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Resumo
A autora traz um caso de atendimento de uma mãe e de sua filha com risco de autismo que não
vem respondendo ao tratamento, visando articular a devastação na relação mãe-filha como um
dos impasses para a melhora da paciente.
Palavras-Chave
Devastação Risco de autismo Relação precoce mãe-filha
Continuamos a utilizar, como princi- Com cerca de dois mil bebês já estu-
pal referência teórica em nosso trabalho, dados, analisando vídeos caseiros dos pri-
as obras da psicanalista Marie-Christine meiros meses de vida, Laznik escreve, nos
Laznik (1991, 1997, 2004) desenvolvi- comentários à minha pesquisa de mestrado
das a partir do corpo teórico de Jacques defendida em fevereiro de 2006 no Pro-
Lacan que sustenta uma intervenção grama de Pós-Graduação em Psicologia da
psicanalítica precoce em bebês com sinais UFMG , que considera haver um fecha-
de autismo. Sua hipótese é de que é possí- mento primário precoce da criança, por
vel uma evolução clínica muito mais fa- uma hipersensibilidade ao Outro a ser es-
vorável para os casos de risco de autismo clarecida e que, secundariamente, o agen-
desde que atuemos logo nos primeiros me- te que faz a função materna pára, por
ses de vida com a mãe e o bebê. A autora exaustão, de buscar o contato com o bebê,
já tem três casos publicados em seu livro que não se oferece a ela.
Rumo à palavra. Três crianças autistas em Laznik dialoga com outras áreas do
psicanálise (1997). saber, como, por exemplo, a psicologia do
Laznik atualmente coordena uma pes- desenvolvimento, a psicolingüística, a psi-
quisa multicêntrica sobre o tema da inter- cologia comportamental, a psiquiatria, a
venção precoce em bebês com risco de pediatria, entre outras. Esse diálogo tam-
autismo na França e na Itália, que deverá bém foi necessário em minha pesquisa de
estudar cerca de 25.000 casos. Falamos aqui mestrado e deverá continuar na de douto-
em risco de autismo porque alguma inter- rado.
venção que possibilite uma adaptação dos Desde meu interesse pelo tema do tra-
pais à especificidade da hipersensibilidade balho com bebês com risco de autismo, tive
e do fechamento autístico de seu bebê ain- a oportunidade de atender a quatro casos.
da pode acontecer, pois contamos mesmo Três entre os quatro casos atendidos res-
assim com uma certa permeabilidade da ponderam bem ao tratamento e uma paci-
estrutura a novas inscrições. ente, que chamei de Cristiana, não vem
respondendo bem.
Cristiana, que será foco principal deste
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Resumo do projeto de pesquisa apresentado e aceito pelo
Programa de Pós-Graduação em Psicologia para seleção
trabalho e da futura pesquisa, tem três anos
ao Doutorado na Universidade Federal de Minas Gerais. e oito meses. É atendida há um ano e oito
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Isabela Santoro Campanário
meses, porém não apresentou melhora tão Para eles até fazer xixi é mais fácil, em pé.
significativa da sintomatologia autística Demorou vários meses a aceitar a gesta-
quanto os primeiros pacientes recebidos. ção, tendo sido finalmente convencida
A criança iniciou agora a pré-escola pela sua mãe de que é muito bom ter uma
regular inclusiva. Brinca sozinha e ainda filha mulher para enfeitar, colocar vesti-
não fala, emitindo apenas alguns sons (la- dinhos e lacinhos.
lação). Ainda não apresenta júbilo quan- Valeska fala da própria mãe: Ela tam-
do levada diante do espelho. bém sofreu muito na mão de meu pai e é
Minha expectativa é de, através da dessa época que acha que mulher tem que
escrita, trazer subsídios teórico-clínicos agüentar tudo.... As convulsões de difícil
para que seja ainda possível que a criança controle de Cristiana remeteram também
e a mãe respondam ao tratamento. a mãe à história da bisavó da criança, ou-
Já sabíamos, pela experiência de Laz- tra mulher infeliz no casamento e porta-
nik (2004), que o atendimento precoce dora de uma epilepsia grave, que acabou
pode oferecer melhores resultados clínicos ocasionando sua trágica morte por afoga-
do que o tratamento iniciado em idades mento numa banheira teve uma crise
mais avançadas, porém a autora sempre convulsiva durante o banho e não foi so-
deixou claro que não havia garantias de corrida a tempo.
melhora para todos os pacientes. Porém, Este caso nos traz questões transgera-
sempre nos ocorre a pergunta: o que difi- cionais relativas ao feminino. Por que o
culta Cristiana de se ligar ao Outro? fato de estar grávida de uma menina foi
Recebo-a aos dois anos apresentando tão insuportável para a mãe? Tentaremos
um fechamento autístico grave, que se ini- localizar teoricamente por que tanto hor-
ciou nos primeiros meses de vida sem ser ror diante do feminino por parte desta mãe.
notado pelos pais. Apresentava também
convulsões de difícil controle desde um ano A devastação
de idade. Os primeiros seis meses de trata- Seria útil explorarmos o conceito de
mento foram muito angustiantes, pois Cris- devastação, termo que Lacan emprega ini-
tiana geralmente chegava sedada pela tro- cialmente para qualificar a relação mãe-
ca freqüente de anticonvulsivantes. Quan- filha e posteriormente em relação ao par-
do acordava, suas crises convulsivas repe- ceiro amoroso devastador.
