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A EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA COMO ELEMENTO DE

REAFIRMAÇÃO DE PERTENCIMENTO NA COMUNIDADE DE SÃO PEDRO


DOS BOIS
Adrian Kethen Picanço Barbosa1
Silviane Couto de Carvalho2

RESUMO
O objeto desta pesquisa é a Educação Escolar Quilombola, entendida aqui como uma
modalidade de ensino que se constrói como uma unidade entre a educação formal e as
práticas tradicionais vivenciadas nas comunidades quilombolas. Este modelo de educação
tem o intuito de reafirmar e construir o sentimento de pertencimento nos estudantes. De
forma especifica este trabalho irá partir das práticas educacionais da Escola Quilombola
Estadual Teixeira de Freitas, localizada no Quilombo de São Pedro dos Bois (SPB) no
perímetro rural de Macapá–AP. Através de entrevistas pré-definidas com professores/as
e discentes com objetivo de obter dados sobre a implementação da Educação Escolar
Quilombola na referida escola e os efeitos observados desde a utilização destas diretrizes.
O recorte temporal será centrado nos anos de 2012 a 2018, por abranger o processo de
consolidação das legislações e a introdução dessa modalidade de ensino na comunidade
estudada. O quilombo de SPB é categorizado neste trabalho como Quilombo
Contemporâneo, conceito defendido por Moura (2007) e Souza (2012), como forma de
identificar como as comunidades quilombolas se articulam politicamente na busca por
direitos.
Palavras-chave: Quilombo, Educação Escolar Quilombola, Pertencimento.

INTRODUÇÃO
Este artigo pretende discutir sobre a Educação Escolar Quilombola (EEQ) como
elemento de reafirmação de pertencimento na comunidade de São Pedro dos Bois
localizada na área rural da cidade de Macapá no Amapá. A EEQ é entendida neste
trabalho como uma modalidade de ensino que se constrói como uma unidade entre a
educação formal e as práticas tradicionais vivenciadas nas comunidades quilombolas.
Portanto, a escola desenvolve um papel fundamental na promoção de uma educação
antirracista e no fomento e reafirmação da identidade quilombola dos/das estudantes da
comunidade.

1
Mulher negra e quilombola, remanescente das comunidades (limítrofes) São Roque do Ambé e São Pedro
dos Bois. Historiadora e Mestranda no programa de Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do
Pará – PPGSA – UFPA. E-mail: adrianbarbosa267@gmail.com
2
Quilombola, remanescente da comunidade do Médio Itacuruçá, Igarapé São João, Abaetetuba-Pará.
Graduação em Psicologia na Universidade Federal do Pará- UFPA e Mestranda no Programa de Pós-
Graduação em Sociologia e Antropologia- PPGSA-UFPA. E-mail: silvianecarvalho8@gmail.com
Desta maneira essa pesquisa tem como questões norteadoras: Como os/as
estudantes de São Pedro dos Bois enxergam a atuação da escola em relação à reafirmação
de pertencimento? De que maneira a escola percebe sua influência na valorização e
perpetuação da identidade local? Como são aplicadas as diretrizes da Educação Escolar
Quilombola na Escola Teixeira de Freitas?

Tudo isso com o objetivo de compreender o impacto da Educação Escolar


Quilombola no cotidiano dos estudantes e na comunidade e analisar as práticas
pedagógicas da Escola Quilombola Teixeira de Freitas, baseadas nas Diretrizes
Curriculares para a Educação Escolar Quilombola. Para analisar como este processo
acontece, utilizamos como aporte metodológico a pesquisa qualitativa e a história oral. A
pesquisa qualitativa segundo Teixeira (2013, p.137 e 140)

Na pesquisa qualitativa o pesquisador procura reduzir a distância entre a teoria


e os dados, entre o contexto e a ação, usando a lógica da análise
fenomenológica, isto é, da compreensão dos fenômenos pela sua descrição e
interpretação. As experiências pessoais do pesquisador são elementos
importantes na análise e compreensão dos fenômenos estudados. [...]. Na
pesquisa qualitativa, o social e visto como um mundo de significados passível
de investigação e a linguagem dos atores sociais e suas práticas as matérias-
primas dessa abordagem. E o nível dos significados, motivos, aspirações,
atitudes, crenças e valores, que se expressa pela linguagem comum e na vida
cotidiana, o objeto da abordagem qualitativa.

