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Laicidade do Estado Brasileiro: realidade ou utopia?

Por Xɛ́byosɔnɔ̀ Alberto Jorge Silva Ọba Méjì*

Faz um pouco mais de três décadas que me fiz agente da promoção da Laicidade do Estado,
acreditando que a Constituição Cidadã do Brasil se faria respeitar em todos os espaços.

Ser da Sacralidade de Matriz Africana, Ameríndia, ou de alguma outra forma de religiosidade que
não seja das grupos dominantes, é um desafio, um risco constante.

Ainda que muitos acreditassem que a quebra dos Xangôs no Nordeste do Brasil fosse uma página
virada na história, que os ventos da Democracia nos permitiria viver em situação de igualdade,
respeito e dignidade, o passar dos tempos nos revelou um grave e triste retrocesso.

As grandes religiões, que nos últimos cinco mil anos lutaram e ainda hoje competem entre si, para
manter os espaços conquistados, sentiram o sabor do poder, e saíram da condição de perseguidas
para perseguidoras.

Chega a ser assustador que grupos religiosos, que um dia se viram perseguidos, torturados e mortos,
ao chegarem no poder mudaram de atitude. De perseguidos à perseguidores, de torturados passaram
à condição de torturadores, e até da condição de vítimas de assassinatos à assassinos.

Quereria poder usar de termos mais brandos, mas o que no Brasil se tem assistido nas últimas
décadas, nos assusta.

Há 22 anos os Povos e Comunidades Tradicionais de Terreiro de Matriz Africana se estarreceu com


um absurdo: No dia 21 de janeiro de 2000, Iyalorisá Gildásia dos Santos, conhecida como mãe Gilda
de Ogum, fundadora do Axé Abassá de Ogum, em Itapuã (BA), foi atacada dentro do terreiro por
religiosos neopentecostais, essa agressão traumática contribuiu para acentuar os problemas cardíacos
que a levariam à morte.

Fomos à luta e conseguimos que o Presidente da República se juntasse a nós pela criação do Dia
Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, e se desse, particular atenção, ao tratamento
isonômico e igualitário à todos os credos, religiosidades e sacralidades.

Foram anos de avanços, com destaque para a criação da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial
da Presidência da República; na publicação de Editais em nível nacional que permitiam a
participação de todas as denominações religiosas do Brasil; cotas para negros nas universidades e
concursos públicos; o Programa de Segurança Alimentar e Nutricional, a criação da Política
Nacional de Cultura e de Desenvolvimento Sustentável Para os Indígenas, Povos e Comunidades
Tradicionais.

Entretanto, por uma série de fatores de ordem política, organizacional, institucional entre outras,
poucas organizações religiosas dos Povos e Comunidades Tradicionais do Brasil, conseguiram obter
o destaque e os avanços conseguidos por seguimentos religiosos hebraico-cristãos neopentecostais.

O campo político foi determinante no avanço seletivo de seguimentos privilegiados em detrimento


de tantos outros.

A partir de tenebrosas transações vimos o agigantamento avassalador de igrejas ditas cristãs, muitas
das quais construídas com o uso de dinheiro público oriundo de emendas parlamentares em nível
municipal, estadual e federal.

Os meios de Comunicação, principalmente os canais de televisão, cujo sinal de transmissão pertence


ao Estado, em questão de pouquíssimo tempo, passaram à condição de território proselitista, e o
Brasil passou a ter uma forte campanha absurda contra tudo aquilo que não era “terrivelmente”
cristão.

A serpente espalhou seus ovos em lugares estratégicos, e praticamente nenhum espaço social,
cultural, educacional, militar e civil ficou imune ao proselitismo radical.

As cenas que pensávamos estarem erradicadas com o fim da ditadura Vargas dos anos 30, dos anos
de chumbo da ditadura civil-militar de 64, ressurgiram das sombras, e de norte ao sul, de leste à oeste
das terras brasileiras, a intolerância religiosa, a não Laicidade do Estado passaram à ser a ordem do
dia.

