Este documento discute uma foto de uma procissão religiosa de imigrantes açorianos em Nova Inglaterra, capturando a sobreposição de um ritual cultural em um cenário americano. A autora reflete sobre como sua experiência de vida como imigrante influenciou seu olhar etnográfico ao estudar a construção cultural da "saudade" entre imigrantes portugueses. A foto evoca memórias de seu espanto inicial ao observar tal ritual fora de contexto e como seu estudo a ajudou em sua própria reconstrução
Este documento discute uma foto de uma procissão religiosa de imigrantes açorianos em Nova Inglaterra, capturando a sobreposição de um ritual cultural em um cenário americano. A autora reflete sobre como sua experiência de vida como imigrante influenciou seu olhar etnográfico ao estudar a construção cultural da "saudade" entre imigrantes portugueses. A foto evoca memórias de seu espanto inicial ao observar tal ritual fora de contexto e como seu estudo a ajudou em sua própria reconstrução
Este documento discute uma foto de uma procissão religiosa de imigrantes açorianos em Nova Inglaterra, capturando a sobreposição de um ritual cultural em um cenário americano. A autora reflete sobre como sua experiência de vida como imigrante influenciou seu olhar etnográfico ao estudar a construção cultural da "saudade" entre imigrantes portugueses. A foto evoca memórias de seu espanto inicial ao observar tal ritual fora de contexto e como seu estudo a ajudou em sua própria reconstrução
Etnográfica Número Especial 2006, Lisboa: CEAO/ ISCTE
Bela Feldman-Bianco Universidade Estadual de Campinas bfb@uol.com.br
MARCAS DA SAUDADE. Essa foto é de autoria de Marcus Halevi que, ao
meu pedido, retratou personagens e eventos no decorrer das filmagens de Saudade (1991), entre os quais essa cena de uma procissão da Festa do Divino Espírito Santo, organizada por imigrantes da Ilha de Santa Maria radicados em Nova Inglaterra. Gosto muito dessa foto, porque capta de forma exemplar a aparentemente inusitada sobreposição de um ritual açoriano à paisagem asséptica de uma auto-estrada americana. Emaranhando o olhar do fotógrafo com o meu olhar de etnógrafa, ela evoca minhas memórias das primeiras incursões em campo, do meu espanto ao deparar-me, pela primeira vez, com uma procissão similar nas ruas de New Bedford, e da minha sensação inicial de que as vaquinhas do Divino Espírito Santo estavam decididamente fora do lugar no cenário industrial da cidade. Ela me faz relembrar de como meu olhar de etnógrafa foi intensamente moldado pelas múltiplas imagens alegóricas de diferentes tempos e espaços portugueses que se impõem, justapõem e, ao mesmo tempo, se contrapõem à paisagem industrial americana, demarcando assim as fronteiras simbólicas dos enclaves portugueses espalhados pelas pequenas cidades de Nova Inglaterra. E me faz refletir sobre como e porque esse meu olhar me impeliu a desvendar, através de uma etnografia visual, os significados da construção cultural da saudade - e não, por exemplo, o seu anverso, isto é o processo de americanização - nas (duplas) vidas vividas por imigrantes dos Açores, da Madeira e de Portugal continental naquela L(usa)lândia.
Com a distância do tempo e daqui do Brasil, percebo, agora, quão esse
meu olhar foi informado pelas minhas próprias experiências de vida. Filha de imigrantes judeus, que emigraram da Rússia e da Polónia para o Brasil um pouco antes da eclosão da II Guerra Mundial, vivi parte da minha infância e adolescência num bairro judeu de São Paulo. Mais tarde, durante a ditadura militar no Brasil, emigrei para os Estados Unidos. E quando iniciei muito circunstancialmente o estudo de caso entre portugueses de Nova Inglaterra, eu me sentia completamente dividida entre o Brasil e os Estados Unidos. Essa vivência foi constitutiva do meu encontro com os imigrantes portugueses de Nova Inglaterra, acentuando e direcionando a sensibilidade de meu olhar etnográfico. No processo de elucidar o significado da construção cultural da saudade na reconstituiçao da identidade pessoal desses imigrantes, também me reconstruí enquanto pessoa. Por isso, quando olho para essa foto, sinto as tatuagens que essa pesquisa deixou inscritas na minha alma.