Essa abordagem possibilitou uma aproximação com o campo de pesquisa de


maneira que suprisse a análise dos dados gerados das análises de projetos escolares e
dinâmicas pedagógicas e de nossas formas e ferramentas de investigação. No que diz
respeito à história Oral, utilizá-la como uma metodologia de pesquisa e construção de
fontes possibilitou o registro de declarações de agentes diretos como estudantes do 1º ao
9º ano e professores e professoras que participam do processo de implementação da EEQ
na Escola Quilombola Estadual Teixeira de Freitas.

A análise destes relatos possibilita uma visão ampliada e consistente dos


processos estudados. De acordo com Verena Alberti (2011), a utilização da história oral
em uma investigação demanda tempo e recursos para analisar os elementos que se
apresentarão ao longo da consulta as às fontes. Ainda de acordo com a autora:

[...] uma das principais riquezas da história oral está em permitir o estudo das
formas como as pessoas ou grupos efetuaram e elaboraram suas experiências,
incluindo situações de aprendizado e decisões estratégicas. 3

3
Ibidem. P.165.
Partindo destas considerações, o procedimento adotado para o uso da história oral
seguirá as orientações desenvolvidas por Alberti, relacionada ao trabalho com as fontes
orais, perpassando pelo preparo de entrevistas, a gravação de relatos, a transcrição e a
revisão e análise do material produzido, atentas a suas convergências e divergências no
contexto.

Desenvolvidas em três tópicos, este artigo trata sobre os quilombos, quilombolas


a questão da identidade, especificamente o quilombo contemporâneo de São Pedro dos
Bois e por fim uma discussão sobre a Educação Escolar Quilombola (EEQ), como
elemento de reafirmação de pertencimento na comunidade de São Pedro dos Bois.

QUILOMBOS, QUILOMBOLAS E IDENTIDADE

Quando tratamos de quilombos no Brasil várias narrativas compõem o imaginário


da sociedade brasileira. Em geral as pessoas tem uma imagem e um conceito bem
definidos sobre o que é um quilombo e quase sempre pautados na definição colonial sobre
essas terras e suas populações. A definição colonial para quilombo nos diz que este
território era um local que abrigava negros foragidos dos engenhos e fazendas onde está
esta população fora obrigada a trabalhar em condições desumanas.

Segundo Clóvis Moura (1981), o conceito colonial de quilombos foi referenciado


a pela primeira vez em documentos oficiais portugueses datados de 1559; contudo,
somente em 1740 o Conselho Ultramarino define-o como “toda habitação de negros
fugidos que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos
levantados nem se achem pilões neles” (MOURA, 1981, p.16) . A estrutura social racista,
a história e o mito da democracia racial aos moldes de Gilberto Freyre4 fomentaram o
imaginário errôneo sobre essas movimentações de resistência das/dos negros e negras
escravizados no Brasil.

É importante ressaltar que a formação de quilombos no Brasil não está ligada


somente ao ato de resistência das fugas, mas, de acordo com a Coordenação Nacional de
Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), as comunidades
quilombolas “foram estabelecidas em terras oriundas de heranças, doações, pagamento

4
FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala, 50ª edição. Global Editora. 2005
em troca de serviços prestados ou compra de terras, tanto durante a vigência do sistema
escravocrata quanto após sua abolição.”5

O conceito de quilombo passou a ser atualizado a partir da década de 1970, mas


foi na década de 1980 que a questão quilombola emergiu como uma pauta frequente no
cenário de social e político nacional. Isso aconteceu muito em virtude da constituinte que
acentuou a movimentação de todos os grupos que visavam garantir que pautas
importantes para seus coletivos fossem incluídas no processo.