Vimos Casas de Axé serem invadidas, sacerdotes e sacerdotisas serem humilhados, agredidos,
mortos de várias formas.

Em nome de Jesus, e a mando de homens e mulheres de “Deus”, os traficantes de Jesus fazem igual e
até pior do que se viu em 350 anos de perseguição romana contra os cristãos, e em séculos das ações
nada cristãs do Tribunal do Santo Ofício e da própria Inquisição Evangélica.

Hoje, abertamente, não mais temos Autos da Fé, com procissões de homens encapuzados, portando
no peito cruzes de outro e prata, levando suas vítimas para a decapitação, para o enforcamento ou
para a fogueira em praça pública. Entretanto, temos a omissão do Estado, a leniência dos Órgãos de
Controle, a indiferença, a falta de imparcialidade de Promotores, Juízes, Desembargadores e até
Ministros das mais altas cortes brasileiras.
Diante de um quadro de tamanha falta de imparcialidade, onde a Laicidade do Estado é
menosprezada e ridicularizada pela mais alta autoridade da Nação, o que nós que não somos das
religiões dominantes, podemos esperar do Estado?

O que nos resta fazer diante de um cenário cada dia mais perverso e desigual, onde o critério para ser
Ministro do Supremo Tribunal Federal, é ser “terrivelmente cristão”? A lógica do dominador é o
cristianismo “é a religião da maioria e a minoria tem que se curvar diante disso”.

Socorro, a Polícia chegou!

Em tempos de comunicação de massa via internet, as notícias, os bons e maus exemplos, os modelos
de vida, de alimentação, de costumes entre outros, chegam até as brenhas mais distantes em
velocidade superior a do vento. É nesse cenário que muitas autoridades políticas, civis, religiosas e
militares usam de seus cargos para difundir suas convicções e ideologias, de certo que tudo isso
chega até o grande público em fração de segundos.

Assim sendo, tal qual nos lançamentos de moda, as pessoas seguem a tendência daquilo que se
destaca. O ódio racial, religioso, político ideológico, encontra assim um terreno fértil nos corações de
pessoas conservadoras, radicais, muitas dessas pessoas comprovadamente com perturbação mental e
transtornos psiquiátricos, que não pensam duas vezes em buscar um bode expiatório para suas
mazelas, frustrações e ódios.

Assim como no passado, em muitas comunidades hebraicas ortodoxas, ainda hoje se faz rituais onde
um bode, uma galinha, uma ou outra ave são imolados no Yom Kippur, para expiar os pecados e
carregarem em si as culpas do mundo. Na sociedade como um todo, o que falta são fiéis contritos,
“penitentes”, membros de sociedades conservadoras, “tementes” a Deus, zeladores dos bons
costumes e da família, que buscam em nichos das populações tradicionais, aqueles possam ser
apontados como culpados pelas desgraças físicas, morais, espirituais, financeiros e até dos desastres
ambientais que estejam acontecendo. Verdadeiros bodes expiatórios.

O Pantanal, a Floresta Amazônica estão pegando fogo, por conta de incêndios criminosos, para a os
novos pastos que até então não disseram à que vieram, sejam criados; a água está sendo contaminada
pelo mercúrio, pela lama dos garimpos que não respeitam os rios, as nascentes, as populações
tradicionais, as florestas; os rios das cidades interioranas e das capitais estão prejudicados por
materiais poluentes, não degradáveis, todo um conjunto de ações que está ameaçando destruir toda
vida existente; mas nada disso causa comoção, indignação ou revolta dessa massa fundamentalista.

Mas...... se um Pai ou Mãe de Santo vai até uma Área Verde, uma APP, praia, floresta ou bosque
apresentar, arrear uma oferenda, acender uma vela........ os céus desabam, a oferenda, o ebó se
tornam caso de polícia, de acionamento dos órgãos ambientais. Em dois tempos o ritual se
transforma em destaque negativo em programas religiosos da tv.

