedeu. O círculo se
rompeu. Filinto deu um salto,
golpeando com as duas espadas,
fazendo de tudo para arrancar a
cabeça da necromante do corpo.
Porém ela se esquivou no último
segundo, retaliando com sua adaga,
enquanto uma série de palavras
tenebrosas saíam de sua boca.
Filinto chegou a ouvir o vush da
lâmina que só não o acertou por
um triz.
“Belvento, a tocha!”, berrou
Shaw, lançando-se contra a
necromante. O espião passou-lhe

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um garrote no pescoço e torceu-o. Uma mão de unhas negras voou-lhe na
garganta, tentando arrebentar o fio, soltando sons estrangulados. Filinto
esticou o braço sobre o corpo que se debatia, preparando-se para o pior, e
apanhou o artefato no ar.
Parecia que o tempo tinha parado. Em vez de uma reviravolta,
instaurou-se a calmaria. Leveza. Esperança. Porém a profanação da
necromante tinha deixado sua marca. A Tocha da Chama Sagrada não
chegara a ser corrompida, mas já não era mais a mesma arma contra todo
o mal de antes. O desespero abateu-se sobre ele. Filinto não era nenhum
santo. Shaw tampouco. Não passavam de dois homens tentando fazer
do mundo um lugar um pouquinho melhor. Um pouquinho mais seguro.
Filinto sentia a tocha, ainda que poluída pela escuridão da necromante,
pelejando para restaurar sua antiga santidade.
Tudo isso e outras coisas mais ele sentiu num piscar de olhos, e então
brotou-lhe um pensamento: Eu não tenho como salvá-la... mas sei de algo que
talvez possa.
Filinto berrou a plenos pulmões: “Shaw! É hora da nossa próxima
aventura!”
O segundo de distração provocado em Shaw pelo absurdo da frase
bastou para que a necromante se soltasse. Ela se engasgava e tossia uma
enxurrada de ruídos guturais.
Gemendo e cambaleando, o mestre espião levou a mão ao peito, mas
ainda conseguiu manter os pés firmes no chão. Juntos, eles desembestaram
a correr rumo à saída. Adiante, Filinto ouvia o ruído de várias coisas que
se mexiam e remexiam, coisas que já deviam ter morrido várias e várias
vezes. Pelo visto, a necromante já tinha se recuperado o bastante para
comandar os mortos.
“Aventura, é?”, exclamou Shaw, ofegante ao correr. “Que mal lhe
pergunte, o que teria no poço lunar para a gente?”
“O rum é bom para limpar feridas. Imaginei que a tocha mágica talvez
precisasse de alguma coisa mágica para purificá-la...”

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“Não sei dizer se você é um gênio ou se é doido.”
Não havia tempo para o medo, só para o instinto, e Filinto lançou-se
ao combate sem hesitar. Uma mão brandia a tocha, a outra, o alfanje.
Ele golpeava com fúria, estraçalhando costelas e lançando crânios pelos
ares. Quando um cadáver avançou, todinho feito de pus e dentes afiados,
deu-lhe um chute que fez com que a coisa caísse de costas sobre o par de
adagas de Shaw. Filinto jogou sua bolsa para o parceiro antes de subirem o
último lance da escadaria. Todos os monstros que haviam despistado antes
esperavam por eles agora.
“A tocha!”, urrou Shaw, virando-se para enfrentar três daquelas criaturas
claudicantes.
Filinto balançou a tocha diante dos mortos-vivos selvagens. Faixas de
pano se incendiaram, e os mortos recuaram, guinchando, fugindo da Luz
Sagrada. Filinto sentiu um calor no peito — apesar do ritual feito pela
metade, a tocha ainda tinha salvação! Abrindo caminho conforme era
possível, os dois irromperam no ar rançoso da noite e correram para os
portões do cemitério.
Às suas costas, Filinto ouviu uma pequena explosão com a detonação
de uma bomba de veneno, e sorriu. Shaw estava usando a bolsa de truques,
tramoias e trapaças dele. Estrepes, pequenos artigos incendiários, frascos
de veneno, pó cegante... Shaw os arremessava por cima dos ombros, e dava
para ver que pelo menos uma parte estava provocando o efeito desejado.
Filinto percebeu que Shaw respirava com dificuldade quando o
alcançou. Ao observá-lo melhor, ficou paralisado de medo.
“Shaw... seu rosto...”
O rosto do mestre espião estava pingando de suor, pálido ao luar... e
dele irrompiam aquelas pústulas diminutas e escabrosas.
Marés, não, por favor, ele não...
“Grifos!”, gritou Shaw, apontando um borrão em movimento. Filinto
chegou a ficar tonto de alívio. Enquanto alguns vigias escapavam e outros
se juntavam à onda de mortos-vivos selvagens, um dos grifos bicava