Com a redemocratização, houve uma abertura para discussões políticas, culturais


e econômicas de novos sujeitos sociais diante da Constituição de 1988. De acordo com
Souza (2008. p.03):

A Constituição de 1988 representa, portanto, um divisor de águas ao incorporar


em seu conteúdo o reconhecimento de que o Brasil é um Estado pluriétnico,
ao reconhecer que há outras percepções e usos da terra para além da lógica
privada e ao reconhecer o direito à manutenção da cultura e dos costumes às
comunidades e povos aqui viventes.

Essa virada nas perspectivas étnicas culminou em uma ferramenta jurídica que é
o Art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que reconhece as terras e
populações quilombolas, prevendo a emissão de seus respectivos títulos de posse. O
reconhecimento na constituição evidencia a existência de grupos como os quilombolas,
que uma vez reconhecidos passam a reafirmar sua identidade e reivindicar para sua
população políticas públicas especificas, assim como o usufruto de direitos essenciais
como educação, saneamento básico, transporte e saúde.

Todo esse processo histórico de luta fomenta uma ressignificação do conceito de


quilombo, os quais passam a não mais serem vistos como “terra de negros fugidos”.
Atualmente, de acordo com Nascimento e Silva (2012 p.24), os quilombos passam a ser
entendidos como “pontos de resistência e reafirmação de seus direitos”.

Esses atos de resistência se espalharam por todo o território nacional. No que diz
respeito à formação dos quilombos na Amazônia, a inserção da mão de obra negra em
condição de escravizados se intensificou no período da administração pombalina (1750-
1777), esta que teve impacto direto na organização das terras do cabo norte 6 administradas
pela colônia portuguesa. De acordo com Funes (1996, p.470):

5
Informação retirada do site: < http://conaq.org.br/quem-somos/ > Acesso em: 06/10/2020 as 19:00h
6
Eram chamadas Capitanias do Cabo Norte eram os territórios de Grão-Pará e Maranhão que hoje
correspondem aos estados de Pará e Amapá. Ver: MORETTI, Luiza. "Capitania do Cabo Norte". In:
A escravidão negra na Amazônia não foi tão expressiva em termos
quantitativos [...], todavia, mesmo dividindo o mundo do trabalho com o
indígena, o negro constituiu uma parcela significativa da mão de obra, em
especial na agropecuária, serviços domésticos e atividades urbanas.

Ao longo do período da administração pombalina a mão de obra negra foi utilizada


principalmente para a construção de fortificações, sendo a principal delas a Fortaleza da
Villa de São José de Macapá7. As condições desumanas de trabalho intensificaram as
práticas de resistência, como as fugas, que, segundo Luna (2011), passaram a ser
registradas em 1765 logo após o início da construção da fortificação, e foi a partir delas
que inúmeros quilombos se formaram ao longo das matas e vales do hoje território do
Amapá.

Falar sobre esses processos históricos de resistência perpassa por reafirmar a


identidade quilombola, este sentimento de pertencimento que compreendemos como uma
construção coletiva acerca dos valores históricos, culturais, sociais e econômicos. Para
Hall (2006) a identidade é definida historicamente, e não biologicamente. Dessa sorte, as
características históricas dos grupos quilombolas, como a relação ancestral com o
território, os laços de solidariedade, a vida em comunidade, a oralidade, entre outros,
estão diretamente ligadas com a sua identidade.

Esses elementos reafirmam a identidade e a ampliação do conceito de quilombo


para uma ideia de resistência faz surgir uma nova forma de categorizar as comunidades
remanescentes de quilombo. Estes podem ser caracterizados como quilombos
contemporâneos, conceito defendido por Moura (2007) e Souza (2012), como forma de
identificar os quilombos que se articulam politicamente na busca por direitos.

Para Almeida (1996), na atualidade a ideia de quilombo expressa dignidade a


seus/suas remanescentes devido à sua capacidade de mobilização para negar estigmas
deixados pelo sistema escravocrata e reivindicar cidadania na narrativa de Brasil. Neste
artigo categorizamos a comunidade de São Pedro dos Bois, comunidade aqui analisada,
como um Quilombo contemporâneo.