Não raro os policiais militares e civis, no mister de seus ofícios, se colocam à serviço do senhor
Jesus; em dois tempos aparecem de forma célere, e o sacerdote/sacerdotisa, pego em flagrante delito
por estar “cometendo crime ambiental” vai parar na delegacia de polícia acusado/a de perturbação da
ordem e/ou crime contra o meio ambiente.

Se um Terreiro ousar fazer suas cerimonias com cantos acompanhados de tambores, e passar das 22
horas, e em muitos casos até em horários onde é permitido o som mais alto, imediatamente ele é
apedrejado, denunciado; surgem movimentos de protestos e indignação religiosa na frente do
Terreiro, a força policial como de praxe, é célere em aparecer aos berros mandando “parar tudo, em
nome da Lei, da família, da Pátria, de Deus, da moral e dos bons costumes, pois se está perturbando
o sossego público”.

Não raro, a poucos metros dessas casas de Axé interditadas pela polícia e órgãos ambientais,
templos, igrejas e células neopentecostais varam a noite com suas sessões de desencapetamento, com
direito ao uso de caixas de som potentes, no mais alto volume e usando instrumentos de percussão,
bem ao estilo saravá nossa Umbanda.

Tudo isso acontece debaixo do olhar “laico” do Estado.

Boa parte dos dirigentes de Casas de Axé não mais registra boletins de ocorrência, por considerar
“total perda de tempo, pois as autoridades não fazem nada”.

“Polícia, para que? Não faz nada!”

Finda que nesse clima de descrédito e desesperança, não é raro haver manifestações patéticas do tipo:
“se a Justiça não chega até nós, é hora da gente se armar também” (SIC).

Na verdade, se nosso povo vier a se armar, e reagir de forma violenta as agressões sofridas, motivos
não faltam.
Em 2014 Pai Rafael de Oxossi foi assassinado, com uma facada no pescoço, por um jovem
evangélico neopentecostal, que invadiu o Terreiro onde a vítima se encontrava, localizado no Bairro
Cidade Nova em Manaus.

Antes de ser morto, por uma hora, Pai Rafael ligou oito vezes para o Disk 190 da Polícia Militar do
Amazonas, pedindo e implorando por socorro, a polícia só veio depois que ele foi assassinado e o
seu assassino já havia fugido.

O descaso da Polícia Civil do Amazonas para com o assassinato foi tamanho, que sequer a arma do
crime foi levada pela polícia de homicídios, o objeto usado para assassinar a vítima, só foi entregue
meses depois para o Secretário Estadual de Segurança Pública do Amazonas, em uma audiência
pública solicitada, insistentemente, pela Articulação Amazônica dos Povos e Comunidades
Tradicionais de Terreiro de Matriz Africana – ARATRAMA, que exigiu a aplicação da letra fria da
Lei.

Poucos dias depois, em Março de 2015, Pai Josiano de Oyá, foi esfaqueado por um outro jovem
evangélico neopentecostal, em uma rua próxima do Terreiro onde foi assassinado Pai Rafael.

Uma outra evidência do descaso do Estado, foi o de se contabilizar em um espaço de 10 anos, 15


assassinatos de pessoas de Terreiro de Manaus, fato que resultou na intervenção do 5º Ofício do
Ministério Público Federal no Amazonas – PRF AM.

As recomendações do MPF – AM feitas ao Governo do Estado do Amazonas, a Prefeitura Municipal


de Manaus para que o Estado e Municipalidade fizessem cumprir a Legislação Federal que garante a
Laicidade do Estado e tratamento igualitário aos cidadãos, não saíram do papel.

A dura realidade é que pagamos impostos como todo e qualquer cidadão, mas os direitos que a
cidadania nos reserva, estão longe de acontecer principalmente nos campos da Segurança e Saúde.

Avanços e retrocessos.