tidas paralisavam a fala da mãe e, talvez, a A devastação é diferente da reivindi-
minha escuta. cação fálica (Soler, 2005, p.186). Pode até
Ainda assim, muitos elementos da fala ser combinada com ela, mas não se resu-
materna puderam ser recolhidos. Cristia- me a uma questão fálica. Diante do gozo
na é a terceira filha, após dois meninos. O outro, feminino, o sujeito se divide entre
casamento dos pais vinha mal há muitos a abolição subjetiva e o Outro absoluto.
anos devido ao alcoolismo e uso de drogas Teria Valeska, diante do fato de ser mãe
do pai. Quando engravidou de Cristiana, de uma menina, ora ficado dividida en-
a mãe, Valeska, não queria mais filhos, pois tre o seu desaparecimento enquanto su-
pensava em se separar do marido. jeito desejante, ora se colocado em posi-
No entanto, esta dificuldade em acei- ção de Outro absoluto? Como se apre-
tar a gestação aconteceu também quando sentaria esse Outro absoluto? Como lin-
grávida dos dois primeiros filhos. Qual o guagem bruta, não modulada pelos pi-
fato novo, gerador de mais angústia? O fato cos prosódicos de alegria e de surpresa
de ter descoberto que o bebê seria uma próprios do manhês, que seriam neces-
menina. Falas da mãe: Ser mulher é mui- sários para atrair a criança para a aliena-
to mais sofrido, tem cólica, menstruação. ção fundante?
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Os efeitos da devastação na relação mãe-filha em um caso de risco de autismo
filho cuja morte se desejara. Esse dado Quando o gozo feminino assume a
clínico vem esclarecer o termo devasta- supremacia, há um desequilíbrio entre o
ção (BROUSSE, 2004, p.63). lado mãe e o lado mulher. Winnicott nos
dizia que a mãe deveria ser apenas sufici-
Seguindo Brousse, o desejo da mãe está entemente boa para que a criança viesse a
longe de ser totalmente saturado pelo sig- se constituir de maneira saudável. Com o
nificante fálico. Há na mãe, ao lado do estudo da obra de Lacan, passamos a com-
desejo, um gozo desconhecido, feminino. preender que a mãe suficientemente boa é
Lacan trabalha esta questão no seminário aquela suficientemente mulher, no senti-
sobre o desejo e sua interpretação, nas ses- do de abrir caminho para a função pater-
sões dedicadas a Hamlet, apontando para na. Nosso trabalho deverá investigar o efei-
o gozo feminino, não limitado pelo falo, to da supremacia do gozo feminino na re-
presente na mãe de Hamlet. lação mãe-filha em um caso de risco de
A devastação compõe-se de uma face autismo.
fálica reivindicatória do desejo da mãe e Procuramos abordar como a teoria
outra, não toda fálica, ligada à dificuldade pode servir ao caso e não o contrário, ex-
de simbolizar o gozo feminino. plicitando os limites da teoria em relação
Resumindo, a devastação deve-se ao ao caso clínico, o qual será o eixo central
modo particular como a linguagem emerge do trabalho para interrogar a teoria, mé-
em cada sujeito, referindo-se ao Outro pri- todo freudiano por excelência.
mordial; situa-se no momento da introdu-
ção traumática do sexual embora não ex- Os impasses da clínica
clua o falo, não o coloca em termos de tro- O tratamento de Cristiana começou
ca ou perda; a devastação é conseqüência com um impasse. Um familiar assistiu a
do arrebatamento3 devido à falta de signifi- minha defesa de mestrado e forneceu aos
cante da mulher. Valeska se sente sugada pais da paciente um diagnóstico precoce
por Cristiana. Olha como ela acabou com de risco de autismo, o que foi extremamen-
meus peitos? diz a mãe. Ela deixou de tra- te difícil de trabalhar com a família poste-
balhar para levar a filha aos tratamentos que riormente. A mãe busca ajuda, ainda que
se fizeram necessários, ficando ainda mais à de maneira pouco freqüente, faltando
mercê do marido por passar a depender dele muito aos atendimentos, dificultando os
economicamente. Não tenho tempo nem horários e dizendo não mais poder pagar
para fazer as unhas, me arrumar.... Agora meus atendimentos (que se iniciaram no
sou só mãe... esqueci-me do que é ser mu- consultório e estão sendo feitos atualmen-
lher afirma Valeska. te pelo SUS). No entanto, entrega-me fi-
tas com filmagens caseiras de todo o pri-
É esse o núcleo da devastação: é o gozo meiro ano de Cristiana e me autoriza a es-
outro que devasta o sujeito, no sentido tudar e publicar o caso. Já o pai boicota os
forte de aniquilá-lo pelo espaço de um atendimentos, por não querer saber de
instante. Os efeitos subjetivos deste eclipse outros problemas além da epilepsia em re-
nunca faltam. Vão da mais leve desori- lação à filha. Para ele, a única questão de
entação até a angústia profunda, passan- Cristiana eram as convulsões de difícil con-
do por todos os graus de extravio e evita- trole.
ção (SOLER, 2005, p.185). Este caso nos coloca muitas questões:
estaria o bebê com risco de autismo reco-
berto pelo fantasma fundamental materno,
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O arrebatamento está ligado ao ter um corpo que pode ser
extraviado. É uma forma de perda corporal não simbo-
ou a criança se encontra em posição de
lizável, uma não inscrição do corpo no desejo do Outro. objeto a, anterior mesmo à mediação do
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Os efeitos da devastação na relação mãe-filha em um caso de risco de autismo
RECEBIDO EM 02/05/2008
APROVADO EM 07/05/2008
SOBRE O AUTOR