BiblioAtlas - Biblioteca de Referências do Atlas Digital da América Lusa. Disponível em:


<http://lhs.unb.br/atlas/Capitania_do_Cabo_Norte. > Data de acesso: 06 de outubro de 2020 às 20:56h.
7
Cf. CASTRO A. H. F. O fecho do Império: História das Fortificações do Cabo Norte ao Amapá de Hoje.
In: Gomes F.S. (Org.). Nas Terras do Cabo Norte: Fronteiras, Colonização e Escravidão na Guiana
Brasileira Séculos XVIII/XIX. Belém, Editora Universitária/UFPA, 1999, p.129-193.
QUILOMBO CONTEMPORÂNEO DE SÃO PEDRO DOS BOIS

São Pedro dos Bois é uma comunidade quilombola localizada no vale do rio
Pedreira no Estado do Amapá. Este quilombo fica no perímetro rural de Macapá, capital
do estado, tendo acesso pela BR 156. Historicamente este quilombo se formou a partir
de dois tipos de ocupações.

Segundo Ribeiro e Silva (2018, p.32), a área que hoje corresponde a São Pedro
dos Bois [a] começou a ser ocupada por volta de 1790 por “Gregória Ramos de Almeida
e seus três irmãos, trazidos da África para trabalhar na construção da fortaleza de São
José de Macapá”. Esta mulher negra e sua família se refugiaram no vale do Rio Pedreira
como forma de resistir ao sistema escravocrata que os explorava de maneira desumana.

A segunda ocupação foi feita por uma fazendeira branca chamada Ana Mininéia
Barriga, que era detentora de muitas cabeças de bois e quando precisou de espaço
solicitou a Gregória Ramos, e com essa permissão se estabeleceu também naquele vale.
Segundo as informações levantadas por Ribeiro e Silva (2018) foi Ana Barriga que
nomeou aquelas terras como São Pedro dos Bois em virtude da quantidade de bois
existente em sua posse e a data a qual a organização das terras em pequenos retiros para
cuidados do gado terminou, próxima ao dia de São Pedro, 29 de junho.

Essas duas mulheres são a gênese da comunidade quilombola de São Pedro dos
Bois e, a partir disso, deram origem a uma comunidade que, de acordo com Ribeiro e
Silva (2018), no Levantamento Fundiário do Território Quilombola de São Pedro dos
Bois, reúne 106 famílias remanescentes quilombolas que habitam o território.

Esta comunidade se articulou politicamente e socialmente para reivindicar


políticas públicas que pudessem melhorar a qualidade de vida de sua população e
assegurar-lhes o território. A partir disso, a Associação dos Moradores Produtores e
Folclórica da Comunidade Quilombola de São Pedro dos Bois – ASPEB passou a liderar
essa busca pela efetivação de direitos dentro da comunidade, conseguindo inúmeros
projetos socias, inclusive o processo de autodefinição e autodeclaração quilombola no
[processo do] Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA.
Através do processo público Nº 54350.000174/2006-258, a comunidade de São
Pedro dos Bois solicitou em 2005 o reconhecimento, identificação, delimitação,
demarcação e titulação do território, e, no mesmo ano, a comunidade se autodeclarou
como “remanescente de quilombo”, através de requerimento assinado pela ASPEB com
a anuência da comunidade para tal pedido. Neste interim o Incra iniciou o procedimento
de titulação da comunidade.

São Pedro dos Bois já passou pelas fases de elaboração do relatório técnico de
identificação e delimitação (RTID), e posteriormente teve sua portaria de reconhecimento
emitida no Diário Oficial da União. O processo encontra-se atualmente na fase de
“Decreto de Desapropriação” para a retirada de imóveis e pessoas não pertencentes à
comunidade, e posteriormente espera-se que venha a titulação. O processo é longo e cheio
de empecilhos, a referida comunidade já espera 14 anos pela titulação.

Este quilombo contemporâneo tem lutado em várias frentes para garantir o bem
estar de sua população tradicional; contudo, um tema que ganha destaque dentro deste
território é o direito à educação e como este se tornou um elemento fundamental de
reafirmação de identidade dentro da comunidade.

A EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA COMO ELEMENTO DE


REAFIRMAÇÃO DE PERTENCIMENTO NA COMUNIDADE DE SÃO PEDRO
DOS BOIS

Em um contexto pós Durban9, houve um crescimento nas reivindicações e


formulações de políticas afirmativas voltadas para o povo negro e quilombola no Brasil.
Uma das frentes mais intensas de reivindicações é no âmbito da educação onde esses
movimentos questionam as estruturas educacionais no Brasil e exige a inserção de grupos
como os quilombolas no hall de atenção das deliberações educacionais e exige a inserção
de grupos quilombolas nas deliberações educacionais.

8
INCRA, pesquisa pública de processo. Disponível em:
<https://sei.incra.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_processo_pesquisar.php?Acao_externa=protocol
o_pesquisar&acao_origem_externa=protocolo_pesquisar&id_orgao_acesso_externo.> Acesso em:
10.10.2020.
9
Cidade onde aconteceu a I Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia
e as Formas Conexas de Intolerância, ocorrida em 2001. Resultou na Declaração de Durban e ações que
direcionassem as intenções discutidas na conferência, se tornando um marco importante nas discussões
sobre o racismo.
Desta maneira surgem legislações como a Lei 10639/03, que institui a
obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileira e africana nas instituições
de ensino públicas e privadas, e posteriormente a Resolução Nº08 de 2012 do Conselho
Nacional de Educação (CNE) que estabelece as Diretrizes Curriculares para a Educação
Escolar Quilombola (DCEEQ).

As DCEEQ, em seu texto normativo estabelece que a Educação Escolar


Quilombola é uma modalidade de ensino que fomenta a inserção dos valores quilombolas
nos currículos das escolas localizadas em comunidades tradicionais reconhecidas e auto
afirmadas enquanto quilombolas, e em escolas que atendam uma grande demanda de
estudantes remanescentes de quilombo.

Portanto, esta modalidade de ensino, segundo a Cartilha das Diretrizes


Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola, (2011. p.13), deve

[...] ter como referência valores sociais, culturais, históricos e econômicos


dessas comunidades. Para tal, a escola deverá se tornar um espaço educativo
que efetive o diálogo entre o conhecimento escolar e a realidade local, valorize
o desenvolvimento sustentável, o trabalho, a cultura, a luta pelo direito à terra
e ao território. Portanto, a escola precisa de currículo, projeto político-
pedagógico, espaços, tempos, calendários e temas adequados às características
de cada comunidade quilombola para que o direito à diversidade se concretize.
Essa discussão precisa fazer parte da formação inicial e continuada dos
professores.

Desta maneira, a Educação Escolar Quilombola se coloca como um elemento


entre a educação formal e as vivências, histórias e culturas das comunidades quilombolas.
Vale ressaltar ainda que a EEQ é uma modalidade de ensino obrigatória e dentro do
sistema educacional nacional, e por isso nela estão inseridas as modalidades já correntes
na educação brasileira, como a Educação de Jovens e Adultos e a Educação Especial,
porém abrangendo as especificidades quilombolas.

A Educação Escolar Quilombola, apesar de obrigatória, ainda não é uma


modalidade implementada de maneira efetiva nas escolas dentro de comunidades ou que
recebem estudantes remanescentes de quilombo. Ela sofre atravessamentos devidos ao
dos órgãos reguladores educacionais e também do ao racismo estrutural10 que a coloca
como uma política pública secundária na ordem de execução sendo um empecilho para o
efetivo funcionamento da mesma.

10
Manifestação do Racismo nas estruturas da sociedade e em suas instituições. Ver: Carmichael, S. e
Hamilton, C. Black power: the politics of liberation in America. New York, Vintage, 1967, p.
Partindo do entendimento do que é a EEQ e em qual contexto esta política pública
se estrutura, podemos compreender então como a comunidade Quilombola de São Pedro
dos Bois se relaciona com a Escola Quilombola Estadual, localizada dentro deste
território.

A Escola Quilombola Teixeira de Freitas é uma instituição de ensino que caminha


na construção da sua identidade juntamente com a luta por reconhecimento da
comunidade. Estruturalmente é uma escola nova, inaugurada em 2018, porém a
instituição já existe na comunidade desde meados de 1960. Pedagogicamente se organiza
através de planos pedagógicos anuais.

