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Municipalização da cultura

6 de Fevereiro, Castelo Branco


Fábrica da Criatividade, 18h-20h
Entrada livre
Em Outubro 2019, o nosso colega e gestor cultural Rui Matoso assinava um artigo de opinião no
jornal Público intitulado A insustentável leveza do municipalismo cultural. Nesse artigo, que foi
bastante discutido nas redes sociais e tema de um debate da Acesso Cultura em Fevereiro de
2020, Rui Matoso citava Sophia de Mello Breyner (“Não queremos opressão cultural. Também não
queremos dirigismo cultural. A política, sempre que quer dirigir a cultura, engana-se. Pois o dirigismo
é uma forma de anticultura e toda a anticultura é reacionária.” – Assembleia Constituinte de 1975-
1976) e questionava: “É a uma câmara que cabe a função de promover, por exemplo, um Festival
Transcultural? Ou, pelo contrário, a sua função deve ser a de gerar políticas, ferramentas e
condições de produção para que os acores sociais, designadamente minorias, construam um projeto
participado e sustentado?”.

Uma conversa com Rui Matoso, investigador e gestor cultural


Moderação: Jorge Manuel Costa, Gabinete de comunicação do Instituto Politécnico de Castelo
Branco

Resumo
Pontos trazidos por Rui Matoso:

• Não há pleno desenvolvimento local sem uma plena cidadania cultural. Neste aspeto são
imprescindíveis os trabalhos do economista Amartya Sen no âmbito do desenvolvimento
humano e na concepção de uma ideia de desenvolvimento como liberdade, emancipação e
empoderamento dos cidadãos e das comunidades.

• Há dois conceitos que podem parecer idênticos e ambíguos: o de municipalismo e o de


municipalização, mas que têm significados distintos:

Uso o termo “Municipalismo Cultural” com uma perspetiva crítica e histórica do municipalismo
português que evidencia a governação absolutista protagonizada pelos “césares locais” :

Em 1910, já o futuro Presidente da República, António José de Almeida, proclamava que “o


caciquismo não é um acessório do regímen. É o próprio regímen. Ou, pelo menos, está para o
regímen como o coração está para o organismo em que bate: é o aparelho distribuidor da energia e
da acção”. Henriques Nogueira, Alexandre Herculano, Bordalo Pinheiro entre outros, descrevem o
municipalismo português de forma pejorativa.

Mais próximo da atualidade, Boaventura de Sousa Santos, questiona o pós 25 de Abril como época
em que as autarquias locais foram investidas das mais ambiciosas expectativas democráticas:
“Esperava-se que, ao nível das autarquias, o exercício do poder político fosse mais próximo dos
cidadãos e mais participado por estes, constituindo assim um cadinho de vivências democráticas
fortes onde se geraria uma cultura política de cidadania ativa capaz de neutralizar a cultura de
submissão e de autoritarismo prevalecente até então no país (…). Ao centralismo da administração
central acabou por corresponder o centralismo da administração local, o chamado “cesarismo local”.
Daí o paradoxo do poder local no nosso país: presidentes de câmara fortes coexistem com um poder
local fraco.”.
Quanto ao termo “municipalização da cultura”, associado à “descentralização”, entendo-o de modo
benéfico (contrariamente ao que acontece por exemplo no sector da Educação – greve dos
professores). A vitalidade cultural é interdependente de um meio criativo local, ancorado no território,
onde o direito à cultura se entrelaça com o direito à cidade.

• Existe na actualidade um conjunto vasto e intenso de interferências globais sobre os


contextos locais, para os quais as cidades, enquanto espaços de maior densidade
populacional, demoram a encontrar respostas e formas de resiliência, nomeadamente: a
crescente presença de movimentos sociais, partidos políticos e de ideologias da extrema
direita (xenofonia, homofobia, transfobia, misogenia, racismo, etc…); manipulação emocional
produzida pela redes sociais / tecnologias de adição e recompensa por via da libertação de
dopamina; urgência e crise climáticas – antropoceno – eco ansiedade; o capitalismo
financeiro depredador dos ecosistemas naturais; a guerra e o terrorismo global;
aceleracionismo informacional, a emergência de formas de inteligência pós-humana
(inteligência artificial); a falta de espaços, de condições, de políticas, de estratégias, de
medidas, de ferramentas orientadas para a participação e a criação que favoreçam o
exercício pleno da cidadania ativa.