No campo da Cultura Popular até que, em Manaus, se conseguiu ter algum avanço gradativo em um
espaço de dez anos, graças a sensibilidade da ManausCult / Prefeitura Municipal de Manaus,
principalmente de 2012 a 2020.

O Festival Afro Amazônico de Yemanjá, realizado pela Associação de Desenvolvimento Sócio


Cultural Toy Badé e a ARATRAMA, que tem a duração de três dias e três noites, e na ultima noite
divide a mesma faixa de praia com o Reveillon Oficial da cidade de Manaus, no Complexo Turístico
Praia da Ponta Negra, conseguiu garantir espaço e estrutura para uma tradição com mais de 60 anos
de existência, mas que durante cinquenta anos foi apenas tolerada.

Em 2018 e 2019 o Festival alcançou grande sucesso e alcance, pois conseguiu ter uma estrutura
logística de evento nacional. Alcançou um público circulante, que oscilou entre dezesseis e trinta e
cinco mil pessoas por cada noite.

Mas.... bastou acontecer a eleição de um prefeito terrivelmente evangélico em 2020, em nome das
medidas de proteção contra a COVID 19, se teve a pior estrutura dos últimos onze anos.

Entendemos os limites e restrições por conta de uma situação pandêmica, mas é inconcebível que a
Prefeitura exigisse da organizadora do evento, um nihil obstat do Ministério Público Estadual, para
que o Povo Tradicional de Terreiro de Matriz Africana de Manaus, pudesse ter acesso à Praia da
Ponta Negra para apenas entregar suas oferendas, em dia e hora marcada para evitar tumulto.

Detalhe: nessa época a Praia estava liberada, de forma controlada, para o acesso ao público.
Batismos cristãos aconteceram com ajuntamento de público, sem nenhuma restrição.

A exigência estapafúrdia foi levada ao MPE, que classificou-a como um ato de racismo estrutural,
por parte do IMPLURB da Prefeitura de Manaus, responsável pela liberação do local.

As oferendas aconteceram, mas o stress e os constrangimentos forma traumáticos.

Enquanto em anos anteriores tivemos até duas unidades de geradores de energia elétrica, nos dois
dias e uma noite do 11º Festival Afro Amazônico de Yemanjá em 2021, ficamos totalmente às
escuras. Iluminados apenas por um poste de luz, pois todos os outros postes de iluminação da orla da
Praia da Ponta Negra foram “acidentalmente” desligados.

Por outro lado, a Marcha Para Jesus, “abrilhantada” politicamente pelo presidente da República,
mereceu toda estrutura e aparato do Estado e da Municipalidade.

Seguindo na mesma linha, para surpresa e indignação geral, o evento Passo a Passo 2022 promovido
pela ManausCult, terá uma noite “cristã”, com a participação de um pastor pop star, cujo cachê
artístico não é nada humilde.

Houvesse respeito pela Laicidade do Estado, nessa dita noite “cristã”, paga pelo Erário Público, se
incluiria cantores de nível nacional representando outros credos.

Apesar do prefeito dizer que o Município de Manaus é Laico, ele faz questão de destacar que ele é
evangélico.
É fato comprovado que a partir de janeiro de 2020, quando Manaus passou a ser comandada por um
prefeito terrivelmente evangélico, todos os eventos da municipalidade tem que ter “cristãos” de
carteirinha como parte das atrações.

Uma duvida atroz: Como garantir a Laicidade no campo da Educação durante um governo que não
respeita a Diversidade?

Se houve um seguimento social que foi fortemente abalado pelas intervenções ideológicas,
doutrinárias e reacionárias de direita conservadora, o da Educação se destaca entre os demais.

O Ministério da Educação do Brasil, que nos últimos três anos e meio, se tornou propriedade de um
grupo fundamentalista conservador, não bastasse o total desprezo por anos de lutas e de conquistas
para se oferecer ensino de qualidade e igualdade, teve a ousadia de transformar as verbas da
Educação em barganhas nada republicanas, resultado de tenebrosas transações envolvendo bíblias e
barras de ouro.

