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Sobre o sentido geral da política e da dimensão teórico-política do Cultura Viva.

A pensadora alemã Hanna Arendt (1998) tem uma definição sobre o sentido da
política que nos parece essencial. Ela escreve que a política “... é algo como uma
necessidade imperiosa para a vida humana e, na verdade, tanto para a vida do
indivíduo como da sociedade. Como o homem não é autárquico, porém depende de
outros em sua existência, precisa haver um provimento da vida relativo a todos, sem o
qual não seria possível justamente o convívio. Tarefa e objetivo da política é a garantia
da vida no sentido mais amplo”.

Enrique Dussel (2007) um dos principais filósofos latino-americanos e um dos


expoentes do Giro Decolonial, define o lugar da política como o “principio material
libertador” e como o elemento de “afirmação e aumento da vida comunitária” e diz
mais: “A política, sendo a vontade-de-viver, consensual e factível, deve tentar por
todos os meios (nisso consiste a sua normatividade como obrigação analógica e ética)
permitir a todos os seus membros que vivam, que vivam bem, que aumentem a
qualidade de suas vidas [...] A vida humana, sendo o critério material por excelência, é
o conteúdo último de toda ação ou instituição política. O político de vocação está
chamado a trabalhar a favor da reprodução e aumento da vida de todos os cidadãos.
[...] A política, em seu sentido mais nobre, obediencial, é esta responsabilidade pela
vida em primeiro dos mais pobres”.

A parte de quaisquer divergências teórico-epistemológicas entre Arendt e


Dussel, uma pensadora e um pensador distintos em suas origens e trajetórias, o que
nos interessa aqui é que ambos conferem a política a responsabilidade pela vida.
Assim, nenhuma ação política, seja na cultura, na economia, na educação ou em
qualquer área da experiência humana que despotencialize ou empobreça ou destrua a
vida deveria ser tolerada.

Caminhando um pouco mais e adentrando no tema de Política Cultural, Stuart


Hall (1997), importante pensador pós-colonial afirma que “por bem ou por mal, a
cultura é agora um dos elementos mais dinâmicos – e mais imprevisíveis – da mudança
histórica no novo milênio. Não deve nos surpreender, então, que as lutas pelo poder
sejam, crescentemente, simbólicas e discursivas, ao invés de tomar, simplesmente,
uma forma física e compulsiva, e que as próprias políticas assumam progressivamente
a feição de uma ‘política cultural’”.

Diante dessa simbiose entre cultura e política, da influência fortíssima, que o


espírito cultural de um tempo tem sobre a política, Hall adverte sobre a necessidade
de que a produção cultural não seja uma prerrogativa do mercado e que há de se
regular a “esfera cultural”. Seu argumento é que “seja o que for que tenha a
capacidade de influenciar a configuração geral da cultura, de controlar ou determinar
o modo como funcionam as instituições culturais ou de regular as práticas culturais,
isso exerce um tipo de poder explícito sobre a vida cultural” e acrescentaríamos, sobre
a vida e a ação política. Nesse trecho Hall está pensando basicamente no mercado
capitalista e complementa sua ideia assinalando que “os mercados não funcionam por
si sós. Necessitam ser estruturados e policiados; apoiam-se em outras condições
sociais e culturais [...] que o próprio mercado não pode oferecer. Alguém tem de arcar
com os ‘custos’ sociais daqueles que falham no mercado (o mercado sempre cria tanto
‘vencedores’ quanto ‘perdedores’, com consequências sociais amplas e não apenas
relacionadas ao mercado). Os mercados cairiam imediatamente na anarquia se não
fossem regulados”.

Ainda sobre a questão da Política Cultural, aproximadamente sete anos depois


da publicação do texto referido acima de Hall, Gilberto Gil, como ministro da Cultura
discursaria assim em sua posse: “[...] as ações do Ministério da Cultura deverão ser
entendidas como exercício de antropologia aplicada. [...] O Estado [...] não deve atirar
fora de seus ombros a responsabilidade pela formulação e execução de políticas
públicas, apostando todas as suas fichas em mecanismos fiscais e assim entregando a
política cultural aos ventos, aos sabores e caprichos do deus-mercado. [...] o mercado
não é tudo. Não será nunca. [...] Sabemos muito bem que em matéria de cultura, assim
como em saúde e educação, é preciso examinar e corrigir distorções inerentes a lógica
do mercado – que é sempre regida, em última análise pela lei do mais forte. [...]
Sabemos que é preciso suprir as nossas grandes e fundamentais carências. [...] fazer
uma espécie de ‘do-in’ antropológico, massageando pontos vitais, mas
momentaneamente desprezados ou adormecidos, do corpo cultural do país. Daí que a
política cultural deste ministério, a política cultural do governo Lula, a partir deste
momento, deste instante, passa a ser vista como parte do projeto geral de construção
de uma nova hegemonia em nosso país. Como parte do projeto de construção de uma
nação realmente democrática, plural e tolerante. [...] Temos que completar a
construção da nação. De incorporar os segmentos excluídos. De reduzir as
desigualdades que nos atormentam. [...] E o papel da cultura, nesse processo não é
apenas tático ou estratégico – é central: o papel de contribuir objetivamente para a
superação dos desníveis sociais. [...] Tenho para mim que a política cultural deve
permear o governo, como uma espécie de argamassa de um novo projeto nacional.