A referida instituição ainda não tem um Projeto Político Pedagógico (PPP)


construído, entretanto, os planos pedagógicos anuais, tem suprido este documento de
maneira provisória. Através deles, a escola tem implementado as Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação Escolar Quilombola, promovendo a inserção da história local
nos planejamentos dos/das discentes, adaptando o calendário escolar ao calendário da
comunidade, privilegiando as comidas regionais no cardápio escolar e, principalmente,
envolvendo de maneira democrática a comunidade nas atividades escolares.

Em relação a estas atividades, podemos destacar o projeto Batuque, que é uma


ação que acontece no segundo semestre de todo ano letivo. Este projeto surgiu porque a
escola percebeu/observou que os grupos mais jovens da comunidade estavam se
afastando de suas origens étnicas e desta maneira formularam uma atividade anual com o
objetivo, segundo o Projeto Batuque (2011, [n.p.]) de

Fomentar a valorização da produção popular como um patrimônio cultural da


história do povo da comunidade Quilombola de São Pedro dos Bois, para
conhecer e compreender com uma visão crítica a história da comunidade
afrodescendente brasileira tão importante na constituição de nosso país.
Este projeto é executado por temáticas11 que possibilitam aos/as às estudantes uma
percepção ampliada sobre a cultura, a história e a memória, envolvendo metodologias
diferenciadas, como pesquisa de campo, entrevistas com os mais velhos da comunidade,
e levantamento de dados históricos, entre outros. Além disso, o projeto também

11
Geográfico, histórico e cultural local (2011), Nosso Folclore, nossa cultura! (2012), Um olhar do
educando no seu cotidiano (2013), Revivendo as tradições (2014), A história de uma caminhada (2015),
Não teve por falta de verbas (2016 e 2017), Eu quilombola? - Quem sou? De onde vim? Para onde vou?
(2018)
proporciona o compartilhamento e alinhamento de saberes entre o currículo “formal” e
os saberes tradicionais da comunidade.

Ao longo da execução do Projeto Batuque 2018 conversamos com estudantes da


escola Teixeira de Freitas e utilizamos a história oral como uma ferramenta de produção
de narrativas a partir dos sujeitos diretos da EEQ, os/as estudantes. De acordo com
Lozano (2006, p.17)

A História Oral é um procedimento destinado à constituição de novas fontes


para a pesquisa histórica, com base nos depoimentos orais colhidos
sistematicamente em pesquisas específicas, sob métodos problemas e
pressupostos teóricos explícitos.
Neste caso, realiza-se uma entrevista gravada12 para compreender de que maneira
os/as estudantes da Escola Quilombola Teixeira de Freitas estão percebendo a inserção
de seu cotidiano cultural na rotina escolar. Para isso, numa pequena e informal roda de
conversa, levantamos duas questões para os/as discentes quilombolas.

• As aulas tem abordado a História Local? (1)


• Você vê elementos da cultura quilombola em sala de aula? (2)

Gravamos as respostas das crianças e adolescentes e para este método de


entrevistas concordamos com Alberti (2005, p.155), que diz que as entrevistas
gravadas podem trazer à tona “acontecimentos e conjunturas do passado e do
presente”, em que os/as entrevistados participaram, e neste caso entram o ano
letivo e o Projeto Batuque 2018.

As perguntas indicadas acima foram feitas a um grupo de 7 estudantes nomeados


neste trabalho como “A, B, C, D, E, F, G”13, selecionados de séries variadas entre o 1º e
9º ano, todos e todas pertencentes à comunidade de São Pedro dos Bois. As crianças e
adolescentes figuraram em uma média de idade de 6 a 16 anos, o que demonstra espectros
diferentes de captação da execução da Educação Escolar Quilombola na referida escola.