A Lei de Diretrizes Básicas da Educação Nacional - LDB, que contempla a inclusão da Disciplina
sobre Diversidade (Religiosa, Cultura, Identidade de Gênero entre outras) nas Escolas Brasileiras, foi
duramente atacada, prejudicada, desfigurada e até proibida em várias partes do Brasil.

Na cidade de Manaus, capital do Amazonas, o Conselho Municipal de Educação cometeu o absurdo


de suspender oficialmente a Disciplina Diversidade, em toda Rede Municipal de Ensino.

Para tal decisão, não houve diálogo com a sociedade, com os técnicos de Educação, muito menos
com a comunidade acadêmica, bastou ser “vontade da maioria dominante” para o terrivelmente
evangélico prefeito de Manaus, fazer valer tal decisão estapafúrdia, fato que levou a Associação de
Desenvolvimento Sócio Cultural Toy Badé e Associação Nossa Senhora da Conceição, ambas
representantes de Casas de Axé, a ingressarem com ação judicial para imediata suspensão do
absurdo.

Após meses de vai e vem na Justiça e do jogo de liminares a Segunda Câmara Cível do Tribunal de
Justiça do Estado do Amazonas, negou provimento ao recurso apresentado pela Prefeitura Municipal
de Manaus e manteve a Decisão Interlocutória que garante o Ensino da Diversidade no Sistema
Municipal de Ensino da Cidade de Manaus.

Se a Prefeitura de Manaus vai cumprir a decisão judicial, isso só o tempo vai responder.
Esse episódio nos leva à refletir que essa gente perversa, tão cedo desistirá de tentar fazer com que as
escolas voltem à ser centros de difusão doutrinária dos princípios conservadores e retrógrados que
tanto mau causaram durante os anos de chumbo da ditadura de 64.

É evidente que a resistência nos espaços garantidos pela própria Constituição, se bem fundamentadas
na Legislação Federal, mais cedo ou mais tarde poderão ser vitoriosas.

Mas para esse vitória se faz necessário que pessoas e instituições, compromissadas com o exercício
pleno da Democracia, tenham a coragem de enfrentar toda essa perversidade do sistema.

Não faltam ameaças, intimidações, assédios que nos desestimulam, nos desencantam, mas resistir é
preciso!

A Saúde Integral dos Povos e Comunidades Tradicionais em tempos de pandemia: a espera por um
milagre!

Inegavelmente a Saúde, em geral, foi uma das áreas mais afetadas pelo fundamentalismo religioso da
direita radical e conservadora.

O negacionismo associado ao fanatismo religioso encontraram campo fértil no Brasil duramente


atingido pela pandemia do COVID-19. Literalmente foi uma volta ao século XIX, onde se viu
absurdos como a difusão de teorias afirmando que remédios para pulgas são indicados contra a
Covid-19, chegamos ao desatino da desconfiança na eficácia das vacinas, que trouxe como
consequência a menor cobertura vacinal já vista nas últimas décadas.

Um exemplo do descompromisso do Estado para com as minorias em situação de vulnerabilidade, é


que somente depois de muitas manifestações indignadas de profissionais de Saúde, de Povos e
Comunidades Tradicionais e Movimentos Sociais, foi que o Ministério da Saúde decidiu incluir a
população indígena e quilombola na lista dos contemplados com a vacinação contra a Covid 19.

Mas os Povos e Comunidades Tradicionais de Terreiro de Matriz Africanas ficaram de fora. O


entendimento alegado por algumas secretarias de estado, e municipais de saúde, é que a delimitação
do conceito de quilombos e quilombolas não abrangia os Povos e Comunidades Tradicionais de
Terreiro de Matriz. Alguns poucos gestores entenderam que os Terreiros são sim quilombos, mas
diante da falta de uma definição mais detalhada e abrangente, nada se poderia fazer.
Foi revoltante vir o jogo do empurra, empurra entre Fundação Nacional de Vigilância Sanitária, e
secretarias Estaduais e Municipais de Saúde.