Assim como os pensamentos de Dussel e Arendt estão ligados pelo elemento


“vida” como aquilo que deve ser promovido pela ação política, os pensamentos de Hall
e Gil estão ligados pelo elemento “cultura” como aquilo capaz de influenciar ou
mesmo determinar a vida, a ação política, daí as fortes críticas que fazem ao mercado
que não tem responsabilidade alguma com a vida e ambos apontam para a
necessidade de “regulação” ou de se ter políticas públicas não aderentes à lógica do
mercado que assegurem e potencializem a vida para todas, todos e todes.

O Cultura Viva pode ser, por assim dizer, uma política pública por capaz de unir,
na medida das limitações de toda política pública, estes dois conceitos, cultura e vida,
colaborando para uma mudança de paradigma ético da ação política, para que ela de
fato priorize a vida. O Cultura Viva em sua dimensão mais ampla é mais que arte ou
cultura como as políticas públicas têm entendido num sentido muito limitado, o
Cultura Viva é uma ideia-ação para colaborar com o florescimento de um outro
mundo, tendo o Movimento Social Cultura Viva como motor e a Política Pública
Cultura Viva como parceira.

Mas quais os elementos, quais pensamentos-ações podem ser divisadas como


capazes de fazer retroceder a lógica necropolítica que domina as relações
interpessoais, institucionais, entre Estado e Sociedade Civil e as relações
internacionais? De outro modo, que atitudes podem colaborar conosco para que “...a
vida no planeta Terra possa ser uma vida perpétua..” e para que as estruturas e
sistemas estejam a serviço da “... reprodução e o crescimento da vida humana, e não
do capital...”, como também assinala Dussel?

Essas perspectivas, pensamentos-ações transformadores, ou mais


propriamente revolucionários, capazes de estabelecer um ponto de inflexão na
trajetória civilizatória, que já estão disseminadas em vários movimentos sociais e que
estão muito mais presentes nos discursos de Movimentos de Cultura Viva de outros
países latino-americanos que aqui no Brasil, tem a ver com miradas, posicionamentos
e práticas descolonizantes/antirracistas, despatricarcais e críticos a ordem capitalista,
que alguns e algumas têm chamado anticapitalistas, outros e outras,
desmercantilizadoras.

E por que o Movimento Cultura Viva Brasileiro precisa se acercar desses


conceitos-atitudes? Por um motivo bem simples, a ordem capitalista-colonial-
patriarcal se caracteriza, e sempre se caracterizou, como um elogio a discriminação, ao
preconceito, a violência, ao genocídio, a desigualdade e ao extermínio de populações,
culturas e da natureza. Quando populações, culturas e natureza são interpretadas
como empecilho ao “desenvolvimento”, exclui-se, mata-se. Quando se interpreta que
populações, cultura e natureza podem ser convenientes e lucrativos, a ordem
capitalista-colonial-patriarcal se apropria e explora e tudo se transforma num produto.
Conceitual e politicamente, a descolonização, a despatriarcalização e a luta anti-
capitalista parecem conferir uma robustez, uma potência teórico-política ao
Movimento indispensáveis para que este Movimento se constitua como relevante. Um
Movimento que se autodesigna como de Cultura Viva não pode coadunar ou
simplesmente ignorar que a estrutura moderna capitalista-colonial-patriarcal é,
empiricamente, geradora de empobrecimento e morte material e simbólica.

Não se espera que uma Política Cultural Governamental ou de Estado tenha


esse perfil, sendo ela gestada pelo Estado e dentro de um sistema que ainda é
capitalista-colonial-patriarcal, mas é possível que os gestores e gestoras públicas,
realmente comprometidas com a vida e com o aumento de vida, utilizem-se de todos
os meios para aproximar o sentido da Política Pública Cultura Viva do sentido, dos
princípios e horizontes do Movimento Cultura Viva. Da nossa parte é um imperativo
político tornar esse Movimento o mais revolucionário e gerador de vida que possamos
fazê-lo ser.

Fortaleza, 04 de janeiro de 2023.

Marcos Antonio Monte Rocha


Ponto de Cultura Outros Olhares / Fábrica de Imagens
Rede Cearense Cultura Viva
Comissão Nacional dos Pontos de Cultura
Equipe de Acompanhamento Continental CVCLA

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