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freneticamente sua amarra.
“Oi, bonitona”, cumprimentou-a Filinto, agarrando a corda. “Só um
segundinho, e nós todos vamos picar a mula daqui!”
Shaw montou na sela. Filinto cortou a amarra, e o grifo saltou pelos
ares tão depressa que ele quase não conseguiu subir na garupa e, por um
segundo interminável, ficou convencido de que ficaria para trás.
Mas Shaw é que não ia deixar por nada. Apesar de muito abatido, o
mestre espião puxou Filinto pelo pulso e o jogou diante do grifo. O animal
esticou as garras para apanhá-lo e, quando ele deu por si, estava sendo
carregado pelo céu afora.
O marinheiro fitou lá embaixo as formas dos mortos-vivos que se
amiudavam rapidamente e fez um gesto obsceno. “Tchau e bênção para
esses bichos feios... Shaw! Atrás de nós!”
A necromante vinha atrás deles.
A criatura que ela montava era ainda mais aterrorizante do que as
monstruosidades estropiadas de que eles haviam escapado. A fera emitia
a mesma aura nauseabunda de sua mestre. Um couro podre, um esqueleto
equino caindo aos pedaços e a necromancia era o que mal e mal segurava
o bicho de pé. Mas Filinto nunca tinha visto um cavalo com asas. Aquele
corcel pesadelar era uma combinação revoltante de tudo que havia de
grotesco e sobrenatural — e o pior de tudo era que estava encurtando a
distância entre eles.
O grifo acelerou o ritmo. Filinto tirou os olhos dos perseguidores e se
voltou para baixo. Lá estava ele, aproximando-se a cada bater de asas: o
poço lunar. Sereno, bonito, a reposta para todas as preces de Filinto.
Quando o grifo fez menção de pousar, um raio esverdeado cortou sua
asa. O bicho rodopiou no ar, derrubando Shaw e Filinto. Logo em seguida,
saiu coxeando de volta para a Vila Sombria.
“Shaw!” gritou Filinto com a voz trêmula. As irritações se multiplicavam
pelo rosto e pelo peito do mestre espião. Filinto estendeu o braço para
ajudá-lo, e Shaw o afastou, firme, porém com delicadeza.

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“O homem estava ferido,
ensanguentado e exausto, porém
inteiro. Filinto foi cambaleando para
perto dele, abraçando-o como se nunca
mais fosse soltar.”
“Eu vou distraí-la. Você expurga a tocha. É a única esperança que nos
resta.”
O mestre espião sacou as adagas e olhou para cima, uma expressão
determinada em meio às pústulas, enquanto a criatura descia com suas
asas esfarrapadas, empesteando o ar.
Filinto nunca tinha visto tamanha coragem em toda a vida.
Ele teve que gastar até o último grão da sua força de vontade para se
afastar de Shaw e tomar o rumo do poço lunar. Vai dar certo. Tem que dar
certo. A alternativa era impensável.
Filinto mergulhou de cabeça na água azul e convidativa, e então
emergiu sem perder velocidade, batendo braços e pernas, puxando o ar
aos borbotões. Segurava a tocha com uma mão e, com a outra, apanhava
em conchas o líquido precioso para banhar o cabo do artefato. Vamos,
vamos...
A chama tremeluziu branquinha por um instante, depois retrocedeu
para a tonalidade mais escura. Filinto lavava a tocha sem parar, sua atenção
não no artefato, mas em Shaw e no monstro que ele combatia.
Shaw tinha ferido a mulher, lá nas catacumbas. Filinto conseguia
enxergar ao longo do pescoço dela uma linha fina, de uma gosma escura
e espessa. Ela estava mais lenta agora, mas Shaw também. Sua armadura
estava salpicada de sangue, parte dele vermelho e recente demais para
ter saído daqueles cadáveres. A necromante falava algo, mas não eram
palavras mágicas. Pelo menos desta vez.
Shaw estacou por um instante e virou a cabeça para ver Filinto.
Estava escuro, e o olhar foi breve. Filinto não conseguiu entender a