Até o momento as Comunidades Tradicionais de Terreiro de Matriz Africana não foram


contempladas com um tratamento igualitário aos indígenas e quilombolas.

Um outro ponto que chamou atenção, é que se templos e igrejas cristãs podem se pontos de
vacinação contra Covid-19 e de prestação de assistência social em parceria com municípios, por que
não se pode fazer o mesmo em Terreiros e Casas de Axé?

A falta de uma fiscalização rigorosa quanto ao cumprimento das Leis, está resultando na morte de
milhares de pessoas, bem como na existência de um outro tanto de milhões de pessoas que viverão
sequeladas, sabe Deus por quanto tempo, com limitações e sofrimentos.

Tudo isso é o resultado funesto do que não foi feito, para preservar a população de tão grande mau.

De certo, o fundamentalismo religioso foi um dos maiores entraves no combate ao Covid-19, pois
saiu dos púlpitos das igrejas e templos e se alojou na Esplanada dos Ministérios, nas sedes do
Governo Federal, de governos de estados e prefeituras municipais.

Dizer hoje que o pior já passou é algo muito temerário de se afirmar.

As mutações dos vírus são preocupações constante para os bons profissionais e pesquisadores da área
da saúde Saúde. Não estamos e nem podemos ficar tranquilos, enquanto mais de duzentas pessoas
morrerem por dia morrem de Covid-19 no Brasil.

Permitir que o fundamentalismo religioso e ideológico continuem atrapalhando o salvamento de


milhares de vidas, é algo inadmissível.

Conclusão.

A história registra que em quase todas as culturas ocidentais, a influência das religiões dominantes
determinaram a condução de políticas, de sistemas de ensino, condutas sociais e até a economia. Só
que isso nem sempre acabou/acaba bem.

Um fenômeno se fez comum em quase todos os casos, a conhecida inversão de posições, de papéis: o
perseguido de ontem, ao subir hoje às esferas de poder, pratica a mesma agressão que sofreu aos que
lhe são desafetos ou contrariam seus interesses políticos, econômicos entre outros, que lhes garantam
a manutenção do status quo.
A base doutrinária da Sacralidade de Matriz Africana é antagônica à certos dogmatismos hebraico-
cristãos. A ausência do que se convencionou chamar de diabo na Sacralidade Afro, bem como do
conceito de pecado venial e mortal, a aceitação da diversidade cultural, religiosa e de gênero nas
Casas de Axé, são interpretadas como um sério risco para o esquema de dominação e poder,
altamente fundamentado na difusão do sentimento de culpa, bem como a ideia perversa da
existência de um deus contabilista de faltas e pecados dos habitantes do planeta terra.

Na cabeça de muitos lideres religiosos, uma doutrina religiosa que tem por base a inclusão e o
respeito a Diversidade, que coloca a natureza como seu principal altar, dispensando os púlpitos
ornados em dourado, e grandes templos e catedrais, não pode ser tolerada.

Para que tais doutrinas religiosas, que são livres do conceito de pecado deixem de ser uma ameaça
para os terrivelmente cristãos, se faz necessário que estas sejam eliminadas, destruídas,
invisibilizadas.

Um dos recursos mais usados pelo cristianismo, seja católico romano, ortodoxo ou neopentecostal, é
o infame processo de demonização.

Daí que desde a instalação do cristianismo o tornou religião oficial do império romano em 350, o que
possa estar fora do domínio e controle doutrinário, é coisa do diabo, é inferior, “é coisa de gente
ignorante”.

Não foi à toa que a frase de Cipriano de Cartago, extra ecclesiam nulla salus - fora da igreja, não há
salvação, se tornou uma máxima, que perdura até os dias atuais.