As questões feitas aos estudantes geraram respostas interessantes que apontam a


gradual efetividade da implementação da EEQ enquanto uma modalidade de ensino na
Teixeira de Freitas. Referente à pergunta (1) os/as 7 estudantes responderam que as aulas
tem abordado a história local nas atividades pedagógicas realizadas ao longo dos
bimestres, e a partir disso este grupo de discentes identificou diversos elementos de sua

12
A entrevista com os/as alunos/alunas foi gravada no dia 23 de novembro de 2018
13
Utilizamos tal nomenclatura para preservar a identidade dos/das estudantes.
cultura em sala de aula. No quadro abaixo listaremos a transcrição das repostas dos/das
estudantes:

Quadro I - Transcrições das respostas dos/das estudantes


Pergunta 2: Você vê elementos da cultura quilombola em
sala de aula?

Repostas

A (15 anos): “Nesta escola a história do quilombo é sempre


abordada com elementos frequentes como o batuque.”

B (16 anos): “O projeto batuque, as aulas de história se fala14


muito.”

C (08 anos): “O ensino, Batuque, Religião.”

D (07 anos): “A comunidade!”

E (07 anos): “Religião, batuque, comidas típicas, atividades sobre


a comunidade.”

F (06 anos): “Batuque, religião, negros, dança.”

G (09 anos): “Batuque, negros e jeito que vivem, religião


quilombola .”

Fonte: produzido pelas autoras 2018

As repostas apresentadas pelos estudantes demonstram uma dimensão prática do


funcionamento da Educação Escolar Quilombola, no tocante aos elementos citados nas
repostas, como: “negros”, “dança”, “ensino” e “religião” estão diretamente ligados ao
cotidiano da comunidade de São Pedro dos Bois e a percepção dos/das alunos/alunas
evidencia como os/as docentes tem feito essa correlação nas atividades pedagógicas 15 de
cada bimestre.

14
Transcrição literal da fala inclusive com os erros gramaticais.
15
Devido ao espaço limitado não trouxemos para este artigo uma análise aprofundada dos planos de aula
dos professores e professoras da escola, contudo, destacamos que os mesmos fazem adaptações para que o
cotidiano da comunidade esteja relacionado aos assuntos de cada bimestre orientados pela EQQ.
A inserção das temáticas da história local aguçou o interesse dos/das estudantes,
fato relatado pelo professor Antônio Barbosa16: “O interesse é nítido, o que nos deixa
muito satisfeitos como colaboradores e incentivadores da manutenção da cultura local e
também do autoconhecimento proposto aos alunos e comunidade geral.”

Ao longo da entrevista com outros professores e professoras todos e todas


relataram que fizeram alterações em seus planos de aula e outras ferramentas pedagógicas
para atender às especificidades quilombolas daquela escola e, principalmente, ressaltaram
o impacto positivo da EEQ no aprendizado das turmas que são responsáveis.

Esses relatos são importantes porque salientam a sensibilidade do corpo docente


para com a implementação efetiva da EEQ na referida escola. Dessa sorte, retomo a um
dado especifico das respostas (Quadro I) dos/das discentes da Teixeira de Freitas, para
destacar que a palavra “Batuque”17, que aparece em todas as repostas.

O Projeto Batuque anteriormente apresentado é o carro chefe das atividades


pedagógicas da escola Teixeira de Freitas e o Batuque é a maior expressão cultural da
comunidade, e por isso, e essa é a razão deste este elemento estar presente em todas as
repostas dos/das estudantes. Esse fato aponta que há de fato essa aproximação entre a
instituição de ensino e a vivência da comunidade quilombola de São Pedro dos Bois,
tornando a escola peça importante na perpetuação da identidade e pertencimento
quilombola neste quilombo.

O impacto da implementação da EEQ, enquanto modalidade de ensino na


comunidade de São Pedro dos Bois, estão está presentes nos relatos de Anny Picanço18,
(Apud BARBOSA, 2019, p.67) secretária da escola Teixeira de Freitas:

“Então hoje, através dos alunos que por ali já passaram e os que ainda estão na
escola, sei que a gente construiu um legado de conhecimento e não fui eu,
fomos todos nós. Pois ao longo desse trabalho da educação escolar quilombola

