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Estados – nações particulares (como, por exemplo, portugueses dos Estados Unidos, brasileiros da
Espanha etc) e, portanto, a um nacionalismo metodológico.. Mas devemos ter em mente que
migração é parte constitutiva das dinâmicas da formação do capital - dinâmicas que são
argumento que uma perspectiva global das migrações (Glick-Schiller 2009, 2010, 2011, Feldman-
Bianco, 2011) possibilita mapear as dinâmicas do poder desigual que modelam e que são,
etnografia a partir de localidades específicas para entender como o global, o nacional, o regional e o
local são construídos no terreno através de redes de relações sociais desiguais. Permite, portanto,
discernir os migrantes - não como comunidades étnicas ou transnacionais discretas, mas como
protagonistas ativos cujas trajetórias de vida e identidades são moldadas por e modelam localidades
política de identidades, se deu no contexto de movimentos das “assim chamadas minorias” que
desafiavam a hegemonia cultural dos grupos dominantes. Posteriormente, porém, num período
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hegemônicos de nação. Na atual conjuntura do capitalismo global, a relação entre políticas
diferenciação entre nacionais e estrangeiros, impondo exclusão ou pelo menos acesso preferencial
segmentos da população.
suas produções simbólicas a luz das mudanças locais e globais dos últimos 30 anos, examino um
notório estupro de gangue ocorrido em 1983 numa mesa de bilhar de uma taverna de um bairro
proletário português de New Bedford, cujos protagonistas eram imigrantes portugueses ou luso-
descendentes. Exacerbado pela mídia e um julgamento televisivo, esse caso, base do filme The
Accused (mas sem a dimensão étnica), expôs os diferentes códigos culturais sobre gênero. Trouxe à
politização exacerbada da identidade étnica portuguesa. Como epílogo desse drama social, examino
portuguesa na atualidade, através de sua gastronomia e folclore, bem como sua incorporação no
Qualquer análise da história e economia política de New Bedford deve levar em conta seu
transformações e mobilizações dos migrantes no caso Big Dan e seu epílogo, bem como o papel
ativo desempenhado pelos imigrantes e suas redes sociais na conformação desses processos. Essa
história se inicia com os tripulantes açorianos e cabo-verdianos cujo trabalho nas expedições
baleeiras dos séculos XVIII e XIX criou o capital investido nas primeiras tecelagens locais. As
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dessas tecelagens no primeiro quartel do século XX e as lutas operárias daquele período marcaram a
retorno reforçou os campos sociais transnacionais que unem a cidade aos Açores e Portugal
continental, como também à Cabo Verde. Como outras cidades têxteis, New Bedford não recuperou
sua posição de importância nos Estados Unidos. Com a reabertura dos portões da imigração na
década de 1960 e a imigração em cadeia, a cidade continuou a receber imigrantes portugueses que
eram invariavelmente ligados aos antigos contingentes, que encontraram um novo regime de
trabalho fabril intensivo desenvolvido nas áreas industriais parcialmente abandonadas. Mais
recentemente, num período marcado pela retração da imigração portuguesa e fechamento das
ocupações que não exigem qualificação nas indústrias remanescentes de trabalho intensivo e
Costa Sul de Massachusetts e, ao mesmo tempo, enquanto locação para investimentos, comércio e
urbana não pode ser entendida sem referencia aos modos em que a cidade de New Bedford e sua
força de trabalho têm sido constantemente re-posicionada e re-escalada nas amplas redes de poder
econômico e político. Essa estória indica que os trabalhadores imigrantes têm de encontrar meios de
lutar para re-elaborar suas identidades pessoais e economias familiares que frequentemente se
estendem transnacionalmente. Essas lutas tem sido parte de movimentos sociais por direitos, como
de processos globais de acumulação de capital, ficou evidente para mim durante pesquisa de campo
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ainda no final da década de 1980. Nesse sentido, saliento a necessidade de examinar as
conjunturas específicas. Uma dessas conjunturas foi representada pela eclosão do notório caso de
estupro Big Dan num período marcado pela renovação da imigração portuguesa em New Bedford,
quando um novo ciclo de fechamento das fábricas locais e/ ou seu deslocamento para outros países
ainda com a abertura de um novo serviço de atendimento para vítimas de abuso sexual, promovido
pelas feministas de um Centro da Mulher local. Exacerbado pela mídia e um julgamento televisivo,
esse caso expôs os diferentes códigos culturais sobre gênero e trouxe à baila a existente (e
brancos”, devido à sua associação com migrantes do Cabo Verde, antiga colônia de Portugal.