19
expressão de Shaw com clareza. Mas algo que a feiticeira dissera tinha
destruído o homem, e agora ele lançava a Filinto um olhar de tamanha
impotência e tormento que o coração dele quase parou. O que havia dito
ela para abalar a postura estoica de Shaw? Para pintar em seu rosto uma
expressão de pânico tamanho?
A mulher acompanhou o olhar de Shaw e riu. Como os dois deviam
parecer infantis para ela. “Asas sombrias hão de levar tudo aquilo que você
ama”, grasnou para Shaw. “E que grande dia será...”
Rugindo em sua angústia, Filinto mergulhou a tocha no poço lunar.
A chama se apagou.
Ele ficou horrorizado. Então, uma sensação diferente foi subindo-lhe
pelo braço, até tocar-lhe o coração. Alegria. Coragem. Convicção. E ainda
submersa no poço lunar noctiélfico, fulgurou na tocha uma chama alva e
sagrada.
Com um hurra, Filinto saltou do poço lançando-se sobre a necromante,
deliciando-se com a expressão naquele rosto horrendo enquanto ateava
fogo ao manto dela. Ela arquejou, contorcendo-se aos guinchos. As chamas
a consumiram com facilidade, devorando seu corpo, seus cabelos e suas
roupas. Sua pele começou a desprender-se em tiras oleosas. Seus gritos se
converteram numa tosse catarrenta e então em silêncio, quando as lâminas
envenenadas de Shaw perfuraram-lhe o pescoço. A necromante tombou ao
chão, enfim morta, igualzinho aos cadáveres que ela comandava.
Ofegante, Filinto virou-se para Shaw. O homem estava ferido,
ensanguentado e exausto, porém inteiro. Filinto foi cambaleando para

z
perto dele, abraçando-o como se nunca mais fosse soltar.

Filinto sorria ao ver a tocha, devolvida em segurança ao seu posto de


vigília. Ela continuaria a proteger o Morro dos Esquecidos, afugentando as
lembranças ruins e substituindo-as pelo seu alumiar sereno.

20
“Shaw sorriu. Um sorriso simpático,
caloroso e verdadeiro, que deixou
Filinto cheio de si. “Porque”,
respondeu ele, apertando a mão de
Filinto, ‘confio em você.’”

Shaw encontrara uma vigia em patrulha e a mandara de volta para a


Vila Sombria com as boas novas de que pelo menos uma das servas da
escuridão tinha sido derrotada, e de que a Tocha da Chama Sagrada tinha
sido recuperada e purificada.
“Capitão Belvento?” A comandante Ladimore apoiava todo seu peso
no braço do vigia Cortavau. Ela andava com dificuldade, porém com um
sorriso. Assim como em Shaw, os traços da moléstia sobrenatural que
ameaçara consumi-la haviam desaparecido.
“A Floresta do Crepúsculo deve muito a vocês dois”, disse ela. “Vocês
salvaram muitas vidas hoje à noite, inclusive a minha. Se não tivessem
impedido a necromante de corromper a tocha... não seria a primeira vez
que toda uma região cairia nas mãos dos mortos-vivos.”
“Seus vigias é que fizeram o trabalho pesado”, respondeu Shaw. “Graças
ao empenho deles, as mortes na Vila Sombria foram mínimas. Eu sugiro
que dobrem as patrulhas, e mandarei mais guardas de Ventobravo para
ajudar. A necromante insinuou que o perigo ainda não tinha passado.”
Então fitou a tocha, pensativo. “E fique de olhe nisso. Não tire os olhos por
nada.”
“Então, parceiro”, fez Filinto, “depois disso tudo, vamos tomar um
banho e comemorar o serviço bem feito!”
“Vá na frente”, falou Shaw. “Eu tenho umas coisinhas a resolver aqui.”
“Ah, tá, tudo bem. Mas, hã... a gente forma uma bela dupla, não forma?”
“Forma, sim”, respondeu Shaw. O espião observou Filinto por

21
um momento, então aquiesceu, como quem chega a uma conclusão.

z
“Comandante, uma palavrinha?”