16
Professor estadual que atua na escola há mais de 10 anos, ele também tem raízes familiares na
comunidade quilombola vizinha que é a comunidade de São Roque do Ambé. A entrevista foi realizada no
dia 26 de novembro de 2018.
17
De acordo com CANTO (2018) é uma parte do conjunto de atos que acontecem em louvor aos santos
[...] ocorre durante e após as obrigações religiosas de uma vasta programação festiva, na qual os membros
dessas comunidades têm grande e ativa participação. Consiste ainda na música e dança próprias,
caracterizados pelo ritmo rápido produzido por instrumentos rusticamente confeccionados por artesãos
locais. In: < https://www.blogderocha.com.br/nossos-batuques-por-fernando-canto/ > Acesso em:
22.10.2020

18
Trabalha há dez anos da escola é remanescente quilombola da comunidade de São Roque do Ambé, e
tem laços familiares com São Pedro dos Bois, além disso, tem experiência com trabalho docente em
comunidades rurais, ribeirinhas e quilombolas, além de ser especialista em gestão escolar.
a gente não faz nada sozinho, no máximo tu dá um norte, faz um esqueleto do
que se deve fazer e as pessoas vão atrás e as pessoas se envolvem, aprendem e
ensinam. Não tem quem não aprenda, não tem quem não ensine é muito
gratificante você ver nos olhos de uma criança ela aprendendo sobre a origem
dela, sobre através daquilo que ela gosta e que vê dentro da comunidade dela,
o porquê daquilo é como se tu tivesses dando para a vida das pessoas, ou
melhor, ajudando a ressignificar a vida das pessoas.”

A Educação Escolar Quilombola dentro da comunidade de São Pedro dos Bois


tem funcionado para além de seus objetivos técnicos educacionais como um elemento de
reafirmação do sentimento de pertencimento quilombola, como está evidenciado no relato
acima. Isso implica diretamente na forma como os/as estudantes vão se posicionar na
estrutura social a partir do que aprenderam na escola: a não se verem como o lado “fraco”
ou “subjugado” da história, mas sim como remanescentes de grupos resistentes que
originaram seu modo de vida específico.

Esse tipo de resultado positivo implica diretamente na necessidade de se atentar


para a implementação efetiva desta política pública em outras escolas quilombolas de
modo a alcançar mais estudantes remanescentes de quilombo e formando grupos
advindos desses espaços fundamentados em uma educação antirracista para ocupar outros
lugares que lhes foram historicamente negados, como o próprio mercado de trabalho e o
ensino superior e, para além de tudo isso, possibilitar uma melhora na qualidade de vida
das comunidades quilombolas e suas populações.

Considerações Finais

Este artigo discutiu a Educação Escolar Quilombola (EEQ) como um elemento de


ressignificação da identidade quilombola na comunidade de São Pedro dos Bois. Neste
ínterim, compreendemos a EQQ como uma modalidade de ensino que, a partir de seu
texto normativo (Resolução Nº08/2012), atende as às especificidades educacionais das
comunidades quilombolas no país.

Com este entendimento, discutimos sobre a experiência da Escola Quilombola


Estadual Teixeira Freitas que, de maneira gradual, tem inserido em seus planejamentos
pedagógicos a referida modalidade de ensino, tendo como projeto escolar principal o
“Projeto Batuque”, que tem o objetivo de ajudar na reafirmação do sentimento de
pertencimento quilombola dos/das estudantes de São Pedro dos Bois.

Através da pesquisa qualitativa e da história oral esta pesquisa proporcionou


análises interessantes que apontaram que existe um despreparo dos órgãos reguladores da
educação que causam uma lentidão no processo de implementação da EEQ nas
comunidades e suas escolas, e é este um fator a ser investigado de maneira mais profunda.
Além disso, observa-se também que esses processos são atravessados pelo racismo
estrutural, que cria barreiras subjetivas, porém, efetivas para a execução da EEQ de uma
maneira mais ampla nas escolas quilombolas.

Por fim, a partir da experiência positiva da escola Teixeira de Freitas,


evidenciamos a necessidade de se fundamentar a implementação da EEQ para que haja
uma formação mais adequada nas escolas da educação básica que estão inseridas nas
comunidades quilombolas ou recebem um grande quantitativo de estudantes
remanescentes de quilombo. Fortalecer e reafirmar essas identidades através da educação
é um ponto chave para uma sociedade mais plural e democrática.

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