Permeado por equívocos culturais, o caso Big Dan se tornou um campo de batalha numa
conjuntura histórica na qual o multiculturalismo (em sua versão pluralista cultural) já havia se
transformado em discurso hegemônico nos Estados Unidos e a política baseada nas relações de
classe estava sendo substituída pela política da identidade, fundamentada na diferença. Uma
cronologia dos eventos indica que, assim que as noticias sobre esse estupro começaram a ser
veiculadas pela mídia, grupos comunitários locais formaram uma coalizão contra a violência de
sexo e organizaram uma vigília de candelabros em protesto à violência contra a mulher, que contou
a linha aberta de uma estação de rádio local começaram a denunciar a origem portuguesa dos
alegados estupradores. Ao perceberem que a mídia estava tratando o estupro como um crime
étnico, lideranças portuguesas formaram uma Comissão pela Justiça e uma Liga de Defesa
quatro dos seis acusados serem julgados culpados, mais de 15.000 portugueses e descendentes
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realizaram duas demonstrações públicas. Descritas por perplexos observadores não portugueses
esferas da vida social de New Bedford, inclusive no local de trabalho e sindicatos. Enquanto
mulheres e homens feministas percebiam a reação dos portugueses como machista, parcelas
polarização também revelou as divisões existentes entre os mais antigos e mais recentes
contingentes de imigrantes portugueses, bem como entre imigrantes e luso-descendentes, além dos
sobre gênero e, nesse sentido o conflito entre gerações, seja como membros de um grupo étnico,
seja como feministas se manifestando contra a violência sexual, seja, ainda, articulando, em alguns
. No processo dessas mobilizações, New Bedford recebeu a alcunha de Portuguese gang rape
imigrantes portugueses foram igualmente retratados pejorativamente pela mídia local, nacional e até
relação ao caso Big Dan, sistematicamente relacionavam essa explosão “aos árduos tempos que a
cidade tem passado desde a greve têxtil de 1928”. Se na década de 1920, as tecelagens locais
progressivamente encerraram suas atividades ou se deslocarem para o sul do país onde os salários
dos trabalhadores eram mais baixos, o caso Big Dan, transformando simbolicamente a outrora
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célebre “cidade baleeira” em uma “cidade de imigrantes bizarros”, marca o início de um novo re-
processo de terceirização estavam começando a acarretar um novo ciclo de fechamento das fábricas
locais e/ ou ao seu deslocamento para outros países onde a mão-de-obra é mais barata. Entrevistado
pelo New York Times, o então prefeito da cidade, afirmou que o sensacionalismo provocado pelo
caso Big Dan, “Nos fere mais do que feriria a muitas outras cidades (...) A decadência já dura duas
gerações. As expectativas baixaram. As pessoas se tornaram negativas sobre elas mesmas e sobre a
cidade. Por isso, temos que tentar arduamente voltar ao ponto zero” Ainda no início da década de
1990, muitos jovens portugueses, mulheres e homens sentiam vergonha de New Bedford e de sua
identidade portuguesa..
Desde então, como tantos outros trabalhadores mundo afora, a classe operária local foi
longo prazo, benefícios, sindicatos, ou procedimentos para queixas e reparações. Inúmeros cidadãos
locais começaram a buscar alternativas de vida. Por conseguinte, os trabalhadores portugueses, como
paradoxal, os portugueses parecem ter melhorado seu posicionamento estrutural como um grupo
étnico em New Bedford, inclusive no campo da política institucional. Esse avanço é resultado de
vários fatores como, por exemplo, drástica redução da migração portuguesa, incorporação desigual de
suburbanização e o fato de que, pela primeira vez em mais de um século, os mais recentes
contingentes de imigrantes que se radicam na localidade não são portugueses. Acima de tudo, deve-se
bilíngües para mudar a imagem de Portugal e dos portugueses nas cidades da Nova Inglaterra. Este
processo foi iniciado ainda em 1985, quando do ingresso do Estado pós-colonial português no espaço
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Ao reconhecer a diáspora enquanto parte da nação, o Estado português proporciona aos
tornaram recursos preciosos em localidades como New Bedford. Ao mesmo tempo, autoridades
diáspora capazes de galgarem posições de poder nas localidades e países de fixação, bem como de
nacionalismo de longa distância também está ajudando os afluentes e influentes portugueses e luso-
americanos a aumentarem seu poder político como um grupo étnico na política americana.
componente visível e desejável do patrimônio cultural da cidade. Como parte das estratégias do
cultural.