• Como sabemos a Rede de Teatros e Cineteatros Portugueses está em franca


implementação, foram credenciados pela DGArtes até ao momento 84 equipamentos
culturais e atribuídos 39 apoios à programação cultural dos equipamentos. Um dos
requisitos para a elegibilidade das candidaturas prende-se com a autonomia do director
artístico / programador cultural. No entanto, existem inúmeros teatros municipais
credenciados e com apoio concedido à programação, legitimados pelo Ministério da
Cultura/DGArtes, que, por um lado, não cumprem os próprios requisitos regulamentados pela
rede e por outro ignoram as boas práticas. Porque razão em 2023 os municípios insistem
em atribuir a função de direcção artística/programação dos teatros municipais a
Chefes de Divisão ou a técnicos do quadro do município e ainda a vereadores e
presidentes de câmara? A programação cultural é entendida como uma criação autoral, é
desenvolvida por personalidades que fazem parte do próprio campo cultural e artístico , e
que são, dessa forma, convidados para o cargo enquanto especialistas. A figura de
programador não se compadece com a obediência hierárquica ao poder autárquico. O caso
mais grave é quando o programador é Chefe de Divisão, pois esse lugar é o mais próximo da
confiança e lealdade ao executivo municipal (presidente da câmara / vereador). No contexto
do municipalismo português que garantias existem de que um funcionário público,
hierarquicamente subordinado ao poder executivo, garanta a liberdade artística, o
pluralismo de orientações estéticas e políticas, e a autodeterminação dos agentes do
sector cultural? A Constituição da República impede que o Estado exerça Programação
Cultural (Artº 43):O Estado não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer
diretrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas.

• Este quadro legal e conceptual é hoje partilhado pelas mais relevantes instâncias
democráticas:

Começando pela Acesso Cultura e pela sua incansável e inevitável campanha em prol da
amplificação dos direitos culturais e da cidadania cultural.

Pelo entendimento que é necessário e urgente suplantar o modelo da Democratização


Cultural, conhecido também como Modelo Deficitário.

No Reino Unido, o Arts Council tem vindo insistentemente a dirigir a sua atividade para a
Democracia Cultural enquanto direito à criação que nas suas palavras significa “todo um
mundo de oportunidades de criação.. É quando as pessoas têm a liberdade social
substantiva para construir as suas próprias versões da cultura»… Objetivando impulsionar a
CRIATIVIDADE ARTÍSTICA E CULTURAL NO QUOTIDIANO.

Este desígnio da Democracia Cultural pressupõe algumas transformações de mentalidade e


de paradigmas:
◦ O reconhecimento de uma Ecologia Cultural, de um meio ambiente criativo e respetivos
ecossistemas, cuja sustentabilidade não se compadece com monoculturas.
◦ A cultura, enquanto matéria de política pública, deve, então, ser entendida como
capacidade activa de cidadania.
◦ A Cultura não pode ser instrumentalizada para a construção do consenso social e muito
menos para fins eleitoralistas
◦ Não é admissível que, num mundo a caminho do apocalipse, as gerações mais jovens
não detenham a capacidade suficiente para o dissenso, para a irreverência, para
problematizar o curso das ações e exercer as suas práticas culturais comuns na cidade.
◦ A Democracia e a Cidadania Cultural, pressupõe o direito à “acção direta” sem o
constrangimento da sujeição a mediações institucionais – ou seja, dispensando que a
boa vontade do programador oficial do município - um dia destes... - corresponda às
necessidades prementes da sociedade civil.
Voltando a reiterar o mesmo, conceptualmente, em teoria, e bem, têm surgido diversos documentos
preconizadores da participação livre e emancipada dos cidadãos na vida cultural das suas cidades:
• Agenda 21 da Cultura
• Carta do Porto Santo
• Carta de Roma
• Manifesto do Plano Nacional das Artes
• A metodologia europeia ADESTE + para o desenvolvimento de públicos, que parte do
principio de falar de pessoas e não de públicos.
• A noção de Cultura 3.0 – a cultura como produção e participação e não como consumo

O que fazer?

• Organização da sociedade civil, a criação de um manifesto, a realização de petições nas


assembleias municipais, etc..
• Reivindicar a existência participativa de Um Plano Estratégico + Conselho Municipal de
Cultural
• Existência de linhas de financiamento à produção cultural e criação artística, com
regulamentos transparentes e júris independentes
• Criar gabinetes de apoio aos projetos de artistas emergentes e da cidadania cultural
• Redemocratizar as instituições culturais, criar conselhos de programação, alargar horários de
funcionamento, ampliar a base social dos públicos e dos participantes nas suas vivências
heterogéneas

É necessária uma nova e radical imaginação social que concretize o mais elementar dos direitos
humanos e culturais, sintetizado pelo artista JOSEPH BEUYS na década de 1970: “Todo ser humano
é um artista, um ser livre, chamado a participar na transformação e na remodelação das condições,
nas mentalidades e nas estruturas que moldam e informam as nossas vidas.”

Pontos levantados pelas pessoas que participaram:

• Desconfiança: inevitável entre criadores e programadores ou regras pouco claras?


• Efeitos da centralização replicada: dependência do poder municipal, acomodação por
ausência de reivindicação, perda do espírito de comunidade.
• Em territórios pequenos, um técnico a programar pode fazer a diferença.
• Diversificação de apoios e públicos dos agentes culturais como sinal de maturidade dos
territórios.
• Apesar de haver autonomia curricular, a criação artística está pouco presente nas escolas.

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