Filinto voltou à estalagem, banhou-se e trocou de roupa, sentindo-se


jururu. Ele já meio que esperava que Shaw fosse se atrasar mais uma vez.
Porém quando desceu, Shaw já estava de banho tomado e tinha reservado
dois lugares perto do fogo.
“Até que você se limpou direitinho”, ele provocou Shaw, que, de fato,
tinha se limpado direitinho.
“Eu tenho um presente da Vigília Noturna”, anunciou Shaw enquanto
Filinto se acomodava. “Como não chegamos a concluir nossa caça ao
tesouro, eu lhes passei o mapa. Eles encontraram isto. É um tesouro
preciosíssimo.”
“Aah!” Filinto abria o presente embrulhado em juta, com os olhos
brilhando. Ele caiu na risada ao soerguer o espelho de mão, cujo lustre lhe
conferia um brilho estranho. “Perfeito para um barbear rente.” Ele adorava
uma boa piada. “É precioso mesmo. Eu adoro admirar homens bonitos.”
Shaw não respondeu. O sorriso de Filinto se desmanchou. “O que foi?”
“Eu andei pensando”, fez Shaw, contemplando o fogo. “Sarah tem razão.
Hoje à noite poderia ter sido um desastre. A tocha é um artefato poderoso,
e há um bocado de objetos parecidos, muitos mesmo, e que, por sorte,
estão bem guardados. De tempos em tempos, o rei me manda inspecioná-
los. Mais em paz do que está agora, Azeroth não fica. É o momento
perfeito para uma excursão de inspeção completa, catalogando tudo de
que temos conhecimento.” Ele ergueu os olhos verdes para Filinto, que
sentiu o coração ficar miudinho.
“Eu vou ficar ausente por um bom tempo. Os acontecimentos de hoje
à noite vão parecer um passeio no parque em comparação. Eu estarei
em contato com as minhas fontes, algumas delas disfarçadas, discutindo

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assuntos de estado. Serei levado a esconderijos secretos. Artefatos
inestimáveis serão colocados sob meus cuidados. Vai ter cavernas,
inimigos, fantasmas e criptas. E há sempre a chance de que eu não volte
vivo.”
Filinto sentiu que estavam prestes a separar seus caminhos e percebeu
que não era mais capaz de sustentar o olhar de Shaw. “Isso é por causa
da... bom... quando você estava enfrentando a necromante e eu purificando
a tocha, ela disse alguma coisa. E você olhou para mim... aquele olhar,
Mathias... e ela disse algo sobre asas sombrias e...”
Shaw estendeu o braço e apertou a mão de Filinto bem firme.
“Eu vi, Filinto. Eu vi tudo. Você não encheu nossas bolsas de rum, mas
de bandagens, armadilhas e armas. Você teve a bondade de permanecer ao
lado de alguém que sofria, e a sagacidade de perceber um perigo mortal
a tempo de revertê-lo. Apesar de detestar mortos-vivos, você decidiu
enfrentar dezenas deles em um dos maiores cemitérios do mundo. Você
enfrentou uma criatura perigosa e descobriu como derrotá-la... e ainda
salvou a minha vida. Eu não estou me despedindo, Filinto. Estou pedindo
que venha comigo.”
Filinto arregalou os olhos, esperançoso e desacreditado. “Eu? Por que
eu?”
Shaw sorriu. Um sorriso simpático, caloroso e verdadeiro, que deixou
Filinto cheio de si. “Porque”, respondeu ele, apertando a mão de Filinto,
“confio em você.”
São muitas as frases maravilhosas de três palavras que todo mundo
gosta de ouvir. Eu te amo. Que rum gostoso. Você é lindo. Mas naquele
momento, ele não trocaria o “confio em você” de Mathias Shaw por
nenhuma frase no mundo inteiro.
Ficou sentadinho, com um sorriso abobalhado por um momento, então
limpou a garganta e disse com uma indiferença fingida: “Eu sabia que você
ia me convidar para ir junto.”
Shaw rodopiou os olhos. “Sério?”

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“Ah, sem dúvida.” Filinto cutucou a mão de Shaw com carinho. “Quer
dizer”, continuou, inclinando-se para frente, sua voz cada vez mais suave
à medida que Shaw ia encurtando a distância entre eles, “por que alguém
viajaria... sem um belo vento?”
“Não consigo nem imaginar”, sussurrou Shaw, e deu um beijo nele.

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credits
AUTORA:
Christie Golden

EDIÇÃO:
Chloe Fraboni, Allison Irons

DESIGN:
Betsy Peterschmidt

PRODUÇÃO:
Brianne Messina

CONSULTORIA DE HISTÓRIA DO JOGO:


Justin Parker

CONSULTORIA CRIATIVA:
Ely Cannon, Steve Danuser, Korey Regan

TRADUÇÃO:
Yuri Riccaldone, Flávia Assis

AGRADECIMENTOS:
Jason Campbell, Jamie Cox, Anna Ficek-Madej, Thomas
Floeter, Felice Huang, Ty Julian
Que outros artefatos poderosos e
segredos terríveis o mestre espião
e o aventureiro vão descobrir?
Viaje ao lado de nossa querida
dupla, que vai mergulhar na
história de sua terra natal em
Explorando Azeroth: Os Reinos do
Leste , de Christie Golden!

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