Portugal se tornou um recurso valioso nos esforços dessa cidade para conseguir competir regional e
New Bedford e região circunvizinha, mas também em relação a Portugal e ao estado português.
especialmente relevante para a cidade e para essas lideranças transmigrantes. Suas conexões os
posicionam mais centralmente no cenário político e econômico da Costa Sul de Massachusetts, como
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Açores. Lideranças bilíngües e biculturais também se revelaram intermediários capazes de canalizar
verbas portuguesas para New Bedford e região circunvizinha. Tornaram-se, por conseguinte, parte
dos esforços de reposição tanto de New Bedford e região circunvizinha quanto do Estado português,
na atual conjuntura global. Mas, concomitantemente ao avanço da posição social e do capital cultural
dessas lideranças, estão a ocorrer perdas na qualidade de vida e nas aspirações futuras daqueles que
como questão de segurança nacional, tem resultado não só na perda das condições de trabalho seguras
e estáveis conquistadas pelas mobilizações operárias do início do século XX, como também no
da Guatemala, México, Nicarágua e, em menor extensão, Brasil, formarem atualmente uma “sub-
classe” em New Bedford, mais expostas às políticas restritivas de imigração do post 9/11. São esses
trabalhadores as maiores vítimas das batidas dos agentes de segurança nacional às fábricas locais. Se,
na década de 1980, o caso Big Dan transformou New Bedford em foco de atenção nacional e
internacional, em 2004 e 2007, a cidade voltou a atrair a mídia nacional, devido às batidas dos
agentes de imigração Em 2007, esses agentes prenderam 300 mulheres e homens, a maioria da
Guatemala, Nicarágua e México. Tendo em vista o número considerável de mães presas e separadas
de seus filhos pequenos, seus dramas captaram a atenção e simpatia de autoridades locais e estaduais.
Essas prisões mobilizaram também os cidadãos de New Bedford, inclusive sindicatos e lideranças
solidariedade social exibida e da dependência da cidade nesses imigrantes, as restritivas leis federais
Porém chama a atenção, não somente no caso de New Bedford, como também alhures, a
mobilização de vários segmentos da sociedade civil (como sindicalistas, feministas, ativistas negros,
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imigrantes de várias nacionalidades, ONGs, Igreja, intelectuais, entre outros) em prol dos direitos
desses imigrantes e por um mundo sem fronteiras. Essas mobilizações extrapolam a ênfase nas assim
identidades que reforça o grupo étnico e proporciona estratégias de ascensão política e social, estão
emergindo mobilizações que aglutinam diferentes segmentos da sociedade civil em prol dos
nesses movimentos sociais, dos quais também são protagonistas ativos. Argumento que esses
movimentos sociais constituem o fato novo da globalização contemporânea, indicando que, pelo
menos no caso das migrações internacionais, já estamos entrando numa fase pós-política de
identidades. Não por acaso, no IV Fórum Social Mundial das Migrações, o lema “proletários de todo
A minha análise sobre o caso Big Dan e seu epílogo se refere à passagem do pluralismo
cultural estatal para o multiculturalismo neoliberal, como parte constitutiva dos projetos de nação
nos Estados Unidos. Mas, enquanto as ideologias multiculturalistas enfatizam pertencimento a uma
desenvolvem campos sociais transnacionais. Nesse sentido, tornou-se necessário também levar em
conta as novas concepções de nação surgidas a partir de meados da década de 1980 e que
incorporam, seja por legislação ou por retórica, suas populações emigrantes tanto por parte de ex-
seus transmigrantes, inclusive suas remessas, e principalmente o papel das lideranças como
Como migrantes internacionais são protagonistas e parte constitutiva dos tecidos sociais
tanto de suas localidades de origem como daquelas onde se radicam, inseri o caso Big Dan e seu
epílogo na história social de New Bedford, dedicando atenção aos processos de incorporação e
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Delineei, assim, as geografias de incorporação, marginalização e participação dos imigrantes,
capital. Essa perspectiva demandou uma análise baseada em tempo e lugar como parte de uma
renovada economia política da migração que dá destaque ao papel ativo desempenhado por
migrantes cujas relações sociais constituem campos sociais de poder desigual no âmbito de
Referências
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Smith, Estellie M. 1974. “Portuguese Enclaves: The Invisible Minority”. In Social and Cultural Identity:
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