Quando o Brasil tomou um rumo diferente, no pós ditadura civil-militar, e em 2002 assume um
governo democrático, que implantou uma Política de Estado contemplando a Laicidade, o respeito a
Diversidade e o Combate ao Ódio Religioso, isso passou à ser uma ameaça real para conservadores
reacionários e fundamentalistas.

Mas o que se pensava estar extirpado da vida nacional, explode a partir de 2018, trazendo os
absurdos da violência, agressões, supressão de direitos e até assassinatos e suicídios.

Uma reedição macabra de uma página infeliz de nossa história!

Nas Redes Sociais, nos grupos de WhatsApp militantes dos vários Movimentos Sociais, Culturais,
Religiosos e de Direitos Humanos, repetem a mesma pergunta: o que fazer?

A todo dia uma nova ameaça, um novo ou repetido rumor de golpe, de supressão de direitos, de
retrocessos.
Ao buscarmos ajuda no Judiciário, como foi o caso aqui em Manaus, sempre se está sujeito ao humor
político do juiz ou desembargador, e até de ministro que pegue o caso. Não raro vemos prevalecer a
vontade e a imposição ideológica daqueles que, no momento, estão no poder. Manobras nada
republicanas resultam em decisões judiciais vergonhosas, indignas. Isso nos leva à um efetivo estado
de desânimo, de desesperança.

É perceptível que diante do descredito, muitos preferem cruzar os braços e deixar acontecer. Há
outros que preferem resistir, enfrentar com os instrumentos que lhes restam.

A tradição ancestral nos leva à refletir, e buscar nas histórias de resistência de nossos antepassados,
os relatos de sobrevivência nos momentos mais difíceis que possam nos servir de norteamento.

Creio que nosso maior desafio é fazer a resistência sem perder a fé na eficácia e resolutividade de
uma cultura de Paz. Os recentes episódios de violência motivados por ódio politico, racial, religioso,
de orientação sexual, se tornam em um incitador à resposta, por parte dos agredidos, em igual
proporção, utilizando-se de armas, de violência, de agressividade.

Permitir que o ódio nos invadas não seria uma forma de vitória de nossos inimigos?

Mas continuar sendo agredidos e mortos sem reação de defesa e ataque, será uma decisão sensata?

Encontrar o meio termo, penso que é o nosso principal desafio.

Particularmente creio que boa parte dessa solução está no ato cidadão de votar livremente e assim
escolher aqueles e aquelas que poderão mudar o país.

Enquanto Sacerdote da Sacralidade de Matriz Africana, acredito nas Divindades, num Ser Criador,
entretanto esse Ser divino não pode se circunscrever aos nossos limites conceituais.

Não podemos fazer de Deus a nossa própria imagem e semelhança, e acreditar que nossos conceitos
e credos refletem a verdadeira face de Deus.

Ninguém nasce com uma lista anexada ao próprio corpo, dizendo como viver ou em que e no que
acreditar. Nós nascemos livres, até mesmo para em nada acreditar.

Se o criador não nos obriga à nada, por qual motivo um homem tem o direito de impor à outros
homens, suas convicções e sua fé?

Somos livres!

O Estado tem que respeitar a Laicidade.


*O autor, Xɛ́byosɔnɔ̀ Alberto Jorge Silva Ọba Méjì

é Sacerdote da Sacralidade de Matriz Africana,

Dotɛ́ do Axɔ́súxwé Acɛ́ Mina Gɛgi Fɔn Vodún Xɛ́byosɔ Toy Gbadɛ́,

Coordenador Geral da Articulação Amazônica dos Povos e Comunidades Tradicionais de Terreiro de


Matriz Africana – ARATRAMA,

Fundador e Mantenedor da Associação de Desenvolvimento Sócio Cultural Toy Gbadɛ́,

Conselheiro Titular do Conselho Estadual de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e


Comunidades Tradicionais do Amazonas,

Radialista,

Psicólogo Clínico Especialista,

Doutorando em Psicologia Evolutiva e da Educação

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